Música e religiosidade na caracterização identitária do ...Jean... · Terno de Catopês de...
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Universidade Federal da Bahia
Escola de Música Programa de Pós-Graduação em Música
Mestrado em Etnomusicologia
Música e religiosidade na caracterização identitária do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do
Mestre João Farias em Montes Claros – MG
Jean Joubert Freitas Mendes
Salvador 2006
Universidade Federal da Bahia
Escola de Música Programa de Pós-Graduação em Música
Mestrado em Etnomusicologia
Música e religiosidade na caracterização identitária do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do
Mestre João Farias em Montes Claros – MG
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Música, área de concentração em Etnomusicologia.
Jean Joubert Freitas Mendes
Orientadora: prof.ª Ângela E. Lühning
Salvador 2006
AGRADECIMENTOS
No caminho percorrido para a realização desse trabalho, encontrei colaboradores
que foram essenciais para que eu alcançasse meu objetivo. Encontrei também novos
amigos, e tive confirmadas antigas amizades. Assim, meus reais agradecimentos aos meus
pais Maria Cleusa e Lourival, minhas irmãs Wiviany, Jeanny, Josiane e meu irmão Júnior
que mesmo distantes – geograficamente – se fizeram presentes com sua fervorosa atenção.
Aos meus companheiros de pós-graduação, Ângelo Nonato, Antonio Lourenço e Vanildo
Marinho, que dividiram comigo várias conquistas por suas contribuições. Amigos raros
que foram fundamentais no meu crescimento. À “minha família” em Salvador, Leila Dias,
Antônio Dias, Aurora Dias e, em especial, à Amélia Dias por sua dedicação e carinho.
Um agradecimento especial a Luis Ricardo, que há tantos anos enriquece minha
vida com sua amizade e companheirismo. Seu incentivo e amizade me dão força para as
conquistas. A ele sou imensamente grato.
Agradecimentos também a Nestor Sant’Anna que inúmeras vezes não mediu
esforços para me proporcionar crescimento. Sua atenção e aconselhamento têm sido
fundamentais em minha vida.
Durante o curso de Mestrado em música da UFBA vários professores foram
importantes compartilhando comigo os seus conhecimentos. Assim agradeço aos
professores da Pós-Graduação, especialmente, à minha orientadora Ângela Lühning, que
buscou direcionar meus caminhos para essa pesquisa. À professora Sonia Chada pelas
várias horas de debates sobre os temas pertinentes a área, e ao professor Manuel Veiga que
com seu carisma e brilhantismo foi o meu farol, onde compreendi a importância da
pesquisa e dos livros.
Agradecimentos também à CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior e ao CNPq – conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico, pelo auxílio financeiro indispensável durante meu curso.
Agradecimentos à Vallée, na pessoa de Ronan de Freitas Pereira, pelo apoio
durante a minha pesquisa. Seu incentivo foi importante para essa conquista.
Gostaria de agradecer também à Secretaria Municipal de Cultura de Montes
Claros por ter disponibilizado tempo e material para minha pesquisa.
Por fim, o maior dos agradecimentos aos integrantes do Terno de Catopês de
Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias, que contribuíram todo tempo com meu
trabalho. Dentre eles destaco, Mestre João Farias, Antônio Farias, José Farias, Marcus
Vinícius e Vagner Casé, pela dedicação ao meu estudo e pelos vários momentos de
aprendizado em sua cultura.
"Este é o absurdo segredo da escuta: é preciso não escutar o que se diz
para se poder ouvir o que ficou não dito, a música. É na música que
mora a verdade daquele que fala”.
Fernando Pessoa
RESUMO A identidade musical pode ser entendida como a síntese dos elementos musicais essenciais que compõem a música de um grupo, e que o torna musicalmente reconhecível frente a outros grupos. Neste estudo da cultura afro-brasileira, pretendemos discutir os principais aspectos que constróem a identidade musical do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias em Montes Claros-MG, grupo que é pertencente ao Congado. O Congado por sua vez, é uma das mais ricas manifestações afro-brasileiras. As formas musicais encontradas nessa cultura demonstram uma manifestação com características identitárias próprias, elementos que delineiam a sua forma ritual. Através de uma pesquisa bibliográfica e trabalho de campo, observamos os processos de transmissão do conhecimento musical, as formas de vivência com o sagrado – numa festa popular católica de devoção a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo - e as principais características da produção musical dessa cultura. Os Catopês, apresentam instrumentos com timbres específicos – membranofones e idiofones – e um desenho rítmico peculiar. Com devoção aos santos católicos, esse grupo insere a música em um contexto religioso num processo de rememoração às coroações dos Reis Africanos. Essa sobreposição de fazeres musicais, devoção, rememoração atrelados a um líder o “Mestre”, reflete em um “produto” com feição própria. Além de todos esses elementos identitários, construtores da vida e da performance do grupo, este estudo disserta sobre o contexto sociocultural que compõe a manifestação, detalhando momentos intra e extra rituais com ênfase na versão contada pelos próprios integrantes da cultura. Trata-se de trazer para o corpus descritivo o interlocutor, classificando seus conceitos e pontuando seus valores.
ABSTRACT The musical identity can be understood as the synthesis of the essential musical elements that constitute the music of a group, and that turns it musically recognizable beyond other groups. In this study of the Afro-Brazilian culture, we intend to discuss the main aspects that form the musical identity of the “Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias” in Montes Claros-MG, which belongs to The Congado. The Congado is one of the richest Afro-Brazilian manifestations. The musical forms found in that culture demonstrate its own identital characteristics, elements that delineate its ritual form. Through bibliographical research and fieldwork, we observed the processes of transmission of the musical knowledge, the existence forms as the sacred – in a Catholic popular party in devotion to Nossa Senhora do Rosário, São Benedito and the Divino Espírito Santo – and the main features of the music making of that culture. Catopês, present instruments with specific emblems - membranofones and idiofones - and a peculiar rhythmic pattern. With devotion to the Catholic saints, this group inserts music in a religious context in a remembrance process to the coronations of African Kings. That amount of musical realizations, devotion, remembrance connected to a leader, the " Master ", turns out to be a " product " with its own values. Besides all those identital elements, constructers of the life and of the performance of the group, this study lectures on the sociocultural context that forms the manifestation, detailing moments from inside and outside the ritual with emphasis in the version told by the members of that culture. It is bringing to the descriptive corpus the speaker, classifying its concepts and punctuating its values.
LISTA DE FIGURAS
1 Ornamentação da Festa de Agosto do ano de 2002....................................................38 2 Logomarca de uma empresa montes-clarense. ...........................................................38 3 Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias....................45 4 Mestre João Farias.. ....................................................................................................47 5 Capa do Jornal da Festa de Agosto do ano de 2002.. .................................................51 6 O caixeiro Wagner Casé.. ...........................................................................................59 7 Núcleo I da Festa de Agosto.......................................................................................71 8 Circuito anexo.. ..........................................................................................................72 9 Esquema estrutural do cortejo.. ..................................................................................76 10 Esquema simbólico do cortejo....................................................................................78 11 Esquema explicativo da estrutura das canções do Terno. ..........................................89 12 Caixas do terno do Mestre João. ................................................................................92 13 Chama do Terno do Mestre João................................................................................96 14 Tamborins do Terno do Mestre João..........................................................................97 15 Pandeiro do Terno do Mestre João. ...........................................................................98 16 Chocalho do Terno de Catopês do Mestre João. ........................................................99 17 Padrão rítmico da marcha com todos os instrumentos. ..............................................106 18 Padrão de variação rítmica da marcha com todos os instrumentos. ...........................107 19 Padrão rítmico do dobrado com todos os instrumentos..............................................108 20 Variação do padrão rítmico do dobrado com todos os instrumentos. ........................108 11 Caixa: padrão básico da marcha. ................................................................................109 22 Caixa: estrutura sinóptica. ..........................................................................................109 23 Caixa: variação da marcha..........................................................................................109 24 Caixa: estrutura sinóptica. ..........................................................................................109 25 Caixa: padrão básico do dobrado................................................................................109 26 Caixa: estrutura sinóptica. ..........................................................................................109 27 Repique do tamborim utilizado na marcha.................................................................111 28 Padrão da marcha executado no chama......................................................................112 29 Padrão do dobrado executado no chama. ...................................................................112 30 Variações rítmicas do chama......................................................................................113 31 Espectro de intensidade. .............................................................................................115 32 Gráfico de variação das alturas segundo a desaproximação do registro confortável. 117 33 Estruturação do grupo em filas...................................................................................121
APÊNDICE TRANSCRIÇÕES MUSICAIS. ......................................................................................133 1 Deus nos salve casa santa (marcha)...........................................................................134 2 Eu vou chorar... (dobrado).........................................................................................145 3 Até você Maria... (dobrado).......................................................................................149 4 Em casa santa... (marcha). .........................................................................................154 5 Mulata você me mata (dobrado)................................................................................161 6 Quem me ensinou a nadar... (dobrado) ......................................................................164 7 Oiê Joana (dobrado) ...................................................................................................170 8 Carimbolá (dobrado) ..................................................................................................174 9 Quando o galo canta (marcha)...................................................................................177 10 Chegô, chegô, chegô, General... (dobrado) ...............................................................190
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A – Fotografia da coroação de Valéria de Paula. .............................................195
ANEXO B – Versões do conto mitológico de origem do Congado................................196
ANEXO C – Jornal Correio do Norte, edições de 17 e 24 de agosto de 1984................198
ANEXO D – Programação da Festa de Agosto de 2003.................................................200
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................11
CAPÍTULO 1 – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS. ........................................14 1.1. O pesquisador em campo..........................................................................................14 1.2. Os primeiros contatos. ..............................................................................................17 1.3. Metodologia de trabalho...........................................................................................21
1.3.1. Instrumentos de coleta de dados. ....................................................................21 1.3.2. Organização e análise dos dados....................................................................23
1.4. Pesquisa histórica e inserção no grupo. ....................................................................24 CAPÍTULO 2 – O CONGADO. .....................................................................................29 2.1. A origem do congado . .............................................................................................29 2.2. O congado em Montes Claros. .................................................................................33 2.3. Os catopês.................................................................................................................37
2.3.1. A origem dos catopês em Montes Claros. .......................................................38 2.3.2. O Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias...45
CAPÍTULO 3 – O CONTEXTO CONGADEIRO E SUA ESTRUTURA RITUAL.....49 3.1. A Festa de Agosto. ...................................................................................................49
3.1.1. Uma janela para a mídia.................................................................................51 3.2. Religiosidade e fé. ....................................................................................................55 3.3. A estrutura ritual.......................................................................................................64 CAPÍTULO 4 – IDENTIDADE: OS ELEMENTOS MUSICAIS..................................82 4.1. Discutindo a identidade. ...........................................................................................82 4.2. Os elementos musicais. ............................................................................................86
4.2.1. O repertório.....................................................................................................86 4.2.2. Os instrumentos. ..............................................................................................90 4.2.3. A transcrição musical......................................................................................102 4.2.4. O ritmo.............................................................................................................104
4.2.4.1. Estrutura sinóptica. .................................................................................109 4.2.4.2. Incidência de variação rítmica (repiques). .............................................110 4.2.4.3. O canto....................................................................................................116
4.3. A transmissão musical e cultural. .............................................................................118 CONCLUSÃO.................................................................................................................124 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................................127 APÊNDICE – TRANSCRIÇÕES MUSICAIS. ..............................................................133 ANEXOS. ........................................................................................................................195
11
INTRODUÇÃO
Dos cantos do sertão mineiro, Montes Claros oferece a mais rica e preservada linguagem de
sons e ritmos, com movimentos brejeiros que os acompanham. Ali, a alegoria monumental da
grande mídia esbarra na força de um valor cultural que o amor, a tradição e o tempo fazem
transpor gerações. Nestor Sant’Anna
Montes Claros, mês de agosto. De longe posso ouvir batidas incessantes que a
cada momento se aproximam. Dá para sentir o som e distinguir alguns instrumentos.
Alguma coisa ali soa bem grave, marcando pulsos fortes e impulsionando o grupo a
caminhar numa só passada. Ainda não é nítida a cadência, mas posso ouvir vozes que,
distantes, indicam que vem vindo gente. Tem um timbre agudo que parece completar o tal
som grave: um, bate tum, outro, completa tum tum. Deu para perceber que existe harmonia
ali. Não a tradicionalmente discutida nas escolas de música, aquela que tenta padronizar
notas tentando torná-las “audíveis”. A harmonia aqui é mesmo a do encontro de gente,
emitindo naquele tum tum tum a complementaridade, a idéia de uma música feita em
comunhão. Mas ainda não deu para saber o que é ou quem são. Espere um pouco... esse
ritmo não é comum e ouço vozes... elas trazem uma alegria esfuziante! Um homem ao meu
lado se pronunciou: o som é negro! Eu me perguntei: como é que ele sabe? O que seria um
som negro? A verdade é que, negro ou não, dava muita vontade de ouvir. Então fui me
aproximando, o som foi crescendo e ganhou mais instrumentos. Pude escutar uma
“família” inteira de sons que variavam entre graves e agudos. Havia chocalho e também
consegui ouvir pandeiros que, tímidos, eram acolhidos naquela harmoniosa estrutura
musical. Outra voz anuncia: lá vem João! Então vi dobrar na esquina uma riqueza sem
igual: cores, vozes, tambores, gente, movimento e rostos cheios de alegria. Parecia mesmo
algo divino. Era a energia penetrante da cultura afro-brasileira. Era a presença do Congado.
Assim nasceu este estudo, com o intuito de conhecer os sons do Congado montes-
clarense. Para delimitação do foco escolhi um Terno de Catopês dessa cidade mineira.
Acreditando que na música “suas estruturas são reflexos dos padrões de relações humanas
12
[...]”1 (BLACKING, 1995a, p. 31, tradução nossa) pretendo compreender – em meio à
diversidade do contexto congadeiro – os aspectos componentes da identidade musical do
Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias.
No Brasil, a presença de distintos grupos culturais, cada qual com características
musicais singulares, tende a indicar uma espécie de colcha de retalhos musical com
“tecidos” de “tons” muito próximos, a ponto de nos confundir na busca de um limite entre
essas “forças” musicais. Esse processo análogo realiza-se pela convivência parelha de
códigos e sistemas em si diversos, que convivem simultaneamente em um registro terceiro,
mascarando-se de forma mútua, sem que haja, no processo, o ofuscamento total de sua
individualidade originária (MARTINS, 1997). Assim se configura o Congado,
manifestação afro-brasileira, que envolve elementos da cultura negra entrelaçados com a
cultura branca festejando santos católicos “africanamente” (MARTINS, 1997).
Essa manifestação, nascida do sistema escravista imposto pelo regime colonial
Português, se difundiu pelo Brasil e tomou forma própria, como explica Glaura Lucas:
Ao longo de sua história, os rituais do Congado se difundiram amplamente pelo país, e os processos de interação e rearticulação de seus componentes formadores geraram uma variedade de formas peculiares de manifestação, que foram se redefinindo conforme um apoio maior ou menor nesta ou noutra matriz, e de acordo com as transformações impostas pelos contextos culturais (LUCAS, 2002, p. 19).
Minas Gerais, como cita Brandão (1976), é um dos estados brasileiros de maior
penetração de rituais católicos negros. Nesse estado, o Congado encontrou condições
ideais para se tornar uma das maiores manifestações afro-brasileira do País. O Congado é
formado por oito ordens: o Candombe, o Moçambique, o Congo, os Marujos, o Catopê, o
Vilão, a Cavalhada e o Caboclo. Cada uma dessas manifestações congadeiras traz em seu
cerne elementos componentes de sua cultura que são responsáveis pela manutenção de sua
força cultural. Entre esses elementos destaca-se a música que, através de seus ritmos,
melodias, letras, danças e tantos outros componentes, engendra momentos extraordinários
onde o homem tem oportunidade de potencializar seus sentimentos de amor aos santos de
devoção.
Esta pesquisa, como vimos, foi realizada na cidade de Montes Claros, localizada
ao norte de Minas Gerais e identificada, em todo o Estado, como cidade “pólo-cultural”.
1 “ Its structures are reflections of patterns of human relations […]”.
13
Este reconhecimento lhe foi atribuído devido ao grande número de produções e
manifestações artísticas da cidade, onde se evidenciam o grupo Banzé, as Pastorinhas, o
Congado e tantos outros que se destacam no cenário cultural mineiro. Inúmeros artistas de
projeção regional, que enriquecem a música, a literatura e as artes plásticas do Estado e do
País, têm sua origem em Montes Claros, fazendo parte de uma diversidade cultural que se
projeta ainda nas expressões religiosas da umbanda, do candomblé, do nosso Congado e
de várias outras manifestações etnoculturais.
Esse cenário inspirou profunda e fortemente o desenvolvimento do meu trabalho.
Para melhor entendimento dos aspectos identitários componentes da música do Terno de
Catopês do Mestre João Farias, este estudo foi elaborado em quatro partes:
O primeiro capítulo objetiva detalhar os procedimentos metodológicos que
possibilitaram o desenvolvimento deste estudo. Nele estão concentrados os desafios e
acontecimentos que, a cada momento, delinearam as ações necessárias para alcançar o
objetivo pretendido.
No segundo capítulo estão presentes os desenvolvimentos históricos gerais do
Congado, como um intróito ao reconhecimento da cultura dos Catopês em Montes Claros.
Esse capítulo organiza elementos que buscam traçar a trajetória do congado nessa cidade,
apresentando relatos de seus próprios atores, numa construção histórica entre os mitos e os
fatos.
O terceiro capítulo busca contemplar o contexto congadeiro e sua estrutura ritual,
dissertando sobre o papel da música na conexão entre o homem e suas divindades. Nesse
contexto, são destacados os elementos formadores da identidade musical do Terno,
apontando os processos de absorção dos significados da manifestação, que transformam
experiências cotidianas numa imagem musical do grupo.
Por fim, o quarto capítulo observa os elementos eminentemente musicais, tratando
as discussões acerca da sua identidade e apresentando características musicais do Terno.
Aqui, os componentes musicais são reconhecidos e exemplificados, objetivando
singularizar a música do Grupo.
Este trabalho é também uma tentativa de contribuição para a cultura congadeira,
trazendo sua voz para o texto e possibilitando melhor compreensão de uma de suas
manifestações. Ainda um convite a uma sistemática busca do entendimento entre o homem
e sua produção musical.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 14
CAPÍTULO 1
P R O C E D I M E N T O S M E T O D O L Ó G I C O S
1.1. O PESQUISADOR EM CAMPO
A opção em discutir esse tópico se deu por considerar significativa a relação entre o
pesquisador e o campo investigado, no intuito de descrever o vivido, fornecendo elementos
para que se possa melhor compreender minha pesquisa. Meu contato com o campo e os
acontecimentos e desdobramentos da pesquisa também aparecerão em outras partes deste
trabalho, mas nesse capítulo, em específico, buscarei apresentar a minha visão em relação a
isso.
As questões principais que povoaram minhas preocupações durante o trabalho de
campo, análise e sistematização dos dados foram: como registrar as observações, o que
realmente deveria ter lugar nas minhas anotações, como trabalhar os dados coletados e como
eu poderia levar isso para minha redação final.
A tradução do fenômeno observado para um texto escrito é sempre uma tarefa difícil.
Podemos observar essa problemática na questão levantada pelo antropólogo Vagner
Gonçalves da Silva:
Como transpor a riqueza, a complexidade, as difíceis negociações de significados ocorridas entre antropólogo [pesquisador] e grupo pesquisado, enfim, toda a série de problemas e situações imponderáveis que surgem
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 15
durante a realização do trabalho de campo, para a forma final, textual, da etnografia, sem perder de vista aspectos relevantes do conhecimento antropológico como o próprio modelo pelo qual este é conduzido? (SILVA, 2000, p. 297).
É fato que a transformação das observações adquiridas em campo em um objeto
textual é sempre uma redução interpretativa, não sendo possível conceber uma representação
etnográfica que reproduza integralmente a riqueza do que é observado. Mas descrever os
acontecimentos, o vivido é, sem dúvida, uma contribuição para futuras observações e
interpretações.
Silva (2000), citando James Clifford1, diz que as referências ao trabalho de campo
nas etnografias, costumam ficar restritas às introduções metodológicas ou notas de rodapé,
trazendo, em geral, dados quantitativos e “objetivos”, com a finalidade de demonstrar o tempo
de convivência e “proximidade” entre o pesquisador e o grupo pesquisado. No mesmo
sentido, Gerard Béhague, tratando sobre as problemáticas da etnomusicologia Latino-
Americana, reflete sobre o crescimento das pesquisas etnomusicológicas, com a
conscientização dos pesquisadores da necessidade de um aprofundamento no conhecimento
sobre a cultura pesquisada, porém critica a abordagem essencialmente descritiva:
Sem dúvida, um dos fatores mais inovadores da pesquisa etnomusicológica dos últimos 35 anos foi a conscientização da necessidade do conhecimento e da experiência de primeira mão nas tradições musicais que os pesquisadores procuravam descrever e interpretar. Essa consciência tornou possível um relato melhor e mais representativo das músicas tradicionais, embora a abordagem essencialmente descritiva tenha continuado, [...] (BÉHAGUE, 1999, p. 53)
É certamente significativo o esforço dos pesquisadores grafando os dados –
quantitativos e “objetivos” – citados por Clifford e a escolha de uma abordagem
essencialmente descritiva referida por Béhague. É também possível conceber um valor de
contribuição dessas formas de abordagem na produção de acervos de pesquisa, porém cada
vez mais, torna-se necessário o registro de elementos que possam compor a vida social e
comportamental dos interlocutores, trazendo os detalhes significativos para o estudo, mas em
conexão com a função maior da pesquisa que é a de produzir conhecimento e não somente
descrever a cultura pesquisada. Como nos lembra Pedro Demo (2001, p.102), “ciência não se
basta com simples descrições (como as coisas são), mas busca suas razões (porque são)”
1 CLIFFORD, James. The predicament of culture. Harvard University Press, 1988.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 16
Ainda sobre a presença dos interlocutores, uma abordagem contendo uma visão
sociocultural, apontando e referenciando os pares colaboradores, é uma representação que
considero elucidativa e que não deve perder seu objetivo científico, mas sim diminuir a
impessoalidade provocada pela escrita indireta – própria da escrita científica que tenta se
abster da subjetividade –, uma vez que almejo trazer para o corpus descritivo do texto
etnográfico as vozes que compõem o diálogo proporcionado pelo encontro etnográfico, e
evidenciar os interlocutores concretos aos quais o texto se dirige e que o torna legível
(SILVA, 2003).
Sem a pretensão de achar que minha visão tem um caráter exclusivamente objetivo,
tenho consciência de que aquilo que apresento aqui traz a interpretação de um fenômeno
complexo, imbuído de significados nem sempre possíveis de uma interpretação única,
positivista, e portanto, verdadeiramente absoluta. Como reflete Lühning (2004), embora haja
limitações intrínsecas à tradução de um evento – me reporto aqui à cultura congadeira – e um
grau de “intraduzibilidade” nas interpretações, não devemos parar de buscar, pois precisamos
de mais “traduzibilidade” e compreensão entre os diversos mundos musicais e sociais.
Caberá então aos leitores e observadores da cultura dos Catopês do Mestre João
Farias, grupo que constitui o universo desse estudo, considerar as reflexões aqui apresentadas
como uma possibilidade de conhecimento e aperfeiçoamento na compreensão desse mundo
simbólico, particular, repleto de valores e crenças intraduzíveis pela linguagem e por uma
única visão.
Como apoio às interpretações que são inerentes ao trabalho de pesquisa científica,
utilizarei a voz da manifestação congadeira que em todo o tempo alimentou a dialógica da
minha pesquisa. Em consonância com Clifford2, citado por Silva (2003), acredito que “as
palavras da escrita etnográfica... não podem ser construídas monologicamente, como uma
afirmação de autoridades sobre, ou interpretação de uma realidade abstrata, textualizada”
(CLIFFORD apud SILVA, 2003). Devemos atestar a presença do outro e expandir nossa
investigação para um contexto mais amplo que deverá incluir nossa própria posição e nossas
práticas (TURINO, 1999). É a elaboração de uma “etnografia do sensível” (SILVA, 2003).
Assim, convertendo todas as ponderações em torno da interpretação em pesquisa
para o estudo de música, entendo que é necessário viabilizar uma pesquisa etnomusicológica
2 CLIFFORD, James. On ethnographic authority. In: Representation, v. 1, n. 2, [S.l], Spring, 1983.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 17
concebendo a etnomusicologia como “a área de conhecimento que estuda as músicas [...]
enquanto expressões culturais identitárias diversas e se propõe a dar a visibilidade necessária
e buscar compressões múltiplas e recíprocas através de processos de aproximação, troca e
diálogo contínuo e constante” (LÜHNING, 2004, p. 9).
1.2. OS PRIMEIROS CONTATOS
Meu primeiro contato mais próximo com os grupos de Catopês se deu no ano 2000,
quando pesquisávamos elementos para compor o primeiro CD do Grupo Instrumental Trem
Brasil3. Pensamos nos grupos de Congado como fonte de conhecimento da cultura popular de
Montes Claros – o que era significativo para o nosso trabalho – e um manancial inesgotável
de informações musicais. Procuramos, então, – por indicação do Mestre Zanza4 – o Mestre
João Farias, que, após termos explicado nosso propósito, permitiu o nosso encontro com o seu
Terno de Catopês.
Desde essa primeira experiência foi possível notar que Seu João5 trazia em seu Terno
uma maneira particular de expressar a cultura congadeira. Observei suas atitudes de
preocupação com a manutenção do “elemento tradicional”, com os valores e costumes que lhe
foram passados, com o respeito aos integrantes do Terno, a educação deles e, por fim, com a
expectativa da sociedade em relação às funções do seu Terno.
Apesar de envolto por uma gama de acontecimentos simultâneos relacionados a
elementos religiosos e sagrados, à responsabilidade social com seus Catopês e a uma vida de
um pai de família e trabalhador braçal, Mestre João consegue discernir, por partes, os
acontecimentos e transformações recorrentes em cada um desses momentos. Dessa forma, ele
se propõe ou se opõe às questões que envolvem os contextos em que está inserido,
construindo de forma determinante e significativa o universo congadeiro de Montes Claros.
3 O Grupo Instrumental Trem Brasil teve origem em 1998 com a finalidade de pesquisar, compor, executar e
divulgar a música instrumental em geral. Formado por mim, Luis Ricardo Silva Queiroz e Luciano Cândido e Sarmento, o grupo desenvolve várias pesquisas em torno da cultura popular.
4 O Mestre Zanza é uma das grandes referências no Congado de Montes Claros. Mestre também de um Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário, ele é o presidente da “Associação dos Catopês, Marujos e Caboclinhos de Montes Claros”, e o principal interlocutor dessa cultura com a Prefeitura Municipal dessa cidade. Como figura significativa que é para a cultura congadeira, ele aparecerá citado em várias outras partes desse trabalho.
5 Desenvolvi, devido a nossa proximidade, uma forma costumeira de chamá-lo de Seu João. Assim, durante o trabalho, para evitar uma escrita cansativa pela repetição, utilizarei como variáveis: Mestre João, Seu João ou Mestre João Farias.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 18
Todos esses fatos contribuíram significativamente para minha decisão de pesquisar a música
de sua manifestação.
Mestre João me fez perceber os Catopês de uma forma diferente, como algo
significativo para quem assiste, admira ou participa da performance do grupo. Nesse embate
entre minha realidade e o universo dos Catopês, acredito ter tido um insight etnomusicológico
do mundo do Congado de Montes Claros, percebendo a importância de suas crenças e a
quantidade de “mistérios” que para mim ali se apresentavam. Esse foi o momento do meu
“blues antropológico”6.
Eu já havia observado os Ternos nas ruas durante as festas, mas nunca tinha buscado
uma aproximação mais incisiva. Então, eu e os dois colegas do Trem Brasil, empunhamos
duas caixas de folia (diferentes das utilizadas pelo Terno) e um Chama7, construído pelo
Mestre João por encomenda nossa. Era dia de ensaio e pedimos para tocar. Mestre João disse
algo como “pode tocar aí”8, e então saímos com eles pelas ruas, fazendo as visitas às casas9
previstas naquele dia. Só hoje, depois de conhecer a visão dos integrantes e do Mestre quanto
a quem toca caixa, é que me dou conta da falta de entendimento que tínhamos, naquele
momento, da situação musical nos Catopês e da importância do instrumento para o grupo.
Forasteiros, vindos não sei de onde e para quê, com uma caixa no pescoço... Logo aquele
instrumento que representava a ponta da estrutura musical do Terno. Acredito que, pelo não
entendimento da cultura dos Catopês, nem notamos os olhares atravessados que deviam nos
tornar ainda mais forasteiros. Embora tenha ocorrido esse embaraço, ainda assim Mestre João
nos recebeu muito bem e permitiu que tocássemos durante toda a trajetória percorrida naquele
dia, o que somava uma distância de aproximadamente dez quilômetros. Lembro-me de ter
sentido o corpo doer bastante depois da caminhada, o que demonstra o “sacrifício” enfrentado
pelos congadeiros durante o processo ritual. Nesse dia observamos as melodias, os
instrumentos e a estrutura rítmica. Somente dias depois voltamos a encontrar com o Mestre e
6 Termo utilizado por DaMatta (1978), para designar o momento de estranhamento de uma realidade cultural. 7 Instrumento característico dos Catopês de Montes Claros que será especificado mais profundamente no
capítulo 4 desse trabalho. 8 Para melhor discernimento do que seja a fala dos pesquisados, utilizarei as citações em fonte Times New
Roman, 12, itálico e entre aspas, mesmo quando recuadas em bloco. 9 As visitas às casas são uma parte importante do ritual congadeiro onde os grupos desfilam pelas ruas em visitas
por ocasião de um convite ou para homenagearem o mordomo de uma bandeira. Sobre o mordomo daremos mais detalhes no capítulo 3.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 19
seu Terno. Nesse ano de 2000, além dos ensaios, acompanhamos os dias da Festa10, mas
como espectadores e não como Catopês.
Dessa observação que fizemos compusemos a música Mestre João, que deu nome ao
CD “Mestre João”, do Grupo Instrumental Trem Brasil11. A partir desse trabalho meu contato
com Mestre João ficou mais intenso, o que facilitou posteriormente a minha inserção no
Terno para essa pesquisa, agora de forma mais sistemática.
O contato com o Mestre João continuou acontecendo, mesmo que esporadicamente, e
quando em 2002 fiz meu projeto onde buscava conhecer melhor o seu Terno de Catopês,
intensifiquei nossos encontros.
O trabalho de campo começou, efetivamente, na Festa de Agosto do ano de 2002.
Nesse ano acompanhei o ritual como pesquisador, filmando, fotografando, anotando minhas
observações e conversando informalmente com os integrantes dos grupos de Congado de
Montes Claros. Apesar de ter meu foco direcionado para o Terno de Catopês do Mestre João
Farias, nesse ano observei toda a Festa, sua estrutura, o comportamento dos grupos no
contexto, o delinear dos cortejos e aqueles ‘momentos de descontração e espera’12 que
acontecem no ponto de encontro dos grupos para a montagem do cortejo.
Após esse contato durante a Festa de 2002, minha relação com Mestre João tornou-se
mais próxima, e assim fiz diversas visitas a ele durante esse ano e também no início de 2003.
Objetivei coletar informações para poder compreender melhor a estrutura da Festa e o papel
da música nesse contexto, assim como as estruturas musicais como um todo.
A partir desses contatos, pedimos – eu e um colega13 – para sair com os Catopês no
ano de 2003. Mestre João não hesitou em nos receber, abrir um sorriso e dizer: “vamo brincar
10 Tenho utilizado a palavra Festa em maiúsculo para me referir à Festa de Agosto de Montes Claros,
estabelecendo um item de diferenciação entre essa Festa e outras festas. 11 O Cd “Mestre João” foi gravado no ano de 2001, com tiragem de mil cópias. Trata-se de composições próprias
com releituras de temas regionais da cultura popular e regravações de compositores reconhecidos regionalmente e nacionalmente.
