MODERNIZAÇÃO NA BLUMENAU DE 1960 · coluna ou reportagem possuem assinatura, porém isto não...

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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC MODERNIZAÇÃO NA BLUMENAU DE 1960 André Procópio Gomes 1 Resumo: Os jornais desta primeira metade dos anos 1960 trazem pequenas anedotas sobre a cidade de Blumenau. Percebemos, a partir da leitura destas fontes, que um ideal de Blumenau enquanto cidade estava circulando no meio periódico. É interessante observar que, a arte de governar vai perdendo a típica imagem do rei enquanto soberano absoluto, conforme surge uma governamentalidade moderna, tendo à economia uma importância central. Para que esta economia seja bem conduzida, não se abre mão da polícia e práticas disciplinares. O que se pretendia era uma modernização da cidade e de seus cidadãos. A arquitetura não se faz neutra, revela mais do que construções bonitas, pois a estética e a beleza não se encerram em elementos transcendentais. Por isso os celebrados prédios e carros que surgem, trarão junto consigo uma nova proposta de Homem e civilização. E de forma semelhante ao capim que cresce nas frestas do paralelepípedo ou em construções, personagens acabam adotando comportamentos distintos dos preteridos pela onda de modernização da cidade. É importante observar que as regularizações não visavam por fim a tais personagens, mas sim conduzi-los de outra forma. Palavras-chave: Blumenau, modernização, planificação urbana. 1 - PRÓLOGO O presente texto é fruto das reflexões iniciadas para a elaboração do trabalho de conclusão de curso da graduação em História na FURB. Apesar de evitar ser um resumo do trabalho outrora realizado, as questões aqui abordadas estão em direta relação. O grande objetivo é entender como a cidade de Blumenau se constituiu, ou melhor, como a urbanização refletiu nas cidades do interior. Blumenau entra em alguma medida nesta catalogação, em especial no período abordado. Busca-se a relação entre as pessoas e a cidade, entre a carne e a pedra. A arquitetura, a engenharia, a geografia, entre outras ciências ligadas de alguma forma ao espaço, vão cooperar na dominação e na arte de governar. Partindo daí se sabe que neutralidade é algo sem lugar (utópico). A cidade já provou ter uma tendência plural, “Assim, a cidade é objeto de múltiplos discursos e olhares que não se hierarquizam, mas que se 1 Bacharel em História pela Universidade Regional de Blumenau (FURB): [email protected]

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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC

MODERNIZAÇÃO NA BLUMENAU DE 1960

André Procópio Gomes1

Resumo: Os jornais desta primeira metade dos anos 1960 trazem pequenas anedotas sobre a cidade de Blumenau. Percebemos, a partir da leitura destas fontes, que um ideal de Blumenau enquanto cidade estava circulando no meio periódico. É interessante observar que, a arte de governar vai perdendo a típica imagem do rei enquanto soberano absoluto, conforme surge uma governamentalidade moderna, tendo à economia uma importância central. Para que esta economia seja bem conduzida, não se abre mão da polícia e práticas disciplinares. O que se pretendia era uma modernização da cidade e de seus cidadãos. A arquitetura não se faz neutra, revela mais do que construções bonitas, pois a estética e a beleza não se encerram em elementos transcendentais. Por isso os celebrados prédios e carros que surgem, trarão junto consigo uma nova proposta de Homem e civilização. E de forma semelhante ao capim que cresce nas frestas do paralelepípedo ou em construções, personagens acabam adotando comportamentos distintos dos preteridos pela onda de modernização da cidade. É importante observar que as regularizações não visavam por fim a tais personagens, mas sim conduzi-los de outra forma.

Palavras-chave: Blumenau, modernização, planificação urbana.

1 - PRÓLOGO

O presente texto é fruto das reflexões iniciadas para a elaboração do trabalho de

conclusão de curso da graduação em História na FURB. Apesar de evitar ser um resumo do

trabalho outrora realizado, as questões aqui abordadas estão em direta relação. O grande

objetivo é entender como a cidade de Blumenau se constituiu, ou melhor, como a urbanização

refletiu nas cidades do interior. Blumenau entra em alguma medida nesta catalogação, em

especial no período abordado. Busca-se a relação entre as pessoas e a cidade, entre a carne e a

pedra.

