MONTEIRO LOBATO POR ANDRÉ BETLHEM · 2017. 3. 28. · textos de opinião e farta...

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Um debate impor- tante, mas nem sempre interessan- te e rigoroso, tem agitado por estes últimos pares de anos escritores, educadores, polí- ticos, juristas e media brasileiros: o mais importante, venerado, muito lido e ainda mais re- presentado escritor infantil que foi Mon- teiro Lobato deixou cair na sua prosa com mais de oitenta anos alguns eviden- tes laivos de ra- cismo. Expressões que se vão também descobrindo na sua não menos impor- tante, mas menos conhecida, literatu- ra para adultos, mais ainda nos seus ensaios, alguns textos de opinião e farta correspon- dência. Nesse ciclo torrencial de histó- rias infantis em que se foi formando o muito frequentado e generosamente televisivo “Sítio do Pica-Pau Amare- lo”, Lobato foi ago- ra denunciado por usar na suas “Ca- çadas de Pedrinho”, livrinho de 1933, frases menos feli- zes como essas em que descreve o “bei- ço” de Tia Nastá- cia, a sua “carne preta”, escrevendo até que ela subia a uma árvore como “macaca de carvão.” Os exemplos podem facilmente multipli- car-se através de uma leitura hoje menos inocente e mais madura da sua vastís- sima obra que, em rigor, representa ainda esse Brasil dominado por alvas elites que exornavam a sua descendên- cia muito ocidental. José de Alencar, por lusofonias nº 24 | 16 de Dezembro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa TEXTOS: • Uma vida no Sítio • Urupês: uma nova escrita para uma literatura moderna • O Autor Mágico para uma Infância Encantada • Epílogo: O Presidente Negro e Zé Brasil Dia 30 de Dezembro: Contos de Natal APOIO: Monteiro Lobato o maior escritor infantil de Língua Portuguesa MONTEIRO LOBATO POR ANDRÉ BETLHEM

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Um debate impor-tante, mas nem sempre interessan-te e rigoroso, tem agitado por estes últimos pares de anos escritores, educadores, polí-ticos, juristas e media brasileiros: o mais importante, venerado, muito lido e ainda mais re-presentado escritor infantil que foi Mon-teiro Lobato deixou cair na sua prosa com mais de oitenta anos alguns eviden-tes laivos de ra-cismo. Expressões que se vão também descobrindo na sua não menos impor-tante, mas menos conhecida, literatu-ra para adultos, mais ainda nos seus ensaios, alguns textos de opinião e farta correspon-dência. Nesse ciclo torrencial de histó-rias infantis em que se foi formando o muito frequentado e generosamente televisivo “Sítio do Pica-Pau Amare-lo”, Lobato foi ago-ra denunciado por usar na suas “Ca-çadas de Pedrinho”, livrinho de 1933, frases menos feli-zes como essas em que descreve o “bei-ço” de Tia Nastá-cia, a sua “carne preta”, escrevendo até que ela subia a uma árvore como “macaca de carvão.” Os exemplos podem facilmente multipli-car-se através de uma leitura hoje menos inocente e mais madura da sua vastís-sima obra que, em rigor, representa ainda esse Brasil dominado por alvas elites que exornavam a sua descendên-cia muito ocidental. José de Alencar, por

lusofoniasnº 24 | 16 de Dezembro de 2013

Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO:Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS:

• Uma vida no Sítio

• Urupês: uma nova escrita

para uma literatura moderna

• O Autor Mágico

para uma Infância Encantada

• Epílogo: O Presidente Negro

e Zé Brasil

Dia 30 de Dezembro:Contos de Natal

APOIO:

MonteiroLobato

o maior escritor infantilde Língua Portuguesa

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II Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

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LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO

MONTEIRO LOBATO, o maior escritor infantilde Língua Portuguesa

Ivo Carneiro de Sousa

lusofonias

Um debate importante, mas nem sem-pre interessante e rigoroso, tem

agitado por estes últimos pares de anos escritores, educadores, políticos, ju-ristas e media brasileiros: o mais im-portante, venerado, muito lido e ainda mais representado escritor infantil que foi Monteiro Lobato deixou cair na sua prosa com mais de oitenta anos alguns evidentes laivos de racismo. Expressões que se vão também descobrindo na sua não menos importante, mas menos co-nhecida, literatura para adultos, mais ainda nos seus ensaios, alguns textos de opinião e farta correspondência. Nesse ciclo torrencial de histórias infantis em que se foi formando o muito frequenta-do e generosamente televisivo “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, Lobato foi agora de-nunciado por usar na suas “Caçadas de Pedrinho”, livrinho de 1933, frases me-nos felizes como essas em que descreve o “beiço” de Tia Nastácia, a sua “carne preta”, escrevendo até que ela subia a uma árvore como “macaca de carvão.”

Os exemplos podem facilmente mul-tiplicar-se através de uma leitura hoje menos inocente e mais madura da sua vastíssima obra que, em rigor, represen-ta ainda esse Brasil dominado por alvas elites que exornavam a sua descendên-cia muito ocidental. José de Alencar, por exemplo, um dos mais importantes es-critores brasileiros de sempre, manteve--se até à sua morte, em 1877, radical adversário da abolição da escravatura. Os mesmos raciais embaraços encon-tram-se no autor do indispensável “Os Sertões”, obra maior das letras brasilei-ras, esse Euclides da Cunha (1866-1909) mobilizando argumentos que se queriam científicos para destacar no negro e na miscigenação o atraso civilizacional do Brasil.

Monteiro Lobato escreveu ainda dentro desta hereditariedade cultural, menos de meio século apenas depois da aboli-ção legal da escravatura, com a célebre Lei Áurea de 1888, libertando muitos milhares de escravos que continuaram a ser marginalizados, enquanto a mão-de--obra que ajudou a modernizar o Brasil se preferiu mobilizar entre os pobres da Europa, interditando-se mesmo outras emigrações que, como a de chineses e japoneses, haveriam de aguardar várias décadas para legalmente pluricolorir ainda mais as grandes metrópoles do

verdeamarelismo.Acresce ainda que os autores e as

obras clássicas têm um valor intrínseco, quase independente das mentalidades sociais mais ou menos perversas que as influenciaram ou das manipulações, in-terpretações e ideologias que as con-vocaram entre leituras políticas tantas vezes apressadas e exageradas. Assim é também com Monteiro Lobato e a sua obra que, verdadeiramente clássica, constitui o mais importante monumen-to – em rigor, património – da literatura infantil em língua portuguesa. A ler para conhecer.

O que não deverá impedir o reconheci-mento do que o racismo existe mesmo na herança cultural brasileira que a Consti-tuição de 1988 decidiu (e bem) catego-rizar como crime absolutamente inafian-çável. Por isso, o debate mais concreto em torno da proposta de proibição que não se veio a concretizar, mas que por tribunais circula, da distribuição pelo Ministério da Educação das bem conse-guidas “Caçadas de Pedrinho” é discus-são oportuna e importante que convém vazar em pedagogia. Mas como sou con-tra a proibição de livros ou a censura da história, continuando também a acredi-tar na inteligência dos sempre dedica-dos professores de qualquer escola pri-mária, o muito escaldante debate sobre o racismo na obra de Monteiro Lobato pode simplesmente resolver-se relendo a sua obra, explicando o seu tempo, cri-ticando valores que não são já felizmen-te os das nossas sociedades democráti-cas, assim mobilizando com pedagogia generosa os alunos para aprenderem a identificar e a condenar todo e qualquer racismo nessas pueris idades em que se decidem as fraternidades e felicidades futuras. A que Monteiro Lobato legou as mais imperdíveis lições de plena felici-dade e sincera amizade na sua volumo-sa literatura infantil. A redescobrir com esse espanto tantas vezes escandalizado com que voltamos aos livros, filmes ou desenhos animados que nos apaixona-vam há trinta ou quarenta anos e que agora já não temos a certeza de poder autorizar os nossos filhos a visitar por-que o abismo de valores, sentimentos, violências, humores ou tão simplesmen-te estéticas se foi transformando em embaraço, ridículo e arcano passado tantas vezes a preto-e-branco.

Porque tenho sido tudo, e creio que minha verdadeira vocação é procurar o que valha a pena ser.

A coisa que menos me mete medo é o futuro.

De escrever para marmanjos já estou enjoado. Bichos sem graça. Mas para crianças um livro é todo um mundo.

