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  • 227Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 10, n. 16, p. 227-242, dez. 2004

    O dio e o amor, caixa preta do feminismo? Uma crtica da tica do devotamento

    O dio e o amor, caixa preta do feminismo?Uma crtica da tica do devotamento*

    (Love and hate, the feminism black box?A critical of care ethics)

    Pascale Molinier**

    Resumo

    Como os cuidados, em sua maioria, so dispensados por mulheres,tende-se a considerar o amor (aos doentes, s crianas) naturale normal. Ora, o trabalho de cuidar pode igualmente gerar dio spessoas dependentes. Esse no menos normal do que o amor. Ofato de lev-lo em considerao modifica a anlise das situaes decuidados. Por enquanto, o dio se mantm oculto nas tradies s-bias, particularmente nas teorias da tica do devotamento, comonos testemunhos das trabalhadoras, tirados de uma pesquisa reali-zada com auxiliares de puericultura. Disso resulta um dficit de vi-sibilidade do trabalho, o que leva a esconder o dio e a violncia.

    Palavras-chave: Trabalho de cuidar: tica do devotamento; Amor;dio.

    Texto recebido em ago./2004 e aprovado para publicao em out./2004.* Traduzido do original La haine et lamour, la bote noire du fminisme? Une critique de ltique du

    dvouement por Nina de Melo Franco.** Psicloga, Professora de Psicologia do Trabalho no Conservatoire National des Arts et Mtiers

    (CNAM), Paris; responsvel pela equipe Psicodinmica e Psicopatologia do Trabalho do Labora-trio de Psicologia do Trabalho e da Ao (LPTA), CNAM. e-mail: [email protected].

    E

    dio: sentimento violento que leva a querer omal para algum e a se regozijar pelo mal que lheacontece. (Dicionrio Petit Robert)

    m 1903, Alexandre Papadiamentis escreve um breve romance, Les petitesfilles et la mort. Uma velha camponesa grega costureira, parteira, cu-randeira, que fazia abortos, ungentos, filtros e remdios sufoca, afoga

    e estrangula sucessivamente cinco meninas (Papadiamentis, 1995). Yannoumata a primeira criana, recm-nascida de sua prpria filha, por j no agentarmais escut-la gemer e tossir, noite aps noite, enquanto ela tenta dormir. As-sim, ela enfia dois dedos longos e duros na boca do beb para faz-lo calar.

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    que, ficando acordada, de tanto pensar e de se lembrar de toda a sua exis-tncia, Yannou descobre que viveu toda a sua vida na servido.

    Quando jovem, era a domstica de seus pais. Uma vez casada, tornou-se escravade seu marido e no entanto, pelo fato de seu prprio carter e pela fraqueza dooutro, ela era, ao mesmo tempo, sua tutora. Quando nasceram seus filhos, ela sefez sua servente; e agora que eles tinham tido seus prprios filhos, eis que ela se vobrigada a servir seus netos. (Papadiamentis, 1995, p. 12)

    A partir de ento, o dio da servido feminina guia sua mo assassina. E porque motivo gastar tanta energia para garantir a existncia de seres humanosque, por sua vez, acabaro sujeitos infelicidade e servido? Quando mata sualtima vtima, Yannou procura sentir que est sufocando um entusiasmo sel-vagem. Se as meninas crescessem como ervas daninhas, seu funesto destinopouco importaria a Yannou. Mas a dor, a preocupao, o trabalho, a falta de so-no que elas causam nos adultos as tornam to odiosas. Desgastar-se tanto paraque elas vivam seria como amar suas prprias correntes. Ora, nossa herona,ainda que em posio de servido, cultiva uma irredutvel liberdade. Seus paisa deram em casamento em troca de um dote ruim? Pois ela roubar deles o di-nheiro que lhe falta para arrumar sua casa. Perseguida pela polcia, ela foge paraas rochas escarpadas e morre antes de ser capturada. Essa liberdade de fazer jus-tia contra seus pais, de matar as meninas, de provocar a polcia, de conservaros ps geis aos 60 anos, de conhecer cada recanto ngreme da montanha, de-veria, segundo os cnones da narrativa convencional, fazer da velha Yannouuma mulher desnaturada, uma mulher viril, uma mutante.1 Ou ento umalouca. Esse no o propsito de Papadiamentis, visto que ele faz uma notvelintroduo ao tema. A rupestre assassina em srie continua sendo como as ou-tras mulheres que se encontram, por todos os lados, no interior da Grcia. Umamulher comum, s distinguindo-se das outras pela intensidade de sua reflexosobre sua condio. Mas, tambm nesse ponto, ser que Yannou realmentediferente? Seus pensamentos e atos lhe confeririam um carter nico? Ou sero fato de que esses pensamentos e atos, habitualmente ignorados, sejam reve-lados dessa vez? Esse surpreendente romance contm, com efeito, uma ver-dade essencial. No entanto, raramente tratada pela literatura, e mais ainda des-conhecida ou subestimada pelas cincias humanas e sociais. As criancinhas e por extenso as pessoas vulnerveis e dependentes no geram s sentimen-tos de amor e de compaixo por parte de quem cuida delas, mas tambm po-

    1 O conceito de identidade mutante aqui citado aquele trabalhado por Elsa Dorlin (2003) a respeitoda virilidade das prostitutas.

