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Modelações de escritas sobre um Portugal de partida para os espaços extra-europeus: reflexões em torno de imagens do(s) europeu(s) Ana Paula Menino Avelar 1 Resumo A partir do conceito de alteridade analisa-se como o discurso cronístico português entendeu o espaço europeu e representou o Outro no século XVI. Após ter brevemente reflectido sobre a historiografia portuguesa quinhen- tista, analisam-se as narrativas que descreveram o Portugal de partida e, através do recurso a breves exemplos, examina-se a imagem que a cronística portuguesa transmitiu sobre outros habitantes de um espaço europeu, até aqui algo desconhecido. De seguida, contrapõem-se as imagens discursivas de autores como Jerónimo Münzer ou Jorge de Ehingen que estiveram em Lisboa no século XVI e que escreveram sobre estas suas viagens. Palavras-chave Historiografia; alteridade; cronística; Europa; cultura. 1 CHAM – Centro de Humanidades, FCSH, Universidade Nova de Lisboa; Universidade Aberta; CEC – Centro de Estudos Comparatistas e CH – Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.

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Modelações de escritas sobre um Portugal de partida para os

espaços extra-europeus:reflexões em torno de

imagens do(s) europeu(s)Ana Paula Menino Avelar1

Resumo

A partir do conceito de alteridade analisa-se como o discurso cronístico português entendeu o espaço europeu e representou o Outro no século XVI. Após ter brevemente reflectido sobre a historiografia portuguesa quinhen-tista, analisam-se as narrativas que descreveram o Portugal de partida e, através do recurso a breves exemplos, examina-se a imagem que a cronística portuguesa transmitiu sobre outros habitantes de um espaço europeu, até aqui algo desconhecido. De seguida, contrapõem-se as imagens discursivas de autores como Jerónimo Münzer ou Jorge de Ehingen que estiveram em Lisboa no século XVI e que escreveram sobre estas suas viagens.

Palavras-chave

Historiografia; alteridade; cronística; Europa; cultura.

1 CHAM – Centro de Humanidades, FCSH, Universidade Nova de Lisboa; Universidade Aberta; CEC – Centro de Estudos Comparatistas e CH – Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.

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Abstract

The concept of alterity stands at the core of our analyzis of the way 16th cen-tury Portuguese chronicles understood the European space and represented the Other. After briefly reflecting on the Portuguese historiography of the 16th century, we analyze the narratives that described Portugal as a departure port. Anchored inbrief examples, we examine the image those chroniclesin-formed European readers about previously unknown spaces. Eventually we contrast Jerónimo Münzer s and Jorge de Ehingen’s discursive images, since they were in Lisbon in the 16th century and wrote about those journeys.

Keywords

Historiography; otherness; chronistic; Europe; culture.

Para analisar diferentes modelações narrativas sobre o Portugal de partida no século XVI importa, para além de assinalar inscrições nucleares para a constru-ção do quadro conceptual de quem trabalha nesta área de estudos, a escrita do Outro, enfatizar que se toca duas faces do discurso sobre a alteridade: por um lado, referem-se breves exemplos da imagem construída pela cronística portuguesa sobre outros habitantes do desconhecido espaço europeu, por outro contrapõem--se imagens narrativas transmitidas sobre um Portugal de partida através de vozes como Jerónimo Münzer ou Jorge de Ehingen. Esta escolha decorre do facto de serem estas algumas das narrativas produzidas ao tempo por quem visitou o Portugal de partida (séc. XVI), descrevendo-o.

Assim, importa ter em atenção o quadro conceptual em que se move esta análise, o qual tem sido objecto de múltiplas abordagens, nomeadamente quando se trabalha no âmbito dos estudos de cultura e nas suas fontes. Recordo que as compilações de viagem têm funcionado como uma das fontes matriciais para um dos campos de investigação na área da cultura, os Encounter Studies2. Se, durante muito tempo, este espaço analítico era algo secundarizado e marginalizado pelos

2 Como Stephen Greenblatt define: “The voices of the other do not reach us in pure or uncontami-nated form-as if such a condition were ever possible! Indeed the whole European project of writing about the New World rests upon the absence of the object-landscape, people, voice, culture-that has fascinated, repelled, or ravished the writer.” Stephen GREENBLATT, The New World Encounters, London, University of California Press, 1993, p. XVII.

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estudos históricos, pois a sua hermenêutica textual exigia o domínio conceptual dos campos da História e da teoria literária, actualmente o mesmo intenta integrar qualquer artefacto intelectual que corporize a interação da Europa com o Outro, com a alteridade, durante os períodos tardo-medieval e moderno. Estes artefactos vão desde o uso de exemplos colhidos na geografia ocidental, cartografia, ou nar-rativas históricas, passando pela pintura, épica ou mesmo obras de cariz filosófico ou jurídico3.