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 IIIlusofonias

Nasceu em Taubaté, no Estado de São Paulo, num “sítio” como gostava de recordar, corria

ainda 1882. Foi baptizado como José Renato Mon-teiro Lobato, mas mudou no seu nome depois o Renato em Bento para o ajustar aritmeticamen-te às iniciais J.B.M.L da bengala herdade do pai, falecido cedo em 1898, José Bento Marcondes Lobato. Chegou à escola primária aos sete anos, mas tinha já aprendido as primeiras letras em casa com a sua mãe, Olímpia Monteiro Lobato, desa-parecida vítima de depressão profunda, em 1899. O educado cuidado materno permitiu-lhe devorar todos os livros infantis da farta biblioteca da gran-de fazenda do seu avô, o Visconde de Tremembé. Escusou-se a fazer a primeira comunhão e seguiu aos onze anos, em 1893, para o Colégio São João Evangelista, passando mais tarde para o Instituto de Ciências e Letras de São Paulo. Ingressou contrariado – bom desenhador, sonhava com um curso de Belas-Artes – na sua Faculdade de Direito, em 1904, causando ensarilhado escândalo com o seu crítico discurso de for-matura, levando alguns professores, todos os padres e bispo a abandonarem a solene sessão. Voltou a Taubaté, passou o concur-so para promotor Público que foi exercer em 1907 na cidade de Areais, no vale do Paraíba. Não se fixou e, em 1911, regressou ao seu sítio natal para assumir a gestão da fazenda Buquira herdada do seu avô.

Bom gestor agrário não foi mesmo e, a 12 de Novembro de 1912, enviou queixoso para o muito lido jornal “O Estado de São Paulo” uma carta intitulada “Velha Praga”, publi-cada pela sua qualidade na secção literária, denunciando queimadas e caboclos que des-truíam a agricultura na sua região. Um novo artigo, ainda mais cuidado e fino, apareceria na véspera de Natal no grande jornal paulista como “Urupês”, nome de fungoso cogumelo com que criava a sua primeira grande perso-nagem literária, esse muito polémico “Jeca Tatu” que, “piraquara do Paraíba”, se apre-sentava indolente, lento e muito pouco ami-go do trabalho como o perfeito paradigma do caipira.

Em 1917, vende a fazenda familiar e insta-la-se em Caçapava, fundando a revista “Pa-raíba” que, ao longo dos seus doze números, juntou aos seus textos os de escritores tão importantes como Coelho Neto, Cassiano Ricardo ou Olavo Bilac. Irrequieto, Monteiro Lobato decide mudar-se para São Paulo, começando por colabo-rar com a “Revista do Brasil” que logo comprou e transformou temerário em editora, quando gran-de parte dos livros brasileiros se estampava ainda em Portugal e, sobretudo, na França. É no final de 1917 que, a 20 de Dezembro, publica outra vez polémico em “O Estado de São Paulo” um arti-go forte intitulado “Paranóia ou Mistificação?”, criticando a célebre exposição com que a pintora paulista Anita Malfatti (1889-1964), chegada des-lumbrada da Europa, introduzia o movimento mo-dernista e apresentava os seus seis famosos retra-tos surrealistas em que se destacava “A Mulher de cabelos verdes”, “Uma estudante” e “O Homem amarelo”.

Modernismos que nunca encantaram Monteiro Lobato, o que não impediu a enorme admiração que Oswald de Andrade sempre nutriu pela sua prosa singular, segura, inventiva, tantas vezes fantástica. Um reconhecimento que assentava na originalidade mais do que moderna da primeira obra literária do nosso escritor, a colectânea de contos “Urupês”, publicada em 1918 para esgo-tar sucessivas edições apoiadas por uma inteligen-te e inteiramente nova rede de distribuição com

mais de mil representantes espalhados pelo Brasil: em 1919, a quinta edição do livro chegava já aos 12.000 exemplares.

Irrequieto continuava e, após a aflitiva falência da sua recente “Companhia Gráfico-Editora Mon-teiro Lobato”, segue para o Rio de Janeiro onde inicia a sua prolixa aventura literária de escrever e publicar os seus livros para a infância.

Em 1920, sai “Negrinha” e a “Menina do Nari-zinho Arrebitado”, um livro de leitura destinado às escolas primárias, ilustrado primorosamente por Lemmo Lemmi (1884-1926), na altura um dos mais famosos caricaturistas e desenhadores do Brasil. Um estrondoso sucesso editorial que convi-dou Monteiro Lobato a multiplicar os títulos infan-tis das muitas aventuras de Dona Benta, Pedrinho, Tia Nastácia, Narizinho (ou Lúcia, prima de Pedri-

nho), o boneco de sabugo de milho Visconde de Sabugosa, o guloso leitão Marquês de Rabicó, a fa-bulosa boneca de pano Emília e muitos outros que viviam no “Sítio do Picapau Amarelo”: “Fábulas de Narizinho” (1921), O Saci (1921), “O Marquês de Rabicó” (1922), “A Caçada da Onça” (1924), “O Noivado de Narizinho” (1924), “Jeca Tatuzinho” (1924), “O Garimpeiro do Rio das Garças” (1924) e muitos mais imperdíveis livrinhos que se foram seguindo.

Em 1927 é nomeado adido comercial nos Esta-dos Unidos, por onde viveu interessado e ainda mais curioso do “milagre americano” até 1931. Monteiro Lobato fascinou-se com as grandes auto--estradas norte-americanas, as indústrias, seguiu as inovações tecnológicas e sonhou o progresso de um Brasil cheio de estradas, a explorar o seu pe-tróleo e a vender ao mundo ferro. A partir de Nova Iorque, publicou “Mr. Slang e o Brasil” (1927), “As Aventuras de Hans Staden” (1927), “Aventu-ras do Príncipe” (1928), “O Gato Félix” (1928), “A Cara de Coruja” (1928), “O Circo de Escavalinho” (1929) e “A Pena de Papagaio ”(1930), ao mesmo tempo que as suas obras infantis eram reunidas num único volume estampado em 1931 no Brasil como “Reinações de Narizinho”.

Investiu também tudo o que tinha na bolsa de

Wall Street, mas completamente azarado logo tudo perdeu com a grande depressão de 1929. Apoiou nesta altura a candidatura de Júlio Prestes (1882-1946), o governador de São Paulo, à presi-dência, em 1930. Resultado estranho: Prestes ga-nhou no voto popular a 1 de Março, mas nunca foi empossado, e o Presidente passou a ser, apoiado em conhecido golpe a que se chama revolução, o candidato derrotado, Getúlio Vargas (1882-1954) que, assim, acabou com o que se vai chamando a República Velha.

Regressado a São Paulo, começa a sua conhecida campanha pela prospecção e exploração de pe-tróleo brasileiro: funda a Companhia Petróleos do Brasil, cujas acções são rapidamente subscritas, logo criando várias outras companhias de prospec-ção activas em São Paulo e Mato-Grosso. Começou

a incomodar interesses a mais e a enfrentar a hostilidade do governo, arruinando-se ou-tra vez rapidamente. Foi sobrevivendo gra-ças às traduções esmeradas que foi fazendo e editando do “Livro da Selva”, de Rudyard Kipling (1933), “Caninos Brancos” (1933) e “A Filha da Neve” (1934), de Jack London, “O Doutor Negro”, de Arthur Conan Doyle (1934), mais as suas continuadas obras para o público infantil: “História do Mundo para Crianças” (1933) e “Emília no País da Gramá-tica” (1934) que muito ajudaram milhares de crianças e professores das escolas primárias brasileiras. O primeiro livro, contudo, sofreu uma violenta campanha da Igreja Católica, tendo o padre Sales Brasil sido encarregado de escrever um forte libelo contra o nosso escritor intitulado “A literatura infantil de Monteiro Lobato ou comunismo para crian-ças”, livro difundido pelas edições paulistas. O zeloso e inquisitorial sacerdote encontrou escandalizado nas descrições do mundo das abelhas ficcionadas por Lobato perigosos si-nais de ideologia comunista quando o escritor destacava uma sociedade sem classes, sem ricos nem pobres, em que todas as abelhas trabalhavam muito e em perfeita igualdade, mas esquecendo segundo o sacerdotal crítico os terríveis zangões e a femeosa ditadura da abelha-rainha: poderia lá ser, era um insulto à ordem da família cristã. Em resultado, a “História do Mundo para Crianças” foi livro banido das bibliotecas das escolas católicas,

em algumas mesmo queimado, como no Colégio do Sagrado Coração de Jesus, no Rio, sendo tam-bém prontamente proibido em Portugal e nas suas colónias pelo mais do que nascente salazarismo.