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    derosos desejos de destruio e de dio. Fazer mal a elas poderia gerar prazer,um entusiasmo selvagem. Esses desejos de destruio e de dio no perten-cem ao lado patolgico da psique humana, como se poderia pensar para livrar-se do problema, sobretudo quando se trata de mulheres. A vulnerabilidade dooutro e sua dependncia podem excitar o dio no indivduo normal, seja ele ho-mem ou mulher.

    A ambivalncia, a flutuao dos sentimentos contidos no servio ao outrono so nenhum mistrio para quem tem alguma experincia. Mas esse conhe-cimento trivial se apaga diante da ideologia tenaz sobre a meiguice natural dasmulheres. A coorte das mes cruis, como Folcoche e outras figuras repulsivas,calam a boca daquelas que ousariam contestar o dogma. Quase nunca se diz,a respeito do dio das mulheres com relao aos que delas dependem, que eleseria normal.

    O TRABALHO DO CARE: PARA O MELHOR SEM ESQUECER O PIOR

    Sair da ocultao do dio que as mulheres sentem pelos fracos estabeleceruma verdade a partir da qual se torna possvel repensar a experincia das mulhe-res que exercem as atividades ou as funes do care. Em francs, no existemtermos apropriados para traduzir os conceitos de care e de caring labour. O ter-mo cuidado claramente redutor. No se trata de solicitude ou devotamen-to, termos usados para traduzir ethics of care, que escondem a idia fundamen-tal de que a preocupao pelo outro implica trabalho. O conceito de care en-globa, com efeito, uma constelao de estados fsicos ou mentais e de ativida-des trabalhosas ligadas gravidez, criao e educao das crianas, aos cuidadoscom as pessoas, ao trabalho domstico e, de forma mais abrangente, qualquertrabalho realizado a servio das necessidades dos outros.

    A expresso trabalho de proximidade, proposta por Nancy Folbre (1997),tambm no satisfatria, pois elude a dimenso afetiva mobilizada por essetipo de atividade cuja maior parte, para ser bem feita, deve ser realizada com ca-rinho. Alis, no caso de brincar de inventar uma etimologia fantasista para jus-tificar o afrancesamento do care, este ltimo poderia ser assemelhado ao sen-tido antigo de acarinhar (tirado do italiano carezzare): querer bem, com ternura.

    Esse querer bem nada tem de natural. As pesquisas feitas com alunas deenfermagem e com enfermeiras sugerem que a experincia do trabalho queconstri, aperfeioa e estabiliza o sentido da solicitude ou da sensibilidade aodesamparo do outro (Molinier, 2000). Mas no existe carter de automaticida-de na experincia do trabalho e ela pode tornar-se tambm oportunidade para

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    o pior. Entre afeio e desafeio, a bipolaridade do trabalho est ausente dosdebates feministas sobre o care. Questiona-se o fato de que se subestima suaavaliao, seu custo econmico e a melhor maneira de avali-lo, quem deveexerc-lo e como valoriz-lo, se deve ser ou no remunerado quando envolvelaos de sangue,2 entre outras questes. Algumas feministas consideram o carenuma perspectiva diferenciada; outros pensam que os homens podem fazer es-se tipo de trabalho to bem quanto as mulheres. Mas ser que isso muda o pro-blema de fundo? Pois do que se trata? De devotamento, de reciprocidade, deresponsabilidade, de trabalho feito com afeto, de motivaes altrustas, de pre-ferncias relacionais, de remuneraes psicolgicas e at mesmo de deveres.Ope-se o desprendimento do care razo individualista, egosta e amoral dohomo economicus. Alis, critica-se a idia neoclssica de que haveria mercadosperfeitos. Mas corre-se o risco, baseado numa representao do care desprovi-da de ambivalncia, de se raciocinar como se existisse trabalho de care perfeito,realizado por pessoas perfeitas e em condies perfeitas de felicidade.

    DIO INFANTIL, SEDUO MATERNA:A CONTRIBUIO DA PSICANLISE

    A maioria das crianas dotada, ao nascer, de um comportamento instintivode apego, fundado na necessidade primria de contato corporal. O apego serianecessrio para ativar sem espera no adulto os comportamentos de cuidado(higieno-dietticos) com o corpo da criana (Dejours, 2001, p. 181). Nessabase etolgica, pode-se descrever, em termos de comportamentos de apego ede retrieval, interaes harmoniosas, ajustadas e eficazes, entre o beb depen-dente e o adulto que vai servi-lo. Mas no tudo to simples como parece mos-trar esse primeiro esquema relacional. A resposta do adulto pode no ser ime-diata com relao demanda, fazendo surgir na criana sensaes corporais deexploso, queimao e sufocamento, que so as primeiras manifestaes daagressividade e do dio (Klein & Rivire, 2001). E o adulto, quando responde,usa a seduo. Assim, os cuidados dispensados ficam parasitados pela excita-o sexual pelo contato com o corpo da criana (Laplanche, 1987). Ao agarra-mento e voracidade da criana respondem o corpo ertico e as fantasias doadulto. A relao esquenta. Ainda mais que, no adulto, o ertico est sempreligado s pulses destrutivas (Laplanche, 1997). Sem referncia a esse emara-

    2 Toda essa discusso foi muito bem exposta por Nancy Folbre (1997) no captulo Holding hands atmidnight, mostrando o paradoxo do trabalho de proximidade.