A arquitetura, a engenharia, a geografia, entre outras ciências ligadas de alguma

forma ao espaço, vão cooperar na dominação e na arte de governar. Partindo daí se sabe que

neutralidade é algo sem lugar (utópico). A cidade já provou ter uma tendência plural, “Assim,

a cidade é objeto de múltiplos discursos e olhares que não se hierarquizam, mas que se

1Bacharel em História pela Universidade Regional de Blumenau (FURB): [email protected]

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justapõe, compõem ou se contradizem, sem, por isso, serem uns mais verdadeiros ou

importantes que os outros” (PESAVENTO, 1999). É importante olhar para esta pluralidade

num combate silencioso, um burburinho, evitar naturalizações dos movimentos criados pelo

Homem sem contudo render-se a recorrente figura do títere.

Sabe-se “que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que

têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,

esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1996). Uma série de questões

estão em jogo na forma de compreender as cidades durante a década de 1960. Investimentos

procuram conduzir o movimento da urbe, não dispensando estratégias de policia ou técnicas

disciplinares.

Os anos seguintes ao pós-guerra vão apresentar uma daquelas ânsias por

modernidade que acompanham a humanidade, ao menos, desde o século XVII, deixando

marcas num largo período seguinte. Marcando presença significativas nos campos sociais e

culturais.

2 – AS RUAS DA CIDADE

Os jornais desta primeira metade dos anos 1960 trazem pequenas anedotas sobre a

cidade de Blumenau. Apesar de não ser analisado o jornal diário A cidade de Blumenau,

popularmente conhecido como “a cidade”, este periódico traz no título uma propaganda de

Blumenau enquanto cidade. O periódico Combate não fica para trás, de menor circulação e

semanal, têm entre suas páginas uma coluna nomeada Flagrantes da cidade, local onde

aborda questões sortidas sobre Blumenau, desde carros estacionados em locais proibidos, até

rápidos comentários referentes a verticalização pela qual passava Blumenau nesta época.

Percebemos a partir dai que um ideal de Blumenau enquanto cidade estava circulando nos

meios periódicos.

Em princípios do ano de 1962 o jornal Combate publica na capa uma foto da rua XV

de novembro, acima da foto em letras garrafais, maiúsculas e em alta escala, lemos a palavra

URBE. Ao lado, como que um sub texto, está escrito: “arranha-céus de imponentes e vistosas

linhas arquitetônicas dão a Blumenau aspecto de majestosa metrópole”(COMBATE, 21 de

janeiro de 1962)2. Uma semana depois voltam a publicar na capa do jornal outra foto da rua

2Tanto o periódico Combate quanto o Ronda não mantinham como prática indicar o autor de cada coluna. Raramente alguma coluna ou reportagem possuem assinatura, porém isto não deve descartar a possibilidade do pseudônimo.

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XV de novembro, desta vez laureada em caixa alta está “BLUMENAU”, seguida em letras

menores por: “a metrópole catarinense marcou encontro com o progresso”(COMBATE, 28 de

janeiro de 1962.). Ambos os textos que acompanham as duas fotos trarão elogios a cidade

devido a “seu trânsito desembaraçado, suas calçadas retificadas” (COMBATE, 21 de janeiro

de 1962.) e claro, não poderiam ficar de fora “seus edifícios imponentes” (COMBATE, 28 de

janeiro de 1962), apesar de não haver citação de quais edifícios seriam estes. O que vêm ao

caso de qualquer forma, são as associações ligadas ao ideal tão caro de progresso, que

acompanham o festejar do crescimento e modernização da cidade de Blumenau.

Direta é a observação de T. Maestrini, responsável pela coluna Flagrantes da cidade:

“Blumenau cresce. Dia a dia, o aspecto da cidade é outro. Centenas de novos prédios são

construídos anualmente. […] Blumenau já não tem aspecto de cidadezinha do interior”, e

escrevendo em seguida como que num arremate para justificar o abandono do aspecto

interiorano da cidade: “Altos prédios se erguem majestosos, a população aumenta e o

movimento do tráfego se intensifica. É uma nova metrópole que surge” (COMBATE, 12 de

novembro de 1961). O que temos aqui de forma clara, são indicativos do que possibilitaria a

pequena Blumenau ser chamada “Metrópole”, ou em termos mais reais, cidade. Apesar de não

discutirem especificamente infraestrutura ou urbanismo, repetem de alguma forma que o que

faz a urbe é sua urbanização, mesmo que as respostas à este quesito, no caso blumenauense da

década de 1960, se restrinjam a rua XV e arredores.