Em 1936, Monteiro Lobato arranjou ainda mais problemas quando, no preciso ano em que aceitou entrar na Academia Paulista de Letras, publicou um veemente livro sobre “O Escândalo do Petró-leo”, esgotando sucessivas edições em menos de um mês, acusando o governo de “não perfurar e não deixar que se perfure”. O Presidente, Getúlio Vargas, decretou aturdido a proibição da obra e a recolha dos exemplares em abundante circulação por todo o Brasil. Lobato continuou a sua cam-panha, desdobrando-se em entrevistas, artigos de opinião e muitas cartas enviadas ao governo, chegando Vargas a convidar o escritor para dirigir um Ministério da Propaganda, o que prontamente recusou. A seguir, a 5 de Maio de 1940, uma carta famosa novamente dirigida ao presidente, divul-gada publicamente com críticas duras à política económica governamental foi considerada inju-riosa e subversiva. Monteiro Lobato é acusado de atacar o Conselho Nacional de Petróleo, dirigido

Uma vida no Sítio

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IV Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIASlusofonias

Urupês:Uma nova eScrita para Uma literatUra moderna

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

pelo general Horta Barbosa, o que levou à sua detenção pelo Estado Novo (assim também se chamava no Brasil o regime instituído pelo golpe getuliano de 10 de Outubro de 1937, prolongando até 29 de Outubro de 1945 uma mistura de autoritarismo, nacionalismo e pro-fundo anti-comunismo…).

O nosso escritor foi condenado a seis meses de prisão, permaneceu na cadeia entre Março e Junho de 1941, sendo visitado por muitos intelectuais e amigos a quem es-creveu com a ironia que sempre o caracterizou: “Como tenho pena de vocês lá fora! Enquanto inúme-ras preocupações os atormentam, eu aqui não tenho nenhuma. Tudo pago! Não tenho medo de ladrões, nem de assassinos, e o que mais importa: não tenho receio de ser preso”. Foi amnistiado em três me-ses de pena em consequência de uma ampla campanha de indigna-ção e solidariedade que mobilizou grande parte dos escritores brasi-leiros, muitos também por toda a América Latina.

Libertado, Monteiro Lobato pas-sou a denunciar sistematicamente a repressão política e as torturas praticadas pela polícia do Estado Novo, aproximando-se do Parti-do Comunista Brasileiro. Passou a elogiar Luís Carlos Prestes, o fa-moso líder comunista, como o “ca-valeiro da esperança” que podia resgatar o Brasil, chegando a ser convidado para se candidatar nas listas (chapas se diz...) do Partido por São Paulo. Recusou, alegando a sua idade e pouca saúde, razão também para abandonar em 1945 o cargo de director do Instituto Cultural Brasil-URSS no preciso ano em que “A menina do Narizinho Arrebitado” se tornou rádio-novela de sucesso da Rádio Globo do Rio de Janeiro. Operado neste mesmo ano a um cisto num pulmão, deu ao “Diário de São Paulo” uma entre-vista ainda mais crítica do governo, defendendo tanto o partido comu-nista como o exemplo do desenvol-vimento industrial soviético. Teve de abandonar o país e instalou-se em Buenos Aires onde fundou a editora Acteon que espalhou pela América Latina as suas obras.

Regressou em 1947 ao Brasil. Re-cebido no aeroporto por dezenas de jornalistas, disparou firme con-tra o novo governo do Marechal Eu-rico Gaspar Dutra (1883-1974) que era um “Estado Novíssimo, no qual a Constituição seria pendurada suspensa num ganchinho no quarto dos badulaques”. Uma oposição na origem de um dos seus últimos li-vros, “Zé Brasil”, texto muito per-seguido pelo regime ao transformar o seu Jeca Tatu em revolucionário sem-terra esmagado e explorado pelos grandes latifundiários. Neste ano, quando o Ministro da Justiça decide proibir as actividades do Partido Comunista, ficou célebre o conto “A Parábola do Rei Ves-

go” que Monteiro Lobato enviou para ser lido aos muitos milhares de pessoas reunidas na noite de 18 Junho no Vale do Anhangabaú, na altura um dos mais importan-tes espaços públicos de São Paulo, hoje invadido por enormes aranha--céus.

Em Dezembro, o escritor brasi-leiro assiste em São Salvador da Bahia à estreia da opereta Narizi-nho Arrebitado para a qual tinha escrito o libreto. Infelizmente, poucos meses depois, em Abril de 1948, um acidente vascular leva-o de urgência para o hospital. Per-de parte da sua motricidade, mas ainda assim escreve e publica o seu mais importante livro político, “Georgismo e Comunismo”.

Lobato foi explicando que, “ape-sar das minhas imensas simpatias pelo comunismo russo, uma ques-tão de consciência me vem impe-dindo que eu transformasse essa imensa simpatia em adesão perfei-ta.” E o problema era a sua admi-ração pelas ideias do famoso eco-nomista autodidacta norte-ameri-cano Henry George (1839-1897), um importante reformador social de quem o escritor brasileiro apre-ciava especialmente a obra muito lida e traduzida de 1879 “Progres-so e Pobreza” com as suas originais ideias sobre o desenvolvimento e posse da terra: “É que sou georgis-ta. Convenci-me de tal forma da verdade das teorias económicas de Henry George, que por mais que me esforce não consigo substituí--las pelas de Karl Marx. Admiro a lógica tremenda de Marx, mas mi-nha intuição é que a verdade está com Henry George. E por causa disso não tive a honra de alistar--me ao Partido Comunista, nem pude aceitar o convite de Prestes para figurar na chapa dos candida-tos a deputado federal. Não entrei para o Partido, nem para a Câma-ra, porque seria trair as minhas ideias georgistas. De que maneira ser um perfeito deputado comu-nista, se eu ponho Henry George acima de Marx? Seria deslealdade acima das minhas forças”.

Dois dias depois de conceder a sua última entrevista à Rádio Re-cord, defendendo a sua continua-da campanha do “petróleo é nos-so”, Monteiro Lobato sofreu um segundo acidente cerebral grave, falecendo às 4h da madrugada de 4 de Julho de 1948. Tinha 66 anos de idade, o maior escritor infantil em língua portuguesa de sempre. O dirigente comunista Pedro Po-mar, amigo e admirador de Montei-ro Lobato, fez em nome do Partido e do ausente Luís Carlos Prestes o discurso fúnebre sobre a campa do grande nome das letras brasi-leiras. Provavelmente nessa altura muito poucos antecipariam que a sua obra ficou, permaneceu, mul-tiplicou-se em traduções em mais de uma dezena de línguas, depois convidando milhões de crianças ao longo de várias décadas a desco-brir a sua magia singular nos popu-lares programas televisivos do seu “Sítio do Picapau Amarelo”.

A memória de Monteiro Lobato, agora também revisitada nas polémicas envolvendo a sua obra infantil, ficou mais

do que marcada para a posteridade por essa sua quase meia centena de títulos de livros para crianças entre volumes ori-ginais e bem conseguidas traduções. Em contraste, os seus outros livros para o público adulto, reunindo romances, contos, ensaios, textos de opinião e alguma epistolografia, foram progressivamente sendo esquecidos. O que muita li-mita o conhecimento da sua escrita verdadeiramente única firmando uma literatura inovadora que se foi multiplican-do também por 29 adultos livros publicados entre 1917 e 1948, o ano do seu falecimento, também o mais produtivo, quando Lobato editou ainda cinco volumes: “Literatura do Minarete”, “Conferências, artigos e crônicas”, “Cartas es-colhidas”, “Críticas e outras notas” e “Cartas de amor”.

Uma variedade de registos que foi acompanhando a sua obra não-infantil somando a textos polémicos, tantas vezes assumidamente políticos e de intervenção – “Problema vi-tal” (1818), “Cidades Mortas e Ideias de Jeca Tatu” (1919), “Mr. Slang e o Brasil” (1927), “América” (1932), “Na Ante-vêspera” (1933) – os sucessivos livros em que foi defenden-do os recursos naturais brasileiros – “Ferro” (1931) ou “O Es-cândalo do Petróleo” (1936) –, mais muitos textos literários em que domina a renovação do conto – “Urupês” (1918), “Contos Escolhidos” (1923), “Contos Leves” (1935), “Contos Pesados” (1940) ou “Urupês, outros contos e coisas” (1943).