12 Os pontos de encontro dos grupos se revelaram como momentos propícios para minha aproximação junto aos integrantes dos grupos do Congado. Enquanto esperam para a montagem do Reinado, os integrantes dos grupos se posicionam para fotos, dão entrevistas ou fazem um lanche. São nas paradas dos grupos que os pesquisadores, repórteres, fotógrafos e interessados em coletar qualquer imagem ou dado, estabelecem contatos com os participantes da manifestação. O ponto de encontro dos grupos para a saída dos Reinados é a Praça Gonçalves Chaves, que fica em frente ao Automóvel Clube de Montes Claros. Durante três dias de festa, correspondentes aos dias de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e do Divino Espírito Santo, os grupos se reúnem pela manhã nessa praça antes de saírem em cortejo pelo centro da cidade.
13 Luis Ricardo Silva Queiroz é montes-clarense, doutor em Etnomusicologia e um estudioso do Congado de Montes Claros. Por sermos da mesma cidade e termos objetos de pesquisa comuns, por muitas vezes servimos de suporte, um ao outro, durante as pesquisas.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 20
aí”14. Mas notei nele um ar meio sem jeito, como se tivesse aceitado com ressalvas. Somente
em seguida, nos ensaios, fui entender o que significava. Seu João nos considera músicos de
formação acadêmica e por isso se desconcerta quando faz música em nossa presença, por não
se julgar um músico15. Além disso, a nossa presença naquele meio – no seu universo –
representava a intrusão de uma outra categoria de linguagens e significados que lhe eram
estranhos e, por isso, nos tornamos especialmente observados. Ao longo dos ensaios fui
percebendo que, na seqüência dos nossos contatos, o estranhamento das primeiras vivências
rituais foi se diluindo e perdendo importância.
Em 2003 organizei minhas ferramentas de pesquisa para aprofundar meu trabalho de
campo. A metodologia de pesquisa aplicada nesse estudo buscou, em meio à quantidade e
complexidade dos elementos encontrados na cultura dos Catopês, destacar aqueles que
respondiam melhor aos objetivos do meu trabalho.
Assim, com o intuito de compreender quais os principais aspectos que constituem a
identidade musical do Terno de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias, estruturei
uma metodologia de trabalho de campo que pudesse coletar os dados e tratá-los
qualitativamente, para, dessa maneira, desvelar as questões fundamentais propostas por essa
pesquisa.
Além da questão central desse trabalho, apresentada anteriormente, a metodologia
buscou alcançar os seguintes objetivos específicos:
• coletar dados relativos à configuração do ritual do festejo, assim como informações
referentes à estrutura, formação e manutenção do grupo;
• analisar as características musicais do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário
do Mestre João Farias, buscando entender melhor os elementos contidos na música
dos congadeiros;
• coletar e registrar músicas executadas pelos grupos;
• analisar de forma sistemática os aspectos construtores da identidade musical desse
Terno.
14 Anotações de campo colhidas no ano de 2003. 15 Sobre essas definições aplicadas por pessoas internas e externas à cultura, para se definirem ou não como
músicos, Angela Lühning (2004), traz uma reflexão relevante no seu trabalho Etnomusicologia brasileira como etnomusicologia participativa: inquietudes em relação às músicas brasileiras.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 21
1.3. METODOLOGIA DE TRABALHO DE CAMPO
A elaboração de uma metodologia consciente, reconhecendo o tempo de trabalho
destinado à pesquisa e à escolha das ferramentas adequadas para a obtenção – dentro do
tempo disponível – do material que contemplasse a questão principal desse estudo, foi
fundamental para a aquisição dos melhores resultados.
Seguindo o preceito de que as escolhas corretas determinam o andamento e o
resultado do estudo, a metodologia utilizada no trabalho de campo se estruturou em duas
partes importantes: instrumentos de coleta de dados e, posteriormente, a organização e
análises desse material.
1.3.1. INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS
Observação participante, para coleta e registro das músicas, nos ensaios e
apresentações: a vivência em grupo me possibilitou acessar portas e compartilhar momentos
dessa manifestação que não conseguiria num “estudo à distância”. Conviver e experienciar as
trocas de conhecimento entre os integrantes, as formas de conduta do Mestre e perceber
proximamente o processo de interação de uma cultura de transmissão oral, além de participar
de todo o processo de preparação, execução, e conclusão das fases rituais, permitiu uma visão
singular quanto às diversas formas de vivência desse grupo.
Filmagem e fotografias da festa no ano de 2002 e durante toda a pesquisa no ano de
2003: o registro visual em vídeo, principalmente da performance musical do grupo, permitiu
reconhecer fases e acontecimentos que foram determinantes no processo de análise dos dados.
O vídeo contribuiu, sobretudo, na fase das transcrições musicais onde pude cuidadosamente
analisar repetidas vezes áudio e imagem de determinados pontos da performance. As
fotografias foram componentes importantes na ilustração do trabalho, além de sua utilidade na
fase de análise, comparando momentos variados da vivência do grupo16.
Coleta de discos, fitas, filmes e livros com registros de músicas e/ou imagens do
Congado de Montes Claros: a coleta de registros preexistentes facilitou minha observação
16 Segundo Von Simson (1990), a fotografia assumiu, a partir do século XIX, papel importante na pesquisa
sociológica. Com a utilização da fotografia no trabalho de pesquisa, algumas questões como, a reconstituição de fatos históricos, a analise de performances e a produção de acervos fotográficos para a disponibilização e divulgação do objeto estudado, têm sido beneficiadas.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 22
quanto às transformações ocorridas no grupo e ampliou meu universo de análise dos
momentos de atuação do Terno de Catopês do Mestre João Farias e do Congado de Montes
Claros em geral.
Coleta de discos, fitas, filmes e livros sobre o Congado Nacional, sobretudo o
Mineiro: observar o material referente a manifestações do Congado de outras regiões,
possibilitou um melhor conhecimento do meu objeto de estudo. O processo comparativo de
momentos similares entre os grupos montes-clarenses e os grupos de outras regiões foi
importante na compreensão dos elementos que estabelecem a unidade dessas diversas
manifestações e os fazem integrantes de uma mesma cultura congadeira. A leitura do
Congado sob a ótica de outros pesquisadores trouxe luz nova às questões que abordei e
propiciou uma investigação mais esclarecida dos aspectos componentes da manifestação.
Além disso, pude situar meu estudo frente aos trabalhos já realizados objetivando minha
contribuição para a pesquisa dessa cultura afro-brasileira.
Coleta de fotos, jornais, panfletos, cartazes, textos e qualquer outro material gráfico
pertinente ao Congado de Montes Claros: a coleta de materiais gráficos de circulação rápida,
inclusive os de literatura cinzenta17, foram determinantes na reconstituição da história do
Congado e do período festivo em Montes Claros. Como a cultura congadeira em Montes
Claros ainda carece de estudos científicos, a maior parte das informações históricas foi
encontrada nesses materiais que, ora distribuídos pelos organizadores da Festa no período
festivo, ora divulgados em jornais de distribuição local, forneceram dados relevantes para
detalhamento desse trabalho.
Entrevistas para coleta de dados com integrantes do Terno de Catopês de Nossa
Senhora do Rosário do Mestre João Farias: as entrevistas ocorreram após um processo de
seleção dos informantes que foram escolhidos pela função que exerciam no Terno18. Foram
privilegiados, segundo o objetivo da pesquisa, os integrantes mais antigos e melhor
interiorizados à performance musical, bem como ao conhecimento de fatos sobre o Congado,
em particular sobre o seu Terno. As entrevistas com os integrantes, sobretudo com o Mestre,
revelaram sua face individual. Através da análise das entrevistas estruturei uma relação de
significados e conceitos estabelecidos pelos entrevistados o que me fez compreender melhor
17 Entende-se por literatura cinzenta, materiais gráficos não comercializados como folderes, panfletos etc. 18 Há uma hierarquia de funções dentro do Terno vinculada ao grau de importância do instrumento utilizado na
prática musical do grupo.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 23
as múltiplas visões sobre um mesmo tema e, posteriormente, a forma de como isso se
processa nas ações coletivas.
Entrevistas com estudiosos e pessoas conhecedoras dessa manifestações na região: a
busca de informações a respeito da cultura congadeira em Montes Claros me levou a pessoas
que direta ou indiretamente se relacionavam com a manifestação. São observadores,
pesquisadores ou colecionadores de histórias sobre essa cultura. As entrevistas com
estudiosos e conhecedores trouxeram elementos que, no processo de análise, confirmaram ou
colocaram à deriva alguns dados levantados. Propiciaram também uma visão externa à
manifestação, vez que são membros da sociedade e não integrantes dos grupos.
1.3.2. ORGANIZAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Uma organização sistemática facilita o processo de análise. A criação de categorias
proporcionou-me uma melhor visão dos elementos disponíveis ao trabalho. A disposição por
categorias de assuntos ou de objetos como vídeo ou fotografia permitiu uma análise mais
rápida e concisa.
Na fase de análise me foi essencial a Transcrição das entrevistas. Nesse processo de
transcrição me dei conta dos elementos explicativos contidos nas entrelinhas dos relatos e me
familiarizei com os termos comuns ao discurso dos entrevistados. Para valorizar suas formas
de expressão e manter a riqueza dos significados, busquei transcrever o mais próximo à forma
falada, sem permitir quebra no fluxo dos trechos transcritos. Palavras desconhecidas e de uso
particular dos entrevistados foram acrescidas de notas explicativas, tornando o texto mais
compreensivo.
Percebendo que seria essencial para o meu trabalho valorizar a voz dos integrantes da
cultura pesquisada, e compreendendo que se tratava de uma manifestação onde grande parte
das informações históricas circulam por vias não textuais, foi importante aprofundar meus
conhecimentos quanto ao estudo da história oral. Esse estudo foi determinante no
entendimento das formas de transmissão e registro (memorização) dos conhecimentos da
manifestação. Burke (1989), assegura que na cultura oral o indivíduo imprime variações no
seu discurso que, uma vez aprovadas pela comunidade, passam a fazer parte de um repertório
coletivo da tradição. Para compreender, comparar e contextualizar essas variações
encontradas nos relatos colhidos nas entrevistas, utilizei o recurso da análise de discurso.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 24
Através da análise de discurso foi possível questionar ou reforçar informações só
obtidas nas falas dos entrevistados. Orlandi (2002) argumenta que, ao se expressar, o sujeito
dá significado ao enunciado em condições determinadas, em meio à língua e à sua experiência
de vida. A autora observa que ele se encontra impelido por fatos que reclamam sentido e por
sua memória discursiva. Nesse sentido, a análise de discurso foi importante na compreensão
do processo discursivo que remonta a história e dá sentido aos valores defendidos pelos
integrantes do Terno de Catopês do Mestre João Farias.
Para a Transcrição musical a partir das gravações em áudio e vídeo foram utilizados
vários recursos tecnológicos19 que permitiram a tradução do elemento sonoro para uma forma
visual. A transcrição musical é um tema bem discutido na etnomusicologia e suas dificuldades
são também enumeradas pelos etnomusicólogos20. Assim, no capítulo quatro discutiremos as
formas e opções selecionadas para a transcrição das músicas utilizadas nesse trabalho.
Utilizei entrevista semi-estruturada, tanto para os integrantes do grupo como para os
estudiosos e conhecedores do assunto. A opção por uma entrevista semi-estruturada facilitou
o aprofundamento nos assuntos específicos e tornou maleável o andamento das entrevistas.
Pude, assim, direcionar as entrevistas para os pontos que mais interessavam ao meu trabalho.
Fiz as gravações em áudio das músicas e entrevistas. As fotografias e filmagens foram feitas
por mim e por Luis Ricardo.
1.4. PESQUISA HISTÓRICA E INSERÇÃO NO GRUPO
No ano de 2003, após a elaboração da metodologia de trabalho, fui a campo com
tema delimitado, foco melhor direcionado e estratégias de inserção e coleta traçadas. No
intuito de remontar a história dos festejos e do Congado em Montes Claros, minhas primeiras
investidas foram em busca de registros contendo datas ou dados de Festas anteriores. Pude
notar que a falta de preparo dos órgãos públicos responsáveis pelos acervos históricos em
Montes Claros permitiu que se perdessem no tempo os dados sobre a origem dos festejos
congadeiros. O Centro de Extensão Cultural Hermes de Paula, de Montes Claros, mais
19 As transcrições musicais foram feitas no programa Finale 2003. Cortes, colagens, escuta e leitura de espectro
foram feitos no programa Sound Forge 5.0. 20 Vários estudiosos como Seeger (1977), Ellingsom (1992), Nettl (1964 e 1983), Myers (1992), entre outros,
têm contribuído para a discussão, importância e utilização da transcrição em musica.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 25
conhecido como Centro Cultural, fundado em Junho de 197921, é um órgão da Prefeitura
Municipal onde se encontram a biblioteca pública da cidade, a Academia Montes-clarense de
Letras e a Secretaria Municipal de Cultura. Essa instituição, pela sua história e função, deveria
ser uma importante fonte de pesquisa, mas só encontrei dados sobre o Congado referentes aos
anos seguintes a 1997. Ao que parece, o recente “acervo” está diretamente ligado ao processo
de ascensão da Festa que vem sendo estruturada para se tornar um evento de dimensão
nacional. A constante busca de informações pelos pesquisadores, pela impressa e mídias em
geral, também impulsionou esse “engavetamento” de folderes, jornais, fitas e programas das
festas. Naturalmente que a expressão “engavetamento” soa como crítica, mas vale registrar
que se trata de um “acervo” ainda incipiente, onde não constam catálogos de busca e nem um
profissional responsável pelo arquivamento. Mesmo não obtendo sucesso na busca do
pretendido, é importante registrar a extrema boa vontade dos funcionários que se mostraram
dispostos a providenciar o necessário, mas que infelizmente também não puderam fazer
muito, frente a falta dos arquivos.
Outro local de buscas foi o Centro Histórico da Universidade Estadual de Montes
Claros – UNIMONTES, fundado em Março de 2003, onde encontrei jornais montes-clarenses
datados do final do século XIX e do princípio do século XX, documentos importantes para
minha pesquisa. Esse acervo contém ainda importantes documentos da história de Montes
Claros.
O passo seguinte do trabalho foi localizar e entrevistar pessoas que pudessem dar
informações sobre a Festa, o Congado, a história, ou sobre qualquer elemento que
proporcionasse a melhor compreensão da cultura Congadeira de Montes Claros. Assim,
entrevistei Padre Murta, um senhor de idade avançada, tido como conhecedor privilegiado da
cultura da região, além de observador atento dos acontecimentos locais. Outro entrevistado foi
Dimas Lúcio Fulgêncio, editor da revista Nossa História, publicada em 2002 e 2003, que
forneceu a localização de fontes históricas relevantes. Através dele conheci João Pereira de
Sena, o João de Sena, como é conhecido, um senhor de 80 anos de idade que forneceu
entrevista contendo inúmeras informações sobre os possíveis criadores dos Ternos de Catopês
de Montes Claros. Com João de Sena pude melhorar a estrutura de parentesco dos Mestres22,
ampliando-a com nomes dos líderes passados, entendendo suas ligações. João de Sena é
21 Informação em Brasil (1983). 22 O conhecimento a respeito dos nomes dos Mestres de Catopês anteriores aos grupos atuais, foi importante para
compreender melhor o desenvolvimento histórico dos grupos.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 26
sobrinho dos irmãos Gama23, membros de uma família com tradição nos Ternos passados.
Entrevistei também Virgílio Abreu de Paula, filho de Hermes Augusto de Paula, já falecido.
Esse último é autor do livro Montes Claros, sua história, sua gente, seus costumes24,
publicado em 1957, reeditado em 1979. Esse livro é importante por ser um dos poucos
documentos a trazer informações sobre os grupos de Congado de Montes Claros no século
XX. Virgílio forneceu informações sobre a origem de documentos citados no livro de seu pai
e que se referem a antigos eventos comemorativos do dia de Nossa Senhora do Rosário.
Indicou, também, a existência de um filme contendo a festa do Rosário de 1951, onde sua
irmã Valéria de Paula foi coroada princesa no Reinado do Divino Espírito Santo25.
Essas pesquisas e entrevistas foram realizadas durante toda a trajetória do trabalho de
campo. Algumas mais no início e outras ao final, pois a cada etapa surgiram elementos que se
encaixavam como um quebra-cabeça. Durante o período da Festa me dediquei à coleta de
dados realizada diretamente junto ao Terno, fazendo gravações, filmagens, fotografias,
entrevistas, ensaios e apresentações.
Logo nos primeiros encontros com o Terno, no ano de 2003, observei que o contexto
sociocultural em que me integro – membro de um grupo acadêmico, portando o título de
pesquisador, músico com CDs gravados e com um trabalho projetado na mídia local – causou
reações que ora favoreceram, ora dificultaram a coleta e o entrosamento com os integrantes do
Terno do Mestre João Farias. Apesar de alguns já terem notado minha presença nos anos
anteriores, filmando ou mesmo visitando Seu João, percebi um estranhamento que dificultava
a minha aproximação. Os integrantes com mais idade eram mais receptivos, percebendo de
forma positiva o meu suporte de musico/estudante, enquanto os menores demonstravam uma
timidez que excedia para a própria distância física. Mas a cada dia, sutilmente, os olhares que
no começo eram duros, frios e desconfiados, notando um estranho que a princípio parecia
pertencer a um outro contexto, foram se tornando mais convidativos. Assim, fomos aos
poucos – eu e os integrantes do Terno – nos aproximando e as relações se transformando,
23 Os irmãos Sebastião e Gregório Gama são apontados como os possíveis precursores do Congado em Montes
Claros. Mais informações sobre eles serão apresentadas no capítulo seguinte. 24 Ver Paula (1979). 25 Segundo Virgílio de Paula, em entrevista gravada no dia 13 de outubro de 2003, o filme está com membros de
sua família. Ele existe em fita de rolo com uma parte em cores e a outra em preto e branco. O filme é um registro sem áudio. A data fornecida por Virgílio é de 1951, mas segundo Walkíria Guimarães Braga, funcionária do Centro Cultural, há uma fotografia fornecida por Dona Josefina de Paula – mãe de Virgílio – indicando a coroação da filha no ano de 1957. Esta fotografia foi divulgada no jornal produzido e distribuído pela Secretaria Municipal de Cultura na Festa de 2002. Ver ANEXO A.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 27
quando pude ver que percebendo o meu interesse em aprender a partir do que eles sabiam e a
disposição para efetuar as tarefas como qualquer outro, o fluxo de informações aumentou
consideravelmente. Isso confirma o pensamento de Silva, pelo qual acredita que no embate
dos mundos, “o de fora”, “o de dentro”, não só o pesquisador busca familiarizar-se com o
universo cultural do grupo pesquisado. “O grupo também mobiliza seu sistema de
classificação para tornar aquele que inicialmente era um ‘estrangeiro’ em uma ‘pessoa de
dentro’, isto é, um sujeito socialmente reconhecido” (SILVA, 2000, p. 287).
O contexto sociocultural do Terno, por sua vez, pode ser avaliado a partir da região
onde está alicerçado, o bairro Camilo Prates. Nesse bairro se encontra a casa do Mestre João
Farias, um dos locais de encontro e ensaios do Terno26. Esse bairro fica localizado em uma
região periférica de Montes Claros. Parece ser comum que manifestações culturais,
principalmente as de origem afro-brasileira, sejam de bairros pobres, das periferias. O Terno
do Mestre João não é um caso isolado. Podemos notar, acompanhando a literatura sobre o
Congado e sobre a cultura afro-brasileira em geral, que a presença dessas manifestações nos
bairros humildes segue o padrão fornecido pelo histórico do negro, que gerou no desenrolar
de sua trajetória no país, um sistema sociocultural com políticas privativas à cultura negra.
Mesmo considerando que no Terno de Catopês do Mestre João Farias encontremos
mais brancos que negros, ainda assim essa cultura afro-brasileira sofre com as políticas de
privação. Edimilson de Almeida Pereira escreve que “do ponto de vista social, o Congado
constitui uma experiência de comunidades menos favorecidas, situadas em áreas rurais e
periferias de centros urbanos” (PEREIRA, 2000, p. 26). No Terno do Mestre João, todos os
integrantes têm origem humilde e residem em bairros periféricos da cidade de Montes Claros.
Depois de dar por encerrado o trabalho de coleta de dados, com uma gravação do
Terno no dia 20 de dezembro de 2003, ainda foi necessário buscar mais informações para o
preenchimento de lacunas só observadas durante a análise e sistematização final dos dados.
Pesquisar uma cultura que defende seus valores, implica respeitar determinadas
regras de conduta. As condições de pertencimento desenvolvidas no grupo do Mestre João
não permitem que um mesmo integrante faça parte de um outro grupo. Trata-se de comungar
com os valores do Terno e fazer parte desse universo instituindo uma “delimitação
26 Outro local de encontro, sobretudo no dia das festas, é a casa de Antônio Farias, o “Tonão”, irmão do Mestre
João e executante do instrumento que leva o nome de Chama. A maioria dos encontros durante a Festa se deu lá, porque a casa fica no bairro Delfino Magalhães, que está mais próximo dos pontos de encontro dos grupos de Congado, e guarda, às vezes, os instrumentos do Terno.
Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos. 28
identitária”. Dessa forma, por minha opção em fazer uma observação participante, não foi
possível investigar outros grupos de congado. As informações que aparecem nesse trabalho,
referente às outras manifestações, são o resultado das observações dos próprios integrantes do
Terno do Mestre João.
Esse trabalho que visa identificar os aspectos componentes da identidade musical do
Terno de Catopês do Mestre João Farias, não seguirá, então, uma abordagem comparativa,
mas evidenciará os valores musicais identitários do grupo por seus próprios elementos e pela
voz de seus interlocutores.
Capítulo 2 – O Congado
29
CAPÍTULO 2
O C O N G A D O
2.1. A ORIGEM DO CONGADO
Entendemos que analisar características da formação e origem do Congado pode nos
ajudar na constituição dos aspectos históricos construtores da trajetória e da identidade plural
dessa manifestação. Conhecer as bases de formação histórica dessa manifestação nos
proporcionará uma visão mais contextualizada para atingir nosso objetivo nesse estudo, qual
seja o de compreender os elementos fundamentais que corroboram para a constituição
identitária da música do Congado. Como uma cultura que engendra em sua estrutura fazeres
de entrega e devoção a santos católicos através do ato festivo, entendemos que a música não
só faz parte do ritual do Congado mas, em determinados momentos, protagoniza fases desse
ritual congadeiro. Sendo assim, para melhor compreensão do complexo mundo dessa cultura e
reconhecimento dos elementos agregados a sua música, faremos nesse capítulo um apanhado
histórico que ampliará nossa ótica de análise do processo de criação, desenvolvimento e,
certamente, do crescimento valorativo e representativo dessa manifestação.
Os aspectos, características, formas e componentes que constituem o Congado, nos
mostram a presença de elementos culturais de brancos e negros, frutos da infiltração
portuguesa (ou européia) no continente africano, culminando no tráfico negreiro que
transplantou nativos africanos para o Brasil português.
Capítulo 2 – O Congado
30
Nessas investidas pelo continente africano, as incursões dominicanas no final do
século XV levaram a reza do Rosário e a devoção à Nossa Senhora do Rosário para a África,
com o intuito de catequizar os negros africanos (LUCAS, 2002)1. Muitos dos negros
transplantados da África para o Brasil, além de um provável conhecimento da existência da
Senhora do Rosário, traziam toda uma complexa carga de elementos significativos que
inseminaria decisivamente a cultura brasileira. Na travessia pelos mares, os negros trouxeram
mais que sua força para o trabalho. Com eles, entranhada em seu corpus, veio sua cultura.
Leda Maria Martins, em seu livro Afrografias da Memória, relata que a supremacia
portuguesa imperada na captura e supressão dos escravos não excluiu deles as marcas
culturais de sua terra mãe:
[...] a colonização da África, a transmissão de escravos para as Américas, o sistema escravocrata e a divisão do continente africano em guetos europeus não conseguiram apagar no corpo/corpus africano e de origem africana os signos culturais, textuais e toda a complexa constituição simbólica fundadores de sua alteridade, de suas culturas, de sua diversidade étnica, lingüística, de suas civilizações e história (MARTINS, 1997, p. 25).
Ainda em seu livro, Martins trata da permanente violência sofrida pelos negros
invadidos e transplantados pelos europeus, e as desumanas condições de transporte marítimo
do sistema escravocrata.
Os africanos transplantados à força para as Américas, através da Diáspora negra, tiveram seu corpo e seu corpus desterritorializados. Arrancados de seu domus familiar, esse corpo, individual e coletivo, viu-se ocupado pelos emblemas e códigos do europeu, que dele se apossou como senhor, nele grafando seus códigos lingüísticos, filosóficos, religiosos, culturais, sua visão de mundo. Assujeitados pelo perverso e violento sistema escravocrata, tornados estrangeiros, coisificados, os africanos que sobreviveram as desumanas condições da travessia marítima transcontinental foram destituídos de sua humanidade, desvestidos de seus sistemas simbólicos, menosprezados pelos ocidentais e revestidos por um olhar alheio, o do europeu. (MARTINS, 1997, p. 24).
No Brasil, o negro encontraria espaço para (re)construir sua identidade e
(r)estabelecer seu mundo mítico através de suas manifestações culturais e religiosas. Nesse
sentido, o processo de rememoração de sua ancestralidade, representada no caso do Congado
na coroação de seus reis, se configurou como uma oportunidade onde, na ausência de sua
sociedade original, “[...] os negros passaram a ver nos ‘reis do Congo’ elementos
intermediários para o trato com o sagrado” (GOMES e PEREIRA, 2000b, p. 244-245).
1 Essa informação pode ser encontrada ainda nos trabalhos de Gomes e Pereira (2000b); Martins (1997);
Tinhorão (1972); Poel (1981).
Capítulo 2 – O Congado
31
Essa forma de reencontro com seus valores ancestrais através da coroação de reis
negros tem seu primeiro aparecimento na Europa, como relatado por Tinhorão (1988).
Segundo o autor, há evidências da dramatização de negros coroando reis do Congo em
Portugal por volta de 1533. Para Tinhorão, surgia aí “a primeira notícia expressa do
funcionamento da Confraria de Nossa Senhora dos Homens Pretos em Portugal”
(TINHORÃO, 1988, p. 98). As Confrarias ou Irmandades, instituições incentivadas pela
igreja para a absorção dos “homens pretos” à catequisação, estão diretamente ligadas à
aparição do Congado. Foram elas que estabeleceram uma fresta por onde os negros puderam
emergir com seus traços ancestrais. Baseadas nas Corporações de Ofício da Idade Média
(MARTINS, 1988), essas instituições dispunham de uma escala hierárquica entre sócios,
secretários e o rei coroado, que exercia papel importante na vida dos negros. Como
dispositivo político, as Irmandades2 contavam com coleta de esmolas que eram revertidas
para pagamentos de alforrias, sepulturas e ascensão dos seus membros na sociedade.
Para o antropólogo Rubens Alves da Silva, as agremiações religiosas constituíram,
no contexto do Brasil colônia, “[...] a única via de organização da sociedade civil; uma vez
que, neste período, a estrutura sócio-econômica predominante no país impossibilitava a
fundação de corporações de civis e de ofício, como ocorrera na Europa (SILVA, 2001, p.
46)”3. A criação das Irmandades proporcionou o afloramento de um sistema organizado que
permitiu que os negros pudessem fazer seus rituais de rememoração, manifestar sua força
musical e expressar sua cultura, mesmo que revestida dos “moldes” impostos pelo sistema
religioso oficial. A exposição da cultura negra na rua, apoiada pelas Irmandades, representou,
segundo Tinhorão (1972), algumas das primeiras manifestações artísticas de massa no Brasil4.
Contudo, vale ressaltar, como indicado por vários autores5, que dentro do contexto das
Irmandades se estabeleceu um espaço ambíguo movido pela situação de conformismo e
resistência, tendo em vista as suas contradições frente ao sistema gerado pela sociedade
branca e escravocrata.
Com uma reconfiguração dos valores da cultura africana no Brasil em metamorfose
com os valores dos brancos, foram rearticulados elementos centrais dessas culturas que
deram vida a uma manifestação com características próprias. A partir dessas interações nasceu
2 Optamos por usar Irmandade em vez de Confraria por ser a primeira mais utilizada nas instituições em Minas
Gerais, Estado que abriga nosso campo de estudo. 3 Cf. Bastide, 1987, p. 164. 4 Segundo Tinhorão (1972), no Brasil, as primeiras Irmandades sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário
surgiram no Rio de Janeiro em 1639; Belém, 1682; Salvador, Recife e Olinda, na década de 1680. 5 Ver: Chaui (1989); Boschi (1986); Silva (2001).
Capítulo 2 – O Congado
32
a cultura do Congado. Acreditamos então, que o contato dos negros com a Senhora do
Rosário no século anterior à chegada deles no Brasil, não constitui a origem dessa
manifestação. O traço decisivo da criação do Congado ocorreu no Brasil colonial, através do
processo aculturativo entre a religiosidade branca e a recriação do negro (GOMES e
PEREIRA, 2000b).
Assim, o Congado se constitui como uma manifestação afro-brasileira que se
difundiu pelo Brasil, sendo considerada uma das ricas manifestações deste país. Representado
em sua maioria por Irmandades, o Congado se integrou às culturas locais de diversos estados
como Alagoas, Pernambuco, Espirito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e principalmente
Minas Gerais6. Com sua força de expressão repleta de mitos, crenças, ritos e religiosidade,
valores impressos nos seus festejos de reinados e na sua devoção aos seus santos católicos, o
Congado tornou-se parte da paisagem cultural dessas distintas regiões e uma referência da
cultura afro-brasileira.
Em Minas Gerais, o processo desencadeado pela mineração, sustentado pela mão de
obra escrava, povoou o Estado com pessoas que traziam em si uma gama de valores, fé e
costumes característicos da cultura negra. Com o universo cultural dos negros aliado às
Irmandades, o Congado encontrou em Minas Gerais lugar para expressar sua crença religiosa
através da força artística concretizada fundamentalmente a partir de sua música. Em Minas
Gerais, “os rituais do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, ou Congado, constituem uma
das mais importantes expressões da religiosidade e da cultura afro-brasileira” presentes no
Estado (LUCAS, 2002, p. 17).
6 Como afirma Silva (2001), mesmo nos lugares onde as Irmandades não estiveram presentes, o Congado surgiu
como associações autônomas, embora vinculado de alguma forma às atividades festivas da Igreja Católica, como é o caso de Montes Claros, nosso campo de estudo.
Capítulo 2 – O Congado
33
2.2. O CONGADO EM MONTES CLAROS
Não temos como precisar a data de origem do Congado em Montes Claros. A
referência mais antiga da existência de grupos de Congado nessa cidade é feita por Hermes de
Paula (1979) que faz menção à data de 1841, onde, na comemoração da coroação de D. Pedro
II, teria sido divulgado um manifesto permitindo o cortejo desses grupos:
[...] quando se comemorou a coroação de D. Pedro II em 8 de setembro de 1841 depois do cortejo ou passeata com a efígie do imperador, foram permitidos vários divertimentos durante três dias: “Catopês, cavalhadas, volantins e quaisquer outros divertimentos que não ofendam a moral pública”. (PAULA, 1979, p. 138).
Esse documento não foi encontrado e também não temos referência de por qual meio
foi divulgado, portanto não temos como precisar se o referido documento faz, de fato,
referência aos grupos de Montes Claros em específico. Ainda no livro de Hermes de Paula
encontramos a letra de uma música que, segundo o autor, teria sido composta na ocasião da
coroação de D. Pedro II, em 1841, pelo Mestre Geraldo Leite da Silva – Geraldo Velho –
Mestre de Catopês do Terno de São Benedito:
Dessas [músicas cantadas pelos grupos de Congado], a mais antiga é a que foi composta pelo primeiro mestre do terno de São Benedito – Geraldo Leite da Silva – para as festas da coroação de D. Pedro II, em 8-9-1841: (PAULA, 1979, p. 140-141)
A letra da música apontada na citação de Paula (1979, p.141), faz referência à
coroação de Dom Pedro II, nos seguintes termos:
“Viva D.Pedro É D. Pedro I,
Ora viva D.Pedro II, Filho de D.Pedro I” (bis).
