missão histórica de maneira mais efetiva, fazendo frente...

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Nota: Este livro foidigitalizado por Liliane Vieira moraes e revisto pela seção braille da Universidade Federal do Pará, para uso exclusivo de pessoas com deficiência visual. Nota2: A numeração encontra-se no roda-pé da página Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Pablo Gentili (org.). 4ª ed. Petrópolis, RJ. Vozes, 2002. SUMÁRIO 1 Democracia e mercados na nova ordem mundial, 7 Noam Chomsky 2 Globalidade, neoliberalismo e democracia, 46 Pablo González Casanova 3 Dimensões da globalização e a dinâmica das (des)igualdades, 63 Goran Therborn 4 Ideologia da globalização e (des)caminhos da ciência social, 96 Miriam Limoeiro-Cardoso 5 Globalização da política - Mitos, realidades e dilemas, 128 José Maria Gómez 6 Novas formas da pobreza da América Latina, 180 Pierre Salama 7 A reestruturação capitalista e o sistema-mundo, 223 Immanuel Wallerstein p. 5 p. 6 [vazia] 1 - Noam Chomsky Democracia e mercados na nova ordem mundial Existe uma imagem convencional quanto à nova era em que estamos entrando e às promessas que ela implica. Essa imagem foi formulada com clareza pelo assessor de Segurança Nacional, Anthony Lake, quando apresentou a Doutrina Clinton em setembro de 1993: "Durante a Guerra Fria nós contivemos a ameaça global contra as democracias de mercado: agora deveríamos cuidar de ampliar o alcance delas". O "novo mundo" que se descortina perante nós "apresenta imensas oportunidades" para avançar no sentido de "consolidar a vitória da democracia e dos mercados abertos", acrescentou um ano depois. 1. A "verdade duradoura" As temáticas são mais profundas do que a Guerra Fria, disse Lake. A "verdade duradoura" é que a nossa defesa da liberdade e da justiça contra o fascismo e o comunismo foi apenas uma fase numa história de dedicação visando "uma sociedade tolerante, na qual líderes e governos existem, não para usar e abusar das pessoas, mas para lhes prover com liberdade e oportunidades". Essa é a "cara constante" do que os Estados Unidos têm feito no mundo e "a idéia" que estamos "defendendo" novamente na atualidade. É na "verdade duradoura sobre esse novo mundo" que podemos desempenhar a nossa p. 7

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Nota: Este livro foidigitalizado por Liliane Vieira moraes e revisto

pela seção braille da Universidade Federal do Pará, para uso exclusivo de

pessoas com deficiência visual.

Nota2: A numeração encontra-se no roda-pé da página

Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova

ordem mundial. Pablo Gentili (org.). 4ª ed. Petrópolis, RJ. Vozes, 2002.

SUMÁRIO

1 Democracia e mercados na nova ordem mundial, 7

Noam Chomsky

2 Globalidade, neoliberalismo e democracia, 46

Pablo González Casanova

3 Dimensões da globalização e a dinâmica das (des)igualdades, 63

Goran Therborn

4 Ideologia da globalização e (des)caminhos da ciência social, 96

Miriam Limoeiro-Cardoso

5 Globalização da política - Mitos, realidades e dilemas, 128

José Maria Gómez

6 Novas formas da pobreza da América Latina, 180

Pierre Salama

7 A reestruturação capitalista e o sistema-mundo, 223

Immanuel Wallerstein

p. 5

p. 6 [vazia]

1 - Noam Chomsky

Democracia e mercados na nova ordem mundial

Existe uma imagem convencional quanto à nova era em que estamos

entrando e às promessas que ela implica. Essa imagem foi formulada com

clareza pelo assessor de Segurança Nacional, Anthony Lake, quando

apresentou a Doutrina Clinton em setembro de 1993: "Durante a Guerra Fria

nós contivemos a ameaça global contra as democracias de mercado: agora

deveríamos cuidar de ampliar o alcance delas". O "novo mundo" que se

descortina perante nós "apresenta imensas oportunidades" para avançar no

sentido de "consolidar a vitória da democracia e dos mercados abertos",

acrescentou um ano depois.

1. A "verdade duradoura"

As temáticas são mais profundas do que a Guerra Fria, disse Lake. A

"verdade duradoura" é que a nossa defesa da liberdade e da justiça contra

o fascismo e o comunismo foi apenas uma fase numa história de dedicação

visando "uma sociedade tolerante, na qual líderes e governos existem, não

para usar e abusar das pessoas, mas para lhes prover com liberdade e

oportunidades". Essa é a "cara constante" do que os Estados Unidos têm

feito no mundo e "a idéia" que estamos "defendendo" novamente na

atualidade. É na "verdade duradoura sobre esse novo mundo" que podemos

desempenhar a nossa

p. 7

missão histórica de maneira mais efetiva, fazendo frente aos "inimigos da

sociedade tolerante" - à qual sempre fomos dedicados - que continuam de

pé, deslocando-nos da "contenção" para o "engrandecimento". Felizmente

para o mundo, a única superpotência é, "por certo", única na história no

sentido de que "não estamos procurando expandir o alcance das nossas

instituições mediante força, subversão ou repressão", mas utilizando

persuasão, compaixão e meios pacíficos.

Os comentaristas ficaram devidamente impressionados com essa lúcida

"visão de política exterior". Tal ponto de vista domina o discurso

público e acadêmico de tal maneira, que é supérfluo contrastá-lo com a

realidade. Sua temática básica foi possivelmente expressa de forma mais

sucinta pelo diretor do Instituto Olin para Estudos Estratégicos, de

Harvard, na revista acadêmica International Security: os Estados Unidos

têm de manter a sua "primazia internacional" em benefício do

mundo,explicava Samuel Huntington, porque, caso único entre as nações,

sua "identidade nacional está definida por uma série de valores políticos

e econômicos universais",particularmente "liberdade, democracia,

igualdade, propriedade privada e mercados"; "a promoção da democracia, os

direitos humanos e os mercados são [sic] muito mais importante para a

política americana do que para a política de qualquer outro país”.

Sendo isso uma questão de definição - segundo ensina a Ciência de

governo - podemos poupar-nos da enfadonha tarefa do confronto empírico.

Sensata providência. Uma indagação revelaria logo que a imagem

convencional apresentada por Lake tem grau de verdade entre duvidoso e

falso em todos os aspectos cruciais, salvo um: ele tem razão em instar-

nos a olhar para a história a fim de descobrir as "verdades duradouras"

no que diz respeito a certas estruturas institucionais e levá-las a sério

quando consideramos o futuro provável,

p.8

quando essa estrutura fica essencialmente sem modificações e livre para

operar com poucas restrições (constraint). Uma revisão honesta sugere que

"esse novo mundo" poder-se-ia caracterizar por uma acentuada mudança da

"contenção" para o "engrandecimento", embora não exatamente no sentido

que Lake e o coro de seguidores tentam fazer-nos entender. Adotando uma

retórica ligeiramente diferente da Guerra Fria, o que estamos vendo em

processo de evolução é uma mudança da "contenção" da ameaça duma

democracia e de mercados que funcionam, para uma campanha visando "fazer

retroceder" (roll bacK) o que se avançou ao longo dum século de lutas

freqüentemente amargas.

Não há espaço aqui para revisar a "face constante" do poder norte-

americano, mas poderia ser útil ver alguns casos típicos que ilustram

estruturas e são bastante gerais e instrutivos quanto a eventuais

desenvolvimentos futuros.

Primeiro, uma verdade metodológica trivial. Se quisermos aprender

algo sobre os valores e objetivos dos líderes soviéticos, observamos o

que eles fizeram dentro de seus âmbitos de poder. O mesmo curso será

seguido por um analista racional que queira aprender a respeito dos

valores e objetivos da liderança americana e do mundo que procuraram

criar. Os contornos desse mundo foram delineados pela embaixadora dos EUA

nas Nações Unidas, Madeleine Albright, bem ao tempo em que Lake elogiava

"nosso histórico compromisso" com os princípios pacifistas. Ela informou

ao Conselho de Segurança que duvidava da resolução encaminhados pelos

Estados Unidos relativa ao Iraque: os Estados Unidos continuarão a agir

de maneira "multilateral, quando pudermos, e unilateral,quando tivermos

de fazê-lo". Faça o seu jogo como bem quiser,mas no mundo real "se faz o

que nós dizemos" (What we say goes), como expressava o presidente

p.9

Bush, enquanto uma chuva de bombas e mísseis caía sobre o Iraque. Os

Estados Unidos têm o direito de agir unilateralmente - instruía a

embaixadora Albright,dirigindo-se ao errado Conselho - porque "nós

reconhecemos [o Oriente Médio] como vital para os interesses nacionais

norte-americanos". Não é preciso maior concessão de autoridade.

De fato, o Iraque seria um bom exemplo para ilustrar as "verdades

duradouras" do mundo real, mas é mais instrutivo voltar o olhar para a

região onde os Estados Unidos têm tido a maior liberdade para agir a seu

bel-prazer, de sorte que os valores e objetivos da liderança política e a

sua versão do “interesse nacional" que representa são exibidos com toda

clareza. Voltemos para a "nossa pequena região logo ali, com a qual nunca

ninguém se incomodou", como o secretário de guerra Henry Stimson definiu

o hemisfério sul no fim da Segunda Guerra Mundial, enquanto explicava que

todos os sistemas regionais devem ser desmantelados - à exceção do

nosso,que deve ser estendido; uma posição perfeitamente razoável, visto

que "o que era bom para nós era bom para o mundo" e tudo o que fazemos é

"parte da nossa obrigação para com a segurança do mundo".

O direito dos Estados Unidos de agirem unilateralmente e controlarem

essas regiões à sua escolha é único, como cabe à única potência que está

"definida" pela sua dedicação a tudo o que é bom. A tentativa do Japão de

mimetizar a Doutrina Monroe na sua "pequena região" causou a Segunda

Guerra Mundial no Pacífico e a Guerra do Golfo foi uma reação à proposta

de Saddam Hussein de que os assuntos de outra região "vital para os

interesses norte-americanos" fossem conduzidos por uma organização

regional. Dentro da "nossa pequena região" a organização que nós

certamente dominamos está autorizada a funcionar, mas dentro de limites.

Se os

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latino-americanos "tentarem usar irresponsavelmente de sua força numérica

na OEA", explicava John Dreier em seu estudo da organização, "se levarem

ao extremo a sua doutrina da não-intervenção, se não deixarem para os

Estados Unidos outra alternativa senão a de agirem unilateralmente para

se proteger a si mesmos,terão então destruído não só a base da cooperação

hemisférica para o progresso, mas toda esperança dum futuro seguro para

eles próprios". Os Estados Unidos terão de agir "unilateralmente quando

se virem obrigados a fazê-lo". Essas condições ainda estão vigentes nos

limites extremos da tolerância, sob a política de boa vizinhança, de

Franklin Delano Roosevelt, que traziam "uma obrigação implícita de

reciprocidade", segundo enfatizou o funcionário do Departamento de Estado

para a América Latina, Robert Woodward:"a aceitação duma ideologia

estranha num governo do continente americano obrigaria os Estados Unidos

a tomarem medidas defensivas" unilateralmente. Nem é preciso dizer que

mais ninguém tem esse direito, em particular, nenhum direito de defender-

se dos Estados Unidos e da sua "ideologia", que não são "estrangeiros"

mas, de fato, apenas a vindicação de objetivos que qualquer pessoa

razoável haverá de procurar.

A dedicação visando as "verdades duradouras" abrange todo o leque.

No extremo dissidente, o historiador e assessor do presidente Carter para

América Latina, Robert Pastor, escreve que os Estados Unidos querem que

outras nações "ajam de maneira independente, exceto quando isso afetar

adversamente os interesses norte-americanos";os Estados Unidos nunca

quiseram "controlá-las", desde que elas não "fiquem fora do controle".

Ninguém pode, portanto, acusar a liderança dos Estados Unidos de estar

preocupada com outra coisa salvo "o bem do mundo", incluindo a plena

liberdade para agir como nós determinamos. Se os nossos tutelados (wards)

usam

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a liberdade que lhes concedemos com insensatez, temos então todo o

direito de responder unilateralmente em autodefesa, embora as opiniões

variem quanto às decisões táticas corretas, o que gera as divisões entre

"pombas" e "falcões".

Sem dúvida, a região centro-americana caribenha é a que reflete mais

claramente "a idéia" com a qual o poder norte-americano está mais

comprometido, assim como os satélites da Europa Oriental revelavam os

objetivos e valores do Kremlin. Essa região, rica em recursos e

potenciais..., é uma das principais regiões de horror no mundo. Durante

os anos da década de oitenta ela foi novamente cenário de terríveis

atrocidades, quando os Estados Unidos e seus clientes deixaram esses

países devastados - talvez tomando inviável uma possível recuperação -,

cobertos por centenas de milhares de corpos torturados e mutilados. As

guerras terroristas promovidas e organizadas por Washington visaram em

grande parte a Igreja, que ousara adotar "a opção preferencial pelos

pobres" e, portanto, era preciso ensinar-lhe as lições habituais por

desobediência criminosa. Quase não surpreende que essa década

horripilante começasse com o assassinato dum arcebispo e terminasse com o

massacre de seus líderes intelectuais jesuítas, em ambos os casos por

forças armadas e treinadas por Washington. Nos anos que medeiam entre

ambos os eventos, essas forças arrasaram toda a região, acumulando um

horroroso recorde, incluídos agressão e terror condenados pela Corte

Mundial de Justiça, em decisão que foi desconsiderada com um gesto de

irritação e desprezo por Washington e pela opinião intelectual, de modo

geral. A mesma sorte coube ao Conselho de Segurança e à Assembléia Geral

das Nações Unidas, cujos chamamentos em favor da adesão à lei

internacional mal mereceram registro. Afinal de contas, um juízo

razoável. Por que deveria dar-se atenção àqueles que

p. 12

sustenta a ridícula idéia de que a lei internacional ou os direitos

humanos poderiam ser levados em consideração por um poder que sempre tem

rejeitado "a força,a subversão ou ;a repressão", e que, por definição,

adere ao princípio de que “governos não existem para usar ou abusar das

pessoas, mas para prover-lhes com liberdade e oportunidades"? A "verdade

duradoura" foi bem formulada por um distinto homem de estado há dois

séculos: "Grandes almas importam-se pouco com pequenas moralidades".

Um olhar para aquela região nos mostra muita coisa sobre nós mesmos.

Mas essas são lições falsas e, portanto, excluídas do discurso

respeitável. Uma outra lição equivocada, e pela mesma razão

necessariamente condenada ao mesmo destino, é que a Guerra Fria pouco

teve a ver com isso tudo, além de fornecer pretextos. As políticas foram

as mesmas ,antes da Revolução Bolchevique e têm continuado sem alterações

a partir de 1989. Sem uma "ameaça soviética" Woodrow Wilson invadiu o

Haiti (e a República Dominicana), desmontando o sistema parlamentar,

porque este se recusou ;a adotar uma constituição "progressista" que

permitisse aos norte-americanos apossar-se das terras do Haiti, matando

milhares de camponeses, restaurando virtualmente a escravidão e deixando

o país nas mãos dum exército terrorista, transformado em plantação norte-

americana e posteriormente em plataforma de exportação para "empresas de

ensamblagem", sob condições miseráveis. Depois de sua desafortunada e

rapidamente encerrada experiência de democracia, o sistema tradicional

foi restaurado com assistência norte-americana, no mesmo momento em que

Lake anunciava a Doutrina Clinton, apresentando o Haiti como o exemplo

primordial da nossa pureza moral. Noutros lugares as políticas também

continuaram sem mudança essencial após a queda do Muro de

p. 13

Berlim, à qual seguiu-se com intervalo de poucas semanas a invasão do

Panamá a mando de Bush, para restituir o poder a uma corriola de

banqueiros europeus e narcotraficantes,com as conseqüências previsíveis

num país que ficou submetido à ocupação militar, aceita pelo mesmo

governo títere encarapitado no poder pela força norte-americana.

Ainda há muito a dizer sobre esses assuntos. Mas vejamos um caso que

talvez seja ainda mais revelador e que também ilustra a relevância

marginal da Guerra Fria em relação às atitudes tradicionais norte-

americanas diante da democracia e dos direitos humanos. Voltarei aos

"mercados livres" mais tarde.

O exemplo que sugiro analisar é o do Brasil, descrito em décadas

anteriores como "o colosso do sul", um país com enormes riquezas e

vantagens e que deveria ser um dos mais ricos do mundo. "Não há no mundo

melhor território para a exploração do que o Brasil", observou o Wall

Street Journal há 70 anos. Na época os Estados Unidos cuidavam de

deslocar seus principais inimigos, França e Inglaterra, embora estes

conseguiram ficar até a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos

deram conta de excluí-los da região e apossar-se do Brasil como uma "área

de experimentação para métodos modernos de desenvolvimento industrial",

nas palavras duma muito reputada monografia escolástica sobre as relações

Estados Unidos – Brasil, escrita pelo historiador e diplomata Gerald

Haines, que também é prestigioso historiador da Cia. Esse foi elemento

componente dum projeto global, onde os Estados Unidos "assumiram por

interesse próprio a responsabilidade, visando o bem-estar do sistema

capitalista mundial" (Haines). Desde 1945, a "área de experimentação" tem

sido favorecida por intensa orientação e tutela dos Estados Unidos. O

resultado é "uma verdadeira história

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de sucesso americano"; "as políticas americanas para o Brasil têm tido

enorme êxito", gerando "um crescimento econômico impressionante, baseado

solidamente no capitalismo“, um testemunho dos nossos objetivos e

valores.

O sucesso é real. Os investimentos e ganhos norte-americanos

floresceram e a pequena elite se deu maravilhosamente bem; um "milagre

econômico", no sentido técnico desse termo. Até 1989, o crescimento

brasileiro superou com vantagem o do Chile - muito elogiado - que ora é o

aluno-estrela, pois o Brasil sofreu um colapso e com isso mudou

automaticamente de triunfo de uma democracia de mercado para amostra dos

fracassos do estatismo, se não marxismo - uma transição realizada sem

esforços e de forma rotineira dentro do sistema doutrinal, conforme as

circunstâncias exigirem.

Enquanto isso, no apogeu do milagre econômico, a esmagadora maioria

da população situava-se entre as mais miseráveis do mundo, e teria

considerado a Europa Oriental como um paraíso - fato que também ensina

lições erradas, e que portanto é suprimido com disciplina impressionante,

juntamente com outros semelhantes.

A história do sucesso para investidores estrangeiros e uma fração da

população refletem os valores por que se norteiam os tutores e

realizadores dessa política. Seu objetivo, como descrito por Haines,

consistia em "eliminar toda competência estrangeira" da América Latina, a

fim de "manter a área como um mercado importante para o surplus da

produção industrial norte-americana e investimentos privados e explorar

as amplas reservas de matérias-primas e manter afastado o comunismo

internacional". A última frase é simplesmente um ritual; como assinala

Haines, a inteligência norte-americana não pôde encontrar nenhum indício

de que

p. 15

o "comunismo internacional" tenha tentado "se meter", mesmo se isso

tivesse sido uma possibilidade.

No entanto, embora o "comunismo internacional" não fosse um

problema, o "comunismo" certamente o foi, se entendermos o termo no

sentido técnico da cultura da elite. Esse sentido foi incisivamente

esclarecido por John Foster Dulles numa conversa particular com o

presidente Eisenhower, que observara tristemente que no mundo todo os

comunistas locais desfrutavam de vantagens injustas. Eles tinham

condições de "apelar diretamente para as massas", queixava-se Eisenhower.

É um recurso "que nós não podemos imitar", acrescentou Dulles, explicando

por quê: "Eles apelam para os pobres, e estes sempre quiseram roubar aos

ricos". Nós achamos difícil "apelar diretamente para as massas", em vista

do nosso princípio de que os ricos têm de roubar aos pobres, um problema

de relações públicas que fica sem solução.

Nesse sentido - operativo - os comunistas grassam, e nós temos de

proteger "a sociedade tolerante" de seus abusos e crimes, assassinando

sacerdotes, torturando organizadores sindicais, matando camponeses e

perseverando, por outros meios, em nossa vocação gandhiana.

O problema existia mesmo antes de o termo "comunista" ficar

disponível para rotular os hereges. Nos debates de 1787 sobre a

Constituição Federal, James Madison observou que "na Inglaterra, nos dias

atuais, se as eleições fossem abertas para todo tipo de pessoa, a

propriedade dos donos de terras perigaria. Logo seria feita uma lei

agrária". Para impedir tal injustiça, "nosso governo deve garantir os

interesses permanentes do país contra a inovação",estabelecendo pesos e

contrapesos para "proteger a minoria dos opulentos contra a maioria". É

preciso bastante talento para não perceber que

p. 16

essa "verdade duradoura" tem sido o "interesse nacional" desde então e

até hoje, e que a "sociedade tolerante" reconhece o direito de sustentar

esse princípio "unilateralmente sem nos forçarem", e com extrema

violência se necessário for.

A lamentação de Dulles é persistente nos documentos internos. Daí

que, em julho de 1945, quando Washington "assumiu por interesse próprio à

responsabilidade pelo sistema capitalista mundial", uma ampla

investigação dos departamentos de Estado e Guerra advertiu para uma

"crescente maré em nível mundial, na qual as pessoas comuns aspiram a

horizontes mais altos e amplos". A Guerra Fria não foi irrelevante para

esse panorama ominoso. O estudo adverte - ainda que a Rússia não tenha

dado sinais do crime - que ela "não (cria flertado com a idéia" de apoiar

essas aspirações das pessoas comuns. Temos de agir, conseqüentemente, de

forma direta, a fim de conter a ameaça às democracias de mercado, segundo

entendemos a noção. De fato, o Kremlin juntou-se alegremente ao capo em

chefe da Máfia na destruição das aspirações da gente comum, em "nossa

pequena região" e noutras partes. Mas nunca podemos estar certos, e a

mera existência duma força "fora de controle" ofereceu um espaço perigoso

para o não-alinhamento e a independência - o que é uma parte do

significado real da Guerra Fria.

Por certo, a URSS foi culpada de outros crimes. Washington e seus

aliados estavam profundamente preocupados com o fato de suas dependências

tradicionais ficarem impressionadas com o desenvolvimento soviético (e

chinês),particularmente na comparação com "histórias de sucesso" como a

do Brasil; os disciplinados intelectuais ocidentais possivelmente não são

capazes de compreender isso, mas os camponeses terceiro-mundistas podem.

A assistência econômica do bloco soviético foi considerada também uma

séria

p. 17

ameaça, à luz das práticas ocidentais. Consideremos a índia como exemplo.

Sob o domínio britânico, caiu em decadência e miséria, mas algum

desenvolvimento começou depois da saída dos britânicos. Isso, no entanto,

não ocorreu na indústria farmacêutica, onde as empresas multinacionais

(em sua maioria britânica) auferiram ganhos enormes na índia mediante

preços muito altos, aproveitando seu monopólio de mercado. Com a ajuda da

Organização Mundial da Saúde e do Unicef, a índia começou a escapar

desses controles, mas a produção de medicamentos por parte do setor

público foi finalmente estabelecida com tecnologia soviética. Isto

resultou numa redução radical nos preços dos medicamentos; para alguns

antibióticos os preços caíram em até 70 por cento, obrigando as

multinacionais a baixarem seus preços. Mais uma vez a malícia soviética

minara a democracia de mercado, permitindo que milhões de pessoas na

índia sobrevivessem a enfermidades. Felizmente, tendo o criminoso ido

embora e o capitalismo voltado triunfante, as multinacionais estão

voltando a ter o controle, graças, recentemente, às características

fortemente protecionistas do último tratado do Gatt; daí que talvez

possamos esperar um acentuado incremento na mortalidade, acompanhado de

crescentes lucros para a "minoria opulenta", em cujos "interesses

permanentes" os governos democráticos têm de se empenhar.

A história oficial é que o Ocidente ficou estarrecido com o

stalinismo, devido às suas horrendas atrocidades. Não é possível levar a

sério essa alegação nem por um instante, como tampouco as alegações

semelhantes quanto aos horrores do fascismo. Moralistas ocidentais têm

tido pouca dificuldade em associar-se a assassinos em grande escala e

torturadores, de Mussolini e Hitler a Suharto e Saddam Hussein. Os crimes

de Stálin pouco preocupavam. O presidente

p. 18

Truman gostava do brutal tirano e admirava-o, considerando-o "honesto" e

astucioso como o diabo. Truman achava que a morte de Stálin seria uma

"verdadeira catástrofe".Podia "entender-se" com ele, enquanto os Estados

Unidos impunham seus interesses 85% das vezes, frisava Truman: o que se

passava dentro da URSS não era da sua conta. Outras figuras dirigentes

concordavam. Em reuniões dos três grandes, Churchill elogiava Stálin como

"um grande homem, cuja fama estendeu-se não só na Rússia inteira, mas no

mundo todo", e falava amavelmente da sua relação de "amizade e

intimidade" com aquela estimável criatura: "minha esperança", dizia

Churchill, "reside no ilustre presidente dos Estados Unidos e no Marechal

Stálin, nos quais encontraremos os campeões da paz; depois de abaterem o

inimigo nos conduzirão na tarefa de lutar contra a pobreza, a confusão, o

caos e a opressão". "O Premier Stálin era uma pessoa de muito poder, em

quem eu depositava total confiança", disse Churchill ao seu gabinete em

conversa privada em fevereiro de 1945, após Yalta; e acrescentou que era

importante que permanecesse no poder. Churchill ficou particularmente

impressionado com o apoio de Stálin à sanguinária repressão à resistência

antifascista grega, liderada pelos comunistas, que foi um dos episódios

brutais da campanha mundial dos libertadores visando restaurar as

estruturas básicas e relações de poder dos inimigos fascistas, enquanto

dispersavam ou destruíam a resistência, com suas tendências democráticas

radicais e sua incapacidade de compreender os direitos e necessidades da

"minoria opulenta".

Voltando ao Brasil, durante os primeiros anos da década de sessenta,

o experimento americano defrontou-se com um problema já familiar: a

democracia parlamentar.Para remover o impedimento, o governo de Kennedy

preparou as bases para um golpe militar; este instituiu um regime de

torturadores

p. 19

e assassinos que entenderam as "verdades duradouras". O Brasil é um dos

países de maior importância e o golpe teve um significativo efeito

dominó. A praga da repressão se estendeu a partir do Colosso do sul

através de todo o continente, com apoio e envolvimento constante dos

Estados Unidos. O objetivo foi descrito com precisão por Lars Schoultz,

reconhecido especialista acadêmico americano em direitos humanos e

política exterior norte-americana na América Latina:“destruir de vez uma

ameaça percebida para a estrutura existente de privilégio socioeconômico,

mediante a eliminação da participação da maioria numérica..." Novamente,

a Guerra Fria não tinha quase nada a ver com isso. E, como sempre, a URSS

ficou muito contente em colaborar com os assassinos mais depravados,

embora por razões absolutamente cínicas tenha oferecido às vezes

assistência a pessoas que tentavam defender-se do subjugador hemisférico,

e serviu como fator dissuasivo contra a implementação total da violência

norte-americana - um dos poucos casos autênticos de dissuasão, mas que

por algum motivo é objeto de preeminência em tantos estudos mesurados

sobre a teoria da dissuasão.

Conforme a doutrina convencional, mediante a derrocada do regime

parlamentar em nossa "área privativa" e instalando um Estado de Segurança

Nacional governado por generais neonazistas, os governos de Kennedy e

Johnson - no apogeu do liberalismo americano - estavam "contendo a ameaça

mundial às democracias de mercado". Eis a tese que devíamos entoar com

apropriada solenidade. E na época o assunto foi assim apresentado,

levantando poucos escrúpulos detectáveis. O golpe militar foi "uma grande

vitória para o mundo livre", explicou o embaixador de Kennedy, Lincoln

Gordon, antes de virar presidente duma grande universidade. O golpe foi

deflagrado "para preservar e não para destruir a democracia brasileira".

com efeito, tratou-se do "caso mais

p. 20

decisivo de vitória da liberdade em meados do século XX”, que deveria

"criar um clima bem melhor para os investimentos privados" - daí que

continha uma ameaça para a democracia de mercado, em certo sentido do

termo.

