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INFORMAÇÃO SOBRE OS DIREITOS HUMANOS E O TRABALHO DO MOSAIKO | INSTITUTO PARA A CIDADANIA 26 JULIETA ALEXANDRE DIOGO Figura em Destaque - Pág. 07 DR. TOMáS DA COSTA Entrevista - Pág. 12 CAMINHOS PARA HUMANIZAçãO NOS CUIDADOS DOS DOENTES Reflectindo - Pág. 16 DIREITOS DAS PESSOAS DOENTES

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Direitos das Pessoas doentes

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INFORMAÇÃO SOBRE OS DIREITOS HUMANOS E O TRABALHO DO MoSaiKo | INSTITUTO PARA A CIDADANIA

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Julieta alexanDre Diogo Figura em Destaque - Pág. 07

Dr. toMáS Da coSta Entrevista - Pág. 12

caMinHoS para HuManização noS cuiDaDoS DoS DoenteSReflectindo - Pág. 16

DiREitos Das pEssoas DoEntEs

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índice

A sAúDE é um PRoblEmA PolítiCo, EsPECiAlmEntE no quE tAngE à mEDiCinA PREvEntivA. As EstRutuRAs DE sAúDE são REFlExos DA soCiEDADE; Assim, As EstRutuRAs PolítiCAs são os nossos mElhoREs instRumEntos PARA o DEsEnvolvimEnto DE um PRogRAmA DE AtEnDimEnto méDiCo. A mAioR DiFiCulDADE Está Em muDAR A mEntAliDADE DAs PEssoAs.

Helder Martins

Ficha técnica

pRopRiEDaDEMOSAIKO | Instituto para a Cidadania

niF: 7405000860nº DE REgisto: MCS – 492/B/2008

DiREcçãoJúlio Candeeiro, opLuís de França, op

Mário Rui Marçal, op

REDacçãoMaria de Jesus Tavares

colaboRaDoREsDr.ª Mary Daly

Ir. Maria FernandaPassy Muzinga

MontagEM gRáFicaGabriel Kahenjengo

contactosBairro da Estalagem - Km 12 | Viana

TM: (00244) 912 508 604TM: (00244) 923 543 546

Caixa Postal 2304 - Luanda | AngolaE-mail: [email protected]

www.mosaiko.op.orgwww.facebook.com/Mosaikoangola

iMpREssãoDamer Gráficas SA – Luanda

tiRagEM: 2500 exemplares

DistRibuição gRatuita

Os artigos publicados expressam as opiniões dos seus autores, que não

são necessariamente as opiniões do Mosaiko | Instituto para a Cidadania.

coM o apoio

Mosaiko inFoRM nº 26 - MARçO 2015 tEMa: DIREITOS DAS PESSOAS DOENTES

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editorialJúlio Candeeiro, op

informandoDireito à Saúde | Passy Muzinga

estórias da históriaOrganização Mundial da Saúde | Maria de Jesus Tavares

figura de destaqueJulieta Alexandre Diogo Ir. Maria Fernanda

construindoExperiências de vida: doentes com tuberculose e doentes mentaisMaria de Jesus Tavares

entrevista Dr. Tomás da Costa | Maria de Jesus Tavares

reflectindo Caminhos para humanização nos cuidados dos doentes Drª Mary Daly

breves

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editorial

Estimado leitor/a

A Constituição da República de Angola atesta, no seu art.º 17º, que tanto as pessoas doentes como as pessoas com deficiências, tanto as crianças como os idosos necessitam da protecção especial do Estado. Aliás, a própria Declara-ção Universal dos Direitos Humanos (art.º 25º), e o PIDESC – Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais reiteram o mesmo argumento demonstrando a pertinência dos direitos das pessoas doentes.

No art.º 12º do PIDESC atribui-se aos Estados Parte do Pacto, o dever de reconhecer o direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possí-vel de atingir. Nesta óptica, os direitos da pessoa doente fundam-se na sua intíma ligação com o direito à vida (artº 1º da DUDH e artº 3º da CRA) condição essencial para o gozo de todos os outros direitos.

Em Entrevista exclusiva ao Mosaiko Inform, o Dr. Tomás da Costa, professor de Gestão Hospitalar, chama aten-ção para a necessidade de uma maior divulgação dos Direitos da Pessoa doente. Esta edição traz como Figura de Destaque a irmã Julieta Alexandre Diogo, Missionária Dominicana do Rosário, que trabalha no dispensário da Missão de Kalandula, província de Malange, onde dedica uma atenção especial aos cuidados materno-infantis. Na secção Reflectindo, a Dr.ª Mary Daly reflecte sobre o tema

DireitoS DaS peSSoaS DoenteS

Júlio Gonçalves Candeeiro, op

da humanização e o papel do Estado na instauração de va-lores humanos na saúde. Estórias da História convida-nos a conhecer a OMS - Organização Mundial da Saúde. Passy Mu-zinga, na secção Informando, percorre vários documentos (Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Decla-ração Universal dos Direitos Humanos, PIDESC, etc.) como instrumentos que podem e devem ser divulgados e utiliza-dos pelos cidadãos e pelas instituições angolanas de forma a garantir o gozo dos direitos dos doentes a um tratamento digno. Finalmente, as noticias breves destacam a V Semana Social nacional, decorrida em Luanda, sob o tema “Igualda-de de oportunidades” e o Encontro Aprendendo Juntos 2015 que decorreu em Viana..

É verdade, todos nós num ou outro momento da nossa vida caímos doentes. Este dado, deveria contribuir para uma mobilização mais acentuada na promoção e protecção dos direitos das pessoas doentes que, para além de fragiliza-das fisiologicamente, são, muitas vezes, discriminadas em função do tipo de doenças que sofrem. A saúde é um bem maior, não se pode falar em vida verdadeiramente humana, faltando saúde. Como dizia Michel de Montaigne: “É coisa preciosa, a saúde, e a única, em verdade, que merece que na sua procura empreguemos não apenas o tempo, o suor, a pena, os bens, mas até a própria vida; tanto mais que sem ela a vida acaba por tornar-se penosa e injusta”.

www.mosaiko.op.org

O ENSINO DOS DIREITOS HUMANOSNAS ESCOLAS CATÓLICASEstuDos DE CAso: bEnguElA, huAmbo, luAnDA E mAlAngE

Relatório de Pesquisa 2014

noVa puBlicação adquira já!

