Mulheres de Atenas_Fábio de Souza Lessa_resenha

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Anlise da letra de Mulheres de Atenas | Chico Buarque e Augusto Boal.www.mundocultural.com.br

Anlise da letra de Mulheres de Atenas de Chico Buarque e Augusto Boal.Elaborao: Professor Jos Atansio Rocha Email: [email protected]

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Mulheres de Atenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Vivem pros seus maridos, orgulho e raa de Atenas Quando amadas, se perfumam Se banham com leite, se arrumam Suas melenas Quando fustigadas no choram Se ajoelham, pedem, imploram Mais duras penas Cadenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem por seus maridos, poder e fora de Atenas Quando eles embarcam, soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam sedentos Querem arrancar violentos Carcias plenas Obscenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas Quando eles se entopem de vinho Costumam buscar o carinho De outras falenas Mas no fim da noite, aos pedaos Quase sempre voltam pros braos De suas pequenas Helenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas Elas no tm gosto ou vontade Nem defeito nem qualidade Tm medo apenas No tm sonhos, s tm pressgios O seu homem, mares, naufrgios Lindas sirenas Morenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Temem pro seus maridos, heris e amantes de Atenas As jovens vivas marcadas E as gestantes abandonadas No fazem cenas Vestem-se de negro se encolhem Se confortam e se recolhem

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s suas novenas Serenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Secam por seus maridos, orgulho e raa de Atenas. BUARQUE, Chico, BOAL, Augusto. In: Chico Buarque letra e msica. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 144.

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Memria discursiva. Mulheres de Atenas faz referncia a aspectos da sociedade ateniense do perodo clssico e a alguns episdios e personagens da mitologia grega. A letra faz uma aluso aos famosos poema s picos Ilada e Odissia, ambos atribudos a Homero. Penlope, mulher de Ulisses, heri do poema Odissia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, perodo em que ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade; mas, por um lado, sua formosura, e, por outro, os bens familiares atraem a cobia de pretendentes, que julgavam seu marido morto. Ela lhes dizia que s escolheria o futuro marido aps tecer uma mortalha, que, a bem da verdade, no fazia questo de terminar: passava o dia tecendo e, noite s escondidas, desmanchava o trabalho realizado. E enquanto seu marido se mantinha ausente, embora por tanto tempo sem notcia, ela se vestia de longo, tecia longos bordados, ajoelhava-se, pedia e implorava para a deusa Atena que providenciasse o retorno de seu amado. Helena, filha de Zeus, era considerada a mulher mais bela do mundo. Sua histria uma das mais conhecidas na mitologia grega. Esposa de Menelau, rei de Esparta, foi seduzida e raptada por Pris, filho do rei de Tria. Esse rapto deu origem guerra de Tria, que os gregos promoveram para resgatar Helena; fato narrado em Ilada de Homero. Embora Ulisses no figurasse no primeiro plano da Ilada, nela freqentemente mencionado, como um viajante conduzido terras distantes e heri da batalha de tria. Por essa escolha Homero, o poeta, relaciona as duas epopias. A esposa de Ulisses, a prudente Penlope, ope-se esposa infiel seno verdadeiramente culpada Helena, que na Ilada causa inicial da guerra. Por essas e outras razes a Odissia est intimamente ligada Ilada. Assim, como uma referncia histrica de um momento da humanidade que data de 5 sculos antes de Cristo, os autores de Mulheres de Atenas valem-se da ideologia de Odissia para chamar a ateno das mulheres que ainda vivem e secam por seus maridos ao estilo ateniense. Aps a narrativa da morte dos pretendentes de Penlope, o rei Agammnon, filho de Atreu, lamenta profundamente a morte dos que lhes eram caros e faz a seguinte referncia esposa de Ulisses, descrita em Odissia, de Homero, na Rapsdia XXIV, p. 216, Abril Editora, edio de 1981: A alma do filho de Atreu exclamou: Ditoso filho de Laertes, industrioso Ulisses, grande era o mrito da que tomaste por esposa. Nobres os sentimentos da irrepreensvel Penlope, filha de Icrio, que soube manter-se sempre fiel a seu esposo Ulisses! Por isso, jamais perecer a fama de sua virtude, e os Imortais inspiraro aos homens belos cantos em louvor da prudncia de Penlope. Os autores tambm realizam um apurado trabalho com a linguagem, no que se refere tanto construo das frases quanto seleo e ao emprego das palavras. Para obtermos uma melhor compreenso desse texto, necessariamente teremos de percorrer os caminhos da histria, da mitologia, e reconhecer o dilogo aberto com outros textos, contido em Mulheres de Atenas. Entretanto, no nosso ofcio nos deter extensivamente com a histria que envolvia a sociedade ateniense na poca de Odissia. Por essa razo, e colaborando com o trabalho de estabelecer essas pontes, antes do desenvolvimento de nossa anlise, de forma sucinta, apresentamos um trecho escrito pelo historiador Edward MacNall Burns sobre o comportamento das mulheres de Atenas dos sculos V e IV a.C.: Embora o casamento continuasse a ser uma instituio importante para a procriao dos filhos, que se tornariam os cidados do Estado, h razo para se crer que a vida familiar tivesse declinado. Ao menos os homens de classes mais prsperas passavam a maior parte do tempo longe de suas famlias. As esposas, relegadas uma posio inferior, deviam permanecer