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    nhado, no se poderia compreender que existe um prazer sdico e que ele exer-ce uma atrao qual se sensvel na maior parte das vezes, ainda que se tenteresistir a ela. Essa resistncia pode tornar-se custosa quando, como tambmacontece, o corpo, o cheiro, os excrementos, os gritos da criana provocamaverso. Torna-se impossvel dissociar o amor do dio quando se trata do cui-dado ao corpo. Vrios autores em psicanlise reconhecem, seguindo MlanieKlein, a virulncia do dio infantil. Muitos outros, seguindo Jean Laplanche,reconhecem a seduo inerente posio materna (ou maternante, referente pessoa que dispensa cuidados). Sem dvida, uns e outros divergem sobre asrelaes entre Eros e Thanatos, mas no esse o propsito aqui. Nota-se umaforma de consenso transversal nas diferentes escolas, poucos autores tratamdo dio materno, e ainda menos sem julgamento normativo. Trata-se aqui dodio das mes reais, em carne e osso, no de sua imago. Trata-se daquilo queas mulheres sentem na experincia de serem me ou maternante. A psicanlise,por um lado, oferece os recursos necessrios para pensar a dinmica intersub-jetiva adulto-criana. Por outro, ela no deixa de participar da eufemizao dodio materno e da sua patologizao. Donald W. Winnicott (1987) foi pratica-mente o nico a t-lo reconhecido em seu lugar legtimo na dinmica normalda relao me-filho, chegando at a elaborar uma lista de razes pelas quaisuma me odeia sua criana, mesmo sendo um menino (p. 56). Dessa lista, po-de ser citado, sobretudo, o trabalho minucioso e constante que deve ser levadoa cabo para que a vida siga seu curso no ritmo da criana e numa tonalidade afe-tiva que lhe convenha (sem muita ansiedade etc.) O propsito do psicanalistasuperpe aqui o da velha Yannou. No necessariamente o corpo da crianae suas diversas manifestaes (cheiros, gritos...) que deslancham o dio ou aaverso. Pode ser tambm o fato de se ter que lidar com as agruras do trabalhonecessrio para que ela no morra.

    DE COSTAS CHEIAS: O SOFRIMENTO NO TRABALHODAS AUXILIARES DE PUERICULTURA

    H menos de duas semanas, algumas alunas relataram o caso de uma auxiliarde puericultura que tinha sido demitida por ter amarrado crianas num aque-cedor. Maus-tratos como esse so muito mais freqentes do que se imagina.Esse tipo de violncia faz questionar sobre sua etiologia e sua preveno, pois praticada contra crianas por profissionais da pequena infncia ou contra ve-lhinhos e velhinhas por auxiliares em casas de repouso, ou seja, por pessoal se-lecionado, contratado e treinado. Seria sua origem endgena, ou seja, advinda

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    da carncia ou da patologia singular? Essa a tese da psicologia convencional.Ou seria sua origem exgena, ou seja, ligada a presses situacionais e, sendoainda mais preciso, a presses organizacionais? a tese mais privilegiada empsicodinmica e psicopatologia do trabalho. Se for considerado, a priori, quea mulher que amarra as crianas patologicamente violenta, o problema no se-r abordado da mesma maneira que seria ao se considerar que o trabalho das au-xiliares de puericultura (ou das auxiliares de enfermagem) expe cada uma de-las ao risco de descontrole pulsional e da passagem ao ato.

    Para explorar essa segunda hiptese, ser utilizado neste trabalho principal-mente um estudo realizado por Jean-Luc Nimis et Virginie Sadock. Esse estu-do foi desenvolvido, sob minha superviso, no quadro de trabalhos prticosrealizados por estudantes, ao final do curso, dentro da formao em psicologiado trabalho no CNAM e segundo a metodologia em psicodinmica do traba-lho (ver Dejours, 2001). Para melhor entendimento do que se segue, deve-seobservar que o procedimento implica um coletivo de pessoas voluntrias quese juntam para colocar em discusso as dificuldades sociais e psicolgicas oca-sionadas pelo trabalho. Essa tarefa coletiva de elucidao das origens do sofri-mento no trabalho termina com um relatrio escrito, depois de apresentadooralmente e discutido com o grupo. Houve uma negociao com os respons-veis para que o relatrio se escrito torne documento pblico dentro da empresaou da instituio. Desse modo, quem desejar, poder consult-lo legitimamente.

    significativo o fato de que, no hospital em que foi feita a pesquisa, con-sidera-se que as mulheres que trabalham na creche (que acolhe as crianas dopessoal) tm funes amenas. Como em outros lugares, o aspecto penoso dotrabalho na creche extremamente eufemizado. Tende-se a considerar que setrata de um trabalho fcil, que no requer competncias particulares, agradvel,j que proporciona contato com crianas pequenas e saudveis. No entanto, es-sa representao entra em contradio com o que relatam os mdicos do traba-lho das coletividades territoriais, a respeito da elevada taxa de morbidade entreo pessoal da creche. Esse trabalho, que tem fama de ser fcil, geraria doenasfreqentemente. O acompanhamento mdico evidencia, ao longo de 15 a 20 anosde exerccio, um quadro de desgaste profissional caracterizado pela freqnciade lombalgias e de dificuldades psicolgicas (Grunstein & Rouxel, 1997).