Não é este o espaço para problematizar o modo como se foi evoluindo nesta área de estudos e nas suas múltiplas vertentes, como as que se prendem com as fontes. Contudo, subscrevo a crítica repetidamente levantada segundo a qual a visão que tem sido mais ou menos sistematicamente reconstruída é a da represen-tação europeia de outros espaços, ainda que se procure enquadrar o debate, num contexto mais global das configurações intelectuais4.

Com efeito, deparamo-nos com o “conhecimento do mundo” que, apesar de condicionado pelas pré-existentes tradições tardo-medievais e renascentistas europeias, sofreu as mudanças espaciais e temporais que intervieram nos con-tornos económicos, sociais, políticos e culturais, dos outros que se procuraram “representar”. Passou-se, como assinalou Gilles Lipovetsky em Cultura-Mundo, do cosmos fixo da unidade, do sentido último e das classificações hierarquizadas para o das redes, dos fluxos, dos mercados5.

Concomitantemente, dever-se-á ter em atenção que, como define Paul Ricoeur, ao tomar o facto histórico enquanto texto6 este deverá ser entendido como nexo de toda uma série de diferentes discursos7, recorrendo os diferentes narradores à semelhança, a qual, para quem analisa o texto, revela não só o que se vê, mas quem vê. Desoculta-se, deste modo, não apenas as comunidades locais, mas, muito em particular, os sujeitos que elaboraram a descrição. Por outras pala-vras, através do texto revela-se não só o observado, mas também os observadores.

Estes discursos subscrevem, por vezes, múltiplos géneros, sendo as narra-tivas de viagem, as que de imediato e intencionalmente visam revelar o Outro. Estes discursos devem ser entendidos no âmbito de um contexto social específico, reflectindo códigos, expectativas e ideologias distintas8. Deste modo, formata-se

3 Giancarlo CASALE, The Otoman Age of Exploration,Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 9. Neste texto o autor logo no início elabora uma sucinta síntese relativamente à metodologia adoptada face às fontes narrativas que explorou e onde toca as abordagens teóricas em torno desta área de estudos.

4 Ibidem, 10.5 Gilles LIPOVETSKY e Jean SERROY, Cultura-Mundo- Resposta a uma sociedade desorientada,

Lisboa, Edições 70, 2010, pp. 11-37.6 Paul RICOEUR, La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris, Editions du Seuil, 2000, p. 360.7 Sara MILLS, Discourse, London and New York, Routledge, 2003, p. 117. Neste texto a autora sinte-

tiza em breves traços o modo como o discurso tem sido analisado. 8 Graham ALLEN, Intertextuality, London and New York, Routledge, 2000, p. 212.

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a representação do “mundo do Outro” a partir do ponto de vista do autor, sendo muitas vezes estas descrições e as imagens que as mesmas corporizam usadas como fonte de informação a partir da qual o autor histórico intervém. Atente-se no facto de estes pontos de vista também modelarem os contextos históricos.

Tendo este esquemático contexto conceptual como solo analítico, reflicta-se, ainda que usando apenas alguns textos, sobre os autores portugueses que tomam o reino – a Europa, como tópico de descrição e que repercutem uma primeira prática memorativa9. A palavra comporta em si uma tradição de significado, por isso enfatiza-se nesta análise o facto de se tomar memorativo na acepção quatro-centista do vocábulo, como sendo o que serve para mencionar, e representação, na acepção ricoeuriana de algo anteriormente percepcionado, adquirido e dominado.

Situemo-nos em Quinhentos, num tempo em que se assiste a uma tendência para o imanentismo na compreensão do mundo, isto é, o universo é pensado como um todo que se auto-explica, e que contrasta com o transcendentalismo medieval. Este último entende a realidade como um conjunto de aparências que são movidas por algo exterior a si. Neste imanentismo o homem compreende-se, dinamicamente: “A relação entre o indivíduo e a situação torna-se fluída; o passa-do, o presente e o futuro transformam-se em criações humanas.”10 Deste modo, o discurso historiográfico ganha uma nova modelação, onde o olhar sobre o Outro e a sua representação se reformula.

Neste tempo surge em Portugal uma modalidade historiográfica específica: a cronística da Expansão que consubstancia essa nova consciência epocal, dela participando, visto espelhar as realidades extra-europeias onde o Outro se impõe. A alteridade percecionar-se-á a partir da imagem do eu, esboçados por signos identitários, como as roupas ou formas de saudar … e da vivência de novas at-mosferas11, entendidas como expressões da relação do indivíduo com o mundo, nascendo da afectividade por esta projectada no seu espaço. Esta alteridade deve ser intuída e igualmente desocultada quando se analisa a forma como a Europa se representa a si própria.