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reclusas em casa. O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras1, algumas das quais eram naturais das cidades jnicas e demonstravam grande cultura. Os homens casavam para assegurar legitimidade ao menos a alguns de seus filhos e para adquirir prosperidade por meio do dote. Era tambm necessrio, naturalmente, ter algum para tomar conta da casa. comum, ainda nos dias de hoje, leitores menos avisados considerarem essa msica como uma apologia submisso e subservincia feminina ao machismo brasileiro, a exemplo das mulheres da Grcia antiga. Alis, isso aconteceu com muitas mulheres que se diziam feministas, algumas leitoras vacilantes e obtusas, que criticaram os autores porque julgaram a msica machista segundo elas, a letra da msica sugeria que as mulheres de hoje tivessem o mesmo comportamento das mulheres da antiga Atenas. No conseguiram perceber a inteligente ironia do texto... Onde se l Mirem-se... sugere-se que se faa o contrrio; dessa forma, o texto um hino contra a submisso das mulheres que se sujeitam s regras ditadas pelas sociedades patriarcais. O prprio Chico Buarque, em uma entrevista televiso Cultura, ao ser indagado sobre o pensamento das feministas da poca, disse: Elas no entenderam muito bem. Eu disse: mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocs vo ver o que vai dar. A coisa exatamente ao contrrio.

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mulher dissoluta, cortes, prostituta elegante e distinta.