Essa concepção de democracia é amplamente aceita. Nos Estados

Unidos, seus habitantes são "intrusos intrometidos e ignorantes" que

podem ser "espectadores" mas não "participantes em ação", afirmava Walter

Lippman em seus ensaios progressistas sobre a democracia. No outro lado

do leque, estadistas reacionários da variedade dos reaganistas recusam-

lhes mesmo o papel de espectadores: daí a sua dedicação sem precedentes à

censura e a operações clandestinas que são decretas apenas para o inimigo

doméstico. A "grande besta", como Alexander Hamilton chamava o temido e

odiado inimigo público, tem de ser domesticada ou enjaulada, se o governo

quiser garantir "os interesses permanentes do país".

As mesmas "verdades duradouras" são aplicáveis aos nossos clientes

estrangeiros, por certo com muito mais vigor, posto que suas limitações

são muitas menores. A sua prática constante demonstra isso com brutal

clareza.

A tradicional oposição norte-americana à democracia é compreensível

e às vezes reconhecida com justa nitidez. Veja-se a década dos oitenta,

quando os Estados Unidos empenharam-se numa "cruzada pela democracia",

especialmente na América Latina, segundo a doutrina corrente. Alguns dos

melhores estudos desse projeto -um livro e diversos artigos são de Thomas

Carothers, que combina o enfoque do historiador com o do indivíduo bem

informado. Ele esteve no Departamento de Estado no mandato de Reagan,

envolvido nos programas para "auxiliar a democracia" na América Latina.

Esses programas foram "sinceros", escreve Carothers, mas cm grande parte

um fracasso - um fracasso estranhamente

p. 21

sistemático. Onde a influência norte-americana era menor, o progresso foi

maior: no Cone Sul da América Latina, onde houve um progresso real ao

qual opuseram-se os reaganistas, estes se atribuíram o crédito pelo

avanço, quando não conseguiram impedi-lo. Onde a influência norte-

americana foi maior - na América Central - o progresso foi menor. Lá,

Washington "procurou inevitavelmente apenas formas limitadas de mudança

democrática, e de cima para baixo, que não pusessem em risco as

estruturas tradicionais de poder, às quais os Estados Unidos têm estado

aliados há muito tempo", escreve Carothers. Os Estados Unidos procuraram

manter "a ordem básica de... sociedades bem pouco democráticas" e evitar

"mudança baseada no populismo", que poderia transtornar "ordens

econômicas e políticas estabelecidas" e abrir "um rumo de esquerda".

É isto precisamente o que estamos vendo agora mesmo no modelo

essencial de Lake, se decidirmos abrir nossos olhos. No Haiti, o

presidente eleito foi autorizado a regressar depois de as organizações

populares terem sido submetidas a uma dose suficiente de terror, mas

somente após ele ter aceitado um programa econômico ditado pelos Estados

Unidos, estipulando que "o Estado renovado deve voltar-se para uma

estratégia econômica visando à energia e iniciativa da sociedade civil,

especialmente do setor privado, tanto nacional quanto internacional".

Investidores norte-americanos são o núcleo da sociedade civil haitiana,

junto com os ricaços que apoiaram o golpe de estado, mas não os

camponeses e habitantes dos guetos que escandalizaram Washington criando

uma sociedade civil tão viva e vibrante que foi capaz de eleger um

presidente e entrar para a arena pública. Esse desvio das normas

aceitáveis foi superado da maneira habitual, com ampla cumplicidade

norte-americana; por exemplo,mediante a decisão dos governos Bush e

Clinton de permitir a Texaco o envio de petróleo para os líderes

golpistas, violando as sanções

p. 22

-fato crucial revelado pela Associated Press no dia prévio ao desembarque

de tropas norte-americanas, mas que unida precisa passar pelos portais

dos meios nacionais.O “Estado renovado" voltou à normalidade, seguindo as

políticas apoiadas pelo candidato de Washington nas eleições de 1990 que

"ficaram fora de controle", nas quais ele recebeu 14% dos votos.

As mesmas "verdades duradouras" são válidas para o pior violador dos

direitos humanos no hemisfério, que – sem causar surpresa alguma a quem

quer que conheça a história - recebe a metade de toda a ajuda militar

norte-americana nesse mesmo hemisfério: Colômbia. Aqui é elogiada como

sendo uma democracia excepcional e descrita por um grupo de direitos

humanos dos jesuítas - que tenta funcionar apesar do terror - como uma

"democra-dura", termo de Eduardo Galeano para a mistura de formas

democráticas e terror totalitários, favorecida pela "sociedade tolerante

realmente existente ", quando a democracia ameaça "ficar fora de

controle".

2. Democracia, mercados e direitos humanos

No mundo real, democracia, mercados e direitos humanos estão sob

sério ataque em muitos lugares do planeta, inclusive nas mais importantes

democracias industriais. Além do mais, a mais poderosa delas - Estados

Unidos – encabeça o ataque. E, no mundo real, os Estados Unidos nunca

apoiaram mercados livres, desde os primórdios da sua história até os anos

de Reagan, quando estabeleceram novos padrões de protecionismo e

intervenção estatal na economia, ao contrário de muitas ilusões.

O historiador de economia Paul Bairoch salienta que "a escola moderna de

pensamento protecionista... nasceu com efeito nos Estados Unidos", que

foram o “país padrinho e baluarte

p. 23

do protecionismo moderno". Mas os Estados Unidos não estiveram sozinhos.

A Grã-Bretanha seguia um curso semelhante antes deles, voltando-se para o

livre-câmbio só depois de que 150 anos de protecionismo lhe haviam

conferido tão enormes vantagens que "iguais condições competitivas"

pareciam estar garantidas, e abandonando essa posição quando a

expectativa não mais foi satisfeita. Não é fácil achar uma exceção. O

Primeiro e o Terceiro Mundo de hoje já foram bem mais semelhantes durante

o século XVIII. Uma das razões das enormes diferenças surgidas desde

então é que os dominantes não aceitaram a disciplina do mercado, que

impuseram pela força nas suas dependências. O "mito" mais extraordinário

da ciência econômica, conclui Bairoch a partir duma revisão do

desenvolvimento histórico, consiste em que o mercado livre desbrava a

senda do desenvolvimento: "É difícil achar outro caso em que os fatos

contradigam tão frontalmente uma teoria dominante", escreve, subestimando

a importância da intervenção do Estado para os ricos porque se limita de

maneira convencional a uma restrita categoria de interferências de

mercado.

Para mencionar apenas um aspecto da intervenção estatal que

geralmente é omitido na história econômica rigorosamente construída,

convém lembrar que a revolução industrial dos primórdios foi alicerçada

no algodão barato, assim como a “idade de ouro” do pós-guerra dependia do

petróleo barato. O preço do algodão não permaneceu baixo graças aos

mecanismos de mercado: antes, pela eliminação da população nativa Q a

escravidão - uma interferência um tanto quanto séria no mercado, não

considerado como um tópico de economia, mas de outra disciplina. Se as

ciências naturais tivessem um departamento dedicado aos prótons, outro

aos elétrons, um terceiro à luz, etc., cada um limitando-se

p. 24

ao seu domínio reservado, não haveria grande risco de que a natureza

viesse a ser comprometida.

O histórico é impressionantemente consistente. A Grã-bretanha

utilizava a força para impedir o desenvolvimento industrial na índia e no

Egito, agindo muito conscientemente para minar uma potencial

concorrência. Depois da revolução norte-americana, suas antigas colônias

desenvolveram-se sobre uma trilha própria, baseando-se em extensiva

proteção e subsídios para sua própria revolução industrial, primeiro em

têxteis e maquinário, depois aço e manufatura, e assim por diante, até os

dias atuais: computadores e eletrônica em geral, metalurgia, indústria

aeronáutica, agricultura, produtos farmacêuticos; de fato, praticamente

todo setor operativo da economia. A partir da Segunda Guerra Mundial, o

sistema do Pentágono - incluindo a Nasa e o Departamento de Energia

tem sido usado como mecanismo ótimo para canalizar subsídios públicos

para os setores avançados da indústria,uma das razões pelas quais ele

continua a existir com poucas mudanças depois do pretenso desaparecimento

do orçamento. O atual orçamento do Pentágono é mais elevado em valor real

do que na administração Nixon, não ficando muito abaixo da sua média

durante a Guerra Fria, e provavelmente irá aumentar sob a influência das

políticas dos estadistas reacionários, erroneamente chamados de

“conservadores”. Como de hábito, boa parte disso funciona como uma forma

de política industrial, um subsídio do contribuinte fiscal para o lucro e

o poder privados.

Partidários mais extremados do poder estatal e da intervenção têm

expandido esses mecanismos de assistência social para os ricos.

Basicamente por meio dos gastos militares o governo Reagan aumentou a

participação estatal no PIB para mais de 35% até 1983, um incremento 30%

superior à

p. 25

década anterior. A Guerra das Galáxias foi vendida ao público como

"defesa" e à comunidade empresarial como um subsídio público para

tecnologia avançada. Se as forças de mercado tivessem tido liberdade para

funcionar, não existiria hoje uma indústria norte-americana de aço para

automóveis. Os reaganistas simplesmente fecharam o mercado para a

concorrência japonesa. O então secretário da Fazenda James Baker

proclamou orgulhosamente diante duma platéia de empresários que Reagan

"concedera mais alívio para a indústria norte-americana, quanto às

importações, do que qualquer dos seus predecessores em mais de meio

século". Baker foi modesto demais. De fato, o alívio foi maior que o de

todos os seus predecessores juntos, aumentando em 23% as restrições às

importações. O economista internacional e diretor do Instituto para a

Economia Internacional em Washington, Fred Bergsten - que realmente

advoga em favor do comércio livre -, acrescentou que o governo Reagan

especializou-se no tipo de “comércio gerenciado” (managed tradé), que

mais “restringe o comércio e fecha mercados”, isto é, acordos de

restrição voluntária de exportações (Ver's).

Essa é a "forma mais insidiosa de protecionismo", frisava Bergsten, que

"aumenta os preços, reduz a concorrência e fortalece o comportamento de

tipo cartelizado". O Relatório Econômico 1994 para o Congresso estima que

as medidas protecionistas de Reagan trouxeram redução de 20% nas

importações industriais.

Como a maioria das sociedades industriais tornou-se mais

protecionista nas décadas recentes, os reaganistas muitas vezes lideraram

esse processo. Os efeitos sobre o sul têm sido devastadores. As medidas

protecionistas dos ricos têm sido fator fundamental na duplicação da

brecha -já então grande - entre os países mais pobres e os mais ricos,

desde

p. 26

1960. O Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento para 1992

estima que com tais medidas o sul foi privado de 500 bilhões de dólares

ao ano, isto é, cerca de 12 vezes a “ajuda" total -que na sua maior

parte, de fato, é promoção de exportações sob diferentes disfarces. Tal

comportamento é “virtualmente criminoso", observou recentemente Erskine

Childers, eminente diplomata e autor irlandês. Poderíamos parar por um

momento para ver, por exemplo, o "genocídio silencioso" condenado pela

OMS - 11 milhões de crianças que morrem a cada ano porque os países ricos

recusam-lhes centavos de ajuda, sendo os Estados Unidos o mais miserável

de todos, mesmo se incluirmos o maior componente de “ajuda" que vai para

um dos países ricos, o cliente americano Israel. É um tributo ao sistema

de propaganda norte americano o fato de seus cidadãos superestimarem

grosseiramente os gastos de ajuda externa, assim como o fazem com a

assistência social, que também é miserável à luz dos padrões

internacionais, se excluirmos a assistência social para os ricos, e não a

que têm em mente.

Os reaganistas também reconstruíram a indústria norte-americana de

circuitos integrados mediante medidas protecionistas e um consórcio de

governo e indústria, para impedir os japoneses de se apossarem dela. Na

administração Reagan o Pentágono apoiou também o desenvolvimento de

computadores avançados, tornando-se - nas palavras da revista Science -

"uma força decisiva no mercado" e "projetando a computação paralela

maciça do laboratório para o estágio de indústria nascente", a fim de

ajudar com isso na criação de muitas "jovens companhias de

supercomputação".

A história continua incessante em praticamente todos os setores da

economia que funcionam.

p. 27

A crise social e econômica global é geralmente atribuída a

inexoráveis forças de mercado, e os analistas se dividem quanto à

contribuição de diversos fatores, principalmente a automação e o comércio

internacional. Há nisso tudo um considerável elemento de impostura.

Grandes subsídios estatais e a intervenção do Estado sempre foram

necessários e ainda o são - para fazer o comércio parecer eficiente,

passando por cima dos custos ecológicos impostos às gerações futuras que

não "votam" no mercado, e outras "externalidades". Para mencionar apenas

uma pequena distorção do mercado, boa parte do orçamento do Pentágono tem

sido destinada a "garantir o fluxo do petróleo a preços razoáveis" a

partir do Oriente Médio, "predominantemente um território reservado para

os Estados Unidos", como observa Phebe Marr, da Universidade de Defesa

Nacional. Essa é uma contribuição para a "eficiência do comércio", para a

qual poucas vezes se atenta.

Veja-se o segundo fator: a automação. Certamente ela contribui para

os lucros em algum momento, mas esse momento chegou após décadas de

proteção dentro do setor estatal - a indústria militar-, como David Noble

tem demonstrado. Além disso ele demonstrou que a forma específica de

automação foi escolhida, com freqüência, mais por razões de poder do que

de lucro ou eficiência. Ela foi projetada para desprofissionalizar os

trabalhadores e subordiná-los ao management; não por princípios de

mercado ou da natureza da tecnologia, mas por razões de dominação e

controle.

O mesmo é verdadeiro em sentido mais geral. Executivos têm declarado

para a imprensa empresarial que uma razão principal para deslocar

trabalhos industriais até mesmo para países cuja mão-de-obra é mais cara,

é obter vantagens na guerra de classes. "Preocupa-nos ter apenas um lugar

p. 28

onde se fabrica um produto", explica um executivo da corporação Gillette,

principalmente por "problemas trabalhistas". Se os trabalhadores de

Boston fizerem greve, explica, a Gillette poderia abastecer tanto os

mercados europeus como os norte-americanos a partir da sua planta em

Berlim, furando, dessa forma, a greve. Por isso mesmo, é simplesmente

razoável a Gillette empregar três vezes mais trabalhadores fora dos

Estados Unidos, independentemente dos custos, e não por motivos de

eficiência econômica. De modo similar a corporação Caterpillar, que agora

está tentando destruir os últimos restos do sindicalismo industrial, leva

adiante "uma estratégia empresarial que tem arrastado os trabalhadores

americanos da postura de desafio para a de submissão", revelou o

correspondente para assuntos empresariais James Tyson. A estratégia

inclui "manufaturar em instalações mais baratas no exterior" e "contar

com importações vindas de fábricas no Brasil, no Japão e na Europa". Isso

tem sido facilitado pelos lucros que assumiram proporções extraordinárias

enquanto se elabora a política social que visa o enriquecimento dos

abastados; a contratação de "temporários" e "trabalhadores de

substituição permanente", em violação às regras internais do trabalho; e

a cumplicidade do Estado criminoso, que se recusa a cumprir as leis

trabalhistas- uma postura transformada em princípio pelos reaganistas,

como a Business Week expôs numa importante resenha.

O significado real do "conservadorismo de mercado livre" fica claro

se observarmos de perto aqueles entusiastas que mais apaixonadamente

querem "tirar o governo de cima das nossas costas" e deixar o mercado

reinar sem ser incomodado. O porta-voz da Câmara, Newt Gíngrich, é talvez

o exemplo mais impressionante. Ele representa o condado (município) de

Cobb, Geórgia, que o New York Times escolheu para ilustrar em nota de

primeira página a crescente

p. 29

onda do "conservadorismo" e de desprezo pelo "Estado-babá" (nanny state).

Ali é dito que "o conservadorismo floresce entre os supermercados", no

abastado subúrbio de Atlanta, escrupulosamente isolado de qualquer

infecção urbana, de modo que os habitantes podem desfrutar de seus

"valores empresariais" e entusiasmos de mercado,defendidos no Congresso

pelo guia conservador, Newt Gingrich, num "mundo de Norman Rockwell com

computadores de fibra ótica e aviões jet" - como o próprio Gingrich

descreveu seu distrito com muito orgulho.

Há, entretanto, uma pequena nota de pé-de-página. O condado de Cobb

recebe mais subsídios federais do que qualquer outro subúrbio no país,

com duas exceções interessantes:Arlington, Virgínia, que faz parte,

efetivamente, do governo federal, e a zona da Flórida, que abriga o

Centro Espacial Kennedy, outro componente do sistema de subsídio público-

lucro privado. Se sairmos do sistema federal em si, o condado de Cobb

fica na liderança em extorquir fundos do contribuinte fiscal - que também

é responsável pelo financiamento de "aviões a jato e computadores com

fibras óticas" do mundo de Norman Rockwell. A maioria dos empregos no

condado de Cobb - devidamente remunerados com altos salários - alimenta-

se do "cocho público". A origem da riqueza da região de Atlanta, em

geral, pode atribuir-se substancialmente à mesma fonte. Enquanto isso, os

elogios aos milagres de mercado atingem os céus onde o "conservadorismo

está florescendo".

O "contrato com a América" de Gingrich exemplifica claramente a

ideologia do "livre mercado", de dois lados: proteção estatal e subsídio

público para os ricos; disciplina de mercado para os pobres. Insta a

"cortar os gastos sociais" e os pagamentos do sistema de saúde para

pobres e pessoas

p. 30

idosas, negando ajuda para crianças e fazendo cortes nos programas de

assistência social - para os pobres. Também defende o incremento da

assistência aos ricos, seguindo o caminho clássico: medidas fiscais

regressivas e subsídios diretos".Na primeira categoria estão incluídas

maiores franquias fiscais para empresas e ricos, redução de impostos

sobre ganhos de capital, etc.

Na segunda categoria entram subsídios dos contribuintes fiscais para

investimentos em instalações e equipamentos, regras mais favoráveis para

a depreciação, o desmonte do aparato regulador que apenas protege a

população e as gerações futuras, e "fortalecendo a nossa defesa nacional

para podermos "manter (melhor) a nossa credibilidade perante o mundo" -

de maneira que quem tiver idéias estranhas, como sacerdotes e

organizadores de camponeses na América Latina, vai entender sito: "O que

nós dizemos é para ser feito".

A frase "defesa nacional" nem sequer é uma piada doentia que deveria

provocar zombaria em pessoas que se respeitam a si mesmas. Os Estados

Unidos não enfrentam nenhuma ameaça, mas gastam com "defesa" quase tanto

quanto o n resto do mundo somado. Porém, os gastos militares não são

piada. Além de assegurar uma forma especial de "estabilidade” no

"interesse permanente" daqueles que contam mesmo, é preciso o Pentágono

para municiar Gingrich e sua rica clientela, para que possam invectivar o

Estado-babá, que está enchendo seus bolsos.

O contrato é notavelmente descarado. Daí que as propostas para

incentivos a empresas, redução de impostos sobre lucros e outras

assistências sociais desse tipo para os ricos aparecem sob a rubrica "Lei

para a criação de empregos e o aumento dos salários". A seção inclui uma

série de medidas "para criar empregos e aumentar os salários dos

trabalhadores”

p. 31

- acrescida das palavras: "sem financiamento". Mas não tem importância.

No Newspeak contemporâneo, a palavra "empregos" deve ser entendida como

"lucros", daí tratar-se, na verdade, duma proposta para "criar empregos",

que continuará a "aumentar" os salários para baixo.

Em 1994, na reunião da cúpula econômica Ásia-Pacífico em Jacarta,

Clinton pouco disse sobre a conquista de Timor Oriental, que atingiu seu

ponto-alto, quase genocida, com ampla ajuda militar norte-americana, ou

sobre o fato de os salários na Indonésia serem 50% menores do que os da

China, enquanto os trabalhadores que tentam formar sindicatos são

assassinados ou presos. Mas, sem dúvida, falou nos temas que enfatizou na

última reunião de cúpula da Apec em Seattle, onde apresentou a sua

"grande visão do futuro do livre mercado", diante de muita reverência,

surpresa e aclamação. Ele resolvera fazer isso num hangar da empresa

aeronáutica Boeing, oferecendo esse triunfo dos valores empresariais como

exemplo primordial da grande visão do livre mercado. A escolha do lugar

faz sentido: a Boeing é o principal exportador do país, aviões civis

lideram as exportações industriais norte-americanas e a indústria do

turismo - baseada no transporte aéreo — conta com 30% do surplus

comercial norte-americano em serviços.

Só que alguns fatos foram omitidos diante do entusiástico coro.

Antes da Segunda Guerra Mundial a Boeing praticamente não auferia lucros.

Enriqueceu-se durante a guerra com grande incremento de investimentos,

mas mais de 90% deles vinham do governo federal. Os lucros também

floresceram quando a Boeing aumentou seu valor líquido mais de cinco

vezes, realizando seu dever patriótico. Seu "fenomenal histórico

financeiro" nos anos que se seguiram baseou-se também na generosidade

fiscal dada ao contribuinte - como

p. 32

assinalou Frank Kofsky num estudo sobre as primeiras fases (In pós-guerra

no sistema do Pentágono -, "permitindo aos donos das companhias aéreas

embolsarem ganhos fantásticos com investimentos mínimos".

Depois da guerra o mundo empresarial reconheceu que “a indústria

aérea contemporânea não pode existir satisfatoriamente numa economia de

livre-empresa pura, competitiva,sem subsídios", e que "o governo é seu

único salvador possível" (Fortune, Business Week). O sistema do Pentágono

foi revitalizado como "salvador", para sustentar e expandir a industria

junto com a maior parte do resto da economia industrial. A Guerra Fria

forneceu o pretexto. O primeiro secretário da Força Aérea, Stuart

Symington, apresentou a questão com clareza em janeiro de 1948: "A

palavra certa não era ‘subsídio’; a palavra certa a ser usada era

‘segurança’’’. Como representante industrial em Washington,Symington

cobrou regularmente suficientes verbas do orçamento militar para

"satisfazer as necessidades da indústria aeronáutica", como ele dizia,

tendo a Boeing ganho a maior parte.

E assim a história continua. No início dos anos 80, a Boeing contava

com os negócios militares para realizar "a maior parte de seus lucros",

e, depois duma queda entre 1989 e 1991, a sua seção de defesa e espacial

deu uma "tremenda virada", como registrou o Wall Street Journal. Uma das

razões é o auge das vendas militares externas, quando os Estados Unidos

tornaram-se o maior vendedor de armamento, cobrindo cerca de 75% do

mercado do Terceiro mundo, baseando-se em ampla intervenção do governo e

subsídios políticos para aplainar o caminho. Quanto aos lucros do mercado

civil, uma estimativa adequada do seu volume excluiria a contribuição que

resulta da tecnologia de uso compartilhado e outras contribuições do

setor público,

p. 33

difíceis de serem quantificadas com exatidão, mas, sem dúvida alguma,

muito substanciais.

A compreensão de que a indústria não pode sobreviver numa "economia

de 'livre-empresa'" estendeu-se muito além dos aviões. A questão

essencial depois da guerra consistia na forma que o subsídio público

deveria adotar. Líderes empresariais entenderam que gastos sociais

poderiam estimular a economia, mas preferiram a alternativa militar, por

razões que têm a ver com privilégio e poder, e não com "racionalidade

econômica". Em 1948, a imprensa empresarial considerava os "gastos de

Guerra Fria" de Truman uma "fórmula mágica para bons tempos quase

infindáveis" (Steel). Esses subsídios públicos poderiam "manter uma

tendência ascendente", comentou a Business Week, contanto que os russos

cooperassem com uma postura o bastante ameaçadora. Em 1949, notavam com

alívio que "até agora as iniciativas de paz têm sido varridas e postas de

lado" por Washington, mas continuavam preocupados porque essa "ofensiva

de paz", apesar de tudo, pudesse talvez interferir na "perspectiva dum

contínuo crescimento dos gastos militares". O Magazine of Wall Street viu

os gastos militares como uma forma de "injetar nova força em toda a

economia" e, um par de anos depois, considerou "óbvio que tanto as

economias estrangeiras quanto a nossa dependem agora sobretudo do volume

dos permanentes gastos com armamentos neste país", referindo-se ao

keynesianismo militar internacional, que finalmente foi bem-sucedido na

reconstrução das sociedades capitalistas industriais do exterior.

O sistema do Pentágono tem muitas vantagens em relação às formas

alternativas de intervenção na economia. Ele impõe ao público uma grande

parte dos custos, ao passo que garante um mercado cativo para o excesso

de produção.

p. 34

Não menos significativo é o fato de não ter os efeitos colaterais

indesejáveis, próprios do gasto social destinado às necessidades humanas.

Além de seus efeitos

redistributivos, que não são bem-vindos, tais gastos tendem a interferir

nas prerrogativas dos managers; uma produção útil pode prejudicar o lucro

privado, enquanto a produção perdulária (armas, extravagâncias tais como

o homem na lua, etc.) subsidiada pelo Estado é um presente para o dono e

o manager, a quem logo

será entregue qualquer produto derivado que seja interessante para o

mercado. Os gastos sociais podem também aumentar o interesse e a

participação do público, agravando assim a ameaça da democracia. Por tais

razões, explicava Business week em 1949, "existe uma diferença social e

econômica enorme entre gastos de investimentos governamentais para

assistência social e para o âmbito militar", sendo o último muito mais

preferível. E ainda continua a ser, notadamente no condado de Cobb e em

outros baluartes semelhantes da doutrina libertária e dos valores

empresariais.

Mercados livres são bons para o Terceiro Mundo e sua crescente

contrapartida aqui [EUA]. Mães com crianças dependentes podem ser

severamente doutrinadas quanto à necessidade de terem confiança em si

mesmas, mas não executivos e investidores dependentes, por favor. Para

eles, o Estado benfeitor tem de florescer. "Amor duro" é o lema adequado

para a política estatal, desde que lhe dermos o significado correto: amor

para os ricos, dureza para todos os demais.

Não é preciso dizer que, ao focalizarmos países ricos como o nosso

[EUA], isso é altamente enganoso. O "neoliberalismo de dois guines" tem,

de longe, seus efeitos mais letais nos tradicionais domínios coloniais

que - fora a área baseada no Japão - são de modo geral um desastre,

melhorando somente através de medidas econômicas fundamentadas

p. 35

ideologicamente, que ignoram os efeitos sobre as pessoas. Com desculpas

desesperançosamente inadequadas para as vítimas, deixarei de lado essa

terrível história de grandes crimes contra a humanidade, pelos quais

continuamos a ser responsáveis.

3. Crise econômica global

Os principais fatores que resultaram na atual crise econômica global

são razoavelmente bem compreendidos. Um deles é a globalização da

produção, que tem oferecido aos empresários a instigante perspectiva de

fazer recuar as vitórias em direitos humanos, conquistadas pelos

trabalhadores. A imprensa empresarial adverte francamente os "mimados

trabalhadores ocidentais", falando da necessidade de abandonarem seus

"estilos de vida luxuosos" e "rigidezes do mercado", tais como segurança

no trabalho, pensões, saúde e seguro social, e outras bobagens

anacrônicas. Economistas ressaltam que o fluxo trabalhista é difícil de

estimar, mas essa é uma pequena parte do problema. A ameaça basta para

forçar as pessoas a aceitarem salários mais baixos, jornadas mais longas,

benefícios e segurança reduzidos e outras "inflexibilidades" dessa

natureza. O fim da Guerra Fria, que devolve a maior parte da Europa do

Leste ao seu tradicional papel de serviço, põe novas armas nas mãos dos

donos, segundo

registra a imprensa empresarial com irrestrito regozijo. General Motors e

Volkswagen podem deslocar a produção para um Terceiro Mundo restaurado no

leste, onde podem encontrar trabalhadores a custos que são apenas uma

fração dos daqueles "mimados trabalhadores ocidentais", enquanto

beneficiam-se de altas tarifas protecionistas e demais amenidades que os

"mercados livres realmente existentes" proporcionam aos ricos. Os Estados

Unidos e a Grã-Bretanha conduzem o processo de pulverização dos pobres e

da gente trabalhadora, mas outros serão arrastados, graças à integração

global.

p. 36

E enquanto a renda familiar média continua em queda, mesmo nas

condições de recuperação lenta, a revista Fortune desfruta com malícia

dos lucros deslumbrantes" dos “fortune 500", em que pese a "estagnação"

do crescimento

das vendas. A realidade da era "magra e ruim" é que o país está inundado

de capital - mas nas "mãos certas". A desigualdade voltou aos níveis

anteriores à Segunda Guerra Mundial, ainda que a América Latina tenha a

pior história no inundo, graças a nossa benevolente tutela [americana].