Como sinaliza Euan Cameron foi uma mulher asiática que deu o nome a Europa [Europa é a filha de Agenor–Rei de Tiro que foi raptada por Zeus transfor-mado num touro, dando nome ao continente], foi um vagueante exilado asiático que ofereceu à Europa a sua identidade política e cultural [Eneias, exilado troiano,

9 Tenha-se em atenção que no séc. XV memorativo é entendido como: “( …) a memoria he dita quando a imagem vista ouvida dalguum cousa do homem he sempre presemte na virtude memorativa.” José Pedro MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, IV, Lisboa, Livros Horizonte, 2003, p. 100.

10 Agnes HELLER, O Homem do Renascimento, Lisboa, Editorial Presença, 1982, p. 9.11 Pierre KAUFMANN, L’experience émotionelle de l’espace, Paris, Libraire Philosophique J. Vrin,

1967.

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é o símbolo do império de Roma] e foi um profeta oriundo da Ásia, Jesus Cristo, que deu à Europa a sua Religião12.

Por seu turno, a figuração iconográfica deste mito fundador da Europa é a que usualmente prefigura o rapto da filha de Agenor por Zeus transfigurado num touro, o qual abre o seu caminho por entre as águas, levando sobre si uma jovem. Este mito fundador percorre a cultura europeia, estando presente tanto na Antiguidade, onde a Europa ganha a forma de uma heroína, ou deusa, reflectida no lirismo de Mosco, Ovídio, ou Luciano, ou ainda numa Idade Média em que este rapto da Europa, foi tanto rejeitado pelo Cristianismo como reconfigurado no que considera ser uma alegoria cristã, onde Zeus, Deus dos deuses é substituído por Cristo. Europa ecoa, assim, durante a medievalidade como um traço de um politeísmo sacrílego, surgindo sob a forma de uma personagem. Já num tempo de passagem do império dos signos para o império dos príncipes a representação de Europa irá surjir como a deusa cristã dos iluministas, escribas e impressores.

12 Euan CAMERON, Early Modern Europe –An Oxford History, Oxford, Oxford University Press, 2001, pp. 1-4.

Fig. 1 – Mapa da Europa como Rainha in Sebastian Münster, Cosmographey Oder beschreibung Aller Länder herrschafftenn vnd fürnemesten Stetten des gantzen Erdbodens, Basel, 1588 (Bayerische Staatsbibliothek, VD16 M 6704, p. xli, urn:nbn:de:bvb:12-bsb00074488-4)

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Atente-se como no Renascimento, num momento em que se registam fronteiras, Sebastião Münster metamorfesearia a sua Europa em rainha, sendo a Hispânia a sua cabeça, a qual esboçando um claro movimento, olharia para a África que a ladeava, tendo a seus pés a Ásia. Este é também o século em que os impérios ibéricos iconicamente se auto-representariam, tomando o globo. Assim, ao longo dos séculos a imagem de Europa consubstanciar-se-ia em signo, personagem, poesia, ou mesmo em simples ornamento e concomitantemente o espaço físico deste continente foi, desde a Antiguidade, denominado por Europa, ainda que politicamente surgisse designado como Cristandade. Tal designação só começaria a ser substituída pela de Europa entre 1630-1660 em França, Holanda e Inglaterra, enquanto que em Espanha, no sul de Itália, na Áustria, Hungria e Polónia, isto é, nos espaços europeus que directamente faziam frente aos turcos e nos espaços onde o espírito de cruzada se mantinha ainda vivo, persistiu o empre-go do designativo de cristandade. Tal designativo não sinalizava unicamente uma crença, mas consubstanciava uma orgânica forma de viver:

“If ‘Europe’ had, or came to acquire, an identity as a place, it was always one wich lived in the uneasy realization that not only were Europe’s origins non--European, but that no one could establish with any precision where Europe stopped and Asia and Africa began.”13

Deste modo, o conceito de Europa/Cristandade participaria da construção de uma geografia organizativa das primeiras escritas de viagem produzidas num Portugal de Quinhentos e das suas traduções/revisitações no espaço europeu. Formulam nuclearmente o seu espaço narrativo. Importa, no entanto, ter em aten-ção nestes discursos a dissimetria entre espaço e tempo, binómios construtores da viagem e modeladores da sua escrita:

“Dans l’espace la “tautousie” empêche deux existences d’exister à la même place; mais l’espace est la pour accueillir tous les coexistants à la fois dans la juxtaposition de leur co-présence, et pour offrir le spetacle à um regard synoptique qui les embrasse simultanément. Dans l’espace l’omniprésence n’est pas moins contradictoire; mais la liberté du mouvement atténue la disjonction des lieux, et en outre la possibilité du retour au point de départ parachève notre maîtrise. Dans le temps, la succession fluidifie l’alternative:

13 Ibidem, 4.

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transformés en “moments”, des contradictoires qui sont incompossibles dans le même instant deviennent, sinon compossibles, du moins possibles.”14

Essa (com)possibilidade ou possibilidade pode concretizar-se através das imagens, dos signos e símbolos que percorrem os diferentes discursos autorais. Tomemos, então, o quadro do reino de Portugal, considerando que, na Europa coeva, o espaço terrestre é ainda intuído de um modo descontínuo. Será gra-dualmente que os europeus se vão apercebendo das continuidades espaciais. A descrição dos lapões, como nervosos, de estatura medíocre, mas possuidores de admirável destreza, na Lappiae Descriptio (1542)15, feita por Damião de Góis16, ou as expedições deste autor por terras dos tártaros, constituem, a este nível, dis-cursos relevantes para a compreensão da forma como se elogiou os que, ainda por terras da Europa, se aventuravam no desconhecido.

É um contemporâneo de Góis, André de Resende, que o enaltece devido ao facto de este ter vivido entre uma tribo de tártaros, onde, como refere, seriam frequentes carnificinas praticadas pelos excessos de paixão17. Já Marco Polo des-crevera a Tartária por ele visitada por volta de 1292. O seu texto corre pela Europa de então, sendo publicado em português por Valentim Fernandes em 1502. Nele também são descritos os excessos de paixão entre os tártaros, nomeadamente quando é referida a prática da justiça18.

Mas retomemos o encontro com o Outro no reino de Portugal e desde já sinalizo Gomes Eanes de Zurara. A 23 de fevereiro de 1453, este cronista escreveu a D. Afonso V, entregando-lhe a crónica da Guiné que redigira, a seu pedido, sobre a figura do Infante D. Henrique. A alteridade, o Outro/o africano, expõe-se ao longo das suas páginas, intervindo, em particular, a voz do autor na descrição da chegada a Lagos dos escravos que haviam sido capturados em terras africa-nas. O quadro impressivo que traçou, podia passar-se noutro qualquer porto, ou mesmo na Lisboa de Quinhentos onde os escravos desempenhavam as mais variadas funções desde o transporte das mercadorias, ao acompanhar os fidalgos, entretendo-os mesmo quando estes passeavam junto ao Tejo.

Zurara transita da “maravilhosa cousa de se ver” tão diferentes gentes, “al-guns de razoada brancura, fermosos e apostos, outros menos brancos, outros tão

14 Vladimir JANKÉLÉVITCH, L’irréversibleet la nostalgie, Paris, Flammarion, 1974, p. 27.15 Damião de GÓIS, Opúsculos Históricos, Porto, Livraria Civilização, 1945, p. 205.16 Ana Paula AVELAR, “Damião de Góis ou como a escrita da História é revisitada pela pena de

um ‘Diplomata’”, in Maria João Pacheco Pereira e Teresa Leonor M. Vale (ed.), Diplomacia e Transmissão Cultural, Lisboa, Fundação das Casas de Fronteira-Althum.com, 2018, pp. 47-58.

17 Citado por Elisabeth Feist HIRSCH, Damião de Góis, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 32.

18 Francisco Maria PEREIRA (ed), Marco Paulo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1922, I, Cap. LXI.

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negros como etíopes”, para o pungente infortúnio de se ver “apartar os filhos dos pais, as mulheres dos maridos os irmãos uns dos outros”19. Zurara descreve os sentimentos, convocando os olhares, e as vozes:

“Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lagrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguar-dando a altura dos ceus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da natureza; outros feriam seu rostro com as palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quaes, posto que as palavras da linguagem aos nossos não podesse ser en-tendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza.”20

O ponto de vista do observador/narrador pontua a descrição da narrativa de viagem; veja-se como Jerónimo Münzer, na sua viagem por Espanha e Portugal entre 1494-1495, ao referir as gentes de Lisboa, salienta a cortesia com que foi recebido na cidade onde então reinava D. João II. Na sua visita ao castelo terá visto “bravíssimos” leões, “tão belos que como nunca até então tinha visto e um mapa-mundo muito bem pintado”, numa tábua muito grande e dourada cujo diâ-metro era de catorze palmos21. As gentes de ambos os sexos eram muito educadas e os mais ricos que encontrou na capital eram geralmente alemães e holandeses. Estes dedicavam-se ao comércio e habitavam preferencialmente a rua Nova que, segundo este alemão, estava construída de acordo com o estilo alemão22. O olhar determina a transmissão do conhecido, efectivando-se uma tradução cultural, cujo referente é o do Eu – observador/narrador.