Nestes títulos se vai identificando uma escrita simples, mas cuidada, popular mas séria, mobilizando como nenhu-ma outra os termos das culturas rurais brasileiras, recrian-do coloquialismos, inventando neologismos e conhecedora profunda da etnografia e do rico folclore brasileiro com as suas muitas miscigenações culturais. Características que se descobrem cedo nos dois primeiros livros que, em 1917 e 1918, transformaram imediatamente Monteiro Lobato em escritor surpreendente, logo muito lido e procurado.

Na verdade, cronologicamente o seu primeiro título, “O Saci-Pererê”: resultado de um inquérito, é um livro inspi-rador. O nosso então quase novo escritor tinha lançado um inquérito sobre o tema nas páginas de “O Estado de São Paulo”, depois aberto às contribuições dos leitores, desfi-brando a multiculturalidade da personagem folclórica: as mitologias e manifestações culturais afro-brasileiras do Nordeste tinham construído uma figura mágica, rebelde, um negrinho com uma só perna fumando um pito, sorte de cachimbo, depois acrescentado de um píleo, um gorro ver-melho oriundo do folclore do trasgo trazido para o Brasil por emigrantes portugueses de Trás-os-Montes. Monteiro Lobato estudou também a marcha musical “O Saci”, composta em 1912 pelo grande Heitor Villa-Lobos a partir de temas fol-clóricos populares, depois influenciando várias outras obras musicais. O livro etnográfico de 1917 vazou-se em 1921 em título infantil, “O Saci”, um cómico modelo de travessu-ras, criando embaraços domésticos, atrapalhando a cozinha de Tia Nastácia, assustando os viajantes à noite com o seu estridente assobio e fazendo constantemente tranças nas cabeleiras dos mais diferentes animais. Uma comunicação entre os temas e personagens dos seus livros para adultos e os seus êxitos infantis que parece bem mais constante na sua obra, mas tendo infelizmente suscitado muitos poucos

estudos e ainda menos investigação interessada.No entanto, a verdadeira estreia literária de Monteiro

Lobato acontece em 1918 com a publicação pela sua nova editora da Revista do Brasil dessa colectânea de contos a que chamou “Urupês”. Reunindo a alguns dos textos publicados em “O Estado de São Paulo”, incluindo esse primeiro artigo “Velha Praga”, outros contos originais, “Urupês” foi um enorme sucesso de vendas e distribuição muito graças ao feliz conto que dava o título e encerrava o volume, famoso pela sua invenção desse tipo cómico que, folclórico e polémico, era o caipira Jeca Tatu. No conto final “Urupês”, Monteiro Lobato apresenta com a sua original forma de escrever a nova personagem que muito seria discutida entre etnógrafos e candidatos a an-tropólogos: “A Verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de ta-buinha em beiço, uma existe a vegetar de cócoras, inca-paz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sor-na, nada a põe de pé. Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! Jeca Tatu é um Piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resu-mem todas as características da espécie. O fato mais im-portante da vida do Jeca é votar no governo. A modinha, como as demais manifestações de arte popular existente no país, é obra do mulato, em cujas veias o sangue re-cente do europeu, rico de ativismos estéticos, borbulha d’envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro. O caboclo é soturno. Não canta senão rezas lúgubres. Não dança senão o cateretê aladainhado. O caboclo é o sombrio Urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo reside nas benemerências sem conta da mandioca. Talvez sem ela se pusesse de pé e andasse. Mas enquanto dispuser de um pão cujo preparo se resu-me no plantar, colher e lançar sobre brasas, Jeca não mudará de vida. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade do ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo salgado a Ho-landa, essa jóia de esforço, é que ali nada o favorecia!”.

Longe, assim, dos nativismos que tinham encontrado na idealização do índio brasileiro como “mito do bom-selva-gem” inspiração maior da literatura romântica, Monteiro Lobato edificava um tipo cómico que se queria realista, social e quase político, representando a miséria social e o atraso económico de um país marcado pelo continuado des-caso dos poderes pelo desenvolvimento do atrasado mundo rural brasileiro: Jeca, por isso, é agora palavra devidamente consagrada nos dicionários de português do Brasil e ainda mais na linguagem popular.

E de verdadeira revolução da linguagem se trata nos ca-torze contos que formaram “Urupês”. Lobato foi reprodu-zindo as brasileiras falas dos meios rurais, privilegiando co-loquialismos e oralidades, ousando vazar em literatura uma linguagem popular que até então era considerada inferior e primitiva, revolucionando mesmo ortografias e sintaxes, incluindo novas formas de pontuar e uma enorme redução de acentos. Quatro anos antes da célebre Semana de Arte Moderna que, por São Paulo, em 1922, se vai apresentando

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 Vlusofonias

Urupês:Uma nova eScrita para Uma literatUra moderna

estudos e ainda menos investigação interessada.No entanto, a verdadeira estreia literária de Monteiro

Lobato acontece em 1918 com a publicação pela sua nova editora da Revista do Brasil dessa colectânea de contos a que chamou “Urupês”. Reunindo a alguns dos textos publicados em “O Estado de São Paulo”, incluindo esse primeiro artigo “Velha Praga”, outros contos originais, “Urupês” foi um enorme sucesso de vendas e distribuição muito graças ao feliz conto que dava o título e encerrava o volume, famoso pela sua invenção desse tipo cómico que, folclórico e polémico, era o caipira Jeca Tatu. No conto final “Urupês”, Monteiro Lobato apresenta com a sua original forma de escrever a nova personagem que muito seria discutida entre etnógrafos e candidatos a an-tropólogos: “A Verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de ta-buinha em beiço, uma existe a vegetar de cócoras, inca-paz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sor-na, nada a põe de pé. Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! Jeca Tatu é um Piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resu-mem todas as características da espécie. O fato mais im-portante da vida do Jeca é votar no governo. A modinha, como as demais manifestações de arte popular existente no país, é obra do mulato, em cujas veias o sangue re-cente do europeu, rico de ativismos estéticos, borbulha d’envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro. O caboclo é soturno. Não canta senão rezas lúgubres. Não dança senão o cateretê aladainhado. O caboclo é o sombrio Urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo reside nas benemerências sem conta da mandioca. Talvez sem ela se pusesse de pé e andasse. Mas enquanto dispuser de um pão cujo preparo se resu-me no plantar, colher e lançar sobre brasas, Jeca não mudará de vida. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade do ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo salgado a Ho-landa, essa jóia de esforço, é que ali nada o favorecia!”.

Longe, assim, dos nativismos que tinham encontrado na idealização do índio brasileiro como “mito do bom-selva-gem” inspiração maior da literatura romântica, Monteiro Lobato edificava um tipo cómico que se queria realista, social e quase político, representando a miséria social e o atraso económico de um país marcado pelo continuado des-caso dos poderes pelo desenvolvimento do atrasado mundo rural brasileiro: Jeca, por isso, é agora palavra devidamente consagrada nos dicionários de português do Brasil e ainda mais na linguagem popular.

E de verdadeira revolução da linguagem se trata nos ca-torze contos que formaram “Urupês”. Lobato foi reprodu-zindo as brasileiras falas dos meios rurais, privilegiando co-loquialismos e oralidades, ousando vazar em literatura uma linguagem popular que até então era considerada inferior e primitiva, revolucionando mesmo ortografias e sintaxes, incluindo novas formas de pontuar e uma enorme redução de acentos. Quatro anos antes da célebre Semana de Arte Moderna que, por São Paulo, em 1922, se vai apresentando

como fundação do primeiro modernismo brasileiro, já Mon-teiro Lobato tinha criado uma literatura verdadeiramente moderna.

O primeiro conto de abertura de “Urupês”, intitulado “Os Faroleiros”, convida-nos para um coloquial diálogo entre dois homens embarcados: um deles recorda a história do fa-roleiro Gerebita, constantemente ameaçado pelo seu auxi-liar, Cabrea, a quem matou em legítima defesa; depois veio a saber-se que Cabrea era o amante da esposa de Gerebita.