Como o Manco Mundial - entre outros - reconhece, uma igualdade relativa e

gastos em saúde e educação são fatores significativos para o crescimento

econômico - para não falar na qualidade de vida. Mas esse Banco também

continua agindo no sentido de aumentar a desigualdade e destruir u gasto

social, cm benefício dos "interesses permanentes".

Um segundo fator na atual catástrofe do capitalismo de Estado, que

tem deixado um terço da população do mundo praticamente sem meios de

subsistência, é a grande explosão do capital financeiro não submetido à

regulação, desde que o sistema de Breton Woods foi desmantelado há mais

de duas décadas, com talvez um trilhão de dólares fluindo diariamente. A

sua constituição também mudou radicalmente. Antes de o sistema ter sido

desmantelado por Richard Nixon, Cerca de 90% do capital em trocas

internacionais eram para investimento e comércio, e apenas dez por cento

para especulação. Por volta de 1990, esses percentuais foram invertidos.

Um relatório da Unctad estima que 95% desses capitais destinam-se

atualmente à especulação. Em 1978, quando os efeitos já eram visíveis,

James Tobin, prêmio nobel de Economia,sugeriu em seu discurso à

Associação Econômica Americana que deveriam ser aplicados impostos para

desacelerar os fluxos especulativos, pois estes levariam o mundo

p. 37

a uma economia de escasso crescimento, baixos salários e altos lucros. Na

atualidade, esse aspecto é amplamente reconhecido; um estudo dirigido por

Paul Volcker, ex-chefe da Reserva Federal, atribui mais ou menos metade

da desaceleração substancial no crescimento econômico, a partir do início

da década de 70, ao incremento da especulação.

Em geral o mundo está sendo levado a uma espécie de modelo do

Terceiro Mundo, por uma política deliberada pelo Estado e pelas

corporações, com setores de grande riqueza, uma grande massa de miséria e

uma grande população supérflua - desprovida de todo e qualquer direito

porque em nada contribui para a geração de lucros,onde seu único valor é

o humano.

A população surplus deve ser mantida na ignorância, mas também

controlada. Esse problema é enfrentado diretamente nos domínios do

Terceiro Mundo, que têm sido submetidos por muito tempo ao controle

ocidental e, portanto, refletem os valores imperantes com maior clareza:

mecanismos favorecidos incluem o terror em grande escala, esquadrões da

morte, "limpeza social" e outros métodos de provada eficiência. Aqui

[EUA], o método favorito tem sido o de confinar as "pessoas supérfluas"

em guetos urbanos que cada vez mais parecem campos de concentração. Se

isso não dá certo, apela-se para as cadeias, que são a contrapartida,

numa sociedade mais rica, dos esquadrões da morte que nós treinamos e

apoiamos em nossos domínios. Sob a administração dos reaganistas

entusiastas do poder estatal, o número de presos nos Estados Unidos quase

triplicou, deixando nossos principais concorrentes, África do Sul e

Rússia, bem atrás - embora a Rússia acabe de emparelhar-se conosco [EUA],

pois começa a dominar os valores de seus tutores norte-americanos.

P. 38

A "guerra das drogas", que é em grande parte fraudulenta tem servido

como principal mecanismo para encarcerar a população indesejável. Uma

nova legislação

penal viria a facilitar o processo, com seus procedimentos judiciais

muito "Mis severos. Os novos e enormes gastos com penitenciárias também

são bem-vindos como mais um estímulo keynesiano para a economia.” As

empresas faturam “, informa o Wall street Journal, reconhecendo uma nova

maneira de sugar o publico contribuinte nessa era "conservadora". Entre

os felizardos estão a indústria da construção, os escritórios de

advocacia, o florescente e rendoso complexo de cadeias privadas, "os

nomes mais glorificados nas finanças", tais como goldman Sachs,

Prudential e outros, "competindo para garantir a construção de cadeias

com títulos privados, isentos de impostos"; sem esquecer "o sistema

estabelecido da defesa, "farejando um novo campo de negócios" na

supervisão de alta tecnologia e sistemas de controle do tipo que o Big

Brother teria admirado.

Não é de surpreender que o contrato de Gingrich inste a expandir

essa guerra contra os pobres. A guerra tem seu alvo principal nos afro-

americanos; a estrita correlação entre raça e Classe torna o procedimento

simplesmente mais natural, homens negros são considerados população

criminosa, conclui o criminologista William Chambliss, autor de muitos

estudos, incluindo a observação direta por parte de estudantes

professores num projeto com a polícia de Washington. Isso não é

exatamente correto. Supõe-se que os criminosos têm direitos

constitucionais, mas, como mostram os estudos de Chambliss e outros, não

é bem assim para as populações escolhidas como pontos de mira, que são

tratadas como se estivessem sob ocupação militar.

Os negros constituem um alvo particularmente bem escolhido porque

são indefesos. E gerar medo e ódio é, com

p. 39

certeza, um método-padrão de controle da população, quer se trate de

negros, judeus, homossexuais, "rainhas" da assistência social ou algum

outro escolhido. Essas são, ao que parece, a razão básica para o

crescimento do que Chambliss chama de "indústria do controle do crime".

Não que o crime não seja uma ameaça real à segurança e à sobrevivência;

isso ele é e tem sido durante muito tempo. Mas não se procura enfrentar

as causas; antes, o crime é explorado de diferentes maneiras como um

método para controlar a população.

Geralmente os setores mais vulneráveis são os atacados. As crianças

são outro alvo natural. O assunto tem sido abordado em diversos estudos

importantes; merece destaque uma análise de 1993 da Unicef, desenvolvida

pela renomada economista norte-americana Silvia Ann Hewlett, intitulada:

A negligência para com as crianças nas sociedades ricas. Hewlett encontra

uma nítida divisão entre as sociedades anglo-americanas e as da Europa

Continental e do Japão. O modelo anglo-americano, escreve, é um

"desastre" para crianças e famílias; o modelo europeu-japonês, ao

contrário, tem melhorado consideravelmente. Como outros estudiosos,

Hewlett atribui o "desastre" anglo-americano à preferência ideológica

pelos "mercados livres". Mas essa é apenas meia verdade, como ela tem

assinalado. Seja qual for o nome que se queira dar à ideologia reinante,é

injusto manchar o bom nome "conservadorismo" aplicando-o a essa forma de

estatismo reacionário, violento e sem lei, com seu desprezo pela

democracia e pelos direitos humanos, e também pelos mercados.

Deixando de lado as causas, não há muito a duvidar quanto aos

efeitos do que Hewlett chama de "espírito anticriança desencadeado nestas

terras”, principalmente Estadas Unidos e Grã-Bretanha. O "modelo anglo-

americano cheio de negligência" privatizou boa parte dos serviços de

atendi-

p. 40

mento às crianças, fazendo com que ficassem fora do alcance da maioria da

população. O resultado é um desastre para crianças e famílias, enquanto

no "modelo europeu, que é bem mais assistencial", a política social tem

reforçado os sistemas de apoio para elas. Uma comissão de alto nível dos

Conselhos Educativos dos Estados e da Ama tem sublinhado que "nunca antes

uma geração de crianças foi menos sadia, menos atendida ou menos

preparada para a vida do que seus pais na mesma idade".É bem verdade que

isso só acontece nas sociedades anglo-americanas, onde "um espírito

anticriança e antifamília" tem dominado durante quinze anos sob a

aparência do "conservadorismo" e dos "valores familiares" - um triunfo

doutrinal que qualquer ditador admiraria.

Em parte, o desastre é simplesmente resultado dos salários

decrescentes. No caso de grande parte da população, ambos pais precisam

trabalhar horas extras simplesmente para prover o necessário. E a

eliminação das "rigidezes do mercado" significa que o indivíduo tem de

trabalhar horas extras por salários mais baixos - do contrário, as

conseqüências são imprevisíveis. O tempo que pais e filhos estão em

contato tem diminuído drasticamente. Tem-se forte crescimento do uso da

televisão para a supervisão das crianças, crianças trançadas, alcoolismo

infantil e uso de drogas, criminalidade, violência de e contra crianças,

e outros efeitos evidentes na saúde, na educação e na capacidade de

participar numa sociedade democrática, ou até na sobrevivência.

Mais uma vez essas não são leis da natureza, mas políticas

conscientemente elaboradas com um objetivo específicos: o enriquecimento

dos "Fortune 500" (os 500 mais ricos mencionados pela revista Fortune} -

exatamente o que aconte-

p. 41

ceu enquanto Gingrich e seus parceiros pregavam impunemente "valores

familiares", com a ajuda daqueles que a imprensa operária do século XIX

chamava de "sacerdócio comprado".

Mas algumas das conseqüências da guerra contra crianças e famílias

recebem grande atenção e de modo bastante revelador. Importantes

divulgavam novos livros preocupados com decrescentes Quocientes de

Inteligência (Q.I.) e aprendizagem escolar. A New York Times Book Review

dedicou um artigo desusadamente extenso a essa questão, escrito pelo seu

redator de ciências, Malcolm Browne, onde começa advertindo que governos

e sociedades que negligenciarem os assuntos abordados nesses livros "o

farão por sua conta e a seu próprio risco". Não há referência alguma ao

estudo da Unicef e também não tenho visto nenhuma resenha dele em outro

meio nem qualquer estudo que abordasse a guerra contra as crianças e

famílias nas sociedades anglo-americanas.

Então, qual a questão que ignoramos a nosso próprio risco? Tal

abordagem é bastante limitada. Possivelmente o Q.I. seja até certo ponto

hereditário e - o que é ainda mais ominoso - vinculado à raça, com negros

que engendram feito coelhos e estragam a reserva genética. Talvez as mães

negras não criam seus filhos porque elas se desenvolveram no cálido - mas

altamente imprevisível - ambiente da África, sugere um dos autores dos

livros resenhados. Isto é ciência concreta, que ignoramos, cientes do

perigo que corremos. Mas nós podemos. De fato, temos de ignorar as

políticas sociais para os pobres e a proteção estatal para os ricos -

baseadas no mercado livre - e o fato, por exemplo, de na cidade onde esse

material é publicado - a mais rica do mundo - 40% das crianças viverem

debaixo da linha da pobreza, privadas da esperança de escapar da miséria

e da indigência. Poderia isso ter algo a ver com o estado das crianças e

suas realizações?

p. 42

Podemos logo desconsiderar tais indagações - uma decisão natural dos

ricos e poderosos, dirigindo-se uns aos outros e indo justificações para

a guerra de classes que eles movem, e seus efeitos humanos.

Não insultarei a inteligência do leitor discutindo os méritos

científicos dessas contribuições, coisa que tenho feito noutros

trabalhos, como muitos outros já fizeram.

Essas são algumas das formas mais vis de controle populacional. Na

variante mais benigna, o populacho tem de ser desviado para atividades

não problemáticas, pelas grandes instituições de propaganda, organizadas

e dirigidas pela comunidade empresarial, meio-norte-americana, que

investe imensa quantia de capital e energia para converter as pessoas em

átomos de consumo e ferramentas obedientes de produção (se tiverem a

sorte de arrumar emprego) - isoladas umas

das outras, desprovidas até mesmo daquilo que pode ser chamado de vida

humana decente. Isso é importante. Sentimentos humanos normais devem ser

esmagados. Eles são incompatíveis com uma ideologia ajustada às

necessidades de privilégio e poder, que celebra o lucro privado como

valor humano supremo e nega os direitos das pessoas, para além do que

estas podem obter no mercado de trabalho - à diferença dos ricos, que

devem receber ampla proteção do Estado.

junto com a democracia os mercados também são atacados. Mesmo

deixando de lado a maciça intervenção estatal nos Estados Unidos e na

economia internacional, a crescente concentração econômica e o controle

do mercado oferecem mecanismos infinitos para esquivar e minar a

disciplina de merendo, uma longa história que não podemos abordar neste

mercado por razões de espaço. Só para mencionar um aspecto, perto de 40%

do "comércio internacional" não são, realmente, comercio; consistem em

operações internas das corporações, gerenciadas de modo centralizado por

uma mão alta-

p. 43

mente visível, com todo tipo de mecanismos para solapar os mercados em

benefício do lucro e do poder. O sistema quase-mercantilísta do

capitalismo multinacional

corporativo está repleto das formas de conspiração dos dominantes, para

as quais advertia Adam Smith, sem falar na tradicional utilização e

dependência do poder

estatal e do subsídio público. Um estudo da OECD, de 1992, conclui que a

"concorrência oligopólica e a interação estratégica entre empresas e

governos, antes que a mão invisível das forças do mercado, condiciona

hoje as vantagens competitivas e a divisão internacional do trabalho nas

indústrias de alta tecnologia", tais como agricultura, produtos

farmacêuticos, serviços e outras áreas importantes da economia. A grande

maioria da população mundial, que está sujeita à disciplina do mercado e

é inundada com odes a seus milagres, não deve escutar essas palavras; e

raramente chega a ouvi-las.

Receio que isso apenas toca a superfície da questão. É fácil

entender o estado de desespero, angústia, falta de esperança, raiva e

temor que prevalece no mundo, fora dos setores opulentos e privilegiados

e do "sacerdócio comprado" que canta louvores à nossa magnificência [dos

EUA] - uma característica notável da nossa "cultura contemporânea", se é

que dá para usar esta expressão sem envergonhar-se.

Há mais de 170 anos, muito preocupado com o destino do experimento

democrático, Thomas Jefferson fez uma distinção útil entre "aristocratas"

e "democratas". Os "aristocratas" eram "aqueles que têm temor e

desconfiança do povo e desejam tirar-lhe todos os poderes para colocá-los

nas mãos das classes altas". Os democratas, por sua vez, "identificam-se

com o povo, têm confiança nele, elogiam-no e o têm por honesto e

seguro... depositário do interesse público", ainda que nem sempre "o mais

sábio". Os aristocratas daqueles dias eram os protagonistas do nascente

Estado capitalista,

p. 44

que Jefferson encarava com grande consternação, reconhecendo a

contradição entre democracia e capitalismo, que é muito mais evidente na

atualidade, quando tiranias privadas sem controle adquirem poder

extraordinário sobre todos os aspectos da vida.

Como sempre ocorreu, é possível escolher ser um democrata no sentido

de Jefferson, ou um aristocrata. O segundo caminho oferece ricas

recompensas, em vista da situação de riqueza, privilégio e poder, e os

fins que naturalmente são procurados. A outra senda é de luta, muitas

vezes de derrota, mas lambem de recompensas que não podem nem imaginar

aqueles que sucumbem àquilo que a imprensa operária denunciava lia mais

de 150 anos como "o novo espírito da era", que é adquirir "riqueza,

esquecendo-se de tudo menos de si mesmo".

O mundo de hoje dista muito do mundo de Thomas Jeferson ou dos

trabalhadores de meados do século XIX. Mas as alternativas que oferece

não mudaram, no essencial.

Noam Chomsky é professor do Massachusetts Institute o f Technology

(Mit).

O presente capítulo (Democracy and Markets in the New World Order)

foi traduzido para o espanhol e publicado no livro La sociedadglobal -

Educación, mercado y democracia,de Noam Chomsky e Meinz Dietrich (México,

Contrapuntos, 1995).

Traduzido para o português por Ricardo Aníbal Rosenbusch.

p. 45

2 - Pablo González Casanova

Globalidade, neoliberalismo e democracia

1. O discurso da globalidade

Estamos num clima ideológico em que se enfraqueceram as propostas da

"soberania nacional" em favor das propostas da "globalidade" e na qual se

obscureceram os direitos "dos povos" diante dos direitos "dos

indivíduos". Também houve mudança no desprestígio da "justiça social",

conceito ao qual se opõe o mais antigo de "justiça", já desprovido de

adjetivo, como quer John Rawls. As "lutas de libertação" e as "lutas de

classes" aparecem como um fenômeno terminado, como conceitos obsoletos.Em

vez da "libertação" propõe-se a "inserção" ou a "integração", e, em vez

da luta social, a "solidariedade" humanitária ou empresarial. Ao mesmo

tempo confirma-se que Bell teve razão e que já estamos no final das

ideologias. Inclusive pensa-se que "a batalha para salvar o planeta

substituirá a batalha ideológica como o tema capaz de organizar a nova

ordem mundial".

Nem tudo está errado. A mudança de categorias está longe de ser

puramente ideológica; ela também acontece na realidade. Aqueles que

continuam pensando em termos de meras lutas nacionais pela soberania dos

estados-nação sem re-

p. 46

parar na nova luta global, ou pensam em termos de meras lutas nacionais

contra o imperialismo sem considerar as lutas das etnias; ou em lutas por

uma cultura racionalista que exclui o papel importantíssimo das religiões

na libertação; ou continuem sustentando que a luta pelos direitos sociais

torna desnecessária a luta pelos direitos individuais; ou que a luta de

classes contra a exploração basta e exclui as lutas pela democracia e

pela liberdade... todos eles serão absolutamente incapazes de compreender

que as mudanças que se expressaram nos anos oitenta não só supõem o

triunfo de novas hegemonias, mas de novas categorias.

Não raro o discurso da globalidade obedece a fatos objetivos e

universais; expressa uma crescente interdependência das economias

nacionais e a emergência de um sistema transnacional bancário-produtivo-

comunicativo, que é dominante, e cuja ascensão coincide com um

enfraquecimento real da soberania dos estados-nação e das correntes

nacionalistas, antiimperialistas, marxista-leninistas... estas últimas em

estado de confusão ou de reversão, nos poucos países ou organizações que

dizem segui-las. Um repórter do New York Times descobriu que no Primeiro

e Terceiro Mundos os comunistas que restam já não têm um conjunto de

crenças comuns, duvidam de sua linguagem esclerosada, perderam a

disciplina de partido - e até seu partido -, e nas revisões do que creram

ontem mostram sérias confusões no que crêem hoje². É verdade que quando

um homem acostumado a pensar dogmaticamente se vê sem dogmas, dá-se conta

de que está acostumado a não pensar. Diante deles, a forma

p. 47

dominante de pensar e falar, o dogma triunfante, é a globalidade

“desideologizada”, os direitos individuais sem direitos sociais, o

laissez-faire do neoliberalismo conservador.

Nas chancelarias do mundo atual, nas assembléias das Nações Unidas,

entre os chefes de Estado e os trabalhadores da "mídia", nas melhores

universidades do mundo, durante todos estes anos proliferou o discurso da

globalidade e sua lógica para resolver problemas. Em nome dos direitos do

indivíduo, da luta contra o totalitarismo, do narcotráfico ou do

terrorismo, ou da luta contra a intervenção militar dum Estado do

Terceiro Mundo nas fronteiras de outro - como quando o Iraque interveio

no Kuwait -justificou-se a intervenção militar das grandes potências, que

fazem seus o direito universal e a aplicação responsável do mesmo.

Nos anos oitenta, para muitos especialistas, o discurso da soberania

não passou de pura retórica, quer na boca de Thatcher ou dos últimos

presidentes populistas. Também os conceitos de "não intervenção" das

grandes potências contra as pequenas nações e de "livre autodeterminação

dos povos" reconhecidos na Carta das Nações Unidas e base de argumentação

anterior das chancelarias do Terceiro Mundo e do bloco soviético -

sofreram um sério desprestígio, entre outras razões porque muitos

governos efetivamente os invocaram para frear as lutas pelos direitos

individuais e de seus cidadãos. "Não intervenham - diziam-, deixem-nos

violar soberanamente os direitos de nossos próprios cidadãos".

Na verdade, a perda de força dos conceitos de soberania não se reduz

a meras racionalizações dos países hegemônicos. A redefinição da

soberania é evidente. Como fez ver David Held num livro recente, a teoria

política do Estado soberano mostra vários desajustes diante da realidade

do mundo

p. 48

atual. Assim, por exemplo, não reconhece que a autonomia do Estado

diminuiu no atual sistema econômico de produção internacional e

transnacional; não repara que os blocos de nações controlam seus

integrantes em muitas decisões que antes se arrogavam a si mesmas, por

exemplo, no campo militar; não vê que há uma "tomada de decisões

transgovernamental", e organismos internacionais como a Otan que

"qualificam a soberania" de cada membro; não vê que nessas nações "o

problema da soberania se negocia e se renegocia" dia a dia; não percebe a

diferença dum mundo em que as organizações internacionais adquiriram

poderes de decisão como os da União Européia, que lhes permitem

distribuir recursos, mercados, utilidades; não se dá conta de que as

companhias transnacionais são capazes de controlar a produção de

agricultores e granjeiros, ou as atividades de sindicatos ou os

movimentos de ecologistas; ou que o FMI tem a possibilidade de influir no

corte do gasto público de muitíssimos países, na desvalorização de sua

moeda, na eliminação de seus programas de saúde, educação, habitação,

isto é, na diminuição ou eliminação da política de "bem-estar social" dos

países endividados³.

Como se pode fazer hoje teoria do Estado ou sociologia sem

reconhecer esses fatos, sem registrar "o rápido crescimento de

interconexões e inter-relações entre os estados e as sociedades" que

caracteriza os poderes públicos e a política em nossos dias? Porém, as

teorias do Estado ou a sociologia, |á atualizadas - e é este o ponto que

quero destacar - para serem exatas têm que registrar também os efeitos

adversos da globalização sobre os países do Terceiro Mundo - sobre os

p. 49

países da Ásia, África e América Latina - e o fato de que a atual

globalização mantém e reformula as estruturas da dependência de origem

colonial e as não menos sólidas do imperialismo de fins do século XIX,

bem como do capitalismo central e periférico que se estruturou entre 1930

e 1980.

O discurso da globalidade não só obedece a uma realidade epistêmica

legítima. Está sendo usado também para uma "reconversão da dependência".

Freqüentemente contribui para ocultar ou ocultar-se dos efeitos da

política liberal neoconservadora nos países do Terceiro Mundo e os

problemas sociais cada vez mais graves dos quatro quintos da humanidade.

Nas linhas essenciais do mundo atual é indispensável ver o novo da

globalidade, mas também o velho, e no velho se encontra o colonialismo da

idade moderna, um colonialismo global que hoje é também neoliberal e pós-

moderno. A reconversão é em grande parte uma recolonização.

2. O neoliberalismo e a reconversão

Depois de dez anos de neoliberalismo confirmaram-se as hipóteses que

previam nessa política os efeitos mais adversos para o Terceiro Mundo. É

verdade que alguns cientistas sociais garantem que há uma "curva" que

promete que tudo melhorará em longo prazo, depois de piorar em curto

prazo. Mas nem dão evidências a respeito, nem existe, do ponto de vista

lógico ou empírico, a mínima razão para pensar que o conjunto das medidas

neoliberais levará ao desenvolvimento da maioria da humanidade

e à solução dos problemas sociais do próprio mundo desenvolvido. Mais

ainda, quando alguns

p. 50

políticos afirmam que "apostaram no neoliberalismo", ocultam que além

disso tendem a sujeitar-se às políticas traçadas pelo [t Banco Mundial

e pelo Fundo Monetário Internacional. Como Observa Albert Hirshman,

"jamais os latino-americanos foi um tão insistentemente instruídos e

aconselhados sobre as virtudes do mercado livre, da privatização e das

inversões privadas estrangeiras, como nos últimos anos"5. O mesmo se

poderia dizer dos africanos e dos asiáticos.

Quanto aos argumentos que atribuem à "crise" - concebida em geral e

de maneira abstrata - a crescente gravidade dos problemas do Terceiro

Mundo, não só ocultam que os custos da "crise" se distribuem de forma

desfavorável para os nossos países, mas que no interior de cada um também

se distribuem de forma desfavorável para a maioria da população; e não só

para a mais desprotegida, mas para os próprios setores médios que haviam

se desenvolvido em mais de meio século ao amparo das políticas

anteriores, populistas e social-democráticas. A uns, lhes é retirado o

que antes lhes fora dado, e a outros se lhes paga menos ou são obrigados

a trabalhar mais. É verdade que ainda há os que tratam de apoiar, com a

retórica estatística necessária, que a pobreza e a extrema pobreza tendem

a diminuir no mundo. É o caso do informe sobre o desenvolvimento mundial

de 1990, dedicado precisamente à pobreza e publicado pelo Banco Mundial.

Mas pode-se dizer que não só no terreno científico e na vida acadêmica,

mas em grande parte das forças políticas e sociais há uma crescente

consciência dos efeitos que a política liberal neoconservadora teve na

solução da crise em favor dos grupos e empresas de mais alta renda, e

contra os estados-nação

p. 51

do Terceiro Mundo e de suas organizações de camponeses, operários e

empregados, em especial aqueles que haviam adquirido uma certa capacidade

de negociação em matéria de concessões e prestações. O conhecimento

dessas verdades evidentes sobre os efeitos reais da política neoliberal

até hoje não significa que elas tenham influência nos meios financeiros e

nas grandes decisões da política mundial. Se por acaso modificam algumas

decisões neoliberais, fazem-no à contramão e sem política coerente. Os

cientistas neoliberais as ouvem com displicência e os publicistas as

fazem calar com força e com alvoroço. Mas as verdades sobre o desastre

social do neoliberalismo tendem a ser sustentadas por grupos cada vez

mais amplos de especialistas a partir de provas inegáveis, muitas delas

oficiais, das próprias agências estatais ou financeiras.

Entre as proposições mais claramente estabelecidas, que nenhuma

evidência empírica pode negar, destacam várias que nos dão um panorama

bastante preciso de como o novo da globalidade se junta ao velho do

colonialismo.

Como fez ver Paul Kennedy, a queda dos preços do petróleo em 1980-

1981 foi a mais espetacular das quedas que ocorreram nas matérias-primas.

Na mesma ocasião lançou-se a ofensiva contra os árabes, contra os

comunistas brezhnevianos e contra os populistas ensoberbecidos na década

anterior, e ainda contra os inimigos internos que vinham entre

fanfarronices juvenis do Maio de 68 ou das sublevações operárias. Coube

ao México a ofensiva no tempo de López Portillo. Foi uma guerra econômica

de reconversão ou restauração. Deu-se por um shock nos mercados de

capitais, que deslocou a economia de nossos países. O shock do México

teve os máximos efeitos internos e externos. Foi pior para a América

Latina e a África do que para os países asiáticos. Mas desde 1973 a

afluência anterior de capital que ia do norte

p.52

para o sul reverteu-se. A partir daí o sul passou a ter uma hemorragia

líquida de excedente: a relação de intercâmbio tornou-se cada vez mais

adversa, as taxas

de juros dispararam, os prazos dos créditos foram reduzidos, os capitais

fugiram,os serviços da dívida cresceram em relação ao valor e ao montante

das exportações,os pagamentos se tornaram mais difíceis devido às

desvalorizações que obrigam a pagar cada dólar com um maior número de

divisas locais. Alain DurMing escreve do World Watch Institute de

Washington: "Para (i s pobres da África, América Latina e parte da Ásia

os anos oitenta foram um tempo de cruéis derrotas..." E acrescenta: os

preços das nações pobres caíram vertiginosamente e a dívida internacional

canalizou uma parte crescente de sua renda em mãos dos financistas

estrangeiros. Ao mesmo tempo os pobres ganharam menos e conseqüentemente

comeram menos; mas pagaram mais, isso sim”6. A descrição de Durning é

exata, rigorosa. Baseia-se em números, em evidências inocultáveis. Em

fins dos anos oitenta e princípios dos noventa, a maioria dos indicadores

assinala que a pobreza aumentou dramaticamente na África Sul-saariana e

na América Latina, assim como em diferentes regiões da Ásia, submergindo

na miséria sobretudo os menores de quinze anos, muitos deles com danos

orgânicos e cerebrais por causa da desnutrição. O exemplo mais dramático

é o da África. Ali, a dívida subiu três vezes sobre o nível de 1980. Os

pagamentos atrasados passaram de l bilhão de dólares em 1980 para 11

bilhões de dólares cm 1990. Hoje, a dívida externa da África é mais alta

do que o lotai de sua produção 7.

p. 53

O que aconteceu? O que aconteceu com o Terceiro Mundo que

desvaneceu, e com os seus pobres, que proliferaram? Será que tal

ocorrência é efeito duma crise natural diante da qual se procura seguir a

melhor política possível, como pretende o neoliberalismo com alardes

científicos que afirmam estar além de toda ideologia, ou será - como

afirma Xabier Gorostiaga - que já começou o século XXI e a guerra do

norte contra o sul?8 O próprio Banco Mundial anuncia que os pagamentos da

dívida aumentarão de forma exorbitante (steeply, diz-se em inglês) se não

houver cancelamentos, e isso parece indicar que o fenômeno não obedece a

uma crise natural, a uma espécie de infeliz catástrofe diante da qual se

está fazendo tudo que se pode para resolver os problemas econômicos e

sociais do ponto de vista científico. É certo que houve problemas

estruturais,desequilíbrios disfuncionais ao sistema; mas sobre eles se

montou uma grande estratégia, cujas medidas afetam, sem sombra de

dúvidas, a imensa maioria da humanidade. O conjunto dessas medidas é

impressionante. Partem duma reorganização do poder no plano global e da

combinação funcional do poder financeiro, político e militar, com

complementos riquíssimos no campo do imaginário e da guerra pelas

ilusões. Sobre seus antecedentes, caberia destacar a nova concepção da

guerra global como "guerra interna", que surgiu pelos anos sessenta e, de

época anterior, a dominação colonial através do crédito, praticada pela

Inglaterra desde o século XIX com muito êxito. Seja como for, a

responsabilidade central do projeto ficou a cargo do Fundo Monetário

Internacional e do Banco Mundial. Através deles impôs-se a nova política

aos governos devedores,

p. 54

com sanções terríveis para os inadimplentes. Endividados como estavam,

com contas arriscadas que foram feitas nos anos setenta e enormes

facilidades de

crédito que lhes deram em troca de uma ou outra cláusula que permitia aos

credores mudar os termos do contrato ao seu relativo arbítrio, os

governos do Terceiro Mundo, freqüentemente também brutalmente

pressionados por forças internas, especialmente pelos exportadores,

viram-se obrigados ou induzidos tecnocraticamente a desmantelar boa parte

das instituições que eram do Estado nacional e do Estado social.