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O Direito à Saúde, tal como nós o conhecemos hoje, não fazia parte dos direitos individuais consigna-dos na DUDH – Declaração universal dos Direitos Humanos. Contudo, ele aparece, ainda que diluído, no artigo 25º da mesma Declaração que a seguir se transcreve:

Direito à um nível de vida suficiente “Todo o ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensá-veis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.”

protecção especial da maternidade e da infância “A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozarão da mesma protecção social.”

Assim, alguns autores defendem que o Direito à Saú-de na concepção abrangente que adquiriu nas socie-dades contemporâneas pode até ser considerado um direito da terceira geração, isto é, um direito que não está explicitamente descrito. Contudo, o direi-to à saúde está consagrado nos tratados interna-cionais e regionais relativos aos Direitos Humanos. Deve-se então citar o “Pacto internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais”. Aí se diz que todas as pessoas têm direito a gozar do me-lhor estado de saúde física e mental possível, e ao mesmo tempo se afirma que os Estados têm o dever de criar as condições próprias que garantam a todas

as pessoas os serviços e a ajuda médica em caso de doença.

Também a carta africana dos Direitos Humanos e dos povos, no seu art. 4º faz uma referência indirec-ta à saúde como bem inviolável ao dizer: “A pessoa humana é inviolável. Todo o ser humano tem direito ao respeito da sua vida e à sua integridade física e moral. Ninguém pode ser arbitrariamente privado desse direito”.

Esta observação geral considera o direito à saúde, como um direito global, no sentido em que além da prestação dos cuidados de saúde apropriados a cada etapa da vida, tem em conta também factores fun-damentais determinantes da saúde como: o acesso à água potável, o acesso à uma quantidade suficien-te e com qualidade de alimentos, ao alojamento e à informação relativa à saúde.

O direito à saúde, sendo um direito fundamental im-põe ao Estado três tipos de obrigações:

w Respeito: o Estado não pode interferir ou violar o direito a saúde, não pode ser obstáculo para o exercício do direito à saúde;

w protecção: impedir que agentes não éticos ou não estatais possam interferir ou servir de obstáculos para o exercício do direito à saúde;

w implementação: adoptar medidas apropriadas de ordem legislativa, administrativa ou orçamental para assegurar a plena realização do direito à saúde.

O Estado tem a obrigação de pôr em prática a nível Nacional uma estratégia, e um plano de acção em matéria da saúde pública que responda às preocu-pações do conjunto da população.

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informandoDiREito à saúDE Passy Muzinga

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Essa estratégia e esse plano devem ser examinados periodicamente num quadro de um processo parti-cipativo e transparente, com base em indicadores e critérios que vão permitir controlar a par e passo os seus progressos. A seguir se indicam alguns dos critérios que podem servir para a avaliação de um sistema de saúde.

w A disponibilidade dos bens e serviços de saúde, assim como programas que têm de estar dispo-níveis em quantidade suficiente e bem executa-dos;

w A qualidade e acessibilidade das instalações, bens e serviços. A acessibilidade exige a não discriminação, não tendo em conta a posição socioeconómica ou política;

w Aceitabilidade tem que ver com todos os bens e serviços que devem respeitar a ética médica e devem estar sensíveis ao género e às condi-cionantes específicas de cada etapa do ciclo de vida, respeitar a confidencialidade e melhorar a saúde e o estado da saúde daqueles a quem se dirige;

Nas últimas décadas, o direito à saúde tem sido confrontado também com os modos diferentes de encarar a relação do médico-doente. O paradigma clássico da relação médico-doente tem vindo a ser substituído por um diferente paradigma, que reco-nhece que o acto médico é sempre “uma relação entre pessoas, enquanto pessoas e não uma re-lação pessoa-objecto”. Considera-se ainda, que o acto médico diz respeito ao corpo, e logo envolve também a parte ética, ou seja, envolve a compo-nente espiritual da pessoa. Não é por estar doente que a pessoa deixa de ser titular dos seus direitos e, logo, do direito à autodeterminação nos cuida-dos de saúde e à liberdade. O problema do acto médico, do acto de enfermagem ou de qualquer outro acto prático na área da saúde, é de ser uma relação entre a pessoa e um técnico de saúde.

Tradicionalmente entendia-se como saúde a ausên-cia de doença. Mas a OMS – organização Mundial de Saúde já há vários anos passou a adoptar uma noção de saúde muito mais abrangente. “Saúde” é um estado completo de bem-estar físico, mental e social, e não consiste somente na ausência de do-ença ou enfermidade.

Assim, se devem reforçar as capacidades da OMS, e dos Estados membros com o fim de melhorarem os direitos humanos no domínio da saúde, darem mais lugar ao direito à saúde no direito internacio-nal e no processo do desenvolvimento internacio-nal.

Por tudo isto, se percebe que o Direito à Saúde é um direito fundamental que tem de ser posto em prática, e respeitado por cada Estado. Ou seja, con-tinua a ter toda a pertinência, sobretudo, no nosso continente, a afirmação do antigo Secretário Geral das Nações Unidas ao dizer: “é meu objectivo que a saúde seja finalmente vista, não como uma bên-ção pela qual se espera, mas, sim como um direito humano pelo qual se tem de lutar”. kofi annan.

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é meu objectivo que a saúde seja finalmente vista, não como uma bênção pela qual se espera, mas, sim como um direito humano pelo qual se tem de lutar.

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A oMS - organização Mundial de Saúde foi criada como uma agência específica das Organizações das Nações Unidas em 1948. O seu objectivo é proporcio-nar a cada criança, mulher e homem a melhor oportu-nidade de terem uma vida mais saudável e mais longa apoiando a cooperação internacional para a melhoria das condições de saúde.

As acções da OMS centram-se no controlo de epide-mias, o emprego de medidas de quarentena, estan-dardização de medicamentos, regulamentação sa-nitária, planeamento e execução de campanhas de vacinação, rastreio e prevenção de doenças através da informação prestada às populações. A instituição que tem a sua sede em Genebra, na Suíça, é finan-ciada por contribuições anuais dos estados-membros e diversos doadores. A OMS é composta por 193 Es-tados-membros, onde se incluem todos os Estados Membros da ONU excepto Liechtenstein e dois não-membros da ONU, Niue e as Ilhas Cook. Conta com a colaboração de mais de 7 000 especialistas do ramo da saúde pública em todo o mundo.