Para o autor já havia em Montes Claros, então, em 1841, um Terno de São Benedito
em plena atividade.
Pesquisando os documentos históricos da cidade, foi encontrada no jornal Montes
Claros, datado de 17 de agosto de 1916 onde trata das tradições no Brasil, uma referência à
existência do Congado na região de Montes Claros. Devido o estado de decomposição do
jornal, algumas palavras estão incompletas. Assim sendo, será apresentado o texto encontrado
e depois uma versão rescrita, buscando completar algumas das palavras. Trata-se, claro, de
Capítulo 2 – O Congado
34
uma complementação baseada em conhecimento próprio sobre o Congado em Montes Claros,
e sobre a forma de ver e registrar típica do jornal da época. Será utilizada uma escrita atual,
para facilitar a compreensão do leitor, acrescida de notas explicativas para algumas palavras
que são certamente inusuais, nos dias de hoje.
Texto original:
Em qualquer epo... do anno aqui no sertão são os ...tuques e recortados; (...) em agosto, as festas ...reinados, onde sobresahem os ...opés e as marujadas, com seus ...ticos próprios e numa lingua... tambem propria. Nos batuques, ...te o sapateado retumba e as pal...s estalam festivas, levando pe... quebradas dos outeiros e pelos ...cavos dos valles a espansão sin...a daquellas almas rudes mas ...ffensivas, cantam-se versos e ...provisam-sequadrinhas que ...ta vez encerram verdadeiras ...pirações e conceitos de pura ...al. O verso é quebrado, a lin...gem é grosseira, a rima é im...feita, mas o fundo é proveitoso. (...) ...as festas de agosto, são os ...umes inteiramente africanos, ...rdando aquellas horas em que ...alor do sol a pino, os naturaes ...uella parte do globo se diver... e folgavam na plena exhibi... de seus pendores selvaticos. (...) a poeira que sobe irreverente (...) proprio dos campeões da festa, ...dindo os lares, aggredindo os ...zes, enchendo os pulmões e de...tando se, emfim, exhausta e sem ...as pelos tectos e pelos moveis. (JORNAL MONTES CLAROS, 1916, p. 03).
Texto rescrito:
Em qualquer época do ano aqui no sertão são os batuques e recortados7; (...) em agosto, as festas e reinados, onde sobressaem os catopés8 e as marujadas, com seus cânticos próprios e numa linguagem também própria. Nos batuques, ...te o sapateado retumba e as palmas estalam festivas, levando pelas quebradas dos outeiros9 e pelos recôncavos dos vales a expansão sin...a daquelas almas rudes mas inofensivas, cantam-se versos e improvisam-se quadrinhas que muita vez encerram verdadeiras aspirações e conceitos de pura ...al. O verso é quebrado, a linguagem é grosseira, a rima é imperfeita, mas o fundo é proveitoso. (...) nas festas de agosto, são os costumes inteiramente africanos, aguardando aquelas horas em que vai o calor do sol a pino, os naturais daquela parte do globo se divertiam e folgavam na plena exibição de seus pendores selváticos. (...) a poeira que sobe irreverente (...) próprio dos campeões da festa, invadindo os lares, agredindo os narizes, enchendo os pulmões e de...tando se, enfim, exausta e sem ...as pelos tetos e pelos moveis.
7 Segundo o dicionário Houaiss (2001), o recortado é um tipo de dança cantada e sapateada, independente ou
ligada ao cateretê, com muitas variantes coreográficas, dependendo da região; contradança. 8 Catopé e Catupé são algumas das variantes sinônimas de Catopê. A maioria dos jornais que tivemos contato
redige como Catupé ou Catopé, apesar de toda a região, atualmente, chamá-los de Catopê. Isso é, provavelmente, uma tentativa dos jornalistas de corrigirem o que julgam estar errado, talvez, porque em outras regiões onde a festa do Congado é mais presente os grupos sejam chamados de Catupé. Ainda hoje isso acontece, como é o caso de uma reportagem publicada no caderno de cultura do jornal mineiro HOJE EM DIA, de 02 de setembro de 2003, onde o jornalista apesar de passar cinco dias em Montes Claros pesquisando a Festa para produzir o texto ainda assim insistiu em redigir Catupé.
9 Segundo o dicionário Houaiss (2001), outeiro é uma pequena elevação de terreno; colina ou monte.
Capítulo 2 – O Congado
35
As indicações que encontramos sobre as festas em devoção a Nossa Senhora do
Rosário (Festa de Agosto) nos fazem acreditar que o aparecimento do Congado em Montes
Claros coincide com a origem da Festa nessa região, ou em período próximo a ela. No intróito
desse mesmo texto de 1916, o jornalista descreve a manifestação como tradições e costumes,
o que remete à noção de um tempo distante, de algo que há muito vem sendo cultivado. João
de Sena, ao ser perguntado em entrevista sobre as histórias que conhecia a respeito da origem
dos grupos e dos festejos, e sobre a existência da Festa de Nossa Senhora do Rosário antes da
chegada dos grupos, respondeu: “não. Não tinha [grupos de Congado nem a Festa] que eles é
quem falava que não tinha. Não tinha porque nesse tempo não tinha igreja. Eles falava
mesmo quando fez a Matriz...10” (JOÃO DE SENA, 14/10/2003).
Sendo assim, acreditando nessa análise e baseado nas informações colhidas em
jornais do princípio do século XX e no trabalho de Hermes de Paula, podemos crer que o
Congado em Montes Claros teve sua origem, o mais tardar, no século XIX.
Ao contrário do que acontece em outras regiões do Estado de Minas Gerais, que
divulgam essa cultura afro-brasileira como uma cultura congadeira, a exemplo de Contagem e
Serro, a população de Montes Claros, em sua maioria, não reconhece os grupos como
pertencentes ao Congado. Isso porque o termo Congado, seu conceito e significado não foram
difundidos na cultura Montes-clarense. Em entrevistas com os moradores da cidade pudemos
notar que eles reconhecem os grupos pelos nomes correspondentes, como Catopês,
Marujadas, Caboclinhos, mas não estão conscientes que eles fazem parte de um contexto
maior – o Congado. A população percebe que eles se relacionam porque todos são devotos de
santos católicos, usam vestimentas com adereços parecidos e participam do mesmo cortejo e
festa. Porém, não refletem que estes grupos constituem uma cultura afro-brasileira e que estão
dentro de uma família que se chama Congado.
Os grupos, por sua vez, são conhecidos e divulgados também como folclóricos por
manterem a tradição da cultura popular. Podemos perceber que os próprios jornais e folders
divulgados no período da Festa substituem a expressão “Congado” pelo termo folclórico.
Com a atual repercussão da Festa de Agosto e a presença da mídia nesse evento, apresentando
constantes entrevistas com estudiosos e conhecedores dessa manifestação, a expressão
Congado, e o seu significado, parecem tomar dimensão e se tornarem mais conhecidos da
população.
10 Segundo a arquidiocese de Montes Claros, a Matriz de Nossa Senhora e São José foi a primeira Catedral da
cidade (ARQUIDIOCESE DE MONTES CLAROS, 2004).
Capítulo 2 – O Congado
36
Os grupos de Montes Claros têm um sistema de organização mantido pela
Associação dos Grupos de Catopês, Marujos e Caboclinhos de Montes Claros11. Essa
Associação tem como presidente o Mestre Zanza, que representa os grupos nas reuniões junto
à prefeitura e à Federação dos Congadeiros de Minas Gerais. A Associação, além de organizar
e divulgar as determinações enviadas pela Federação mineira, acata os anseios dos grupos e
tenta administrá-los. É na Associação que são decididos, através das reuniões dos grupos com
membros da Prefeitura, os procedimentos para a Festa de Agosto de cada ano.
Em Montes Claros encontramos atualmente seis grupos pertencentes ao Congado:
Número de grupos
Tipo de grupo Bairros onde estão situados
01 Caboclinho - Santa Cecília
02 Marujada - Morrinhos - Renascença
03 Catopê - Morrinhos - Camilo Prates - Renascença
Os Caboclinhos são liderados pelo Mestre12 Joaquim Poló, que tem em seu grupo
oito membros de sua família. Os caboclinhos são devotos do Divino Espírito Santo. Ainda
entre os devotos do Divino estão as Marujadas que são lideradas pelos Chefes Miguel Marujo
e Nenzinho. Até 2001 existia apenas uma Marujada, que se dividiu em duas no ano de 2002.
Segundo integrantes dos dois grupos, essa divisão se deu por causa de um desentendimento
entre seus Chefes. Nos Catopês, além do Terno de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João
Farias, encontramos os Ternos de Nossa Senhora do Rosário do Mestre Zanza e o Terno de
São Benedito do Mestre Zé Expedito. Os Ternos são também conhecidos pelos nomes dos
seus bairros. O bairro é, geralmente, onde mora o Mestre e/ou o local de ensaio do seu grupo.
Consta nos registros históricos que uma outra manifestação conhecida como
Cavalhada13 fez parte do Congado de Montes Claros. Essa manifestação, segundo
informações do jornal da Festa de Agosto de 2002, tinha lugar de destaque nos festejos,
principalmente junto à classe “dominante” da cidade. Saul Martins (1988), aponta a cavalhada
– uma dramatização da luta entre Mouros e Cristãos – como um das manifestações integrantes
11 A Associação de Grupos dos Catopês Marujos e Caboclinhos de Montes Claros fica localizada à rua Humaitá,
n.º 126, no bairro Morrinhos. 12 Apesar de ser conhecido com o título de Mestre, não foi possível verificar se internamente os Caboclinhos
utilizam esse termo. 13 Sobre Cavalhadas ver: Brandão (1974).
Capítulo 2 – O Congado
37
da família do Congado14. Segundo Martins, ela representa “o congadeiro montado”
(MARTINS, 1988 p. 43). O autor diz que essa prática teve bastante vigor até a década de
1960, mas depois entrou em decadência. Em Montes Claros a Cavalhada já não existe mais,
mas podemos ver nos jornais da época, nos livros como o de Hermes de Paula e nas fotos
publicadas nos jornais produzidos pela Secretaria Municipal de Cultura que elas estiveram
presentes até por volta de 1960.
O Jornal da Festa de 2002, publicado pela Secretaria Municipal de Cultura, traz ainda
uma fotografia retirada do arquivo de D. Josefina de Paula. Segundo o jornal, a foto divulgada
é de 1957 e é uma cena de uma Cavalhada demonstrando a luta entre Mouros e Cristãos.
Nessa foto se encontram, segundo o jornal, Nivaldo Maciel15, como o Rei Mouro, e Danilo
(não foi possível obter o sobrenome), como o Rei Cristão (ver anexo A).
Paula (1979), descrevendo a Cavalhada na década de 1950, mostra que em Montes
Claros ela não acompanhava o Reinado, mas tomava parte no levantamento dos mastros à
noite. “Os cavaleiros solenes, vestidos de uma túnica branca, de espada à cinta, conduzindo
lanternas e o pisar resoluto dos cavalos inquietos, soprando, constituem um espetáculo
deveras atraente.” (PAULA, 1979, p. 159). Ainda segundo Paula, “devido à túnica branca ser
substituída por anágua, esse acompanhamento de cavaleiros noturnos é conhecido com o
nome de camisada” (PAULA, 1979, p. 159).
2.3. OS CATOPÊS
Os Catopês podem ser considerados como os grupos mais representativos do
Congado de Montes Claros. Sua performance transcendeu a situação grupo, fazendo deles os
“donos da Festa”. Há muito a Festa de Agosto é conhecida do grande público como a Festa
dos Catopês. A sua força musical, com ritmos fortes, e sua indumentária, com fitas coloridas e
esvoaçantes, causam grande efeito e provocam, de forma cativante, uma significativa reação
nos espectadores, que se prendem às coreografias e ao batuque de seus instrumentos. A
representatividade dos Ternos também pode ser notada nas ilustrações dos folders e cartazes
da Festa, que geralmente trazem elementos como capacetes, fitas, e instrumentos próprios
desses grupos. É comum, também, a ornamentação da Festa de Agosto ter, em grande parte, 14 No trabalho de Martins, o nome Cavalhada é substituído por Cavaleiros de São Jorge. Essa é uma das
variantes nominais dessa cultura. 15 Morador antigo de Montes Claros, ele é integrante do grupo de Seresta João Chaves e reconhecido como um
grande cantor.
Capítulo 2 – O Congado
38
elementos dos Catopês, sendo possível encontrar até empresas e produtos que levam seu
nome, como é o caso do leite Catopê.
Figura 1 – Ornamentação da Festa de Agosto do ano de 2002.
Figura 2 – Marca de uma empresa montes-clarense.
2.3.1. A ORIGEM DOS CATOPÊS EM MONTES CLAROS
Encontrar dados sobre a origem dos Catopês em Montes Claros tornou-se uma tarefa
difícil devido à falta de acervos e elementos textuais capazes de trazer referência sobre os
Ternos. Muito pouco foi encontrado, atestando a carência de dados mais direcionados à
história dos grupos. Sendo assim, escrever a história a partir da memória coletiva e individual
foi a melhor maneira encontrada para preencher essa lacuna e dar voz aos atores da própria
cultura pesquisada. O uso da memória social serve aqui de instrumento na reconstituição da
Capítulo 2 – O Congado
39
história dessa manifestação. Memória que pode ser entendida, na concepção de Burke (2000),
como uma forma útil e simplificada que resume o complexo processo de seleção e
interpretação do vivido em uma fórmula simples, e enfatiza a homologia entre os meios pelos
quais se registra e se recorda o passado. Está claro que os relatos sofreram, através de seus
interlocutores, transformações naturais próprias do processo de rememoração. As reflexões
em torno da memória e seus fenômenos políticos nos remete ao campo filosófico para
encontrarmos alicerce quanto à afirmação de que a memória passa por variações
interpretativas e que suas ligações com a imaginação são realmente intrínsecas.
Como afirma Owen16, citado por Burke (2000, p. 74), “quando lemos narrativas de
memórias é fácil esquecer que não lemos a própria memória e sim suas transformações [...]”.
O nosso sistema de memorização não parece ser capaz de armazenar todo o complexo
“visualizado”. Sendo assim, entendemos que os elementos memorizados sofrem tais
interpretações e transformações, mas compreendemos também, na mesma medida, que eles se
constituem como fragmentos representativos da voz dessa cultura que tenta “preservar”,
através do uso da transmissão oral, a sua história.
É possível acreditar, com base nas informações encontradas, que os Catopês e a
Marujada são os mais antigos representantes do Congado nessa cidade. Além da citação de
Paula (1979), como vimos anteriormente, indicando a presença dos Catopês em 1841,
encontramos no jornal Montes Claros, de 23 de agosto de 1917, um artigo comentando a
presença dos Ternos e da Marujada durante os festejos: “No dia 16 celebraram-se os festejos
em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, constando as mesmas de missa e procissão
solemne, procedidas dos reinados grandemente concorridos e abrilhantados pelos catopés e
marujada”. Vemos ainda nesse artigo uma outra referência aos grupos que se apresentaram
nas comemorações a São Sebastião no dia 17 desse mesmo mês: “As festas propriamente de
rua e para o povo, foram magníficas e muito concorridas, estando a todos os actos presentes
os catopés e a marujada”. E por fim, com referência ao dia 18, ocasião dos festejos do Divino
Espírito Santo, o jornal traz: “Houve ainda, nesse dia, comparecendo à missa e à procissão, a
nota alegre (ao menos para a meninada) dos diversos ternos de catopés e marujada”
(JORNAL MONTES CLAROS, 23 de agosto de 1917, p. 3). Podemos então, baseados na
indicação “diversos ternos de catopés e marujada”, citada pelo Jornal Montes Claros,
acreditar que em 1917 já havia mais de um Terno de Catopê na cidade de Montes Claros. Tal
16 OWEN, Stephen. Remembrances. Cambridge: Mass, 1986.
Capítulo 2 – O Congado
40
indicação parece conferir com as informações fornecidas por João de Sena em entrevista
gravada em outubro de 2003, onde ele relembra que os criadores dos Ternos de Catopês de
Nossa Senhora do Rosário foram os Irmãos Gama, vindos de uma região localizada na divisa
de Minas Gerais com o Espírito Santo conhecida como Serro:
- Jean Joubert: “O senhor estava falando que quem criou esse Terno (o de Nossa Senhora do Rosário)..., quem levantou o Terno foi...?”.
- João de Sena: “Sebastião... o nome dele é Sebastião Rodrigues e o Gregório”.
- Jean Joubert: “Gregório Gama?”.
- João de Sena: “A família veio da divisa do Espírito Santo com Minas e a cidade onde eles morava, a cidade chama Gama17. Por isso que o nome deles é Gregório Gama e Sebastião Gama. A família deles é Rodrigues”.
- Jean Joubert: “O senhor é primo dos irmãos Gama?”.
- João de Sena: “Não, sou neto do velho Gama18”.
- Jean Joubert: “O senhor sabe quando eles vieram para Montes Claros?”.
- João de Sena: “Quando eles vieram pra qui, Montes Claros era uma vilazinha chamada “Arraial das Formigas. [...] quando eles veio era arraial, não tinha prefeito não tinha paróquia não tinha nada. Na idade de dezoito ano, os menino... meus primos todos, foram fulião deles lá. Aonde tinha os menino de Gregório quase todos eles era Dançante19. A famia era quase que os Dançante era eles só... aonde tinha um Terno que era só gente preto, preto mesmo”.
- Jean Joubert: “Seu João, então foram o Sebastião, o Gregório que abriram os Ternos, e tinha mais um?”.
- João de Sena: “De Nossa Senhora, Sebastião e Gregório”.
- Jean Joubert: “E o de São Benedito?”.
- João de Sena: “O de São Benedito chamava Melquides20, mas Melquides é de outra famia” (JOÃO DE SENA, 14/10/2003).
Como podemos observar no relato de João de Sena, os Irmãos Gama21 teriam
17 A cidade de Gama está, segundo João de Sena. localizada na região do Serro. 18 O velho Gama é, na verdade, Luiz Rodrigues, o pai dos Irmãos Gama. João de Sena é filho de Joaquim
Rodrigues, o Joaquim Gama). 19 Segundo o dicionário Houaiss (2001), dançante é: aquele que dança em procissões e festas públicas. O mesmo
que catopê ('participante') 20 O Mestre Melquíades é citado no trabalho de Paula (1979, p. 144), como sendo um dos Mestres do Terno de
São Benedito. 21 Segundo Informações cedidas por João de Sena, os Irmãos Gama eram: Gregório, José, João, Sebastião,
Amâncio, Teodoro, Vicente, Joaquim e Maria.
Capítulo 2 – O Congado
41
migrado para o Arraial das Formigas (hoje Montes Claros)22 no século XIX. Estamos
considerando então que no princípio do século XX a cidade abrigava manifestações de Ternos
de Catopês de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Essa afirmativa se baseia nas
informações de João de Sena, onde o Terno de Nossa Senhora do Rosário teria sido
introduzido pelos Irmãos Gama – provavelmente com sua chegada em meados do século XIX
–, também no trabalho de Paula (1979), que indica a presença de um Terno de São Benedito
chefiado pelo Mestre Geraldo Leite da Silva em 1831 e, ainda, nos jornais da época que
atestam a presença de Ternos de Catopês em Montes Claros em 1917.
Em entrevista realizada em 2003 o Mestre João Farias fez o seguinte relato sobre a
origem dos Catopês em Montes Claros:
- Jean Joubert: Seu João, o que o senhor lembra sobre a origem do Catopê aqui em Montes Claros? O senhor conhece alguma história?
- Mestre João: A história de Catopê... a história de Catopê em Montes Claro, eles fala que diz que foi um... num sei, o povo fala que é lenda mais num sei, diz que naquela época tinha, aparecia aqueles negoço dos escravo, era a escravidão, foi no tempo dos escravo, essa época vem rodano dês do tempo dos escravo, que Montes Claro tinha era quatro casa.
- Jean Joubert: Quatro casas?
- Mestre João: Quatro casa que os mais véi antigo conta né, que isso é véi de mais cem ano.
A informação de que Montes Claros teria “quatro casas” confirma aquela fornecida
por João de Sena sobre a descrição da cidade nos primórdios dos Ternos. Mestre João
continua, falando sobre a Igreja do Rosário:
- Mestre João: Então eles fizeram aquela igreja, aquela igreja num era daquele jeito não.
- Jean Joubert: Qual igreja, aquela do...?
- Mestre João: Aquela do Rusário. Aquela num era daquele jeito não, ela era mesmo que vê a igrejinha... a igrejinha que tem no Morrinhos23. Parece que quem fez a igreja do Morrinhos fez a igreja do Rusário. Parece que sim. Que aquela igreja do Morrinhos tem lenda pra contar...
- Mestre João: Ah, aquela igreja é... tem coisa, né? Agora, ela [a
22 O “Arraial das Formigas” foi elevado a Vila pela Lei de 13 de outubro de 1831, recebendo o nome de "Vila de
Montes Claros de Formigas". Posteriormente, em 03 julho de 1857, a Vila passou a cidade – Cidade de Montes Claros (MONTES CLAROS, 2004).
23 A Capela Santa Cruz, ou “Igreja dos Morrinhos”, como é conhecida pela população, teve sua inauguração em 14 de setembro de 1886. Informação em Montes Claros (2004).
Capítulo 2 – O Congado
42
igreja do Rosário] era daquele tipo. Que eu ainda alembro! Porque na época que eu peguei o Terno ainda tinha ela. Foi daí dois ano foi que derrubou ela.. (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003).
No relato do Mestre João, a introdução de elementos históricos, como o número de
casas caracterizando Montes Claros em tempos antigos, ou a construção e destruição da Igreja
do Rosário, tenta compor a trajetória da manifestação, fornecendo dados que possam sustentar
suas palavras, enraizando a presença dos Catopês junto ao desenvolvimento da cidade.
No trecho que veremos a seguir, a versão mitológica encontrada na maior parte da
literatura que envolve Nossa Senhora do Rosário e os negros, na qual a santa teria sido
resgatada do mar pelos congadeiros, ganha características próprias, mantendo o imaginário de
uma santa que ouviu os seus filhos escravos e sendo construída numa paisagem regional, sem
mar24. Nos relatos tradicionais a história descreve o aparecimento de Nossa Senhora do
Rosário, mas na fala do Mestre João os elementos são utilizados para justificar a origem dos
Catopês :
- Mestre João: “Aí eles, fala que foi um milagre que eles pediram pra Nossa Senhora do Rusário que acabasse com os escravo, e pra isso parece que é mesmo, que teve essa lenda pra todo canto do... como diz: do Brasil. Que teve essa lenda, que se aparecesse uns Catopê pra pular pra nossa senhora do Rusário, pra dá uma alforria pros escravo. Então veio a alforria e eles continuou nessa batucada no mês de agosto, Outro começa no mês de outubro. De acordo com o lugar que fez aquela promessa”.
- Jean Joubert: “Então fizeram um pedido para alforriar os negros que iriam dançar?”.
- Mestre João: “Ia dançar, fazer aquele Congado pra ela, né? Aí que eles fizero esse negoço, aí surgiu que Montes Claro caiu nessa também. E de jeito que Montes Claro... essa festa daqui é véia, ela num é nova”.
- Jean Joubert: “Então, o que o senhor ouviu da história do surgimento do Catopê é isso?”.
- Mestre João: “Mais que é uma dança africana é! Mesmo que esse negoço da África, ela [a dança dos Catopês] é pra ser nascida da festa africana”.
Quando perguntei ao Seu João se ele conhecia a origem do nome Catopê, ele
respondeu que é uma espécie de apelido que colocaram e que deu certo:
“O nome é... como diz, cada um inventa uma coisa, um nome, põe
24 No ANEXO B, outras versões do conto mitológico encontradas na literatura específica sobre o Congado.
Capítulo 2 – O Congado
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numa peça né? Puseram o nome nessa peça de Catopê, ficô... pegô bem, ficô na história, né? Eu acho que é isso. Acho que foi o que aconteceu, pusero o Catopê mais... esse Catopê já tinha outro nome. eles num falava Catopê, falava era Dançante”. O grupo de Dançante. Aí surgiu esse apelido de Catopê e Catopê ficou” (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003).
A maneira que Seu João, despreocupadamente, colocou a sugestão para o
aparecimento do nome Catopê, demonstra uma cultura que parece se bastar com os termos
que tem, sem precisar, necessariamente, de uma fundamentação etimológica. O fato de um
termo ou conceito ter sobrevivido ao tempo já o configura como válido sem se questionar a
razão de sua existência primeira. O dinamismo assumido pelos termos, se adequando às
transformações da cultura, faz com que, na maioria das vezes, seja esquecida no tempo a
seqüência de mutação desses termos, justificando sua existência pela forma com que são
utilizados dentro da cultura.
No seu discurso, Mestre João faz uma ponte entre os elementos míticos constitutivos
da história do Congado, que está baseada na alforria dos negros em troca dos festejos a Nossa
Senhora do Rosário, e a história local. O discurso ganha força nos elementos
contextualizadores da história da cidade, nos seus relatos sobre o número de casas
encontradas em Montes Claros na ocasião do surgimento dos Ternos, e nas referências à
Igreja do Rosário, que é um símbolo da religiosidade dos congadeiros.
Apesar de algumas histórias terem atravessado os anos sendo transmitidas aos
membros da cultura, muitas delas não são de conhecimento de todos os participantes da
manifestação. Zé Farias25, membro do Catopê de Mestre João há 20 anos, faz uma crítica à
falta de interesse na preservação dessas histórias. Quando perguntado sobre o que ele
conhecia da história dos Catopês, Zé Farias disse que não sabia muita coisa, e relatou:
“A história do Catopê que eu conheço assim, resumido no papel é muito pouco. Se eu falar pra você que a maioria dos catopê... se você perguntar meu tio, perguntar meu pai, o que é Catopê pra você em si, ele não vai ter palavra pra te explicar. Porque nunca chegou assim... não sei se foi falha nas gerações passadas, de repassar pra ele o quê que era realmente o Catopê em si. A gente só tem mais ou menos um fundamento melhor do que é Catopê quando você chega e ouvi um historiador, ou uma matéria no jornal, ou alguma coisa melhor pra ir aprofundando. Existe essa falha de comunicação dentro da tradição, dentro das gerações nossa, de uma não repassar pro outro o quê que realmente é o Catopê, o quê que simboliza realmente o Catopê para o
25 José Soares de Farias é sobrinho do Mestre João Farias. Ele tem 24 anos de idade.
Capítulo 2 – O Congado
44
seu filho, né? Eu carrego dentro de mim, acima de tudo, a minha fé” (ZÉ FARIAS, 16/08/2003).
Zé Farias faz parte de uma geração recente que alcançou um nível escolar superior ao
do seu pai Tonão e do tio Mestre João. Isso faz com que ele valorize saberes sistematizados
como a história escrita, e não somente a oral. O contato com as leituras e uma escrita mais
elaborada parece despertar nele o desejo de ver a história do seu Terno contada assim, através
de dados históricos mais concisos.
Quando ele diz “porque nunca chegou assim...” entendemos que ele sugere que
nunca tenha chegado até ele uma história sistematizada com conceitos definidos, começo,
meio e fim. Ainda no trecho “não sei se foi falha nas gerações passadas, de repassar pra ele
o quê que era realmente o Catopê em si”, demonstra a falta de um conceito único, definidor
dessa cultura, que segundo as afirmações de Zé Farias é uma carência na história cultural dos
Catopês. Parece-nos natural que ele se preocupe mais com esses dados, vez que faz parte de
uma geração que vive em meio a todas as modificações provocadas pelo contato com a mídia
e pela cobrança de uma identidade estabelecida. No fim do seu relato expressou, “eu carrego
dentro de mim, acima de tudo, a minha fé”, traduzindo o conceito de Catopê para aquele que
tem fé, ou aquele que, com fé, comunga com todo um contexto de rituais e devoção a Nossa
Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo.
Hoje, em Montes Claros, como mencionado anteriormente, encontramos dois Ternos
de Nossa Senhora do Rosário com os respectivos Mestres João Farias e Zanza. No entanto,
por indícios da história, acreditamos que esses Ternos teriam sido em sua origem um só, que
posteriormente se dividiu, fato apontado por João de Sena na entrevista descrita abaixo:
- Jean Joubert: Eu conheço uma história que fala o seguinte, que era apenas um Terno de Nossa Senhora do Rosário que se dividiu em dois.
- João de Sena: Era um só mesmo. O Terno legítimo mesmo de Nossa Senhora era o de Gregório Gama, era o legítimo. Depois passou... Sebastião levantou esse outro Terno. Meu irmão mais velho é que contava a história do princípio ao fim, ele era um dos Dançante (JOÃO DE SENA, 14/10/2003).
O Mestre João Farias também acredita nesse relato lembrando que os antigos
contavam que o Terno de Nossa Senhora do Rosário pertencia a uma única família e que só
depois havia se dividido. Segundo o Mestre, isso ocorreu há muito tempo, mas ele não soube
Capítulo 2 – O Congado
45
precisar a data e acredita que um possível desentendimento ocasionou a divisão26.
2.3.2. O TERNO DE CATOPÊS DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DO MESTRE JOÃO FARIAS
Figura 3 – Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias.
O Terno do Mestre João Farias tem cerca de 40 pessoas. Esse número é bastante
inconstante, vez que alguns dos integrantes não são sempre freqüentes. No Terno, nesse ano
de 2003, brincaram27 somente homens, com idade variando entre cinco e sessenta anos. A
inserção no grupo não requer idade como requisito e nem uma comprovação de experiência
com os instrumentos, mas passa pela autorização do Mestre. Essa autorização, pelo que
pudemos presenciar – inclusive para nossa própria inserção – se dá após uma espécie de
“leitura da alma” feita pelo próprio Mestre. Não tem perguntas nem teste algum, mas ele
parece saber se o candidato quer de verdade pertencer ao grupo.
Questionei a Zé Farias, um dos mais antigos Catopês do Terno, se seria possível a
inserção de mulheres no Terno. Ele respondeu que nunca havia tido mulheres no grupo e que
não sabia o porquê. Argumentou que elas deviam achar estranho andar pelas ruas com aquele
número de homens. Então perguntei sobre a reação do grupo na hipótese de alguma mulher se 26 Anotações de campo colhidas em Agosto de 2003.
Capítulo 2 – O Congado
46
candidatar, ao que ele respondeu: “ ah ... [um momento de reflexão] não sei não, acho que
fica meio estranho né, uma mulher tocando um instrumento num Terno”( ZÉ FARIAS,
14/10/2003). Assim, pude ver que o conceito de um Terno só para homens também é algo
enraizado na cultura, na tradição dos Catopês. Mas isso não é regra geral entre os grupos. Zé
Farias, em sua entrevista (14/10/2003), revelou que em Montes Claros o Terno de Catopês de
São Benedito do Mestre Zé Expedito inovou recentemente inserindo mulheres como
integrantes. De fato já havia sido constatado nos festejos de 2002 e 2003, a presença de
mulheres no Congado de Montes Claros. Conferindo as gravações, foi possível perceber que
elas representavam um número muito pequeno em relação aos homens do grupo e, além disso,
ocupavam funções no pandeiro e no tamborim, não pleiteando instrumentos principais, como
a caixa28.
É comum em outras cidades mulheres chefiarem um grupo, mas não parece ser
comum tocarem um instrumento. Podemos confirmar essa informação em Arroyo (1999),
quando cita que no Congado de Uberlândia-MG não é permitido às mulheres tocarem
instrumentos, apesar de desempenharem papeis essenciais nos seus grupos. Mas a mesma
autora observou que em outras cidades da região a presença instrumental das mulheres já é
uma realidade.