A "liberalização da economia", o desregulamento do setor financeiro,

a privatização e desnacionalização de riquezas viços públicos como

estradas de ferro, eletricidade, telefonia, correios, água potável,

escolas, hospitais... todas essas medidas de privatização,

desnacionalização, integração e globalização coincidiram com uma nova

política de cortes do gasto público para equilibrar o orçamento e para

dedicar ao pagamento do serviço da dívida o que antes se destinava à

saúde, educação e desenvolvimento, com o que se reduziu a renda direta de

boa parte da população, especialmente dos assalariados. A redução de

salários aumentou com uma política de dessindicalização dos

trabalhadores, de descentralização dos grandes sindicatos e uniões e

de eliminação de jure ou de fado dos direitos que haviam conquistado em

lutas centenárias; a política de contenção salarial foi combinada com a

de inflação e hiperinflação incontíveis, que se acentuaram com as

desvalorizações e com um crescente desemprego devido às falências e

suspensões em massa. Os ajustes estruturais afetaram de maneira

crescentemente ineqüitativa a carga fiscal, as taxas de juros nos

créditos a pequenos proprietários, o custo de bens e serviços nos bairros

marginalizados, e deram pé a medidas

p. 55

legislativas que levaram à privatização de florestas, terras e águas

comuns que antes eram dos camponeses pobres, os quais se tornaram

paupérrimos. Lance Taylor comprovou que, em 50 países do Terceiro Mundo

estudados por ele, nem a maior abertura do mercado nem a "orientação para

fora" da economia estão associadas a um maior crescimento. Por sua vez,

Amadeo e Banuri10 fizeram ver que "o argumento da liberalização" defende

o uso de políticas trabalhistas "apertadas" ou "de baixo salário" e que

também pressiona por sindicatos "desvantajosos" como os que existem no

leste da Ásia. Só que estes - e o mito tecnocrático neoliberal cuida de

ocultá-lo - ou continuaram a desenvolver-se ao mesmo tempo que um

importante setor socializado como o da China, ou se desenvolveram sob

regimes exclusivamente autoritários, como o da Coréia do Sul e o de

Taiwan, que não abriram seus mercados financeiros, e nos quais o Estado

em nada se comportou de acordo com o modelo neoliberal, salvo na

contração dos salários e dos direitos trabalhistas.

Tudo isso nos leva a um ponto em que é necessário ver o novo e o

velho da sociedade e do Estado periféricos e das lutas pela democracia em

nossos países.

3. A globalidade, a estados-nação e a democracia

Certos elementos tradicionais do Estado-nação dependente ou

periférico continuam até hoje e há indícios de que continuarão no futuro;

porém, em sua continuidade apresentam

p. 56

algumas variações significativas. Se antes do auge neoliberal a estados-

nação não controlavam a acumulação local-como certa vez observou Samir

Amin - e se desde então os estados da periferia eram mais fracos do que

os do centro, as condições objetivas do endividamento e do mercado M is

enfraqueceram ainda mais, e a elas se acrescentaram as políticas de

ajuste que determinaram um adelgaçamento ainda maior. Se ao colonialismo

formal que acabou depois da segun da Guerra Mundial sucedeu o chamado

neocolonialismo com oligarquias burocrático-militares que se aliaram às

burguesias locais e metropolitanas para dominar na nova ordem mundial -

como afirma Alavi - as alianças populares que muitas delas estabeleceram

e que desde os anos sessenta, e sobretudo desde os oitenta, vieram

abaixo, por limitadas que tenham sido no benefício de classes e setores

médios, de trabalhadores ou de camponeses, deram a esses estados uma

autonomia e uma base social que haveriam de perder com o neoliberalismo.

Como observou Guillermo O'Donnell, é verdade que esses estados -

nacionalistas, populistas ou socialistas - caíram em problemas de

corrupção e ineficiência até que, em muitos casos, foram substituídos por

ditaduras burocrático-militares; mas estas desempenharam muitas vezes o

papel de pioneiras na aplicação das políticas neoliberais e no

enfraquecimento das instituições sociais dos Estados, no tempo em que

marcavam a passagem das cleptocracias populistas às cleptocracias

neoliberais. Nos países do Terceiro Mundo, o Estado como elemento de

unificação de que falou Poulantzas, ou como elemento de conciliação, de

que falam Offe e Habermas, combinou sempre com o Estado repressivo,

herança renovada do antigo colonialismo.

Nos prolegômenos neoliberais, durante as ofensivas das burocracias

militares que obedeciam aos estrategistas da guerra

p. 57

interna, e com as políticas de ajuste que desde então o FMI e o BM

impunham nessas regiões, a associação entre liberalização econômica e

autoritarismo político levou ao que Tariq Banuri chama um "amplo

terrorismo de Estado", que afetou a grande quantidade de países do

Terceiro Mundo - como não cessa de denunciar Noam Chomsky, baseado em

fatos. O empobrecimento da população e o enfraquecimento dos

trabalhadores e empregados, junto com a necessidade de dominar o antigo

movimento operário e de eliminar as conquistas sociais e os direitos

trabalhistas ou rurais obtidos pelos trabalhadores e camponeses em várias

décadas, provocaram a ampliação das políticas

repressivas. Entretanto, tais políticas não foram aplicadas de forma

igual em todos os países nem deixaram de fora todas as políticas de

controle social, entre elas as de consenso e conciliação. De fato, em

muitos países, sucederam aos regimes burocrático-militares os governos

neoliberais, que estabeleceram poderosas mediações político-eleitorais. A

"mídia" foi combinada com velhas formas religiosas e étnicas de controle

social, e uma e outras com a desorganização ideológica e a atomização das

organizações populares que foram muitas vezes traídas pelos líderes e em

geral corrompidas com sistemas de clientelas e de máfias populistas.

Mas o poder do novo Estado dependente tem essas bases e outras mais.

Além dos processos de reconversão, desregulamento e liberalização, o

Estado neoliberal recompôs suas bases sociais na própria sociedade

excluída, informal, com uma espécie de burguesias pobres, legais e

ilegais, e opôs ao fantasma do comunismo com que ameaçavam as classes

médias e os operários na época de ascensão o fantasma da exclusão

generalizada e do desemprego majoritário de trabalhadores e da classe

média, já sem centralidade e sem combatividade juvenil. O novo Estado

dependente conseguiu

p. 58

que muitos trabalhadores preferissem ser explorados a ser excluídos, o

que levou Fernando H. Cardoso a dizer que o fenômeno que deve ser temido

já não é a exploração, mas a exclusão 11; enquanto Hinkelamert sustenta

que a característica essencial da população atual do Terceiro Mundo é que

se traia duma população sobrante. Afirmações sem fundamento, quando de

fato ocorre o seguinte: combinou-se de maneira sem precedentes na

história do mundo a exploração com a exclusão, a população oprimida que

trabalha cada vez mais por menos, com a que está sobrando e não tem

trabalho, nem assistência, nem solidariedade, nem nada.

O modelo não pára por aí. A dominação do novo Estado conta com o

poder do mercado e dos oligopólios quando satisfaz suas demandas

substantivas e está sujeito a eles como à "mão de Deus" quando a algum

neoliberal heterodoxo ou a algum populista tresnoitado se lhe ocorre

opor-se a seus desígnios. Nesses casos o próprio Estado se acha muito

mais exposto a sofrer os embates do mercado medroso e do capital

agressivo, sobretudo agora, que desmantelou as instituições sociais e

nacionais que antes mais ou menos o protegiam de desestabilizações

naturais ou induzidas. Há ainda mais: o "desregulamento" ou

"liberalização" ocorre quando a trama das estruturas nacionais,

internacionais e transnacionais da dependência dá prioridade às

transnacionais e se apóia nos estados hegemônicos para aumentar sua

própria força com a do poderio central, enquanto aproveita ou fomenta as

lutas étnicas e outras divisões dos estados dependentes, para reinar na

sociedade periférica convertida em mosaico de etnias ou tribos, e de

seitas, algumas pós-modernas. A preparação dos exércitos locais para a

guerra, primeiro interna e agora

p. 59

"de baixa intensidade", e a dos exércitos centrais para ações rápidas e

"guerras de saturação", apresenta um multiestado que, no plano

hegemônico, é muito mais poderoso e que, a partir da periferia, parece

difícil de mudar. Nele, a busca de alternativas exige não deixar nenhum

cabo solto e, em primeiro plano, exige descartar soluções populistas-

nacionalistas ou do socialismo real que, com o autoritarismo e a

corrupção, levariam de novo ao desastre. Essa história não pode repetir-

se. E é aí que surge a nova utopia que já está na terra, que já está

aqui: a de uma democracia também global, plural, transparente, na qual a

sociedade civil controle o multiestado no todo e em suas partes e assuma

o problema social com o poder da maioria em cada nação e na humanidade.

Essa utopia surge nas mais diversas regiões e países, em pequenos e

grandes movimentos, muitos deles populares. Todos eles forjam sem dúvida

os caminhos da alternativa emergente. Mas esta coloca muitos problemas de

organização e dinâmica, de vontade ética e conhecimento técnico e

político que estão longe de ser resolvidos.

4. A alternativa

Do ponto de vista científico há um problema genuíno que realmente

temos que investigar. Por mais profunda e exata que seja a análise do que

acontece, a radicalização da análise por si só não resulta numa ação

política efetiva. Na hora de atuar é muito difícil estruturar uma

política alternativa. Nem os neoliberais arrependidos podem facilmente

fazê-lo, nem os reformistas ou os revolucionários, se por acaso tentam

agir. A falta de pontes entre o que poderíamos chamar de análise radical

e a ação política alternativa deixa a análise entregue a si mesma; deixa-

a como reflexão, como protesto ou como queixa; sem maior transcendência.

Acontece assim hoje, talvez mais do que nunca, essa rara ruptura

p. 60

entre o discurso científico e o político; entre a análise do que acontece

realmente e do que se deve fazer para que a espécie humana salve o

planeta acabando com os excessos do consumo e da fome.

Como abordar esse problema? Na falta dum protagonista real e

verdadeiro - classe operária ou todo o povo -, um caminho necessário é o

aberto às organizações realmente democráticas dos movimentos sociais, com

atenção às alternativas que surgem dos próprios movimentos sociais.

Outro, não menos importante, é o apoio de projetos que vêm da malha

institucional e que podem crescer: projetos concretos pelo cancelamento

da dívida externa, ou pela democratização das Nações Unidas, ou para que

os Estados Unidos acabem com o bloqueio contra Cuba, ou para que as

grandes potências cumpram e não só façam cumprir o direito internacional,

enquanto forjam com todas as nações uma nova ordem jurídica mundial.

Outro caminho, também importante, será o de reformular o programa global

democrático e socialista, a partir das velhas e das novas organizações

internacionais de libertação de povos e trabalhadores, inclusive as de

antigos comunistas que formulem um projeto democrático de socialismo, e

as de socialdemocratas que assumam a solução do problema social como

problema global de acumulação mundial.

A alternativa ao neoliberalismo é um problema moral, político e

social de urgente solução. É também o mais importante problema

intelectual que se coloca às ciências sociais do nosso tempo: estas não

podem propor um regresso ao passado sem converter-se em piada. A

alternativa para o Estado neoliberal será uma democracia social diferente

do Estado benfeitor, do populista e do socialismo real. A única coisa que

sabemos é que será uma alternativa democrática que lute pelo poder da

maioria e para uma economia da maioria em cada nação e em nível mundial.

É esse o projeto que devemos pensar e realizar.

p. 61

Bibliografia complementar

AMIN, Samir (coord.) (1993). Mondialisation et accumulation. Paris,

L'Harmattan.

GONZÁLEZ C AS ANO VA, Pablo (coord.) (1994). État et politique dans lê

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Iorque, State University Press.

STRAM, Rudolph H. (1986). Pourquoi sont-üs si pauvres? Boudry, La

Baconnière [Edição brasileira: Subdesenvolvimento -Por que somos tão

pobres. Petrópolis, Vozes,1992].

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México, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en

Humanidades/Unam.

Pablo González Casanova é professor e ex-reitor da Universidad Nacional

Autônoma de México (Unam)

O presente capítulo foi publicado em GONZÁLEZ CASANOVA, Plabo - SAXE-

FERNÁNDEZ, J. (org.) (l 996). El inundo actual: situación y alternativa.

México, Siglo XXI.

Traduzido para o português por Lúcia Endlich Orth.

p. 62

NOTAS

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1. Brown, Lester R.(1991)The New World Order Washington, Worldwatch

Instituto,3.

p. 46

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2. Kaufman, Michael T. (1989) Across a dividcd Europc - An idcology undci

sicgc (New York Times, 23/01: 1). In The Third World - The hegemony of

Marx takes many

shapes (Ibid, 24/01 1)

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3. C.f. Held, David (1989) Political Tlieon and the Modern State

Standford, Standford llnivcrsity Press, p 228s

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_____________

4. Sobre este problema, v Casanova, Pablo G (1994) Colonialismo global et

democrátic In: État politique dans le tiers-monde Paris, L’Harmattan, p

11-73

p. 50

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5. Hirshraan, Albcrt (1987) The Pohtical Economy ofLatm American

Devclopmcnt Scvcn Excrciscs m Retrospectivo Latiu American Reseaich

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6. Durming, Alan B (1989) Povcrty andthc Environmcnt-Rcvcrsmg The

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7. African Debt- The Case of DebtRelief (1990) Nova Iorque, Umtcd Nations

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8. Gorostiaga, Xabier (1993) El sistema mundial situación alternativas La

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feita no Seminário El mundo actual situación y alternativas.]

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9. Taylor, Lance (1993) The Rocky Road to Rcform Tradc, Industrial,

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10. Banuri, Tanq-Amadeo, Edward J (1992) Mundos dentro dcl tcrccr mundo

mstitucioncs dcl mercado de trabajo cn Ásia y America Latina El Trimestre

Econômico, vol LIX (4), n 236 657-723.

p. 56

__________

11. Cardoso, Fernando Henrique (1991). Lãs relaciones norte-sur en el

contexto actual una nueva dependência? El Socialismo del Futuro, 3: 138

p. 59

3 - Göran Therborn

Dimensões da globalização e a dinâmica das (des)igualdades

O tema da conferência sobre globalização e (des)igualdade pode ser

abordado de dois ângulos. Nossa questão levanta uma indagação básica e

outra suplementar. Primeiramente, a globalização conduz a igualização ou

à polarização? A indagação suplementar ocorre no caso de nossa resposta

ser "a igualização". A globalização tende então a nivelar para cima ou

para baixo?

A ciência social do século XIX nos deixou dois diagnósticos e

prognósticos opostos com respeito à (des)igualdade, incidindo ambos sobre

as experiências da Revolução Francesa e o novo mundo anglo-saxão.

Alexis de Tocqueville visualizou uma era futura e extensa de

igualdade e igualização, anunciada pela Revolução, porém mais

desenvolvida em Democracia na América. Onde Tocqueville anteviu "séculos

de democracia" sucedendo a "séculos de aristocracia", Karl Marx viu a

transição do feudalismo para o capitalismo, com novas e polarizantes

formas de desigualdade econômica e uma nova rodada de lutas de classes.

De acordo com Marx, a igualdade legal da revolução burguesa deixava a nu

e até mesmo com maior rigor o acúmulo de riqueza para uns e de miséria

para outros.

Eu deixarei que esses dois eminentes cavalheiros do século passado

descansem em paz, mas as conclusões opostas

p. 63

dos homens sobre cujos ombros nós, cientistas sociais da atualidade,

estamos sentados, deveriam incitar-nos à especificação analítica, à

experimentação escrupulosa e à cautela nas conclusões.

Assim, um passo na direção da prudência e da circunspecção deve ser

o de tentar desenrolar o novelo de pontos controversos envolvidos na

aparentemente simples e objetiva questão da globalização e da

desigualdade. Há pelo menos quatro colocações aqui envolvidas: 1) Qual o

tipo de globalização?2) (Des)igualdade e globalização do quê? 3)

(Des)igualdade para quem? 4) Por quê?

1. Qual o tipo de globalização, e igualdade para quem?

Aqui me absterei completamente de ingressar nos habituais debates

acerca de globalização versus não-globalização, do global versus

nacional, o quanto, quão rápido, quão novo, etc. Permitam-nos

simplesmente pressupor, em nome da argumentação, que existem tendências

de globalização, de interconexão de todas as partes de nosso planeta, e

em particular de todas as partes das criaturas que habitam o mesmo. De

modo mais formal podemos dizer que a globalização se refere a tendências

para um alcance ou impacto de fenômenos sociais universal, abstendo-se

deliberadamente do tipo comum de formulações mais barrocas.

Nesse sentido geral a globalização pode ser de dois tipos

diferentes. Um deles se fundamenta nos atores subglobais, gerados e

enraizados fora da globalidade - por exemplo: nos processos de

nacionalização, e sua interação, incluindo-se casos de superatores

dominantes impondo sua vontade sobre um

p. 64

certo número de atores menos poderosos. Podemos classificar esse tipo

como de interação global. Um outro tipo de globalização deriva da

existência dum sistema global,pelo qual os atores obtêm seu roteiro e sua

localização no palco. Neste último caso existem processos sociais comuns

universais, em que os atores humanos tomam parte, sejam eles estados,

corporações, outras organizações ou indivíduos.

Hirst e Thompson (1996) fizeram uma distinção semelhante entre uma

economia internacional e uma economia globalizada, embora eu não concorde

inteiramente com a sua aplicabilidade tipicamente idealista. Uma

teorização de rompimento de caminhos da globalidade como um sistema foi

conceito de Wallerstein (1974) do "moderno sistema mundial".

Contudo, tanto interação como sistema, a globalização deveria estar

liberta de qualquer reducionismo econômico, lendo em perfeita conta a

multidimensionalidade dos fenômenos sociais. Nesse contexto julgamos ser

melhor fazer isso em conjunção com uma discussão da (des)igualdade.

No contexto da desigualdade, os dois tipos de globalização despertan

a indagação: Igualdade para quem? Uma pergunta não formulada no livro

seminal de Amartya Sen (1992). Na extensão em que se acha atualmente

operando, a globalização coloca na agenda a igualdade ou desigualdade

para os seres humanos do globo inteiro. Na verdade, podemos mesmo encarar

como aspectos ou momentos de globalização todos os processos que

apresentam conclusões sobre a igualdade ou desigualdade dos seres humanos

na terra.

Visto que a globalização pode referir-se tanto aos processos globais

sistêmicos como à interação mundial entre atores exógenos, temos duas

indagações sobre (des)igualdades para serem respondidas. O que está

acontecendo com a (desigualdade entre os seres humanos como um todo, ou,

de modo alternativo, entre os grupos de atores? O que está ocorrendo

p. 65

com as relações entre membros do mesmo segmento? Em termos mais

concretos, a (des)igualdade global é a soma de (des)igualdades no seio

dos estados e aquela

entre os estados, na medida em que esta última não tem se tornado

obliterada pelos processos globais sistêmicos.

Independentemente da igualdade diante de Deus, a igualdade humana

tem de fato até hoje sido raramente concebida e estendida além da cidade,

de algumas periferias rurais, e a nação-estado, além dos cidadãos

masculinos da antiga polis grega, dos homens livres das sagas do mundo

islâmico, dos burgueses da cidade medieval e dos habitantes da nação-

estado. Houve alguns círculos funcionais de igualdade entre intelectuais

- dos confucianos literatos da China clássica e no início da moderna

"Republique dês lettres " - e entre pequenas comunidades religiosas

fechadas.

As campanhas antiescravistas de fins do século XVIII e adiante foram

provavelmente a primeira manifestação de igualitarismo universalista

humano neste mundo. O atual movimento ativista dos direitos humanos é um

herdeiro contemporâneo desse igualitarismo.

2. (Des)igualdade de quê?, e as dimensões da globalização

"A indagação principal sobre a análise e avaliação da igualdade é...

‘igualdade de quê?’”, como o grande economista indo-americano Amartya Sen

(1992) argumentou em seu livro. A importância dessa questão deriva da

“heterogenia fundamental dos seres humanos", que torna algumas

desigualdades triviais, mas também, como Sen assinala, essas pessoas que

argumentam contra alguns tipos de igualdade comumente favorecem alguma

outra forma de igualdade. Sen também nos dá uma interessante resposta a

essa questão.

p. 66

O que importa, acima de tudo, é a igualdade de capacidade, definida como

a capacidade de cumprir funções, isto é, seres leitos que uma pessoa tem

razão em valorizar (p. 4 s).

A discussão feita por Sen situa-se num alto nível de abstração, que

pode ser especificado empiricamente de vários modos. Mas contrastando com

muita teorização social atual,it oi ia de Sen pode ser aplicada e

avaliada concretamente.Assim, por exemplo, o Programa de Desenvolvimento

das

Nações Unidas (UNDP, 1996: 109-112) ideou e colocou em prática uma

"medição da capacidade de pobreza", baseada na teoria de Sen.

Para um sociólogo, a "capacidade de realizar" relaciona-se

naturalmente com os motivos para agir. O conceito de Capacidade de Sen

pode então ser especificado como abarcando quase todas as variáveis

elementares estruturais e culturais da sociologia relacionadas com a ação

social. Achei mais proveitoso resumir essas variáveis numa subsérie de

tardas, direitos, meios, e riscos e oportunidades, e num subconjunto

cultural de identidade, cognição e valores, e normas. - O conjunto de

valores e normas terá que ser encarado nesse contexto como um sistema

social e não como valores e normas próprios do ator, já que a capacidade

se refere a executar o que alguém valoriza.

Um debate empírico e abrangente sobre a desigualdade deveria então

envolver a divisão do trabalho - hierárquico ou igualitário -, a alocação

de direitos, a distribuição de renda e riqueza, a estrutura de riscos e

saúde e de oportunidades de carreira. Deveria atentar também para a

padronização de auto-imagens e autoconfiança, a difusão de conhecimentos

e para a abertura ou rigidez de sistemas valorativos relativamente à gama

de opções individuais e aspirações na vida.

Uma análise ampla desse tema não caberia numa simples conferência.

Mas, ao encarar a desigualdade em termos de

p. 67

capacidades, não só as posições fixas e polêmicas de igualdade versus

liberdade são superadas. Com isso nos fornece uma visão objetiva e nova

dos problemas de igualdade e desigualdade no mundo. Além disso, essa

perspectiva também coloca as questões relativas à globalização num

enfoque muito mais amplo do que a do habitual enfoque econômico da mídia.

Podemos assim combinar os dois tipos de processos de globalização

com uma leitura sociológica básica do conceito de capacidades de Sen, a

fim de obter-se um feixe de dimensões da globalização apoiando-se

crucialmente, sustentando aqui nossa abordagem da (des)igualdade.

Tabela l - Dimensões da globalização

P. 68

Muitas das especificações acima são até certo ponto auto-evidentes,

uma vez que se mostram muito pronunciadas, e nós nos afastamos dos

confins da discussão econômica convencional. Mas algumas observações

ilustrativas podem ser pertinentes.

O clássico interesse sociológico pela divisão do trabalho enfoca a

interdependência que ele envolve e a paz e a solidariedade, supostamente

derivadas do mesmo, são evidentes. Mas à luz da modernidade necessitamos

distinguir essa interdependência entre os trabalhadores autônomos, atores

exogenamente colocados num determinado território, em busca de seu local

próprio de trabalho e intercambiando com outros, das unidades de trabalho

geradas e definidas globalmente. A "produção mundial" no sentido acima se

refere a um mecanismo mundial amplo para a alocação da produção. Podemos

notar isso bem exemplificado na produção de componentes de automóveis e

aparelhos eletrônicos de algumas empresas.

Um mercado mundial é aqui encarado como um mecanismo global comum

para a locação de renda e riqueza, de oportunidades, todo o tempo. Um

mercado mundial nesse sentido é também uma precondição da produção

mundial. Mercados mundiais para mercadorias, sementes, por exemplo,

emergiram no final do século XIX e desde então se desenvolveram,

incluindo marcas mundiais de bens de consumo, como Coca-Cola, Levis

(jeans), etc. O Padrão Ouro foi um mecanismo global, e assim também é o

mercado de finanças mundiais atual.

Vale a pena observar com respeito à interdependência estrutural que

o comércio mundial não está se desenvolvendo mais do que as economias

nacionais. Em 1956, as exportações

p. 69

mundiais constituíram cerca de l décimo do GDF (Produção de bens e

derivados) mundial, 9,4% segundo o FMI. Essa cifra se manteve quase

imutável até 1973-1974,

detendo-se em 10,9% em 1972, alcançando apenas a cota de 1913. O petróleo

da Opec elevou a cota para 16,l % em 1974. Desde então as exportações

mundiais têm oscilado em torno desse valor, indo até acima de 17-18% por

volta de 1981, declinando então ligeiramente, para cerca de 15% no final

dos anos 80 (FMI, 1988: 5 Os), elevando-se novamente em meados de 1990,

para 22% em 1996 (FMI, 1996: 160).

As estatísticas para os países da OECD revelam um padrão semelhante

de dependência internacional nos negócios: estabilidade até 1973-1974; um

salto seguido por uma estabilidade básica, com uma ligeira curva

declinante no final dos anos 80 até o início de 1990, melhorando

novamente em 1994 (OECD, 1996: gráfico 6.12). Em relação às transações de

bens, tanto os Estados Unidos quanto o Japão exibiram uma ligeira

tendência para a diminuição da dependência do mercado mundial desde 1980,

conquanto os EUA estejam oscilando em torno da mesma linha tendencial

(Eurostat,1995: 260s).

A "competição global intensificada" inclui uma dose substancial de

retórica.

A migração transnacional afeta as estruturas de oportunidades e

indica tendências para um mercado de trabalho mundial, ainda um fenômeno

marginal. E hoje mais acentuadamente do que há uma centena de anos, com

gigantescas levas de europeus rumando para as Américas e a Oceania,

números significativos de indianos espalhando-se pelo Império Britânico,

de chineses restritos bem cedo ao sudeste da Ásia. Na década de 90, cerca

de dois por cento da população mundial

p. 70

passaram a viver fora de seu estado natal (Unrisd, 1995: 62; Banco

Mundial, 1995: 65).

As conferências sobre o meio ambiente da ONU, realizadas em

Estocolmo (1974) e no Rio de Janeiro (em 1992), colocaram em foco a

globalização quanto aos riscos ambientais, tanto em relação ao clima do

planeta como à poluição transnacional.