Detenhamo-nos sobre este conceito, o de tradução cultural, o qual deve ser validado numa dupla noção, a do meio a partir do qual os seus autores tomaram conhecimento com as diferentes sociedades e a da incorporação de um saber com-pósito, onde vários sujeitos participam da construção dessa “ideia-sentimento” que se corporiza através do encontro de agentes de diferentes culturas. Atente-se, por exemplo, no facto de G. Braun e F. Hogenberg na Civitates Orbis Terrarum se terem servido do Elogio da Cidade de Lisboa – Urbis Olisiponis Descriptio (1554) de Damião de Góis para desenhar a cidade (1598).

19 Gomes Eanes de ZURARA, Crónica da Guiné, Porto, Livraria Civilização, 1973, p. 122.20 Ibidem.21 Jerónimo MÜNZER, Viaje por España y Portugal(1494-1495), Madrid, Ediciones Polifemo, 1991,

p. 177.22 Ibidem, 185.

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Além disso, ao reflectir sobre o encontro do Eu e do Outro devemo-nos in-terrogar se se assiste ao uso de uma tipologia descritiva, onde se usa o estereótipo como estratégia narrativa. Tome-se Damião de Góis e a sua Hispania Damiani a Goes equitis Lusitani (Louvain 1544). Este ao debruçar-se sobre os “varões ilustres pelo saber” enaltece os habitantes da Hispânia. Ao fazê-lo o cronista adopta esta categoria como devendo ser intuída a partir de uma interrogação reflexiva onde se aplica a razão intuitiva e o conhecimento. A defesa destes varões habitantes da Hispânia corporiza através do uso estereotípicos os quais são contrapostos aos que teriam sido evocados por Sebastião Münster. Após uma longa enunciação de ilustres varões, Damião de Góis escreve:

“Todos estes, além de alguns mais que por ainda viverem, passo em silêncio, foram da Espanha [Hispânia]. Donde se vê que os nossos nem aprendem tão mal, nem ostentam ciência com palavras e simulação, ou vivem na bárbarie, como no seu “Novo Ptolomeu” [1540] afirma Munstero, que à imitação de Miguel Villanovano, meu desconhecido e neste assunto bastante deficiente, pôs em comparação hispanos e gauleses.

Cuido, porém, que como ensina em Basileia, quis agradar aos franceses de preferência aos [hispanos], pois esta cidade olha a França de todos os lados.”23

23 GÓIS (1945), 106.

Fig. 2 – Georg Braun, Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, 1572, vol. 1, p. [18] (in http://objects.library.uu.nl/reader/index.php?obj=1874-357397&lan

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Este saber construído através da razão intuitiva e conhecimento também transparece na descrição de um Outro, o ameríndio, com o qual este mesmo narrador se cruza na capital de um império, Lisboa. É na Crónica do Felicíssimo rei D. Manuel (Lisboa 1566-1567) que Góis descreve o encontro. Foi em Santos o Velho, no momento em que D. Manuel despachava na ponta do cais de madeira que o rei recebeu três homens oriundos da província de Santa Cruz, os quais eram: “(…) assaz bem dispostos (…) hos quaes vinhã vestidos de pennas, com has façes, beiços, narizes, orelhas cheos de grossos pendentes (…)”24. Através de um língua D. Manuel colocou algumas perguntas e após terem referido serem muito destros no manejo do arco, de imediato se prontificaram para o demonstrar, tomando os seus arcos e atirando a pedaços de cortiça, tão pequenos como a palma da mão, e que boiavam no Tejo, conseguindo acertar em todos.

Já no final do século XVI, pela voz de Luís de Fróis confrontam-se os olhares da Europa de partida - Lisboa - e o da chegada a um Extremo Oriente. No seu Tratado em que se conteêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre a gente de Europa e esta província do Japão…, para além das diferenças físicas contrapõem-se igualmente diferentes formas de estar: “Antre nós quando se toma uma rosa ou cravo cheiroso, primeiro a cheiramos e depois a vemos; os Japões, sem terem conta com o cheiro, se deleitam somente na vista.”25

Num encontro de culturas, precisa-se a diferença dos sentires. Nestes discur-sos do Eu e do Outro explicitam-se os comportamentos de grupo, ora traçando-se diferentes quadros de costumes, ora relatando-se práticas sociais ou diplomáticas; expõe-se a estratificação e hierarquia social, os recursos económicos, as práticas culturais e saberes diferenciados. Este é um tempo construção de uma nova escala onde o global e o local se problematizam.

Atente-se exactamente no facto de as “vozes” narrativas desta Europa re-correrem à semelhança, revelando-nos não só as comunidades locais, mas, muito em particular, os sujeitos autorais. A Lisboa de Jerónimo Münzer é maior que Nuremberg na referência que este autor faz no seu itinerário pela Hispânia (1494-1495). Se este é o espaço ibérico, Portugália surgiria como um breve detalhe no Liber Chronicarum (1493) do seu amigo Hartmann Schedel. Esta Portugália surge idealizada à maneira do registo desenhado de Nuremberg: expõe-se visualmente o que considero ser uma ideo-paisagem.