Quanto ao modo de vida do Mestre João, ele tem uma casa humilde, com dois
quintais. Nela, abriga os ensaios do seu Terno, principalmente no quintal lateral. O maior, nos
fundos, é reservado aos animais e plantas. Sua sala, que tem cerca de 12m², também acolhe
eventualmente os ensaios. Para o Mestre, os ensaios realizados na sala têm uma energia
diferente e importante para a performance do grupo. Sobre isso ele comenta: “lá dentro fica
mais bunito” (MESTRE JOÃO, 29/06/3003). A observação do Mestre é pertinente, isso
porque as paredes se tornam placas de ressonância, aumentando a quantidade de som. A
acústica faz o Terno se sentir vigoroso, o que influencia diretamente a performance do grupo,
tanto no resultado musical quanto no coreográfico. Os ensaios sempre começam na sala
utilizando esse recurso acústico para chamar a atenção dos outros Catopês que estão na
vizinhança. O som dos instrumentos, ditando o início do ensaio, pode ser ouvido em boa parte
do bairro. “São os batidos anunciando uma desordem do cotidiano e instaurando uma nova
ordem” (ARROYO, 1999, p. 142). Acredito que só não alcança maior distância porque a casa 27 Brincar é um termo usado pelos congadeiros que muitas vezes são chamados de brincantes por terem a
manifestação, também, como um divertimento. 28 Na hierarquia dos instrumentos dos Ternos em Montes Claros, a caixa representa o mais importante
instrumento do grupo.
Capítulo 2 – O Congado
47
do Mestre João fica numa região baixa, o que impede melhor propagação do som. Sempre que
possível os ensaios são realizados no interior da casa, mas isso só acontece quando há poucos
integrantes.
Figura 4 – Mestre João Farias.
O Terno começa a ensaiar no mês de maio. A cada encontro os Catopês vão
chegando e completando o grupo. Seu João havia avisado que é menor a freqüência dos
integrantes nos primeiros dias de ensaio e, por isso, o grupo permanece no quintal de sua casa,
evitando sair na rua.
Manter o vigor, o “status”, parece ser importante. O fato de não sair à rua com pouca
gente representa não mostrar fraqueza, não sugerir aos olhos da sociedade que o Terno está
caído29. Essa ação revela um sistema de defesa das culturas tradicionais que, para se
manterem vivas, necessitam da confiança da sociedade, que acompanha a manifestação. Para
uma cultura que defende a sobrevivência de valores que se “mantêm” apesar dos atropelos
29 A expressão caído é muito usada entre os Catopês para denotar algo que está fraco, desestruturado.
Capítulo 2 – O Congado
48
dos anos, da intolerância e das transformações, estar forte é um sinal profético de vida longa.
Até mesmo porque essa reação externa vinda da sociedade pode provocar transformações
internas e criar expectativas positivas, ou desfazer o entusiasmo daqueles membros que não
estabeleceram ainda vínculos de compromisso com o Terno.
No mês de julho o grupo já está mais completo e, nessa época, começam as visitas às
casas. As casas que deveriam ser visitadas eram, há tempos atrás, marcadas pelo
Procurador30 do Terno, que definia a data e o horário da visita. O dono da casa preparava
comida e bebida para recebê-los e, após a música ecoar na casa e no quintal, começavam a
servi-los. Hoje o procedimento é outro, porque o papel do Procurador não é mais tão incisivo.
As pessoas se oferecem para receber o Terno, pois não há mais aquela caminhada em busca
de casas que, segundo os relatos, existia anteriormente. Isso acontece, provavelmente, por
causa do crescimento da cidade. A vida urbana tende a desaproximar as pessoas, contribuindo
com a instalação da impessoalidade, característica das aglomerações humanas de maior porte.
Isso contribui para que uma cultura como a dos Catopês se retraia, tentando (re)adaptar-se às
novas identidades da população. Os grupos presenciaram a chegada da energia elétrica, do
automóvel, do telefone e sobretudo das favelas, que levam boa parte da população pobre para
regiões periféricas, distantes do “centro social”. Esse afastamento – que não é só o físico -
tende a fragmentar “o elemento tradicional” que é alimentado pela “constância” do “seu
universo”. No decorrer do trabalho pontuaremos outras alterações urbanas que provocaram
transformações significativas na estrutura do Congado em Montes Claros.
A partir dos dados históricos que nos foi possível levantar nessa pesquisa, pudemos
perceber que as diferentes épocas, com seus distintos aspectos socio-econômicos,
tecnológicos e demais elementos culturais, influenciaram e influenciam a performance e o
próprio significado social dos grupos de Congado. Diante das inúmeras dificuldades impostas
pelo tempo, essa manifestação chega ao século XXI com expressividade, entusiasmo e
resistência, elementos refletidos pela sua música, que atravessa gerações modificando-se,
incorporando novos elementos e valores, mas mantendo-se como fonte da identidade
congadeira. A música, em toda a trajetória histórico-cultural do Congado, se mostrou presente
dando vida, forma e sentido ao ritual, que utiliza a expressão musical como caminho para o
contato divino com Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo.
30 Cabia ao procurador selecionar as casas que seriam visitadas, e assim era definida a trajetória percorrida pelo
grupo. No Terno do Mestre João, Tonão é o procurador.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 49
CAPÍTULO 3
O C O N T E X T O C O N G A D E I R O E S U A E S T R U T U R A RITUAL
3.1. A FESTA DE AGOSTO
A Festa do mês de agosto de Montes Claros, em que acontece a celebração do
ritual congadeiro, é organizada pela Prefeitura Municipal da cidade e conta com o apoio da
comunidade, de artistas da região, de empresas privadas e de instituições governamentais.
As comemorações desse período, que festejam Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e
o Divino Espírito Santo, configuram um evento regional de grande estrutura conhecido
como Festa de Agosto, Festa de Nossa Senhora do Rosário, Festa dos Catopês e mais
recentemente Festival Folclórico. Essa tradição festiva, há mais de um século une pessoas
em devoção aos seus santos católicos, santos que são respeitados, admirados e cultuados
através do ritual congadeiro. A data mais antiga que encontramos referenciando os festejos
nessa região está no trabalho de Hermes de Paula (1979), que afirma: “a mais antiga
notícia sobre o assunto [festas de agosto] é datada de 23 de maio de 1839, quando
‘Marcelino Alves pediu licença pra tirar esmolas para as festas de Nossa Senhora do
Rosário e Divino Espírito Santo que pretendia fazer nesta freguesia’”. (PAULA, 1979, p.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 50
138)1.
Outras informações sobre a Festa, de uma época posterior à data apresentada por
Paula, foram encontradas nas seguintes edições do jornal Correio do Norte2:
- Correio do Norte, de 17 de agosto de 1884, anunciando a Festa: “no dia 16,
começaram as festas de costume – de N. Senhora do Rozario, na respectiva
capella. de S. Benedito e do Divino Espírito Santo, – cuja notícia daremos no
próximo número.” (JORNAL CORREIO DO NORTE, 17/08/1884, p. 3)3.
- Correio do Norte, de 24 de agosto de 1884, número referido na citação anterior:
“Tiveram logar, nos dias 16, 17 e 18, a festa de N. Senhora do Rozario – em sua
capella –, e as de S. Benedito e do Espírito Santo, – na matriz –, com as
solemnidades do estylo, que terminaram pela procissão costumada; [...]”.
(JORNAL CORREIO DO NORTE, 24/08/1884, p. 3).
Inicialmente os festejos aconteciam nos dias 16, 17 e 18 de agosto, mas essas
datas hoje estão a mercê da decisão dos organizadores da Festa. Com a transformação da
Festa em um evento de grande repercussão, os organizadores4 se vêm preocupados com o
programa elaborado para o evento, sendo que este nem sempre se encaixa nas datas de
comemoração dos dias dos santos. Em 2003, por exemplo, as datas foram alteradas para os
dias 14 (Nossa Senhora do Rosário), 15 (São Benedito) e 16 (Divino Espírito Santo).
Na atual Festa, uma extensa programação é oferecida ao público, com palestras,
mesas redondas, ruas de lazer, concurso de contadores de “causos”, exposições artísticas,
mostra de fazeres tradicionais, “barraquinhas” e shows de grupos para-folclóricos, corais,
além de vários artistas, inclusive alguns de renome nacional que são convidados para se
apresentar nos palcos da Festa5. Essa nova característica de “super-evento” adquirida pela
1 Apesar de insistir na busca deste documento, não foi possível encontrá-lo. Em entrevista com Virgílio de
Paula, em 13 de outubro de 2003, ele afirmou que seu pai – Hermes de Paula – havia encontrado esse documento na câmara municipal, porém, nos arquivos da Câmara não constam documentos dessa data. Fiz a busca também em outros acervos da cidade, com o objetivo de encontrar o documento, mas não obtive sucesso.
2 ANEXO C. 3 Nas citações aqui apresentadas foi respeitada a escrita original do jornal, não sendo feita nenhuma correção
à forma de escrever da época e a possíveis erros ortográficos. 4 Apesar dos grupos participarem das discussões através da Associação dos Grupos de Catopês, Marujos e
Caboclinhos, as regras parecem ser traçadas pela Prefeitura Municipal através da Secretaria de Cultura, órgão que recebe, aplica e distribui os recursos angariados para a Festa.
5 ANEXO D.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 51
Festa converge com as iniciativas vigentes da prefeitura e dos empresários em colocar
Montes Claros e a região norte mineira na rota do turismo em Minas Gerais.
3.1.1. UMA JANELA PARA A MÍDIA
Figura 5 – Capa do Jornal da Festa de Agosto do ano de 2002.
A proposta de colocar a Festa de Agosto no foco das atenções, tornando-a um
evento de destaque no calendário de festas de Minas Gerais, busca, além de impulsionar o
comércio, projetar a região no cenário nacional e internacional, a exemplo de outras festas
como a Festa do Boi de Parintins, no Amazonas, os Rodeios de Barretos, em São Paulo e a
Festa do Congado dos Arturos de Contagem. Essa tendência, em Montes Claros, vem
desde 1979 com a criação do evento que engloba a Festa, sendo atualmente chamado de
Festival Folclórico de Montes Claros, e que em 2003 alcançou sua vigésima quinta edição.
Com efeito, temos dois eventos paralelos realizados simultaneamente, que são por
muitos confundidos: a Festa de Agosto e o Festival Folclórico. Enquanto os participantes e
apreciadores da Festa de Agosto convergem sua força para a devoção aos santos católicos,
com rituais de missas, reinados e desfiles, o Festival Folclórico é o palco de apresentação
dos “elementos folclóricos” da região. É a tentativa de colocar num só lugar/evento tudo
aquilo que se julga “folclore”, do “povo”, “tradicional”, da “cultura” da terra. Mundicarmo
Ferretti esclarece que a cultura do povo tem sido entendida deturpadamente como folclore
– algo pertencente ao passado, estático e dissociado da realidade atual (FERRETTI, 1990).
Da mesma forma que Ferretti, a etnomusicóloga Elizabeth Travassos, acredita que “a
música folclórica pertence a um mundo extinto e não pode reviver nas sociedades
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 52
modernas senão artificialmente” (TRAVASSOS, 1997, p. 92). Nesse sentido, a música do
Congado, em Montes Claros, não tem sido compreendida como um feito de uma cultura
viva e atuante, e então passou a ser enquadrada como um fenômeno “folclórico”.
Com a programação repleta de atrações diversas, aliada à desinformação do que
seja realmente aquele acontecimento para os congadeiros, o público fica tendente a
sobrepor o evento festivo ao religioso. E eles não estão exatamente separados. É claro que
numa festa em devoção aos santos católicos o elemento festivo está presente, mas o evento
religioso tem sido suprimido frente a tantos outros acontecimentos. Com os shows, as
barraquinhas e todos os demais eventos simultâneos que acontecem durante os festejos,
tentando trazer à tona a cultura montes-clarense, o público parece ter sua visão do que
deveria ser o central – no caso, uma festa popular religiosa – fragmentada e desviada,
porque a Festa religiosa tornou-se para os leigos6 apenas uma festa. Com tantos nomes
num só letreiro – Festa de Agosto, e 25º Festival Folclórico de Montes Claros –, o público
quase não discerne onde está o quê. A programação do Festival Folclórico nesse ano de
2003 vigorou de 07 a 17 de agosto, enquanto a parte religiosa, com as missas e a presença
dos grupos, só aconteceu a partir do dia 13, com o levantamento do mastro de Nossa
Senhora do Rosário.
O responsável por essas transformações talvez seja esse movimento de
folclorização da cultura, fazendo do “diferente”, do que é do “povo”, um show para ser
mostrado e comercializado. Lucas (2002), tratando dos estudos feitos por folcloristas sobre
o Congado, onde são evidenciadas as características essencialmente descritivas em
detrimento de uma leitura sociocultural, e da apropriação de valores culturais para a busca
de uma identidade - no caso local -, nos faz refletir sobre os caminhos direcionados por
essa mutação que vem ocorrendo na Festa: “[...] o ‘objeto folclórico’ [...] [torna-se] o foco
principal de atenção, em detrimento de seus produtores e toda a diversidade sociocultural
que o conforma e o determina.” (LUCAS, 2002, p. 39)
O evento tem servido de palco para os grupos de Congado transitarem onde o
público observa as características externas sem entender a complexidade interior daquela
manifestação cultural, ou seja, do que de fato se trata e a que se refere. Nesse sentido,
concordamos com Lucas quando afirma que:
6 Entendemos como leigos, aqueles que participam da festa sem entender seu objetivo religioso, que é o de
festejar Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 53
Esse tipo de enfoque dispensado às tradições populares [...] [inspira] certos eventos de natureza “folclórica” promovidos pelos mecanismos oficiais de ação cultural, em que se observa normalmente uma descontextualização, um desvirtuamento de objetivos e uma descaracterização das funções básicas das manifestações tradicionais (LUCAS, 2002, p. 39).
Nesse clima de “mega-festa-popular” o “exotismo” e a “fidelidade” têm sido os
elementos mais valorizados. A música, então, vem sendo percebida como um conjunto de
sons gerados para o entretenimento, sem o devido reconhecimento de suas demais funções.
Além disso, a música tem ocupado um segundo plano frente à percepção visual dos
observadores, que tendem a valorizar muito mais o visual que o auditivo7. Como efeito
dessa não compreensão, por parte do público, das funções essenciais da manifestação, os
valores formadores da identidade do Terno do Mestre João Farias têm sido remodelados e
interpretados por esse público a partir da propaganda que a Festa “vende”, e dos poucos
“contatos” visuais oportunizados pelos desfiles do grupo.
A Festa tem seguido o padrão imposto por essa tentação do consumo imediato da
pós-modernidade. As manifestações tradicionais vêm sendo expostas como produto de
negociação da cultura, que tem servido para atrair créditos para a região e seus
empreendedores. Para Sérgio Ferretti (1995), manifestações de tradição popular, como as
oriundas da cultura negra, passam a ser consumidas como cultura de massa. A religião e
outros aspectos culturais têm sofrido a “[...] ‘domesticação’ e a folclorização, divulgada
pelos meios de massa, transformando-se em espetáculo exótico para consumo turístico”
(FERRETTI, 1995, p. 104).
A proposta de remodelagem da estrutura do festejo tem favorecido e
impulsionado a criação de uma janela midiática de exposição dos “produtos” culturais
regionais em prol do crescimento conceitual dos valores da região que promovem a
divulgação da cidade como “pólo-cultural” do norte de Minas.
As alterações ocasionadas na Festa, para que ela adquira um porte de evento “de e
para a massa”, têm gerado discussões internas no Terno do Mestre João Farias. Observei
que essas discussões não acontecem em embates diretos e verbais, mas podem ser notadas
7 Lühning (2001), citando Seeger (1994), observa que o desenvolvimento de formas de registro sonoro, muito
antes do registro de imagens, propiciou no Ocidente a formação de uma percepção muito particular nos últimos 100 anos. Prova disso é que o visual é um acompanhamento do sonoro e não o contrário. Mas Lühning alerta que, gradualmente, o ser humano tem desenvolvido o seu sentido visual de forma mais intensa que os outros sentidos.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 54
nas entrelinhas, ocultas por uma malha de comportamentos que, vez por outra, se
explicitam em manifestações do Mestre. Zé Farias comentou a insatisfação do Mestre com
relação às atividades comemorativas que acontecem no ultimo dia da Festa, após a
procissão dos grupos. Segundo ele, Mestre João tem sido levado ao palco, onde os
agradecimentos políticos são feitos, para que se manifeste ao microfone. “Ti João não se
sente à vontade no palco e nem com o microfone”8.
Como a Festa se encontra dividida em dois eventos distintos, um festivo-
folclórico e outro festivo-religioso, o Terno tem incorporado as mesmas características. Os
membros mais antigos do Terno observam as mudanças com ressalva e crítica, enquanto os
mais jovens deslumbrados com o público que os aplaude, com as câmeras de TV e as
máquinas fotográficas, vêem o acontecimento como um momento onde eles obtêm um
reconhecimento da sociedade. Esse reconhecimento sobre seus comportamentos, os
tornam, naquele momento, personagens que merecem atenção, que ocupam um lugar com
foco especial que não lhes é comum na vida cotidiana. Frutos de uma geração que imprime
na mídia esse desejo pela “fama”, eles se sentem como “artistas” em um espetáculo
programado e preparado para isso. A indumentária, com seu imponente capacete fitado,
também a coreografia, os instrumentos, a música, o espírito de estar em cena com um
grupo, constituem os elementos necessários para a sua exposição como “artistas”. O
público e a mídia presentes completam o universo, dando fundamento ao que acontece.
O reconhecimento do público, aplaudindo, dançando e reproduzindo os ritmos
com as mãos, e ainda a presença de pessoas fotografando e filmando são recebidos como
estímulos também pelos mais velhos do Terno. No entanto, nesse caso, o que gera
discórdia é o quanto se altera a estrutura, o costume, a tradição e o rito, para que o
espetáculo, os registros e as divulgações “midiáticas” aconteçam. Esse aspecto
conservador, o desejo de preservar, de “manter como é”, constitui uma característica
marcante das culturas tradicionais. Segundo Lucas, algo dessa ordem acontece no Congado
dos Arturos, quando se discute, entre as várias gerações do grupo, a direção que os eventos
festivos têm tomado e as transformações que isso tem implicado:
Por um lado, há aqueles que são atraídos pelos apelos sedutores do espetáculo, da projeção na mídia, da participação até mesmo em concursos de guardas, e imprimem, por vezes, transformações internas importantes aos grupos e às suas próprias festas para atender a essa
8 Anotações de campo colhidas em agosto de 2003.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 55
demanda. Por outro lado, há muitos capitães que não se reconhecem nessas apresentações, ou seja, a concepção que têm do ritual de Congado ao qual vêm se dedicando por toda uma vida não comporta a participação em eventos de natureza tão diversa (LUCAS, 2002, p. 39-40).
Em Montes Claros não encontramos concursos de grupos, nem evento algum que
estimule uma disputa direta. A concorrência entre os grupos é gerada por um mecanismo
próprio de auto-avaliação. As transformações muitas vezes acontecem pela necessidade de
se acompanhar as mudanças do outro, que, nesse caso, ficam mais evidentes entre grupos
similares, como é a situação dos três Ternos de Catopês presentes na cidade.
Enfim, o desejo de transformar a Festa de Agosto de Montes Claros em um
grande evento, promovendo alterações internas importantes na estrutura ritual dos grupos,
para que se possa contemplar o projeto político de projeção regional, tem afetado
profundamente o Congado, provocando discussões internas e forçando a descaracterização
dos elementos tradicionais do universo congadeiro. Podemos ver também que, se por um
lado todo o processo de alterações, movidas pelos mais diversos motivos, influencia o
universo da cultura, por outro essas alterações são acompanhadas e filtradas por um
sistema de classificação dos próprios representantes dessa cultura. Mestre João, por
exemplo, insiste na palavra “tradicional” para descrever e representar o comportamento do
Terno frente às modificações. No mesmo instante em que as transformações incentivadas
pelos “orgnizadores” da Festa começam a imperar numa via externa a caminho de alterar a
estrutura interna, os aspectos fundamentais que constituem o núcleo da manifestação são
protegidos por seus agentes numa tentativa de sustentação dos “elementos tradicionais” do
Terno.
3.2. RELIGIOSIDADE E FÉ
O universo do mundo congadeiro, que engloba os espaços, símbolos e todos os
demais aspectos ritualísticos que constituem o caminho para a sua ligação com o sagrado,
comporta elementos, características e preceitos que convergem num objetivo central, qual
seja a direção rumo ao mundo do não natural, do imaterial, do sagrado. Os aspectos desse
mundo do Congado, concernentes, construídos e moldados inicialmente “a desejo” do
sistema religioso que os comporta – a religião católica –, mescla um universo de homens
comuns, sem um comprometimento com o sistema religioso “formal” oficial, com uma
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 56
estrutura formalizada, como é a estabelecida nos sistemas e tradições da igreja nos moldes
católicos. Essa forma de manifestação religiosa é constituinte do catolicismo popular que
engendra um sentimento de coletividade circundada por um arcabouço mitológico repleto
de crenças e ritos, mas que não exerce sobre seus homens os mesmos desejos e
obrigatoriedade ritual impostos pela estrutura eclesiástica, impetrada pelo catolicismo
oficial. Brandão (1985a) descreve o catolicismo popular como “igrejas” formadas por
agentes camponeses dos cultos coletivos que mantêm uma relação de
conflito/compromisso com a hierarquia eclesiástica da Igreja Católica. São membros
legítimos da religião católica que, quer por vontade própria ou – como mostra a história –
por necessidade, absorveu seus cultos e permitiu seus festejos.
A religião pode ser entendida como “[...] um sistema solidário de crenças e de
práticas relativas a coisas sagradas [...], crenças e práticas que reúnem numa mesma
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem” (DURKHEIM, 1996,
p. 32). Para Queiroz (2003), da mesma maneira, a religiosidade também se constitui de
crenças, práticas e de fenômenos religiosos referentes ao mundo sagrado. Porém, considera
que essas características delineadoras da religiosidade não são exclusivas de uma religião
específica. Sendo assim, o homem pode ter religiosidade sem pertencer, necessariamente, a
uma determinada religião.
Com base nestas concepções, buscamos, especificamente, nesse estudo,
reconhecer, compreender e associar os elementos que compõem a religiosidade dos
congadeiros do Terno de Catopês do Mestre João Farias com os aspectos que constituem a
identidade musical desse Terno. Afinal, como cita Béhague9: “música e dança tornam-se a
principal experiência religiosa em certos rituais religiosos, e portanto, estão completamente
integradas dentro da organização social de tais religiões” (BÉHAGUE apud LUCAS,
2002, p. 18).
Entendemos que o todo no universo do Congado é formado por partes com seus
mitos, ritos, dogmas e cerimônias, e que esse todo não pode ser definido senão em relação
às partes que o formam. Assim, é essa religião dos congadeiros – “o todo” – , que tem
9 BÉHAGUE, Gerard. Regional and national trends in afro-brazilian religious musics: a case of cultural
pluralism. Occasional Paper – Competing Gods: religious pluralism in Latin America, revista do Thomas J. Watson Jr. Institute for International Studies at Brown Univerity, Providence, R. I., n. 11, p. 10-25, 1992.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 57
como elementos motores “as partes” que a formam, ou seja, suas crenças e seus ritos. Para
Durkheim (1996), as crenças são estados de opinião – o pensamento –, enquanto os ritos
são modos de ação determinados – o movimento. Esse sentimento de apego e devoção às
entidades do mundo sagrado, e essa prestação aos ritos e às crenças, configuram a força de
ligação do homem do Congado com seu mundo ideal. Isso porque, ainda segundo
Durkheim, todas as crenças conhecidas presumem uma classificação das coisas “reais” ou
“ideais” que são dispostas, na concepção do homem, em duas classes ou gêneros opostos.
Estes, em outras palavras, poderiam ser traduzidos por “profano” e “sagrado”.
A manutenção da comunicação com o ideal, ou seja, com o sagrado, no Terno do
Mestre João Farias, se estrutura a partir de uma série de significados que são transmitidos
aos integrantes durante a convivência no grupo. No caso dos recém chegados, esse
fenômeno ocorre principalmente no período festivo onde todos os símbolos e seus
significados se encontram mais presentes, alcançando aí, durante a Festa, o ponto
culminante de sua representatividade simbólica. Isso não propõe dizer que o período de
preparação para a Festa, assim como o pós Festa, não contenham elementos repletos de
significados. Ao contrário, é na chegada ao Terno que os elementos significativos se
mostram mais evidentes. Tal fato se evidencia, provavelmente, pelo impacto que se sente
ao perceber que algumas coisas alí têm pesos e medidas próprios, determinados e
conceituados pela cultura, e sustentados pelos seus agentes10. É no Terno, no dia-a-dia, a
cada prática, vivenciando a música, tocando, dançando ou mesmo em conversas informais,
que são incorporados, consciente e inconscientemente, os valores significativos de cada
objeto, situação ou idéia. Tal afirmativa é confirmada por Cardoso acreditando que “os
aspectos característicos de uma cultura são apreendidos ou absorvidos pelos indivíduos
através da constante exposição aos mesmos” (CARDOSO, 2001 p. 33). Pensando a música
a partir dessa visão, podemos perceber que a vivência e a absorção dos elementos da
manifestação congadeira constroem os aspectos identitários dos indivíduos que
naturalmente, se integrarão à essência da sua performance musical.
Acredito que a compreensão de aspectos que, de certa forma, não estão associados
diretamente á música, como a fala e, principalmente, os gestos e expressões faciais, são
fatores fundamentais para a compreensão das particularidades constituintes da identidade
10 Entendemos agentes nesse estudo, como aqueles integrantes que têm assimilado os valores de sua
manifestação, e assim, são defensores e divulgadores de sua cultura.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 58
musical presente na performance dos Catopês. Partindo por esse caminho busco aprofundar
a discussão desses elementos, entendendo-os como fundamentais para uma análise
posterior da identidade musical no Terno de Catopês do Mestre João Farias.
Nas primeiras conversas com Seu João me espantei ao notar que os elementos e
atitudes que ele valorizava eram muito mais claramente percebidos através da sua
expressão facial, e na impostação da sua voz, acentuando e marcando suas palavras, do que
no conteúdo verbal da conversa. A maneira como Seu João tratava determinados termos ou
assuntos ampliou minha capacidade de mensurar o que era representativo para ele. Assim,
através de formas de percepção como essas é que os aspectos formadores da identidade do
congadeiro vão sendo por ele assimilados e solidificados. No caso dos integrantes do Terno
do Mestre João, um auto-reconhecimento do congadeiro enquanto Catopê, ou seja, como
membro de uma cultura religiosa que tem como funções principais adorar e festejar os
santos a que são devotos, se configura como fator essencial para a sua ligação com o
sagrado. Essa conexão só vai se estabelecer, é claro, se esse indivíduo, que é mediador
entre o profano e o sagrado, estiver verdadeiramente tomado pela crença e pelo sentimento
de fé.
Acredito que a religiosidade do congadeiro está centrada na crença, com a qual
interage num processo de retroalimentação. Essa religiosidade depende diretamente de
uma experiência onde cada integrante do Congado terá oportunidade de desenvolver o seu
sentimento de fé. Essa experiência pode ser resultado de uma vivência com o grupo como
um todo e/ou com membros dele, onde os conceitos e significados podem ser assimilados.
Tal experiência pode ser resultante ainda de um acontecimento espetacular, que faça o
congadeiro criar laços com o sagrado, mesmo antes de conhecer os conceitos e significados
instituídos no Terno.
São comuns integrantes com casos extraordinários no Terno do Mestre João.
Existem muitos relatos de pessoas que se tornaram Catopês em troca de um milagre de
Nossa Senhora do Rosário. Wagner11 conta que, quando criança, foi vítima de um acidente
muito grave que quase levou sua vida. Seu pai, então, fez uma promessa para Nossa
Senhora do Rosário em troca de sua salvação. Na promessa o pai oferecia o filho para sair
com os Catopês em devoção à Santa. Wagner ficou com seqüela do acidente, ele tem uma
11 Wagner Casé Silva, é caixeiro do Terno de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 59
perna menor que a outra, o que dificulta o seu andar. Apesar da deficiência, ele caminha
durante horas dançando e tocando com a caixa ao pescoço. Isso não o impede de prestar
seus votos em agradecimento à graça alcançada.
Figura 06 – O caixeiro Wagner Casé.
Para os congadeiros, fatos extraordinários dessa natureza são estimuladores de sua
crença nos ícones de devoção, por demonstrarem o poder de realização diante da
dificuldade de casos que são, em sua maioria, tidos como impossíveis. Nesse sentido, essa
afirmativa nos faz concordar com Durkheim que acredita que:
[...] para que tenhamos a idéia do sobrenatural, não é suficiente que sejamos testemunhas de acontecimentos inesperados; é preciso, além disso, que estes sejam concebidos como impossíveis, isto é, como inconciliáveis com uma ordem que, certa ou errada, nos parece necessariamente implicada na natureza das coisas (DURKHEIM, 1996, p. 09-10).
Isso acontece, sobretudo, na religiosidade popular que, ao contrário das religiões
oficiais, como a católica, não toma como base provas científicas para atestar o acontecido,
concebendo como comprovação o resultado do milagre.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 60
Exemplificando o acima exposto, recorre-se ao argumento de que a religiosidade
popular se baseia na voz do povo para assimilar como verdade um fenômeno creditado ao
Divino. Ao contrário, o catolicismo oficial precisa de processos as vezes centenários para,
através de comprovações consideradas científicas, fundamentar suas “verdades” e instituí-
las como dogmas de sua crença.
Esse sentimento de fé e crença, como combustível principal para a realização de
pedidos aos santos devotados, é encontrado em outras histórias protagonizadas por
membros do Congado. Temos um relato do Mestre João sobre um integrante da Marujada
que no período da Festa estava impossibilitado de participar da cerimônia por encontrar-se
enfermo num hospital. Segundo o Mestre, o Marujo ficou curado após participar das
festividades com a Marujada:
- Mestre João: Aníbal tava no hospital, tava internado... e o médico dele pegô e falô com ele, ué Aníbal cê num vai brincar esse ano, os marujo, os Catopê tá bonito lá! Lá na frente da igreja lá tá bonito. Gaguejava um poquim o véi. - Aníbal segundo Mestre João: qui, qui, me leva lá que, que eu quero cantar ou menos uma música. - Mestre João: Aí eles foi e levou lá na igreja. Quando chegô lá na igreja que ele abriu a boca pra cantar, cantar a música da marujada... ele vêi pra casa e ficou dois ano sem ir no hospital... de lá ele recebeu alta. Na igreja ele recebeu alta, dentro da igreja. Tava lá na cama pediu o doutor pra trazer ele lá na igreja, essa música que ele foi cantar lá sarou ele e ele deu pano de vim embora pra casa (MESTRE JOÃO FARIAS, 12/10/2003).
Contextualizando as análises apresentadas anteriormente com o fenômeno musical
no Congado, observamos que, a partir dos conceitos e crenças do individuo, a música nesse
contexto parece estabelecer uma comunicação com outras esferas capazes de realizarem,
segundo sua fé, feitos de extrema complexidade. Uma vez ocorridos tais fatos, eles são
acrescidos a um conjunto de acontecimentos existentes, somatizadores e instauradores de
uma “verdade” que contribuirá para reforçar a fé dos indivíduos, o que se confirma nas
palavras do Mestre João: “essa música que ele foi cantar lá sarou ele”. Essa afirmação
demonstra que a idéia de uma cura proporcionada pela música através da fé do congadeiro
numa atividade ritual é concebida como uma graça vinda do céu, numa exemplificação do
poder realizador que a música tem no Congado.
Ainda sobre acontecimentos que marcaram a religiosidade do Mestre João, ele
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 61
informou em entrevista no ano de 2003, que havia um menino doente próximo a sua casa e
que, numa conversa com o pai da criança, descobriu que ela, em conseqüência de uma
grave infecção, estava ameaçada de ter um dos pés amputado. Seu João então, propôs ao
pai da criança que fizesse uma promessa para Nossa Senhora do Rosário que ela o salvaria
da enfermidade: “eu falei, pega com Nossa Senhora do Rosário moço” (MESTRE JOÃO
FARIAS, 29/06/2003). Mas, segundo o Mestre, o pai revidou dizendo que o caso não teria
recurso. Mestre João insistiu, descrevendo os passos entre o pedido e o pagamento da
promessa, e indagou sobre a religiosidade desse pai: “eu falei, cê num tá com fé em Deus
não?” (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003). O pai do menino, convencido, se
comprometeu a seguir o conselho de Seu João e investiu na promessa a Nossa Senhora do
Rosário. Após alguns dias o pai trouxe a notícia da recuperação milagrosa do menino. O
Mestre descreve o momento do recebimento da notícia:
- Mestre João: “Ele [o pai] chegou e falou, ôh João, essa santa sua é forte. O milagre de Nossa Senhora do Rosário ajudou mesmo [...] e amanhã [o menino] já vai sair”. - Mestre João: “Eu bati o joelho no chão e falei, viva minha Nossa Senhora do Rosário” (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003).