As identificações individuais no mundo inteiro têm se expandido com

a comunicação global, com astros e estrelas da música e dos filmes, com

atores de novelas. Mas isso é diferente da abrangência das identidades

coletivas mundiais, que permanece muito mais limitada. Pode haver algum

embrião de identidade humana ecológica e de alguma identidade mundial

categórica, principalmente feminista. "Internacionalismo proletário" no

sentido marxista é notadamente tênue ou ausente. Mas se marchamos muito

mais adiante do que a campanha antiescravista do século XIX, é uma

questão em aberto. A ambição dos antiescravistas é bem exemplificada por

uma gravura utilizada pela Sociedade Britânica em sua propaganda da

abolição do tráfico de escravos. A gravura mostrava um africano

ajoelhado, com grilhões, indagando: "Não sou eu um homem e um irmão?"

(Blackburn, 1988: 139).

As ciências naturais e, mais recentemente, a ciência médica produzem

conhecimento universal. Nas ciências sociais e na área de humanidades,

isso é ainda somente uma tendência, no meio de diferenças nacionais e

regionais persistentes. Essas últimas são também concernentes, é claro,

ao "noticiário mundial" divulgado pela tevê via satélite. Um outro

aspecto da globalização cognitiva é o da produção de estatísticas

globais. O Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, de 1996, por

exemplo, nos fornece grande riqueza de informações sobre 174 países.

p. 71

Sistemas de valor adquiriram um caráter mais ou menos global muito

cedo. A difusão do que Max Weber chamava de "religiões mundiais" alcançou

proporções impressionantes no primeiro milênio da era cristã, dada a

dificultosa logística da época. O hinduísmo expandiu-se do noroeste da

índia através do subcontinente, e mais além, para o Sudeste Asiático. O

budismo viajou do noroeste da índia à Ásia Central, sul da Ásia, China e

Japão. O cristianismo alcançou a índia via Mediterrâneo, penetrou fundo

no noroeste da África e conquistou toda a Europa. O islamismo de todos

foi o que se espraiou mais depressa, indo de Portugal a Beijing.

Posteriormente, as duas grandes religiões do oeste asiático foram

encontrar-se nas Filipinas.

No século XX têm vigorado, no mínimo, três ideologias globais muito

poderosas. O nacionalismo é uma delas, difundida, não intencionalmente,

pelos poderes colonial e imperial da Europa e da América do Norte. O

socialismo foi uma outra dessas ideologias, fora a luta de classes no

mundo industrial impulsionada pelo perceptivo exemplo da União Soviética

como uma força de contenção contra os poderes do imperialismo

capitalista. Mais recentemente, e restrita a círculos elitistas

diminutos,mas alguns muito poderosos e bem distribuídos pelo mundo, temos

o neoliberalismo econômico, aferrado a um novo evangelho de crescimento

econômico. Desde 1945 a "democracia" tem sido um valor universal, e desde

fins de 1980 a ela tem sido conferida uma interpretação similar em muitas

partes do mundo.

Em relação às formas simbólicas existem certas formas elitistas no

mundo da arte. O conceito de "literatura mundial" remonta, afinal de

contas, a Goethe. A língua inglesa, a música pop e o rock, como também os

filmes de ação são variantes de massificação mais recentes de formas

simbólicas

p. 72

universais. Mas o quanto são importantes tais variantes em comparação com

os processos interativos de "creolização" ou "hibridização" é uma questão

sujeita a muitos debates.

A ação no mundo inteiro já fora realizada pelos antigos impérios

europeus, o espanhol, o português, e um tanto mais tarde pelo holandês, o

inglês e o francês. A Guerra Fria entre as duas superpotências, em meados

deste século, foi uma nova versão do conflito mundial da Inglaterra e da

França no século XVIII.

Mais recente é a ação combinada global, através da ONU, suas

organizações especiais, suas conferências globais c suas convenções

monitoradas, sendo que todas elas tornaram-se cada vez mais redes

mundiais geradoras de Organizações Não-Governamentais (ONGs). A seguir

temos a ação global combinada dum capitalismo transnacional

institucionalizado, isto é, do Banco Mundial e do FMI, o fiscal global e

a fiscalização monetária que tem sido intensificada e estreitada muito

significativamente nos últimos anos. A ação concertada de âmbito mundial

entre estados pode ser rastreada desde fins do século XIX e seus novos

sistemas de comunicação, gerando, por exemplo, a internacional Postal

Union.

3. Igualdade por quê?

Igualização ou nivelamento podem operar para cima, erguendo aqueles

colocados abaixo, ou para baixo, afundando aqueles que estão em cima, ou

alguma mescla das duas ações. E a inequalização pode ocorrer nos mesmos

três modos. Quais os mecanismos que governam esses resultados? Quais os

processos que levam a eles? A ciência social não possui nenhum conjunto

de respostas especificadas e modelos elaborados pertinentes a tais

indagações. Podemos indicar, porém, onde nos parece mais proveitoso

buscar algumas respostas.

p. 73

Eu me arrisco então a dizer que deveríamos atentar para quatro

mecanismos principais de igualização e desigualização. Podemos chamar

dois deles de econômicos, tanto no que diz respeito à sua localização

como ao seu efeito, principalmente sobre a igualdade econômica. Um desses

mecanismos é o esforço produtivo d ou produtividade, seus padrões e seus

desenvolvimentos, sendo de se esperar que os indivíduos mais produtivos,

classes e áreas de atuação obtenham mais elevadas recompensas do que as

menos produtivas. O outro mecanismo é o de estruturas de oportunidade, em

particular extensões de mercado. Quanto mais amplas as oportunidades,

sejam elas nos segmentos de produtos, financeiro, ou mercados de

trabalho, maiores serão as recompensas para os mais bem-sucedidos.

Um terceiro mecanismo pertence mais ao que comumente encaramos como

o domínio da política, isto é, medidas e instituições sustentadas pelo

poder, em especial pelo poder estatal. O poder é uma moeda conversível.

Ele pode afetar virtualmente todas as dimensões da igualdade e em

direções opostas. Finalmente, um quarto mecanismo é o sociocultural,

operando principalmente através da comunicação, do conhecimento, da

persuasão e da dissuasão de identidades e valores. É importante

principalmente para outras capacidades do que para meios econômicos.

Produtividade e esforço produtivo no contexto global são sempre

atributos de atores e como tais podem ser distribuídas uniformemente, ou

não. Comunicação e estruturas de oportunidades são características

sistêmicas; variam ao longo do eixo de inclusão e exclusão. O poder pode

ser encarado de dois ângulos, como o da sua distribuição desigual ou

igual e como um aspecto excludente/includente do sistema social.

p. 74

Esses quatro mecanismos têm relações muito diferentes com a

globalização. Esta envolve estruturas de oportunidades mais amplas e de

comunicações extensas. Ambas são intrínsecas à definição de globalização.

Em contraste, a globalização pode ter efeitos sobre a produtividade e o

esforço e sobre o poder.

Os desenvolvimentos tecnológicos afetam de modo crucial todos esses

mecanismos de (des)igualdade e especialmente aqueles da produtividade,

estruturas de oportunidades e comunicação. Eles são parte dos geradores

de globalização. Mudanças tecnológicas têm tornado a produtividade muito

menos dependente dos fatores ambientais exogenamente apresentados, da

energia e de matérias-primas. As estruturas de oportunidade têm se

ampliado devido ao barateamento dos custos de transporte. A comunicação

tornou-se

mais extensiva graças às novas tecnologias de comunicações de abrangência

mundial. Numa duração longa de tempo, digamos os últimos cem anos, a

capacidade dos estados tem aumentado também devido aos avanços

tecnológicos sustentando o gerenciamento organizacional e incidindo sobre

o acesso do Estado aos mesmos, sua monitoração e a realimentação de sua

população.

4. A globalização e os mecanismos econômicos da (des)igualdade

Podemos então abrir a porta para o mundo empírico, indagando e pelo

menos sugerindo uma resposta a esta pergunta: O que significam para esses

mecanismos as tendências da globalização?

p. 75

O aumento da interdependência estrutural e uma difusão mais ampla do

conhecimento tenderia a decrescer as diferenças de produtividade e por

conseguinte trabalhar em prol duma maior igualdade, melhorando-a. Essa

foi a rota principal para a igualização entre países e entre regiões na

Europa nas décadas de 50 e 60, tanto no oeste como no leste - onde o

enorme incremento de investimento era mais importante por meio da

industrialização, da racionalização agrícola drástica e da urbanização

(cf. Therborn, 1995: cap. 10). Em muitos países, a calamitosa pobreza é

acima de tudo um fenômeno rural. As tendências para uma globalização da

produtividade agrícola têm, com toda probabilidade, um efeito igualizante

ascendente. Isso já se apresenta no Leste Asiático.

Quanto aos efeitos reais das extensões do mercado não há nenhuma

evidência conclusiva e inequívoca. Às vezes o efeito parece ter sido

pequeno, como por exemplo o efeito causado pelos EUA sobre as diferenças

de renda entre países e entre regiões. Efeitos polarizadores surgem de

determinada capacidade diferencial da população para utilizar uma

oportunidade estrutural modificada, seja ela a de acréscimo ampliado ou

devido ao transporte mais barato e dos custos de outras transações. Para

aqueles que são bem-sucedidos, seja por sorte, talento, posses ou empenho

pessoal, um mercado mais amplo significa maiores recompensas. Para os que

não têm tais predicados, qualquer que seja o motivo, a extensão do

mercado significa ser deixado para trás, a marginalização ou

empobrecimento por estar fora da competição. A abertura das estruturas de

mercado na ex-comunista Europa Oriental, especialmente na Rússia, e na

China tem levado a aumentos drásticos da desigualdade, alcançando agora

proporções manifestas na América Latina (Banco Mundial, 1997ª: gráfico

p. 76

5). No caso da China, o Banco Mundial (1997b) chegou mesmo a alertar

explicitamente contra a desigualdade crescente, com uma série de

recomendações visando uma maior igualdade, principalmente entre cidades e

no campo e entre regiões costeiras e periféricas do interior.

A migração transnacional, as estruturas extensivas de oportunidades

de trabalho além das fronteiras nacionais, tem exercido efeito de

soerguimento em vários países expedidores, mais declaradamente nos países

de petróleo escasso do Oriente Médio, Egito, Jordânia, Lemen, Líbano,

Turquia, mas também sobre países distantes entre si, como Portugal,

Marrocos, Grécia, Paquistão, Bangladesh, Filipinas, México, etc. Efeitos

declinantes sobre os salários de principalmente) homens não

especializados no mercado de trabalho nos países coletores têm sido

grandes, mas alguns efeitos reduzidos são calculados para os EUA (Banco

Mundial, 1995:53s; Unrisd, 1995: 65s).

Os esportes globais, diversões e mercados financeiros até o presente

têm exercido claramente tais efeitos polarizantes. Isso tem conduzido

mesmo a um nicho industrial de interpretação social, enfocando o alegado

surgimento duma sociedade em que "o vencedor leva tudo" (Frank - Cook,

1995).

No todo, a história moderna da economia mundial atesta uma

diversidade de trajetórias e resultados, incluindo fortes tendências

polarizantes.

p. 77

Gráfico l - O GDF per capita em alguns países - 1900-1992 como uma

percentagem dos EUA

Obs.: O GDP é calculado em dólares internacionais. A Europa Ocidental é a

média aritmética de 11 países, da França e da Austrália até a Noruega.

Fonte: Maddison, A. (1995). Monitoring the World Economy 1820-1992.

Paris, OECD, p. 23s.

A África e a índia ficaram claramente em atraso no decorrer do

século XX. A China está agora de volta ao ponto onde estava,

relativamente falando, por volta de 1900, e o mesmo ocorre, de modo

geral, com a América Latina. Somente o Japão, a Coréia e Taiwan têm se

aproximado das economias do Atlântico Norte, excluindo os desertos

petrolíferos.

Nos últimos trinta anos a distância entre os países menos

desenvolvidos - grande parte do Subsaara Africano, mais o Haiti, o

Afeganistão, Bangladesh, Mianmar e alguns outros e o resto do mundo tem

se ampliado. Enquanto o GDP mundial per capita cresceu em mais de 3 por

cento ao ano, a pequena produção dos países menos desenvolvidos aumentou

apenas 0,4-0,5% anualmente. O GDP das regiões do Subsaara Africano per

capita realmente declinou entre 1980 e 1993 (Programa de Desenvolvimento

da ONU de 1996: gráfico 25). Gráfico estatístico do FMI (1997: 78) para

as regiões econômicas do mundo no período de 1965 a 1995 revela um quadro

semelhante. Em meados de 1990 o mundo rico, medido pelo GDF per capita

(nas paridades do poder de

p. 78

compra), era muito mais adiantado do que em 1965 para a África, a América

Latina e para os maiores exportadores de petróleo. Esse índice era um

tanto mais significativo para o Oriente Médio (excluindo os maiores

exportadores de petróleo) e para a Ásia como um todo (excetuadas as

economias industrializadas do Leste Asiático). Os países desenvolvidos cm

geral, excluindo-se somente os "tigres" do Leste Asiático, encararam o

mundo rico com praticamente a mesma distância de 1965, um pouquinho mais

próximos. Ganhos espetaculares foram alcançados pela Coréia, Taiwan,

Singapura c Hong-Kong e avanços substanciais foram atingidos pela China,

Malásia, Indonésia, Tailândia e Chile.

A melhoria nos negócios internacionais e do fluxo de capitais desde

meados de 1980, isto é, as mais recentes manifestações de globalização

econômica, não tem gerado qualquer mudança da diversidade dos

desenvolvimentos dos países.

Todos esses índices dizem respeito ao efeito da desigualdade entre

os seres humanos. Não podemos dizer apropriadamente até que ponto o mundo

do mercado tem contribuído para essa desigualdade, que pode derivar

também de estagnação interna, conflitos destrutivos ou falências. No

Leste Asiático, investimentos e esforço no sentido da melhoria da

educação constituíram as forças principais para o crescimento bem-

sucedido, mas a produtividade também tem gerado aumentos significativos,

especialmente no Japão, na Coréia, em Taiwan e na China (Banco Mundial,

1993: 46 s). A única evidência declarada é a de que a globalização do

mercado não revela nenhuma tendência de igualização econômica para a

humanidade como um todo.

Isso implica, naturalmente, que não há qualquer pressão para baixo

nos países ricos. Os países ricos da OECD eram responsáveis por três

quartos das exportações mundiais em 1965. A crise do petróleo de 1973-74

reduziu tal participação

p. 79

para dois terços, patamar onde tem permanecido desde então. Em 1995, a

Europa Ocidental, a América do Norte, a Oceania e o Japão contabilizaram

65% das exportações mundiais (FMI, 1988 e 1996). O aumento das cotas de

mercado das bem-sucedidas economias exportadoras do Leste Asiático tem

sido gerado completamente por outros países "em desenvolvimento", cuja

fatia do bolo encolheu.

O efeito sobre a desigualdade nos países mais ricos devido aos

recentes progressos das novas economias exportadoras do Leste Asiático

não é muito claro e o padrão empírico é muito irregular. Isso, afora o

fato evidente de que os efeitos contingentes têm sido menores.

A importação de produtos manufaturados de países com índices

salariais baixos é muito mais importante em termos de negócios setoriais

nos Estados Unidos e no Japão do que na Europa. Os preços relativos

daqueles setores de importação competitiva - tais como produtos têxteis e

aparelhos, borracha e plásticos, brinquedos - declinaram nos anos 80, mas

os salários relativos baixaram somente nos Estados Unidos, mas não no

Japão e nem na Europa. As diferenças de produtividade setorial são muito

mais importantes para o esclarecimento dos salários relativos do que os

diferenciais das tendências de preços do comércio (OECD, 1997: cap. 4;

FMI, 1997: 53s).

5. O persistente poder do Estado

O padrão diversificado do desenvolvimento do país, não revelando

nenhuma tendência uniforme, quer de convergência ou divergência, indica

que os estados e as sociedades dependentes do Estado ainda têm

importância. Os sucessivos relatos sobre o êxito no pós-guerra dos países

do Leste Asiático, do Japão via Coréia e de Taiwan à China a indicam

economias

p. 80

orientadas pelo mercado mundial e guiadas pelo Estado, o que é um outro

indicador da importância dos estados.

Como muitos estados e políticas estatais contribuem para o

crescimento econômico, ou estagnação, é ainda um pomo de discórdia. A

evidência é mais acentuada em relação à capacidade dos estados de afetar

o montante da desigualdade entre seus habitantes. Utilizando os

indicadores do Banco Mundial e outros dados, Korzeniewicz e Moran (1997)

fizeram ampla pesquisa sobre a distribuição de renda no mundo de 1965 a

1992. O padrão global foi o de uma desigualdade crescente. A proporção

entre os mais pobres e os mais ricos, lendo como base a quinta parte da

população mundial, foi de 1,31 para 1,65. O salto mais acentuado ocorreu

durante a aceleração da globalização econômica na segunda metade dos anos

80, de 1,43 em 1985 para 1,65 cinco anos depois.

Mas o aspecto mais interessante dessa pesquisa foi sua captação de

tendências opostas de desigualdade entre países c dentro de países. Entre

os diversos países do mundo a desigualdade global tem aumentado

consideravelmente, implicando em que a proeza do Leste Asiático é até o

presente um fenômeno marginal na totalidade global. No interior dos

países, por outro lado, a desigualdade tem declinado significativamente.

Em 1965 a desigualdade dentro dos países era responsável por um quarto do

total da desigualdade na distribuição de renda mundial (24%); por volta

de 1992 essa cota baixou para um quinto (19%).

A importância dos estados e a capacidade estatal para assegurar um

padrão de igualdade e de segurança e estabilidade social não são

incompatível com uma orientação da economia de mercado mundial

"globalística" e nem está necessariamente num trade-off com a mesma. As

sociedades com ampla abertura para o mercado mundial, conforme foi

indicado pela proporção do comércio exterior em GDP, não são em

p. 81

definitivo mais desigual do que as sociedades com o mesmo sistema

econômico mas com menos negócios exteriores. Pelo contrário, há uma

tendência na direção oposta.

As pequenas economias abertas da OECD, dos países nórdicos, da

Bélgica, Holanda e Luxemburgo, são mais igualitárias do que os EUA ou a

Austrália, com um comércio exterior relativamente pequeno. Por outro

lado, o Japão é um país relativamente igualitário, com uma pequena cota

de negócios exteriores (Atkinson et alii, 1995). As economias de

exportação do Leste Asiático foram e continuam sendo mais igualitárias do

que a dos países do Terceiro Mundo (UNDP,1996: gráficos 17 e 36; Banco

Mundial, 1993: 72 s).

Gráfico 2 - Distribuição de renda, dependência de Negócios da OECD na

década de 80.

Coeficiente de renda disponível em meados dos anos 80 e cota de

exportação do GDP 1980-1989

Coeficiente = -0,27 Isto é, menos desigualdade, mais exportações Fontes

Atkinson et alii, 1995. 46, OECD, 1996 75

p. 82

Competidores bem-sucedidos, muito dependentes do mercado mundial, se

projetaram com distribuições de renda relativamente igualitárias. Tal foi

o caso da Escandinávia em relação ao resto da Europa Ocidental. Foi

também mais recentemente o caso das economias dos chamados "tigres"

asiáticos, Coréia do Sul e Taiwan, em particular, em comparação com a

América Latina. E o sucesso do mercado mundial das economias do sudeste

asiático pressionaram para baixo seus coeficientes Gini de desigualdade

nas décadas de 70 e 80 (Banco Mundial, 1993: 72s).

Noutras palavras, as disposições das nações norteadas pelo Estado

ainda importam bastante, conquanto uma tendência geral para uma maior

desigualdade entre as nações possa ser observada em muitos países da OECD

nos anos 80 e no início da década de 90. O sul da Europa, Itália,

Portugal e Espanha foram uma exceção, inteiramente desigual desde o

começo (Atkinson et alii, 1995: 47s).

As políticas e instituições estatais são intrinsecamente ambíguas em

seus efeitos sobre a (des)igualdade, dependente das configurações do

poder atrás delas. Alguns estados predatórios e cleptocráticos entre os

países pobres contribuem significativamente para a desigualdade

econômica. Entre as economias desenvolvidas ou em desenvolvimento, por

outro lado, há uma correlação positiva entre intervencionismo do Estado e

a igualdade de renda.

Os níveis de produtividade e a extensão de mercados pressionam

obviamente os estados a adotarem políticas igualitárias ou

antiigualitárias. E a capacidade dos estados em fazer o que seus cidadãos

ou seus dirigentes desejam, diante da crescente interdependência global,

é talvez a questão mais acalorada de todos os debates acerca da

globalização.

p. 83

Essa polêmica certamente irá ferver, mas um cientista social prático

poderia, pelo menos, lançar um balde d'água fria dos fatos sobre a mesma.

Programas de previdência social extensivos e generosos têm sido de fato

empreendidos historicamente e vigoram hoje em estados cujas economias são

mais dependentes do mercado mundial.

Gráfico 3 - Dependência do mercado mundial e previdência social nos

países da OECD.

Exportações e gastos públicos sociais como percentagem do GDF, 1993 e

1990-1991, respectivamente.

p. 84

A correlação entre dependência do mercado mundial e tamanho da

previdência social é significativamente positiva: 0,34.

Considerada em termos não-estatísticos, a globalização econômica não

fornece nenhum álibi para aqueles que desejam fraudar a previdência

social. E eu concordaria - por outro ângulo, o social-europeu - com o

economista norte-americano Paul Krugman (1994); para ele, os argumentos

predominantes referentes à competitividade das nações diante da ameaça da

globalização eqüivale a uma "perigosa obsessão".

6. A comunicação global e a (des)igualdade

Algumas pessoas pensarão provavelmente que, em comparação com os

padrões de produtividade, desenvolvimentos mercadológicos e políticas

estatais, a comunicação sociocultural é uma contribuição marginal,

principalmente retórica para as difíceis questões de igualdade e

desigualdade no mundo. Na realidade, ela é e tem sido um dos mecanismos

mais eficazes.

Mais importante é que a comunicação e a difusão prática do

conhecimento têm exercido um extraordinário efeito sobre a expectativa de

vida no mundo. A capacidade de sobrevivência é uma das poucas

capacitações humanas que aumentaram quase que universalmente entre 1960 e

1990. As políticas estatais têm desempenhado seu papel nisso, mas a

difusão transnacional do conhecimento médico e higiênico tem sido

crucial, principalmente através da globalização pela ação transnacional.

No hemisfério norte-sul a diferenciação quanto à expectativa de vida

diminuiu de modo significativo entre 1960 e 1993, e também entre a África

e o mundo desenvolvido. Em 1960, a expectativa de vida no Subsaara

Africano era de 58 por cento daquela registrada no mundo industrial, e em

1993 passou a ser de 68 por cento. O índice de alfabetização também

aumentou em relação aos países menos

p. 85

desenvolvidos, passando de um terço para metade do índice de

alfabetização dos países industriais (UNDP, 1996: gráfico 7).

A diferença no tocante à mortalidade infantil apresenta-se um tanto

diversa, com um quadro mais sombrio. Na verdade, para os países menos

desenvolvidos a taxa de mortalidade de crianças abaixo de cinco anos em

relação àquela taxa dos países industrializados declinou de 15 para 12

entre 1960 e 1993. Mas em longo prazo as taxas de mortalidade infantil

referente à índia, Siri Lanka, Egito e México não declinaram tão depressa

desde 1900 ou 1910, como ocorreu na América do Norte ou na Europa

Ocidental. Somente o Chile apresentou um índice relativamente mais

próximo do registrado nos EUA ou na Europa Ocidental.Em termos absolutos,

avanços maiores têm ocorrido em toda parte².

Gráfico 4 - Taxas de mortalidade infantil - 1900-1995

Obs.: (a) = média aritmética da França, Alemanha (Ocidental, 1960),

Itália e Reino Unido (1900-1940 - Inglaterra e Pais de Gales) ]

(b) = 1910-1940, referente somente aos brancos. O índice para os negros

foi de 181 e 132, respectivamente (c) =1920.

Fontes: 1900-1940, Mitchell (1992, 1993, 1995), 1995, Banco Mundial

(1997a: gráfico 6).

p. 86

É sob a ótica das crescentes probabilidades de sobrevivência no

Terceiro Mundo, com a Uganda sendo a única exceção para o período de

1960-1993, que a gravidade do desastre social na antiga União Soviética

sobressai completamente. Desde 1991 a expectativa de vida dos nascituros

tem declinado drasticamente ali. Na Rússia, na faixa dos 4 anos e meio;

na Ucrânia e nos Bálticos a média é de dois anos (Unicef, 1995:111). - Os

índices referem-se aos meninos, em 1994. A expectativa de vida das

mulheres também declinou, mas em menor grau, com cerca de três anos, no

caso da Rússia, dois na Ucrânia e um ano ou algo menos nas repúblicas

bálticas.

A expansão da democracia no mundo significa uma igualização de

direitos. Conquanto isso tenha sido fruto principalmente do efeito da

ação política nos cenários nacionais, a opinião corrente internacional

teve e continua tendo um forte impacto. A comunicação sócia cultural

global tem sido mesmo mais importante no impulsionamento duma igualização

dos direitos dos sexos, apoiando fortemente a igualdade de direitos para

agir entre mulheres e homens. As conferências globais das Nações Unidas,

tais como a Conferência sobre Populações no Cairo, com a sua defesa de

perspectiva de planejamento familiar visando a uma reprodutividade

saudável, e as duas conferências paralelas das mulheres realizadas na

China, a não-oficial e a oficial, foram significativas a esse respeito,

preparando agendas, gerando redes de transmissão global, ampliando

sistemas de referências.

O discurso sobre direitos humanos tem tido até hoje menos sucesso em

assegurar os direitos humanos mais elementares, em lutar contra a

tortura, assassinatos e o genocídio, em algumas partes do mundo. Mas a

globalização duma problemática de direitos humanos é uma contribuição

positiva para a igualização de direitos entre os seres humanos.

p. 87

Conclusão

Encarada como uma variável analítica - melhor do que como uma

categoria de interpretação - a globalização, no sentido de referenciação

a tendências para um alcance ou impacto de fenômenos sociais no mundo

inteiro, é antiga e multidimensional. A primeira onda importante de

globalização data de quase dois mil anos, com a primeira expansão das

religiões mundiais.

A própria tendência globalizante pode ser para a interação e

interdependência entre agentes exogenamente especificados e bem-dotados,

estados, corporações, associações, movimentos, ou pode ser encaminhada

para sistemas sociais globais, as arenas de que se constituem os atores.

Esses dois tipos de globalização podem envolver estruturação de recursos

e coerções, a padronização de riscos e oportunidades com o passar do

tempo, identidades, conhecimento, valores, como também formas simbólicas,

e de ação mundial abrangente, pelas superpotências ou interação

multilateral, e pela ação combinada mundialmente.

A (des)igualdade é por nós encarada também como um conceito

multidimensional, referendando Amartya Sen, mas relacionando as dimensões

a elementos sociológicos e aos conteúdos da globalização. Também

consideramos proveitoso distinguir (des)igualdade entre estados (e suas

populações) e no meio dos estados.

Quatro mecanismos foram considerados particularmente importantes

como forças de desigualização: 1) esforço e produtividade (atributos dos

atores), 2) estruturas e oportunidade, 3) poder (Estado), e 4)

comunicação.

Até o presente nos deparamos com a globalização mais interativa do

que sistêmica, mas as duas tendências existem.

p. 88

Os efeitos da globalização sobre a desigualdade são múltiplos e

difíceis de ser resumidos numa única exposição.

No que diz respeito à distribuição de renda e riqueza no mundo, o

padrão em longo prazo se aproxima mais na direção da divergência do que

no rumo oposto, e a recente aceleração da globalização econômica vem

sendo acompanhada pelos diferenciais de aceleramento da renda no mundo.

Mas o exame intensivo de recentes desdobramentos da questão lança

dúvidas acerca da tese duma tendência forte e uniforme de efeitos

advindos da extensão das estruturas de oportunidade do mercado mundial,

muito mais aberto ao capital do que ao trabalho, e muito mais franqueado

para o capital financeiro do que para o produtivo. A recente

desindustrialização e a decrescente oferta de trabalho na indústria para

a mão-de-obra não qualificada nas economias mais desenvolvidas parecem

derivar muito mais dos desenvolvimentos da produtividade do que da

competição comercial de remuneração baixa. As bem-sucedidas economias do

Leste Asiático também revelam índices extraordinários de acumulação e,

dado o seu nível de desenvolvimento, aumentam notavelmente a

produtividade.