Como observa Mamigonian durante sua passagem por Blumenau na virada da década

de 1950 para a de 1960, o centro da cidade (rua XV de novembro) e seus arredores

(especialmente Alameda Rio Branco e o bairro Bom Retiro), possuirão características

minimamente suficientes de urbanismo (calçadas, pavimentação, esgoto, água encanada,

eletricidade...). Enquanto nos bairros se encontra o formato de espinha de peixe, com uma rua

principal cortada por transversais. Mantendo como característica as ruas principais calçadas

ou com macadame, possuindo algo de comércio com construções em alvenaria, enquanto as

ruas transversais são de terra e as casas, em sua maioria, de madeira, mantendo ainda de

forma muito forte um ar rural, apesar da indústria – que se distribui de maneira dispersa pelo

município (MAMIGONIAN, 1965).

Digamos que, se num dado período o interesse na arte de governar é a extensão do

território e sua manutenção, a exemplo do império português e a construção das fortalezas na

ilha do desterro3. Num momento posterior, conforme movimentos como a revolução industrial

3 Para maiores detalhes ver: SALOMON, 2002.

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e a especialização da mão de obra se solidificam, o bem governar se concentra na utilização e

produção a partir de tal território, a exemplo de Blumenau durante seus tempos coloniais4. É

interessante observar que, a arte de governar vai perdendo a típica imagem do rei enquanto

soberano absoluto, conforme surge uma governamentalidade moderna, onde a economia

ganhará uma importância central. Assim sendo podemos dizer que “Governar um Estado

significará portanto estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos

habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância,

de controle tão atenta quanto a do pai de família”(FOUCAULT, 1979). E cabe ressaltar aqui

que a palavra economia (Oekonomie) virá de Oikos, por isso sua grande relação com um

“cuidar da casa”, e o bom governante cairá na metáfora do bom pai que sabe conduzir sua

família. Para que esta economia seja bem conduzida, não se abre mão da polícia e práticas

disciplinares. Assim sendo uma vigilância seguida de correções acabam se apresentando

enquanto práticas recorrentes e justificáveis em nome de alguma razão maior.

Vem desde o século XIX, com o modelo Haussmaniano tomado como praxe, tornar a

cidade produtiva. Seja materialmente, onde podemos observar a abertura de ruas largas (as

avenidas) que procuram fluir o tráfego e com isso acelerar a roda da economia. Ou

intelectualmente, justificando assim os monumentos encontrados em cada final de rua ou

confluência5, assim como a importância dos cafés num imaginário sobre Paris. Não podemos

esquecer de que, dentre todas estas características citadas, a “finalidade das obras de

Haussmann era tornar a cidade segura em caso de guerra civil”, até porque barricadas e

levantes fazem parte da aura de Paris: “Ele [o barão de Haussmann] queria tornar impossível

que no futuro se levantassem barricadas em Paris” (BENJAMIN, 1985). As mesmas ruas que

irão inspirar artistas sem fim (desde Baudelaire até Godard), são as mesmas que facilitam a

supressão de tomadas de rua. Junto com toda esta preocupação espacial e social, há uma

potência governalizante, materializada pela desejo policial e de controle.

Teremos São Petersburgo criada e construída sob a visão de Pedro, o grande, como

uma janela para Europa. A geometria e cartesianismo das ruas, as fachadas dos prédios em

estilo barroco, os muitos canais que cortam a cidade lembrando Veneza, todos elementos em

referência a cultura europeia6. Pedro buscava modernizar a Rússia por São Petersburgo,

4Há dois mapas desenhados durante o período colonial de Blumenau que buscam organizar a ocupação do espaço, assim como havia uma preocupação em organizar a localização das famílias de acordo com seu trabalho, a exemplo de sapateiros e ferreiros na Stadtplatz (que seria um “centro da cidade”) e fazendeiros nos arredores. Da mesma forma que havia uma grande preocupação relativa ao trabalho dos colonos. Para maiores detalhes sobre a ocupação e gestão do território e população na colônia Blumenau ver: MACHADO, 2008.5O exemplo mais claro desta monumentalização ao fim de cada rua talvez seja o miolo que forma o Arco do Triunfo na trama de ruas parisiense.6Para mais detalhes sobre a construção de São Petersburgo ver: BERMAN, 1986, p.170.

