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Em busca da “terra perdida”: a emergência étnica e a luta pelo território Krenyê.1
Mônica Ribeiro Moraes de Almeida, UFMA, Maranhão.
Resumo: Este trabalho objetiva refletir sobre a luta do povo Krenyê para a
conquista de um território bem como o processo de construção da identidade Krenyê.
Para tanto as noções de etnogênese, território (Oliveira, 1998) e identidade étnica
(BARTH, 1969) serão necessárias. Os Krenyê compõem juntamente com os Canela
Rankokamekra, Canela Apaniekrá, Krikati, Gavião/Pykopjê, krepunkateyê o conjunto
de seis povos Timbira (NIMUENDAJU, 1946) que estão localizados no Maranhão.
Entretanto vivenciam uma realidade diferente, pois ao contrário dos demais Timbira não
possuem terra demarcada. Retirados de sua área no início do século XX, sofreram um
processo de fragmentação e dispersão, se dividiram entre terras de outros povos e
periferias de algumas cidades. Fragmentados e camuflados, os Krenyê foram por muitos
tempos considerados extintos (NIMUENDAJU, 1946; LAVE, 1967; RIBEIRO, 1996) .
Porém desde 2009 vêm se mobilizando para o reconhecimento e retomada de suas
terras, tradicionalmente denominada “Pedra do Salgado” situada no município de
Bacabal-MA, atualmente ocupadas por fazendeiros. Assim, neste movimento de luta por
reconhecimento territorial iremos focar nas estratégias utilizadas pelos Krenyê para
construção de um sentimento de unidade e fortalecimento da identidade Krenyê.
Palavras-chave: Krenyê, Território, Identidade.
O presente trabalho visa refletir sobre o processo de luta dos Krenyê para a
conquista de um território, tentando apreender as estratégias que utilizam para a
construção de um sentimento de unidade e fortalecimento da identidade Krenyê.
Os Krenyê compõem juntamente com os Canela Ramkokamekra, Canela
Apaniekrá, Krikati, Gavião/Pykopjê e os Krepumkateye um conjunto de seis povos
conhecidos como Timbira e que habitam terras situadas no estado do Maranhão. São
referidos como Timbira aqueles povos que possuem em comum uma língua classificada
no tronco linguístico Macro-Jê, com variações dialetais da língua Timbira
(RODRIGUES, 1986).
Nimuendajú (1946) considerou a existência de dois povos distintos denominados
como Krenyê, os quais diferenciou em: “Krenyê de Bacabal” e “Krenyê de Cajuapara”.
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
Considera que os Krenyê de Bacabal assemelham-se aos Timbira de Araparytiua, os do
Cajuapara parecem mais com os Krepumkateye e Pukopyê.
Os Krenyê vivenciam uma realidade diferente dos demais Timbira, pois são os
únicos que não possuem terra demarcada. A presente análise refere-se à luta dos ditos
“Krenyê de Bacabal” por um território.
Os chamados “Krenyê de Bacabal” estão entre os povos que, juntamente com os
Pobzé e os Kukoékamekrá, Francisco de Paula Ribeiro denominou “Timbira do Baixo
Mearim” (1841). No início do século XIX vagavam por entre o baixo rio Mearim e o
baixo rio Grajaú, “tendo suas povoações estabelecidas a oeste do Pindaré” (RIBEIRO,
1841, p. 193).
No mapa etnohistórico de Nimuendajú (1981), percebemos a presença dos
Krenyê, provavelmente os denominados Krenyê de Bacabal, nas regiões dos rios
Mearim, Gurupi, Grajaú, por volta da segunda metade do século XIX, e vivendo
próximo aos Tentehar, Timbira, Tembé e os Pobzé e Kukoekamekrá.Estes últimos não
se sabe da sua existência, na atualidade.