Os estados mantêm significativos poderes e o uso destes tem

importância. Parte desse poder tem sido usada ultimamente para promover a

globalização financeira e econômica, através da elevação de controles do

capital e a diminuição das barreiras tarifárias. Seria inteiramente

equivocado encarar os estados contemporâneos como meras vítimas de alguma

globalização externa.

No decurso dos últimos trinta anos a desigualdade entre estados

aumentou fortemente, enquanto declinava significativamente no interior

dos estados, tendência essa ainda não

p. 89

desfeita pela não-igualização recente intra-estados. Verificamos depois

que as sociedades igualitárias têm sido, historicamente, mais bem-

sucedidas no mercado mundial do que outras mais desigualitárias. Os

países nórdicos mostraram isso há mais ou menos um século e desde a

década de 60 esse padrão é repetido pelas histórias de êxito dos países

do Leste Asiático, de sociedades mais iguais do que outras, então

subdesenvolvidas. Contrariamente à informação convencional, também

descobrimos uma correlação positiva entre a dependência do mercado

mundial e a competitividade, e a generosidade da previdência social,

comparando-se então os estados da OECD com um histórico semelhante.

Não há ainda muito poder acordado, mas a ação global combinada

existe - intensamente através das conferências da ONU, com a promoção das

ONGs - e opera numa direção igualizadora, no tocante aos direitos humanos

e suas variadas especificações, direitos das mulheres, das crianças, das

minorias étnicas, etc.

A comunicação global é também uma forma significativa de

igualização, em especial a comunicação de conhecimentos médicos e

higiênicos, manifestando-se de modo geral, mas longe da uniformidade,

tendências convergentes de estatísticas vitais, de expectativa de vida,

de fertilidade, etc. Apenas de passagem mencionamos a igualização

cultural de formas simbólicas através da comunicação, do inglês como

língua comum, de estilos e gostos, seja no tocante a bebidas, refeições

ligeiras, música, vestuário,etc. Os sistemas de valores globais são

antigos, tais como as religiões do mundo, mas o seu conteúdo concreto em

primeiro plano continuou , mudando; veja na atualidade os direitos

humanos e de cidadania e as economias neoliberais, mais do que, digamos,

a

p. 90

autodeterminação nacional, a participação popular e o socialismo.

Enquanto o neoliberalismo tende a promover a desigualdade, louvando os

chamados “incentivos" e depreciando as instituições de solidariedade e

redistribuição de renda, o individualismo de direitos global possui sua

própria dinâmica igualitária, embora diferente da dinâmica anterior do

nacionalismo, populismo e socialismo. As religiões do mundo, cm

particular o cristianismo e o islamismo, parecem também ter se tornado

muito mais interessadas na igualdade e na justiça neste mundo do que em

sua história passada.

Globalização não significa necessariamente integração global. Pode

também significar polarização global. De modo geral, os diferenciais

econômicos no mundo como um todo são crescentes e têm se mostrado assim

há mais de um século. Por outro lado, a distribuição de causalidades e de

responsabilidades para todos através de fatores globais e locais

permanece obscura. O dado evidente é este: desde as últimas décadas, no

que se refere ao comércio mundial, aos fluxos de capital e à migração

transnacional do trabalho, tudo parece indicar que a extensão global de

estruturas de oportunidades tem pouquíssimos efeitos de rebaixamento de

nível; sendo alguns localizados muito irregularmente (os efeitos de

elevação), havendo outros efeitos significativos e de modo geral mais

desigualizadores.

As forças divergentes parecem derivar mais dos efeitos não-uniformes

globalmente espiralados dos atores - em termos de esforço acumulativo e

produtividade e do uso do Estado - do que duma tendência inerente do

sistema global. Isto é, mais em razão de diferentes índices nacionais de

investimento, de capital "humano" (e também o físico) e da inovação, como

também de diferente adequação desenvolvi-

p. 91

mental do Estado nacional, do que de qualquer dinâmica de mercado.

Por outro lado, a globalização cultural tem fortes efeitos

igualizantes e de elevação sobre as condições humanas.

Noutras palavras, poderíamos perfeitamente ter feito uma análise

sobre a globalização e a nova igualdade, enfocando então as tendências

para a igualização cultural, acima de tudo do conhecimento e das formas

simbólicas, embora não nos esquecendo das tendências similares de

identificação e de valores.

Globalização não era somente mercados anônimos e cultura de massa

pré-empacotada e transmitida via satélite. Ela não é o mesmo que um

embate sem fim pela Lebensraum Globalization; inclui também a ação social

no mundo todo e o interesse mundial e a comunicação direta. O que estamos

encarando é uma globalização de opções, não de forma alguma a opção por

mais ou menos desigualdade de recursos e direitos.

Ao examinar as opções não deveríamos esquecer uma amostra de

sabedoria da mais desenvolvida civilização do mundo de 2500 anos, de

longevidade milenar, e uma civilização que poderá ao término do próximo

século tornar-se novamente o centro do mundo, após algumas centenas de

anos de preeminência do Atlântico Norte.

Confúcio disse: "Se uma pessoa pode colocar em prática cinco coisas

em qualquer parte do mundo, ela é um ser humano". "Posso saber que coisas

são essas?" - perguntou Zizhang. E Confúcio respondeu: "Respeito,

generosidade, sinceridade, perseverança e bondade. Se uma pessoa age com

respeito, ela não será insultada. Se é generosa, conquistará o povo. Se é

sincera, ela merecerá confiança das pessoas.

p. 92

Se é perseverante, realizará grandes. Se ela é bondosa, será capaz de

influenciar os outros" (Confúcio, 1993: 19).

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p. 94

Göran Therborn é professor da Universidade de Gotemburgo.

O presente capítulo (Dimensions of Globalization and the Dynamics of

(In) Equalities) estava inédito até sua inclusão neste livro.

Traduzido para o português por Francisco da Rocha Filho.

p. 95

NOTAS

____________

1. Tenho abordado tais questões noutros contextos, mais recentemente num

artigo intitulado Modernities, and Globalization

p.64

_____________

2. Os índices utilizados aqui são: a proporção de partos não assistidos

por pessoal qualificado, a percentagem de crianças com menos de cinco

anos abaixo do peso normal; e o percentual de mulheres acima de quinze

anos c que são analfabetas.

p. 86

4 - Miriam Limoeiro-Cardoso

Ideologia da globalização e (des)caminhos da ciência social

A Florestan Fernandes,

cujo vigor e inteligência fazem tanta falta à sociologia e à luta em

favor de todos os oprimidos, excluídos e humilhados.

Na verdade, os paladinos da "neutralidade científica" não são neutros

senão na aparênc:J. Eles apenas deixam de evidenciar as polarizações

ideológicas subjacentes às suas análises e descrições da realidade. Na

medida em que se identificam com o status quo e com as ideologias nele

consagradas, nem sequer conseguem descrever e explicar a realidade como

ela é. (..) Portanto, o que tais paladinos renegam não é, propriamente

falando, o envolvimento intelectual - mas a independência do investigador

que se recuse a confundir a verdade e os critérios de verdade do

pensamento científico com o que parece "certo" e "necessário" em termos

dos interesses e dos valores sociais das classes dominantes e das elites

no poder ".¹

(Florestan Fernandes).

Desde a década de 80 um tema vem se impondo: a globalização. Sua

interpretação dominante sequer se admite como interpretação, tamanha a

certeza de que reveste suas afirmações. É como se elas fossem

irrecusáveis, porque a própria realidade seria inevitável. De acordo com

essa acepção,

p. 96

estamos vivendo uma situação completamente nova: globalização da

economia, promovida pelas forças do mercado, que finalmente podem agir em

liberdade depois de abolir as restrições que o Estado lhes havia imposto.

Nesse sentido "ela se funda sobre a ideologia do pensamento único, a qual

decretou que somente uma política econômica é possível de agora em diante

e que somente os critérios do neoliberalismo e do mercado

(competitividade, produtividade, livre-troca, rentabilidade, etc.)

permitem a uma sociedade sobreviver num planeta que se tornou uma selva

concorrencial" (Ramonet, 1997).

Segundo tal concepção, uma vez globalizada a concorrência é preciso

garantir a competitividade, e para isso é necessário "enxugar" a

produção. Por outro lado, abertas às fronteiras e eliminadas as

distâncias, neste novo mundo sem regulamentações públicas nacionais,

ganha o "consumidor", também este finalmente livre para comprar os

produtos que quiser, com melhor qualidade e menor preço. Tal globalização

é apresentada como equivalente a "modernidade". Porque é inevitável, não

resta senão se adaptar. Aqueles que não o fazem se arriscam a ser

ignorados pelo crescimento econômico que a "globalização", e somente ela,

pode propiciar, sucumbindo então à também inevitável pobreza.2

O eixo dessa formulação é o livre jogo das forças do mercado

aumentando o intercâmbio de bens e serviços no plano internacional.

Refere-se a comércio internacional; portanto, a globalização das trocas

no mercado internacional.

Embora conte com contribuições importantes do mundo acadêmico, essa

concepção não pertence ao campo próprio

p. 97

das teorias e das ciências. Primeiro, pela maneira como se propõe, porque

não há conhecimento científico, por mais completo e verdadeiro que

pretenda ser, que não admita questionamento e refutação. E a

desqualificação sistemática de qualquer argumento contrário é o próprio

oposto de qualquer procedimento científico, ou mesmo acadêmico. Segundo,

porque é indefensável hoje em dia qualquer pretensão de verdade absoluta

ou de pensamento único, bem como dum determinismo tal que qualquer

alternativa histórica esteja a priori eliminada. Terceiro, porque seus

argumentos não resistem ao confronto com outras linhas de argumentação e,

principalmente, com informações históricas concretas. Com essa concepção

de globalização estamos no campo próprio das ideologias que, acompanhando

uma força social que se toma dominante, visam produzir convencimento e

adesão às idéias que difundem, dando assim consistência ideológica à

dominação.

A acepção dominante de "globalização" é, pois, uma ideologia.

Expressa posições e interesses de forças econômicas extremamente

poderosas e vem comandando intensa luta ideológica -luta essa que passa

pela mídia e pela universidade - para tomar-se dominante mundo afora.

No entanto, é claro que se existe algo como uma globalização

enquanto fato real ou se a noção de globalização é uma referência a algum

processo significativo na realidade, tal existência acaba por tomar-se um

desafio para o conhecimento científico e para a ação. A difusão duma

ideologia da globalização já é indício claro de que está em curso

concretamente um processo atravessado por dificuldades e embates. De

fato, a produção científica não tarda a questionar as formulações

ideológicas acerca da globalização, apontando seu caráter ideológico e

apresentando outras percepções, outras interpretações e teorizações

novas. Vejamos:

p. 98

1) São numerosos os trabalhos em circulação que seguem mais ou menos

de perto a perspectiva neoliberal dos mercados auto-regulados e sua

superioridade. Identificam a globalização com a internacionalização de

mercados, enfatizando sua relação com o progresso tecnológico

informacional e o novo padrão de organização da produção e da gestão de

bens e serviços.E, naturalmente, dirigem a atenção para a eficiência, a

produtividade, etc. Além de reforço ideológico, com a função de organizar

e desenvolver o conhecimento necessário para a implantação efetiva dessas

idéias.

A bibliografia contemporânea, porém, mostra avanços significativos.

Abriga muitos e bons estudos que, embora diferentes quanto à forma de

abordagem e quanto ao alcance, conseguem ultrapassar o estreitamento do

campo de investigação que a onda dominante na economia mundial estimula.

São mais inclusivos, tratando inovações tecnológicas e padrões

organizacionais como parte das sociedades, por sua vez consideradas como

conjuntos relativamente integrados. Aí se encontra, por exemplo, a

proposta de "globalismo crítico", que aponta a necessidade de "teorizar o

campo completo de forças, de maneira a considerar não somente as forças

do mercado, mas também as relações entre os estados, às agências

internacionais e a sociedade civil, tanto em suas manifestações internas

quanto transnacionais" (Nederveen Pieterse, 1995: 11).

Por outro lado, ao contrário da euforia liberalizante daqueles a

quem chama de "teólogos do livre-mercado", Hobsbawm identifica uma

"Crescente melancolia fin-de-siècle.Considera o período que se inicia nos

anos 70 como "uma nova era de decomposição, incerteza e crise". Para ele,

trata-se duma crise universal ou global: "Na década de 1980 e início da

de 1990, o mundo capitalista viu-se novamente às

p. 99

voltas com problemas da época do entre-guerras que a era de ouro parecia

ter eliminado: desemprego em massa, depressões cíclicas severas,

contraposição cada vez mais espetacular de mendigos sem teto a luxo

abundante, em meio a rendas limitadas de Estado e despesas ilimitadas de

Estado"(Hobsbawm, 1997: 19). São indícios de crise e sua natureza é

econômica, política, social e moral.

Não é apenas a teorização mais abrangente que importa. Há

contribuições relevantes que se atêm às manifestações empíricas e não são

mais do que meramente descritivas, mas mesmo assim conseguem ampliar o

campo de análise. Se há uma ideologia dominante que sistematicamente o

reduz, e numa única direção, é bastante importante e talvez até

estratégico esse alargamento do objeto em análise. A descrição não é

senão uma primeira instância da produção do conhecimento, mas é um passo

inicial indispensável, ainda que requeira ser revisado e recomposto nos

momentos subseqüentes da produção.

Quando, por exemplo, Coutinho estuda a natureza da globalização, ele

a configura como "uma etapa nova e mais avançada de progresso tecnológico

e de acumulação financeira de capitais" (Coutinho, 1995: 21). Para a

caracterização dessa etapa conjuga a inovação tecnológica e a emergência

dum novo padrão organizacional, responsáveis pela superioridade

competitiva. Mas não pára aí. Indica "a emergência de um número

significativo de setores oligopolizados em escala mundial, (...) entre 10

e 12 'atores globais'" (id., 22), que formam um policentrismo econômico

tripolar "intrinsecamente instável e interdependente". Identifica uma

enorme expansão dos movimentos de capitais e do volume das transações nos

mercados cambiais globalmente integrados, cujo resultado cumulativo "pode

ser retratado como um

p. 100

intenso processo de interpenetração patrimonial entre as grandes

burguesias industriais e financeiras das principais economias

capitalistas"(Coutinho, 1992: 81)³ São dados justapostos. Contudo,

enriquecem substantivamente o quadro descritivo, com o que aumentam

sobremodo a possibilidade de análise e estimulam a reflexão.

Já estão disponíveis, hoje, trabalhos analíticos efetivamente

críticos e fecundos sobre a globalização. Empenham-se em aprofundar o

nível da reflexão e da pesquisa, procurando estabelecer relações mais

fundamentais, descobrir os significados que tais relações conferem às

suas diversas determinações e formular explicações bem fundadas e

convincentes. Em geral esses trabalhos decorrem de pesquisa sistemática e

intensiva, que demarcam com nitidez seus objetos, depois de situá-los

inclusivamente. Não tenho a pretensão de fazer um balanço diferenciado

dessa produção. Pretendo apenas indicar exemplos entre aqueles que me

parecem sugestivos de encaminhamentos férteis para análise e ação. Nesse

sentido específico destaco as contribuições de Arrighi e de Chesnais.

Arrighi queria entender a crise econômica mundial da década de 70.

Destacava a financeirização como o seu "traço absolutamente

predominante". A questão colocada era que algo de fundamental parecia

haver-se modificado no último quarto de século. É aquela crise,

caracterizada pela expansão financeira em nível mundial, e sob a

perspectiva de que constituiria uma revolução, que Arrighi decide

submeter a uma pesquisa em que retrocedeu até à formação do capitalismo

p. 101

como sistema mundial, acompanhando seus "ciclos sistêmicos de acumulação"

(Arrighi, 1996: XI) e tomando como objeto específico os "processos

mundiais de acumulação de capital" (id.: 6). Amparou-se num esquema

interpretativo de Braudel, segundo o qual "ao longo de toda a era

capitalista as expansões financeiras assinalaram a transição de um regime

de acumulação em escala mundial para outro" (id.,IXs).

Com sua pesquisa Arrighi nega a suposta tendência revolucionária da

expansão financeira nas décadas de 70 e 80. O que identifica aí é uma

crise e a caracteriza como crise de superacumulação. Considera que já é

uma realidade "o deslocamento espacial do epicentro dos processos de

acumulação de capital em escala mundial" (id.: 344), da América do Norte

para o Leste Asiático. Mas diz que "houve deslocamentos desse tipo em

todas as crises e expansões financeiras que marcaram as transições de um

ciclo sistêmico de acumulação para outro" (id.: 309).

Há mais um componente que é decisivo nesta análise: a relação entre

o capital e o Estado. Fala de "organizações governamentais e empresariais

como principais agentes da acumulação de capital em escala mundial" (id.

ibid.), até que, "cedo ou tarde, (...), a crise de superacumulação não

consegue criar um agente suficientemente poderoso para recompor o sistema

em bases maiores e mais amplas". Conclui que "há sinais de que talvez

tenhamos entrado nesta etapa" (id.: 342).

Para Arrighi, um grande complicador da crise atual está no fato de

que a capacidade de gestão do Estado e da guerra permanece nas mãos dos

centros tradicionais de poder do ocidente capitalista, enquanto o

controle das fontes mais abundantes de capital excedente mundial está no

Leste Asiá

p. 102

tico. Antecipa três desfechos possíveis, em todos os quais, embora de

formas diferentes e com conseqüências distintas, a história capitalista

chega ao fim. Diante da afirmação reiterada do caráter não-revolucionário

da crise atual, parece-me que essa análise contém uma contradição. O

sentido que pode configurar tal contradição como apenas aparente talvez

seja o de que a crise atual (de superacumulação) não é revolucionária,

porquanto não é construtora dum futuro diverso; mas uma crise de

esgotamento do passado.

Desenvolvendo outro tipo de trabalho, apoiado em Marx, Chesnais

descreve o contexto macroeconômico mundial dos anos 90, ressaltando:

crescimento econômico muito baixo, inclusive o do Japão; deflação; alta

instabilidade monetária e financeira; concorrência desenfreada entre os

três pólos hegemônicos; alto nível de desemprego estrutural e de

marginalização econômica de numerosos países e regiões inteiras. Vincula

esses dados a um processo de internacionalização, mas supõe que "o

conteúdo efetivo da globalização é dado não pela mundialização das

trocas, mas pela mundialização das operações do capital, em suas formas

tanto industriais quanto financeiras" (Chesnais, 1995: 4). As idéias

dominantes sobre globalização colocam toda ênfase no processo de trabalho

(novas formas de organização e de gestão) e na troca (circulação

internacional de mercadorias - bens e serviços). Mesmo a financeirização

tende a ser considerada apenas em termos de circulação de capitais.

Chesnais, porém, entende isto: o que está ocorrendo é "um novo regime

mundial de acumulação, cujo funcionamento dependeria das prioridades do

capital privado altamente concentrado - o capital aplicado na produção de

bens e serviços, mas também, de forma crescente, do capital financeiro

centralizado, mantendo-se sob a forma de dinheiro e obtendo rendimento

como tal"

p. 103

(id.: 1). Trata-se, pois, de acumulação predominantemente rentista e

parasitária, sendo que o caráter rentista envolve também o capital

produtivo. Chesnais sugere substituir o termo "globalização" pela

designação "mundialização do capital".

Não são apenas o mundo da produção (aí incluídos os desenvolvimentos

tecnológicos e organizacionais) e o mundo dos negócios que sustentam o

desenvolvimento do capital. Também o estudo indica que o Estado é chamado

a cumprir, e tem cumprido, um papel fundamental para o capital. "O poder,

senão a própria existência, deste capital-dinheiro (...) é sustentado

pelas instituições financeiras internacionais e pelos estados mais

poderosos do planeta, qualquer que seja o custo" (id.: 2). Nesse sentido,

o atual regime de acumulação mundial do capital resulta da conjugação de

três fatores principais: 1) a acumulação obtida ao longo dos "trinta anos

gloriosos"; 2) "as tecnologias que as firmas - em primeiro lugar os

grandes grupos perseguidos pela concorrência dos grupos japoneses -

souberam utilizar para seus próprios fins, principalmente com o intuito

de modificar suas relações com os assalariados e as organizações

sindicais"; 3) o "apoio fundamental por parte dos principais estados

capitalistas, sob a forma das políticas de liberalização,

desregulamentação e privatização que estes adotaram" (id.:2 s).

A forma característica do capital industrial neste período é o

oligopólio mundial, decorrente de "uma progressão quantitativa e

qualitativa do movimento de centralização e concentração do capital

industrial. No decorrer dos anos 80, aproximadamente 80% dos

investimentos diretos estrangeiros ocorreram entre países capitalistas

avançados, sendo que mais ou menos três quartos das operações tinham por

objeto a aquisição e a fusão de empresas já existentes, ou seja, tratava-

se

p. 104

de uma mudança de propriedade do capital, e não de uma criação de novos

meios de produção"(id.: 9). Desse modo, a mobilidade internacional do

capital é muito grande, mas na sua maior parte se restringe ao campo do

capitalismo avançado. O capital concentrado se concentra ainda mais. E

está nas mãos de multinacionais de novo estilo: grupos financeiros com

dominância industrial, apresentando alto grau, inclusive organizacional,

de financeirização e fortalecimento das posições do capital rentista.

Para Chesnais, o oligopólio mundial é "um espaço de rivalidade,

delimitado pelas relações de dependência mútua de mercado que ligam o

pequeno número de grandes grupos que conseguem, em determinado setor

industrial (ou num complexo de indústrias de tecnologia genérica comum)

adquirir e conservar seu estatuto de concorrente efetivo em nível

mundial. O oligopólio constitui um espaço de concorrência feroz mas

também de colaboração entre grupos" (id.: 10).

A concorrência internacional é definida pelo campo dos concorrentes

efetivos, ou seja, o reduzidíssimo número de oligopólios gigantescos

baseados nos três grandes centros que atualmente hegemonizam a economia

mundial.

A mundialização do capital implica mudança qualitativa nas relações

entre capital e trabalho e entre capital e Estado. "As oportunidades

oferecidas pelas novas tecnologias (u.) foram usadas pelos grupos tanto

para organizar seu processo de internacionalização quanto para modificar

fortemente suas relações com a classe operária, em particular no setor

industrial" (id.: 8). Nesse sentido se pode pensar não só o desemprego,

como a precarização das relações de trabalho, seguindo de perto a

implementação das novas tecnologias na produção. Ciência e tecnologia,

dum lado; Estado e organizações trabalhistas, doutro: "enxugamento" da

produção,

p. 105

sistema toyotista, terceirização, etc.; desregulamentação"flexibilização"

dos contratos salariais, etc. São indicadores duma reorganização da

sociedade. Saber se existe uma lógica presidindo a essa

desorganização/organização e se ela decorre principalmente de progressos

em ciência e tecnologia, ou se é predominantemente uma lógica do capital,

não é uma questão menor, nem é politicamente indiferente.

Se é que as crises são reveladoras, mostrando mais claramente os

traços mais marcantes e as contradições mais profundas, talvez se possa

aprender muito com as tendências à polarização e à exclusão social que

caracterizam a crise atual sob a dominância dos padrões de acumulação,

próprios do capital rentista.

2) A noção de globalidade remete a conjunto, integralidade,

totalidade. A palavra "global"4 carrega consigo esse mesmo sentido de

conjunto, inteiro, total. Sugere, portanto, integração. Desse modo, ou

por esse meio, o uso do termo "global" supõe ou leva a supor que o objeto

ao qual ele é aplicado é, ou tende a ser integral, integrado, isto é, não

apresenta quebras, fraturas ou hiatos. Globalizar, portanto, sugere o

oposto de dividir, marginalizar, expulsar, excluir. O simples emprego de

"globalizar" referindo-se a uma realidade

p. 106

que divide, marginaliza, expulsa e exclui, não por acidente ou

casualidade, mas como regularidade ou norma, passa por cima desta

regularidade ou norma,dificultando a sua percepção e mesmo omitindo-a.

Consciente e deliberadamente, ou não, a utilização da palavra nestas

condições tem exatamente tal eficácia.

É bem este o sentido que apreendo quando leio em Chesnais que "o

termo 'global' permite ocultar uma das características essenciais da

mundialização: integrar como componente central da ação de um capital

'liberado' um duplo movimento de polarização... A polarização é,

primeiramente, interna a cada país. Os efeitos do desemprego não podem

ser dissociados daqueles que resultam dos diferenciais que foram

acentuados entre as rendas mais elevadas e as mais baixas, por causa da

renda do capital-dinheiro. A polarização, em seguida, é internacional e

cava um fosso brutal entre os países localizados no coração do oligopólio

mundial e aqueles que ficam na periferia deste. A economia 'globalizada'

é excludente, pois é dirigida pelo movImento do capital, e nada mais"

(Chesnais,1995:15) Trata-se de polarIzação social vinculada à

concentração da renda, à desigualdade social e ao desemprego e de

polarização enquanto desigualdade internacional crescente. Vejamos cada

um dos momentos desta polarização, que se duplica nacional e

internacionalmente.

"Das 42 'economias de baixa renda' em 1970, 19 tinham zero de

investimento estrangeiro líquido. Em 1990, os investidores estrangeiros

diretos tinham perdido todo o interesse em 26" (Hobsbawm, 1997: 412).O

capital mundializado com sua grande e crescente mobilidade, seleciona sua

aplicação segundo critérios que excluem essas economias.

De maneira ainda mais clara do que antes, a escolha da localização

dos investimentos é função dos níveis de rentabilidade do capital e das

formas de obtenção de lucro na esfera

p. 107

financeira. O resultado atual define, por um lado, uma forte integração

dos oligopólios da Tríade e, por outro lado, a marginalização dum grande

número de países "menos desenvolvidos". Chesnais se refere a esses

processos em termos de "integração seletiva" e de "desconexão forçada",

recorrendo neste último caso à expressão cunhada por Mouhoud (v.

Chesnais, 1996, esp. 220s). "Os países em desenvolvimento já não são

mais, como na época 'clássica' do imperialismo, países subordinados,

reservatórios de matérias-primas ou de mão-de-obra barata e vítimas dos

efeitos combinados da dominação política e da troca desigual. Eles já não

oferecem praticamente nenhum interesse, nem do ponto de vista econômico e

nem do ponto de vista estratégico (fim da Guerra Fria) para os países ou

para as firmas localizados no seio do oligopólio. São meros pesos mortos.

Não são mais países que 'um dia alcançarão o desenvolvimento', e sim

zonas de 'pobreza' (...) cujos emigrantes ameaçam os 'países

democráticos'"(Chesnais, 1995: 16). Um traço é geral entre esses países

assim marginalizados e excluídos: são países devedores.

Hoje é visível o estrago causado pelas opções desenvolvimentistas

que decidiram adotar. Aceitaram integrar-se ao projeto de desenvolvimento

apoiado em extenso financiamento externo, o que "coincidia" com as opções

de investimento internacional do capital naquele momento, Contraíram

dívidas externas monumentais, que além do mais cresciam muito acima da

capacidade real de seu pagamento, mesmo por parte dos países que por esse

mecanismo conseguiram um crescimento econômico significativo. Foi a

partir da recessão americana de 1980-1981 e das medidas tomadas para

defender a perenidade dos rendimentos do capital monetário, através de

uma política de taxas positivas de juros reais, que esses países foram

'nomeados' para suportar,

p. 108

cada qual em sua categoria, o peso mundial da crise mundial. O fardo do

serviço da dívida e os planos de ajuste estrutural impostos pelo FMI e

pelo Banco Mundial deram o quadro de um conjunto de medidas, impondo aos

países devedores o pagamento dos juros da dívida e a reorientação de sua

política econômica" (Chesnais, 1996: 220).

Ao aceitarem essa reorientação, voltam a decidir integrar-se - só

que desta vez muito mais diferenciados entre si do que -antes - ao

projeto dominante do capital que se acha em curso, agora não mais

enquanto\'desenvolvimento", mas enquanto "globalização". E agora contam

com a dificuldade suplementar de que grande parte do chamado "Terceiro

Mundo" está sendo excluída da atual expansão do capital, o que fragiliza

ainda mais os países que pretendam fugir dessa exclusão, o que se traduz

em felicidades e concessões ainda maiores ao capital em processo de

mundialização. Regiões inteiras passaram a ser tratadas como supérfluas,

irrelevantes; quer dizer, não-atraentes para o capital em expansão.