O segundo conto, “O Engraçado Arrependido”, tem tam-bém fatal desenlace: Pontes era um incurável “piadista” que não conseguia arranjar emprego porque todos os seus pedidos eram tidos como uma piada. Um parente prome-teu-lhe uma posição de colector, logo que falecesse o titular do cargo que sofria de aneurisma. Pontes não perdeu tempo e matou o titular com uma gargalhada fatal. Tarde de mais, o emprego já tinha sido ocupado por outro e Pontes suicida--se, enforcando-se numa peça de roupa.

O terceiro conto, “A Colcha de Retalhos”, texto admirável na recriação da oralidade rural, continua na senda do fata-lismo: o narrador visita a pobre propriedade de Zé Alvorada para lhe oferecer um emprego, mas como se encontrava ausente vai conversando com a sua esposa Sinhá Ana, a filha do casal, Pingo d’Água, jovem de 14 anos, e a avó Sinhá Joa-quina, de setenta anos. A avó vai costurando uma colcha de retalhos com tiras dos vestidos antigos da menina, prenda para futuro enxoval. Dois anos depois, o visitante recebe a notícia da morte de Ana e da partida da menina com um homem desconhecido. A avó deixa de saber o que fazer com a sua obra de retalhos, acabando por morrer.

O quarto conto, “A Vingança da Peroba”, é novamente tão mortal como cómico. Vizinhos, os Porunga e os Nunes são o oposto: nos primeiros descobre-se família de esfor-çados trabalhadores e nos segundos o velho Nunes e o seu indolente filho, Pernambi, ambos arrastados para a bebida. Procurando mudar a sua sorte, Nunes constrói um monjolo moedor de milho, mas com “pau de feitiço”, pelo que a má-quina não funciona. Ridicularizado pelos vizinhos, mergulha com o filho no álcool: Pernambi acaba completamente em-briagado por cair no monjolo que lhe despedaça fatalmente o corpo.

De outras brasileiras fatalidades, entre nepotismo e favo-res clientelares, trata o quinto conto, “O Suplício Moder-no”, narrando a história de Biriba, um carteiro estafeta que queria mudar para melhor posição, mais elevada e melhor remunerada, graças ao líder político local que o protegia. O favor não veio e o estafeta vingou-se ao provocar a derrota eleitoral do seu antigo protector. O novo eleito, contudo, despediu todo o funcionalismo com a excepção do Biriba que, ao continuar estafeta, fugiu pela calada da noite.

O sexto texto, “Meu Conto de Maupassant”, recria a lite-ratura de mistério do grande romancista francês do século XIX, oferecendo uma história sobre um italiano que, acusa-do pela morte de uma idosa e apesar de libertado por falta de provas, acabaria preso por outro crime menor, suicidan-do-se debaixo de um comboio, o que foi interpretado como remorso pelo assassinato da velha senhora. A seguir, um dos seus filhos assumiu a autoria do crime, instalando-se o mis-tério que Lobato muito apreciava na obra de Maupassant.

O sétimo conto, com o latino título de “Pollice Verso”, conta a vida de boémia do filho de um coronel do interior que o mandou para a grande cidade para se formar em me-dicina. Concluído demoradamente o curso, regressado à sua cidade natal, viria a herdar generosa fortuna que desbara-tou em francesa viagem: “com o polegar voltado para bai-xo” queria dizer o título deste conto, recordando o gesto dos espectadores dos circenses espectáculos romanos quan-do um gladiador era derrotado.

“Bucólica”, oitavo conto, é narrativa do mais negro fa-talismo: Anica é menina deficente, desprezada pela mãe, acabando por morrer miseravelmente de sede.

“O Mata-Pau”, nono conto, ainda é mais sinistro: Rosa e Elesbão, casal sem filhos, adoptam um menino enjeitado baptizado Manuel Aparecido. Provocado por Rosa, de quem se torna amante, mata Elesbão, depois incendiando a sua casa para fugir. Rosa escapa mas enlouquece.

O décimo conto, “Bocatorta”, torna-se macabro: na propriedade do Major Zé Lucas vive um jovem com hor-rorosa deficiência, o tal Bocatorta. Eduardo, noivo da fi-lha do Major, Cristina, decide conhecer a monstruosidade que muito impressiona a sua prometida que, perseguida a partir daí por pesadelos em que o Bocatorta a beija, mor-re pouco depois. Após o funeral, Eduardo volta à campa de Cristina encontrando alguém que viola o seu túmulo. Acompanhado do Major e de um capataz, Eduardo vai surpreender o Bocatorta a beijar o cadáver da sua fale-cida noiva. Perseguido, o Bocatorta morre conveniente-mente ao cair num lamaçal.

O décimo primeiro conto, “O Comprador de Fazendas”, é história menos fatal, muito ao jeito das mentalidades so-ciais e do universo cultural do mundo rural. Moreira quer vender o seu sítio, o que interessa um tal Trancoso, mais interessado ainda na filha do proprietário. Contudo, após algum tempo sem novidades, Moreira vem a saber que o Trancoso é um pobretana habituado a explorar a ingenuida-de dos caipiras. Entretanto, Trancoso ganha fortuna na lo-taria, mas quando volta ao sítio de Moreira para o comprar é expulso pela família ignorante da sua súbita prosperidade com uma valente sova.

O décimo segundo conto, “O Estigma”, volta às mais terríveis fatalidades. Bruno conta a história do seu amigo Fausto que tinha casado por puro interesse para depois se interessar por Laura, uma prima que havia acolhido em sua casa depois da morte de seus pais. Laura apa-rece morta com um tiro no peito por onde escorria uma linha de sangue. Grávida, a mulher de Fausto recusa-se a ver o cadáver, mas quando nasce o seu filho tem gravado no peito um estigma absolutamente igual ao do filete de sangue da assassinada Laura. O estigma denuncia a au-tora do crime, a mulher de Fausto que, desmascarada, acaba por morrer.

Apesar do interesse destes contos, fatalmente muito bem redigidos como a “Velha Praga” que, reescrita, se lhes se-guia, era o último conto “Urupês” com o seu Jeca Tatu que mais popularizava a primeira obra literária de Monteiro Lo-bato. No conto final, os fatalismos dissipavam-se e resol-viam-se: o nosso escritor concluía criticamente que “Jeca Tatu não é assim, ele está assim”.

A natureza só permiteaos génios uma filha:sua obra.

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VI Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIASlusofonias

Urupês tem sido regularmente texto de exames de acesso às universidades – o que nem sempre

é por desforço a melhor forma de ensinar a ler as grandes obras clássicas da literatura em língua por-tuguesa –, mas nem por isso os livros para adultos de Monteiro Lobato se tornaram mais recordados e frequentados. A sua obra muito volumosa e ainda mais fabulosa para a infância resgata a fama do grande escritor brasileiro. E, no entanto, a acredi-tar nas memórias de Lobato, a sua mobilização em escrever para as crianças parece fruto de encon-tro circunstancial: em 1920, durante uma partida de xadrez, o seu adversário, o engenheiro paulista José Maria Toledo Malta (1885-1951), contou-lhe a história de um peixinho que, saído do mar, de-saprendeu a nadar e, depois, morreu afogado. O nosso escritor perdeu a partida, mas, regressado a casa, sentou-se em frente à sua máquina de es-crever e não descansou enquanto não concluiu “A História do Peixinho” que morreu afogado, origem do seu livro “A Menina do Narizinho Arrebitado” em que, nesse ano de 1920, se funda o “Sítio do Picapau Amarelo”, cenário para a maioria das suas obras infantis. Ainda hoje, os investigadores es-pecializados continuam a procurar essa primeira história que Monteiro Lobato deixou de saber onde tinha sido originalmente publicada.

Os sucessivos livros passados no “Sítio do Pica-pau Amarelo” encantam não apenas pela origina-lidade dos contos, mas sobretudo pela fantástica galeria de maravilhosas personagens que foram fascinando gerações e gerações de crianças, pri-meiro no Brasil, depois por toda a América Latina, mais tarde ainda traduzidas em muitos outros paí-ses e línguas.