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Haussmann pela reformulação das ruas, Kubitschek pela construção de Brasília e Blumenau

pelos seus prédios, pavimentações, abertura de estradas e canalizações de ribeirões.

A arquitetura não se faz neutra, revela mais do que construções bonitas, pois a

estética e a beleza não se encerram em elementos transcendentais. Apesar das plantas vazias

sem pessoas ali representadas, a arquitetura e o urbanismo tem como finalidade o Homem.

Talvez seja possível dizer que “esquecendo o homem, a arquitetura perde a razão de

existir”(JACQUES, 2003). Por isso os celebrados prédios e carros que começam a marcar

presença cotidiana no trânsito, trarão junto consigo uma nova proposta de Homem e urbe.

Apesar de toda a modernidade circundante em São Petersburgo e Paris, tais ruas não

eram pensadas para qualquer pessoa, ou melhor, para qualquer conduta exercida pelos

citadinos que circulam diariamente pelos cafés, escritórios e ruas da cidade. Blumenau

manterá o espectro deste planejamento, onde, apesar das plantas reproduzirem ruas e prédios

vazios, eles são pensados para que pessoas por ali passem e habitem, ou no mínimo que seus

olhos se encantem, frente a tal beleza, e vejam que ali está a modernidade.

No ano de 1961 Blumenau tem inaugurado seu primeiro supermercado (ACIB,

1989). Hoje nos parece comum e na maior parte das vezes pouca atenção damos ao

surgimento dos supermercados. Mas eles trazem uma nova forma de comprar comida entre

outros elementos. A exemplo da perca da pessoalidade entre o dono da mercearia e a

freguesia. A prática da “pendura” que é mediada pela confiança entre o freguês e o merceeiro

começa a escassear. Haverá uma participação de um na vida do outro, até mesmo na vida

privada do outro, há espaço para o dono da mercearia elogiar a roupa de uma freguesa e

comentar com o cliente seguinte sobre isso7, a pessoalidade se apresenta como elemento

fundamental. Perguntando a alguém mais velho, na literatura ou até mesmo lendo Mafalda,

podemos verificar a figura comum da venda, do armazém, quitanda ou mercearia8.

Progressivamente as vendas “de cada esquina” vão sumindo, sendo substituídas por

supermercados. Estes por sua vez são racionalizados, possuem setores e caixas variados, a

pendura deixa de existir, assim como a necessidade de conhecer o caráter de cada cliente, pois

deixa de fazer sentido saber se o sujeito irá pagar mais tarde ou não, já que não pagando na

hora, o freguês não leva.

7Para maiores detalhes sobre esta relação entre o cliente e o quitandeiro ver: PROST, 1990.8A figura do fim do quitandeiro é ilustrada de forma cômica por Quino, onde Miguelito filho de um dono de armazém, sonha abandonar o negócio da família e abrir por sua vez uma gigantesca rede de supermercados.

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Ilustração 1: Propaganda do primeiro Supermercado de Blumenau. Há uma

necessidade em enumerar as vantagens de se comprar no supermercado. Acervo

fotográfico do arquivo Histórico de Blumenau (AHJFS)

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Em seguida, no ano de 1962 abre uma filial da rede Hermes Macedo em Blumenau,

que na época de sua fundação tinha o título de maior loja do sul do Brasil, com 4200m²

(ACIB, 1989). As lojas de departamento e os supermercados ganham cada vez mais espaço.

Curiosamente a chegada da Hermes Macedo ocorre no mesmo ano em que a prefeitura

municipal proíbe o comércio ambulante de rua, à pedido da ACIB (Associação Comercial e

Industrial de Blumenau). Sob a justificativa de proteger o comércio estabelecido e melhorar a

fluidez nos passeios. Junto com os vendedores ambulantes os quiosques e barracas (a exemplo

das bancas de jornal) também são retirados da rua objetivando melhor circulação (ACIB,

1989).