Tanto Nimuendajú (1946) quanto Francisco de Paula Ribeiro (1841) refere-se à
agressividade dos “Timbira do Baixo Mearim”. Nimuendajú demonstra que essa
agressividade era manifestada não só no encontro com os citadinos como também em
relação a outros povos Timbira, citando os Cakámekra e Ramkokamekra. Paula Ribeiro
relata que,
nunca em tempo algum deixaram comunicar-se amigavelmente, por
isso que ignoramos a maior parte das suas particularidades
domésticas, e apenas sabemos quanto às gerais de todos os índios, o
muito que respeitam a memória de alguns dos seus finados (Ribeiro,
1841, p194)
Nimuendaju (1946), citando Marques e Machado, escreve que desde 1853 os
Krenyê e os Pobzé começaram a se apresentar pacificamente aos moradores da região
de Bacabal e rio Mearim. Nesta mesma época houve a criação da colônia de
Leopoldina, na região do médio rio Mearim (NIMUENDAJU, 1946), local onde
posteriormente viria se formar a cidade de Bacabal (COELHO, 1990). A Colônia de
Leopoldina objetivava o aldeamento dos Krenyê e dos Pobzé (NIMUENDAJU, 1946;
GOMES, 2002). Desse modo, os diretores de províncias pretendiam exercer o controle
sobre os índios, para que estes não constituíssem empecilho aos projetos
desenvolvimentistas que começavam a se implantar no, neste período, como bem
afirmou Coelho (1990).
Este contato foi funesto, pois causou mortes por epidemia de febre e fuga de
muitos para mata (NIMEUNDAJÚ, 1946). Nimuendajú (1946) cita o senso feito pelo
SPI em 1919, no qual constavam apenas 43 Krenyê.
De acordo com Darcy Ribeiro (1996) o território Timbira começou a ser
ameaçado no primeiro quartel do século XIX, situação que se prolongou por quarenta
anos de lutas ininterruptas (p.72). Pressionados por criadores de gado vindos de várias
direções do nordeste, os Krenyê que não quiseram se submeter fugiram indo se abrigar
na região do Gurupi (RIBEIRO, 1996)
Assim, por conta desses diferentes contatos, os Krenyê de Bacabal sofreram um
processo de fragmentação e dispersão e se dividiram entre terras dos Tentehar e
Pukobyê e periferias de algumas cidades como Santa Inês, Barra do Corda e Pindaré
Mirim. Fragmentados e camuflados, foram por muito tempo considerados extintos
(NIMUENDAJU, 1946; LAVE, 1967; RIBEIRO, 1996) .
Porém, desde 2009 vêm se mobilizando para o reconhecimento e retomada de
suas terras, uma área tradicionalmente denominada “Pedra do Salgado”, situada no
município de Bacabal-MA, atualmente ocupadas por fazendeiros.
No primeiro encontro visando à retomada do território, realizado em 2009 na
aldeia Pedra Branca, houve a participação de Krenyê vindos da Terra Indígena Geralda
Toco Preto, da cidade de Santa Inês, e da Terra indígena Pindaré. Na ocasião
conversaram sobre “sua história de luta e o desejo de retomar seu território
tradicional”2.
Os Krenyê, que há muito viviam dispersos, passam a unir forças para se afirmar
perante ao Estado. Após o primeiro encontro foram à Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) para dar início ao processo de discussão sobre o pedido de demarcação do
território tradicional, hoje ocupado por não índios3.
2 Fonte: www.cimi.org.br 3 www.cimi.org.br
As lideranças queixam-se de que a FUNAI não tem dado assistência e só passou
a manifestar-se em prol dos Krenye após o apoio que receberam do Ministério Público;
entretanto, segundo o Conselho Indígena Missionário, ainda “apontam a necessidade do
órgão se empenhar de forma comprometida com a causa da vida do povo Krenyê”4. A
única instituição que parece estar efetivamente apoiando os Krenyê é o Conselho
Indígena Missionário (CIMI), que desde 2003 os ajuda em suas necessidades e os
orienta sobre os trâmites do processo de demarcação de terra, bem como no resgate de
sua história.