    Lembremos, a propsito, que as auxiliares de puericultura fazem parte docorpo profissional dos auxiliares de sade. Elas tm misses similares, mas soespecificamente requisitadas para trabalhar com crianas, sejam elas saudveis,doentes ou deficientes. Segundo Petit (2003), havia cerca de 60 mil auxiliaresna Frana em 2002. No mesmo ano, 92% dos diplomados eram mulheres. Aofinal de uma formao de um ano de durao, h cerca de 2.300 diplomadas por

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    ano, sendo que 70% comeam a trabalhar em estruturas de acolhimento pe-quena infncia, bem frente do setor hospitalar. Dessas, 98% conseguem em-prego em dois meses. H uma penria de mo-de-obra, e no uma crise de vo-caes. Mais de dez mil pessoas tentam, a cada ano, entrar nas escolas de for-mao. A situao tende a se agravar ainda mais a partir de 2005, j que, por ano,se aposentaro sete mil auxiliares. A VAE (Validao da Experincia Adquiri-da) que valer para suprir o dficit de pessoal qualificado.

    Precisamente, na demanda endereada para tentar elucidar as dificuldadesencontradas por essa equipe de auxiliares em puericultura, o sinal de alarme foiuma queixa a respeito de dor nas costas. As creches so um verdadeiro que-bra-cabea ergonmico. O que bom para as crianas, cadeiras e mesas baixas,no necessariamente bom para os adultos e vice-versa. Aqui, as auxiliares sdispunham para assentar-se, com ou sem beb nos braos, de pequenas cadei-ras, no tamanho adequado para as crianas. Outros elementos organizacionaisforam levados em considerao. A amplitude horria e o nmero de crianasforam aumentados. Alm disso, as crianas so aceitas ainda que estejam umpouco doentes. Tudo isso para garantir ao mximo a disponibilidade dos pais(empregados do hospital) em um contexto tenso do ponto de vista do pessoal.Assim, as crianas so acolhidas em condies que no so as melhores do pon-to de vista de sua segurana. A cada instante, correm o risco de prenderem odedo no aquecedor ou, ainda, de sair da creche no instante em que as auxiliaresvirarem as costas, como j aconteceu. Disso resulta que as auxiliares esto per-manentemente atentas, nunca descontradas, elas esticam as costas expres-so que diz bem o que quer dizer: o medo intensifica ainda mais as lombalgias.Apesar disso, durante a investigao, quase no se falou sobre dor nas costas.J era de se esperar. Classicamente, constata-se a existncia de uma diferenaentre o sofrimento gerado pelo trabalho e as modalidades de expresso da quei-xa de alarme. aceitvel que uma auxiliar de puericultura queixe-se de dor nascostas. Seria muito mais difcil reconhecer que ela est de costas cheias das cri-anas. E, no entanto... foi realmente esse indizvel que foi preciso verbalizar.

    Sob o olhar das outras mulheres, exclusivamente, as auxiliares de puericul-tura se ocupam de bebs que, apesar de no serem os mesmos, nunca crescem.Como destaca Winnicott, dadas as necessidades fisiolgicas da criana, um dosdesgastes psquicos ligados ao trabalho de maternagem a monotonia. Ora,uma das razes pelas quais as dimenses ingratas do trabalho materno junto aorecm-nascido so suportveis precisamente o fato de que esse trabalho no destinado a repetir-se eternamente. (Lembremos que precisamente a repe-tio, no dever colocar-se a servio de seus netos, que faz com que Yannou seenverede para o lado do infanticdio). J as auxiliares so condenadas a passar

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    por isso durante 30 anos, j que no existe nenhuma promoo na carreira. Mo-dificar os hbitos de bebs no fcil nem quando se trata de um s. Em umaorganizao coletiva, a margem de flexibilidade das mais restritas. Refeiesem horrios fixos, comida padronizada, trocas coletivas, sestas, vigilnciaconstante das crianas que caem, que se empurram, se mordem etc. O corpofica fortemente engajado nessa atividade. As crianas se agarram, se enroscamaos corpos dessas mulheres, em uma situao na qual a seduo, as fantasias li-gadas ao contato com o corpo da criana so contrariadas pela organizao dotrabalho. Isso porque h muitas crianas, mas principalmente porque sua ati-vidade submete as auxiliares a uma contradio psquica. A repetitividade, amonotonia so inimigos da fantasia. Inevitavelmente, h momentos em queo corpo da criana instrumentalizado, em que o nursing se limita a um cuidadohiginico destinado preservao do corpo biolgico e no um encontro como corpo da relao com o outro, um despertar da vida psquica. Tanto isso ver-dade que s as assaduras, as mordidas dadas por outras crianas e o nariz es-correndo so visveis aos pais. Isso explica tambm o fato de as auxiliares in-vestirem fortemente nos cuidados com a higiene, deixando de lado o papel edu-cativo, tambm esperado delas (at para enriquecer sua tarefa), mas cujo xitoou fracasso no visvel. Parece at que, para ser bem feito, o trabalho educa-tivo realizado pelas auxiliares deve ser apagado e permanecer invisvel. Comefeito, as auxiliares dizem muitas vezes esconder dos pais que a criana pro-nunciou suas primeiras palavras ou deu seus primeiros passos na creche. Se-gundo elas, essas etapas so to importantes para os pais, do ponto de vista afe-tivo, que melhor dar a eles a iluso de que elas aconteceram com eles, e noem sua ausncia. Nota-se aqui uma dimenso muito especfica do trabalho dasauxiliares de puericultura. No o trabalho que elas fazem para garantir a higie-ne e a educao das crianas. Tambm no o trabalho que tm para vigiar ascrianas impedindo, entre outras coisas, que elas briguem ou se machuquem. um trabalho de construo simblica, que torna fico a realidade. Isso foievidenciado por Virginie Sadock (2003) sob o termo embelezamento da rea-lidade.