Mestre João tem esse acontecimento como uma comprovação da existência do
poder de Nossa Senhora do Rosário em sua vida.
A devoção e a crença revigoram as forças necessárias para a continuidade da
tradição. Comentando sobre as atividades do Terno fora da data dos festejos, Mestre João
diz que costuma aparecer alguma “bandeira temporona”12 mas, nesse ano de 2003, por que
sua esposa se encontrava doente, ele não pode estender as atividades. Porém afirmou
categoricamente que em dia de festa nada impede o Terno de sair:
“A bandeira era pra hoje, eu num pude ir. Eu falei num posso ir. Como é que eu vô... a mulher lá no hospital eu pego e vô saí batucando aí na rua... agora, se fosse dia de festa mesmo, cê sabe disso... [em tom forte e seguro] que se for dia das festa lá de agosto nada pega! Lá da igreja... nada pega! Pode tá quem tiver doente. Nem que agente tira o Terno daqui [de casa] e põe ele lá numa outra casa, lá pra longe pra lá, e de lá começa sair. Mas num pode falhar o Terno. O Terno tem que tá em cima do pedido” (MESTRE JOÃO FARIAS, 12/10/2003).
12 É comum surgirem viagens e levantamentos de bandeira fora do período das festas. Mestre João faz
questão de dizer que sempre que possível reúne o grupo e participa dos eventos.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 62
Esse compromisso com a devoção aos santos estando presente à Festa de Agosto é
ponto indiscutível para o Mestre, que encontra força para “tocar o Terno na devoção”13.
Podemos ver essa convicção numa fala do Mestre encontrada no trabalho de Queiroz:
“Tudo depende da fé da pessoa, têm muitos que num agüenta, porque nós desfila muito
tempo, mais eu tenho que guentar, e na hora que tô na frente do Terno eu arrumo força, é a
divução e a fé que da força” (QUEIROZ, 2003, p. 66-67 )14.
O estímulo para a participação no Terno, porém, nem sempre se coaduna com esse
estado de devoção, de fé, com a idéia de uma conexão plena com o sagrado. A pretensão
do Catopê, como pude perceber nos integrantes mais jovens, está muitas vezes voltada
somente para o prazer do entretenimento. Envolvidos num sentimento grupal, num
ambiente que proporciona amizades, viagens e visitas às casas com um receptivo
banquete, eles comungam, muitas vezes, somente com uma parte do ritual, a do
entretenimento. Esses integrantes se vêem, cercados por uma estrutura que os elevam,
deixando-se inebriarem, orgulhosamente, com aqueles artifícios, que os tornam diferentes
dos demais membros da sociedade. Nesse contexto, a música se configura como principal
elemento de diferenciação social.
Sobre essa função da música como entretenimento Queiroz (2002), tomando
como base um estudo realizado junto ao Congado de Montes Claros, mais especificamente
os Catopês, comenta:
Se para os integrantes de idade mais avançada a religião é o foco principal da música, mesmo que o fato de “brincar” – como eles próprios dizem – sempre esteja presente, para as crianças e os jovens, a função de entretenimento é a mais significativa tendo em vista que as suas concepções e crenças religiosas ainda estão em processo de formação. Assim, tocar as caixas, dançar e cantar é, principalmente, um meio de brincar e se divertir, antes de assumir outros significados (QUEIROZ, 2002, p. 133).
Como observado por Queiroz, o entretenimento é parte inerente à cultura
congadeira e acompanhará os integrantes mesmo em fase adulta. O que ocorre, é que para
os jovens o divertimento assume proporções preponderantes no ritual mas, com a
13 Essa é mais uma das expressões de um particular “glossário” do Mestre que, junto com tantas outras
constroem um texto vivo que fecunda, a cada verbalização, os significados da manifestação. 14 Segundo Queiroz esses dados foram coletados em entrevista realizada durante as festas de Agosto entre os
dias 15/08/2002 e 18/08/2002.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 63
permanência no grupo, aos poucos vão assimilando todo o contexto que envolve as coisas
do sagrado e as responsabilidades que a eles vão sendo conferidas. Imbuídos nesse
processo de assimilação, com o tempo, ocorrerá para os congadeiros uma mudança de foco
e o entretenimento passará a ser um elemento agregado ao ritual, mas cederá o plano
central à devoção aos santos padroeiros.
Sobre o processo de aquisição dos conhecimentos da cultura, observamos em um
dos ensaios no mês de junho de 2003, Mestre João advertir os Catopês dizendo que eles
deveriam saber as letras das músicas, e colocou isso como um quesito de medição da
capacidade de um Catopê: “num é possive gente, cês num tão cantano. Tem Catopê aí que
tem quatro ano que tá aí, se num aprendeu até hoje... num serve pra ser Catopê”15.
Podemos notar então que participar das atividades com o Terno implica adquirir certos
conhecimentos básicos necessários para sua atuação no grupo. Como vimos reiterando, no
estágio inicial os brincantes mais novos ainda não estão aptos a entender o que o sagrado
significa, mas começam a respeitar normas e a valorizar significados que deverão acelerar
essa compreensão.
O item catalisador dessa compreensão será a música. Ela vai, a princípio, cobrir
toda a falta de crença ou desejo pelo religioso. A música vai unir o físico dos Catopês,
executando as batidas e a coreografia, a uma cadeia de significados que se encontra pronta
para encaixar esse ator no contexto congadeiro. Esse encaixe acontece aos poucos, como
em uma engrenagem, “dente a dente”. O entendimento da existência de objetivos
diferentes dentro do Terno, onde uns estão mais vinculados ao religioso enquanto outros
tendem para o entretenimento, também é uma observação relevante na compreensão do
que a música representa nesse grupo, pois é a partir da interação dessa variedade de
objetivos/performances que a música do Terno vai tomando forma, vez que ela “[...] é o
resultado de processos do comportamento humano que são modelados por valores, atitudes
e convicções de pessoas que compreendem uma cultura particular [nesse caso a cultura
congadeira] (MERRIAM, 1964, p. 6, tradução nossa.)”16.
Em outras palavras, podemos dizer que no Terno do Mestre João Farias, no que
diz respeito à religiosidade dos brincantes, o fenômeno externo sobrepõe-se – pelo menos
15 Anotações de campo colhidas em Agosto do ano de 2003. 16 “[...] is the result of human behavioral process that are shaped by the values, attitudes, and beliefs of the
people who comprise a particular culture”.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 64
em caráter de aplicação - ao interno, vez que não é cobrado desses integrantes que tenham
fé, que sejam religiosos, embora toda a estrutura ritual conspire para isso. O que se
acredita, é que o desejo que paira sobre os congadeiros é o de um Terno unido em devoção
a Santa do Rosário, porém, o que se vê em prática, é que é necessário um enumerado de
ações utilitárias, como tocar, cantar, dançar, etc; que, preenchendo suas funções
determinadas, criam as condições necessárias para o acontecimento religioso. O termo fé
dá lugar a outros como, por exemplo, respeito e prestabilidade. É necessário que se
comunguem com as ações do grupo e que se respeitem as normas e os significados
definidos pela tradição ou pelo próprio Terno.
Assim se estabelece uma situação de compromisso e troca por parte de cada
integrante que, mais do que com o seu santo de devoção, acontece com o seu próprio
grupo. Se o integrante, quer seja por uma experiência de absorção dos significados pela
convivência, promessa ou por uma capacidade imagética, não alcança o sagrado, isso não o
impede de ter papel de destaque no Terno. Dele não será cobrado esse alcance, desde que
execute, dentro das convenções, o que a estrutura tradicional pede. Entendemos essa
execução nas formas mais diversas, que podem variar desde o bom senso em situações
muito simples – como não mascar chicletes na igreja, o que revela falta de respeito com o
espaço sagrado (presenciei o Mestre alertando insistentemente a esse respeito) – até a
performance musical que vai definir conclusivamente o lugar do congadeiro no Terno.
O religioso então implica o reconhecimento e a aceitação dos significados da
manifestação pelos seus integrantes, bem como depende deles ou de uma experiência
provida por diversas formas de vivência, como vimos anteriormente. O caráter musical é
formado da resultante de várias características de comportamentos que afetam diretamente
o resultado sonoro, constituindo a “imagem musical” do Terno.
3.3. A ESTRUTURA RITUAL
A construção dos ambientes rituais representa as interligações, as conexões que
são estabelecidas para a sustentação da crença e a possibilidade de uma comunicação com
o sagrado. Para possibilitar o delineamento de laços que favoreçam esse processo
comunicador, as percepções geradas pelo ambiente da manifestação são incentivadas a
cada momento. Isso também porque sem a absorção verdadeira dos conceitos e
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 65
significados estabelecidos pela cultura, o rito – no sentido sagrado - não se estabelece.
Segundo Durkheim, “os ritos só podem ser definidos e distinguidos das outras práticas
humanas, [...] pela natureza especial de seu objeto” (DURKHEIM, 1996, p. 19). A crença é
a principal ponte, “[...] é na crença que a natureza especial desse objeto se exprime”
(DURKHEIM, 1996, p. 19). Para DaMatta, “é nesse processo que as ‘coisas do mundo’
adquirem um sentido diferente e podem exprimir mais do que aquilo que exprimem no seu
contexto normal” (DAMATTA, 1997, p.77). Sendo assim, sem a crença para tornar o
trivial diferente, os ritos podem acontecer fisicamente, seguindo os passos necessários para
sua realização, uma vez que eles “[...] são regras de conduta que prescrevem como o
homem deve comportar-se com as coisas sagradas” (DURKHEIM, 1996, p. 24), mas não
atingirão o objetivo principal, que é a ligação do mundo material ao mundo do sagrado.
Entendemos que as situações rituais encontradas no Terno do Mestre João Farias
são múltiplas e que se apresentam a cada etapa de preparo para o grande momento ritual
que é a Festa de Agosto, sobretudo, o dia de Nossa Senhora do Rosário. Nesse sentido,
pretendemos aqui descrever os principais momentos de vivência e constituição desses ritos,
a fim de entendermos a estrutura que comporta e sustenta a prática ritual dos congadeiros.
A descrição das fases de realização das práticas rituais preparatórias para a Festa e o
momento festivo devem compor a trajetória que é experienciada todos os anos pelos
praticantes dessa manifestação. Essa descrição propiciará, ainda, melhor conhecimento dos
aspectos que unem a música dessa manifestação aos seus contextos, revelando seus
elementos identitários e os efeitos ocasionados pelos desdobramentos socioculturais.
Definimos as práticas rituais como os eventos onde os integrantes do Terno, em
momentos oportunos para isso, colocam em funcionamento todo o seu poder de atuação,
fazendo valer seus conceitos e símbolos, se reunindo e praticando, através da música e da
dança, sua devoção aos seus santos. Enfim, a prática ritual nada mais é que a performance
do Terno, que não ocorre exclusivamente no dia da Festa, mas a cada vivência em grupo
onde possa valer sua estrutura simbólica.
Em maio, quando são iniciados os ensaios, começa a chegada dos novos
integrantes do Terno. Apesar da entrada desses novos participantes, que geralmente
chegam desprovidos de um melhor conhecimento do que seja aquela manifestação, a
construção simbólica que impera na estrutura base do Terno não é abalada. Isso porque há
um núcleo formado pelos integrantes mais antigos, os “sustentadores” da tradição. É claro
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 66
que a cada contigente a performance do grupo é sujeita a alterações, assunto que será
aprofundado quando tratarmos especificamente da performance musical no quarto capítulo.
A observação dos acontecimentos rituais possibilitou melhor compreensão do
papel de cada integrante e de cada símbolo. Foi uma oportunidade para ver materializados
todos os desejos, afetos, crenças e valores do mundo congadeiro. Como afirma Wilson17,
citada por Turner (1974), “os rituais revelam os valores no seu nível mais profundo... os
homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente e, sendo a forma de
expressão convencional e obrigatória, os valores do grupo é que são revelados” (WILSON
apud TURNER, 1974, p. 19). Realmente, os momentos ímpares para este trabalho foram
aqueles onde pude ver toda a complexidade da cultura sendo manifestada, desvelando as
funções da música, suas inter-relações, seus efeitos e significados para o homem daquele
contexto congadeiro.
As visitas às casas começam e então os Catopês passam a ser vistos na rua.
Durante a caminhada podemos notar o monitoramento do Mestre e dos membros mais
antigos tentando estabelecer uma unidade no Terno, tanto quanto aos elementos musicais
para que a música não desande18, quanto à própria formação do grupo que é disposta em
filas. Isso implica estabelecer certas regras de comportamento que produzem um padrão
aceitável ao Mestre. Esse padrão não chega a ser rigoroso, pois, é compreendido que numa
cultura onde o lúdico é inerente à manifestação, certas variações ou maneiras individuais
de se expressarem são permitidas, mas tudo gira em torno de um senso estabelecido pelo
próprio grupo.
O trajeto é definido a cada convite para as visitas ou em um grande planejamento,
como o que é feito para a Festa. Descreveremos agora o planejamento seguido pelo grupo
na Festa de Agosto de 2003, observando os momentos rituais do Terno e pontuando
acontecimentos que são determinantes na situação sociocultural dos grupos e que servirão
para melhor compreensão da performance do Terno.
Quadro das Fases rituais do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias no ano de 2003.
17 WILSON, Monica. Nyakyusa ritual and simbolism. American Antropologist, vol. 56, nº 2. 1957. Rituals of
kinship among the Nyakyusa. London: Oxford University Press, 1954. 18 Desandar é uma outra expressão usada pelos Catopês para designar um estágio onde o Terno está se
desencontrando nos ritmos.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 67
1a Fase – Ensaios do Terno
Maio • Começam os ensaios do Terno.
2a Fase – As visitas
Junho e
Julho
• Os ensaios continuam e começam as visitas às casas.
3a Fase – O festejo
Agosto • De 13 a 17 é o período da Festa.
• Os mastros são levantados à noite.
• Os Reinados acontecem na parte da manhã.
• A Festa Termina no dia 17 com a missa Conga.
No dia 13 de agosto de 2003, quarta feira, aconteceu o levantamento do Mastro de
Nossa Senhora do Rosário. Todos os grupos marcaram um encontro na Associação, para
saírem de lá com a bandeira que seria levada pelas ruas, acompanhada de todo o Congado
Montes-clarense. Quem comanda o desfile são os dois Ternos de Catopês de Nossa
Senhora do Rosário. O Mordomo19 espera os grupos que vão chegando um a um. Muitas
vezes eles vêm por conta própria e a pé. A prefeitura já há alguns anos fornece transporte
para os grupos nos dias da Festa. Embora, como pude presenciar, esse planejamento nem
sempre é cumprido e, na maioria das vezes, o transporte prometido não aparece. No caso
do Mestre João e seu Terno, o ônibus, com exceção do dia 14 de agosto, não chegou. Seu
João parece não se importar exatamente com a falta do ônibus; o que o incomoda é a falta
de compromisso, o trato quebrado. Entendi que ele considera essa atitude como um
menosprezo e uma desatenção com os grupos. A angústia do Mestre denota uma visão de
quem percebe uma desvalorização das atividades culturais em detrimento de outros
acontecimentos. Enquanto esperávamos o ônibus, que não veio, ele revelou que não
entende como os times de futebol da cidade conseguem tão facilmente um transporte
quando precisam, enquanto os grupos do Congado penam tanto para consegui-lo. Essa
19 Os Mordomos são aquele que organizam e patrocinam um evento religioso. Em Montes Claros eles são em
número de três, e cada um deles se responsabiliza por um dos santos homenageados na Festa. Eles se comprometem a organizar e a patrocinar apenas a etapa destinada a eles. Os Mordomos se responsabilizam também pela restauração e manutenção das bandeiras que serão erguidas pelos mastros, e recebem os grupos do seu santo específico numa visita.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 68
reflexão mostra o nível de consciência do Mestre em relação aos desdobramentos políticos,
que privilegiam determinados seguimentos da sociedade em detrimento de outros grupos
menos favorecidos.
No sistema de promessa/espera gerado pela expectativa de um transporte, os
integrantes mais novos começam a estabelecer uma relação de dependência com os meios
de condução oferecidos pela prefeitura. Pude observá-los questionando a falta do ônibus,
demonstrando uma insatisfação por terem que ir a pé para o ponto de encontro dos grupos.
Podemos compreender que as condições oferecidas pelos colaboradores, como a prefeitura,
empresas e outros, ao mesmo tempo que contribuem para melhores condições de
realização da Festa , induzem os grupos a uma condição de dependência que gera uma
expectativa, menos tocante àqueles antigos do Terno, mas que é um motivo de perturbação
aos mais novos, que visam a maiores facilidades para a participação na Festa.
Após longa caminhada alcançamos o local de encontro20. Os grupos foram
chegando e se revezando no salão da Associação, cantando e tocando as músicas com
entusiasmo extremo. O espaço reservado aos grupos é pequeno e, por isso, eles entram um
a um, respeitando-se a ordem de chegada. No momento da entrada do Terno do Mestre
João foi possível perceber como a concentração alterou as expressões. O primeiro ritmo é a
marcha21, que no seu toque cadenciado e solene das caixas, tamborins e demais
instrumentos do Terno, vai preenchendo todos os espaços do salão. Num primeiro
momento não vemos sorrisos, nem ouvimos conversas paralelas. Somente os sons dos
instrumentos ainda moderados e das vozes que a essa hora já são projetadas com especial
vigor. O momento é sagrado: é hora de se apresentar à bandeira de Nossa Senhora do
Rosário. Com uma batida lenta, a música nesse contexto propõe uma aproximação do
homem com sua santa de devoção, como que pedindo licença para acessar a magnitude do
universo sagrado.
O cenário decorado para a ocasião, as pessoas compenetradas dentro e em volta
do salão, as vozes exprimindo todo o sentimento do congadeiro, o som envolvente dos
instrumentos, o clima esplendoroso, enfim, toda essa complexidade do contexto musical
transforma o pulso, invade o corpo e dita as sensações. Passamos então a compartilhar a
20 O local de encontro dos grupos é definido na programação do evento. 21 A marcha é um ritmo característico da performance dos Catopês. Mais detalhes serão mostrados no
capítulo 4.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 69
energia de um mundo simbólico, onde a música determina muito mais que a experiência
física da performance.
O clima traz à pele certa descrição de Arroyo:
Na audiência, sentia o som entrar pelo corpo, fazendo-o vibrar na superfície e nas entranhas. O cabelo ganhava vida e o coração, estômago e intestinos eram sentidos de forma pouco usual. Os batidos pareciam ficar impressos de tal forma no meu corpo, que mesmo ‘calados’, ouvia e sentia seu pulso insistente (ARROYO, 1999, p. 141) 22.
Após a execução da marcha o Mestre João entoa o viva23:
- Mestre: “Ô que nós festejamos!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva Nossa Senhora do Rosário!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva a São Benedito!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva o Divino Espírito Santo!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva o Mordomo de Nossa Senhora do Rosário!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva o Mordomo de São Benedito!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva o Mordomo do Divino Espírito Santo!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva o nosso Mestre!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva o nosso procurador!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva a nossa união!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva todos que aqui estão!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “E vamos que viva!” - Todos: “Viva!” - Mestre: “Viva os minino bão?” - Todos: “Viva!”
Cantada a primeira música, um sinal do Mestre anuncia o começo de uma nova
batida, o dobrado24. A partir daí os ânimos crescem e se transformam, e o Terno explode
em uma energia circular que penetra os observadores presentes incitando-os a dançar e
bater palmas pronunciando trechos de letra e melodia que invadem o ambiente. Essa reação
por parte do público é compreensível, vez que estão todos, atores e observadores, envoltos
por uma energia de comunhão com o religioso.
Tal sensação também é descrita por Ferreira, citando um momento ritual no
Candombe Uruguaio: “é sentido como uma onda de energia coletiva que atinge o grupo
22 Descrição feita por Margarete Arroyo, ao estudar o Congado de Uberlândia. 23 O viva é uma saudação aos santos e à outras várias pessoas que vão sendo seqüenciadas a desejo do
Mestre. Não contem música nesse momento, apenas a fala do Mestre e o rufo das caixas ao final de cada frase.
24 O dobrado é um ritmo vibrante, característico da performance dos Catopês. Também sobre esse ritmo daremos mais detalhes no capítulo 4.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 70
[que bate] e os que não tocam” (FERREIRA, apud ARROYO, 1999, p. 14)25. Como
afirma Blacking, se uma “[...] música movimenta uma variedade de ouvintes, isso
provavelmente não é por causa de uma forma exterior, mas pelo que a forma significa para
cada ouvinte em termos de experiência humana” (BLACKING, 1995b, p. 52, tradução
nossa)26. Percebemos, assim, que todos ali envolvidos compartilham e/ou compartilharam,
em suas vidas, de experiências em algum momento comuns.
É nesse momento então, que a música e a dança tomam os Catopês, que
submetem sua voz e o seu físico ao esforço extremo. Mais uma vez ficou claro como a
estrutura acústica, ressoando os sons dos variados instrumentos ajuntados à performance da
estrutura simbólica, contribuiu para um momento feliz e de extremo fervor religioso.
Após a apresentação dos grupos segue então a caminhada para o centro da cidade
em direção ao circuito da Festa. O circuito se constitui de duas partes: o núcleo e o circuito
anexo27. Essa divisão foi criada para facilitar o entendimento entre as partes que
demonstram duas diferentes faces da Festa de Agosto. O circuito anexo é composto por
todo o trajeto percorrido pelos grupos, saindo de suas periferias, percorrendo os bairros, até
chegar ao núcleo que é o trajeto determinado pela prefeitura, o centro de todos os
acontecimentos festivos. É no núcleo que se encontram a praça da Matriz e todos os
palcos, barracas e demais eventos da Festa. A divisão estabelecida nos trajetos projeta a
dualidade vivida pelo Congado de Montes Claros, pois o circuito anexo é decidido pelos
próprios Mestres que vão à frente de seus grupos. É no anexo que a cultura congadeira
estabelece um contato com o povo local, com o povo dos bairros que sai às janelas para
aplaudir e cumprimentar os grupos. É nesse circuito também, que eles são prestigiados por
seus reais valores. No circuito anexo, os Mestres experimentam os “velhos tempos” sem
interferências dos colaboradores que, devido às contribuições fornecidas, ditam boa parte
dos acontecimentos. Nesse trajeto a tradição – se pudermos colocar nesses termos – vive
seu momento de independência e se encontra nas mãos da própria cultura.
No núcleo, ao contrário, começam a atuar todas as regras e combinações
estabelecidas pelos “outros donos” da Festa. Nesse circuito estão prescritos os caminhos,
25 FERREIRA, Luis. Cultura e música afrouruguaia: pesquisas recientes. II Reunion de Antropologia del
Mercosur. Montevidéu, 1997. (Momiografado). 26 [...] music moves a variety of listeners, it is probably not because of its outward form but because of what
means to each listener in terms of human experience. 27 A divisão do circuito em duas partes e as definições de núcleo e anexo foram a melhor forma encontrada
de perceber a estrutura montada para o trajeto dos grupos e facilitar o entendimento dos aspectos que configuram cada parte. Dividimos ainda o núcleo em duas partes: núcleo I e núcleo II.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 71
pontos de encontros, horários, e uma enormidade de situações que fogem ao controle dos
líderes dos grupos. Podemos ler na fala de Zé Farias a opinião dos Catopês sobre as
alterações no trajeto dos grupos:
“O mais gratificante pra agente são as pessoas que vão até nós. Num é nós ir até as pessoas. O esquema que eles montaram dentro da praça da Matriz hoje que a gente tem lá, é agente que tá indo até as pessoas. Porque as pessoas que vão lá não estão sendo atraídas não é pelos Catopês. Elas estão sendo atraídas é pelos esquemas de show que eles colocam, pelas barracas de bebida, pelo glamour como agente diz, de chegar lá e ver toda a boniteza e tudo mais. Agente é obrigado a passar por lá. Antigamente quando agente celebrava as coisa sem passar pela praça da Matriz, sem ter aquele panorama todo, as pessoas se sentiam atraídas de ir até a Igreja do Rosário, pra ver os cânticos. Hoje você passa na praça da Matriz você tá vendo que você tá indo lá obrigando as pessoas a te ver (ZÉ FARIAS, 16/08/2003)”.
Assim, podemos afirmar então que o núcleo é uma fôrma que molda as práticas e
ações dos grupos, forçando-os a atuar mascarados na sua própria falta de controle.
Na programação matinal que inclui os Reinados é utilizado o núcleo II, formado
pelo núcleo acrescido de algumas ruas do centro da cidade, ligando a Praça Gonçalves
Chaves, conhecida como Praça do Automóvel Clube de Montes Claros, à Igreja do
Rosário.
Feira de artesanato
Figura 7 – Núcleo I da Festa de Agosto.
Praça de alimentação
Palcos
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 72
FOTO NÚCLEO II
A figura 05 representa o núcleo que é percorrido por todos os grupos, mas a figura
06, demonstra apenas o trajeto feito pelo Mestre João e seu Terno. Corresponde ao trajeto
que ele geralmente utiliza, passível de eventuais alterações, como dito anteriormente.
Por volta das vinte e uma horas chegamos ao núcleo, acompanhados dos outros
grupos. Na travessia acontece uma costumeira salva de palmas enquanto o som do palco
principal anuncia a chegada dos grupos. O locutor enumera em voz alta e estridente o
nome dos líderes e dos grupos pedindo, “palmas para a tradição” e gritando “viva o nosso
folclore”, “vamos preservar a nossa cultura”28. Em seguida, os grupos vão para a Igreja
do Rosário em cujo adro se levanta o mastro de Nossa Senhora do Rosário.
O badalo do sino, acompanhado pelo tradicional “foguetório”, avisa que o
Congado está chegando. Algumas pessoas aguardam na porta da igreja enquanto a grande
maioria, espremida nas ruas curtas, acompanha os grupos. Uma energia renovada toma
conta dos atores, que cantam e dançam com muito mais vigor e dedicação. É a sensação de
estar atingindo o objetivo. As caixas percutem a vontade do congadeiro de estar ali; a
música transparece o estado de realização do congadeiro, que pode ser visto, ouvido e
Figura 8 – Circuito anexo.
Jardim Palmeiras
Centro
28 Essas expressões eram repetidas várias vezes durante a Festa numa tentativa de incentivar o público
presente a prestigiar a Festa e os Grupos.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 73
sentido pela intensidade que atinge a performance musical.
Na porta da igreja os grupos, juntos, expondo todo o seu potencial sonoro, resulta
numa “mistura” de ritmos que, mesmo unidos todos em objetivo específico de devoção à
Senhora do Rosário, os individualiza, pois é um momento onde estão concentrados nos
seus valores de devoção e na performance interna para que o grupo não desande na música.
Como afirma Lucas, citando o ritual congadeiro dos Arturos e Jatobá: “o efeito
decorrente dessa textura – desse tocar simultâneo das guardas sem compartilharem um
mesmo andamento – é impressionante e mágico, [...] (LUCAS, 2002, p. 72)”. A profusão
sonora proporcionada pela batida vibrante dos instrumentos espelha os sentimentos do
congadeiro e estabelece um momento de extrema emoção.
Coletei relatos que retratavam a Festa em anos anteriores, época em que os grupos
chegavam à igreja cada um ao seu tempo, erguiam seus mastros e homenageavam seus
santos sem a presença dos outros grupos: “antigamente toda vez que celebrava os mastros
tinha os grupos por ordem, iam, se apresentavam no pé do mastro e cantavam as músicas
do santo daquele dia” (ZÉ FARIAS, 16/08/2003). A proposta de colocar os grupos juntos
saindo em cortejo para o levantamento do mastro, não é bem vista por todos os
congadeiros. Zé Farias considera que as alterações incentivadas pela Secretaria Municipal
de Cultura, forçando os grupos a andarem juntos em direção ao levantamento do mastro,
são prejudiciais à performance dos grupos: “antes chegávamos com a bandeira
levantávamos o mastro e festejávamos ao redor, agora é aquela confusão com todo mundo
tocando ao mesmo tempo. Isso interfere no canto, no desenvolvimento do batido. O espaço
do grupo ficou limitado”29 .
O mastro vai sendo levantado ao som dos fogos de artifícios, enquanto todos ao
redor começam a entoar uma só música. Nesse momento, mesmo com características
particulares na execução de cada grupo, todos se unem em uma voz única e, aos poucos, os
grupos que estão mais próximos do mastro vão abrindo espaço e cedendo lugar a outros
que também querem devotar a Santa. É o momento culminante do dia. Hora de ligar céu e
terra.
Ecoa um sentimento de respeito mútuo onde todos têm oportunidade de entoar
seu canto ao santo. As forças de todos os grupos estão convergidas e suas atenções
29 Anotações de campo colhidas em novembro do ano de 2003.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 74
direcionadas para a ponta do mastro onde se encontra a bandeira. É sentido, por um
momento, a própria “materialização da fé” externada numa bandeira, na ponta de um
mastro erguido para alcançar o céu, como na entrega de um presente ao santo de devoção.
Para Gomes e Pereira o mastro caracteriza o centro energético da Festa, onde a
dança em torno da bandeira hasteada “recria as reuniões do homem primitivo ao redor do
fogo sagrado em idêntica busca de luz” (GOMES e PEREIRA, 2000b p. 218). É o
momento de pedir forças e de agradecer às graças conseguidas. Ao termino da saudação e
do hasteamento os grupos se dispersam e cada líder vai organizar a volta para casa.
Após esse momento é considerado o fim das atividades dos grupos naquele dia e
seus integrantes estão livres para seguirem seu Mestres para casa, ou irem para a Festa
usufruir das outras atividades. Seu João tem uma preocupação especial com os menores
pela responsabilidade que os pais depositam nele. Mestre João não participou um único dia
das outras atividades da Festa. Sua participação nos festejos durou exatamente o período
em que seu Terno atuou.
O procedimento ocorrido nas noites dos dias 14/08, ocasião do levantamento do
mastro de São Benedito, e 15/08, mastro do Divino Espírito Santo, foi semelhante a nossa
descrição do ocorrido no dia 13/08, ao qual dedicamos nosso relato alterando-se os pontos
de encontro para a condução das bandeiras e considerando, é claro, que cada evento ritual é
único, constituindo-se de regras que estabelecem a “repetição” de fases, mas que sofre a
atuação de valores e fazeres diversificados, o que implica a alteração de sua performance.
Para esse estudo, a descrição das fases rituais ocorridas nas noites dos dias 14 e 15/08 não
necessitou de maiores detalhes. As manhãs dos dias 14, 15 e 16/08 foram ocupadas por um
outro momento ritual: os Reinados.
Os Reinados em Montes Claros se configuram como uma dramatização onde um
Rei e uma Rainha são coroados. Segundo o Mestre João Farias, eles são definidos por
sorteio. O jornal da Festa confirma, dizendo que as crianças são “sorteadas entre as
famílias que normalmente, cumprindo promessas, se inscrevem pleiteando a realização da
festa” (MONTES CLAROS, 2003, p. 3 )30. Não se trata da coroação de reis negros, como
acontece na maioria das festas de Congado. O sorteio é que define aqueles que serão
30 Os reis são também alguns dos patrocinadores do festejo. A presença de pessoas agradecendo à alguma
graça também foi identificada por Bastide: “às vezes a função de festeiro é desempenhada por pessoa que fez promessa de ser, mercê de alguma graça que recebeu da divina Providência” (BASTIDE, 1985, p. 488
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 75
coroados, independentemente da sua cor. Mestre João sempre diz que a maioria se inscreve
por ter alcançado uma graça e, assim, vai retribuir ao santo invocado na promessa. Zé
Farias acrescentou que “antes o sorteio era controlado pela Secretaria de Cultura, mas
com a criação da Associação, o controle voltou para os grupos”31.