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Estrutura do Texto. Mesmo sendo uma letra de msica, portanto um texto para ser ouvido, Mulheres de Atenas apresenta um primoroso trabalho formal. O texto se compe, fundamentalmente, de cinco estrofes de nove versos cada uma. As estrofes apresentam um esquema fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o stimo. Do ponto de vista mtrico, inegvel a habilidade do autor que abusou de uma mtrica eleboradssima: os dois primeiros versos tm 14 slabas poticas: o terceiro, o quarto, o sexto e o stimo tm oito; o quinto e o oitavo tm quatro e o nono tem duas. Os dois primeiros versos funcionam como refro. As idias bsicas do poema so reafirmadas pelo fim do poema que traz o refro como se quisesse inicial uma sexta estrofe. Por conta desse rol de advertncias podemos verificar uma situao cclica de ladainhas que no pretendem parar no poema. Ao introduzir no final do poema a repetio, como se fosse iniciar uma nova estrofe, o autor deixa livre para a reflexo do leitor que poder buscar no subconsciente qualquer fato que se assemelha s advertncias anteriores para complet-lo. Exatamente por conta disso que o refro vem no incio de cada estrofe. O refro apresentado nessa msica nos remete mesma estrutura usada nas cantigas medievais. O paralelismo apresentado nele bastante semelhante ao das cantigas medievais, porm, com ligeiras alteraes no segundo verso. O primeiro verso do refro sempre se repete identicamente em todas as estrofes, introduzindo uma idia de mltiplas escolhas no segundo verso, com poucas variaes entre si em todas as estrofes, mantendo-se fixas as formas pros seus maridos e Atenas. A semelhana no reside somente no paralelismo, mas tambm na mtrica de 14 slabas poticas, uma contagem marcante na Cantiga de Amor de Bernardo de Bonaval, entre os sculos XII e XIII, aproximadamente. Essa no , sem dvida, a primeira e nica performance de Chico Buarque com semelhanas medievais. As msicas Atrs da Porta e Com Acar Com Afeto, por exemplo, so claros exemplos de cantigas medievais de amigo, de autoria masculina para um Eu-lrico feminino, cujo tema sugere um lamento pela ausncia do amigo (amante). Esse , sem dvida, um recurso marcante nas cantigas medievais tambm usado nas msicas dos autores contemporneos Caetano Veloso (Esse Cara) e Vincius de Moraes (Pobre Menina Rica).

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O eixo paradigmtico da cano. Do ponto de vista sinttico, podemos destacar os sujeitos presentes na cano (SN sintagma nominal) e seus respectivos predicados (SV sintagma verbal). O ponto mais importante da cano est no segundo verso de cada estrofe. Ele tem sua carga significativa centrada no verbo, sempre em terceira pessoa do plural, tendo como SN ELAS, as mulheres de Atenas. Evidentemente, no coletivo, porm, representadas pelas figuras de Penlope e Helena. H, tambm, outro SN que introduzido no enredo e faz parte do contexto, sem importncia central: ELES (soldados, seus maridos, bravos guerreiros, etc). A meno de Helena, uma figura de conduta antagnica de Penlope, feita no poema para expressar sua rara beleza. Assim seus maridos buscam os carinhos de outras falenas (outro SN), mas mantm em suas residncias uma mulher de beleza maior para quem sempre voltam para os braos, sem reminiscncia de seus atos extraconjugais. Mas o eixo paradigmtico da cano marcado pelo SV, mais notadamente com a presena dos verbos conjugados em 3 pessoa do plural, como uma ao que ainda ocorre no presente do indicativo. Eles se fazem presentes no segundo verso de cada estrofe, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas. Assim, vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam, so verbos se so colocados numa forma cclica das funes e das vidas daquelas mulheres. Temos, assim, um ciclo que se inicia com o verbo viver e se fecha com o verbo secar, isto , morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade nica de gerarem os filhos, pois o amor deles desfrutado pelas famosas heteras (falenas) ou amantes; afora isso, s fazem sofrer e temer. Esses verbos resumem uma existncia quase sem muito propsito e sem autonomia, como escravas de seus prprios maridos.

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Marcadores da narrativa e da oralidade. H muito, muito pouca caracterstica de oralidade no poema, podendo somente ser percebida no refro, mais notadamente no segundo verso de cada estrofe com a conjuno (em contrao) pros. Na instncia da narrativa no observamos fortes demarcaes de tempo (no se define poca ou momento histrico; considera-se um tempo genrico, falando no presente, mas se referindo a um passado indeterminado). Quanto ao espao, este demarcado como a cidade de Atenas, havendo menes de mares e de guerras (supostamente em terras distantes, fato denunciado pelas ausncias e naufrgios de seus maridos). Quanto aos verbos, podemos afirmar que eles fazem a funo da narrativa, exibindo a condio dos sujeitos atenienses. Entretanto, do ponto de vista gramatical destacamos que o autor dirige a narrativa ao conjunto de mulheres que se submetem aos valores da sociedade patriarcal no instante presente. Esse conjunto est representado gramaticalmente pelo sujeito da forma verbal de terceira pessoa do plural do imperativo afirmativo mirem-se (vocs). Observe que o verbo no imperativo no admite a classificao de sujeito indeterminado (a norma culta diz que s se emprega o imperativo quando se tem certeza do enunciatrio da mensagem, da no ser possvel classificar o SN de um imperativo como indeterminado).