Paralelamente ao pedido feito à FUNAI, os Krenyê, com a ajuda do CIMI,
fizeram uma visita a Pedra do Salgado na região do atual município de Bacabal e
identificaram no local as três mangueiras onde os mais velhos faziam os rituais de
encontro com os espíritos, plantadas pelo bisavô de umas das lideranças do movimento
e que demarca o território Krenyê.5 Assim, a memória sobre uma “terra perdida”
também é elemento presente nas falas de alguns Krenyê, como podemos observar na
fala abaixo:
Nossos pais tiveram que deixar nossa terra, como nós éramos crianças
tivemos que acompanhar6.
O que eu quero é nossa terra de volta porque foi lá que meus avós viveram.
Eu cresci lá, tá vendo. Ainda hoje lembro da pedra que tem um riacho que nunca seca e nós pescava lá, viu (Francisco Krenyê)7
Começaram, então, a se construir enquanto coletivo para se afirmar como
unidade, ou como um “tipo organizacional”, (BARTH, 1998). Assim, o processo de luta
por demarcação vai se constituindo em paralelo ao processo de construção da identidade
Krenyê
Barth (2000, p. 69) ao estudar os Pathans, grupo étnico habitante das regiões
próximas à fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, afirma:
O argumento básico é que as pessoas sustentam sua identidade através
do comportamento público, que não pode ser avaliado diretamente:
em primeiro lugar, deve ser interpretado com referência às alternativas
étnicas existentes. As identidades étnicas funcionam como categorias
4 Fonte: www.cimi.org.br 5 www.marcushistorico.blogspot.com.br 6 Chico lembra a saída de sua terra na primeira metade do século XX, devido a conflitos com criadores de
gado provenientes do Ceará. Fonte: www.cimi.org.br. 7 www.racismoambiental.net.br
de inclusão/exclusão e de interação, sobre as quais tanto o ego como o
alter devem concordar para que o seu respectivo comportamento seja
significativo. Os sinais de que uma pessoa pertence à categoria pathan
e a aceitação disso implica que uma pessoa será julgada de acordo
com um conjunto de valores característicos e ponderados de maneira
específica. A característica mais marcantes dos valores pathan reside
na ênfase principal na autonomia. (p. 90)
Os Pathnas, assim como os Krenyê, viviam dispersos em uma extensa área,
ecologicamente diversificada, “em contato com outras populações de culturas
diferentes”, em que a distância não permite saber com certeza se haverá a disseminação
equilibrada dos valores e percepções, (Barth, 2000). Para Barth, a identidade não é algo
fixo e pode ser modificada de acordo com interesses ou mudanças de critérios de
identidade e isso não abala o grupo, ao contrário, a organização étnica permanece
“intacta”.
O movimento de luta dos Krenyê expressa um processo de territorialização e
etnogenese de um povo. A territorialização das sociedades indígenas, e suas
etnogeneses, constituem interessantes processos de produções culturais conscientes
(GALOIS, 2000, p. 9). As experiências vivenciadas por povos indígenas para
identificação de suas terras são mais importantes do que o investimento de marcos para
demarcação das terras, na medida em que as experiências trazem a rememoração de
trajetórias de ocupação, antigas e atuais, e redundam na seleção e na defesa de limites,
em acordo com projetos de futuro, como ressaltou Gallois (2000)
Arruti (1997) aponta que se o etnocídio representa o extermínio sistemático de
um estilo de vida, a etnogenese, ao contrário dele, é a construção de uma
autoconsciência e de uma identidade coletiva contra uma ação de desrespeito
(geralmente produzida pelo Estado Nacional) em prol do reconhecimento e da conquista
de objetivos coletivos.
O movimento de afirmação étnica do povo Krenyê parece se situar na conquista
e partilhamento do território perdido e na tentativa de obter visibilidade enquanto povo
indígena, por muito tempo considerado extinto.
Objetivam reunir-se em um território exclusivo, longe dos demais povos e
citadinos. Estão buscando autonomia e independência enquanto povo, a partir do
estreitamento de laços de solidariedade. E, também, o estabelecimento de fronteiras.