Os príncipes e princesas que seguem o cortejo são apenas inscritos, sem
necessidade de sorteio. Ainda segundo Zé Farias, assim como ocorreu com os reis, “houve
um ano que Secretaria de Cultura tentou fazer sorteio mas foi acusada de discriminação
por beneficiar nomes da elite aqui da cidade, aí voltou para os grupos”32. Tanto os reis
quanto os príncipes são crianças.
31 Anotações de campo colhidas em novembro do ano de 2003. 32 Anotações de campo colhidas em novembro do ano de 2003.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 76
O cortejo para o Reinado de Nossa Senhora do Rosário é montado segundo a
seguinte ordem:
Esquema do Cortejo
Figura 9 – Esquema estrutural do Cortejo.
O cortejo parte da Praça do Automóvel Clube de Montes Claros em direção à
Igreja do Rosário. Durante a trajetória do Reinado, a banda militar de música, a corte e o
andor que leva o santo, se mantêm em suas posições enquanto o núcleo da estrutura,
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 77
formado pelos grupos, pode ser invertido à maneira dos seus líderes. Segundo Zé Farias,
“a ordem dos grupos é decidida na hora [do cortejo]”33 por uma ordem do bom senso
estabelecida pelos próprios líderes. “A regra cumpre a tradição, que o grupo do santo vai
mais perto dos Reis. Não importa quem tá lá na frente, importa é quem tá próximo do
rei”34. Apesar da declaração de Zé Farias observei que Mestre João, com seu Terno,
seguiu à frente do Reinado em todos o dias. Tal contradição foi por mim entendida após
observar uma outra declaração do Mestre João onde ele disse: “toda vez sou eu que puxo,
se eu num puxar o reinado num anda”35.
A partir da disposição dos grupos no Reinado e do venerado pelos congadeiros no
ritual festivo, observei uma dupla força simbólica representada pelos reis e o santo de
devoção. A disposição física dos elementos no cortejo coincide com a concentração dos
elementos simbólicos, juntamente com a força que eles representam. Dessa forma, os
grupos buscam estar próximos do Reinado e do andor, os dois elementos simbólicos mais
representativos no cortejo: o andor retrata o lado religioso, enquanto a corte representa o
caráter simbolizador da coroação de reis na tradição ritualística. Na saída do cortejo,
organizando-se uma estrutura de acordo com a reprensentatividade simbólica considerada
segundo a regra tradicional, encontraremos o Esquema Simbólico do Cortejo.
33 Anotações de campo colhidas em novembro do ano de 2003. 34 Anotações de campo colhidas em novembro do ano de 2003. 35 Quando os grupos estão reunidos, se organizando para a saída, há uma grande dispersão em que a maioria
das pessoas está voltada para as fotografias, entrevistas, lanches e bate papos. Assim, é sempre difícil estabelecer uma organização onde todos se posicionem para o início do evento. Nesse instante Mestre João, com o Terno em plena performance, toma posição à frente dos grupos, gerando uma pressão que organiza o reinado para a saída.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 78
Esquema simbólico do Cortejo
Figura 10 – Esquema simbólico do Cortejo.
No desenvolvimento do cortejo os grupos vão alternando suas posições com
“estratégias de passagens ou evoluções”36, que são particulares a cada grupo. As evoluções
desenvolvidas durante o cortejo permitem uma alternância entre eles, dando oportunidade a
todos de estarem com seus reis e santos.
O cortejo percorre o núcleo II em direção à igreja do Rosário, onde é realizada
uma missa em homenagem a todos. Ao chegar na Igreja do Rosário ela é aberta para a
36 São coreografias executadas afim de propiciar a passagem de outros grupos, uma vez que eles caminham
em permanente troca de posições.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 79
entrada do santo e da corte e, em seguida, fechada novamente. Os grupos permanecem do
lado de fora aguardando a permissão que virá com a segunda abertura da Igreja. A atitude
de manter a igreja fechada na chegada dos grupos parece fazer reviver um antigo momento
encontrado facilmente na literatura afro-brasileira, onde os negros só poderiam alcançar a
nave principal das igrejas após a permissão dos seus senhores. Em Montes Claros isso está
ligado diretamente ao padre que celebra a missa, pois relatos demonstram que em outras
ocasiões anteriores os grupos encontraram a igreja aberta esperando a sua chegada37. No
ano de 2003 a missa foi celebrada pelo padre João Alencar da paróquia do bairro São
Norberto. Há alguns anos ele é celebrante das missas matinais da Festa de Agosto nessa
cidade.
Aberta a Igreja, os grupos vão entrando aos poucos, devido ao espaço restrito que
não comporta todos eles. A entrada de alguns grupos é feita em silêncio, caminhando
lentamente enfileirados. O Terno do Mestre João Farias entra ao som das caixas tocando
com todo vigor um dobrado. O Terno mantém a mesma formação na entrada e depois se
espalha pelo salão da Igreja. Lá dentro os grupos entoam uma canção para o santo. Como
no levantamento do Mastro, todos cantam e tocam juntos. Nesse momento a música ganha
novas texturas e sonoridades proporcionadas pela junção de grupos com características de
execução e concepção diversas. Somado à acústica da igreja surgem novos elementos
tímbricos enriquecidos pelas variações vocais que acrescentam alturas variadas dando
aspectos de uma nova música feita em conjunto e harmonizada pela devoção aos santos
padroeiros.
O padre faz as homenagens e celebra a missa com pequenas intervenções musicais
dos próprios grupos. Ao final da missa é hora de sair da Igreja e permitir que os outros
grupos entrem e também celebrem. A saída é feita ao som das caixas entoando primeiro
uma marcha que, em seguida, cede lugar ao dobrado. Os integrantes do Terno do Mestre
João saem de frente para a Igreja. O Mestre considera uma falta de respeito dar as costas
para a santa.
Após a saída dos grupos eles estão, mais uma vez, livres das obrigações rituais e
37 Essa informação foi dada por Lucélia Pereira, uma congadeira do Terno de Catopês do Mestre João do
Lino Mar de Bocaiúva, cidade próxima à Montes Claros. É costume o seu Terno participar das Festas de Agosto em Montes Claros.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 80
vão organizar sua partida para o ponto de encontro dos grupos, onde acontecerá um almoço
coletivo38.
Consoante ao ocorrido nos ritos de levantamento do mastro, os Reinados que
aconteceram nas manhãs dos dias 15 e 16 de agosto tiveram características similares no
aspecto ritual. Todos os acontecimentos são fragmentos de um todo dinâmico que está
sujeito a alterações momentâneas que não implicam uma descaracterização do rito mas, ao
contrário, são esperadas como sendo parte intrínseca dele. Assim, momentos diferentes
juntamente com aqueles já previstos compuseram os outros dias do ritual. Pela semelhança
na estrutura acreditamos que a descrição completa dos outros dias não é necessariamente
relevante para esse trabalho, portanto os acontecimentos desses dias não são descritos neste
estudo.
No dia 17/08, com o intuito de entregar as bandeiras aos mordomos do ano
seguinte, aconteceu no período da tarde, uma procissão com a presença de todos os
Reinados e grupos convidados. A tradicional procissão, que além do Congado contou com
a presença de um grande número de pessoas, seguiu pelo núcleo II até a Igreja do Rosário.
Nas palavras de Zé Farias, entregar a bandeira para os mordomos do ano seguinte “é uma
maneira de renovar a força pro outro ano, de manter a fé pro ano que vem”39.
Assim, completa-se o período ritual num movimento de renovação, de pedido de
força, no desejo de um compromisso renovado. A música do Congado de Montes Claros
ecoou nas ruas da cidade se despedindo da Festa de 2003.
Durante esse período de vivência e análise do ritual congadeiro, observei que o
complexo universo dessa manifestação se alimenta de componentes que, de formas
diversas, constroem a face musical do Congado. No Terno de Catopês do Mestre João
Farias a música, mais que um simples componente, é a base de toda a performance do
grupo. Através do compartilhamento dos significados dessa manifestação, os integrantes
vão se ajustando à imagem musical do Terno e somando-se às suas características sonoras.
Interagindo ou se distanciando das alterações sofridas pela estrutura ritual, o Terno tem
renovado seu compromisso com a tradição, sustentando os seus aspectos característicos.
38 Esse ponto de encontro é determinado a cada ano. Segundo Bastide (1985) o banquete, a distribuição de
comida é o foco da parte profana das festas populares. O almoço é financiado pela Prefeitura Municipal de Montes Claros.
39 Anotações de campo colhidas em dezembro do ano de 2003.
Capítulo 3 – O contexto congadeiro e sua estrutura ritual 81
Como a música compõe o homem e o homem compõe a música, todas a ações
envolvendo os sentimentos de religiosidade, afeto e/ou entretenimento são refletidos na
performance, constituindo um espelho sonoro que transmite aos ouvintes de forma
singular, a identidade do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João
Farias.
Neste capítulo, em vez de um processo comparativo entre grupos para identificar
aspectos identitários do Terno do Mestre João, busquei apontar – a partir de uma visão de
interação e conflito no período ritualístico da Festa - características intrínsecas ao Terno,
reconhecendo que seus elementos, comparados ou não, estabelecem uma imagem do
comportamento social e musical desse grupo.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 82
CAPÍTULO 4
I D E N T I D A D E: O S E L E M E N T O S M U S I C A I S
4.1. DISCUTINDO A IDENTIDADE
Discutir atualmente um tema como o da identidade requer uma ampla visão dos
efeitos causados pelas construções da pós-modernidade. A responsabilidade em situar,
nesse universo da fragmentação pós-moderna, uma manifestação como a dos Catopês, que
traz em seu corpo características de representação ritualística e religiosa tão diversas, gera
a necessidade de olhares múltiplos capazes de capturar os principais conceitos formadores
da identidade desse grupo, e ainda a de clarear e reconhecer sua função, encaixando-o no
universo que o circunda.
Delimitar um espaço de atuação para esse grupo é permitir que se estabeleça um
conjunto de interligações com os mais diversos mundos conectados com o mesmo centro:
o Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias. A partir daí
poderemos delinear, como vimos fazendo no decorrer desse estudo, um raio de atuação
desse grupo, estruturando dentro desse espaço os processos construtores de sua identidade
e incluindo aí sua identidade musical.
Nesse sentido, entendendo que “[...] uma obra musical divorciada do seu contexto
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 83
não pode ser inteiramente entendida (CARDOSO, 2001, p. 29)”, objetivamos compreender
quais os principais aspectos construtores da identidade musical do Terno do Mestre João
Farias. Essa abordagem inclui a análise de momentos musicais e extramusicais formados
por situações que envolvem comportamentos e conceitos, além dos fatos que foram
fundamentais na moldagem dessa imagem “musical” do grupo.
Nos mesmos termos, em concordância com Alan Merriam, sabemos que a “[...]
música é um meio de entender pessoas e comportamentos e como tal é uma ferramenta
valiosa na análise da cultura e sociedade”1 (MERRIAM, 1964, p. 13, tradução nossa.).
Mantle Hood reforça essa idéia afirmando que um “estudo significativo de música, dança,
ou teatro não pode ser isolado de seu contexto sócio-cultural e da escala de valores nele
incluída”2 (HOOD, 1971, p. 10, tradução nossa). Sendo assim, utilizando a música e a
sociedade como ferramentas para uma compreensão maior, estaremos, ao mesmo tempo,
estudando os comportamentos sociais para entendermos a musica e vice-versa.
Quanto ao conceito de identidade, ela pode, de uma forma geral, ser entendida
como “uma coalescência de estilos, de conduta, hábitos de pensamento e padrões de
avaliação mutuamente correspondentes [...]” (APPIAH, 1997, p. 242-243). Entendendo
esses acontecimentos como um conjunto de processos que incluem e afetam a prática
musical envolvendo todos os efeitos provenientes do comportamento humano, para esse
estudo, definiremos identidade musical como o conjunto de acontecimentos “musicais”
que, caracterizado pela performance do grupo e pelo resultado sonoro, representa a síntese
dos elementos musicais essenciais componentes da música do Terno de Catopês do Mestre
João Farias.
Antes de aprofundarmos no discurso eminentemente musical, detalhando os
aspectos construtores da identidade musical do grupo, abriremos espaço para tratarmos de
um símbolo de fundamental importância e, em todos os sentidos, concernente ao Terno.
Falaremos do Mestre João Farias, demonstrando seu papel relevante dentro do contexto
congadeiro, constituindo-se como a principal ferramenta na formação dessa identidade
musical do grupo.
Ativo como integrante do Terno desde os oito anos de idade, Mestre João, que no
1 “[…] music is a means of understanding people and behavior and as such is a valuable tool in the analysis
of culture and society.” 2 “[...] significant study of music or dance or theater cannot be isolated from its socio-cultural context and
scale of values it implies.”
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 84
ano de 2003 completou sessenta anos, cresceu como tocador de tamborim3. Aos 18 anos
compartilhava o comando do grupo nas ausências ocasionais do então Mestre Zé
Aristides4. Devido ao agravamento da saúde do Mestre, o Terno foi repassado para outros
dois integrantes: Marcos (o Marquim) e Francisco (o Chico de Júlia), tendo esse último
assumido o comando do grupo. Marquim, então, após um desentendimento com Chico de
Júlia, convidou João Farias para assumirem juntos o comando do Terno. Essa parceria
durou cerca de três anos e após vários desentendimentos ocasionados pela dupla liderança,
foi realizada uma eleição entre os integrantes, tendo como candidatos a Mestre João Farias
e Marquim. Os integrantes escolheram João Farias para chefiar o grupo e assim optaram
por uma liderança singular, que teria como objetivo primeiro a sustentação dos valores
tradicionais.
Na tradição congadeira, a exemplo das culturas orientais, a escolha do próximo
líder de um grupo se dá, geralmente, pelo Mestre atual, que captura entre os membros de
seu grupo aquele capaz de dar continuidade às práticas, aos valores da manifestação, e que
vai garantir sobrevivência ao que vem sendo mantido pela tradição. Essa mudança de
estágio de um integrante comum para uma posição de liderança é descrita por Turner
(1974), como um “rito de passagem” onde o indivíduo promovido a um posto superior
passa a desfrutar de regalias e a compartilhar valores correspondentes à sua função. Tal
afirmação pretende esclarecer que ao assumir o devido posto, Mestre João Farias assumiu
também, por responsabilidade, os caminhos dessa tradição. Por vezes a escolha de um
mestre privilegiou membros da mesma família, mantendo os ensinamentos dentro de um
mesmo ciclo genealógico de conhecimento. No caso do Mestre João Farias a liderança foi
conseguida e mantida por seu esforço e determinação e outorgada pelos integrantes de seu
grupo. Segundo Mestre João, na época em que realizaram a eleição, a idéia do
“companheiro” Marquim era acabar com o Terno, mas ele revidou a idéia: “eu fui e falei:
não! Deus me ajuda que eu levanto [o Terno]” (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003).
Por mais de uma vez perguntei a Seu João de onde ele retirava força para suprir os
desgostos e vencer as dificuldades. Ele, com segurança, sempre respondia a mesma frase,
já apresentada anteriormente: “é a divução que me dá força”.
3 Tocador de tamborim é o termo usado para o executante do instrumento tamborim. 4 Segundo o Mestre João, em entrevista gravada dia 29/06/2003, Zé Aristides foi primeiramente procurador
do Terno, assumindo o grupo na ocasião do afastamento do Mestre Sebastião Gama.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 85
Vinícius5, um dos veteranos do Terno, disse acreditar que uma promessa feita
pelo Mestre a Nossa Senhora do Rosário seria o motivo de tanta persistência: “eu acredito
que seja uma promessa, uma coisa que ele tem que cumprir. Eu já vi Seu João chorar até
por palavras que a pessoa fala com ele. O que faz ele mover mesmo assim, é a fé e a
devoção que ele tem” (VINÍCIUS, 08/2003).
Como centro receptivo de toda a complexidade da estrutura do seu Terno, Mestre
João é o principal veículo no qual a mudança e a permanência transitam. Sua posição
frente às mudanças gera a aprovação ou a desaprovação necessárias para que seja efetuada
uma determinada alteração. Sua força o inclui no contexto congadeiro com papel de
extrema relevância, transcendendo os limites de seu grupo, como verificado nas palavras
de Vinícius: “[...] sendo franco, eu acho que sem seu João, eu num sei se talvez se
aconteceria essas festa não. Porque é de muitos anos aí, sempre mais sempre mesmo,
quem puxa os Reinado é Seu João” (VINÍCIUS, 15/08/2003).
Sendo o Mestre congadeiro o principal interlocutor de sua manifestação, os
valores tradicionais defendidos por ele compõem uma linha discursiva determinante na
formação das identidades – social e musical - de seu grupo, uma vez que essa dinâmica
acarreta “[...] uma espécie de negociação consciente ou não do discurso de identidade,
dependendo do sentido do próprio em relação a algum outro” (BÉHAGUE, 1999, p. 53).
Em termos gerais, Mestre João é o principal construtor da identidade musical do
Terno, por estabelecer-se como receptor e disseminador de conceitos e significados, assim
como articulador dos elementos do seu Terno com os outros grupos dos Congado.
Para facilitar a compreensão dos elementos e suas funções componentes da
musica desse grupo congadeiro, os dissertaremos em etapas, quais sejam: o repertório, os
instrumentos, o ritmo, o canto e a transmissão musical.
5 Marcus Vinícius Ferreira da Silva tem 36 anos de idade e 17 anos de Terno.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 86
4.2. OS ELEMENTOS MUSICAIS
4.2.1. O REPERTÓRIO
Repleto de significados, o repertório é um dispositivo condutor no trâmite das
fases rituais do Terno. É através dos cantos, com suas respectivas letras, ou dos padrões
rítmicos convenientes a cada situação, que as fases rituais são inauguradas. Mas cada
momento musical, com seu complexo conjunto de significados, não terá valor se
desconectado do seu contexto ou proferido por alguém desprovido de autoridade para isso.
Assim, a totalidade que articula e reúne indivíduo e momento ideais, é a base para o
acontecimento musical no ritual do Congado. Dentro do contexto congadeiro,
determinadas expressões verbais, gestos, assim como cantos e padrões rítmicos constituem
uma linha discursiva e ganham força surpreendente se executados pela pessoa certa em
hora apropriada. Lühning, afirma que “proferir palavras e entoar cantos com a intenção de
alcançar e conseguir algo, [...] são elementos muito fortes na cultura africana e se mantêm
nas culturas afro-americana e afro-brasileira [...]” (LÜHNING, 2001, p. 26). A respeito da
palavra expressa nos cantos ou em sinais de alerta6 Martins assegura que “nos circuitos de
linguagem dos Congados, a palavra adquire uma ressonância singular, investindo e
inscrevendo o sujeito que a manifesta ou a quem se dirige em um ciclo de expressões e de
poder” (MARTINS, 1997, p.146). Dessa forma, podemos considerar numa ordem de
importância que o Mestre, como detentor do poder de liderança a ele conferido, é o centro
do universo dos valores e significados, uma vez que a ele é dado o poder de significar e
mensurar os comportamentos do grupo, assim como estabelecer sentido ao ato ritual por
ser ele o veiculo de validação para as execuções do Terno. Essas definições relativas a esse
poder de significar os cantos são pertinentes vez que é o Mestre que articula todo o
repertório e determina as ações musicais do grupo.
No repertório, cada canto tem uma função determinada pela tradição. Assim, o
Terno dispõe de cantos para abertura e encerramento de atividades, para o pedido de 6 Os sinais de alerta são representações verbais proferidas pelo Mestre ou por aquele que ocasionalmente o
substituir. Eles são impregnados de significados de comando como parar (aúi), começar uma música ou promover uma alteração no ritmo (oialá – oiatú), ou mesmo um chamado de atenção (ô cuêi) para que se restabeleça a concentração em alguma desordem momentânea.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 87
licença, levantamento e descida de mastros, saída do Reinado, para entrada e saída dos
locais sagrados (saudação da Igreja), canto de rua (entretenimento durante o desfile), para
agradecer a mesa e para a despedida. Como constatou Lucas (2002) no Congado dos
Arturos, também no Terno do Mestre João determinados momentos dependem dos cantos
tradicionais com seus devidos toques7, tendo em algumas situações rituais sempre a
execução de um mesmo canto. Tal situação pode ser ilustrada com o canto “Deus nos
Salve Casa Santa”, que segundo Seu João é a saudação da Igreja e deve ser cantada todos
os anos nesse momento ritual8 (ver transcrição 1).
No universo congadeiro de Montes Claros, um mesmo canto pode ser executado
por vários grupos. É bem comum o trânsito de canções entre os grupos onde cantos das
Marujadas ou dos Caboclinhos sejam, por exemplo, entoados pelos Catopês. A adaptação
se dará se a canção se encaixar no ritmo. Os temas cantados por Mestre João e seu Terno
circulam em torno de assuntos como religiosidade, natureza, e acontecimentos cotidianos
como amores e desamores, ou situações engraçadas gerando divertimento9.
Quanto aos elementos triviais do dia-a-dia, componentes das letras, Zé Farias
declara:
[...] são músicas de diversão mesmo, são músicas pra distrair. Parece alguma coisa que foi tirada da vivência deles [os Catopês antigos] pra tá ali celebrando e cantando como se fosse uma piada, aqueles ditados popular que o pessoal canta ali e tal. São mais história da vida mesmo que eles tão cantando (ZÉ FARIAS, 16/08/2003).
Já o repertório que é destinado aos santos parece necessitar de uma atenção
especial:
Na hora que fala do santo, na hora que canta a música do santo que tá celebrando, aí que toca mais na alma do Catopê. Que Catopê que é Catopê mesmo sente isso. Quando volta pro santo é ali que toca um pouco na alma, o pessoal que tem mesmo a ligação [...] sente [...] a fé. Assim, sente apegado, sente aquela devoção né.
7 Toque é a determinação usada pelos Catopês para se referirem ao ritmo executado. 8 Segundo Mestre João, Mestre Zanza, como presidente da Associação, tem tentado mudar a música de
saudação da igreja, uma vez que todos os Ternos cantam a mesma música nessa fase ritual. A proposta é que cada grupo cante uma música diferente para não haver repetição dos cânticos. Mestre João revidou a proposta argumentando que pessoas tradicionais vão ano a ano para prestigiar o mesmo ritual. Havendo alterações nos cânticos, ele será cobrado por essas modificações.
9 Arroyo (1999) em seu estudo sobre dois Ternos de Congado em Uberlândia, faz referência ao processo de criação dos congadeiros apontando que situações de divertimento e geralmente inusitadas fornecem elementos ricos para composições das canções dos grupos.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 88
Tá cantando ele acha que tá... a gente se sente plenamente ligado ao santo, sente que ali tem uma força né, suprema ali agindo (ZÉ FARIAS, 16/08/2003).
Algumas canções muitas vezes não se enquadram em qualquer das duas situações,
de divertimento ou religiosidade. São cantos para situações formais de agradecimento, e
pedido de licença. Cantos que homenageiam os reis ou os locais sagrados como a igreja ou
uma casa visitada. Os assuntos desses cantos estão presentes na estrutura ritual. Sendo
assim, são constituintes da religiosidade do congadeiro, mas como não trazem nas letras
seus santos devotados, esses cantos não são considerados músicas para os santos.
Observei, em entrevistas com Zé Farias, com Mestre João e em conversas com
outros integrantes do grupo, que há muito não se acrescentam músicas ao repertório do
Terno10. Ninguém no grupo compõe, estando o repertório com sua sobrevivência vinculada
principalmente à memória dos seus agentes que tentam manter as músicas já presentes11.
Essas músicas componentes do repertório atual foram repassadas pelos mestres anteriores
ou capturadas em encontros entre grupos, onde as letras e melodias sobrevoam a atmosfera
congadeira e se espalham entre os grupos, numa espécie de simbiose, proporcionando a
absorção das músicas de um grupo por outro grupo. Após suas adaptações - como citado
anteriormente – essas músicas se integram ao repertório oficial12.
No Terno de Catopês do Mestre João Farias o canto está sempre acompanhado
dos instrumentos. Não encontramos aqui nenhuma situação onde uma melodia ou letra –
salvo os sinais de alerta - tenha sido expressada sem a presença dos instrumentos do
grupo13.
10 O processo de criação e renovação de repertório nas culturas afro-brasileiras tradicionais parece sofrer um
momento de degeneração. Lühning (2001), informa que tal fenômeno acontece também nos Candomblés de Salvador, onde o processo de criação cessou, provocando uma diminuição gradativa no repertório dessa manifestação.
11 Segundo Zé Farias, em entrevista gravada em (16/08/2003), há algum tempo atrás (não precisou o tempo) Mestre João compôs uma música que foi interpretada pelo grupo. Mas que há tempos a música não é cantada. Essa foi a única ocorrência constando composição no grupo.
12 Quanto a essa troca musical entre grupos, Arroyo (1999) e Lucas (2002) trazem contribuições importantes. Lühning (2001) também aponta que o candomblé em Salvador tem mantido seus cantos através de empréstimos de repertórios entre as diversas “nações” de candomblé.
13 Essa característica contribui para a particularização dos grupos de Catopês de Montes Claros. Em outras regiões são bem comuns, em manifestações do Congado, situações envolvendo o canto sem acompanhamento dos instrumentos, a exemplo das embaixadas, que são oratórias proferidas publicamente com um discurso marcadamente melódico, como citado em: Brandão (1985b), Gomes & Pereira (2000b) e Lucas (2002); ou ainda em situações, como encontrado em Arroyo (1999), onde os cantos recebem arranjos e a forma musical do grupo congadeiro ganha contrastes com alternância de vozes com acompanhamento instrumental e a capela.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 89
A execução das músicas segue a seqüência solo/coro onde o canto é apresentado
pelo Mestre (solo) e o grupo replica em coro (resposta). Para a compreensão da forma do
canto elaboramos o seguinte quadro:
Emissor Receptor
S – solo C – coro
Melodia m – mesma melodia do solo D – melodia diferente do solo
Letra l – mesma letra do solo D – letra diferente do solo
Figura 11 - Esquema explicativo da estrutura das canções do Terno.
Smd – significa que o solo manteve a melodia, mas alterou a letra.
Assim, as formas de exposição dos cantos encontradas aqui podem ser
representadas no seguinte grupo de categorias:
1 – S/C; S/C... Solo/coro; solo/coro...
2 – S/C; Sdd/C Solo/coro; solo com melodia e letra diferentes do tema solo/coro.
3 – S/C; Smd/C Solo/coro; solo com mesma melodia mas com letra diferente.
4 – S/Cdd; Sdd/Cdd Solo/coro com letra e melodia diferentes do solo; solo com melodia e letra diferente do tema solo, e coro com melodia e letra diferentes do tema solo.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 90
Vejamos a canção “Quando o galo canta”, que é apresentada na forma S/C;
Smd/C:
“Quando o galo canta” – Ritmo: marcha 14
Solo:
“Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Viva Nossa Senhora e os seus anjinho. Viva Nossa Senhora com os seus anjinho”. Coro:
“Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Viva Nossa Senhora e os seus anjinho. Viva Nossa Senhora com os seus anjinho”.
Solo:
“Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Viva São Benedito e os seus anjinho. Viva São Benedito com os seus anjinho. Coro:
“Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Quando o galo canta, lá no seu cantinho. Viva Nossa Senhora e os seus anjinho. Viva Nossa Senhora com os seus anjinho”.
Os casos onde o solista entoa um tema e o coro responde igual (S/C; S/C...),
ocorreram em um maior número de cantos, enquanto as situações, S/Cdd; Sdd/Cdd, onde
solo e coro variam nas melodias e letras, foram as menos encontradas.
O coro tem sempre letra e melodia definidas, enquanto o solo pode variar tanto na
melodia quanto na letra. O solo, no caso Mestre João, tem, em determinadas músicas,
espaço para improvisações onde são acrescentados versos. A quantidade e locais desses
versos são determinados por ele em cada interpretação, o que torna a execução do canto
única e alimenta os aspectos identitários do grupo, uma vez que estabelece algo de caráter
particular.
4.2.2. OS INSTRUMENTOS
Componentes fundamentais na estrutura ritual e compondo a sonoridade do Terno
de Catopês, os instrumentos, através dos seus variados timbres, são os principais
comunicadores da musicalidade congadeira. Presentes no mito de aparição de Nossa
Senhora do Rosário15 no mar, onde os negros, de posse de seus instrumentos, tocando e
dançando o Congado, conduziram a santa ao altar, os instrumentos se estabeleceram como
14 Transcrição - 9. 15 Sobre o mito de aparição de Nossa Senhora do Rosário recomendamos: Brandão (1985a); Martins (1997);
Arroyo (1999); Gomes & Pereira (2000b), Lucas (2002).
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 91
primordiais nessa manifestação.
No Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias, os
instrumentos seguem uma hierarquia16 predefinida pela tradição. Essa hierarquia, mais do
que o posicionamento geográfico dos instrumentos, ditando se eles permanecem mais à
frente ou atrás no grupo, reflete na representação social do sujeito dentro do grupo. Dessa
forma, os integrantes muitas vezes almejam um determinado instrumento, no desejo de
definirem sua posição/função no Terno.
A função do congadeiro no Terno pode representar destaque, como é o caso do
caixeiro. Indiscutivelmente, ele é o executante mais importante do Terno durante a
performance do grupo. Mestre João confirma: “O caxêro é o primeiro, o que nós precisa
primeiro é o caxêro. Se o caxêro for ruim num tem musica. Alembra de alguma mas...
agora, se o caxêro for um caxêro bão, a caixa traz toda as musica. Vem na idéia na hora.
O tom da caixa aprica a música” (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003).
Para tratarmos dos instrumentos, os descreveremos segundo a ordem de
importância enumerada pelos congadeiros: caixa, chama, tamborim, pandeiro e chocalho.
Caixa – como o instrumento mais representativo do Terno, ela é indispensável na
música dos Catopês. O som extraído desse instrumento pelo caixeiro conduz toda a
entoação dos cantos, assim como a velocidade e o comportamento musical do grupo,
indicando ainda, durante o desfile, a inserção de repiques ou paradas.
As caixas são em número de três no Terno do Mestre João e consistem em
tambores cilíndricos de lata. São membranofones de membrana dupla com uma esteira ao
fundo para fazer vibrar o som. Essa esteira é constituída por unhas de galo trespassadas por
fios de náilon. Sua membrana é proveniente do coro de bode. Suas medidas variam
respectivamente da maior para a menor em 30, 27 e 25 de diâmetro por 50, 47, 45 de altura
(FIG. 12). A caixa é percutida com duas baquetas de madeira não recobertas nas pontas.
Ela é conduzida dependurada ao pescoço por uma alça de tecido, borracha, couro ou corda.
16 Kazadi Wa Mukuna (2000), traz referência sobre uma hierarquização dos instrumentos africanos, fato que
pode explicar essa organização dos instrumentos segundo importância de execução.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 92
Figura 12 – Caixas do terno do Mestre João.
As três caixas presentes no Terno são pré-fabricadas, de metal. É bem recente a
inserção de instrumentos industrializados no grupo. O interessante é observar a
substituição das caixas que antigamente eram de madeira, por outras industrializadas, logo
esses instrumentos que representam a ponta entre os instrumentos e que,
consequentemente, são os mais importantes na manutenção dos aspectos tradicionais
timbrísticos e rítmicos componentes da identidade musical do grupo. Talvez por isso,
durante os ensaios e apresentações, vários debates tenham surgido entre os integrantes
sobre essas caixas. Zé Farias, assim como Vinícius e Wagner, integrantes que por vezes
ocuparam a posição de caixeiros, queixavam junto ao Mestre João sobre o timbre e o
tamanho das caixas industrializadas. Entre as justificativas, eles apresentavam as
dificuldades físicas na sua condução, uma vez que elas geravam desconforto dificultando a
execução. As industrializadas tinham tamanho superior às de madeira possuídas
anteriormente pelo Terno. Outro argumento apresentado pelos congadeiros, e pelo que
pude observar mais convincente ao Seu João, foi quanto ao timbre ensurdecedor do
instrumento. Sobre esse timbre Zé farias argumenta: “o timbre dela não parece com
Catopê, ela tampa a voz da gente e bagunça o som do Terno”17 (ZÉ FARIAS, 08/2003).