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Da instncia lexical. Podemos destacar, para elucidar um pouco mais o poema, duas palavras estrategicamente citadas pelo autor: Cadena e Falena. Cadena um espanholismo que significa cadeia, corrente. Se consultarmos o Aurlio, teremo s a seguinte definio: Meio empregado para tirar dos chifres do touro, sem perigo, o lao que o prende. Os dois sentidos significam um aprisionamento ou acorrentamento. Assim, cadenas nos remete cadeia em que as mulheres de Atenas vivem, aprisionadas pelos desejos e caprichos de seus maridos. Falena no mesmo dicionrio explicada da seguinte forma: Gnero de insetos lepidpteros, noctudeos, que rene mariposas noturnas cujas larvas, fitfagas, so nocivas a culturas vegetais. Todavia o sentido emp regado aqui metafrico, referindo-se a uma prostituta. Ao usar o verbete falena, o autor estabelece uma das metforas mais significativas do poema. No sentido denotativo, falena significa mariposa de ao noturna, ou seja, que brilha a noite. No sentido conotativo, o termo falena empregado no poema, fazendo uma aluso s prostitutas que brilham a noite, ou seja, que tm vidas noturnas, que so procuradas noite pelos maridos. Assim, falena representa uma grande e importante metfora que denuncia o comportamento narrado pelo historiador Edward MacNall Burns quando diz: O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras, conforme j o dissemos anteriormente. Do ponto de vista semntico, h um grande emprego de palavras com muita aproximao para corroborar a idia condicional das mulheres atenienses. Podemos destacar algumas palavras mais prximas semanticamente: amadas... carinhos; pedem... imploram; fustigadas... penas; carcias... carinhos; gosto... vontade; sonhos... pressgios; Por outro lado, h outras mais distantes semanticamente: amadas... fustigadas; violentos... amantes; violentos... carinho; defeito... qualidade; amadas... abandonadas; encolhem... confortam. Mas o grande sentido de distanciamento se encerra na grande anttese do poema: vivem... secam (no sentido de morrem).