24 Damião de GÓIS, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1949, I, pp. 131-132.

25 Luis de FRÓIS et all, Europa Japão: um diálogo civilizacional no século XVI, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993, p. 149.

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Contudo, dever-se-á atender ao facto que nesta escrita de viagem se assis-te ao esboço de etno e ideo-paisagens26. As primeiras são construções sociais sobre as comunidades narradas que, apesar de poderem ser modificadas, visam a conservação de propósitos e interesses dos grupos relativamente aos quais foram produzidas e a partir dos quais são disseminadas. Deste modo, decorrem e participam, daquilo que se entende por paisagem, enquanto observação que se constitui como discurso através do qual os grupos sociais se foram historicamente diferenciando, interagindo com a natureza e entre si. Já as segundas, as ideio-pai-sagens, consubstanciam-se tanto nas ideias-imagens como nas suas cristalizações em topoi literários, muitas vezes percorridos pelo encantatório. Mas analise-se como fluíram as etno e as ideo-paisagens de outras escritas de viagem de sobre um Portugal de partida para os espaços extra-europeus.

Constata-se que se vê o(s) Outro(s) em viagem no reino de Portugal, num tempo em que o espaço terrestre é ainda intuído, como já anteriormente se sinalizou, de um de um modo descontínuo. Gradualmente os europeus apreenderam as conti-nuidades espaciais, sendo que o signo da viagem foi um elemento facilitador dessa apreensão de continuidade. Tal aconteceu exactamente com Jerónimo Münzer, o qual descreveu as suas expedições nos anos de 1494 e 1495, isto é, a viagem de Nuremberg a Espanha e Portugal, acompanhado por três jovens filhos de abas-tados comerciantes que falavam tanto italiano como francês – António Herwart de Augsburg, Gaspar Fischer e Nicolas Wolkenstein de Nuremberg. Ele usaria a Deploratio Lappianae Gentis de Damião de Góis ainda que não a identifique27. Münster que tinha considerado no seu Appendix Geographica, incluso na primeira edição da Geographia Universalis (Louvain, 1540) os habitantes da Hispânia, pouco hospitaleiros, retratando-os, segundo Góis, como “imundos vilões, só se fartam com o alheio”28. É certo que o humanista português não deixa de repetidamente de alertar na sua Hispania..., concluída a 20 de Novembro de 1541 e dedicada a Pedro Nânio (1500-1557), que não deseja: “(...) que Munstero, tome as minhas palavras por censura, senão como aviso para de ora avante ser mais cauto e verdadeiro nos seus escritos, pois sei que é homem de bem e tenho com êle certas relações de amizade.”29 Atente-se nos factos de já no distante ano de 1533, Góis ter estado com Münster em Basileia, e de em 1544 o próprio cosmógrafo ter citado “Damião de Portugal”.

26 Arjun APPADURAI, Modernity at Large – Cultural Dimensions of Globalization, Minnesota, University of Minnesota, 1996, p. 33.

27 Luís Filipe BARRETO, Damião de Goes-Oscaminhos de um Humanista, Lisboa, CTT-Correios de Portugal, 2002, p. 50.

28 GÓIS (1945), 114.29 Ibidem.

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A referenciação a um espaço, a Hispânia (acepção dos antigos para a pe-nínsula Ibérica) era objecto dos que visitavam o espaço de partida para os novos mundos e nas diferentes descrições deste espaço não pontuariam unicamente os aspectos negativos que marcariam a referida disputa. Tome-se exactamente outras vozes como a de Jorge de Ehingen, que serviria tanto D. Afonso V de Portugal como Henrique IV de Castela, e que em 1457 pela Hispânia, ou as que se relata-ram a viagem do barão Jaroslav Lev z Rožmitálu a na Blatné (Leo de Rosmithal) cunhado do rei da Boémia, que em 1467, peregrinou pela Hispânia. Sobre esta última digressão, conhecemos dois relatos, o de Gabriel Tetzel de Nuremberg que descreveu a viagem e o de Shascheck, que elaborou as memórias, cujo original não se conhece, chegando até nós uma tradução latina, elaborada por Stanislaw Pavlovsky em 157730.

Estes textos subscrevem a peregrinatio dos seus protagonistas. Jorge de Ehingen, sabendo, em 1458, que se preparava uma ofensiva de D. Afonso V contra o reino de Fez, apresenta-se na corte afonsina, sendo recebido pelo rei. É a curia-lidade da vida na corte que perpassa na sua escrita. Ao chegar ao palácio afirma que encontrou um magnífico salão, rodeado de príncipes e marqueses e muitos senhores e cavaleiros, que lhe falaram afavelmente. O desconhecimento da língua portuguesa levou a que o diálogo se estabelecesse através de gestos, os quais de-nunciaram, segundo o que escreve, a submissão e reverência devida ao momento31. Bem acolhidos pelo monarca, integrariam a expedição afonsina ao Magrebe.