O desejo de um retorno aos antigos timbres, buscando recuperar um dos aspectos
componentes da identidade do grupo através de sua paisagem sonora, demonstra a
17 Anotações de campo colhidas em agosto de 2003.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 93
necessidade – num movimento de retrocesso - de recuperar e fortalecer os elementos
tradicionais e estancar o processo de mudança que os perturba.
A discussão sobre esse instrumento – a caixa – tem servido para ampliar sua
relação com as transformações ocorridas no Terno, transformações essas que têm afetado
as bases da estrutura tradicional. Entendemos, como apontado por Gomes & Pereira
(2000), que a tradição é um processo dialético onde preservação e mudança são elementos
básicos para a existência da própria tradição. Porém, é necessário que se observe a
velocidade da mudança, para que ela não seja tão abrupta, a ponto de produzir uma ruptura
com seqüelas à manifestação.
A substituição da caixa de madeira por uma industrializada, pelo que pudemos
apurar, se deu por questões financeiras. O valor da caixa de metal, por ser feita em série, é
inferior ao da caixa de madeira, que tem seu valor elevado por ser artesanal18. Outra
questão – talvez a principal - impulsionadora da mudança das caixas foi a permanente
“competição” entre grupos. A competição tem sido catalisadora no processo de mudança,
trazendo divergências entre opiniões internas aos grupos, embora venha sendo mecanismo
essencial na manutenção de uma unidade entre os grupos em Montes Claros, o que os
mantém dentro de uma mesma categoria de significação. Isso impede, por exemplo, que
um grupo sofra transformações radicais, a ponto de se distanciar do outro quanto às suas
características.
Durante a Festa de Agosto em Montes Claros, a presença de grupos de outras
cidades, como o Moçambique dos Arturos de Contagem - MG, tem servido para mensurar
o “poder de fogo” musical dos Ternos montesclarenses. Os Ternos da cidade sentem a
necessidade de introduzir mudanças na sua instrumentação para não se sentirem
desmerecidos musicalmente. Mestre João se mostra consciente dos acontecimentos
mediante a presença desses outros grupos. Ele observa as transformações ocorridas nos
instrumentos – como a inserção dos industrializados e o aumento do número de caixas que
era uma e passou a ser três - como algo que é diferente do tradicional. Mas, ao mesmo
tempo, Mestre João reconhece a necessidade de acompanhar a evolução19 dos outros
grupos:
18 Com exceção da caixa e do chocalho, Mestre João fabrica todos os outros instrumentos do Terno. 19 Mestre João proferiu essa expressão várias vezes em nossas conversas para justificar os processos de
mudanças ocorridos no Terno.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 94
“Teve umas mudança como se diz, que eles fala mudança radical né? Que mudança de instrumento tá tudo mudado. Depois que vêi esses Terno de fora aqui que caixa passou a ser caixa de tarraxa. A caixa era uma caixa. Se tivesse cem outros instrumento, a caixa era uma. Mas uma só que é o certo, que quando ele[Mestre Zanza] pegou o Terno dele, lá também era uma caixa só[...]. Ele [Mestre Zanza] achou melhor subir mais o tom [o volume] né. Os outro Terno de fora trouxe pra gente uma harmonia muito apertada. Quando os outro Terno de fora chega perto do nosso, se os Terno nosso num rebolar, some”20 (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003).
Ainda para demonstrar como ocorrem as alterações na busca de uma unidade com
o Terno do Mestre Zanza, uma vez que esse Mestre foi quem primeiro introduziu as
mudanças, Mestre João relembrou um pedido de Zanza para que ele mudasse sua bandeira,
porque ele já havia feito as alterações:
- Mestre Zanza, segundo Seu João: Zanza Falou: Oh João, cê faz uma mudançazinha aí pra compor senão fica até sem ritmo pra mim. - Mestre João: E ficava mesmo, cê já pensou ter uma pessoa desarrumada no meio de uma arrumação? Eu fui e criei minha bandeira mais ou meno igual a dele lá (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003).
Dessa forma, entendemos que acompanhar a evolução dos outros grupos é uma
maneira de se manter arrumado e impor o respeito do Terno frente aos outros. Assim, a
possibilidade de mudança está diretamente ligada à valorização da manifestação. Se a
alteração trouxer respeito e consideração para o grupo, ela terá mais chance de ser
implantada, principalmente numa linha comparativa, onde a concorrência mantém os
grupos num mesmo nível de mudança e impede que uns se sintam menos valorizados em
relação aos outros.
A caixa tem um timbre peculiar no terno que, unido à técnica de seu executante,
ganha destaque no conjunto dos instrumentos. Seu João me aconselhou, dizendo que para
entender o que a caixa representa, eu deveria me afastar do Terno e escutar o som: “a caixa
ela toca sozinha, ela num mistura com os outro instrumento não” (MESTRE JOÃO
FARIAS, 29/06/2003). Para Zé Farias “a caixa é como se fosse o pivô dos instrumentos. A
Caixa chama os instrumentos todos, se a caixa não estiver presente não tem como tocar o
20 Mestre João se refere aqui à grande profusão sonora dos grupos convidados. Para se ter uma idéia, Lucas
(2002), traz as dimensões das caixas do Arturos – nosso exemplo citado – onde uma de suas caixas (elas são em número de três) mede 54 cm de diâmetro por 60 cm de comprimento.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 95
Catopê . Os instrumento não vai ter aquela sintonia né?” (ZÉ FARIAS, 14/10/2003).
Chama – Como segundo instrumento na hierarquia, o Chama desempenha a
função de sustentar o pulso. Com batidas pontuais e alguns repiques, ele sustenta os pontos
de marcação, que servem de referência para o preenchimento das batidas dos outros
instrumentos. Esse instrumento é característico dos Catopês de Montes Claros. É um
instrumento membranofônico, de madeira, na forma quadrada. Suas duplas membranas são
unidas à madeira por pregos (FIG 13). São, a exemplo da caixa, também de couro de bode.
Suas dimensões são de aproximadamente 33x35cm, com 12 cm de aro. O Chama é
percutido com uma baqueta espessa recoberta com tecido na ponta. Ele contém uma alça
de couro pregada à madeira, por onde é segurado. Como não tem tarraxas e nem um
sistema de cordas para a afinação, esticar bem o couro na fabricação é fundamental. Para
afinar então, os Catopês armam uma fogueira e passam sutilmente o couro sobre o fogo
para que, através do calor, ele se estique.
Ele é o instrumento mais grave do Terno. Segundo os integrantes, leva esse nome
– Chama – pela capacidade de propagação do seu som, que atinge longas distâncias,
chamando o povo para vir prestigiar a manifestação. Essa observação dos integrantes,
mesmo que gerada apenas por uma percepção auditiva, é convergente com os estudos
sônicos da física, onde na propagação dos sons graves se verifica que as ondas de baixa
freqüência alcançam distâncias maiores que as ondas mais altas.
Não encontramos na literatura sobre o Congado qualquer referência que
correspondesse às características desse instrumento. A única indicação de um instrumento
com o nome Chama é indicado por Lucas (2002), citando o Candombe dos Arturos e
Jatobá, porém a autora traz um instrumento com forma muito diversa à descrita aqui, não
se assemelhando em nada ao Chama encontrado no Terno do Mestre João Farias21.
A fabricação do Chama fica por conta do Mestre João, que também recebe
encomenda dos outros Ternos. Há um cuidado todo especial no tratamento do couro que
deve agüentar as fortes batidas do executante nos momentos rituais. A madeira escolhida é
o cedro por ser uma madeira macia, o que a impede de lascar com os pregos.
21 Segundo Lucas (2002 p. 89) o Chama no Candombe dos Arturos e Jatobá tem forma de cone com apenas
uma membrana. Ele tem um “correião” de couro que o circunda onde estão presas pequenas tiras de couro. Ele também é conhecido no Candombe como Jeremia.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 96
No Terno, a exemplo do que ocorreu com a Caixa, o número de Chamas alterou.
Mestre João, relembrando a antiga estrutura do grupo, comenta que “o Chama era um.
Quando ele [Zanza] pôs quatro Chama, eu pus dois, ele passou pra seis, eu pulei pra
quatro. Mais um só que é o certo. Que quando ele pegou o Terno dele [...] era um Chama
só” (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003). A opção de Seu João por aumentar o número
de Chamas, mas sempre em quantidade menor, demonstra o desejo de estabelecer a
unidade que já mencionamos anteriormente, porém com ressalvas quanto ao processo de
descaracterização tão acentuada e, ainda, a constituição de mais um item de diferenciação
no resultado musical do seu grupo frente ao do Mestre Zanza.
Figura 13 – Chama do Terno do Mestre João.
Tamborim – O tamborim – geralmente presente na literatura como tamboril -
talvez seja, junto com o pandeiro, o mais comum instrumento nos grupos de Congado.
Sempre pronunciado como tamburim dentro do Terno do Mestre João, ele tem a função da
complementaridade, onde seu executante observa os outros instrumentos e cobre uma
determinada área com batidas colocadas. Membranofônico de membrana dupla, ele se
assemelha na construção - mas em tamanho menor - ao Chama. Sua membrana, também
feita de couro de bode, é pregada a madeira. Sua forma pode variar bastante, sendo
retangular, redondo ou sextavado, e suas dimensões variam entre 20x25 cm, com 3 cm de
aro, até 23x25 cm com 4 cm de aro. Essas medidas são apenas referenciais, estando
sujeitas a alterações de acordo com o modelo escolhido. O tamborim é percutido com uma
baqueta não recoberta na ponta, com dimensões próximas a 2 cm de diâmetro por 25 cm de
comprimento.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 97
Figura 14 - Tamborins do Terno do Mestre João
Lucas (2002) traz o tamborim como um instrumento que representa poder aos
Mestres: “no Congo, mais do que um instrumento musical, o tamboril constitui um
símbolo de poder dos capitães, representando os tambores que retiram Nossa Senhora do
Mar.” (LUCAS, 2002, p. 95). Segundo a autora ele é conduzido pelos capitães que estão
“tirando” os cantos. Não foi observado em momento algum, no Terno do Mestre João, tal
referência do poder desse instrumento, porém, vale acrescentar que todos os Três Mestres
de Catopês de Montes Claros guiam seus Ternos conduzindo um Tamborim. No caso do
Mestre João, ele declara que sempre tocou o tamborim, não associando a função à posição
de Mestre.
Pandeiro – um dos instrumentos mais encontrados no Congado, o pandeiro é o
último instrumento da fila22. Por estar no final da hierarquia dos instrumentos, é destinado,
na maioria das vezes, às crianças. Como nos pandeiros convencionais, é também
membranofônico, com membrana em uma das faces, tendo suas laterais vazadas para
receberem as platinelas. No Terno do Mestre João Farias o pandeiro é de madeira e tem
forma quadrada ou retangular, contendo em sua estrutura interna divisões de madeira que
ligam uma lateral à outra (FIG. 15). As platinelas são feitas com o metal amassado de
tampas de garrafa. Sua membrana é de couro de bode, fixada com pregos ou tachinhas. Ele
é percutido com uma das mãos e segurado com a outra, que também o movimenta
influenciando no resultado sonoro.
22 O Terno se organiza em filas. Mais detalhes serão acrescentados, ainda neste capítulo.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 98
Figura 15 - Pandeiro do Terno do Mestre João (frente e fundo).
O pandeiro é um dos instrumentos que gradualmente vem sendo substituído por
pandeiros industrializados no Congado de Montes Claros, e assim como acontece no que
se refere à caixa, tem gerado discussão sobre essa mudança. As Marujadas já usam, em
quase sua totalidade, pandeiros industrializados de material sintético. O Terno de Catopês
do Mestre Zanza já tem feito essa substituição, contando com poucos ainda de madeira. Na
opinião do Mestre João, a alteração se dá pela influência de outros estilos musicais como o
pagode, que conta com esse tipo de pandeiro. Para ele, esse instrumento de material
sintético tem conseguido espaço nos Ternos através dos integrantes dos grupos que
também são tocadores de pagode. Ainda segundo o Mestre, a migração do pandeiro de
pagode para o Terno “tem trazido junto com ele o toque de pagode”23, o que tem afetado a
performance dos grupos. Essas alterações também têm sido observadas por membros da
sociedade que acompanham anualmente os festejos. Virgílio de Paula24 deu uma
declaração muito próxima da opinião do Mestre João, o que demonstra um consenso de
opiniões:
“atualmente eles [os grupos] tão cometendo um pecado. Eu considero um pecado. Eles tão trocando os instrumentos, entrando com uns pandeiros modernos e tão usando esses pandeiro em naipe. O som é inteiramente diferente, muda inteiramente o som. Inclusive, esses pandeiros que eles tão usando, esses sintéticos, ele
23 Anotações de campo colhidas em agosto de 2003. 24 Como mencionamos no capítulo I, Virgílio de Paula é um observador atento da cultura congadeira em
Montes Claros.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 99
é muito barulhento. O som dele é muito alto, o outro [de madeira e couro] é mais abafado. Então as vezes ele encobre as outras caixas. Entraram uma rapaziada mais nova tocando isso e os que são mais acostumado são meio pagodeiro. Tão tocando esses pandeiros como se fosse pagode e muito alto. Andou atrapalhando um pouco o ritmo deles” (VIRGÍLIO DE PAULA, 13/10/2003).
No Terno do Mestre João todos os pandeiros permanecem de madeira e couro,
particularizando o resultado do timbre desse grupo. Essa permanência dos instrumentos
dos antigos tem contribuído para uma diferenciação sonora do Terno frente aos outros
grupos.
Chocalho – O chocalho encontrado no Terno do Mestre João Farias é um
instrumento idiofônico de metal. Seu formato é cilíndrico, fechado nas extremidades e
contendo bolinhas de chumbo no seu interior. Sua execução se dá com movimentos
oscilatórios para frente e para trás, e o som é produzido pelo atrito do chumbo com suas
paredes de metal.
Figura 16 – Chocalho do Terno de Catopês do Mestre João.
Anteriormente fechamos a hierarquia dos instrumentos com o pandeiro. O
Chocalho foi o último instrumento a ser citado, mas ele não está, ainda, incluído na
hierarquia proposta aqui. Isso porque só recentemente ele foi incorporado ao Terno. Na
minha observação, convivendo e tocando com o grupo no período da pesquisa participante,
o chocalho busca uma posição na ordem de importância dos instrumentos. O lugar de cada
instrumento, conseqüentemente dos seus executantes, vem sendo definido pela tradição por
tempos. Assim, demanda tempo para experimentações, ajustes e novas significações por
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 100
parte dos integrantes da manifestação, até que ocorra a validação desse instrumento como
efetivo no grupo.
É importante lembrar que essa ordem de importância dos instrumentos dentro do
Terno está vinculada a uma estrutura musical particular do grupo, uma vez que ela não é
consenso no meio congadeiro. Como exemplo, o mito de origem traz o tamborim como o
instrumento que permite o poder. Talvez ele possa ser o instrumento principal para outro
grupo espelhado no mito. Lucas (2002) traz uma citação de um Capitão do Moçambique
dos Arturos declarando que o patangome (chocalho) é o instrumento mais importante na
sustentação do pulso no grupo e que sem ele a execução ficaria difícil. Apesar dessa ordem
de valorização conjecturada nos outros grupos do Congado, esses instrumentos não são os
mais significativos dentro do Terno de Catopês do Mestre João Farias.
Baseados nessa análise podemos afirmar que toda a cognição entre grupos,
emoldurada pelos mitos ou histórias tradicionais do Congado, influencia mas não define a
ordem de importância dos elementos de cada manifestação, que será moldada de acordo
com suas construções e interações sociais, necessidades e possibilidades.
Apesar de sua inserção recente, o chocalho vem conquistando seu espaço na
estruturação musical do grupo. Isso pode ser observado nas palavras de Mestre João: Nós
não tinha esse negoço de chucalho. Era muito simples (MESTRE JOÃO FARIAS,
29/06/2003). De alguma forma a presença de um novo instrumento no grupo – apesar de
ser bem difundido nas tradições africanas25 e afro-brasileiras – representa uma inovação no
sentido de inserir algo novo, trazer uma roupagem nova, timbre novo e provocar uma
“interferência” na estrutura rítmica. O fato de ser de metal, industrializado, é outro
complicador porque sugere a inserção de tecnologia (do moderno). Elementos como, o
novo, o inovador e o moderno encontram, em geral, resistência nos meios de culturas
tradicionais, porém no Terno o chocalho foi introduzido, provavelmente com ressalvas, e
se encaixou na estrutura musical, o que tornou sua nova sonoridade aceitável, e tem
propiciado o seu enraizamento dentro desse grupo. Essa aceitação da presença do
chocalho no Terno é observada na declaração de Zé Farias: “antigamente nós num tinha
chucalho, mas depois que colocou não dá mais pra tirar26.
Situações envolvendo a absorção de um elemento novo em uma cultura musical
25 Ver: (Lucas, 2002, p. 93). 26 Anotações de campo colhidas em agosto de 2003.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 101
foram observadas por Nettl. Segundo o autor “uma cultura musical pode definir como
“novo” e conseqüentemente estranho algum material não relacionado ao pensamento ou
conteúdo musical já existente27 (Nettl, 1983, p. 48, tradução nossa)”. Para Nettl, o novo
elemento não é inserido com valor igual aos outros, a menos que a cultura possa fazer uso
do seu significado. Dessa forma, entendemos que o chocalho vem ganhando significado e
passa a ser parte da estrutura musical do Terno do Mestre João.
Quanto à afinação dos instrumentos, ela respeita um padrão timbrístico peculiar
cultivado pelo grupo e desempenha um papel muito específico na diferenciação do timbre
entre os instrumentos, contribuindo para a estruturação sonora do Terno. Os instrumentos
de madeira e couro são afinados encostando-se a membrana no fogo, o que proporciona o
enrijecimento desse couro que, com mais ou menos calor, vai atingindo a afinação ideal.
Várias vezes paramos durante a caminhada das visitas para ascender uma fogueira no
asfalto e corrigirmos a afinação dos instrumentos.
É importante perceber, depois da exposição dos instrumentos e das declarações
dos envolvidos em sua execução, que em algum momento o instrumento (objeto físico) se
uniu à técnica de seu executante, ao contexto, à tradição (história) e a percepção “auditiva”
de tudo isso unido por sua manifestação, para significar o que cada instrumento é. Sendo
assim, o conjunto de madeira ou metal, couro e pregos nada significam sem o “olhar”
significador e articulador de cada vivente dessa cultura. Nesses termos, compreendemos
que as sutilezas nas definições de uma afinação, a hierarquização dos instrumentos
segundo uma importância funcional e até a permissividade na inserção de um instrumento
constroem, em detalhes, a identidade musical desse Terno de Catopês.
27 “A musical culture may define as ‘new’ and therefore extraneous any material not related to musical
thought, or musical content, already extant”.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 102
4.2.3. A TRANSCRIÇÃO MUSICAL
A transcrição musical tem se apresentado como um dos maiores desafios para o
trabalho etnomusicológico. A busca de possibilidades mais acuradas para transcrições, que
permitam maior sintonia entre o fenômeno musical e o registro visual tem gerado inúmeros
debates na área de etnomusicologia. Ao analisar determinadas problemáticas relacionadas
à transcrição musical, Nettl (1964) aponta para duas questões a serem discutidas. A
primeira questiona se podemos analisar e descrever o que escutamos e, a segunda, se nós
podemos, da mesma maneira, colocar isto no papel e descrever o que vimos. Tais
questionamentos podem ser bem aplicados à cultura do Congado, que associa, numa
mesma linha de forças, a música, a dança e sua indumentária, numa performance que
transcende o simples fator sonoro.
No Congado encontramos um número significativo de elementos que, dissociados
do seu conjunto, perdem em valor e substância. Quanto a um desses elementos, o sonoro,
comungamos com Nettl (1964) quando ele afirma que a redução da música para uma
notação em papel é imperfeita, pois o ouvido humano não é capaz de perceber todo o
conteúdo acústico. Essa incapacidade para uma absorção completa dos elementos sonoros
é um dos maiores pontos de questionamento no processo da transcrição.
Assim, “assumindo que nenhum transcriber28 humano pode reproduzir todo o
fenômeno acústico de uma expressão musical, ele deve reproduzir o que é essencial e
decidir isso é a parte mais agonizante da transcrição”29 (NETTL, 1964, p. 102, tradução
nossa). Entendemos então que o etnomusicólogo, ao transcrever, faz um recorte do objeto
observado.
Nesse sentido é que pretendemos transcrever a música do Terno de Catopês do
Mestre João Farias, sinalizando os elementos que são importantes para nossa análise, mas
conscientes da imprecisão no resultado final. O conceito de música no Congado transcorre
numa via paralela aos conceitos da música ocidental. Termos como afinação, precisão em
alturas, técnica vocal ou precisão rítmica são substituídos por uma forma espontânea de se
fazer música, onde os termos são reinventados nos moldes da manifestação. Assim, mais
que “afinar,” é preciso cantar junto, porque a força resultante extraída da performance
28 Utilizamos aqui o termo em Inglês por não encontrarmos um equivalente em português. 29 Assuming that no human transcriber could reproduce all of the acoustical phenomena of a musical
utterance, he should reproduce those which are essencial, and deciding this is probably the most agonizing part of transcription.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 103
atinge seu objetivo na comunhão e não na “exatidão”. Mais que seguir o pulso é preciso
não deixar o Terno desandar, o que implica muito mais que um pulso preciso: requer uma
atenção especial com todos os elementos da performance.
A transcrição ou “documentação do som”, como foi designada por Charles Seeger
(1964), esbarra ainda no problema da notação, que deve exprimir ao máximo o que se
deseja registrar. No Terno de Catopês os cantos, em sua maioria, como vimos
anteriormente, funcionam na situação solo/coro, onde a resposta dos congadeiros ao solo é
impregnada de alturas muito diversas, apesar de ter concluído, por experiência empírica,
que as vozes da resposta tendem ao uníssono. Sendo assim, o coro sofrerá uma redução,
onde serão consideradas as vozes de alturas comuns ou que se sobressaem. Quanto à voz
solo, devido às dificuldades da notação como já citado, pequenos contornos melódicos se
perderão no processo de transcrição.
Para facilitar nossa transcrição, reconhecendo a incapacidade do nosso sistema
ocidental em registrar os flexíveis contornos da musica congadeira, utilizaremos uma
legenda que possibilitará representar situações musicais típicas do Congado. Essa legenda
segue as orientações propostas por Lucas (2002), sofrendo aqui algumas alterações.
Legenda:
Canto
Portamento
Glissando final descendente
Sinais de alerta (sons emitidos oralmente pelo mestre para solicitar prontidão do grupo, começo ou fim de uma música)
Percussão
Batida com a mão não dominante Batida com a mão dominante
Batida executada no couro tocando-se ao mesmo tempo a borda da caixa
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 104
4.2.4. O RITMO
Os aspectos identitários do Terno do Mestre João, como vimos citando no
trabalho, estão disseminados em vários momentos do grupo. No ritmo, esses aspectos
ganham evidência onde o resultado rítmico musical é um dos elementos mais
singularizadores entre os vários elementos musicais desse Terno. Isso porque o ritmo é o
resultado da condensação de todo um conjunto de ações, dos conceitos e elaboração da
estrutura musical, e do processo de transmissão e percepção intra e extra grupo, num só
resultado sonoro/comunicador. Comunicador por associar-se à voz do congadeiro no canto
de devoção aos santos, exprimindo através dos instrumentos toda a sua energia para a
comunicação com o sagrado, assim como para a continuidade dessa cultura. Como afirma
Lühning, “existe uma íntima ligação entre palavra cantada, fala e som percussivo”
(LÜHNING, 2001, p. 26), atribuindo aos tambores o poder da fala, uma fala num sentido
mais amplo.
Arroyo (1999) acredita que as batidas organizam uma série de aspectos sociais
relacionados aos grupos, como suas identidades sociais, culturais e de gênero, dentre
outras. Essa afirmativa reitera a idéia de que a identidade musical do Terno não pode ser
tratada apenas sob a ótica de sua música. Entender as relações sociais e culturais da
manifestação contribui para uma leitura mais acurada e esclarecida do feito musical.
Nossa leitura musical, então, vem sendo feita a partir de acontecimentos que
atuem diretamente na construção, manutenção e realização musical do grupo. Nesse
sentido, entendemos que os elementos musicais deslocados do seu contexto ritual e, por
sua vez, não interagindo com os múltiplos significados da cultura, não imprimem o sentido
necessário para a performance do grupo e assim não configuram a imagem musical dessa
manifestação. Objetivamos então, demonstrar os ritmos constituintes da música do Terno
de Catopês do Mestre João numa perspectiva preferencialmente performática.
A performance musical no Congado se processa coletivamente num jogo de
dependências onde os ritmos se estruturam baseados na execução de um instrumento e na
complementaridade do ritmo por um outro ritmo. Essa junção de elementos musicais se
interagindo em ordem determinada revela uma estrutura elaborada com partes bem
definidas na prática musical.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 105
Cada performance do Terno é única e assim há uma grande variação nos padrões
rítmicos. A execução respeita os padrões característicos de cada ritmo, porém a inserção de
variações (repiques) ou floreios30 é bem presente na performance musical do Terno.
As músicas geralmente são repetidas dentro de um “mesmo” andamento. Mas, às
vezes, o comprometimento com os andamentos segue a necessidade do momento, podendo
refletir uma ansiedade para alcançar o local de chegada ou a necessidade de levantar a
energia do Terno (andamento mais rápido), ou mesmo uma situação que requeira uma
caminhada mais lenta, como no caso do desfile no cortejo onde o grupo tem um espaço
físico de atuação limitado, exigindo muitas vezes movimentos mais contidos (andamento
mais lento).
Os ritmos têm padrões bem definidos que vão sendo repetidos constantemente e
são alternados, eventualmente, por variações que transformam o resultado sonoro. Como
uma das mais fortes características da música africana31, o movimento cíclico, na música
do Congado, ao contrário do conceito ocidental de que a repetição gera pobreza de criação,
não é entendido como a repetição do mesmo e sim como uma batida flexível que pode ter
o tamanho necessário para se cumprir o objetivo pretendido. Arroyo escreveu que “a
repetição reforça as mensagens rituais de identidade e continuidade” (ARROYO, 1999, p.
154). De fato, a repetição insistente de determinados padrões rítmicos inscreve nos
ouvintes e nos próprios executantes o desenho sonoro do grupo. O movimento cíclico
reforça, ainda, a unidade sonora do Terno que busca em meio ao seqüenciamento dos
padrões rítmicos, manter o nível de entrosamento necessário para a música do grupo.
O ritmo no Terno de Catopês do Mestre João se divide basicamente em marcha e
dobrado. Esses dois ritmos são forças que diferenciam, dão ênfase ou caracterizam um
momento ritual. Ambos exprimem a vontade do congadeiro, seja para exaltar a devoção
aos santos ou para fazer surgir uma alegria esfuziante num ato de puro entretenimento.
Marcha – esse ritmo é executado em momentos nos quais se invocam atenção
especial para o evento que está sendo realizado. Consiste em movimento cadenciado, de
andamento lento aplicado geralmente em ocasiões solenes para pedidos de licença, para
30 A expressão floreios utilizada pelos integrantes do Terno do Mestre João, também foi encontrada no
trabalho de Lucas (2002) para designar pequenas alterações rítmicas que não desestruturam o padrão rítmico.
31 Estruturas cíclicas são abordadas por Aron (1991) em seu trabalho sobre a música africana e por Mukuna (2000), em Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 106
sentar-se à mesa ou para momentos pontuais na igreja. A marcha permite uma audição
mais clara do feito musical por ter suas divisões rítmicas melhor definidas.
A marcha é executada com os integrantes “parados”. Não foi encontrada qualquer
situação onde houvesse a execução de uma marcha com o Terno em movimento. O ritmo
de marcha pode ser representado em um padrão de dois tempos. Esse padrão sofre
variações que por vezes são ocasionais, provenientes de um improviso momentâneo ou
pre-estabelecidas como aquelas que são repetidas em várias apresentações.
Figura 17 - Padrão rítmico da marcha com todos
os instrumentos.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 107
Na marcha só foi detectada uma variação ou repique que ocorre com a mudança
rítmica da caixa enquanto todos os instrumentos permanecem no mesmo padrão:
Figura 18 - Padrão de variação rítmica da marcha
com todos os instrumentos.
Dobrado – presente na maior parte do ritual, esse ritmo é utilizado nos desfiles
durante a caminhada ou mesmo quando os integrantes estão parados. Sua divisão rítmica
sugere movimento e então esse ritmo embala as coreografias do Terno. Devido à sua força
rítmica, o dobrado é o responsável pelas explosões de alegria que freqüentemente ocorrem
nos rituais de devoção aos santos. O padrão é executado em ciclos de quatro tempos.
Assim como a marcha, o dobrado contém um padrão rítmico básico que vai sendo
repetido e as variações acontecem ocasionalmente.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 108
Figura 19 - Padrão rítmico do dobrado com todos os instrumentos.
Encontramos apenas uma variação que pode ser padronizada por se repetir com as
mesmas características. Essa variação insere mudanças na estrutura rítmica do tamborim e
do chama :
Figura 20 - Variação do padrão rítmico do dobrado com todos os instrumentos.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 109
4.2.4.1. Estrutura Sinóptica
Até agora temos transcrito a caixa demonstrando as duas mãos do executante,
diferenciadas por uma linha de notas com hastes para baixo que tem representado a mão
dominante, e haste para cima, mão não dominante. Para facilitar a leitura e interpretação
das transcrições, o ritmo da caixa, por ter sua execução particularizada pelo uso de duas
baquetas, necessitará de uma notação específica. Assim, faremos uma estrutura sinóptica
que colocará as duas mãos numa única linha de leitura.
A exemplo do método utilizado por Lucas (2002), a mão dominante, ou seja,
aquela que imprime batidas constantemente mais fortes, será representada por uma figura
com a cabeça preenchida. A mão não dominante, ou aquela que imprime batidas mais
leves ou de apoio, será representada por uma figura de cabeça vazada.
Colocaremos então o padrão rítmico da caixa e ao lado sua representação na
estrutura sinóptica:
Figura 21 - Caixa: padrão básico da
marcha.
Figura 22 - Caixa: estrutura sinóptica.
Figura 23 - Caixa: variação da marcha. Figura 24 - Caixa: estrutura sinóptica.
Figura 25 - Caixa: padrão básico do dobrado.
Figura 26 - Caixa: estrutura sinóptica.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 110
A estrutura sinóptica pretende também se aproximar daquilo que é representado
pelos congadeiros no processo de execução e transmissão, uma vez que eles não concebem
o ritmo da caixa como fragmentado em duas mãos. O som extraído da caixa é fruto dos
sulcos dados pelas baquetas em sua pele. O caixeiro não se mostra preocupado com qual
mão ele deverá tirar um som mais forte ou fraco. O som é o resultado de uma seqüência de
ações que visam a “escutar” e compor a música com o toque ideal, sem se prender à forma
de sua extração.
A caixa, o caixeiro, e o som extraído dessa junção representam a espinha dorsal
musical do Terno. O som que vem da caixa dita a música, o andamento e até indica onde as
variações devem acontecer.
4.2.4.2. Incidência de variação rítmica (repiques)
Durante a performance do grupo as variações rítmicas, construindo novos
conjuntos de células, provocam alteração nas condições de acento e apoio, que externam
as múltiplas faces da imagem musical do grupo. No Terno do Mestre João o termo usado
para as variações rítmicas é o repique. Os repiques, com raras exceções, não são feitos
aleatoriamente. Essas variações tendem a surgir em locais distintos e com funções
determinados. A sinuosidade rítmica provocada pelos repiques não só produz estágios
diferenciados na performance musical do grupo como corrobora no processo de fruição de
sua música. “Uma variação daquela ali volta a memória de uma música, geralmente uma
música pede um ritmo diferente” (ZÉ FARIAS, 14/09/2003).