    Por um lado, trata-se de tranqilizar os pais com relao inocuidade da cre-che eufemizando o que nela acontece at transform-la em um lugar sem his-tria. No h que se decepcionarem os pais contando-lhes os progressos da cri-ana, quando ela estiver triste, tiver chorado muito ou ficado muito agitada. Aeles ser dito, assim mesmo, que o dia foi timo. Esse discreto know-how (Mo-linier, 2000), encontrado sob diversas formas na maioria das situaes de ser-vio, tm por caracterstica o fato de que sua eficcia depende de sua prpriainvisibilidade: mostrar o que fazemos estragaria o trabalho.

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    Por outro lado, precisa-se conter a agressividade gerada pela relao com ascrianas. Virginie Sadock constata que, ainda que as auxiliares estejam exaustasao descrever o trabalho na creche como um trabalho em srie, em que as cri-anas lhes parecem ser carregadas como pacotes, elas mantm discursos sis-tematicamente positivos e ternos sobre as crianas.

    Ao fazerem a apresentao oral, foi com verdadeiro alvio que as participan-tes acolheram a descrio de seu modo de expresso como sendo a ternuraobrigatria para com as crianas.

    Haveria uma espcie de ordem para positivar sempre tudo (...), uma exignciapor parte da hierarquia e pelo emprego que elas tm. Elas dizem que devem sersempre acolhedoras e sorridentes nessa atividade em que aparentemente nadapode deixar de passar pelo crivo das atitudes de zelo (nem por iniciativa da organi-zao do trabalho nem por sua prpria iniciativa) (). Isso as leva a questionar,ao final da sesso: mas ento, o negativo, onde o colocamos?. A formulao detal pergunta permite o desvelamento de uma dimenso central do trabalho no coti-diano: conter o negativo. H como uma espcie de proibio tcita de evocar certasdimenses da atividade, de exprimir o que se sente, particularmente quando se tra-ta de sentimentos negativos (...). As falhas das colegas tambm so resolvidasem silncio: quando uma de suas colegas perde o controle em um setor ou emuma situao, elas se solidarizam e enfrentam as conseqncias (repartindo as ta-refas, por exemplo), mas ningum fica sabendo. (Sadock, 2003, p. 98-100)

    TO BONITA UMA CRIANA, EU NUNCA ME CANSO

    H uns 20 anos, a psicodinmica do trabalho se esfora para elucidar como que as pessoas fazem para darem conta de situaes de trabalho. Pde sermostrado que, para defender-se do sofrimento no trabalho, as pessoas coope-ravam e, inversamente, que a cooperao sempre comportava uma dimensodefensiva suscetvel de orientar ou organizar as condutas coletivas, as maneirasde fazer e at mesmo o resultado do trabalho (Dejours, 2001). As estratgiascoletivas de defesa so centradas em um universo simblico partilhado que tirasua consistncia do fato de ser organizado por crenas ou atitudes que reduzema percepo das realidades suscetveis de gerar um estado de sofrimento. As de-fesas sempre tm efeitos cognitivos. Elas orientam o desenvolvimento da ca-pacidade de pensar, ocultando uma parte substancial da experincia que j nofaz mais parte do debate. Nas profisses masculinas, as defesas coletivas contrao medo estruturam-se com base em recursos simblicos da virilidade. Substan-cialmente, um homem deve multiplicar as demonstraes de coragem paraconvencer aqueles que com ele trabalham e partilham os mesmos riscos, queele se controla e controla o medo. Em psicodinmica do trabalho, considera-

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    se que a identidade individual, que a armadura da sade mental, relacional.Isso quer dizer que a identidade dependente do olhar do outro. A mola psico-lgica da adeso s estratgias defensivas viris a necessidade de ser confirma-do em sua identidade de homem. Assim, uma parte no negligencivel da iden-tidade sexuada fica alienada na luta contra o sofrimento no trabalho.

    O embelezamento da realidade faz parte de uma estratgia coletiva de defesacontra a agressividade gerada pelo contato com as crianas. Como em todas asdefesas, o embelezamento da realidade frgil, sua funo de conteno e deeufemizao s se torna eficaz a partir do momento em que ela partilhada portodas as auxiliares durante o tempo todo. Tal estratgia opera no registro dis-cursivo e pode tambm ser acompanhada de defesas comportamentais que vi-sam igualmente reduzir a agressividade. Ao que parece, o fato de comer forade hora e a bulimia acontecem freqentemente, at no local de trabalho e s ve-zes nas condutas coletivas. Certas auxiliares se enchem de leite maternizado eoutros alimentos semilquidos destinados s crianas.