Preparado na arte da guerra, Jorge de Ehingen traçou a sua concisa e sumária etno-paisagem do reino de Portugal, assinalando que em Portugal existiam mui-tos cavaleiros e gente de estirpe, pundonorosa e rica”. Segundo ele, este era um país bem cultivado onde prosperavam frutos variados: requintados vinhos, azeite, açúcar, mel, passas e sal. Este cavaleiro percorreu o reino, visitando belas cidades, castelos e mosteiros, plasmando-se na sua escrita um quadro geral de um reino, visto ser o norte de África o centro primordial da sua narrativa. É a memória individual que se perpetua, ainda que se comece a tecer já o hipostasiar de sujeitos colectivos32, neste caso a acção de Jorge de Ehingen ao serviço de Portugal e a do mouro inimigo.

Por seu turno, Münzer sinalizaria este facto no seu texto, referindo que nesta acção de defesa de Ceuta estariam 800 cristãos, entre os quais se encon-

30 MÜNZER (1991), 132. 31 António MARÍA FABIÉ (ed.), Libros de Antaño. Viajes por España de Jorge de Einghen, del barón

León de Rosmithal de Blatna, de Francisco Guicciardiny de Andrés Navajero, Madrid, Fernando Fe, 1879, p. 31.

32 Fernando CATROGA, Os passos do homem como restolho do tempo – Memória e fim do fim da História, Coimbra, Almedina, 2009, p. 12. Este autor disserta sobre os processos de construção de uma memória.

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travam dois alemães, Jorge de Ehingen, do condado de Wittenberg, o qual tinha sido armado cavaleiro em Jerusalém, e Gregório de Ramseidner, de Saltzburg, cuja memória seria recordada entre os portugueses, pois este último inventara uma eficaz armada de arremesso, conhecida por abrojos33. O facto memorativo é, assim, eficazmente perpetuado.

De igual modo, Gabriel Tetzel sinalizou indirectamente a presença de barão Leo de Rosmithal por terras da Hispânia34. A meticulosidade do registo deve ser assinalada, ainda que se deva atender à mediação de quem escreve este percurso individual. O autor dá-nos a conhecer Leo de Rosmithal e a sua viagem. Repare-se só num exemplo: o modo como é descrito o trato dos escravos na cidade do Porto e atente-se no tom algo impessoal e denotativo deste discurso. O relato começa por afirmar que, existia naquela cidade do Porto muitos infiéis que vendiam escravos que se tinham convertido ao Cristianismo. Alguns destes escravos podiam ser reconhecidos, pois alguns teriam pintado as barbas ou os corpos. Segundo este discurso desde que os exércitos portugueses se aventuraram por terras orientais todos os anos chegavam das mesmas milhares de homens, mulheres e meninos. Estes dois últimos grupos seriam distribuídos pelos vizinhos das cidades domina-das pelos portugueses e os varões adultos vendidos como escravos pelos oficiais do rei, lucrando deste modo o Real Erário. Neste discurso pontua um tom distante, não impressivo35.

Mas retome-se o discurso de Jerónimo Münzer. A civilidade do encontro com D. João II, não mascara, para o olhar atento do físico, a doença do monarca. Como escreveu, quatro vezes se sentou à mesa de D. João II, com ele conversando sobre vários assuntos. Este foi muito afável, chegando mesmo a estreitá-lo nos braços. Todavia, D. João estava com má cor. Situação, que segundo o narrador se verificava desde a morte de seu filho D. Afonso na sequência de uma queda de cavalo. O mal de que o rei padecia, seria, segundo o que corria, hidropisia, doença que o nosso viajante reconheceria pela sua sintomatologia36. Münzer confidenciaria o seu desejo de que Deus concedesse uma longa vida ao monarca, pois considerava D. João era um excelente soberano, um plácido e afável rei, que governava pacificamente, estando sempre atento a quem se lhe dirigia para falar de empresas bélicas ou de navegação. Senhor, que Münzer qualificaria, possuidor de um “engenho peregrino” para negociar e enriquecer, comerciando toda uma diversificada quantidade de produtos.

33 MÜNZER (1991), 187.34 MARÍA FABIÉ (1879), 155-190. 35 Malcolm Henry Ikin LETTS (ed). The travels of Leo of Rozmital through Germany, Flanders,

England, France, Spain, Portugal, and Italy, 1465-1467, London, Hakluyt Society, 1957, pp. 109-118.36 MÜNZER (1991), 167-169.