Assim, toma-se cada vez mais acentuada e mais evidente a polarização

internacional. Amplia-se "o fosso entre países ricos e pobres" (Hobsbawm,

1997: 413). O desenvolvimento capitalista sempre se fez desigualmente,

mas "o capitalismo mundializado continua a reproduzir, a uma escala

sempre maior, desigualdades e heterogeneidade" (Cohen, 1997: 17).

Na fase atual, essa escala crescente de diferenciação e desigualdade

internacional está transformando marginalização em exclusão. No entanto,

por mais esclarecedora que seja a situação de polarização internacional,

é no nível das desigualdades e polarizações que acompanham o

desenvolvimento interno aos países mais dinâmicos do sistema produtivo

capitalista que se encontra o essencial para entender sua organização e

suas transformações.

p. 109

Há muito se sabe que é próprio do capitalismo dividir, marginalizar

e excluir. A formação e o desenvolvimento capitalista sempre se fizeram

por meio da divisão social, mantendo permanentemente uma parte - variável

na sua dimensão e na sua composição - da força de trabalho como

potencial, colocada, portanto, à margem do sistema produtivo. Essa,

porém, era em geral uma marginalização temporária e com funções definidas

no desenvolvimento da própria produção sob forma capitalista. A

disponibilidade de determinado "excesso" de mão-de-obra como "reserva"

faz parte da integração mesma do sistema produtivo em moldes

capitalistas. Rigorosamente falando, aí existe diferenciação e

desigualdade, que podem ser elevadíssimas, e marginalização ambas

estruturais. No entanto, apesar de que se possa encontrar na história do

capitalismo momentos em que a desigualdade se agudiza ou se polariza, não

costuma tratar-se de exclusão na concepção estrita do termo. Estudando

essa história, Arrighi encontra polarização social em cada transição

entre ciclos sistêmicos de acumulação capitalista (o genovês, o holandês,

o britânico e agora o norte-americano). Refere-se aos "custos da

'financeirização' para as camadas sociais baixa e média da potência

econômica que entra no estágio de maturidade". Menciona tendência análoga

na Espanha no início da década de 1600, que "passou a ser um contraste

extremo entre ricos e pobres" (cf. Arrighi, 1997: 326). A financeirização

típica do declínio de cada ciclo de acumulação do capital tem acentuado

drasticamente a desigualdade social, mesmo nas grandes potências que

encerram sua hegemonia.

Parece, pois, que esse fenômeno é recorrente, mas nem por isso perde

valor o acompanhamento das formas, do grau e do sentido em que a

polarização social está ocorrendo atualmente. Tem ganhado grande espaço

na discussão o tema

p. 110

"pobreza". É interessante notar que ultimamente "esta palavra invadiu o

linguajar do Banco Mundial" (Chesnais, 1995:16). O tema também se destaca

na Agenda Social da ONU, tendo centralizado a Cúpula de Copenhague em

março de 1995 (v. Alves, 1996).

A desigualdade social acentuou-se drasticamente nas últimas décadas.

Milhares de pessoas lutam para sobreviver sob condições extremamente

precárias, não só nos confins do mundo e entre as legiões de perseguidos

e de refugiados, mas também onde o capitalismo se apresenta como mais

próspero. "Na década de 80, muitos dos países mais ricos e desenvolvidos

se viram outra vez acostumando-se com a visão diária de mendigos nas

ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de desabrigados protegendo-

se em vãos de portas e caixas de papelão, quando não eram recolhidos pela

polícia. Numa noite de 1993 em Nova York, 23 mil homens e mulheres

dormiam na rua ou em abrigos públicos, uma pequena parte dos 3% da

população da cidade que não tinha tido, num ou noutro momento dos últimos

cinco anos, um teto sobre a cabeça" (New York Times, 16/11/93, apud

Hobsbawm, 1997: 396). Aqui não se trata só de pobreza, mas de miséria e

indigência. 3% de sem-teto na grande metrópole da nação que hegemonizou a

economia capitalista mundial desde o pós-guerra não é um dado

irrelevante.

Quanto à América Latina, sabemos que a situação social é muito

grave. Estudos da Cepal sobre dados de 1986 referem 30% dos domicílios

urbanos e 53% dos domicílios rurais como sendo pobres e 11 % dos

domicílios urbanos e 30% dos rurais como sendo indigentes (Lustig, 1995:

88).

Dados sobre o Brasil em 1989 indicam como pobres 34% dos domicílios

urbanos e 45% (número admitido como muito subestimado) dos domicílios

rurais (Lopes, 1995:

p. 111

142). Estimativa para o Brasil urbano no mesmo ano aponta 22,52% dos

domicílios como pobres e 11,03% como indigentes (Singer, 1996: 80).

Discutindo a "teoria da pobreza", Celso Furtado vincula pobreza à

concentração da renda. Estatísticas oficiais mostram que o 1% mais rico

da população do Brasil, que detinha 11,9% da renda nacional em 1960,

passou a ter 16,9% em 1980. Se considerarmos os 5% mais ricos, sua

participação subiu de 28% para 37,9% no mesmo período, enquanto a dos 50%

mais pobres caiu de 17,4% para 12,6%. É um quadro que não faz senão

confirmar Hobsbawm quando identifica o Brasil como "o candidato a campeão

mundial de desigualdade econômica" (Hobsbawm, 1997: 397). E desigualdade

crescente significativamente, em que a concentração da renda se acelera

ao mesmo tempo em que o crescimento econômico e a industrialização.

Diante dessa relação, Furtado conclui: "Não é de surpreender, portanto,

que a especificação do subdesenvolvimento se haja reintroduzido pela

porta traseira da 'teoria da pobreza'" (Furtado, 1992: 15). Creio que

Furtado tem razão quando não se deixa cair na insidiosa substituição de

"subdesenvolvimento" por "pobreza". Só se enganaria se acreditasse

efetivamente que com tal substituição a especificação do

"subdesenvolvimento" estivesse de fato sendo reintroduzida. Pelo que eu

entendo, ele sabe que não é assim e trata de chamar a atenção para a

diferença, reintroduzindo, agora sim, ele mesmo, a questão omitida.

Tomando aquela substituição como um problema, veremos que ela produz

um apagamento e um deslocamento. É que os tempos são outros, as

perspectivas e os interesses do grande capital também são outros. Nas

décadas de 50 e 60, a expansão internacional do capital abria

possibilidades mais amplas e dinamicamente integradoras para o que então

passaram

p. 112

a chamar de países "subdesenvolvidos", trabalhando ideologicamente o

progresso e a esperança no futuro. Atualmente, a criação da temática

"zonas de pobreza" remete a uma situação em que regiões e segmentos

sociais são excluídos da expansão do capital. Neste caso, a temática do

"desenvolvimento" tenderia mais a evidenciar essa exclusão, o que poderia

demandar algum entendimento do processo que a cria. Assim, este tema

privilegiaria a análise do processo histórico, até porque está em pauta

uma mudança de rota - da inclusão desenvolvimentista para a exclusão

produzida pelo capital rentista. Ao passo que a temática da "pobreza"

tende a desviar a atenção para os chocantes "dados" da miséria e da

indigência, privilegiando a análise do empírico imediato e a descrição

mais espacial do que temporal.

Entre todos os aspectos da exclusão desencadeada pelo regime

contemporâneo de acumulação do capital, há um que se destaca como

essencial para compreender a crise atual nas suas contradições mais

profundas: o desemprego estrutural e massivo. A taxa de desemprego na

Europa Ocidental subiu, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, de 1,5% para

4,2% e para 9,2%, alcançando 11% em 1993 (cf.Hobsbawm, 1997: 396). Além

de sua elevadíssima expressão quantitativa, o desemprego característico

desta etapa do capitalismo não é apenas conjuntural, temporário. Na

Europa Ocidental, "metade dos desempregados (1986-7) se achava sem

trabalho há mais de um ano, um terço há mais de dois" (id.: ibid.). As

grandes transformações tecnológicas e organizacionais aplicadas ao

sistema produtivo incidiram diretamente sobre o trabalho e vêm provocando

dispensa em massa de trabalhadores. Mantidas as condições atuais, o

problema só tende a se agravar, porque "o crescente desemprego dessas

décadas não foi simplesmente cíclico, mas estrutural. Os empregos

perdidos nos maus tempos não retomariam quando os tempos melhorassem: não

voltariam jamais" (id.: 403).

p. 113

É curioso como a informação sobre o que está ocorrendo atualmente

com o emprego nos países de desenvolvimento capitalista avançado tem sido

sistematicamente escondida em países como o Brasil. A ideologia

neoliberal insiste em apontar o caminho que vem sendo seguido no

desenvolvimento capitalista globalizado como sendo criador de emprego.

Diz-se, assim, que o desemprego aqui se resolverá com o crescimento

econômico. Convém lembrar que o desemprego que enfrentamos (8,3% para o

conjunto da América Latina urbana em 1989, segundo dados do Bid, 1990)

ainda se refere a uma situação econômica que é anterior à efetiva e

generalizada reorganização do setor produtivo local resultante das

transformações tecnológico-organizacionais e anunciada pelas políticas

neoliberais.

As novas tecnologias e as novas formas de organização do trabalho

têm permitido aumento substancial da produtividade. O resultado imediato

tem sido a acelerada e crescente dispensa de mão-de-obra. O aumento de

produtividade não tem levado a uma expansão da produção que crie também

uma expansão do emprego capaz de absorver pelo menos boa parte da mão-de-

obra expulsa do sistema produtivo. Operando dessa maneira, o sistema cria

não somente marginalização, mas propriamente exclusão social - e exclusão

que é estrutural. Neste caso, a redução do trabalho necessário não libera

tempo para a vida. Libera para a exclusão e a miséria um contingente

enorme e cada vez maior de trabalhadores. Ou seja, sob o domínio do

capital, o aumento de produtividade não reverte para "a sociedade",

reverte exclusivamente para o capital.

À massa de excluídos pelo "progresso" e pela "racionalização" da

produção resta travar dia a dia a mais árdua luta para garantir

minimamente a própria sobrevivência. As de

p. 114

signações formais criadas para reconhecer as atividades "marginais" ou

"subterrâneas" a que esses trabalhadores excluídos passam a se dedicar

constituem em geral um meio de - no campo das idéias, das representações

e das ideologias - tratá-las sob algum vínculo no qual eles apareçam

integrados à sociedade. De fato, porém, são atividades de excluídos

sociais para, enquanto excluídos, conseguirem se manter vivos.

Para aqueles que logram permanecer empregados, a situação também se

complica. O crescimento tão significativo da mão-de-obra excedente atua

clara e eficazmente no sentido do rebaixamento dos salários duma maneira

geral. E todo esse processo se faz presente também no nível da formulação

política, dando forma às propostas de precarização das relações de

trabalho, por meio das quais se pretende reduzir ao limite mínimo e, se

possível, abolir direitos e garantias que o trabalho havia conquistado no

momento anterior do desenvolvimento capitalista, em que as relações de

forças eram outras.

"Os empregadores desejam conservar nas empresas apenas um núcleo

reduzido de assalariados permanentes e, para o resto, poder contratar e

dispensar à vontade, em função das necessidades do momento, 'assalariados

temporários ou provisórios' que não terão direito nem a férias, nem às

mesmas garantias sociais, nem à proteção sindical. Essa maior 'liberdade'

patronal na utilização da mão-de-obra supõe evidentemente o afrouxamento

das legislações trabalhistas e das leis sociais. Ela supõe também que,

como para os diaristas ingleses dos primórdios do capitalismo

industriaIS, um mínimo de subsistência seja garantido à população

marginalizada dos

p. 115

desempregados e semidesempregados que, com os progressos da

informatização e da robotização, só poderão encontrar trabalhos

ocasionais irregulares, ingratos, mal pagos, sem futuro"(Gorz, 1990:

217).

Trabalhadores sem maior qualificação não terão qualquer chance de

fazer parte do segmento da força de trabalho, que se torna "privilegiado"

por conseguir ser absorvido pelo sistema produtivo. Mas qualificar-se não

oferecerá nem mesmo urna garantia mínima de se tornar trabalhador

efetivo. Diante da exclusão que passa a ser norma para a grande maioria

da população potencialmente trabalhadora, a exploração do trabalho passa

a ser "privilégio".

3) Corno está sendo colocada atualmente, a globalização me faz

lembrar do projeto desenvolvimentista. Tal corno se diz hoje da

globalização, nas décadas de 50 e 60 o "desenvolvimento" também era

apresentado corno se constituísse um fato real, como se fosse um produto

natural do devir histórico. O processo de desenvolvimento não era tido

corno sendo em si mesmo diferenciador - criando ao mesmo tempo e no mesmo

movimento países desenvolvidos e países subdesenvolvidos, ou seja o

subdesenvolvimento de uns estando relacionado com o desenvolvimento de

outros; este dependendo daquele. Na concepção dominante naquela época, o

desenvolvimento constituía uma rota comum, na qual nem todas as nações

alcançaram o mesmo ritmo e o mesmo patamar. Num dado momento, portanto,

algumas estavam mais avançadas e outras mais atrasadas.

À diferença das afirmações correntes sobre a globalização, o

desenvolvimento não era considerado como inevitável. No fundo, porém, o

argumento era semelhante, porque as alternativas colocadas eram estas: ou

a opção pelo

p. 116

desenvolvimento, O que significava esforço e sacrifício em prol dum

futuro de prosperidade; ou a opção pela tradição e pelo atraso, o que

implicava a manutenção da pobreza.

O lugar ocupado pela categoria pobreza num e noutro casos pode

fornecer elementos interessantes para a reflexão. Após a Segunda Guerra

Mundial, o desconforto causado pela repentina visibilidade de grande

número de países pobres e pela conseqüente percepção dum mundo dividido

entre ricos e pobre foi rapidamente contornado através de tratamento

supostamente "conceitual", que se desdobrou em duas vertentes. Por um

lado, o "desenvolvimento" foi representado como um continuum, dentro do

qual os países pobres podiam passar a se reconhecer enquanto atrasados, o

que podia se retraduzir como subdesenvolvidos. Melhor ainda, a

disponibilidade de capital para investimento "externo", quer dizer, para

fora dos grandes centros dinâmicos da economia mundial, oferecia

oportunidades de desenvolvimento, e aqueles países que tomassem para si

esse projeto poderiam desde logo se incluir na nova "categoria" de países

"em desenvolvimento".

Por outro lado, se elaborou a concepção de "Terceiro Mundo", a qual

continuava a marcar nitidamente as diferenças, mas sob uma forma nova.

Com ela, a conjugação da dicotomia econômica países ricos/pobres com a

dicotomia político-ideológica ocidente capitalista/leste socialista

permitia diluir as duas dicotomias com a inclusão dum único "terceiro",

além de marcar como referência para o conjunto dos países pobres o

"Primeiro Mundo". Era uma construção ideologicamente muito conveniente em

tempos de Guerra Fria.

O que acontece cerca de trinta a quarenta anos depois, quando o capital

disponível para inversão internacional é de outro tipo, especialmente

enquanto capital-dinheiro, e os antigos países "em desenvolvimento"

alcançaram cursos,

p. 117

ritmos e graus de crescimento muito diferenciados, além de terem

contraído dívidas externas altíssimas? O tema "desenvolvimento" sofre um

quase-apagamento, sendo substituído pelo tema "globalização". Como, com o

desmoronamento do bloco socialista, as dicotomias não parecem mais

incomodar tanto, em lugar de "subdesenvolvimento" volta a ser utilizada a

categoria "pobreza", e a concepção dos "três mundos" cede lugar à

dicotomia norte/sul. A própria ideologia já não disfarça a divisão, como

quando lhe dava a forma de gradação e tratava as diferenças

quantitativamente. Contraditória e meio fora de contexto, surge a

categorização "Quarto Mundo" (Castells, 1993: 37): do velho "Terceiro

Mundo", uma parte ascendeu ou está ascendendo ao "'Primeiro Mundo" e a

outra parte é rebaixada à representação "Quarto Mundo". Propondo uma

diferenciação dentro da.. diferenciação, esta concepção usa o mecanismo

ideológico anterior de diluição da divisão por meio de categorias. Da

forma como o faz, porém, acaba por sublinhar ainda mais fortemente a

divisão, aumentando até, enquanto representação, a distância que ela

cria.

Sob a ideologia do desenvolvimento, acenava-se com a esperança do

progresso. Sob a ideologia da globalização, parece que se ameaça com a

degradação à condição de pobreza, caso o país não se adapte e não se

integre à economia mundial dentro dos padrões propostos para essa

integração.

Nos anos 50 e 60, a ciência social desempenhou um papel importantíssimo

nas questões do "desenvolvimento". Formou-se um campo novo, a Sociologia

do desenvolvimento, que teve inegável responsabilidade na difusão desse

tema, conferindo a ele a dimensão de objeto de ciência.

Nos países "subdesenvolvidos", ao mesmo tempo .em que se promovia

intensamente a discussão do "desenvolvimento"

p. 118

no âmbito da sociedade, se estimulava a ciência social local a acolher e

a fazer progredir aquela especialidade sociológica e a fazer com que ela

ecoasse social e politicamente com uma espécie de aval "científico". Tais

estímulos frutificaram, mas não apenas fortalecendo e ampliando a

sociologia do desenvolvimento como tal e a sociologia da modernização. A

produção sociológica latino-americana, por exemplo, se dedicou, é

verdade, à "questão do desenvolvimento", mas não tardou a começar a

produzir uma sociologia crítica a respeito, primeiro timidamente como

sociologia do subdesenvolvimento, depois enquanto sociologia da

heteronomia ou dependência e mais adiante com a formulação explícita e

teoricamente fundamentada do desenvolvimento enquanto ideologia 6.

Em determinado momento, cientistas sociais latino-americanos

conseguiram alcançar um alto nível de produção original de grande

relevância teórica e política, que consistiu numa contribuição efetiva ao

avanço do conhecimento científico dos processos de formação e de

transformação de nossas sociedades.

A partir de tal conhecimento se pôde questionar a naturalidade

determinística do "desenvolvimento". Também soubemos trazer para a

discussão o fato de que por si mesmas as inovações tecnológicas não

transformam a realidade e que no capitalismo sua utilização num processo

de mudança depende de que elas próprias e essa mudança coincidam com os

interesses do capital. E conseguimos identificar o que era proposto como

"o desenvolvimento" como sendo uma ideologia

p. 119

e um projeto de política econômica, parte integrante do projeto mais

global do capital em expansão. Nesse enorme passo dado pela formulação

foi importantíssimo, na generalidade "nacional" através da qual o projeto

de desenvolvimento se propunha em cada caso, reconhecer a sua dimensão

particularista - de classe, fração ou segmento social. Um processo

intelectual como esse requer, entre outros, o conhecimento do mecanismo

típico através do qual uma ideologia se torna dominante numa sociedade,

ou seja, sendo particular, apresentar-se e ser aceita como geral. Quando

um processo desse tipo está realizado numa sociedade, o conhecimento dele

não é possível sem a identificação, o afastamento e o questionamento da

ideologia que o sustenta. Então se torna possível discernir os dados

concretos do processo, o projeto que o orienta e promove a realização

desses dados, a ideologia que constrói o arcabouço da adesão a esse

projeto e as forças sociais a que se vincula diferenciadamente.

Cabia-nos, então, um grande e fértil campo de investigação, o da

especificidade da nossa situação enquanto parte da expansão capitalista,

bem como a especificidade da gestão das relações implicadas nessa

situação por meio do projeto de desenvolvimento. Não teríamos conseguido

realizar qualquer produção mais significativa se não tivéssemos

reconhecido como ideologia o conjunto de idéias dentro do qual e a partir

do qual nos acercávamos da nossa própria realidade. E quando isso não foi

suficiente para que se desse um afastamento crítico capaz de chegar a um

questionamento efetivo dessa ideologia, o conhecimento que se produzia

foi como que refreado. Foi o que ocorreu, por exemplo, com parte

considerável da chamada "teoria" da dependência, que a partir de certo

ponto se tornou funcional, recuando em relação a conhecimentos já em

processo adiantado de elaboração, chegando mesmo a excluí-los.

p. 120

Quando tentamos identificar uma ideologia e alcançar seus sentidos,

tendemos a concentrar esforços em apreender seus nexos estruturais,

tomando-a como parte duma dada realidade social. Se bem-sucedidos,

conseguimos colocar a ideologia em questão "nas relações sociais" que a

sustentam, estabelecendo assim o modo estrutural da sua constituição. A

construção das ideologias se faz nos aparelhos de hegemonia, muitas vezes

tratados simplesmente como instituições. Sempre que eles são considerados

instâncias nas quais se travam lutas por hegemonia ou por poder, não deve

causar espanto a utilização desses aparelhos para a produção e a difusão

de ideologias de maneira deliberada, consciente e organizada por parte

das forças sociais que detêm influência e poder sobre eles. Há trabalhos

interessantes mostrando esse tipo de produção ideológica.

Um estudo sobre o "Projeto Chile" pode ser tomado como um bom

exemplo. Esse é um projeto desenvolvido na Universidade de Chicago,

dentro do qual se formou toda uma geração de economistas chilenos que

viriam a ocupar os mais altos postos econômicos na ditadura do Gal.

Pinochet. Trabalhando cuidadosa e extensivamente sobre os relatórios

daquele Projeto, Valdés ai identificou "um processo sistemático e bem

organizado de transferência institucional e ideológica" (Valdés, 1995:

127). O Projeto Chile foi concebido e concretizado por três atores

principais: o governo dos Estados Unidos, através dos seus programas de

ajuda externa; a Universidade de Chicago, através do Departamento de

Economia, especialmente os professores mais representativos do que se

poderia chamar "a tradição de Chicago"; e a Universidade Católica do

Chile, junto com um grupo de empresários conservadores, defensores das

idéias do livre mercado e empenhados em vê-Ias adotadas no país.

p. 121

Decidida e planejada em meados da década de 50, essa transferência

ideológica se tornou "operacional" dezoito anos depois, quando o golpe

militar interrompeu o processo democrático e a ditadura comandada pelo

Gal. Pinochet impôs as reformas de caráter neoliberal no Chile. Valdés

mostra que a presença, a difusão e a eficácia das idéias neoliberais na

vida pública chilena resultaram de "uma ação intencional, deliberada e

pactuada, adotada por atores cuidadosamente selecionados que tiveram à

sua disposição os meios, a influência e a especialização requeri das para

implementá-la" (id.: 128)7. Num caso como esse, identificar a ideologia e

estabelecer sua relação com valores e interesses de determinados grupos

ou classes sociais não é absolutamente suficiente para entender os

mecanismos pelos quais ela se torna efetiva numa sociedade determinada

num dado momento.

Outros estudos lidam não com transposições de ideologias já

produzidas, mas com a própria construção delas em primeira mão, mas

construção induzida financeira e organizacionalmente. Susan George, por

exemplo, acompanha o movimento pelo quais fundações constituídas por

grandes e antigas fortunas industriais americanas investem em grandes

universidades e nos meios de comunicação, produzindo e difundindo idéias,

temas, teses, ideologias e dando projeção a pessoas, empresas e

instituições. Financiando cadeiras nas universidades, adquirem o direito

de nomear os professores dessas cadeiras e dos postos de direção. Há, por

exemplo, cadeiras Olin (financiadas pela Fundação Olin) de Direito e de

Economia em Harvard, Yale, Stanford, Chicago, etc. A própria

p. 122

Fundação Olin explicita em documento seu que é preciso "reforçar as

instituições econômicas, políticas e culturais sobre as quais se baseia a

empresa privada" (cf. George, 1996: 34), e em 1988 destinou 55 milhões de

dólares para esse objetivo. Vale a pena acompanhar a exposição de Susan

George: "O dinheiro permite, assim, organizar a notoriedade e o 'campo'

no qual se desenrolarão 'debates' forjados. Em 1988, o Sr. Alan Bloom,

diretor do Centro Olin para o estudo da teoria e da prática da democracia

na Universidade de Chicago (que recebe a cada ano 3,6 milhões de dólares

da Fundação Olin), convida um obscuro funcionário do Departamento de

Estado para pronunciar uma conferência. Este se desincumbe, proclamando a

vitória total do Ocidente e dos valores neoliberais na Guerra Fria. Sua

conferência é logo retomada sob forma de artigo na The National Interest

(revista que recebe um milhão de dólares de subvenções Olin), da qual o

diretor é um neoliberal muito conhecido, Sr. Irvin Kristol, então

financiado com 326.000 dólares pela Fundação Olin enquanto professor na

Business School da New York University. O Sr. Kristol convida Bloom, mais

um outro intelectual de direita renomado, o Sr. Samuel Huntington

(diretor do Instituto Olin de Estudos Estratégicos em Harvard, criado

graças a um financiamento Olin de 1,4 milhões de dólares) para 'comentar'

esse artigo no mesmo número da revista. O Sr. Kristol aí também faz seu'

comentário' .

O 'debate' assim lançado por quatro beneficiários de fundos Olin em

tomo duma conferência Olin numa revista Olin se encontra logo nas páginas

do New York Times, do Washington Post e do Time. Hoje, todo mundo já

ouviu falar do Sr. Francis Fukuyama, e do Fim da história, tomado um

best-seller em várias línguas!"(id.: 34).

Este é um exemplo muito claro de como uma organização do grande

capital industrial controla importantes setores das universidades mais

prestigiosas e os meios de comunicação

p. 123

mais destacado, por meio dos quais organiza o campo intelectual, promove

os temas e os "autores" que patrocina, ou seja, detém para si influência

decisiva sobre as idéias que por sua interferência passam a dominar o

cenário intelectual e político num dado momento.

Se uma ideologia se espraia por uma sociedade e consegue impregnar

quase todos os espaços, ela passa a comandar os processos sociais e a se

exercer como um efetivo poder de direção. Quando uma sociedade está assim

submersa numa ideologia tão poderosamente dominante/dirigente, os campos

da percepção e do pensamento nesta sociedade também sofrem a influência

de tal ideologia. Por que supor que nossas problemáticas de cientistas

sociais estariam imunes a esse poder de direção intelectual, moral e

política da ideologia? Somente uma concepção muito abstrata e

cientificista de ciência assumiria o risco de uma tal suposição. Em

situações de forte dominação/direção ideológica, toda ciência social que

pretenda alcançar algum rigor precisa buscar situar-se nesse campo

ideológico que atravessa a sociedade inteira, e diferenciar-se dele.

Momentos como esse, no entanto, dão à sociologia uma oportunidade

singular de se construir como uma. ciência inserida no seu tempo/lugar e

desempenhar funções que cabem de fato e de direito à atividade

científica, mas que só se cumprem quando os cientistas se dispõem a ousar

o afrontamento com as ideologias dominantes.

"Trazer à consciência os mecanismos que tornam a vida dolorosa, e

mesmo invivível, não é neutralizá-los; expor as contradições não é

resolvê-las. Porém, por mais cético que se possa ser sobre a eficácia

social da mensagem sociológica, não se pode considerar como nulo o efeito

que ela pode exercer, permitindo àqueles que sofrem descobrir a

possibilidade

p. 124

de imputar seu sofrimento a causas sociais e de assim se sentir não-

culpados; e fazendo conhecer amplamente a origem social, coletivamente

ocultada, da infelicidade sob todas as suas formas, inclusive as mais

íntimas e mais secretas. Constatação que, apesar das aparências, não tem

nada de desesperante: o que o mundo social fez, o mundo social pode,

armado desse saber, desfazer" (Bourdieu, 1993: 944).

Nenhuma realidade social é imutável. É de sua natureza transformar-

se. A sociologia tem o que dizer sobre essa realidade, sobre o que ela

aparenta ser, sobre seus determinantes, seus conflitos, suas

contradições, suas transformações, sobre a representação da sociedade

"que aqueles que tiram proveito dela ser como está sendo tentam nos fazer

acreditar que ela seja". O conhecimento sociológico é possível, mas sua

produção não é indiferente, nem sem conseqüências; não interessa

igualmente a todos. Por isso, o poder e as ideologias fazem tantas vezes

sentir o seu peso sobre ela, sob formas mais e menos sutis, para orientá-

la por caminhos menos "inconvenientes" e, conforme sua resposta, para

enaltecê-la ou mesmo excluí-la.