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estórias da históriaoRganiZação MunDial DE saúDEMaria de Jesus Tavares

A Assembleia Geral da OMS reúne-se anualmente em Maio. As delegações que fazem parte dela são nome-adas pelos Estados-membros. Para além da nomea-ção do Director-Geral a cada cinco anos, a Assembleia analisa as políticas de financiamento da Organização, revê e aprova o orçamento proposto. A Assembleia elege 34 membros, tecnicamente qualificados na área da saúde, para a Direcção Executiva durante um mandato de três anos. As principais funções desta di-recção serão as de levar a cabo as decisões e regras da Assembleia, de aconselhar e, de uma forma geral, auxiliar e facilitar a sua missão.

A OMS proporciona cooperação técnica na luta contra as doenças e em favor do saneamento, saúde fami-liar, capacitação de trabalhadores na área de saúde, fortalecimento dos serviços médicos.

A organização Mundial da Saúde também se encon-tra representada no nosso país - pois Angola foi admi-tida como estado membro da OMS em 1976 - tendo como missão promover a consecução do nível mais elevado e sustentável de saúde por parte de todas as pessoas que vivem no país através da colaboração com o governo e outros parceiros do desenvolvimen-to no domínio da saúde e prestação de apoio técnico aos programas, supervisionando a implementação do Regulamento Sanitário Internacional e patrocinando programas de prevenção e tratamento da malária e tuberculose.

Aquando da primeira Assembleia da OMS, no dia 7 de Abril de 1950, começou-se a comemorar o Dia Mun-dial da Saúde, que constitui uma oportunidade única de alertar a sociedade civil para temas-chave na área da saúde que afectam a humanidade e para desen-volver actividades com vista a promoção do bem-es-tar das populações assim como de promover hábitos de vida saudáveis.

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Julieta Alexandre Diogo, Missionária Dominicana do Rosário desde Setembro de 1989, nasceu em Kalandu-la, província de Malange.

Começou a trabalhar com doentes muito cedo, ainda sem ter formação alguma. Acompanhava outra irmã, Missionária Dominicana do Rosário nalguns trabalhos do dispensário de Kalandula. Esse contacto com a re-alidade dos doentes e a orientação da Irmã que acom-panhava serviram-lhe de inspiração. Para ela, traba-lhar com doentes não significa só tratar do corpo mas também cuidar do espírito, e, apoiada pelas pessoas que acompanhavam o trabalho que fazia, a irmã Julieta decidiu fazer o curso básico de enfermagem em 1983. Teve a sua primeira experiência de trabalho como en-fermeira no Hospital Municipal da Gabela, Kwanza-Sul “eu sirvo a Cristo nos doentes, eles são a minha priori-dade, porque a doença não tem hora para chegar” diz ela. Devido a esta forma de viver a sua profissão che-gou mesmo a correr perigo de vida quando numa ma-drugada fria - para não dizer gelada - na Gabela, para cuidar de uma pessoa que se encontrava bastante do-ente, teve de cruzar o pátio da Igreja no meio de um batalhão de guerrilheiros aí acampados. Disfarçada, de lenço à cabeça e envolta em panos, foi descoberta e perseguida por um tiroteio intenso. Só não aconteceu o pior, porque conseguiu fugir...

Mais tarde, trabalhou no Hospital Pediátrico de Luanda, tendo passado também pelo Centro Médico S. Francis-co Xavier (em Luanda). Nem tudo foi um mar de rosas na sua vida. Enfrentou momentos difíceis indo até ao limite para salvar vidas e cuidar doentes com tuber-culose em situações que os medicamentos escassea-

vam, percorrendo longos quilómetros em estradas es-buracadas para ir ao encontro das pessoas, sobretudo idosas e crianças, levando algum fármaco pernoitando em locais sem o mínimo de condições, tudo para dar algum alívio aos pacientes. O ter feito “tudo” o que estava ao seu alcance para salvar vidas de crianças e jovens e estes acabarem por morrer por falta de me-dicamentos e maior acompanhamento são momentos que aponta como mais dolorosos da sua vida. Lamenta não ter podido exercer a enfermagem quando acabou o curso, pois adiou o exercício da sua profissão por seis anos para dedicar-se a formação religiosa.

A ir. Julieta Diogo é hoje médica obstetra e Directora Municipal da Saúde no município de Kalandula des-de 2014. Ganhou larga experiência no ramo da saúde tendo sido a primeira a detectar casos de VIH, em Ka-landula, quando ainda não tinha sido implementado o Centro de Aconselhamento e Testagem Voluntária (CATV) no município. No meio de tanta precariedade conseguiu criar aí um laboratório de análises.

Por amor aos seus pacientes, com muita frequência deixa comida na mesa para atendê-los; a qualquer hora do dia ou da noite responde ao chamado sem olhar para o relógio, “o paciente é a primazia do enfer-meiro” afirma esta madre médica que se entrega de corpo e alma à sua profissão a ponto de acompanhar os doentes necessitados também com comida e rou-pa. Mesmo quando não está a trabalhar, a ir. Julieta anda sempre prevenida para atender quem necessita; na sua pasta tem sempre algo para os primeiros so-corros, para aliviar o mal-estar de alguém. Ela dá a vida pelos doentes.

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figura em destaqueJuliEta alExanDRE DiogoIr. Maria Fernanda

Pode sair de casa a meia-noite, regressar as quatro da manhã e às seis horas estar prontamente no posto de saúde para servir os utentes porque para si “ a doença não tem hora para chegar

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cubal

A Missão Católica no Cubal começou em 1965 com o objectivo de atender de forma integral as comunida-des daquela área. As irmãs da Companhia de Santa Teresa de Jesus - conhecidas entre nós como Irmãs Teresianas - assumiram a Missão em 1973, incluin-do um dispensário que, em 1997, se transformou em Hospital com o financiamento da Cooperação Espa-nhola. O Hospital Nossa Senhora da Paz, conhecido como “Hospital da Missão” faz parte da rede pública de saúde, tendo assinado um acordo de cooperação com a Direcção Provincial de Saúde de Benguela. Du-rante o tempo da guerra era o único lugar que pres-tava assistência sanitária no interior da província de Benguela devido à presença de duas médicas Tere-sianas que tiveram de atender todo o tipo de patolo-gias, entre elas a tuberculose, uma doença que tem afectado muita gente em Benguela e não só.