Assim se inventa essa Dona Benta, conhecedo-ra tanto do folclore brasileiro como de mitologia grega, contadora das histórias do sítio, avó de Pe-drinho, o aventureiro menino da cidade, e da sua prima Lúcia, o irrequieto Narizinho que morava na fazenda do Picapau Amarelo. A que se juntam como personagens centrais um sábio boneco fei-to de folhas de milho, o esclarecido e aristocrata Visconde de Sabugosa, a negra cozinheira Tia Nas-tácia, muito conhecedora de lendas populares e ainda mais da gastronomia brasileira, a irreveren-te e fantástica Emília, uma faladora e muito curio-sa boneca de pano casada com um luzido e muito glutão porco, o Marquês de Rabicó que não se des-tacava propriamente pela valentia, contrastando com o Senhor Conselheiro, um iluminado burro que quase sempre acertava, mais o encantador e muito adocicado rinoceronte Quindim.

A que se vão juntando em diferentes livros mui-tas outras personagens inesquecíveis: um Príncipe Escamado, regente do Reino das Águas Claras, ca-

sa-se com Narizinho nesse livro em que se ofere-cem as suas Reinações; o Tio Barnabé é um homem da roça que ensina Pedrinho a caçar sacis, aca-bando devorado pela glutonice do sempre faminto Marquês de Rabicó; Cuca é uma bruxa que encanta Narizinho, Dona Benta e Tia Nastácia; Cléo é uma locutora da rádio que visita o sítio; o detective XB2 inventa-se para descobrir um rinoceronte fugido do circo do alemão Fritz Muller; a Flor das Alturas é um anjinho de asa quebrada que Emília encon-trou no cometa Halley; lições de ciências naturais são dadas pela Rãzinha da Silva e pelo Dr. Zame-nhof, investigador de insectos gigantes; há tam-bém um coronel Teodorico, fazendeiro ignorante e vaidoso, Juquinha e Candoca, os irmãos órfãos de que Emília se vai ocupar, e até mesmo um antro-pólogo, o Doutor Barnes, o fundador de Pail City, a cidade do balde.

Noutros contos infantis, Monteiro Lobato não resiste a construir personagens saídas da sua luta pelo petróleo brasileiro. Assim, no livro “O Poço do Visconde” encontra-se um Mr. Kalamazoo, um técnico perfurador de petróleo vindo proposita-damente dos Estados Unidos para prospectar pe-tróleo no sítio do picapau amarelo, devidamente ajudado pela sabedoria de Mr. Campignon, um químico-geólogo parecido com “Clark Gable”. Um fascínio pelo cinema de Hollywood que convoca também alguns dos seus grande sucessos em de-senhos animados: Monteiro Lobato escreve o seu próprio Gato Félix, em 1929, introduzindo também Popeye e Peter Pan no cada vez mais fantástico universo infantil do “Sítio do Picapau Amarelo”.

Entre 1921, data da publicação de “Saci”, e 1947, com a edição de Histórias Diversas, o con-junto dos livros que hoje se classifica como essa fabulosa “Colecção do Sítio do Picapau Amarelo” inclui 23 títulos em que se vão combinando os tex-tos de aventuras com obras de inteligente pendor didáctico infantil, algumas ainda hoje distribuídas pelas 190.000 escolas brasileiras: as “Fábulas”, de 1922, divulgam e recriam os clássicos de Esopo e La Fontaine; “Viagem ao Céu”, de 1932, oferece lições de astronomia; a “História do Mundo para as Crianças”, de 1933, sumaria os grandes temas da história universal; “Emília no País da Gramá-tica”, em 1933, ajuda a aprender português; em 1935, a publicação sucessiva de Aritmética da Emília, “Geografia de Dona Benta” e “História das invenções” alargava os temas revisitados em escri-ta e pedagogia infantis; “O Minotauro”, de 1939, mais os “Doze Trabalhos de Hércules” voltavam a recriar a mitologia clássica ao gosto das crianças; em 1941, “A Reforma da Natureza” ajudava o pú-blico infantil com as ciências naturais, enquanto “A Chave do Tamanho” visitava sem complicações

os segredos da geometria. Uma extensa bibliografia infantil em que se deve

incluir a recriação de textos clássicos para crian-ças, como “O Irmão de Pinóquio”, publicado em 1929, mas também das grandes obras-primas da literatura universal, como nesse “Dom Quixote das Crianças”, de 1936. Títulos que reúnem ain-da uma peça de teatro infantil, editada em 1938, “O Museu da Emília”, as talentosas traduções em português de obras infantis mais do que clássicas: “Contos de Grimm” e “Novos Contos de Grimm”; “Contos de Anderson” e “Novos Contos de Ander-son”; “Alice no País das Maravilhas” e “Alice no País dos Espelhos”; “Contos de Fada”; “Robinson Crusoe” e “Robin Hood”.

Um trabalho admirável que, extensíssimo, Mon-teiro Lobato terá finalmente preferido privilegiar na sua peculiar concepção do escritor e da litera-tura: “De escrever para marmanjos já estou en-joado. Bichos sem graça. Mas para crianças um livro é todo um mundo.”

Monteiro Lobato faleceu cedo demais para assis-tir ao enorme sucesso desse outro sucesso que foi o da continuada produção televisiva das histórias do seu sítio. Uma primeira série televisiva do “Sí-tio do Picapau Amarelo”, extremamente fiel aos livros originais de Lobato, foi sendo apresentada na TV Tupi de São Paulo de 3 de Junho de 1952 a 1962. Anos pioneiros da televisão brasileira, inau-gurada a 18 de Setembro de 1950: desta série ini-cial representada ao vivo e que não foi gravada apenas resta um punhado de fotografias. Em 1957, a TV Tupi do Rio de Janeiro lançou também o seu próprio programa do “Sítio do Picapau Amarelo”, famoso pelas actuações de Pedrinho na pessoa do grande Cláudio Cavalcanti, recentemente falecido no passado dia 29 de Setembro aos 73 anos, e Da-niel Filho como Visconde Sabugosa. Uma segunda série televisiva aparece na TV Cultura de São Pau-lo, em 1964, depois seguida pela Rede Bandeiran-tes desde 1967. Uma quarta série, unanimemen-te considerada a de maior sucesso televisivo, foi sendo transmitida pela Rede Globo de 7 de Março de 1977 a 31 de Janeiro de 1986. Haveria de se seguir ainda uma quinta série, novamente na Rede Globo, emitida entre 12 de Outubro de 2001 e 2 de Dezembro de 2007, nessa altura agregando às histórias de Monteiro Lobato vários outros temas mais actuais.

Hoje em dia, com o youtube e muitos interné-ticos afins, estas emissões televisivas aí estão fa-cilmente disponíveis sem precisarem mesmo das nossas muito modernas e paternalistas pedagogias do sempre politicamente correcto para deslum-brarem as nossas crianças com as muitas peripé-cias mágicas do Sítio do Picapau Amarelo.

o aUtor mágicopara Uma

infância encantada

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LUSOFONIAS • Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 VIIlusofonias

Infelizmente, a volumosa e fascinante obra literá-ria para a infância de Monteiro Lobato não se vai

libertar tão cedo desse estigma terrível de racismo, encontrando-se actualmente o processo em torno das “Caçadas de Pedrinho” ensarilhado entre quei-xas que seguiram espantosamente tão alto como a Presidente e o Supremo Tribunal Federal, apesar de um parecer da Procuradoria Geral da República que, recentemente, não encontrou quaisquer razões pertinentes para reverter a decisão do Ministério da Educação de continuar a distribuir o seu livro en-tre as escolas primárias oficiais. Assim, entre mili-tantismos irritantemente paternalistas e o habitual normativo discurso do tal politicamente correcto, mesmo aqueles que nunca leram ou virão algum dia a ler os livros de Monteiro Lobato não deixarão de produzir sentenças mais ou menos fatais. Conviria, por isso, convidá-los a ler um muito esquecido vo-lume que Lobato publicou em 1926 com o fabuloso título “O Presidente Negro ou Choque das Raças”, o seu único romance para adultos cultivando o género na altura ainda pouco brasileiro da ficção científica. Revisitando esta obra pode compreender-se conve-nientemente o racismo dominando as elites cultu-rais brasileiras nas primeiras décadas do século XX: a ler e não a proibir porque o livro tem também o valor de um importante lugar da memória.