Esses objetivos podem ser observados em algumas falas proferidas abaixo.
olha nossos meninos: estão vivendo aqui na cidade, onde eles não querem
mais ir trabalhar conosco, porque chega um amigo e chama-os para ir para
outro lugar. Estamos com medo que nossos filhos possam cair na
malandragem, porque é só o que eles estão vendo aqui na cidade 8 (Ancião
Krenye, Zé Índio)
Precisamos do chão que seja nosso, onde viviam nossos avós e pais; viver
assim é muito penoso, porque não podemos viver tranqüilo. Você está vendo como é nossa situação, não temos nada, estamos aqui nessas casas e no meio
da violência dos kupem (homem branco) (Maria Krenyê)9
Quando chegamos aqui [rodeador] nesta terra não tinha nada. Ficamos
morando na beira do brejo que tinha muita tiririca. Ficamos cozinhando na
lenha e enfrentando o frio durante a noite. Foi tempo de muito sofrimento,
mas hoje estamos melhores (Seu Chico, sobre as dificuldades de construir a
aldeia Pedra Branca)10
Os elementos ressaltados nas falas demonstram a existência de um vínculo
afetivo e preocupação com uma ideia de futuro enquanto povo. Tentam afirmar a ideia
de que são povos de um território. Assim, as afinidades culturais e linguísticas são
tomadas como provas de um vínculo histórico, o que deflagraria um processo, não só de
reorganização territorial, mas também sociocultural.
Considero que a luta pela terra é uma luta por reconhecimento, na medida em
que o direito a uma terra, para além da obtenção de vantagens, significa respeito
enquanto povo.
Hegel a partir do conceito genérico de direito trabalha a concepção de ‘outro
generalizado’, que
reconhecer-se reciprocamente como pessoa de direito significa que ambos os
sujeitos incluem em sua própria ação, com efeito de controle, a vontade
comunitária incorporada nas normas intersubjetivamente reconhecidas de
uma sociedade.(2003, p. 138)
Ao ser reconhecido pelos membros de uma coletividade como pessoa de direito, o
indivíduo pode, a partir daí adotar uma atitude positiva em relação a si mesmo. A
consciência do próprio valor é trabalhada por Mead (apud, HONNETH, 2003) sob o
conceito de ‘autorespeito’.
8 Fonte: www.cimi.org.br 9 idem 10 idem
De outro modo, a perda do autorespeito se dá pela “experiência de privação de
direitos” e para o indivíduo a recusa de pretensões jurídicas socialmente vigentes
significa “ser lesado na expectativa intersubjetiva de ser reconhecido como sujeito
capaz de formar juízo moral”. (HONNETH, 2003, p. 216 - 217).
Assim, a luta por direitos significa não só conquista política, mas um resgate da
autoestima. Além de um reconhecimento jurídico, a pessoa deve ser reconhecida como
ente moral, como ressaltou Cardoso de Oliveira (2006). Mas como relembra esse autor,
ancorado em Honneth, o reconhecimento pelos outros começa com o
autoreconhecimento.
A identidade étnica se constrói no contato com o outro, aquilo que Cardoso de
Oliveira (2006) chama de “identidade contrastiva”, aproximando sua concepção de
identidade das análises de Barth. Como ressaltou Cardoso de Oliveira (2006, p. 35), será
nas sociedades multiculturais que a questão da identidade étnica e de seu
reconhecimento vai se tornar ainda mais crítica, tendendo a gerar crises individuais ou
coletivas. E com elas surgem determinados problemas sociais susceptíveis de
enfrentamento por políticas públicas, como, por exemplo, as chamadas políticas de
reconhecimento.