Vamos partilhar a história de um dos muitos jovens que acredita que o exercício físico ajuda a manter um nível de vida saudável - este praticava futebol. O jo-vem de 28 anos de idade foi viver para o Cubal com o objectivo de continuar os seus estudos no ensino mé-dio. A viver com uma tia decidiu trabalhar para cus-tear as suas despesas e ajudar em casa. Trabalhava como balconista numa loja de tintas até ao momen-to em que adoeceu. Ficou doente em 2011: sentia-se cansado depois de correr, começou a ter febres altas, falta de apetite acompanhada de uma tosse que não passava. Decidiu ir ao posto médico fazer consulta, foi atendido por um enfermeiro que sem lhe dizer o que tinha, passou uma receita e algumas recomen-dações. Fez a medicação durante 20 dias, melhorou. Mas passados mais 5 dias sentiu que piorava. Aconse-

lhado pela tia e outras pessoas procurou o Hospital da Missão que é um hospital de referência e acreditando que ali iriam descobrir o que realmente se passava com ele.

Fez a consulta e mandaram-lhe fazer vários exames. Entre eles, um exame à expectoração. Um dia depois, foi buscar o resultado dos exames e foi grande o seu espanto quando viu que tinha dado positivo à tuber-culose. “Não quis acreditar no que ouvia, eu sabia que é uma doença infecciosa que ataca os pulmões. Sentia que não me enquadrava no diagnóstico uma vez que faço exercício, não fumo, não bebo”. Já tinha conhecimento sobre a tuberculose porque lia e inves-tigava sobre o assunto, talvez pelo facto de já ter tido na família alguém que padeceu da mesma doença, no caso foi uma tia, que tinha apanhado tuberculose há 25 anos atrás.

Apesar de surpreendido pelo diagnóstico, este jovem disse-nos que, apesar de tudo, “já estava mentaliza-do e que o que queria era ter saúde por isso sentia-se tranquilo”. Com o apoio da família, que o acompanhou desde o primeiro momento durante todo o processo e dos enfermeiros ficou três meses internado no hos-pital. Nesse período de internamento sempre que ter-minava uma fase do tratamento repetia os exames que, por infelicidade sua, continuavam a dar positivo, - “isso me deixava frustrado, eu não entendia porquê que dos outros dava negativo e o meu não”. Não de-sistiu e os enfermeiros arranjavam sempre formas de animá-lo, até que chegou o momento em que o re-sultado dos exames deu negativo, o que permitiu que lhe dessem alta para continuar a fazer o tratamento como doente externo. Recordando o percurso que fez em relação à doença, este jovem disse acreditar que o enfermeiro do posto médico sabia que ele tinha tu-

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construindoExpERiências DE viDa: DoEntEs coM tubERculosE E DoEntEs MEntaisMaria de Jesus Tavares

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berculose, mas talvez por precisar do dinheiro, prefe-riu medicá-lo em vez de encaminhar para o hospital e para confirmar isso, fez menção às recomendações do enfermeiro “não perder noites, evitar ficar triste, comer alimentos nutritivos, etc”.

No Hospital das irmãs “fui bem recebido, talvez por ser hospital missionário que ajuda as pessoas mais carecidas, o tratamento que dão as pessoas é dife-rente dos outros hospitais, aqui tinha o privilégio de marcar audiência com uma irmã, com a médica para explicar as reacções e ver a preocupação delas em saber como a pessoa se sente”.

Durante o tratamento não teve dificuldades, acredi-ta que o mais importante quando se está internado é ter alguém ao lado para apoio moral e, sobretudo, financeiro. Terminado o tempo estipulado para o tra-tamento o jovem voltou a repetir os exames e dessa vez descobriram que o bacilo que tinha era resistente

aos antibióticos e então era preciso mudar de trata-mento, passar para o que chamam de tratamento de 2ª linha. O tratamento de 2ª linha segundo o mesmo é o tratamento que se faz aos pacientes com bacilos-copia resistente, é um tratamento muito sério que requer muito cuidado e atenção tanto por parte dos pacientes como dos enfermeiros, significa tomar ou-tro tipo de medicamentos, algo que actualmente já é fácil, uma vez que o hospital das irmãs já tem esses medicamentos.

Quando descobriram que os antibióticos que estava a tomar não eram eficazes, a irmã directora do Hospital foi pesquisar mais sobre o assunto dentro e fora do país, pediu apoios em Espanha e depois disso passou-lhe uma receita para comprar os medicamentos fora do Hospital, porque lá não havia. Na altura era difícil encontrar esses medicamentos. Com a autorização do Hospital, uma vez que ainda estava in-ternado, o jovem saía de manhã à procu-

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construindoExpERiências DE viDa:

DoEntEs coM tubERculosE E DoEntEs MEntais

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construindo

ra do medicamento e só voltava às 17h “sempre orando para que o Hospital adquirisse logo esse tipo de medi-camento”.

A 1ª vez que saiu para comprar o medicamento teve de andar muito, visitou 30% das farmácias em Benguela e foi parar no Lobito passando pela Catumbela. Durante 5 meses fez o trajecto Cubal/Lobito e vice versa, e para evitar os transtornos de andar em vão, antes de se des-locar telefonava para a farmácia para saber se havia ou não o medicamento que precisava, até que finalmente chegou o momento em que lhe disseram que o Hospital já tinha o medicamento.

Recebeu a alta há menos de três meses, está curado. Questionado sobre a causa da doença disse que não ficou determinada mas que se levantaram algumas hipóteses. Por causa da sua determinação e interesse em ajudar as pessoas com a mesma doença e não só, o Hospital convidou-o a colaborar num programa cujo objectivo é sensibilizar e aconselhar as comunidades a procurarem os serviços de saúde quando se sentirem doentes, a to-marem medidas de prevenção, falando de forma clara e explícita sobre a doença, a fim de se reduzir o abandono por parte dos doentes, aumentar a taxa de pessoas em tratamento e assim diminuir o número de doentes que

padecem de tuberculose.

lubango

No Lubango, encontramos as Irmãs Hospitalei-ras do Sagrado Coração de Jesus que oferecem o serviço de consulta de enfermagem psiquiátrica. Não têm um centro de saúde próprio, mas traba-lham em colaboração com a Direcção Provincial de Saúde da Huíla e fazem serviço de voluntariado no Hospital Psiquiátrico.

Vamos partilhar aqui o caso de uma jovem que nos disse ter problemas mentais desde o seu quinto ano de vida. Na altura não conseguia falar bem, espumava pela boca e mal se punha de pé. A fa-mília decidiu levar a menina a uma casa de “en-costos”, onde segundo a jovem não fizeram mui-ta coisa, apenas proibiram-na de comer carne de porco, feijão e mais algumas coisas das quais já não se lembra. Depois desse lugar, “fui a vinte e oito sítios, entre eles o hospital central e a única coisa que aí me receitaram foram injecções”.