Dois anos após a proibição do comércio de rua, o periódico Ronda publica uma nota

intitulada Combate aos Camelots. Ali o jornal pede para que a municipalidade faça a devida

fiscalização sobre os camelôs, descritos pelo jornal como “marginais que nada mais são do

que desleais concorrentes ao comércio honesto e legal”(RONDA, 26 de maio de 1964). E o

jornal segue: “Ao longo da rua XV de novembro não raro assiste-se a esses espetáculos

nocivos ao progresso da cidade”, no qual “homens de passado duvidoso […] [expõem]

mercadorias de origem mais suspeita ainda, pela calçada” (Idem). O que temos é o comércio

de camelô funcionando em oposição à proposta modernizante de então. É um comércio sem

lugar fixo, localizado na anarquia da rua, acaba fazendo frente as setorizadas, tabeladas e

racionalizadas lojas de departamento. Assim como as vendas, armazéns e barracas farão

frente aos supermercados, que por sua vez tem preço tabelado, são setorizados, higienizados e

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Ilustração 2: Bancas de Jornal que junto com os vendedores ambulantes são

retiradas das calçadas. A relação das pessoas com a rua é maior do que a de

passagem. Acervo fotográfico arquivo Histórico de Blumenau (AHJFS).

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fixos. Em oposição ao verdureiro ou fruteiro, onde pechinchar, dar descontos ou “arredondar”

o preço fazem parte do processo. Além de que tais comerciantes transitavam com um carrinho

carregando suas mercadorias, de rua em rua.

Nós, tão acostumados com os “sempre próximos” e fixos mercados, temos

dificuldade em compreender o verdureiro passando pelas ruas enquanto balança sua sineta e

donas de casa correm apressadas até ele para comprar os suprimentos necessários. Até

esquecemos as “épocas” de cada fruta, pois dispomos de praticamente todas o tempo todo,

sejam nacionais ou importadas. Podemos comprar suéteres e cobertores no verão, assim como

filtro solar no inverno, pois compramos em lojas setorizadas, climatizadas, higienizadas

(percebemos pela ausência de cheiros) e racionalizadas. O momento aqui analisado é durante

o auge da arquitetura moderna, que a exemplo de Brasília, terá as atividades setorizadas por

bairros, objetivando uma maior racionalidade do uso das ruas9.

Estes vendedores ambulantes, camelôs e outras pessoas que faziam da rua seu

ambiente de trabalho, vão ser o capim que cresce por entre as frestas do sólido urbanismo

estático que se planejava para a cidade de Blumenau. Seu problema será muito semelhante ao

das favelas10, estarão sempre em movimento e são como que uma resistência a urbanização.

Não possuindo lugar fixo, a apreensão e compreensão através de uma linguagem racionalista,

se tornam objetivos no mínimo árduos. Sendo de uma dificuldade imensa governar tais

elementos tão móveis, que atrapalham os planos para esta pequena cidade cravada no meio de

úmidos vales no interior de Santa Catarina. De forma semelhante ao capim que cresce nas

frestas, por entre as lajotas e paralelepípedos da rua. Fugindo a planificação urbana, os

camelôs deverão ser retirados de cena. Pois estes personagens acabam adotando

comportamentos distintos do preteridos pela onda de modernização da cidade.

O que percebemos é que de alguma forma se planejava uma adaptação a uma nova

racionalidade. Planejamento este que segundo o jornal passará pela proibição de tais práticas e

utilização do corpo policial para se fazer cumprir novas leis. Porém é válido observar que se,

mesmo com a instalação de supermercados e lojas de departamento, a população continuava a

comprar com os camelôs, até porque negócios não continuam sem freguesia, tal processo não

ocorre de maneira tão natural. Por isso a necessidade do jornal em apontar os camelôs como

“homens de passado duvidoso expondo mercadorias de origem mais suspeita ainda”

9No final de 1960 e princípios de 1970, se tornam mais recorrentes as críticas a tal racionalismo de inspiração cartesiana do urbanismo, e se procurará (em alguns espaços) devolver a vida a rua.10A questão do capim ou da chamada erva “daninha” enquanto imagem e metáfora é melhor trabalhada por Paola Berenstein Jacques: “o crescimento das favelas assemelha-se ao do mato que cresce nos terrenos baldios das cidades”. JACQUES, 2003, p.105.