    Vimos assim que o universo das auxiliares no est isento de agressividadee de violncia. Desde a primeira sesso, foram relatados tapas e cabelos puxa-dos por duas colegas. Mas as auxiliares suplicaram aos psiclogos que no falas-sem sobre esse episdio de maus-tratos em seu relatrio. Essa atitude foibastante surpreendente, j que, entre duas sesses, uma auxiliar havia denun-ciado essas pessoas aos pais, que ameaaram dar queixa. As empregadas emquesto foram excludas e o acontecimento foi divulgado a todos os setores dohospital. O mal estava feito. A discusso entre os psiclogos e os auxiliaresabriu uma brecha no silncio que recobria a agressividade e os maus-tratos. Noentanto, quando se tem que testemunhar fora do grupo de pares, por meio dorelatrio escrito dos psiclogos, a comunidade da denegao se fortalece. preciso embelezar, calar o negativo. Tudo acontece como se as auxiliares ti-vessem esquecido que elas mesmas tinham tornado o caso pblico algumas se-manas antes. Esse eclipse do pensamento caracterstica de um comportamen-to defensivo. No entanto, o trabalho realizado com o grupo permitiu que as de-fesas se deslocassem e diminussem. De uma palavra projetiva sobre a agressivi-dade das outras, as auxiliares puderam, pela desconstruo do embelezamentoe da ternura, comear a desvelar sua prpria irritabilidade e agressividade. No muito, mas j alguma coisa. O simples fato de poderem se autorizar a dizerque no suportavam mais as crianas produziu um alvio instantneo muitoapreciado pelas auxiliares.

    O embelezamento da realidade nutre-se da ideologia da ternura feminina(uma mulher que no gosta de crianas no uma mulher) e contribui para re-for-la. A essa identidade defensiva de sexo d-se o nome de mulheridade.

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    O dio e o amor, caixa preta do feminismo? Uma crtica da tica do devotamento

    Esta noo designa o conjunto das condutas pelas quais uma mulher se esforapara evitar as represlias das quais tem medo de ser vtima, se ela no se con-formar ao que esperado das mulheres. As condutas e atitudes esperadas porparte das mulheres so editadas, geralmente, e de maneira decisiva, pelo mundodos homens, em funo de seus prprios interesses, mas a conformizao dosujeito-mulher s posturas da mulheridade opera-se tambm pela mediao docoletivo de trabalho feminino. A mulheridade permite analisar, em termosde defesas contra o sofrimento no trabalho, um conjunto aparentemente dis-paratado de condutas femininas que conduzem a um tipo de alienao.

    Atitudes compulsivas de limpeza por parte das faxineiras e das auxiliares(Molinier, 1996), discurso encantado sobre o dom de si por parte das secret-rias (Pinto, 1990) e das enfermeiras, estratgia da ingenuidade por parte das as-sistentes sociais (Guiho-Bailly & Dessors, 1997) e da credulidade por parte dasenfermeiras escolares (Angelini & Esman, 2004), excesso de investimento nocampo prtico em detrimento da teoria por parte das pesquisadoras, entre ou-tros. As defesas so necessrias sade mental. Mas, ao se radicalizarem, elastornam-se fonte suplementar de sofrimento, impedindo que seja pensado ediscutido coletivamente aquilo que, no trabalho, se mostra dificilmente supor-tvel psiquicamente. o que acontece com as auxiliares ao embelezar a rea-lidade. Quanto mais presses houver na organizao do trabalho, mais as au-xiliares correm o risco, paradoxalmente, de tornarem-se campes do discursosobre o amor s crianas, como se ele compensasse todos os males da orga-nizao do trabalho.

    Para mim, o que importa so as crianas. Ainda bem que elas existem, porque elasso as nicas que me fazem compreender minha utilidade. Para alguns pais, ns sservimos mesmo para limp-las... e eles deixam isso bem claro. (...) So as crianasque nos gratificam. to bonito uma criana, eu nunca me canso, eu as toco, mexocom elas, no entendo que possam no gostar delas, so amores, elas nos corres-pondem, eu no suporto quando elas vo embora, para mim difcil quando umadelas vai se consolar com uma colega, eu fico com cimes... doloroso. (Chaplain& Custos-Lucidi, 2001, p. 93)

    Essa citao uma excelente ilustrao da mulheridade, tal como se deixaentender no registro da hiperatividade e do dom de si. Evidentemente, essa mu-lher gosta das crianas. Mas percebe-se, tambm, uma ponta de exagero, deexaltao, de excesso e uma dependncia pouco saudvel com relao s cri-anas, ligada a uma forte erotizao da relao. Enfim, se esse amor devesse sersituado em uma graduao entre emancipao e alienao, o cursor colocar-se-ia claramente prximo a essa ltima. Pode-se estimar que amor demais. Aprpria mulher, que sofre com seus cimes, corolrio dessa ligao excessiva,

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    no est longe de pensar o mesmo. Que uma mulher descreva seu investimentono trabalho de care em termos de amor no significa em si que esse trabalho sejauma realizao para ela (nem para os que dele se beneficiam). O amor podeparticipar de uma defesa contra o dficit crnico de reconhecimento do tra-balho. Dizendo isso, h o desagradvel sentimento de estar forando portasabertas. S que, se fosse o caso, a organizao do trabalho das creches, as pos-sibilidades de mobilidade na carreira, as remuneraes, o reconhecimento so-cial seriam muito diferentes e essas distores da afetividade muito dio oumuito amor poderiam ser evitadas.