Esta jovem agora com 30 anos e mãe de um filho, tinha crises constantes o que a obrigou a parar os estudos muitas vezes, mas mesmo assim não desistiu. Depois de terminado cada tratamento e sentindo-se melhor voltava à escola. Conseguiu concluir a 8ª classe em 2011.

Só em 2008, é que alguém lhe disse que conhecia umas irmãs que tratavam a doença que ela tinha. Então, decidiu procurar ajuda aí. Apesar de bem atendida, sentia muita desconfiança ao ponto de algumas vezes se recusar a fazer a medicação es-tabelecida. Na altura chegava a ter três crises por dia e todos os dias. Mas está há très anos e sete meses sem crise alguma. Toma umcomprimido to-das as noites.

Continua a ser acompanhada porque este tipo de doença requer sempre acompanhamento, diz uma das imãs que tem apoiado esta jovem. No inicio do tratamento a consulta era mensal agora passou a

ExpERiências DE viDa: DoEntEs coM tubERculosE E DoEntEs MEntais

Por causa da sua determinação e interesse em ajudar as pessoas com a mesma doença, o Hospital convidou-o para colaborar num programa cujo objectivo é sensibilizar e aconselhar as comunidades a procurarem os serviços de saúde quando se sentirem doentes, a tomarem medidas de prevenção, falando de forma clara e explícita sobre a doença, a fim de se reduzir o abandono por parte dos doentes, aumentar a taxa de pessoas em tratamento e assim diminuir o número de doentes que padecem de tuberculose.

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ser trimestral. Tem mais três irmãos mas ela é a única que tem problemas mentais.

O outro jovem que partilhou connosoc a sua histó-ria: tem 26 anos e vive em Kalukembe, na provín-cia da Huíla. Sofre de epilepsia desde os 15 anos de idade. Começou com fortes dores de cabeça e até a doença se revelar não sabia nada sobre ela. Nas várias consultas que fez, a única coisa que re-ceitavam eram comprimidos para a dor de cabeça ou diziam que era tensão alta.

Passou também pela medicina tradicional, onde em três anos consultou 4 curandeiros, mas ne-nhum deles lhe melhorou a saúde. Entretanto, to-mou conhecimento das consultas e dos efeitos po-sitivos dos tratamentos que as irmãs faziam. Foi assim que em 2010, deu inicio ao seu tratamento com as Irmãs Hospitaleiras e, desde então, só tem

crises quando falha na toma da medicação ou quando alguém “me desmoraliza ou me desconsidera”. Ape-sar da preocupação da família para que não lhe falte nada, sente-se um pouco isolado porque acredita que ela continua influenciada pela medicina tradicional que diz que quem sofre de epilepsia tem de comer em loiça separada e não pode estudar nem trabalhar, o que na sua opinião não é verdade.

Hoje, este jovem estudante da 11ª classe, chefe dos escuteiros da sua área, está disponível para ajudar quem precisa e aconselha as pessoas que padecem do mesmo tipo de doença a evitarem o consumo de bebidas alcoólicas e a seguirem o tratamento reco-mendado. Por outro lado, diz que as instituições de saúde devem prestar maior atenção aos doentes, aju-dar e aconselhar os pacientes e os seus fa-miliares a lidarem melhor com esta doença.

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construindoExpERiências DE viDa:

DoEntEs coM tubERculosE E DoEntEs MEntais

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nesta edição do mosaiko inform partilhamos a entrevista realizada ao Dr. tomás da Costa, mestre em gestão de saúde e docente universitário.

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entrevistaDR. toMás Da costa

Maria de Jesus Tavares

SOCIólOgO E DOCENTE DA UNIVERSIDADE CATólICA DE ANgOlA NO CURSO DE gESTãO HOSPITAlAR

Em angola, quais as principais dificuldades que en-frenta uma pessoa que esteja doente?

O conceito de acessibilidade organizacional está re-lacionado às facilidades oferecidas pela instituição, favorecendo o atendimento dos seus utentes. Para o sector da saúde são considerados os factores geográ-ficos, financeiros e deficiente acolhimento.

Na nossa realidade actual e contexto, as principais dificuldades enfrentadas pelos pacientes prendem- -se com alguns factores de acessibilidade geográfi-ca (distância do local de residência para o hospital ou centro de saúde mais próximo), deficiente assis-tência médica primária, falta de empatia do pessoal, deficiente acolhimento e comunicação nas unidades hospitalares e elevado tempo de espera.

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como é que o sistema público de saúde tem procura-do responder a essas dificuldades?

O Governo através do MINSA (Ministério da Saúde), tem procurado a aproximação da assistência médi-ca às populações com a implantação do Programa de Municipalização dos Serviços de Saúde, que inclui a construção e equipamento de unidades sanitárias nos Municípios e capacitação do pessoal sobre o atendi-mento humanizado.

Em que medida os direitos das pessoas doentes são conhecidos pelos técnicos de saúde?

R. Não tenho conhecimento de divulgação desses di-reitos pelas entidades afins. Os poucos técnicos que conhecem e reconhecem tais direitos, em muitas ocasiões, ignoram-nos ou violam-nos.

E em que medida esses direitos são conhecidos pe-los próprios doentes?

É exíguo o número de doentes que conhece os seus direitos. Diante dessa realidade, na sua maioria não sabe quando é que deve estar em pleno uso dos seus direitos, ou ainda supõe que, determinadas activida-des em cumprimento dos deveres e obrigações do pessoal técnico e não só, é um exercício de favores em benefício do doente.

como é que os direitos – e os deveres – das pessoas doentes são publicitados nas unidades de saúde?

Os Gabinetes do Utente recentemente introduzidos nas unidades hospitalares são um passo nessa direc-ção. Todavia, é ainda incipiente ou inexistente a sua actividade relativamente à divulgação dos direitos e deveres dos doentes que, reconheça-se, em muito contribuiriam para a melhoria da gestão, funcionali-dade, desempenho das unidades hospitalares e me-lhoria do comportamento dos técnicos e outros fun-cionários dos hospitais.

Existem procedimentos de reclamação claramente publicitados nas unidades de saúde?