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(RONDA, 26 de maio de 1964), implicando forte peso moral para prática e praticantes. Sem

esquecer que o comércio ambulante de rua aparecia como “nocivo ao progresso da cidade”

(Idem).

Dá para imaginar o desgosto causado em algumas pessoas devido à permanência nas

ruas, mesmo que temporária, dos camelôs11. Os esforços parecem conduzir a um

esvaziamento da rua, mantendo-a apenas enquanto espaço de trânsito. Até porque antes

mesmo da vinda de lojas de departamentos e supermercados as feiras livres serão criadas.

Segundo consta no relatório municipal do ano de 1962 as feiras livres objetivavam a

regularização dos preços (DEEKE, 1962). Mais tarde o jornal Ronda publicará o seguinte

slogan:

Compreendendo o tempo analisado, é possível entender a feira livre como uma forma

de racionalizar o espaço, pois temos assim vários vendedores que antes ficavam espalhados

pelas ruas da cidade, provavelmente com suas carroças, agora concentrados em um único

lugar fixo e regularizado. Esvazia-se a rua deixando-a sem seus personagens habitués (dentre

eles os quiosques), e concentrando todos aqueles sujeitos móveis em local fixo. O que, facilita

a fiscalização e territorializa. Apesar desta regularização, a criação da Feira Livre não visa o

desaparecimento do verdureiro e fruteiro, mas busca enquadrá-los na nova formatação

desejada.

11Atualmente os camelôs na cidade de Blumenau, assim como em outras da região, seguem um formato semelhante ao da feira livre, ocupando um local fixo.

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Ilustração 3: Percebe-se uma associação de tal prática com o

conceito de limpeza. Ronda, número 19, 25 de fevereiro de 1964.

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Ocorrerá na cidade de Blumenau algo comum a boa parte do Brasil: a morte da rua

conforme a noite se aproxima. E em relação a décadas anteriores, é modificado o tipo de vida

que a rua terá durante o dia. Grosso modo podemos dizer que

Ao longo da década de sessenta houve, neste espaço central, uma mudança radical do principal de suas atividades. Outrora o comércio varejista se concentrava sobretudo na área 1 – rua principal – composto por bares, cafés, pequenos bancos, agências de prestação de serviços, etc., e era o lugar de troca, de exteriorização e de encontro da população. Entretanto, com o desenvolvimento acelerado do fator econômico da cidade [de Blumenau], este comércio multifacetado foi obrigado a ceder lugar às agências bancárias de maior porte, aos escritórios de empresas e de profissionais liberais, aos magazines de médio e grande porte e aos serviços especializados. (VIDOR, 1995)

Tornando assim a região central, outrora o grande espaço de trocas, como local de

trabalho ou passagem. Não por acaso o número de residentes ser mais reduzido em regiões

centrais.

Os ataques dos jornais e as medidas legais não se restringem ao comércio ambulante.

De forma curiosa o jornal Ronda trará uma nota referente a falta de higiene nos bares,

propondo-se a “denunciar publicamente a falta de higiene existente nos bares da cidade”

(RONDA, 26 de maio de 1964), sem indicar quais bares seriam estes, mas generalizando e

parecendo incluir o maior número possível deles. Indignando-se por ser “inadmissível que as

autoridades responsáveis permaneçam amortecidas ante tal atentado à saúde da população”

(Idem), propagando a ideia de que os bares, ou o estado em que se encontravam os bares

blumenauenses, ameaçavam a população. Por fim a forma com que se dá o atendimento é

descrita como feita por “garçons barbudos e cabeludos, exalando mau cheiro, [estes] servem à

clientela solícita e paciente; que a ar de ser explorada, ainda tem que suportar aqueles maus

momentos de permanência no ambiente úmido e pouco limpo” (Idem). Relatando assim bares

em condições dignas da literatura subterrânea de Dostoiévski. Curioso também como o jornal

cai no clichê em associar ambientes insalubres como elemento denunciador de uma

insalubridade social, acreditando que “destruir os miasmas é também destruir os odores da

corrupção moral”(RAGO, 1987), presentes de alguma forma no tecido social.