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O intimismo transparece nas etno-paisagens deste viajante alemão. Veja-se como ele anota o real observado, ainda que sinalizado através dos signos exterio-res. O nosso médico afirmaria, por exemplo, que as pessoas de um e outro sexo em Lisboa são extremamente corteses. É certo que não estamos ainda perante a emergência de um livro de costumes, onde outras culturas, as “de velhos e novos mundos”, se confrontam auxiliando a definição de um “Eu”. Esses livros de costu-mes que surgiriam em meados do século XVI refletiriam, como defendem alguns historiadores, um crescente interesse com as fronteiras geográficas37. Tal será, por exemplo, o caso de Christoph Weiditz e do seu livro de costumes onde a par dos ameríndios, surge a representação, entre outros europeus, do modo como “vão os portugueses e as portuguesas no geral”.

É a semelhança que determina o modo como Jerónimo Münzer elaborou as suas descrições, pois, como escreve, os alemães da Flandres a par de outros residentes em Lisboa, são bastante ricos e residem na Praça e na Rua Nova, esta última construída ao jeito das da Alemanha, aí se encontrando os que se dedicam à mercância38. No itinerário deste nosso físico o encantatório vai, aqui e ali, pon-tuando muitas vezes o discurso a par do registo topográfico dos espaços. Lisboa não é, no seu entender, uma cidade, mas sim três. A primeira é a encimada por um monte altíssimo em cujo cume se situa o castelo do rei. De baixo deste e ladeando as encostas, vislumbram-se as casas, os mosteiros e outros edifícios; a ocidente existe um outro monte cuja parte oriental está povoada e finalmente entre estes dois montes estende-se uma dilatada planície, igualmente povoada, a qual se dis-tende até ao mar. No dizer de Jerónimo Münzer, Lisboa é maior que Nuremberg, sua cidade de adopção, e muito mais populosa visto que em cada casa habitam 3, 4 ou 5 vizinhos39.

37 Andrea McKenzie SATTERFIELD, The assimilation of the marvelous other: Reading Christoph Weiditz’s Trachtenbuch (1529) as an ethnographic document, Graduate Theses and Dissertations, 2007. In http://scholarcommons.usf.edu/etd/2353 (consultado a 24/04/2019), p. 26.

38 MÜNZER (1991), 183.39 Ibidem, 171.

Fig. 3 – Georg Braun, Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, 1572, vol. 1, p. [123] (in http://objects.library.uu.nl/reader/index.php?obj=1874-357397&lan

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Mas se o tom é frequentemente encantatório, o mesmo deriva, muitas vezes, do contacto com o diferente, proveniente de tão longínquas paragens, como as africanas. Veja-se como, ao assinalar as distâncias entre Évora, Serpa e Sevilha o nosso viajante referencia que em Évora, à porta da Igreja de S. Brás, teria visto a pele de uma serpente que viera da Guiné a qual media de longitude, como regista, 30 palmos e teria a grossura de um homem. Em Münzer ainda persiste, aqui e ali a antropomorfização do registo de uma medida, nomeadamente quando o seu discurso ganha um tom impressivo, não deixando de inscrever a sua narrativa nos Antigos. Tal acontece, por exemplo, quando refere o facto de esta serpente ter sido morta com dardos em brasa e de, segundo a informação recolhida, as serpentes lutarem com elefantes, usando os anelos, para comprimir as suas vítimas40. Não estamos perante a verbalização de uma ideo-paisagem classizante, ainda que a mesma possa, talvez, ter fluído no discurso do nosso médico alemão, mas assu-midamente confrontamo-nos com a sua etno-paisagem, transmissora de um real.

Em suma, os “artefactos dos novos mundos” constituem-se como actos fun-dadores do que Foucault identificou como interventores de uma fenomenologia histórica41. Eles participam destas modelações de escritas sobre um Portugal de partida. Nestas vozes de um mundo conhecido, o europeu, numa diversidade intuída de um modo descontínuo, transmite-se memorativamente o real através daquelas que são as etno-paisagens autorais do cavaleiro Jorge de Ehingen, de Gabriel Tetzel, presumível secretário de Leo de Rosmithal, ou de Jerónimo Münzer.

Não se vislumbra ainda nestes discursos ideo-paisagens, entendidas como representações ideais da realidade, onde um passado de uma efémera grandeza, se contrapõe à triste decadência do presente. Mas, estes são relatos de percursos au-torais, que visam perpetuar uma memória individual. Contudo, como textos que participaram da construção de um discurso de e sobre um império eles fluíram na historicidade das suas seculares ideo-paisagens imperiais.

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40 Ibidem, 165-167.41 Michel FOUCAULT, L’archeologie du Savoir, Paris, Éditions Gallimard, 1969, p. 269.

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