Alguns hospitais possuem livros ou urnas de reclama-ção. Outros, como os Hospitais Américo Boavida, Jo-sina Machel e a Maternidade Lucrécia Paim, todas as reclamações dos utentes são feitas no gabinete res-pectivo que as encaminha para a Direcção Clínica, ou Serviço Social para o devido tratamento. Posso afir-mar que estes dois órgãos de interacção e resolução das preocupações dos doentes necessitam ser mais publicitados para um exercício efectivo do direito à reclamação sempre que tal for violado ou ignorado.

como são tratadas as reclamações apresentadas pelas pessoas doentes ou pelos seus familiares?

Como antes referi, os hospitais Americo Boa vida, Josina Machel e a Maternidade Lucrécia Paim reser-vam aos seus pacientes um tratamento que consiste na apresentação de suas queixas ou reclamações por escrito nas reuniões dos conselhos directivos, a dis-cussão análise, e a resolução se assim for necessário. É um procedimento que apesar de ainda não surtir os efeitos desejados e às vezes considerar apenas a ver-são apresentada pelo reclamante, pode-se considerar de um bom passo para a cristalização da cultura de respeito dos direitos dos doentes.

há alguma estatística sobre o tipo de reclamações apresentadas e do seguimento dado a essas recla-mações?

Que eu saiba ainda não há um tratamento estatísti-co como tal das reclamações mais frequentes nem tão pouco um seguimento sistemático das mesmas. Tem, sim, havido resolução pontual de cada caso ou de cada situação que se afigurar preocupante para o utente, a imagem da instituição e da sua direcção.

Quais os direitos da pessoa doente que mais vezes são violados nas unidades de saúde?

Direito à privacidade na prestação de todos actos clí-nicos, direito ao sigilo e à protecção da vida privada, o direito à informação sobre o estado de saúde diag-nóstico e prognóstico da sua doença e alternativas de tratamento, direito ao respeito pelo

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tempo do doente, o direito a conhecer seu médico as-sistente e saber dele a sua real situação patológica, direito à dignidade e a uma atitude apropriada por parte dos prestadores de cuidados de saúde.

Em seu entender, qual é a causa de serem essas as violações mais frequentes?

O hospital, tal como qualquer outra instituição social, é parte integrante da sociedade e é afectado por ela. Numa análise global pode-se atribuir à factores rela-cionados com a degradação da moral social. Porém, outros factores relacionados com a cultura organi-zacional, o perfil profissional e a ignorância ou per-da do conceito de valor de “pessoa e vida humana”.

Quando os direitos de uma pessoa doente são viola-dos, como é que esta ou a sua família devem proce-der?

Para além dos órgãos de direcção do hospital, os hos-pitais devem também possuir as Comissões de Ética. Esse é um órgão que na sua composição deve inte-grar médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, e outros profissionais de outras esferas do saber como psicólogos, sociólogos, juristas, etc. Significa que, institucionalmente, são dois órgãos aos quais poder-se-á recorrer. Existem ainda as Ordens dos Médicos e dos Enfermeiros. No entanto, se a vio-lação resultar em consequências graves poder-se-á fazer recurso judicial.

Qual o papel dos familiares no acompanhamento das pessoas doentes?

A presença da família junto da pessoa enferma tem efeitos biomédicos afectivos e psicológicos. Na pers-pectiva biomédica, a família contribui para auxiliar o hospital em algumas deficiências funcionais que ain-da se fazem sentir como fazer os cuidados da manhã ao doente, adquirir um ou outro medicamento que o hospital não possui, doar sangue, mobilidade do do-ente dentro do hospital, etc..

Quanto à vertente afectiva e psicológica, se insere no contexto cultural e no ser do Homem angolano. A pre-

sença da família confere um sentimento de seguran-ça e de amor ao doente com efeitos positivos para a psique e facilitando a recuperação biofísica.

o sistema de saúde angolano emprega muitos pro-fissionais de outras nacionalidades que não se ex-pressam facilmente em português nem nas línguas nacionais e muito angolanos que não se expressam nas línguas dos doentes. nestas condições, como se pode garantir o direito à informação sobre o estado de saúde, prognóstico, alternativas de tratamento e custos aproximados?

Naquilo que é a realidade dos hospitais públicos e até mesmo clínicas privadas, a comunicação com do-entes que não se exprimem em português tem sido um “calcanhar de Aquiles” porquanto, as áreas so-ciais destas instituições não possuem técnicos com formação e vocação para facilitar tal processo, com a consequente dificuldade do trabalho médico e a in-teracção entre este e o doente.

numa escala de 0 a 10, como classificaria o nível de humanização dos cuidados de saúde em angola?

Quatro.

o que deve ser feito para aumentar o nível de huma-nização na prestação dos cuidados de saúde?

É importante realçar que a humanização é um proces-so que deve ser abordado ampla e sistematicamente não apenas pela ideia de trabalhador bem educado ao abordar o doente. À semelhança de alguns países e a exemplo do Brasil, dever-se-ia começar pela con-cepção de um Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar baseado em estudos factuais de défice de humanização na prestação de cuidados em nossas unidades hospitalares.

tendo em conta a realidade das nossas unidades públicas de saúde, quais as medidas que deveriam ser tomadas de modo a aumentar o bem-estar das pessoas doentes?

entrevistaDR. toMás Da costa

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Assistência de qualidade sobretudo no nível primário, atribuo também particular relevância à melhoria do acolhimento, o uso de tom afável na comunicação, a boa orientação do paciente dentro da unidade, e a ini-bição das barreiras psicológicas.

Em que medida considera que o facto de as pessoas com maior poder económico se irem tratar no exte-rior do país se reflecte negativamente na qualidade dos cuidados de saúde em angola?

É simplesmente óbvio. Na minha óptica, se as pesso-as com maior poder económico se tratassem maiori-tariamente no país exerceriam pressão para a melho-ria do desempenho do sector da saúde, na mudança de comportamentos e atitudes dos entes individuais

e colectivos ligados ao sector, para além de conferir valor e dignidade ao mesmo.

a terminar, que recomendações faria para que os di-reitos das pessoas doentes sejam mais respeitados em angola?

w Maior divulgação desses direitos através dos meios de comunicação (rádio, televisão, jornal, revistas) pelos órgãos e instituições vocacionados para a assistência médica directa ou indirecta;

w Responsabilização dos agentes de saúde que por negligência, ignorância ou falta de zelo prejudica-rem o doente no âmbito do uso dos seus direitos.

w Reforço da formação em ética e deontologia dos profissionais de e da saúde.

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reflectindocaMinhos paRa huManiZação nos cuiDaDos Dos DoEntEs Drª Mary Daly

o que significa a humanização do serviço de saúde?