Apenas a caixa, o tamborim e o chama repicam na música do Terno. A caixa
repica com alteração no padrão rítmico apenas na marcha. No dobrado, apesar de
estruturalmente não ocorrer variação rítmica, o caixeiro considera que aumentar a
intensidade da batida, proporcionando o destaque sonoro da caixa frente aos outros
instrumentos, configura um repique. Dessa forma é possível pensar que o termo repique
tem o sentido de ‘o diferente’, mesmo que essa diferença seja alcançada na intensidade
sonora dos instrumentos.
O repique da caixa utilizado na marcha pode ser observado nas figuras 23 e 24
citadas anteriormente. Embora as variações rítmicas do repique sejam elementos surpresa,
na marcha sua execução é conhecida e esperada. Esse repique é uma característica
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 111
particular da música do grupo. Podemos observar esse fato nas palavras de Zé Farias,
referindo-se ao repique da caixa que é feito na marcha:
“[No Terno] tem diferença no ritmo da marcha porque ti João exige mais do repique da gente do quê no Terno de Zanza. [lá] mesmo o pessoal não usa muito repicar a caixa. Se dentro do nosso grupo agente for utilizar um tocar de marcha sem repique igual ao de Zanza, talvez perde até aquela entonação né. O pessoal não consegue cantar a música da forma que deveria catar, se você mudar um pouco o tocar de caixa” (ZÉ FARIAS14/10/2003).
O tamborim apresenta repiques apenas ao final das cantigas, na completa ausência
de letra e melodia, como durante as caminhadas onde o Terno mantém o toque sem o
canto. Essa variação ocorre somente no dobrado.
Figura 27 - Repique do tamborim utilizado na marcha.
O padrão que está entre os ritornelos pode variar indefinidamente. Observando as
transcrições seguintes encontramos várias repetições desse padrão.
Transcrições:
• 2 - do compasso 01 ao 07;
• 3 - do compasso 01 ao 07 e do 34 ao 36;
• 5 - do comasso 20 ao 24;
• 6 - do compasso 40 ao 44;
• 7 - do compasso 02 ao 04;
• 8 - compassos 23 e 24.
A caixa, apesar de não alterar sua estrutura rítmica, juntamente com o tamborim e
o chama, são os principais instrumentos na variação da “coloração”32 da música do Terno.
32 O termo “coloração” não requer comparação com o conceito ocidental de coloratura, mas pretende intuir
que, ao variar seus ritmos, o Terno constrói uma nova tessitura musical (cor).
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 112
O chama - Ao contrário dos outros instrumentos que atuam em condições
determinadas, o chama insere os repiques livremente, sem necessitar de uma situação
específica, embora siga a tendência de repicar quando os outros instrumentos inserem suas
variações. Devido à quantidade de variações existentes, definir o que é padrão básico e o
que é variação não é fácil. O critério para a escolha do padrão básico foi a observação da
seqüência rítmica mais freqüente. Na execução do chama há uma característica particular
em relação aos outros instrumentos porque aí os congadeiros reconhecem a existência de
variações e de repiques como termos distintos.
Para os congadeiros, no chama a variação é uma seqüência freqüente de ritmos,
porém menos usual que o padrão básico, enquanto o repique, independente do número de
aparições, é um elemento surpresa. O repique está dentro da variação, como veremos
adiante.
O chama imprime os seguintes padrões básicos:
Figura 28 - Padrão da marcha executado no chama.
Figura 29 - Padrão do dobrado executado no chama.
As variações e repiques do chama ocorrem somente no dobrado.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 113
Todos os trechos a seguir correspondem a variações encontradas no dobrado. Os
repiques estão incluídos nas variações e serão destacados por um círculo. As variações
serão relacionadas em ordem alfabética para facilitar o processo de análise:
a
b
c
d
e
f
g
Figura 30 - Variações rítmicas do chama.
Como podemos observar, os repiques acontecem sempre nos pontos fracos,
concluindo no tempo forte. Esse movimento é importante na manutenção da estrutura
rítmica por criar um ponto de apoio para os outros instrumentos. Em todos os casos, o
primeiro e terceiro tempos são referenciais na manutenção do ritmo. Assim como no caso
dos repiques, as variações ocorrem sempre nos tempos fracos.
Na construção da estrutura rítmica do Terno, os fragmentos apresentados são
alternados com o padrão básico e ordenados de formas muito diversas, onde nem sempre é
possível encontrar um padrão de repetição.
Temos visto os vários padrões básicos de variação e repiques encontrados na
música do Terno de Catopês do Mestre João Farias. Essas estruturas atuam em pontos
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 114
determinantes da música congadeira.
Uma dessas alterações nos padrões acontece como base de apoio vocal no caso da
sustentação de frases. Podemos observar tal ocorrência na canção Deus nos salve Casa
Santa, (transcrição 01, do compasso 05 ao 15) onde a caixa mantém o repique de marcha,
sustentando todo o percurso vocal do solo. Essa forma de sustentação se repete várias
vezes nessa canção.
Outra situação de ocorrência é a alternância de planos de exposição nos espaços
entre uma estrofe e outra, preenchendo a lacuna deixada pelo canto e assumindo o primeiro
plano perceptivo. Essa ação consiste em criar um atrativo de peso igual ao do canto,
mantendo uma riqueza de elementos em detrimento do “vazio” provocado pela ausência da
voz.
Podemos encontrar, ainda, variações presentes nos finais de frase como elementos
preparatórios para o início de uma nova estrofe. Nesse caso, as variações, geralmente da
caixa e do chama, criam uma expectativa (um aviso) indicando que um trecho está
finalizando e apontando a atenção necessária para a execução da próxima frase. Nos
compassos 13 e 21 Canção eu vou chorar (transcrição 2), encontramos essa situação onde
o chama repica no quarto reforçando a entrada no primeiro tempo do próximo compasso.
Nessa função de preparação para um acontecimento encontramos, nas canções, Eu
vou chorar (do compasso 01 ao 07) e Até você Maria (transcrição 3, do compasso 01 ao
07), respectivamente transcrições 2 e 3, repiques do tamborim utilizados no inicio do canto
com a função de preparar a entrada do solista. É também uma forma de aviso que
comunica ao grupo o novo acontecimento.
Os repiques podem surgir ainda numa outra situação onde o grupo precisa de
ânimo para a execução. Segundo Zé farias, “o repique é uma forma de reanimar”.(ZÉ
FARIAS, 14/10/2003). Numa performance ritual, quando o grupo percorre longos
caminhos, é natural deixar o cansaço influir na execução. Os congadeiros repicam os
instrumentos na tentativa de dar nova cor ao som e injetar vida nova no grupo. Os repiques
trazem batidas com maior intensidade, causando um movimento sonoro crescente que
convoca os outros integrantes a se libertarem daquela sensação de esgotamento. Os
repiques, nesse caso então, inauguram uma nova etapa que propõe vencer as dificuldades
físicas provocadas pelo cansaço e despertar nos congadeiros o ânimo para seguir na
caminhada. A presença desses repiques, principalmente nos tamborins, produz uma energia
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 115
capaz de realimentar o Terno. Essa energia produzida reflete em volume sonoro, uma vez
que instiga os outros instrumentos a seguirem esse mesmo movimento crescente.
O espectograma apresentado abaixo valida a idéia de que a intensidade sonora
ganha força durante os repiques.
Figura 31 - Espectro de intensidade.
Outra situação comum para a inserção de repiques é encontrada nos momentos em
que os integrantes do grupo não conseguem se concentrar, permitindo que os ritmos se
desencontrem. Nas palavras dos Catopês diz-se que o ritmo está frouxo. Esse afrouxamento
sugere que o grupo não está compacto, unido. Significa que há um afastamento entre os
integrantes e o eixo temporal central. A situação mais propícia para esse desencontro se dá
nos desfiles dos Reinados, onde o Terno, durante as evoluções, alterna de lugar com os
outros grupos. Nessa alternância os grupos ficam muito próximos, ocorrendo uma mistura
de sons variados. O Terno, e nele especialmente os integrantes que ficam mais distantes
das caixas, tende a perder a unidade rítmica, incorporando as unidades temporais dos
outros grupos.
Ao sentir que os sons dos outros grupos estão desconcentrando os integrantes,
alguém – geralmente o caixeiro ou o tocador de tamborim – imprime um repique forte.
Nesse instante, o Terno passa a respirar uma outra seqüência rítmica, o que restabelece a
unidade musical do grupo. Trata-se da defesa da sua estrutura musical frente aos outros
grupos, inserindo elementos musicais próprios e reconhecíveis pelos seus integrantes, se
diferenciando bruscamente das atitudes musicais e temporais dos outros grupos.
Turino (1999) atenta para as formas de interação dos atores numa execução
musical. Segundo o autor, durante a performance musical são criadas “estratégias” ou
“táticas” que auxiliam o executante na manutenção e percepção da música em conjunto.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 116
Nesse sentido, os repiques e variações são utilizados como estratégias de sustentação da
unidade sonora do grupo, invocando a atenção dos integrantes para a “nova” seqüência
rítmica ou novo acontecimento sonoro. Outra estratégia que utiliza os padrões de variação
pode ser observada ainda na fala de Zé Farias:
“Quando caixeiro tá cansado agente pede um dos meninos mais entendido pra falar pro pessoal repicar o tamburim. Aí o pessoal repica o tamburim pra descansar o caixeiro. Quando tá lá repicando o tamburim o caixeiro fica mais aliviado né, ele manera mais no batido dele, porque ele sabe que tem um instrumento que tá ali tampando o buraco que a caixa tá deixando” (ZÉ FARIAS, 14/10/2003).
Essa situação apresentada por Zé Farias relembra a alternância de “planos de
exposição” nos espaços onde os instrumentos supriam a falta da voz. Agora os
instrumentos alternam entre si onde “primeiro” e “segundo” planos são invertidos,
permitindo um relaxamento na performance do integrante. Esse relaxamento, além de
muscular, porque passa a exigir um esforço menor, proporciona também uma execução
menos compromissada, produzindo uma sensação de conforto e descanso para o
congadeiro.
As variações rítmicas, por fim, estruturam pilares de sustentação da unidade
sonora do Terno, indicando pontos de apoio ou de relaxamento que influenciam
fundamentalmente no resultado da performance musical. A utilização e o desenvolvimento
de estratégias de execução em grupo demonstram uma estrutura elaborada e sólida onde o
corpo musical, flexível pelas inúmeras variações, pode atuar sem perder seu nexo ou
afrouxar seu ritmo.
4.2.4.3. O canto
Apesar de os instrumentos ocuparem a maior parte da performance musical do
grupo, são nos cantos que vemos proferidas as palavras que contam, de forma mais
explícita, os sentimentos dos congadeiros. Essas palavras são anexadas aos contornos
melódicos, ganhando significado para atuarem como mensagens musicais. Timbres
variados de homens adultos e crianças compõem a música do Terno de Catopês. Essa
variedade de timbres é o resultado sonoro do ajuntamento de várias gerações de
congadeiros com o mesmo objetivo de brincar para os santos. Os cantos são entoados pelo
Mestre e em seguida repetidos pelo coro. Essa repetição segue determinadas categorias
como, S/C, S/C; S/C; Sdd/C etc., que já comentamos anteriormente. Temos observado,
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 117
porém, que se o objetivo é cantar em uníssono como nos casos S/C, nem sempre ele é
alcançado. Observamos uma tentativa de se aproximar das alturas colocadas pelo Mestre,
mas com a presença de timbres de características tão variadas, haja visto as diferentes
idades dos integrantes, nem sempre isso é conseguido. Assim, encontramos uma grande
diversidade de alturas. Os cantos entoados pelo Mestre estão na região mais alta que ele
consegue cantar.
Analisando as gravações, podemos perceber que os integrantes se esforçam para
responder nos mesmos contornos melódicos do Mestre, porém a partir do seu registro mais
confortável. Integrantes com curtas extensões vocais e timbres graves, por exemplo,
tendem a cantar uma oitava a baixo do solo. Há uma permissividade para as variações nas
alturas. Em nenhum momento, durante os ensaios ou apresentações, houve qualquer
cobrança quanto à afinação. A palavra afinação faz parte de um outro mundo, o mundo da
sistematização das alturas, da busca de uma “perfeição” harmônica.
No Terno, o objetivo é outro. Seu João muitas vezes cobrou uma resposta vocal,
pedindo: “vamo cantá gente”, mas essa resposta parecia ter outro significado: o da
comunhão. Responder ao canto demonstra um Terno entrosado, vibrante, unido. Através
da análise dos vários cantos gravados, observamos que os integrantes, ao saírem da região
confortável para o canto, produziam um maior número de alturas. Assim, cada vez que os
contornos melódicos do Mestre atingiam regiões mais distanciadas de uma altura
confortável aos congadeiros, as vozes de resposta tendiam a se desaproximarem entre elas
e da voz solo. O movimento de desaproximação foi representado no gráfico abaixo:
Figura 32 - Gráfico de variação das alturas segundo a desaproximação do registro confortável.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 118
No gráfico, observamos uma linha mediana representando o centro da extensão
confortável para o canto dos congadeiros, enquanto duas linhas sinuosas indicam abertura
das alturas, que tende a ser maior quando as vozes se afastam da região cômoda.
Observamos no canto que a palavra perde seu caráter de acentuação em função da
acentuação rítmica da música. Podemos observar, como exemplo, o compasso 32 da
transcrição 01, onde o congadeiro, no intuito de valorizar o elemento melódico e rítmico,
flexibilizou a pronúncia da letra. Assim, a frase “santíssima trindade” passou a ser
“santíssima matredade” para suprir uma necessidade rítmica.
O canto dos congadeiros hierarquiza em seqüência de importância o ritmo dos
instrumentos que influenciam diretamente na performance do grupo; em seguida a melodia
e por fim a letra que, embora comunique verbalmente os pensamentos dos atores, ganha
outras sonoridades em função dos ritmos e assim amplia a possibilidade de uma percepção
do mundo musical congadeiro.
4.3. A TRANSMISSÃO MUSICAL E CULTURAL
No Terno de Catopês do Mestre João tudo respira aprendizagem. É no convívio
diário com o grupo que as trocas de informações são feitas e as relações vão se
construindo. É no processo de transmissão que os aspectos identitários presentes na
performance ou mesmo no comportamento dos integrantes são absorvidos e solidificados.
Segundo Nettl, “[...] uma das coisas que determina o curso da história de uma cultura
musical é o método de transmissão”33 (NETTL 1997, p. 8, tradução nossa). Dessa forma,
os viventes dessa manifestação estruturam consciente ou inconscientemente formas de
transmissão dos conhecimentos de modo a estabelecer a continuidade de aspectos
característicos do grupo.
A forma de repasse dos conhecimentos do grupo é certamente o principal
elemento particularizador das características de um grupo frente às expressões culturais
dos outros grupos. “[...] cada cultura modela o processo de aprendizagem conforme os
33 “One of the things that determines the course of history in a musical culture is the method of
transmission”.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 119
seus próprios ideais e valores”34 (MERRIAM 1964, p. 145, tradução nossa). Nesse sentido,
reafirmamos que os conceitos desenvolvidos pela própria cultura são um guia para o
julgamento e permanência dos elementos essenciais à manifestação.
Mestre João, ao ser argüido sobre as características (ou conceito) de sua música,
revelou: “meu Terno toca o toque é diferente [do toque dos outros Ternos]. Meu Terno
toca é música tradicional do que era de antigamente” (MESTRE JOÃO FARIAS,
13/10/2003). O conceito de tradicional do Mestre está calçado na permanência do que ele e
a manifestação julgam ser dos antigos. A partir daí é modelado todo o sistema de
sustentação dos elementos tradicionais.
Todos os membros que já assimilaram os conceitos do Mestre contribuem com o
repasse dessa idéia do tradicional. Porém, como vimos citando durante este trabalho, o
núcleo da manifestação está constantemente sendo comprimido pelas transformações.
Quanto a esse aspecto, uma das questões contrárias ao esforço de manutenção impetrada
pelo Mestre é a intrusão dos “novos conceitos”. Os integrantes mais jovens de Terno, e
geralmente de menos idade, trazem para o grupo uma realidade distante daquela
vivenciada pelos membros mais antigos. Assim, a idéia de uma indumentária apresentável,
até a definição dos meios de transporte do grupo para as apresentações, esbarram no
conceito estabelecido pela cultura em relação ao comportamento de um Catopê. Essas
discussões são alguns dos impasses no processo de transmissão.
Mestre João, repetidas vezes em nossas conversas, reafirmou: “Catopê tem que
ser é pé no chão” (MESTRE JOÃO FARIAS, 29/06/2003). Na continuação da conversa
ele sempre relembrava as dificuldades que o Terno encontrava para a aquisição das
vestimentas e quantos quilômetros percorriam descalços tocando pelas ruas até alcançarem
seu destino. Esse sentimento de apego a um passado maravilhoso inspira a idéia de uma
‘tradição-nostálgica’ “subordinada ao tempo linear e compreendida como sucessão de
eventos regida por uma norma que traça um caminho áureo para a decadência” (GOMES
& PEREIRA, 2000a, p. 49).
Embora a idéia do tradicional do Mestre João seja “violada” com os novos
conceitos, a dinâmica da cultura trata de criar ferramentas de diálogo capazes de negociar
34 “[...] each culture shapes the learning process to accord with its own ideals and values”.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 120
“o novo”. Assim, ele luta para conseguir o ônibus do transporte do Terno e angaria
recursos para suprir o grupo com indumentária nova todos os anos.
Na performance ritual do Terno, a transmissão do conhecimento musical ganha
força na observação. O processo de repasse, ou melhor, da captura dos conhecimentos, se
dá de modo oral e aural35. Como explica Arroyo, “a situação de aprendizagem [no
Congado] é uma situação coletiva de performance. [...] Como em várias culturas musicais
orais, a cultura musical congadeira é auditiva, visual e tátil” (ARROYO, 1999, p. 177).
Ainda sobre a prática em grupo, Martins salienta que “a performance é que engendra as
possibilidades de significância e a eficácia da linguagem ritual” (MARTINS, 1997, p. 147).
Nesses termos, entendemos que no universo Congadeiro, a interação entre o ator e a
estrutura de significados do Terno proporciona, através do habitus36, o entendimento dos
aspectos construtores centrais, definidores da manifestação.
Durante minha observação participante, tocando nos ensaios e apresentações,
pude observar como a falta de informações verbais instiga o aparecimento de estratégias
individualizadas. Várias vezes alguém solicitou uma ajuda e recebeu um “faz assim oh”,
tocando o ritmo solicitado sem que uma única palavra completasse o “raciocínio auditivo”
do ouvinte. Não é novidade que culturas de transmissão oral como a dos Catopês ensinam
pela repetição. O curioso é que o primeiro passo da aprendizagem musical no Terno se dá,
na maioria das vezes, na performance do grupo, direto, sem uma única introdução. O
integrante recém inserido pede para tocar, o Mestre permite e lhe entrega um instrumento
e, em seguida, começa a batucada do grupo. O “olhar” do indivíduo fica focado em tudo e
em nada ao mesmo tempo, tentando internalizar ao menos uma frase musical. A
dificuldade se agrava ao perceber que não basta entender o padrão rítmico do seu
instrumento. O integrante tem agora que se encaixar na estrutura musical. Intensifica-se
então a criação de estratégias para um melhor entendimento do funcionamento da
performance musical.
Uma das estratégias desenvolvidas e confessadas pelos integrantes do Terno do
Mestre João é a “escuta” segundo a função dos tempos forte e fraco, e da
complementaridade. Um dos integrantes, tentando ajudar um tocador de tamborim disse:
35 Nettl (1983) concebe o conceito de “aural” como algo vinculado a uma percepção global do indivíduo no
que se refere à apreensão dos elementos transmitidos. 36 Bourdieu (1984) concebe o conceito de habitus como as maneiras do senso-comum e as percepções do
mundo internalizadas, que servem de base para as práticas individuais e em grupo.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 121
“escuta o tum do chama e depois faz tum, tum”37. Outra forma é o posicionamento na fila.
O Terno se posiciona em três filas estruturadas da seguinte forma:
Figura 33 - Estruturação do grupo em filas.
A ordem dos caixeiros e tocadores de chama se dá espontaneamente, mas dos
tamborins para trás o posicionamento da fila se dá dos maiores para os menores. Todos,
com exceção do Mestre, são conhecidos como Catopês de fila. Os tocadores de caixa e
chama são também denominados Catopês de frente. Durante a execução musical é comum
ver alguém se deslocando levemente à esquerda ou à direita da fila para ver o movimento
dos caixeiros ou do tocador de chama. Isso acontece porque na busca de um entendimento
para tantas sonoridades, além de ouvir, é importante ver o movimento das mãos e o
balançar do corpo. O jogo de imagens e sonoridades, associadas às estratégias, formulam,
no ato do acontecimento musical, a performance do congadeiro.
A ordem de aprendizagem faz seqüência no entendimento do ritmo, depois da
melodia e por último da letra do que se canta. Entre esses elementos detectei que o mais
difícil para a aprendizagem é curiosamente a letra. Apesar de ser o código que em princípio
mais dominamos (o verbal), a letra das músicas nem sempre são bem entendidas. Observei
que isso acontece porque é difícil o entendimento do que o solo canta. Zé Farias, com vinte
e quatro anos de Terno, ao cantar uma música alertou: “as palavras talvez tá assim meio
trocada mas é assim:
37 Anotações de campo colhidas em agosto de 2003.
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 122
Chegô, chegô, chegô Juvenal Chegô, chegô, chegô Juvenal
A latinha que vamos bater é o amor que vai se embora A latinha que vamos bater é o amor que vai se embora
Após cantar Zé farias comentou: “a latinha pode talvez ser marchinha né, é uma
coisa assim. Pelo motivo do jeito dele [Mestre João] pronunciar a gente vai
acompanhando e isso vai ficando gravado” (ZÉ FARIAS, 14/10/2003). Vinícius confirma
a fala de Zé comentando sua experiência: “eu mesmo te falo, com dezessete anos no Terno
tem música que Seu João canta que eu num sei” (VINÍCIUS, 15/10/2003). Vinícius tem
uma versão bem diferente dessa canção (ver transcrição 10):
“Chegô, chegô, chegô general Chegô, chegô, chegô general
Mulatinha que vamos haver, é o amor que vai se embora Mulatinha que vamos haver, é o amor que vai se embora”
Assim, numa dificuldade de entendimento devido a pronuncia particular do
Mestre, acontece uma leitura da leitura, onde os novos integrantes se apóiam nos outros
integrantes que na maioria das vezes já cantam uma letra diferenciada. Além da releitura
feita pelos integrantes nas letras que eles não entendem, há ainda a correção da pronuncia
das palavras que eles compreendem. Podemos ver isso no canto, “Deus nos salve casa
santa” (transcrição 1, compassos, 12 e 22), onde a palavra hóstima é alterada pelo coro
para hóstia:
“Deus nos salve Casa Santa” – Ritmo: marcha
Solo
Deus nos salve casa santa Onde Deus fez a morada Onde mora o calix bento E a hóstma e consagrada E a hóstma e consagrada
Coro
Deus nos salve casa santa Onde Deus fez a morada Onde mora o calix bento E a hóstia consagrada E a hóstia consagrada
No aprendizado dos instrumentos, o iniciante é geralmente direcionado para o
pandeiro. Depois do pandeiro, que geralmente é destinado às crianças, o integrante
costuma ir para o tamborim até conseguir espaço bastante para executar o chama ou a
caixa. Embora (em termos explicativos) tenhamos, para facilitar o entendimento, disposto
os itens nessa ordem, ela necessariamente não tem que ser assim. Durante a performance
Capítulo 4 - Identidade: os elementos musicais. 123
do grupo há uma constante troca de posições, onde os integrantes trocam de instrumentos.
Nessas trocas está a oportunidade de experienciar uma outra execução.
Outro momento para uma proximidade com os diversos instrumentos se dá nas
situações onde os integrantes mais novos se reúnem em pequenos grupos para
experimentarem sonoridades. É o momento onde se vê um maior número de explicações
verbais. São às vezes três ou quatro falando ao mesmo tempo tentando demonstrar seus
métodos de aprendizagem. São os “pequenos” se espelhando nos “grandes”, tentando tocar
aquele instrumento que só poderá alcançar quando crescer38.
Segundo Mestre João o instrumento que merece maior atenção na aprendizagem é
a caixa. Ela é, na observação do Mestre, o centro da manutenção rítmica do Terno. Prova
disso está na resposta que ele deu ao ser questionado como fazia para preservar a batida:
“Se a caixa num sair do que é o original o Terno num tem como sair não” (29/06/2003).
Podemos então, baseados na análise de que a música do Terno do Mestre João
surge das interações dos seus integrantes com os modos de produção musical, entender que
na vivência musical dos atores, um grande número de significados, que vão além dos
elementos musicais, é apreendido, seja através de estratégias de aprendizagem, como
comentamos, ou mesmo na absorção através da convivência diária num processo de
internalização dos conceitos da manifestação.
Considerando os vários elementos encontrados na música do Terno, como a
palavra, o canto, tambores, transmissão e identidade, consideramos pertinente a reflexão de
Lühning onde “a inter-relação desses elementos traz e retrata algo específico devido à
conotação em relação aos processos de definição e manutenção de buscas identitárias de
grupos da população afro-brasileira e sua memória” (LÜHNING, 2001, p. 24).
Entendemos também que cada manifestação constrói suas formas de produção e
estabelecem os meios de sustentação dos seus valores. Assim, finalizando, compreendemos
que em todos os elementos componentes do Terno do Mestre João encontramos itens
formadores da identidade, sobretudo a musical que se configura como o principal elemento
singularizador desse grupo na cultura congadeira em Montes Claros.
38 O sentido de crescer aplicado aqui pode ser entendido como o de alcançar uma idade maior, como também
no sentido de alcançar musicalmente um respeito maior.
Conclusão.
124
5. CONCLUSÃO
Abarcar um estudo sobre música numa cultura como a dos Catopês do Mestre
João Farias, com tantos focos interessantes, impulsiona a idéia de interação. Somente
através da compreensão dos aspectos componentes do grupo, e isso inclui os não musicais
– se é que existem – pude melhor investigar sua música. Em minha análise no período
festivo, vivenciando cada etapa ritual e seus desdobramentos, observei passo a passo as
conexões se formando e os elementos musicais externando-se nas práticas em grupo.
Ficou claro que as interações sociais, sobretudo com o Mestre, proporcionam o
surgimento dos elementos significadores da cultura que, através da música, funcionam
como comunicadores dessa manifestação. Munido de um sentimento de devoção pela
Santa do Rosário, Mestre João tem função primordial em seu Terno de Catopês. A forma
como ele, no atributo de “símbolo”, transmite a força do sagrado aos integrantes do seu
grupo, nos faz refletir sobre a importância do seu conjunto complexo de funções como
lider/religioso/protetor/pai/professor/ícone/amigo. Nettl (1983), diz que a identidade, o
papel social e a abordagem do professor de música são componentes importantes de um
sistema socio-musical. Mestre João representa bem essa construção socio-musical que
ensina mais que música aos integrantes do grupo. Nettl acrescenta ainda que a
aprendizagem de música é, em quase todo lugar, uma experiência de intensa relação entre
estudante e professor. Essa relação intensa com os alunos/integrantes do grupo alimenta a
coletividade harmonizadora para o feito musical.
No Terno de Catopês do Mestre João Farias os conteúdos são transmitidos por
vias oral e aural, dando ainda mais forma às características musicais apreendidas nesse
grupo. A maneira única como se vive e aprende nesse Terno, “molda” os comportamentos
dos seus integrantes, tornando-os membros de um grupo que respira música, devoção,
amizade e pertencimento.
Os elementos musicais encontrados ali seguem um padrão de funcionalidade que
garantem sua permanência no contexto congadeiro. A performance musical do grupo é
estruturada a partir de uma noção da complementaridade onde o conjunto proporciona o
fazer musical. Nesse sentido, compreendo que a identidade musical do Terno se dá pela
junção de todo o complexo mundo dos significados, revertido em forma de uma
Conclusão.
125
performance musical. Os aspectos componentes da música do grupo transcendem a
situação puramente musical, envolvendo um jogo de relacionamentos que determina a ação
musical dessa manifestação.
O grupo tem, motivado por seus agentes, zelado pela manutenção dos valores
tradicionais que, em dialógica com as transformações, conseguem estabelecer um
parâmetro para suas mudanças. O Terno do Mestre João e todo o contexto congadeiro em
Montes Claros persistem na continuidade de uma tradição secular movida pelo homem e
requintada, sobretudo, pela saborosa e essencial presença da música.
O Terno pertence a um universo formado por palavra, canto, tambores,
transmissão e identidade. A inter-relação desses elementos traz e retrata algo específico
devido à conotação dos processos de definição e manutenção de buscas identitárias do
grupo e sua memória. Os detalhes na execução dos instrumentos, respeitando uma
hierarquia construída pela própria cultura, somados às características performáticas dos
ritmos que são orientados para se tornarem “diferentes” dos outros grupos, são elementos
estruturadores da identidade musical do Terno de Catopês do Mestre João Farias. Assim o
são, também, a performance dos cantos nas suas variações de solo e resposta que refletem,
como resultado auditivo, a percepção e criação dos congadeiros, e as estratégias de
execução desenvolvidas para a sustentação da estrutura musical do grupo. Reforçam ainda
o rol desses elementos a opção por valorizar os elementos timbrísticos tradicionais dos
instrumentos e também as ações cotidianas para se manter os valores repassados pela
tradição.
Podemos dizer, então, que o grupo do Mestre João se torna reconhecível frente
aos outros grupos pelo conjunto de seus elementos. Um sistema próprio de ajuste dos
aspectos identitários é alimentado pela manifestação, sistema este que verifica em meio ao
universo congadeiro se sua presença é singular, seja na escolha do número ou
características dos instrumentos, como citado por Mestre João, que opta por usar menos
chamas que o Terno de Zanza, ou em manter seus pandeiros feitos em madeira, ou mesmo,
ainda, na escolha do seu repertório, que quer manter a “música dos antigos” e repetir a
cada ano o que pede a tradição.
Por fim, o Terno do Seu João é reconhecível por sua dedicação à manutenção dos
valores tradicionais do congado em Montes Claros. Sua música ecoa no período ritual
nessa cidade e inscreve no tempo a presença de seus timbres, de seus ritmos e, sobretudo,
Conclusão.
126
de sua força na sustentação de uma cultura que vive do amor aos seus santos, da alegria de
festejar e do desejo de manter vivo algo que não é seu, mas de um universo que necessita
ser relembrado ano-a-ano, para que não se percam no tempo os esforços de tantos
brincantes que por ela passaram.
Referência bibliográfica. 127
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133
TRANSCRIÇÕES MUSICAIS
As transcrições musicais apresentadas neste estudo sobre a música do Terno de
Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias, são o resultado das
gravações e observações feitas em campo no ano de 2003. O principal objetivo, é ilustrar o
repertório do grupo de forma a facilitar a compreensão de sua música. Na estruturação das
partituras, os instrumentos foram dispostos na ordem convencional, do agudo para o mais
grave. As transcrições das letras foi possível através de minha observação participante e
com a contribuição dos veteranos de Terno, Marcus Vinícius Ferreira da Silva e José
Soares de Farias. Embora muitos esforços tenham sido feitos na tentativa de uma completa
compreensão do texto das músicas, utilizando equalizadores e filtros para tornar mais clara
o entendimento da pronuncia dos integrantes, nem sempre isso foi possível, assim
aparecem interrogações (?) como indicativos, demonstrando que algo deveria estar ali.
A ordem das transcrições, respeita a ordem de execução escolhida pelo grupo.
Todos os cantos transcritos neste trabalho estão no CD que segue em anexo onde os
números das faixas correspondem aos números das transcrições. Alguns cantos, gravados
sem interrupção do instrumental de uma música para a outra, foram divididos em faixas
distintas para facilitar o manuseio da escuta. Para manter a idéia de continuidade entre uma
música e outra, optei por colocar no início de uma música, o final do canto anterior, assim,
dando a entender que elas foram gravadas sem interrupção do instrumental.
Como esclarecido no capítulo 4 deste trabalho, as transcrições não pretendem – e
nem poderiam – trazer a totalidade da música do Terno do Mestre João Farias. Dessa
maneira, entendo que elas trazem somente os elementos necessários para a ilustração da
estrutura musical e dos aspectos abordados sobre a música desse grupo.
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