2. Do território à terra indígena
Segundo Gallois (2004 p. 5) “terra indígena” refere-se ao “processo político-
jurídico conduzido sob a égide do Estado”. Por sua vez, território “remete a construção
e a vivencia, culturalmente variável da relação entre uma sociedade específica e sua
base territorial”. No processo de demarcação de uma terra indígena ocorre à
transformação do território em terra, passa-se das relações de apropriação à nova
concepção de posse ou propriedade (GALLOIS, 2004). A autora esclarece que, no
processo de demarcação de uma terra, os povos indígenas tem a oportunidade de
reelaborar esta territorialização, que para alguns povos pode resultar em mudança de sua
auto-imagem, contribuindo para a formação de uma identidade genérica. Exemplifica o
seu argumento com o caso dos Waiãpi, que depois da demarcação de sua terra,
construíram um coletivo maior formado pelos vários grupos que compõem este povo.
Entretanto, pondera que não é possível uma generalização já que cada povo indígena é
um caso específico (Gallois, 2004, p. 39-40).
Gallois considera que, de certa forma, todos os povos possuem um senso de
territorialidade. Defende a ideia de que toda sociedade imprime no espaço uma lógica
territorial, se apropriando do território a partir de seu uso e dos significados que a ele
atribui, e a territorialidade é exercida de diversas formas pelos distintos povos em
diferentes contextos (Gallois, 2004- 39,40)
Para João Pacheco, territorialização é movimento pelo qual um objeto político
administrativo vem se transformando em uma coletividade organizada, formulando uma
identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação e
reestruturando as suas formas culturais. (1998).O contato colonial acrescentou
elementos ao senso de territorialidade dos povos indígenas e os levou a um movimento
de ressignificação em outro sentido.
A Constituição de 1988, no Cap. VIII, ART. 231, que trata “Dos índios” dispõe
que as “terras tradicionalmente ocupadas’ devem considerar “usos, costumes e
tradições” indígenas. Esta definição, um tanto quanto vaga, permite que sejam levadas
em conta as especificidades de cada povo indígena e abre a possibilidade para que sejam
reconhecidas as formas pelas quais os povos indígenas pensam e constroem suas
territorialidades, ou espaços em que irão viver e reproduzir-se socioculturalmente.
Art. 231.
§ 1º são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as usadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem
estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
No processo de efetivação do direito à terra, o antropólogo tem assumido um
papel crucial, na medida em que atua como intermediário entre os índios e as
instituições de regulação estatal. O antropólogo terá o papel de apreender, a partir dos
conhecimentos indígenas, as concepções que esses atores constroem sobre
territorialidade e identificar as áreas definidas por eles como de ocupação do seu povo.
Entretanto, há um conflito entre as distintas compreensões de terra concebidas
pelo Estado brasileiro e os conceitos antropológicos de territorialidades pensados pelos
diversos povos indígenas. (GALLOIS, 2004)
No processo de demarcação de uma terra indígena há muitos interesses em jogo.
O Estado oscila entre a concessão de direitos, garantia de sobrevivência de um povo e a
pressão exercida por latifundiários, produtores rurais, posseiros, enfim diversos
defensores da propriedade privada e mantenedores de discursos desenvolvimentistas11
.
As forças contrárias à demarcação de terras indígenas no Brasil contam com a
ajuda do poder legislativo, que em uma luta desleal trava guerra contra demarcação de
terras indígenas12
, ou às vezes tenta fazer um jogo duplo, por um lado reconhecendo o
direito à terra e por outro desconsiderando o senso de territorialidade dos povos
indígenas, ou seja, a terra pode ser demarcada, mas não essa, não nesse lugar, não onde
existe especulação, não onde a terra é rica, não onde há valorização. Esse é um processo
que tem suas raízes fincadas na experiência europeia de descobrimento, que passa a
figurar como uma forma de negação ou de encobrimento do outro (DUSSEL, 1993). O
caso da demarcação de terra dos Krenyê parece estar pautado nesses termos.