Numa intriga passada em 1928 e, três séculos mais tarde, em 2228, começamos por encontrar um cobrador da empresa Sá, Pato e Companhia, de seu nome Ayrton, vitimado nas páginas iniciais do livro por um acidente de automóvel na cidade de Nova Friburgo, a uns 136 km do Rio de Janeiro. O nosso acidentado é assistido pelo professor Benson que o transporta para a sua casa. A Ayrton logo é apresen-tada a singular invenção do professor: o “porviros-cópio”, máquina fabulosa que permitia ver o futuro. Com a invenção veio também o encontro com Miss Jane, a lindíssima filha do professor, por quem Ayr-ton imediatamente se apaixona perdidamente como sempre convém a um romance que se preze mes-mo de ficção científica. O cobrador passa a visitar Jane todos os domingos, assistindo ao falecimento do professor que, antes do fatídico desenlace, tinha resolvido destruir o “porviroscópio”. Felizmente, até para alimentar a ficção narrativa, Jane tinha espreitado curiosamente os Estados Unidos da Amé-rica em 2228 graças ao invento paterno. Entre ou-tros voyeurismos menores, Ayrton fica a saber que, nessa data do futuro, os EUA tinham evoluído para um sistema tripartidário: existia um Partido Mascu-lino que recebera 51 milhões de votos, a exacta vo-tação também do Partido Feminista, exclusivo para mulheres brancas, enquanto o Partido Negro conse-guia recolher 54 milhões de preferências eleitorais. 2228 era ano de eleição presidencial, aparecendo três candidatos: Kerlog procura ser reeleito com o apoio do Partido Masculino; Evelyn Astor candidata--se pelo Partido Feminista; Jim Roy é o candidato do Partido Negro. A divisão dos partidos brancos em duas listas permite a eleição de Jim Roy, “o primei-ro presidente negro dos EUA” (em 1928 ainda não se sonhava com o nosso Obama tão oportunamente eleito como convenientemente reeleito...).

Este futurista (na verdade, nem por isso...) re-sultado eleitoral autoriza Monteiro Lobato a apre-sentar com muita clareza o seu pensamento racial, quase geral entre as élites epocais, logo sublinhan-do que os Estados Unidos e o Brasil erraram na co-lonização das suas nações ao trazer o negro para as Américas, quando deveria ter permanecido na África: “A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O Negro perdeu as suas ad-miráveis qualidades físicas de selvagem e o branco

sofreu a inevitável penhora de caráter”. Segue-se uma muita eugênica solução para o novo Brasil de 2228 retalhado em assumidamente racista apar-theid: as regiões do sul e sudeste brasileiros, pelos anos de 1920 muito marcadas por uma nova massiva emigração europeia, juntaram-se à Argentina e ao Uruguai (um MERCOSUR antes do tempo...) crian-do a grande República Branca do Paraná; enquanto as regiões norte e nordeste do Brasil foram inteira-mente entregues aos negros, índios e mestiços. Em contraste, orgulhosos da sua unida nação, os EUA resolveram o problema racial com engenho cientí-fico: o inventor americano John Dudley conseguiu finalmente alisar através do uso de raios ômegas os cabelos dos negros norte-americanos, depois de an-teriormente ter sido bem sucedido a esbranquiçar a sua pele (numa espécie de modelo Michael Jack-son). Os negros passaram rapidamente pelo proces-so de alisamento até porque em todos os bairros de todas as cidades norte-americanas existiam activas e lucrativas filiais da empresa Dudley. Os seus raios ômegas, porém, não apenas alisavam os cabelos como também esterilizavam todos os negros. Solu-ção, logo, definitiva e terminal.

A ficção científica de Monteiro Lobato tem, em 1928, o valor de um documento histórico esclare-cendo sem disfarces o pensamento racista dominan-te entres as elites letradas brasileiras ainda antes dessa formidável e quase revolucionária exaltação da miscigenação racial como solução da identidade do Brasil que Gilberto Freyre haveria de construir há precisamente oitenta anos quando, em 1933, publicou essa sua obra-prima, “Casa-grande e Sen-zal”. Contrastando com estes e outros conteúdos da obra de Lobato pela década de 1920 quando foi acusado pelos primeiros modernistas de reaccioná-rio e conservador, vários dos seus livros posteriores foram sendo perseguidos, às vezes apreendidos e proibidos acusados de propagarem perigosas ideias comunistas.

Consta, por isso, num auto de prisão dos finais de 1947 da Delegacia de Macau (naturalmente, o Macau brasileiro, cidade do Rio Grande do Norte) que José Batista da Silva e Manuel Ramos de Melo foram devidamente presos porque “estavam na Vila de Pendências deste município, distribuindo à população ali uns boletins de carácter extremista, isto é, boletins de propaganda comunista interna-cional”. Pior ainda, o José Batista da Silva tinha em seu poder “um livro infantil de autoria de Monteiro Lobato, intitulado Zé Brasil cuja leitura a começar da página dezanove contem as ideias extremistas, isto é, comunistas de Luís Carlos Prestes”.

Nem mais nem menos. Apesar das suas poucas 24 páginas, Zé Brasil tinha deixado de atribuir o atra-so brasileiro à indolência de caipiras como Jeca Tatu ou, como argumentavam as elites instaladas, à pouca educação do povo para acusar a estrutu-ra económica e social do Brasil. O pequeno livrinho exigia uma reforma agrária, melhor distribuição dos rendimentos e muito mais justiça social. Em 1948, foi mesmo lançada nova edição, soberbamente ilustrada pelo grande vulto das artes e da pintura modernista que foi Cândido Portinari (1903-1962). Talvez seja mesmo conveniente conhecer e voltar a ler a obra de Monteiro Lobato antes de se produ-zirem essas irritantes sentenças típicas deste nosso mediático e cobiçoso tempo em que se assassinam personalidades, obras, carácter e se inveja a inteli-gência com a mesma exacta facilidade com que se passou a ignorar os grandes autores e livros com que se vai fazendo a grande literatura em lusofonias.

O que não vale mesmo a pena fazer com Monteiro Lobato: a sua obra é maior.

epílogo:o preSidente negro e Zé BraSil Seja você mesmo,

porque ou somos nós mesmos, ou não somos coisa nenhuma.

Quem tem força, abusa.

Nada de imitar sejalá quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir.

Para a treva só há um remédio, a luz.

Tudo tem origem nos sonhos. Primeiro sonhamos, depois fazemos.

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VIII Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIASlusofonias

Embora a partir da década de oitenta se verifique um número significativo de trabalhos que põem em foco

as relações interliterárias voltadas para as literaturas não-canônicas, as relações culturais entre Brasil e Cabo Verde são bem anteriores e para efeito desta comunica-ção vamos situá-las na década de trinta.

Manuel Ferreira, no seu longo prefácio à edição co-memorativa dos cinquenta anos da publicação do pri-meiro número de Claridade (Março de 1936/ Março de 1986), procura analisar os elementos que, na sua opi-nião, constituem uma explicação lógica para o apareci-mento desta revista no arquipélago.

Dentre os “elementos exógenos”, aponta primeira-mente a presença dos escritores portugueses Augusto Casimiro, António Pedro e José Osório de Oliveira; de-pois assinala a contribuição da revista Presença; consi-dera ainda o contacto com alguns jornais portugueses e, finalmente, a contribuição da literatura brasileira. Nas palavras do próprio Manuel Ferreira: “Aliás, des-de o princípio deste século, para não irmos mais longe, a presença brasileira é por vezes notória na literatura caboverdiana. as referências são constantes, quer em obras literárias quer na Imprensa. E elas vêm das for-mas mais diversas. Desde as dedicatórias de escritores caboverdianos, nomeadamente José Lopes, a persona-lidades brasileiras, transcrições de poemas por vezes bem longos dedicados ao Brasil ou a intelectuais bra-sileiros; na verdade, de forma a mais variada, o Brasil fixou-se na poesia caboverdiana”. (Claridade, p.XXVIII).