Um Governo obtem a sua legitimidade, em parte, provendo serviços de saúde e de educação que são efectivos e equitativos. O enfermeiro, o médico e o professor servem de elo de ligação entre o Estado e a população, o rosto visível de um Estado funcional. Neste contexto, o que significa um serviço de saúde humanizado? O termo “humanizar” comporta uma gama de sentidos e percepções ao passo que todos conseguimos descrever com clareza as experiências vividas de serviços desumanizados como as filas des-necessárias quando somos obrigados a marcar uma consulta de madrugada para sermos atendidos horas depois, descuido e erros de diagnóstico ou terapêu-ticos, intervenções cirúrgicas desnecessárias, inca-pacidade de lidar com a história de vida do utente individual, discriminação, falta de privacidade e con-fidencialidade no tratamento das informações e nos piores cenários, a exclusão e o abandono. A tendência é desvincular a prestação do serviço de essência hu-mana do utente, enfatizando os aspectos tecnológi-cos e burocrático-administrativos.

Assim proponho a seguinte definição para “huma-nização de serviços de saúde”: Prestar serviços com uma qualidade técnica que corresponda a padrões internacionalmente reconhecidos e assegurar que a experiência vivida pelo utente crie nele a confiança de recorrer ao uso regular dos serviços de saúde.

Para serem efectivos, a prestação e o uso de servi-ços de saúde têm que ser vistos no contexto do ciclo da vida. No princípio, orienta-se o utente e a família na construção e manutenção da sua própria saúde; a seguir os doentes com patologias crónicas como

asma, célula falciforme, doenças cardiovasculares e diabetes são treinados e apoiados para prevenir as complicações e no fim, o profissional de saúde con-duz a aproximação à morte com empatia, compai-xão e o uso competente de ferramentas (os cuidados paliativos) que asseguram o conforto do paciente ao contrário do uso exagerado de medidas que fazem com que a família e os médicos sintam que “se fez o possível”, embora o paciente sofra uma morte dolo-rosa e desumana por falta de cuidados apropriados para o momento e nos piores dos casos, um simples abandono do paciente que morre sozinho numa cama hospitalar.

características de ser humano que são comprometidas por um serviço desumanizado

1. singularidade versus uniformidade: o ser humano tem a qualidade única do “eu”. Com base numa abordagem unicamente técnica, o profissional tende a objectivar o doente como se ele fosse uma estatística médica ou um mero diagnóstico e não uma pessoa com experiência singular duma pato-logia médica.

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Prestar serviços com uma qualidade técnica que corresponda a padrões internacionalmente reconhecidos e assegurar que a experiência vivida pelo utente crie nele a confiança de recorrer ao uso regular dos serviços de saúde.

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2. Ser humano está intimamente associado com a capacidade de fazer escolhas e mostrar ca-pacidade de agir, assumindo as consequências das decisões tomadas e acções executadas. Quando o serviço é organizado de maneira que o paciente seja colocado numa posição de acei-tação passiva de decisões médicas, o mesmo gera uma atitude de passividade da parte do paciente. O resultado é que o paciente aguar-da passivamente os resultados do tratamento sem ser motivado a agir na gestão activa da sua doença e na prevenção de complicações.

3. Ser humano é ser um ente social que perten-ce a uma família e a uma comunidade. Isto é particularmente relevante na nossa sociedade. Práticas técnicas e administrativas que contri-buem para o isolamento do doente são espe-cialmente nocivas em sociedades Bantu. Isso

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reflectindo

acontece, por exemplo quando o profissional de saúde não se apresenta pelo seu nome, não cha-ma o utente pelo seu nome, fala com o utente à distância, não olha para o utente ao falar com ele. Provavelmente, as duas práticas que mais ofen-dem a dignidade humana no nosso contexto cultu-ral são obrigar o doente a ficar sem família quando tal não é necessário e quando os enfermeiros não dispõem de tempo para cuidar dum doente que necessita cuidados paliativos e proibem os mem-bros da família de acompanhar os seus entes que-ridos na fase terminal que leva à morte.

4. Ser humano é dar sentido às coisas e entender o porquê das doenças acontecerem. É responsabi-lidade do profissional de saúde ajudar o doente a compreender o sentido da doença e construir uma narrativa que se enquadre nas experiências de vida e nas crenças do mesmo. Se o profissional

caMinhos paRa huManiZação nos cuiDaDos Dos DoEntEs

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de saúde não ajuda a eliminar o estranho e o desco-nhecido gera-se uma situação de incerteza e vulne-rabilidade que empurra muitos a usarem serviços de feiticeiros e charlatões.

5. Ser humano é estar a realizar uma viagem incrível que é a vida. Quando ficar gravemente doente, a pessoa poderá ficar com a sensação de estar parada, de estar a viver num vazio e não saber como sair desse vazio. É responsabilidade do profissional de saúde ajudar o doente a elaborar o seu caminho para o futuro, mes-mo quando o futuro venha a estar comprometido por uma patologia grave.

6. O ser humano goza do direito de morrer com digni-dade. Temos de ter a consciência que nem todos os problemas se podem vencer e a única certeza é que iremos morrer um dia. O profissional de saúde e as instituições hospitalares têm de aprender a lidar com a morte de maneira que seja eliminado o sofrimento desnecessário.

caminho para humanização

O primeiro desafio para a sociedade é formar profissio-nais “humanizados” no sentido intelectual, emocional e técnico-profissional. O profissional que é intelectual-mente humanizado procura viver altos padrões éticos e morais e busca a melhoria contínua do seu empenho atra-

vés de análise de casos e troca de experiências com pares. A humanização emocional é vivida na empatia e compaixão com que o profissional lida com os doentes. A humanização técnica é reali-zada através da actualização constante de seus conhecimentos e da aquisição de novas habilida-des. O profissional de saúde deverá ser ajudado na busca de uma maior compreensão acerca de si mesmo que não é limitada à sua condição de “médico ou enfermeiro”. No nosso contexto, por não saber lidar com os componentes humanos e sociais da doença, o profissional “esconde-se” atrás da tecnologia e vê o seu próprio mérito em termos de uma posição hierarquicamente supe-rior ao utente em vez de apreciar a sua prestação em termos de satisfação, bem-estar e confiança do utente.

reflectindocaMinhos paRa huManiZação nos cuiDaDos Dos DoEntEs

No nosso contexto, por não saber lidar com os componentes humanos e sociais de doença, o profissional “esconde-se” atrás da tecnologia e vê o seu próprio mérito em termos de uma posição hierarquicamente superior ao usuário em vez de apreciar a sua prestação em termos de satisfação, bem-estar e confiança do utente

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Unido (National Institute for Health and Excellen-ce) e CDC nos Estados Unidos (Center for Disease Control and Prevention) e o serviço de formação contínua nos Estados Unidos (Medscape). O últi-mo está acessível na internet para médicos em qualquer sítio do mundo.