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O dilogo entre os textos (intertextualidade) O dilogo que Mulheres de Atenas estabelece com o poema Odissia, com a histria e a mitologia da Grcia Clssica o que podemos chamar de intertextualidade. O poema faz referncias camufladas obra mitolgica grega de Homero, mais notadamente histria de Penlope, despersonalizao das mulheres de Atenas e passagem pela ilha das sereias, vivida por Ulisses. importante notar a forma subentendida que o autor se refere Penlope no poema. Segundo a histria de Penlope, em Odissia, a virtuosa esposa de Ulisses convence seus pretendentes de que deveria fazer uma tnica, que serviria de mortalha para cobrir o corpo de Laertes, o venervel pai de Ulisses, que com a notcia do casamento de sua nora, morreria de depresso, dado ao avanado da idade. E como era costume das mulheres tecerem uma mortalha para os entes queridos que se encontravam prestas a deixar esse mundo, Penlope usa desse artifcio para ganhar tempo com seus pretendentes, que aquiesceram de pronto, por ser uma proposta justa. Entretanto, ela nunca a terminaria, pois na tentativa de fazer com que seus pretendentes desistissem da idia de disputar o lugar de Ulisses, ela desmanchava a noite o que fazia durante o dia. Ento a esposa do aventureiro Ulisses conhecida na mitologia grega como o smbolo da mulher que tece longos bordados, enquanto seus maridos se ausentam por perodos delongados. No poema de Chico Buarque essa referncia Penlope feita na segunda estrofe: Quando eles embarcam, soldados / Elas tecem longos bordados / Mil quarentenas. Ao se referir s mulheres atenienses, o autor expe a vida de completa subservincia a que elas se submetiam para seus maridos. Em Ilada, Helena usada pela deusa Vnus para servir como prmio para o prncipe Pris. Ao apaixonar-se por ele, ela tida como vulgar, por haver deixado de amar seu verdadeiro marido. Essa situao foi abordada e defendida por Grgias, um sofista e mestre da retrica clssica grega, que escreveu um discurso intitulado Elogio a Helena, em 414 a.C. A questo colocada por Grgias era que Helena, apesar de casada com Menelau e, do ponto de vista moral ligada a ele, tinha tamb m o direito de apaixonar-se por Pris, dando vazo aos seus sentimentos. Na verdade, Vnus prometera a Paris no apenas Helena, mas o amor de Helena, dizendo: ... Se o amor um deus, como poderia ter resistido e vencer o divino poder dos deuses quem mais fraco do que eles? Se se trata de uma enfermidade humana e de um erro da mente, no h que se censurar como se fosse uma culpa, mas consider-la apenas uma m sorte2. Os versos que salientam uma absoluta despersonalizao das mulheres de Atenas esto na quarta estrofe: Elas no tm gosto ou vontade / Nem defeitos nem qualidade / Tm medo apenas. Outra referncia epopia de Homero o momento da passagem de Ulisses, em sua longa viagem, pela ilha das Sereias, prximo ao golfo de Npoles. Segundo o pico, Ulisses tapou com cera os ouvidos de seus companheiros e pediu que o amarrassem ao mastro do navio, para que nem ele nem a tripulao se deixassem seduzir pelo canto de morte das sereias, todavia, ele queria saber como era esse canto. Essa passagem no passa desapercebida pelo autor da msica e lembrada nos versos: O seu homem, mares, naufrgios / Lindas sirenas / Morenas. Sirenas, segundo o Aurlio, o mesmo que sirene (objeto emissor de som, muito usado em navios) ou sereia. O aparelho que produz som tem esse nome por lembrar o hipnotizante canto das sereias da mitologia.

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GRGIAS, Fragmentos y Testimonios, pp. 90-91. Traduo de Antnio Sures Abreu, professor livre docente pela Universidade de So Paulo, in: A Arte de Argumentar Gerenciando Razo e Emoo.

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Os recursos expressivos do texto inegvel que o texto de Mulheres de Atenas bastante requintado e muito bem elaborado, tanto na sua estrutura quanto nas referncias cultura grega do perodo clssico. Numa primeira leitura ou acompanhamento da msica somos fisgados pela emoo esttica da msica, podendo at nos determos em algumas passagens especficas. Mas s com sucessivas leituras, realizando um trabalho mais racional (sem perder a emoo) que chagamos uma interpretao mais rica do texto. A cano inteiramente metaforizada. Isso faz dela um poema, embora haja um indcio de narrativa ao passar uma idia do que acontece com as mulheres em Atenas. Algumas metforas mais expressivas podem ser destacadas facilmente na cano e sua significao , quase sempre, muito sutil. Metfora Se banham com leite Tecem longos bordados Mil quarentenas Aos pedaos Carcias Plenas Falenas Voltam pros braos Helena No tm sonhos No tm vontade Jovens vivas marcadas No fazem cenas Vestem-se de negros Secam Despem-se pros maridos Temem por seus maridos Sentido semntico No vem o sol nem a cara da rua. Preservam-se. Anos a fio a espera de seus maridos Cansados, fatigados. Fazer sexo Prostitutas. Procuram Beleza de mulher / mulher bela. Vida vazia No amam Aprisionadas Subservincia, sem murmurar. Vivas Morrem Fazem sexo Inseguras

Outro recurso muito presente a anttese. Ao expressar a condio feminina da mulher ateniense, o autor valoriza suas palavras com idias contrrias. Assim, podemos destacar: defeito... qualidade; vivem... secam (morrem); despem-se... vestem-se; gosto... vontade; amadas... abandonadas; embarcam (partem)... voltam; etc. Outro, menos abundantes, o anacoluto, usado apenas para manter a construo idntica das estrofes: Lindas sirenas (sereias) / Morenas; Se confortam e se recolhem / s suas novenas / Serenas; Querem arrancar violentos / Carcias plenas; etc.