A distância imposta pela configuração geográfica não impediu a circulação de alguns romances brasileiros, mais particularmente aqueles de características neo--realistas, entre os escritores das ilhas. É o próprio Baltasar Lopes, em declaração proferida em 1956, que esclarece como se deu o contacto literário dos cabover-dianos com alguns dos nossos escritores: “Há pouco mais de vinte anos, eu e um grupo reduzido de amigos come-çámos a pensar no nosso problema, isto é, no problemas de Cabo Verde. Preocupava-nos sobretudo o problema da formação social destas ilhas, o estudo das raízes de Cabo Verde. Precisávamos de certezas sistemáticas que só nos podiam vir, como auxílio metodológico e como in-vestigação, de outras latitudes. Ora aconteceu que por aquelas alturas nos caíram nas mãos, fraternalmente juntas, em sistema de empréstimo, alguns livros que consideramos essenciais pro doma nostra. Na ficção, o José Lins do Rego d’ O Menino do Engenho, do Banguê; o Jorge Amado do Jubiabá e Mar Morto; o Amândio Fontes d’ Os Corumbas; o Marques Rebelo d’ O caso da menti-ra, que conhecemos por Ribeiro Couto. Em poesia foi um alumbramento a “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, que, salvo um ou outro pormenor, eu visuali-zava com as suas figuras dramáticas, na minha vila da Ribeira Brava. O António Rodrigues, que ainda cheguei a conhecer, e tinha a cara do Padre Vieira das ilustrações dos livros escolares. E a moça nuinha no banho fora sur-preendida nos tanques da Ribeira de João, logo acima do trapiche da Pequena; em poesia, outro alumbramento foi Jorge de Lima, em que o sinhàzismo de ‘Nega Fulô’ e o super-realismo do ‘Menino impossível’ emparceiram na nossa receptividade com Jorge de Lima da ‘Túnica impossível’, com as tosses, as asmas, máquinas de cos-tura, que precisam dormir, e com o tema, ilhéu e tão nosso, do avião que matou a saudade dos nossos filhos vagabundos. Claro que o avião, para a nossa temática, é proteiforme, podendo ser até o veleiro das travessias entre as ilhas de certos poemas de Jorge Barbosa’”(In FERREIRA, M. (org.). Claridade, p. XXIX e XXX).

O reconhecimento desse encontro por parte dos cla-

ridosos revela, para além do engajamento ideológico, uma práxis artística que a um só tempo identifica as literatura brasileira e caboverdiana e as afasta do mo-delo do colonizador.

Menino de engenho e Chiquinho são obras de denún-cia, pois nelas se verifica, por meio da narração e das falas das personagens, uma crítica à ordem social esta-belecida. Observam-se em José Lins do Rego e Baltasar Lopes uma confiança na palavra artística como veículo de transformações sociais e o emprego de procedimen-tos semelhantes na organização estrutural dos respec-tivos romances.

Menino de engenho é publicado em 1932 e narra a história do menino Carlos que deixa a cidade de Recife depois da morte da mãe e vai viver no engenho de seu avô materno, na Paraíba.

Apontado pela crítica consagrada como um documen-to sociológico, esse romance de José Lins do Rego é expressão da brasilidade que identifica nosso povo não apenas pelo tema e feição regionalista, mas também pela linguagem que revela o poder que organiza as rela-ções humanas e define o destino dos homens.

O destino – “esta força arbitrária” – apresenta-se na narrativa como um tema a ser descodificado pela cons-ciência infantil que procura pôr ordem nas múltiplas ex-periências vividas no engenho Santa Rosa. Aos poucos, Carlinhos vai tomando contacto com as injustiças so-ciais e percebendo que elas é que lhe garantem os privi-légios: “Depois mandaram-me para a aula de um outro professor, com outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para ‘o neto do Coronel Zé Paulino’. Os outros meninos sentavam-se em caixões de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era cantada em coro, com os pés balançando, num ritmo que ain-da hoje tenho nos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei um bolo, mas quando acertava, mandavam que desse nos meus competidores. Eu me sentia bem com todo esse regime de miséria. Os meninos não tinham raiva de mim. Muitos deles eram moradores do engenho. Pa-rece que ainda os vejo, com seus bauzinhos de flandres, voltando a pé para casa, a olharem para mim, de bolsa a tiracolo, na garupa do cavalo branco que me levava e trazia da escola” (Menino de engenho, p.33-4).

Publicado quinze anos depois do romance brasileiro, Chiquinho aparece em 1947 em forma de livro, embora os capítulo “Bibia” e “Infância” tenham sido publicados nos números um e três da revista Claridade.

As três partes que constituem a obra (“Infância”, “São Vicente” e “As águas”) revelam a trajectória percorri-da por Chiquinho. Como narrador-personagem, narra as diversas situações vividas em companhia de sua família no Caleijão, na ilha de São Nicolau. Como Carlinhos, de Menino de engenho, Chiquinho observa as relações familiares, a pobreza da região onde vive, o drama dos lavradores que se tornam escravos das constantes secas e a emigração de seus patrícios para a América.

Depois dos estudos no liceu de São Nicolau, transfere--se para São Vivente, onde passa a frequentar o Seminá-rio e conviver diariamente com os colegas do Grêmio. Andrezinho, o líder da turma, tem uma proposta de tra-balho: “Para ele, os nossos problemas tinham uma tona-lidade específica, que resultava do ‘cerco do Atlântico’ e do ‘drama ancestral da formação étnica’. O que se impu-nha era reorganizar completamente nossas peculiarida-des. Na vida administrativa. Na estrutura social. Na arte. [...] Andrezinho deu a fórmula: enquadramento do nosso caso nas aspirações, sempre as mesmas, sob qualquer la-

titude, da alma humana.” (Chiquinho, p. 73).Em outras palavras, a consciência do narrador amplia-

-se para além do drama vivido pela comunidade enrai-zada em torno da casinho do Caleijão. Na óptica de Chi-quinho, o problema da sobrevivência ultrapassa a sua ilha de origem para se estender a todo o arquipélago.

Na formação da personalidade do menino do engenho Santa Rosa não estão apenas as brincadeiras e outras aventuras proibidas que os recantos do latifúndio do avô José Paulino lhe possibilitam. Antes de ingressar na escola, o cultivo de sua imaginação faz-se pelas histó-rias da Velha Totonha. “Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um jeito admirável de fa-lar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às palavras. As suas histórias para mim valiam tudo.” (Menino de engenho, p. 50).

A convivência íntima de Carlinhos com as negras da senzala contribuem para ampliar o reino fabuloso da sua imaginação de menino: “Eu vivia em conversa com ela [Galdina], atrás das suas histórias da costa da áfri-ca”. (Menino de engenho, p. 58).

A essas histórias acrescentam-se as conversas das cos-tureiras do engenho que além dos bordados desfiam os enredos que constituem a vida miúda dos trabalhadores do eito, as aventuras dos grandes do cangaço como An-tônio Silvino.

Situação semelhante vive Chiquinho que antes de en-trar para o Seminário em São Vicente alimenta as suas fantasias infantis com as histórias contadas pela velha rosa Calita e pelos trabalhadores das lavras de milho.

Aplica-se aos dois textos o conceito de Walter Benja-min de que “a experiência que passa de pessoa a pes-soa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anónimos”.

Carlinhos, no engenho Santa Rosa resiste ao ABC que tia Maria amorosamente tenta ensinar-lhe, mas deixa--se seduzir pelas palestras que os mestres de ofício vão-lhe contando enquanto executam seus trabalhos de carpintaria e tanoagem: “O que, porém, mais me prendia aos meus amigos, eram as suas conversas e confissões. O Seu Rodolfo sabia de muita coisa. Vivia consertando engenhos desde menino. E de toda parte trazia uma história” (Menino de engenho, p. 69).

José Lins do Rego e Baltasar Lopes procuram apro-priar-se das tradições orais para imprimirem às suas his-tórias o “vôo de imaginação” que caracteriza a matéria literária e dá a elas a fisionomia particular que distingue o texto brasileiro do texto caboverdiano. Dessa forma, a pobreza e a miséria que afligem os camponeses de São Nicolau e os lavradores do eito são as mesmas. A fartu-ra da casa-grande brasileira equivale ao comedimento e segurança da casinha do Caleijão; à expectativa da cheia do rio Paraíba corresponde à chegada das águas no chão seco da ilha. No entanto, a fertilidade da terra brasileira não pode corresponder aos barcos de pesca de baleias, nem a evasão caboverdiana equivale aos movimentos migratórios do Nordeste brasileiro.

Assim, as semelhanças e diferenças aqui apontadas ultrapassam a concepção tradicional do comparativis-mo francês, em que se cria uma dívida impagável de um autor em relação a seu precedente. Esse medo rondou o espírito de Manuel Lopes e Jorge Barbosa, fazendo com que declarassem enfaticamente que a literatura cabo-verdiana havia encontrado seu próprio caminho.

* Investigadora brasileira, especialista em literaturas africanas de expressão portuguesa

Marcia Garcia Dias*

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entre José Lins do Regoe Baltasar Lopes