5. Mudar a cultura de organizar a prestação de ser-viços para facilitar a vida pessoal dos prestadores para uma cultura de prestar serviços no interesse do utente que utiliza o serviço.

6. comunicar e documentar a informação essencial sobre o doente; não é possível o paciente ser se-guido sempre pelo mesmo médico ou enfermeiro. Contudo, é uma obrigação deontológica e ética de cada profissional documentar as suas acções téc-nicas para que o profissional que veja posterior-mente o mesmo doente, o avalie e tome decisões diagnósticos e terapêuticas com base em informa-ções reais. Quando se trata de doentes internados, a informação sobre cada doente deverá ser comu-nicada num acto formal de passagem de turno.

7. cuidados paliativos: Institucionalizar a cultura e prática de cuidados paliativos. O propósito dos cuidados paliativos é aliviar o sofrimento e o medo do doente que padece de uma doença terminal e assegurar que o doente morra com dignidade num ambiente de compaixão onde o profissional tenha o conhecimento e coragem de recomendar a sus-pensão de intervenções técnicas penosas que não sirvam o interesse do doente. A abordagem inte-gral de cuidados paliativos inclui normalmente serviços de capelania e escuta.

reflectindocaMinhos paRa huManiZação

nos cuiDaDos Dos DoEntEs

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Mudar a cultura de organizar a prestação de serviços para facilitar a vida pessoal dos prestadores para uma cultura de prestar serviços no interesse do utente que utiliza o serviço.

acções concretas de humanização

1. comissão de Ética: A medicina e a advocacia são profissões liberais. Uma profissão liberal significa que o profissional é individualmente responsável para agir em defesa do seu cliente ou utente, e sujeito a um código de ética elaborado pelos co-legas-pares e individualmente responsável diante dos colegas-pares e da lei pelas suas acções. Nes-te contexto, todas entidades que prestam serviços de saúde deverão ter uma Comissão de Ética es-tabelecida e activa sob supervisão da Ordem dos Médicos e do Ministério de Saúde.

2. aprendizagem contínua e defesa dos interesses do utente: todas as unidades sanitárias deverão ter momentos estruturados de auto-reflexão, apresentação e discussão de casos clínicos entre pares. Errar é humano; repetir ou institucionalizar o erro constitui uma negligência profissional.

3. a prática de auditar óbitos entre pares é uma prá-tica fulcral para assegurar a responsabilidade pro-fissional. Há mortes que são inevitáveis. Contudo, a auditoria do caso poderá sempre revelar melho-rias que poderão ser instituídas no manuseio do mesmo tipo de caso no futuro.

4. praticar a medicina no sentido duma profissão liberal não significa que cada profissional trata o doente da maneira que quer. Significa que cada profissional tem a responsabilidade individual para actualizar os seus conhecimentos e aplicar o protocolo de diagnóstico e de terapêutica aprova-do no contexto epidemiológico ou no caso de não haver um protocolo aprovado pela entidade de di-reito (no caso de Angola continua a ser o Ministé-rio de Saúde), o profissional de saúde aplica o pro-tocolo aprovado pela entidade empregadora ou publicado por uma entidade internacionalmente reconhecida como a OMS - Organização Mundial de Saúde ou os institutos de saúde de países que atribuem os recursos para a formação contínua dos profissionais de saúde como o NICE do Reino

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O Mosaiko I Instituto para a Cidadania e a CEAST - Conferência Episcopal de Angola e São Tomé - or-ganizaram, de 27 a 31 de Janeiro de 2015, no ICRA - Educadores Sociais, em Luanda, a V Semana Social Nacional, com o tema “Igualdade de oportunida-des”. A realização desta semana, em que estiveram mais de duzentos participantes de diversas dioceses de Angola, contou com o apoio da MISEREOR.

A Semana Social é um espaço de estudo, reflexão e debate aberto em torno de um tema socialmente relevante para ajudar os cristãos a tomarem cons-ciência das suas responsabilidades sociais, e a pro-curarem caminhos concretos que possam ser sinais eloquentes do Evangelho de Cristo no mundo de hoje. Embora seja um acontecimento eclesial, a Semana Social é também um acontecimento social que está aberto a escutar a voz e a dar a mão a pessoas de to-das as correntes sociais quer sejam a-confessionais, de outros credos religiosos ou de outras confissões cristãs, promovendo assim um maior conhecimento mútuo e lançando bases para colaborações futuras.

O objectivo da V Semana Social é contribuir para um debate nacional sobre a questão da “igualdade de oportunidades” em Angola de modo a influen-ciar políticas públicas sobre melhor distribuição da riqueza nacional e a atenção às pessoas/comuni-dades mais carenciadas.

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brevesV SeMana Social nacional

ConstruindoCidadania Rádio Ecclesia | 97.5 FM

Sábado às 08H30 e Domingos às 22H00

Durante a primeira semana de Março, decorreu o En-contro Nacional Aprendendo Juntos 2015. O referido Encontro constitui uma oportunidade de formação, troca de experiências e concertação para os líderes ou representantes dos Grupos Locais de Direitos Hu-manos que trabalham em diferentes pontos do país com o apoio do Mosaiko.

O Aprendendo Juntos 2015 realizou-se em Viana, na Casa de Espiritualidade das Irmãs Mercedárias, com representantes de 27 Grupos Locais de Direitos Hu-manos das províncias do Uíge, Luanda , Benguela, Kuando Kubango, Kwanza Norte, Lunda Sul, Huíla, Malange e Kuanza Sul.

Facilitaram este Encontro Nacional o frei Júlio Cande-eiro (Director Geral do Mosaiko), o frei Mário Rui, a ir. Francisca Imaculada (advogada estagiária), a Djamila Ferreira (assessora de Direitos Humanos) Domingas da Costa (assessora de Direitos Humanos).

O Encontro Nacional Aprendendo Juntos 2015 foi organizado pelo Mosaiko, e contou com o apoio da União Europeia, da Embaixada dos Países Baixos em Angola, da FEC - Fundação Fé e Cooperação e do Ins-tituto Camões.

encontro nacional aprenDenDo JuntoS