    VELHA E M: TOME CUIDADO!

    Parece interessante comparar aqui o funcionamento coletivo das auxiliaresde puericultura e o das auxiliares em geriatria.3 Quando se observa o trabalhorealizado em certas casas de repouso, causa espanto ver como tratam os corposdos velhinhos, que so puxados, empurrados, levantados sem cuidados, e tam-bm pela maneira como vo e vm as auxiliares, que entram nos quartos sembater na porta, falam alto entre elas, sem considerao pela intimidade nem pelanudez das pessoas. difcil acreditar quando elas dizem que o sentido de seutrabalho vem de sua ligao s pessoas idosas. A alternncia observada entreum aparente desprendimento emocional e intenes humanistas torna suspei-ta a autenticidade destas ltimas.

    Uma anlise mais aprofundada mostra que duas atitudes coexistem e queelas, at certo ponto, se ignoram. Essa clivagem responde a imperativos de-fensivos que so incompreensveis sem referncia organizao do trabalho.No setor geritrico, sem entrar em detalhes, a organizao do trabalho sobre-determinada pela penria (de meios, de pessoal), pela intensificao do traba-lho, portanto. No h possibilidade de satisfazer todas as demandas e necessi-dades das pessoas ali assistidas. Ou, em outras palavras, referindo-se ao que de-veria ser feito em matria de care, o trabalho j fracassou antes de ter comeado.Para conservar um mnimo de sentido em seu trabalho, as auxiliares chegam atriar os doentes, ou seja, elas os dividem em pelo menos duas categorias; h aspessoas que se podem tratar de maneira indiferente e as (poucas) outras com asquais podero ocorrer as gratificaes afetivas e o sentido do trabalho. Eticamen-te, esse comportamento detestvel. Mas antes de se censurarem essas subalter-

    3 Para uma anlise detalhada do sofrimento e das defesas das auxiliares e das enfermeiras, ver Molinier,1996, 1999, 2000.

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    nas, h que se compreender que se trata de um comportamento defensivo noqual o que interessa encontrar a melhor maneira de agentar o trabalho. Se asauxiliares no pudessem fazer essa triagem, elas ficariam todas doentes.

    As modalidades de racionalizao dessa triagem so diversas e cada modode categorizao tolera excees. Em vrias equipes de auxiliares, admite-seque as pessoas dementes no precisam de compaixo sob o pretexto de queelas no tm conscincia. Ento, os cuidados so realizados de maneira per-feitamente higinica e est timo. O observador no errar ao considerar queessas pessoas so tratadas como objetos, vegetais, como chegam a dizer asauxiliares. E, alm disso, h tambm as ms, ou seja, as pessoas agressivas, queinsultam, beliscam, mordem, unham, que se queixam do pessoal, so exigen-tes ou simplesmente nunca sorriem. No por acaso que est sendo aqui uti-lizado o feminino genrico: as ms. Em geriatria, a maioria dos pacientes somulheres. Ora, perfeitamente aceitvel socialmente que se diga que certasmulheres idosas so bruxas insuportveis, fazendo com que saiam da categoriade seres vulnerveis aos quais se deve prestar assistncia. Alis, essas velhas tma fama de aborrecidas (as boazinhas morrem mais depressa). Existe um mun-do entre o que se pode dizer de his majesty the baby e da velha m ou do vege-tal. No contexto cultural da sociedade francesa, a confisso do dio (ou da in-diferena) para com os idosos(as) no coloca necessariamente em questo aidentidade feminina, contrariamente confisso do dio s crianas.

    De maneira mais ampla, nos grupos de auxiliares e/ou enfermeiras, elas nose incomodam em manifestar seus sentimentos de hostilidade em relao aosdoentes (bem como aos supervisores ou aos mdicos). O grupo exerce umafuno catrtica muito importante. A raiva, principalmente quando gerada porsituaes de servido ou de humilhao, no fica expressa somente em seuestado bruto. Ela elaborada e superada coletivamente, por meio da ironia emrelao aos outros e a si mesmas. Em resumo: por intermdio do aspectocmico da imitao, ridicularizam quem lhes infligiu a humilhao. Mas, acimade tudo, ridicularizam a maneira pela qual elas se deixaram humilhar, ou omodo como cometeram um erro, de como ficaram com raiva, tiveram medo ousentiram nojo, etc. Enfim, ridicularizam suas prprias fraquezas.