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Alguns eufemismos so empregados no texto para atenuar a condio de dramaticidade exposta pelo autor. Destacamos alguns: Eufemismo Se banham com leite Despem-se pros maridos Costumam buscar os carinhos Se entopem de vinhos Aos pedaos Falenas (mariposas) (Violentos), Carcias plenas No tm gosto ou vontades Nem defeito nem qualidade Lindas sirenas Morenas Se confortam e se recolhem Sentido semntico Aprisionam-se em casa. So usadas pelos maridos Traem suas mulheres Embriagam-se Imundos Prostitutas Estupro, fazer sexo violentamente Mal amadas Abjeto (desprezvel) Prostitutas Se aprisionam

H outro recurso expressivo que aparece logo no incio do texto, na primeira estrofe, que denuncia a degradante condio das mulheres de Atenas em total subservincia. o emprego da Gradao. Nesse caso, o autor estabelece uma gradao com clmax ao empregar uma seqncia encadeada em ordem crescente: Se ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas / Cadenas (cadeias). O zeugma outro recurso presente nessa cano. O autor se vale desse recurso para imprimir um ritmo de reflexo maior ao comparar a condio (ou estilo de viver) da mulher com a do homem; exemplo: Elas no tm gosto ou vontade / Nem defeito nem qualidade / (elas) tm medo apenas / (elas) No tm sonhos, s tm pressgios / O seu homem (tem) mares, naufrgios / Lindas sirenas / Morenas. O zeugma marcado pela elipse de um termo integrante da orao que foi mencionado anteriormente. Quando se refere mulher, o autor usa o verbo tm, considerando que elas no tm sonhos, mas apenas prenncios e agouro a respeito do futuro, portanto, tm medo apenas; j seu homem, esse tem o mar, o naufrgio (aventura) e lindas sereias morenas, ou mulheres para seus deleites, enquanto as esposas ficam encarceradas em casa, banhando-se com leite, pela ausncia do ar da rua. Mas o recurso estilstico mais importante dessa msica fica reservado para a ironia. Esse recurso permeia toda a cano e consiste em dizer o contrrio do que se est pensando ou questionar certo tipo de comportamento com a inteno de ridicularizar, de ressaltar algum aspecto passvel de crtica. nesse sentido que o autor usa o verbo mirem-se para dizer no faa isso jamais, ou seja, tome cuidado com isso; evite isso. No a primeira vez que Chico usa de ironia em suas canes. Na msica Bom Conselho, Chico trabalha ironicamente os provrbios tradicionais. Veja sua forma irnica de se referir a eles:

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Bom Conselho Oua um bom conselho Eu lhe dou de graa Intil mentir que a dor no passa Espere sentado Ou voc se cansa Est provado, quem espera nunca alcana Venha meu amigo Deixe esse regao Brinque com meu fogo Venha se queimar Faa como eu digo Faa como eu fao Aja duas vezes antes de pensar Corra atrs do tempo Vim de no sei onde Devagar que no se vai longe Eu semeio vento na minha cidade Vou para rua e bebo a tempestade...