Na Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão essa dinâmica pode ser
observada no protagonismo do deputado estadual Roberto Costa (PMDB). Ao saber da
decisão da justiça federal, em que o juiz federal José Carlos do Vale Madeira
determinou que FUNAI iniciasse o processo de demarcação da reserva indígena do
povo Krenyê na região do Mearim, o referido deputado começou a se mobilizar. Entrou
com um pedido na Assembleia para que fosse criada uma Comissão Especial para tratar
do assunto, ato que foi anunciado13
em seu discurso na reunião do dia 25 de março de
2014. Nessa ocasião, relatou que estava reunindo forças com prefeitos dos municípios:
Vitorino Freire, Bom Lugar, Bacabal e Olho D” Água das Cunhas, envolvidos na
criação da reserva. E pedindo apoio aos colegas proferiu a fala:
11 Que conduz à perda de conhecimento e de territorio, além de transformar a natureza em uma
mercadoría (ESCOBAR, 2005). 12 Questões delicadas e não resolvidas tornam o momento atual tenso: Proposta de Emenda Constitucional
Nº 215, que atribui ao Congresso Nacional à competência exclusiva para as demarcações de Terras
Indígenas - apesar da Presidente da República não se posicionar quanto a questão, os aliados do governo, líderes do PT, PMDB e PCdo B da bancada ruralista do governo apoiam a PEC - propostas de revisão de
demarcações; contestações de laudos favoráveis a demarcação de Terras indígenas. 13 “Eu entrei com um pedido, aqui nesta Casa, para a criação de uma comissão especial, para tratarmos de
um assunto de suma importância para a região do Mearim, um assunto que trata a respeito da criação de
uma reserva indígena da tribo Caniê”. Fonte: www.al.ma.leg.br.
É necessário que a Assembléia Legislativa possa se antecipar aos fatos
para ajudar na solução desse problema. Os índios Canié14
viveram
naquela região há 70 anos, não se discuti aqui a questão de você
garantir os direitos a eles, mas não se pode garantir os direitos a eles,
só a eles em detrimento também de uma população que necessita deste
apoio, porque com esta decisão atinge diretamente os pequenos
produtores rurais, atinge os trabalhadores rurais. E nós precisamos
intermediar uma solução para esse problema, porque o pânico
instaurado hoje nessa cidade já começou (Deputado Roberto Costa).
Recebeu, de imediato, o apoio do deputado Tatá Milhomem (PSD), que
acrescentou a necessidade de articulação com as esferas federais:
O que me traz aqui , primeiro, é para dizer ao deputado Roberto Costa
sobre a sua fala a respeito de uma tribo extinta, na região do Médio Mearim. Senhor deputado Roberto Costa, V. Exa. Com propriedade
milita politicamente naquela região, trouxe à baila o assunto, mas me
fez mexer aqui no meu bestunto é que os nossos deputados federais,
nossos senadores que, a rigor, deveriam tomar conta do assunto, pois, problema é de alçada federal, nada dizem [...] e aí vem a carga para os
humildes deputados estaduais que pouca força têm ou mesmo
nenhuma força têm a responsabilidade de defender pobres lavradores daquela região. Acho salutar o que V. Exª propôs, a criação de uma
comissão, acho positivo. [...] Volto agora a dizer, a tirar a casca de
ferida, os nossos deputados federais. Por que não se manifesam a respeito da área Kanela, em Barra do Corda, lá no Grajaú, lá no Sítio
Novo, lá no Amarante15
. Temos agora Awa-Guajá aqui na região da
Br, é a mesma coisa. E os deputados federais estão na área, mas nada
fazem, nada fazem! Não movem uma palha na defesa daqueles.
O deputado Roberto Costa, na sua treplica, afirmou já ter o apoio do deputado
federal Alberto filho e do senador João Alberto, e que os mesmos já estavam
empenhados em fazer algumas articulações para, nas palavras do deputado, a “solução
do problema”.