Meses mais tarde o Ronda trará nova nota sobre os bares. Desta vez a notícia trata

do “ato da municipalidade fechando as portas de diversas biroscas que funcionavam pela

cidade, ao arrepio da lei” (RONDA, 13 de outubro de 1964). Segundo consta no Jornal, a

municipalidade por meio de seus fiscais auxiliados pela polícia militar, fecham inúmeros

estabelecimentos, que reabriram no dia seguinte ignorando a determinação legal. Em resposta,

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novo corpo de funcionários fora mais uma vez organizado para novamente fecharem os tais

bares, desta vez mantendo vigília frente os estabelecimentos.

Assim sendo, o município parecerá fazer eco ao repúdio contra os bares,

anteriormente anunciado pelo periódico Ronda, realizando uma dispendiosa caça (cassa) aos

bares, pejorativamente nomeados pelo jornal como “biroscas”. Como já vimos, os bares e

cafés outrora tão comuns nos centros das cidades, começam a desaparecer ao longo das

décadas de 1960 e 1970, numa caçada silenciosa, porém, pouco evitando em fazer barulho.

Estes estabelecimentos representavam, da mesma forma que os quiosques e

vendedores ambulantes (camelôs ou não), um contrassenso aos anseios urbanos de então. Tais

elementos são o capim que cresce nas rachaduras, atrapalhando os projetos tão rígidos da

planificação urbana.

4 - Epílogo

Usualmente se comenta que a década de 1960 fora o auge da arquitetura moderna, e

que o exemplo mais claro deste momento no Brasil é a construção da nova capital Brasília.

Junto com o auge e a institucionalização da arquitetura moderna, visível através do alto índice

de prédios estatais e símbolos de órgãos do governo (Infraero, Correios...) neste estilo

modernista. Características vão se tornando regras, dentre elas o funcionalismo e o

racionalismo atingindo níveis tais que outros elementos acabavam ignorados. Conjuntos

habitacionais como o de Christiane F. com o sugestivo nome de Gropius ou as cidades

dormitório laureadas por autoestradas gerará uma certa crise ao longo dos anos 1970.

Elementos foram ignorados em nome de uma modernização que virá com tudo após a

segunda guerra, levando a crer que um espírito de reconstrução rondava os antigos aliados e

nações ocupadas.

Os celebrados prédios e carros que começam a aparecer nas cidades, acompanham o

desejo por uma nova formulação urbana. Ocasionando um forte esvaziamento das ruas, vendo

tal lugar apenas enquanto elemento de trânsito ou passagem. A arquitetura e a estética

pensam, planejam, a beleza não é um conceito que se dá naturalmente, de forma original e

autônoma. O belo não é simplesmente belo, é belo por nos evocar a algo. Blumenau

procurava acompanhar o ritmo da sinfonia modernizante, fazendo isto a beleza viria junto

com a nova modernidade.

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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC

Com os prédios vieram os policiais, as leis, as reformulações do espaço e seus usos,

ações perceptíveis através do confinamento da rua, o que gerou uma importância cada vez

maior das lojas de departamento e supermercados. Coerções serão empreendidas pelo

governo visando conduzir a população a novos parâmetros, que seriam alcançados também

por meio dos comportamentos, da postura e conduta dos citadinos. E estas coerções ocorrem

de forma constante buscando moldar o homem em nome de uma sociedade melhor, mesmo

que para isto medidas repressoras sejam tomadas.

Bibliografia

ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE BLUMENAU. ACIB 90 anos de memória. Blumenau: Fundação casa dr Blumenau, 1989.

BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: companhia das letras, 1986.

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FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996

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Fontes

Combate: 12 de novembro de 1961 à 21 de junho de 1962 (Acervo AHJFS)

DEEKE, Hercílio. Relatório do Município de Blumenau. Blumenau, 1962. (Acervo AHJFS)

Ronda: 5 de fevereiro de 1962 à 8 de dezembro de 1964 (Acervo AHJFS)

Acervo Fotográfico do arquivo histórico municipal da cidade de Blumenau (Acervo AHJFS)

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