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Concluso do ponto de vista estilstico. Mulheres de Atenas uma cano que pode ser considerada uma advertncia para as mulheres contemporneas que ainda vivem sob um modelo de uma sociedade patriarcal, com costumes praticados h quase 400 anos antes de Cristo, em Atenas, na Grcia antiga. Para expressar a idia irnica que sugere uma mudana de vida, o autor provoca intertextualidade com as maiores obras sobre a mitologia grega: Ilada e Odissia, ambas atribudas a Homero. Ao se referir quelas obras, o poema traz como referncia a histria de duas mulheres que representam as mulheres atenienses: Penlope e Helena. A primeira, mulher de Ulisses, heri do poema Odissia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, perodo em que ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade. A segunda, motivo da guerra de Tria, representa um smbolo da beleza para quem seus maridos voltam sempre correndo para seus braos, aps deitarem-se e fartarem-se com suas famosas falenas (mulheres dissolutas, cortess, prostitutas elegantes e distintas). Composto de 5 estrofes de nove versos cada uma, o poema apresenta um esquema fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o stimo. Os dois primeiros versos funcionam como refro. As idias bsicas do poema so reafirmadas pelo fim do poema que traz o refro como se quisesse inicial uma sexta estrofe, entretanto, sugere uma continuidade s advertncias proferidas. Os sujeitos da histria so as mulheres de Atenas, no sentido coletivo. Por isso, o eixo paradigmtico da cano marcado pelo SV, mais notadamente com a presena dos verbos conjugados em 3 pessoa do plural, como uma ao que ocorre no momento presente. por isso que a advertncia dirigida para as mulheres que ainda se submetem ao sistema patriarcal, em completa subservincia aos seus desditosos maridos, at morrerem. Tais verbos marcam uma situao cclica, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas que vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam, em que o verbo viver se une com o verbo secar, isto , morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade nica de gerarem os filhos, pois o amor deles desfrutado pelas famosas heteras (falenas), ou amantes; afora isso, s fazem sofrer e temer. No s do ponto de vista estrutural que Mulheres de Atenas surpreendente. Semanticamente, ela se pauta sobre uma grande ironia. Assim, a grande surpresa da cano fica por conta do sentido irnico que o autor estabelece na mensagem que procura passar para as mulheres que no perceberam que ainda vivem centenas de sculos atrs, secando-se por seus maridos, sem serem amadas ou tratadas com dignidade. O movimento feminista trouxe vrias conquistas nas ltimas dcadas e a evoluo da condio feminina tem alterado o comportamento geral, de homens e mulheres, no sentido de um equilbrio maior na distribuio de funes, no trabalho e na vida em famlia. Entretanto, h mulheres que ainda no perceberam essa mudana nem a importncia de seu papel na sociedade contempornea. Por isso, Chico faz a advertncia, sugerindo que elas mudem de conduta e tomem outros rumos. Assim, o autor exprime-se do contrrio daquilo que se est pensando, ou seja, NO para seguir o exemplo daquelas mulheres de Atenas. Mirem-se no exemplo delas e faam o contrrio! A ironia no se prende somente falta de clareza da prpria condio da mulher. O autor estende sua ironia tambm aos homens que se consideram superiores e elevados, em relao ao sexo feminino. Tomando como base o segundo verso de cada estrofe veremos que sempre quando se refere aos homens atenienses, Chico faz complementos enaltecendo suas caractersticas. O exagero e a insistncia da exposio das qualificaes superiores masculinas tornam-se cansativos e chamam bastante a ateno daqueles homens que, na viso das mulheres de Atenas, so heris, mas, por outro lado, so cativos de suas falenas, de sereias, aventuras, naufrgios e morte prematura, por inconseqncias de seus atos vulgares. Assim, o

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que parece querer enaltecer as habilidades e as caractersticas dos maridos atenienses torna-se outra ironia de grande dimenso. Os seus maridos, orgulho e raa, poder e fora, bravos guerreiros, procriadores, heris e amantes, na verdade so ausentes, agressivos, mal amantes, violentos, irresponsveis e infiis. nesse sentido que ironicamente o autor se refere supremacia masculina dos maridos das Mulheres de Atenas. Esse , sem dvida, um majestoso texto, como muitos outros desse poeta ainda pouco conhecido e no to bem avaliado: o nosso grande Chico Buarque de Holanda.

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