Stênio Rezende (PRTB) foi outro deputado a apoiar o pelito de Roberto Costa e
reforçou os discursos anteriores:
14 Destaco o desconhecimento que o deputado demonstra ter em relação ao nome do povo o qual se refere. Trocar o nome Krenyê para Caniê é apenas mais uma “manifestação de práticas coloniais de controle social” (Ricardo, 2001). Situações como essa, se repetem constantemente fora dos “restritos círculos acadêmicos especializados”, tornam o artigo “Passados 500 anos, sequer sabemos seus nomes” (2001) do antropólogo Alberto Ricardo sempre atual.
15 O deputado refere-se ao pedido de revisão e ampliação das reservas indígenas que estão localizadas
nesses municípios, apontando como problema.
Eu nasci e me criei naquela cidade, conheço quase todo mundo pelo
nome. Ali mesmo, na pedra do Salgado [...] Eu convivo há 50 anos e
nunca vi nem um índio no município de Vitorino Freire. É bem verdade que existiam índios no passado, mas existiram em todo
território nacional. Aqui quando chegaram os portugueses senhoras e
senhores deputados, eram os índios que habitavam eram os índios que aqui viviam eram os índios que aqui nós podemos dizer eram os donos
da terra. e lá em Vitorino tem sim a história que nos anos de 1930 teria
sim naquela comunidade vivido a tribo indígena dos Krenyê que
depois posteriormente teriam se deslocado para Barra do Corda essa é a história que se comenta na região. Mas, senhoras e senhores
deputados, esta região tem milhares de pessoas que vivem nela há
mais de 50 anos que ali cultivam o seu milho, a sua abóbora a sua mandioca, o seu feijão o seu arroz e sustentam a sua família. E essa
decisão fria da justiça sem dúvida nenhuma deixa toda a população
dessa região de cabeça quente, o que fazer agora? Depois de 50 anos, 60 anos residindo nessa área e vem uma decisão da justiça federal e
diz: Saiam todos porque essa terra é dos índios! Cadê esses índios?
Onde estão esses índios? [...] Quero dizer que esta Comissão
levantada e solicitada pelo deputado Roberto Costa, quero dizer ao meu bloco é do meu interesse participar efetivamente e defender [...] o
povo vitorinense [...].
Há muitos elementos comuns e vários aspectos que podem ser ressaltados nas
falas dos deputados, porém elejo dois como de extrema relevância. O primeiro deles, os
discursos afirmam a existência dos Krenyê apenas para fazê-los desaparecer enquanto
outro, Assim concordo com Dussel quando demonstra como em um processo histórico
de exploração e colonização “o ‘índio’, não foi descoberto como outro, mas como o ‘si-
mesmo’ já conhecido [...] e só reconhecido (negado então como outro): ‘em-coberto’”
(DUSSEL, 1992, P. 32). No caso analisado a afirmação da existência serve como
estratégia de dominação e negação.
Esse não reconhecimento, ou o reconhecimento incorreto é carregado de
implicações. Coaduno com Taylor (1994, p.45) quando coloca que “o não
reconhecimento ou o reconhecimento incorreto podem afetar negativamente, podem ser
uma forma de agressão, reduzindo a pessoa a uma maneira falsa, distorcida, que
restringe”. A partir dessa consideração o autor conclui que “o respeito devido não é um
acto de gentileza para com o outro. É uma necessidade humana vital” (1994, p. 46).
Outro aspecto a ser ressaltado é a perspectiva economicista e capitalista sobre a
terra. É esta perspectiva que permanece inspirando as políticas indigenistas, conforme
podemos observar na dinâmica da discussão da PEC 215/2000 que transfere do
Executivo para o Legislativo a decisão final sobre demarcação de terra indígena. O
mesmo projeto inclui nas competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação
de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a criação de unidades
de conservação ambiental e a ratificação das demarcações já homologadas.
O desenrolar dos fatos parece confirmar essa dinâmica, pois alguns dias depois
do pronunciamento do deputado Roberto Costa foi divulgado pelo site da Assembleia16
que o juiz federal José Carlos do Vale Madeira e o procurador federal, Alexandre
Soares, decidiram por não estabelecer a reserva indígena Krenyê na região do Médio
Mearim. Ficou decidido que a FUNAI deverá realizar os estudos antropológicos,
cartográficos e ambientais desse local para a constituição de um relatório técnico
aferindo a demarcação da reserva indígena na região onde atualmente vivem alguns
Krenyê.