    Centradas no reconhecimento do real e do fracasso, as tcnicas coletivas deelaborao do sofrimento, utilizadas pelas auxiliares e pelas enfermeiras, somuito eficazes para conjurar o dio e a violncia e para elaborar as dimensesambguas e ambivalentes da experincia de cuidado. Em todos os lugares ondeas profissionais no so obrigadas pelas organizaes do trabalho a clivardefensivamente seu modo de investimento, parece louvvel sua capacidadecoletiva de levar em conta a vulnerabilidade do outro, sua flexibilidade psquica

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    e sua abertura de esprito. Alm disso, a fantasia e a auto-ironia tm um papelcentral nas defesas de vrios grupos femininos estudados. Saranovic (2000)narra o caso de uma equipe de voluntrias feministas dos anos de 1980, numcentro de acolhimento a mulheres vtimas de violncia domstica: o sofrimen-to gerado pelas situaes de violncia era elaborado coletivamente pela inter-pretao de cenas improvisadas, durante as quais as voluntrias divertiam-se aoutilizarem o vesturio previsto para ajudar as residentes e mimavam quem eravtima de violncia e quem as acolhia. Um outro jogo consistia em, ao acom-panhar uma nova interna a seu quarto, mostrar suas ndegas colega que vinhaatrs e que devia, por isso mesmo, se segurar para no explodir de rir. Isso vis-to como prtica de gente sem crebro pela equipe atual de funcionrias, queprocura ser reconhecida em seu profissionalismo. No entanto, esta mesmaequipe diz que sofre muito.

    Ora, no foram encontradas condutas coletivas similares a essas por partedas auxiliares de puericultura. Ser que houve alguma falha? Exercendo um tra-balho discreto, no usando nenhum artefato tcnico, em um espao fechado asalvo de olhares externos, a dignidade dos auxiliares estreitamente dependen-te de sua adeso s condutas e aos valores associados feminilidade. Ainda queoutras investigaes sejam necessrias para chegar mais longe, h boas razespara se considerar que as margens de subverso individual e coletiva so mni-mas. Se estiver correta a hiptese de que, na sociedade, muito mais difcil paraas mulheres elaborar a agressividade para com crianas saudveis do que paracom adultos doentes, ento torna-se admissvel concluir que o trabalho na cre-che pode ser to doloroso ou mais do que o trabalho no hospital.

    CONCLUSO

    A reflexo feminista sobre o caring labour evidenciou e desnaturalizou, tan-to no espao de trabalho quanto no espao domstico, atividades primordiaissem as quais simplesmente no se poderia viver. Mas essa reflexo pecou peloexcesso de otimismo o ser humano naturalmente bom. Eufemizada pelosenso comum, pela psicanlise, pela mulheridade e at mesmo pela reflexo fe-minista, o dio das mulheres queles que dependem de seu trabalho est dema-siadamente ausente das teorias e dos debates sobre a tica da devoo, enquan-to subsiste um dficit de descrio das atividades de cuidado s pessoas (caringlabour). Debater o princpio de que o amor no se compra ou a mercantiliza-o dos sentimentos (Hochschild, 2003) pode ser completamente intil se nose definir precisamente do que se trata, tanto no que se refere afetividade

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    Abstract

    As care giving is mostly performed by women, love to sick personsand children is often considered natural and normal. The authorsuggests that care can also generate hate against dependent per-sons. In that case, hate is not less normal than love. The fact thatit is taken into consideration modifies the analysis of care situa-tions. So far, hate has been concealed in scholarly tradition, parti-cularly in theories of care ethics, as well as in workers statements,as suggested by a survey with child care assistants. This causes a de-ficit in work visibility, which results in the concealment of hateand violence.

    Key words: Care work; Care ethics; Love; Hate.

    quanto ao trabalho. O amor no a expresso natural da feminilidade (ou dahumanidade). Mas tambm no um engodo ou uma construo ideolgica.O amor vivido, sentido. Na medida em que o amor no existe fora do con-texto de sua manifestao, no se pode deixar de estudar, em sua diversidade,as situaes de trabalho de care (Wharton 2004). Aqui e agora. Ainda mais por-que as pessoas que exercem realmente trabalhos de care esto enfrentando di-ficuldades crescentes... numa relativa indiferena. Na Frana, durante o veroexcessivamente quente de 2003, algumas enfermeiras tiveram que esvaziarfrascos de produtos de limpeza para transform-los em umedecedores. Elas fo-ram obrigadas a abrir as portas de segurana para criar correntes de ar o que proibido e isso, no sistema de sade que tem fama de ser o mais atuantedo mundo. O outono de 2003 no viu nascer o grande debate que deveria teracontecido a respeito das condies concretas a que so submetidas as pessoasvulnerveis. Avaliar, valorizar, reconhecer: s se poder fazer isso sob a condi-o de renncia a embelezar a realidade e abrir a caixa preta da subjetividade.Levar a srio a questo do sujeito e da subjetividade vai de encontro aos precon-ceitos solidamente estabelecidos pelas cincias sociais, notadamente pelas cor-rentes que trazem a marca do marxismo ou do estruturalismo. Este artigo bus-cou trazer alguns elementos que ajudem a vencer esses preconceitos relaciona-dos com o psicologismo. Ou, ento, corre-se o risco de incentivar uma ticado devotamento construda sobre uma meia-subjetividade ou uma meia-afeti-vidade, o que s pode contribuir para colocar a responsabilidade pelo mau fun-cionamento organizacional nas costas das ms mes ou auxiliares. Tendo emconta os duros golpes infligidos pelo sistema neoliberal ao setor hospitalar eao trabalho social, existe perigo na demora.

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    Pascale Molinier

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