Dentro desta determinação o estudo antropológico parece ser considerado como
uma peça de legitimação do posicionamento já tomado, pois antes que o relatório
técnico fique pronto já há uma determinação no sentido de definir o local onde a terra
será demarcada.
Ocorre não apenas uma desconsideração da diversidade que caracteriza os
povos indígenas, suas culturas, memória, crenças e tradições, mas a afirmação de um
monismo jurídico, que seria “um universalismo não universal que nega qualquer direito
diferente do liberal (1994, 1997, apud, LANDER, 2005, p.27).
Ao tratar da noção de reconhecimento de diferenças étnicas e culturais que
passaram a integrar o ordenamento jurídico nacional, que versavam sobre direitos e
garantias fundamentais, devemos partir do questionamento do próprio direito, pois se
trata de um direito de caráter homogeneizante, construído a partir da perspectiva do
colonizador. São movimentos que se dão não só no plano político, mas também
jurídico, ideológico e científico, que toma a sociedade liberal não apenas como a ordem
social desejável, mas a única possível (LANDER, 2005).
Apesar dos dispositivos constitucionais de garantia de direitos diferenciados,
pautados nos direitos humanos, muitos são os entraves para o reconhecimento dos
direitos indígenas.
16 http://www.al.ma.leg.br/not.php?id=29544: 04/04/2014 09:15:58 - Assecom / Roberto Costa
Souza filho (2010) acredita que “apesar de transcorrida uma década do
reconhecimento desses direitos coletivos, não se pode dizer que os progressos em sua
aplicação sejam notáveis” (p.96).
Em relação à demarcação de terra “nas regiões onde há pressão política e interesse
econômicos mais fortes o avanço não é tão significativo” (2010, p.96). Durante o
governo Dilma Roussef, apenas dez terras indígenas foram demarcadas, todas na região
Norte, sendo sete no Amazonas, duas no Pará e uma no Acre; áreas que não apresentam
grandes conflitos entre latifundiários invasores e os povos indígenas. Por outro lado,
processos de demarcação de Terras localizadas na região Sul, Sudeste e Centro Oeste,
em fase de conclusão, se arrastam há décadas17
.
Assim, o fato estarem inscritos os supostos direitos dos povos indígenas em leis
nacionais não significa um reconhecimento tal qual trabalhado por Honneth e Cardoso
de Oliveira, pois estes ainda não foram reconhecidos na categoria de ente moral. Suas
histórias, memórias, crença e tradições não foram devidamente valorizadas; bem como
não foram atendidos em sua capacidade intersubjetiva.
Considerações:
A simbologia da “terra perdida” parece ser usada como um imaginário
primordial e constitutivo da existência social dos Krenyê. Ela cria um sentimento de
unidade e estabelece elementos para o fortalecimento da identidade Krenyê. Contribui
também para o reconhecimento da existência de uma cultura original, do tempo dos
antepassados, que foi negada por forças externas e agora precisam resgatar.
No processo de mobilização “os índios e suas lideranças passaram a demandar um
respeito às suas formas de ser” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006, p. 41-42), algo
recente no país, que passa a existir a partir da década de 1970, momento em que os
índios começam a se organizar em movimento; recuperando assim a autoestima e a
dignidade.
De modo que, ao abordar a luta Krenyê pela terra, estou abordando também a
afirmação da identidade de um povo, ou o nascimento de uma consciência de si. Assim,
17 Dados são do Conselho Indígena Missionário com base nas publicações do Ministério da Justiça no
Diário Oficial da União presentes no site: www.cimi.org.br. Acessado em: 20 de maio de 2013.
o reconhecimento visado pelos Krenyê esta para além da obtenção de vantagens,
reivindicam respeito enquanto povo.
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