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Miriam Limoeiro-Cardoso é professora da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

o presente ensaio foi apresentado 110 XXI Congresso da Associação Latino-

americana de Sociologia (Alas), realizado em São Paulo (set./1997).

p. 127

NOTAS

_______________

1.Fernandes,F.(1968).Prefácio a Sociedade de classes e

subdesenvolvimento,p. 13s

p. 96

______________

2. "A espantosa desfaçatez das elites econômicas chega hoje ao cúmulo

(...) de querer impingir a falência social de seu sistema como lei

natural a ser aceita c a cuja bitola todos têm de se 'adaptar'" (Kurz,

1996: 47).

p. 97

_______________

3. Grifado no original. Todas as vezes em que uma citação contiver alguma

expressão sublinhada e não houver indicação em contrário, tal expressão

está grifada no original.

p. 101

_______________

4. "O adjetivo 'global' surgiu no começo dos anos 80, nas grandes escolas

americanas de Administração de Empresas, as célebres 'Business management

schools' de Harvard, Colúmbia, Stanford, etc. Foi popularizado nas obras

e artigos dos mais hábeis consultores de estratégia e marketing, formados

nessas escolas - o japonês K. Ohmae (1985 e 1990), o americano M.E.

Porter (1986) - ou em estreito contato com elas. Fez sua estréia em nível

mundial pelo viés da imprensa econômica e financeira de língua inglesa e

em pouquíssimo tempo invadiu o discurso político neoliberal" (Chesnais,

1996: 23). (Ohmae, K. (1985). Triad Power: The Coming Shape o/Global

Competitiol1. Nova Y ork, Free Press. - Ohmae, K. (1990). The Boderless

World. Londres, Colins. - Porter, M.E. (1986). Competition and global

industries; a conceptual framcwork. 111: Porter, M.E. (ed.) Competitiol1

il1 global il1dustries. Boston/Mass., Harvard Business School Prcss.)

p. 106

__________

5. Referência as poor laws aplicadas na Inglaterra no inicio do século

XIX, assegurando a todo habitante dum município rural um mínimo de

subsistência indexado sobre o preço do pão (v. Gorz, 1990: 2 I 5).

p. 115

____________

6. Nesse sentido, não me parece inteiramente correta a afirmação de que

"La sociologia latino-americana ha sido siempre una sociologia dei

desarrollo, hasta nuestros dias" (Mires, 1993: 8).

p. 119

___________

7. "For what they [The Chicago Reports] show is thc way in which

cxternally indueed modernization oeeurs and fonnally organized ideologies

are transferred: not as unilateral conspiraeies, nor as well-wovel1 plots

eonseiously eoneeived to brainwash and dominate, as some simplistie

descriptions of dependency would seem to imply, l1ar as inevitable,

unintentional, neutral processes of acculturatiol1, as the

seminalliterature 011 modernization and change intended" (Valdés, 1995:

128).

p. 122

5 - José María Gómez

Globalização da política :Mitos, realidades e dilemas

Basta um simples olhar no discurso político e econômico e no

noticiário cotidiano de nossas sociedades para constatar que o termo

"globalização" tornou-se a palavra-chave dos anos noventa: aplica-se aos

mais diversos domínios de atividade e circunstâncias do mundo pós-Guerra

Fria, aparentemente com assombrosa capacidade explicativa. Assim sendo,

cabe perguntar se não se está diante de mais um modismo intelectual do

Ocidente neste final de século, de consumo rápido e descartável; ou, ao

contrário, se não se trata de algo revelador, para além do efeito de moda

e de outros usos, da necessidade de empreender um esforço de conceituação

das múltiplas e profundas transformações em curso no mundo atual. Dada a

visibilidade recente do tema e as controvérsias e antagonismos agudos que

suscita (entre visões apologéticas e apocalípticas,por exemplo), a busca

de elementos de resposta desse e de outros interrogantes pertinentes

requer uma série de esclarecimentos preliminares.

Convém assinalar, de imediato, que o próprio termo "globalização"

apresenta sérias dificuldades. De rara utilização nos círculos acadêmicos

antes da metade dos anos oitenta - embora McLuhan, nos anos sessenta, já

houvesse anunciado sua famosa metáfora da aldeia global como resultado

das novas tecnologias de informação e comunicação - esse

p. 128

termo está atravessado por uma ambivalência ou imprecisão constitutiva em

função da variedade de fenômenos que abrange e dos impactos diferenciados

que gera em diversas áreas: financeira, comercial, produtiva, social,

institucional, tecnológica, cultural, etc. (Waters, 1995; Baumann, 1996).

Ademais, evoca a falsa imagem dum mundo homogêneo e integrado, que pouco

ou nada parece ter a ver com realidades de extrema fragmentação e

desintegração. Porém, mais importante do que as imprecisões e as

ambivalências é o fato de que o termo carrega, como marca de origem, um

elevado índice de ideologização.

1. A globalização como ideologia

A rigor, as expressões "global", "tecnoglobal" ou "globalização"

surgem no início dos anos oitenta em prestigiosas escolas americanas de

administração de empresas, popularizam-se através das obras de conhecidos

consultores de estratégia e marketing internacional, expandem-se pelo

viés da imprensa econômica e financeira e, rapidamente, passam a ser

assimiladas pelo discurso hegemônico neoliberal (Chesnais, 1996). As

visões mais apologéticas da globalização — as que têm por destinatários

as grandes corporações multinacionais "triádicas" (originárias dos três

centros do capitalismo mundial: Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão)

- vêm sublinhando a formidável possibilidade de lucro que se abre com a

configuração definitiva duma economia mundial sem fronteiras, a

oportunidade de multiplicar a capacidade de comunicação e controle em

tempo real que a telemática permite ,conseqüentemente, a necessidade de

que tais forças privadas econômicas procedam à drástica reformulação das

formas de gestão e da atuação estratégica em escala planetária (Andreff,

1996). A premissa da qual partem é a de que,

p. 129

com a criação e expansão incessante de uma economia global dominada pelas

forças do mercado mundial (fundamentalmente, os mercados financeiros

internacionais e as corporações transnacionais, forças mais poderosas que

os mais poderosos Estados - chegou-se ao "fim do Estado-nação" como

organização territorial eficaz para a governabilidade das atividades

econômicas nacionais (Ohmae, 1996). Tendo em vista a extrema mobilidade

dos capitais em busca das melhores vantagens e o caráter relativamente

estático do trabalho e a obsolescência tanto dos regimes extensivos de

direitos sociais quanto das regulações econômicas nacionais contrárias às

expectativas dos mercados globais e das corporações transnacionais, os

estados nacionais tornam-se simples autoridades locais do sistema global,

encarregadas da proteção, da infra-estrutura e dos bens públicos

considerados essenciais pelo capital internacional. Desse modo, uma vez

libertados das distorções das intervenções do Estado e dos

constrangimentos da política, o livre comércio, as corporações

transnacionais e os mercados mundiais de capitais gerarão conseqüências

benéficas de prosperidade e bem-estar a todas as nações do planeta,

através de investimentos, financiamento, comércio, inovação tecnológica e

consumo de produtos baratos e de qualidade.

Compreende-se, assim, por que essa retórica apologética da

globalização é assumida de imediato como carro-chefe do ultraliberalismo

conservador que, hegemônico no campo político-ideológico nos países do

norte industrializado, já vinha lançando desde a década de setenta uma

ofensiva total contra o Estado de bem-estar, esse símbolo máximo do

"capitalismo organizado" posterior à Segunda Guerra Mundial,

caracterizado pela regulação econômica nacional, pelo pleno emprego e

crescimento sustentado, pela produção de massa

p. 130

estandardizada e pelo compromisso de classes através de mecanismos

neocorporativistas entre empresários, sindicatos e Estado (Offe, 1989).

Em função disso, no contexto histórico de fracasso evidente de

estratégias de desenvolvimento econômico centradas no intervencionismo

estatal (reformismo social-democrata, desenvolvimentismo latino-americano

e "socialismo real") - embora permaneça sob silêncio, não por acaso, as

estratégias exitosas provenientes do Japão e de outros países asiáticos -

, o neoliberalismo passou a pregar, urbi et orbi, em nome da

inevitabilidade dos sistemas e atores da globalização transnacional da

economia, um conjunto de reformas econômicas de "ajuste estrutural"

(abertura das economias nacionais, desregulação dos mercados,

flexibilização dos direitos trabalhistas, privatização das empresas

públicas, corte nos gastos sociais, controle do déficit fiscal, etc.),

mais conhecido na América Latina sob a denominação de "Consenso de

Washington" (Vacs, 1994; L. Fiori, 1995). Em suma, uma linguagem e um

projeto dominante de globalização econômica que termina por se

identificar com uma receita de alcance universal - ou melhor, uma

política econômica das relações internacionais ou um "novo

constitucionalismo" - correspondente a um capitalismo globalizado, que

tem por espaço natural o próprio mundo e que pretende auto-regular-se

sem interferências políticas nacionais, regionais ou internacionais, com

o fim de gerar benefícios para todas as nações que nele se inserem

competitivamente (Gill, 1995).

2. Conceituando a globalização

O fato de que a retórica celebratória da globalização tenha um

caráter abertamente ideológico e mistificador não significa, entretanto,

que se deva desconhecer que vários dos processos e transformações

estruturais que ela aponta são

p. 131

reais e que, como efeito desigual e combinado deles, o mundo atual se

tornou cada vez mais interdependente. Afinal, um dos resultados imediatos

do fim da Guerra Fria (que durante mais de quarenta anos sobre determinou

o conjunto das relações internacionais através da pesada lógica

Estratégico-militar da bipolaridade entre as duas superpotências) foi pôr

em evidência - e até acelerar - mudanças de diferente índole (econômicas,

políticas, estratégicas, tecnológicas, culturais, organizacionais,

jurídicas, etc.), que vinham se gestando há várias décadas, no sentido

duma intensificação e extensão nunca antes experimentada de interconexões

entre estados e sociedades civis. Isto é, um fluxo crescente de capitais,

mercadorias, pessoas, idéias, valores, imagens, criminalidade, doenças,

informações, conhecimentos. Ao mesmo tempo, tais desenvolvimentos de

tendências centrípetas ou integradoras de alcance global resultam

indissociáveis de outros desenvolvimentos não menos evidentes

de signo contrário, como são as tendências à fragmentação e à

desintegração dentro e entre as nações. Isto é, nacionalismos étnicos,

fundamentalismos religiosos, guerras civis, desigualdades crescentes

entre países ricos e pobres, xenofobia e racismo, aumento da pobreza e

exclusão social dos segmentos que não se inserem competitivamente no

mercado global, regionalismos econômicos protecionistas, etc. (Held,

1991a; Gaddis, 1991).

Desse modo, pode-se dizer que globalização e fragmentação são duas

faces de processos estreitamente vinculados entre si, que marcam com uma

profunda incerteza o mundo do pós-Guerra Fria ao emitir sinais múltiplos,

complexos e contraditórios. Por um lado, abrem-se pistas de cooperação

internacional na direção duma necessária "nova ordem global", a qual, de

maneira precipitada e interessada, foi até 1991 euforicamente celebrada

pela comunidade internacional,

p. 132

em função da queda do muro de Berlim e das revoluções na Europa Central e

Oriental, na expectativa de avanços do multilateralismo em matéria de

segurança coletiva,comércio, desenvolvimento sustentável e promoção da

democracia, direitos humanos, eqüidade e ação humanitária. Mas, por outro

lado, respalda a percepção inquietante de uma "fenomenal desordem",

sobretudo após as experiências da Guerra do Golfo, da fantástica

desagregação do Leste Europeu, das atrocidades em nome da pureza étnica

nos Bálcãs, do genocídio em Ruanda, dos conflitos no Cáucaso, da inação

ou fracasso das Nações Unidas, do futuro enigmático duma China-potência

em acelerado crescimento e transição ao capitalismo e da emergência da

Bacia Ásia-Pacífico como novo epicentro da economia mundial, das

sucessivas crises financeiras em vários países industrializados, da crise

econômica e política no México, etc.

Se o problema primordial que envolve o tema da globalização é

conceituai, e não terminológico (até porque, queira-se ou não, o termo

terminou por se impor nos discursos político e acadêmico), resulta então

necessário destacar sem nenhuma pretensão classificatória exaustiva ou de

análise do alcance explicativo das distintas posições teóricas — a

existência duma diversidade de esforços de conceituação e de leituras

sobre a natureza, significado e alcance das mudanças atuais com as quais

se identificam os processos de globalização e fragmentação. Uma

referência obrigatória do tema é, certamente, a literatura em relações

internacionais, especialmente aquela derivada dos maiores paradigmas de

análise (realismo, idealismo e marxismo), com suas variantes

contemporâneas - neo-realismo, institucionalismo liberal, neomarxismo - e

principais debates metodológicos, conceituais e teóricos (McGrew, 1992;

Baldwin, 1993; Keo-

p. 133

hane, 1996; Cox, 1987; Gill, 1993). Este artigo está amplamente baseado

nessa literatura especializada que, como não poderia deixar de ser, chega

ao final do século XX profundamente interpelada pelo "estado de agitação

e confusão" do seu próprio objeto de estudo (Keohane, 1996: 462). Mas o

que interessa sublinhar aqui é que a idéia da globalização atraiu também

a atenção (e não poucas vezes o ceticismo ou a ira) das ciências sociais,

as quais, a partir de distintas áreas de conhecimento e apoiando-se com

freqüência nas teorias precursoras "clássicas", começaram a colocar no

centro das indagações os problemas multidimensionais decorrentes da

mudança de natureza da relação tempo-espaço associada a tal idéia.

Para Ronald Robertson (1992: 8), a globalização consiste na

"compressão do mundo e na intensificação da consciência do mundo como um

todo", levantando três questões importantes. Em primeiro lugar, a

globalização não é um estado completamente novo, mas um processo de longa

duração, cuja origem remonta às primeiras viagens dos exploradores

europeus, e que só se acelera e se aprofunda na era contemporânea

(portanto, isso não implica que ela seja automaticamente boa ou má, ou

que encarne o triunfo definitivo do liberalismo econômico e político à Ia

Fukuyama, ou que produza os mesmos efeitos em todo lugar). Em segundo

lugar, instituições sociais e povos sofrem os impactos da globalização

sem que necessariamente os padrões de pensamento e significação se

adaptem aos fatos, e, quando adaptados, eles podem gerar ou aprovação ou

rejeição; noutras palavras, essas instituições e povos podem não ser

conscientes da globalização e nem por isso são menos afetados por ela, e,

quando conscientes, não lhe respondem de maneira uniforme, mas

diferenciada. Em terceiro lugar, o espaço foi fundamentalmente

comprimido, o que implica que indivíduos, organiza-

p. 134

ções sociais e comunidades se vêem forçados a estabelecer contatos mais

próximos e a reconhecer dependências mútuas (o que provoca mudanças e

conflitos, emergência de novas formas sociais e culturais,

interdependência crescente da economia mundial, um grande número de

pessoas e idéias percorrendo o mundo graças aos avanços nas comunicações

e transportes... tudo isso impulsionando movimentos tendentes à

homogeneização cultural - similitude, em distintos lugares, da

alimentação, tevê, arquitetura, música, roupas, valores, etc. - e a uma

simultânea diversidade - pressões para autonomia ou identidades culturais

locais e regionais).

Mike Featherstone (1996) vê na tendência à uniformidade um elevado

risco da "mcdonaldização" das sociedades e do mundo (a extensão dos

princípios do restaurante de fast-food McDonald's aos mais variados

âmbitos de atividade), assinalando ainda que tal tendência, além de

acarretar uma maciça padronização da vida cotidiana — funcional aos

ganhos de eficiência econômica —, leva a se consumir culturalmente

imagens e ícones do american way of life, reforçado pela adoção do inglês

como idioma mundial da cultura de consumo de massa. Mas, logo depois,

salienta que a presunção dum único centro dominando a periferia, por mais

poderoso que seja, acomoda-se mal ao fato de que muitos centros continuam

a competir entre si, de que se impõem mudanças nas relações de poder

entre estados-nações e blocos regionais e de que se criam novas

interdependências. Além do mais, a velocidade e a expansão dos meios de

comunicação, embora não asseguram condições igualitárias de participação,

permitem que novos atores entrem no jogo e reivindiquem o direito a ser

ouvidos, ainda mais com a facilidade do transporte-transmissão de

pessoas, imagens e objetos através do mundo inteiro e com o conseqüente

aumento das dificuldades

p. 135

dos governos para vigiar e controlar o volume de informação e imagens que

atravessam suas fronteiras. Assim, o processo de globalização, mais do

que favorecer o aparecimento duma cultura global unificada (que não deve

ser confundida com situações efetivas de hegemonia cultural), tende a

prover um campo de expressão e de acentuação das diferenças,

heterogeneidades, localismos, confrontos, fragmentação, sincretismo,

hibridização das culturas - em suma, revela a natureza multiforme e a

extrema complexidade dos fenômenos culturais atuais.

Anthony Giddens, por seu turno, assume plenamente a problemática do

distanciamento tempo-espaço na análise da vida social, estrutura

conceptual que visa às complexas relações entre envolvimentos locais

(circunstâncias de co-presença) e interação através de distância

(conexões de presença e ausência); e, além disso, propõe a definição da

globalização como um fenômeno constituído por processos originados na

modernidade de

"intensificação das relações sociais em escala mundial, que

ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são

modelados por eventos que ocorrem a muitas milhas de distância e vice-

versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais

podem se deslocar numa direção inversa às relações muito distanciadas que

o modelam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto

à extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço"

(Giddens, 1991: 69 s).

Do seu ponto de vista, são quatro as dimensões fundamentais e

irredutíveis que a constituem: 1) a economia mundial capitalista, que tem

por agentes dominantes as corporações

p. 136

transnacionais, com base-matriz num Estado específico, mas que opera

estrategicamente em escala planetária como poder econômico capaz de

mobilizar enormes recursos e influenciar distintos estados; 2) o sistema

de estados-nação, cujos atores principais são essas entidades políticas,

ciosas dos seus direitos territoriais - monopólio da legalidade e da

violência e promoção de identidade nacional -, e que se inserem nas

relações de poder da ordem política global contando, entre outros

recursos, com seu nível de riqueza e de força; 3) a ordem militar

mundial, que se refere às conexões entre indústria de guerra,fluxo de

armamento e técnicas de organização militar duma parte do mundo para

outras, bem como às alianças entre as forças armadas de estados

diferentes e ao próprio fenômeno da guerra (as duas guerras mundiais, as

guerras "orquestradas" nas áreas periféricas pelas duas superpotências

durante a Guerra Fria, etc.); 4) o desenvolvimento industrial, cujo

aspecto mais importante - a expansão da divisão internacional do trabalho

- supõe tarefas e especializações de países ou regiões em termos de tipo

de indústria, de capacitação e produção de matérias-primas, além das

implicações globalizantes do industrialismo na difusão de tecnologias e

seus impactos na esfera da produção, na vida quotidiana e no meio

ambiente.

Mas, por trás de cada uma destas quatro dimensões institucionais

subjaz o que poderia ser chamado de globalização cultural, que encontra

nas transformações das tecnologias de comunicação e nos impactos da mídia

os vetores de acesso direto e simultâneo de indivíduos e organizações,

separados espacialmente de informações e conhecimentos.

Numa linha de reflexão próxima à de Giddens, David Harvey argumenta

que a intensificação do processo de compressão do espaço-tempo inerente

ao capitalismo (e vincula-

p. 137

do ao modernismo como força cultural) implica um encurtamento do tempo e

um encolhimento do espaço, que se processam não de modo gradual ou

contínuo, mas através de curtas e intensas implosões, durante as quais o

mundo muda rapidamente, em incrementos de direção incerta. A última

implosão começou em torno de 1970, tendo origem na crise de

superacumulação do sistema capitalista sob o regime fordista de produção

de massa integrada e vertical. A resposta foi a emergência dum regime

"flexível" de acumulação, o qual, devido à rápida implantação de novas

formas organizacionais e de novas tecnologias eletrônicas na produção,

teve efeitos profundos nas estruturas dos mercados financeiros: caóticos,

contínuos, fluidos, de alcance planetário e bem mais poderosos, tornaram-

se verdadeiramente globais. A própria acumulação flexível

(subcontratação, transferência de sede, entrega just-in-time, aceleração

do tempo de giro, padrões de consumo, etc.) já representa uma forma

singular e intensíssima de compressão temporal. Desse modo, as duas

últimas décadas encarnam mais uma fase feroz de aniquilação do espaço por

meio do tempo, fenômeno que sempre esteve no centro da dinâmica

capitalista, provocando impactos desorientadores e disruptivos "sobre as

práticas político-econômicas, sobre o poder de classe, bem como sobre a

vida social e cultural" (Harvey, 1993: 257). Essa redução das barreiras

espaciais, contudo, não supõe o decréscimo da significação do espaço: se

o mundo tornou-se um campo único em que pode operar o capitalismo, o

aumento da competição leva os movimentos de capitais a serem cada vez

mais sensíveis às vantagens das localizações espaciais particulares. Isso

dá lugar, entre outras conseqüências, ao reordenamento do próprio espaço

urbano das principais áreas metropolitanas, tanto nos países centrais

quanto nos periféricos (com características certamente bem diferentes,

como o ilustram es-

p. 138

sãs sedes de catástrofes - poluição, inundações recorrentes, violência

incontrolável, expansão da pobreza, deterioração da qualidade de vida,

etc. - que são as grandes cidades latino-americanas), configurando o que

alguns autores denominam de cidades "globais", por estarem conectadas com

as redes mundiais de produção, comércio, finanças, comunicações e

turismo. - É por isso que tampouco é casual que empresários japoneses

tenham inventado o neologismo glocalize para aludir ao novo esquema

"empresário-mundo", que articula informações, crenças e rituais locais,

nacionais e internacionais (Garcia Canclini, 1995;Benko, 1994).

Em resumo, as abordagens acima expostas afirmam que a globalização

trata da efetiva transformação do espaço e do tempo (a chamada ação à

distância, cuja expansão e intensificação recentes relacionam-se com o

surgimento de meios de comunicação global instantâneos e ao transporte de

massa), com implicações importantes para a análise, como, por exemplo, a

de que a globalização não deve ser equacionada exclusivamente como um

fenômeno econômico ou como um processo único, mas como uma mistura

complexa de processos freqüentemente contraditórios, produtores de

conflitos e de novas formas de estratificação e poder, que interpela

fortemente subjetividades e tradições, exigindo maior reflexibilidade na

ação diante do incremento da complexidade e da incerteza, e que diz

respeito não apenas à criação de sistemas em grande escala, mas também às

mudanças nos contextos locais e até mesmo pessoais de experiência social

(Giddens,1996: 13). Como dizem S. Lash e J. Urry (1994), trata-se duma

situação paradoxal, que obriga a "pensar globalmente e agir localmente",

em razão tanto dos impactos

das condições da ação e da própria ação - do global no local e do local

no global - quanto do fato de que toda ação supõe agentes e

p. 139

estes são, antes de mais nada, corpos, e corpos que sempre têm uma

localização espácio-temporal.

Por essas razões compreende-se a afirmação de alguns autores segundo

a qual a problemática das relações sociais estendidas através dum espaço-

tempo comprimido, atravessando fronteiras e modelando a vida social,

constitui-se no desafio fundamental das ciências sociais neste final de

século (Waters, 1995; lanni, 1995; Held, 1991b). Em concordância com essa

posição, o propósito das presentes notas é argumentar, a partir do

enfoque de algumas questões consideradas fundamentais - e que, sem

dúvida, exigiriam um tratamento mais amplo e aprofundado - , no sentido

de que os processos de globalização mudam radicalmente o contexto da

política contemporânea, transformam suas condições, conseqüências e

atores, expandem o horizonte da ação (sentidos, valores, constituição de

sujeitos e de identidades, alianças, antagonismos, etc.)

e interpelam as categorias com que habitualmente são pensados seus

principais problemas, dilemas e desafios. Mas, para avançar na direção

proposta é necessário que nos detenhamos previamente nas relações entre o

Estado-Nação - essa figura com a qual a política moderna terminou por se

identificar plenamente - e os principais desenvolvimentos da

globalização.

3. Globalização, sistema de estados e Estado-Nação

Um dos erros mais freqüentes em que incorrem as interpretações sobre

a globalização é a tendência a opor, de maneira imediata e absoluta,

Estado e crescimento da interdependência, sem perceber que esse

relacionamento é no mínimo ambivalente, já que o próprio Estado, desde

sua origem, constituiu-se -juntamente com a formação da economia

p. 140

capitalista - num dos elementos-chave dos processos incipientes de

globalização, embora, com freqüência, a eles se oponha (Brown, 1995). com

efeito, vista numa perspectiva histórica, a criação do mundo moderno foi

resultado da própria globalização do Estado enquanto rede universal de

governança e forma estandardizada de organização territorial da vida

política. É sabido que, em 1648, com o fim da Guerra dos Trinta Anos, a

Paz de Westfália sancionou e tornou possível uma relação estável e

singular entre autoridade política e território. As exaustivas guerras

civis religiosas que se seguiram ao cisma protestante

levaram as elites dominantes a colocarem a paz social acima das ambições

religiosas supranacionais, reconhecendo que os príncipes e os estados

tinham o poder de determinar o estatuto dos seus súditos sem

interferências "externas". A partir de então, e uma vez "despolitizado" o

maior problema político do século XVII - as crenças religiosas -, tornou-

se possível à construção dos estados autocráticos como conjuntos

diferenciados de instituições e funcionários que exercem de maneira

centralizada e territorializada o monopólio do estabelecimento de leis

obrigatórias para uma população (isto é, a clássica definição

institucional-funcional de matriz weberiana, que remete à questão central

dos dois tipos de poder autônomo do Estado: o despótico, da elite

estatal, e o infra-estrutural, de penetração na sociedade civil) (Mann,

1992). Mais tarde, quando surgiram as formas de Estado liberal e

democrático como resultado de complexos processos históricos e de

acirradas lutas e conflitos entre diversas forças sociais, elas - apesar

das mudanças significativas - ainda eram herdeiras desses objetivos do

absolutismo iluminista no que se refere à soberania sobre um território

governado de maneira coerente e exclusiva.

A aceitação generalizada, entre os cientistas sociais, da afirmação

segundo a qual o atributo característico do Estado moderno é o monopólio

dos meios de violência legítima em

p. 141

um território determinado, dá a entender, à primeira vista, que o Estado

o adquiriu devido ao próprio esforço interno de controle (mobilizar

forças armadas, desenvolver burocracias administrativas e capacidade

extrativa de recursos, traçar mapas e caminhos, estimular o comércio,

etc.). Mas isso leva a ignorar que um grau significativo da capacidade de

impor "soberania" sobre sua própria sociedade veio de "fora", através dos

acordos mútuos e internacionais que consagraram o princípio da não-

interferência externa entre os estados que constituíram a emergente

sociedade internacional. A ascensão do Estado moderno como forma

territorial, impessoal, centralizada e legitimada do poder político

dependeu de acordos internacionais e do novo sistema de direito

internacional que, ao longo do século XVIII, começou a ser codificado

pelos estados europeus, consagrando a doutrina da soberania que reconhece

mútuos poderes e igualdade jurídica dos estados entre si. Certamente isto

não significa que a consolidação do sistema de estados-nações e a ordem

internacional que dele decorre não seja política e economicamente

hierárquica e desigual entre países e regiões (dominação de grandes

potências concentradas no oeste e no norte e pesado custo para a

autonomia e a independência dos estados débeis ou pequenos e das

civilizações extra-européias), nem que as diferenças entre os estados não

tenham mais a possibilidade de virem a ser resolvidas, em última

instância, pela força. Esses traços perduram até a atualidade, tanto de

fato quanto institucionalmente, no sistema das Nações Unidas implantado

depois da Segunda Guerra Mundial, apesar das mudanças políticas e legais

que esse novo sistema introduz no modelo de Westfália e da possibilidade

de novos princípios organizacionais para os assuntos mundiais gerada por

tais mudanças (Held, 1995a).

p. 142

A dimensão internacional possibilitou, então, a "internalização" do

poder e da política nos estados, de modo que esses últimos passaram a ser

percebidos como comunidades políticas primárias com capacidade para

determinar, através de suas autoridades, as normas obrigatórias sobre

qualquer atividade considerada relevante, isto é, com capacidade de agir

"soberanamente" para determinar por si mesmas a natureza e os objetivos

das políticas internas e externas (Hirst Thompson, 1996). A sociedade

anárquica de inter-relações externas entre os estados (esse mundo de

entidades auto-suficientes, em que cada uma age sob sua própria vontade,

mas ficam todas limitadas pelo mútuo reconhecimento e pela

obrigação de não interferir nos assuntos internos das outras) foi, assim,

a pré-condição para um efetivo monopólio de poder interno. A rigor, a

natureza e a forma do Estado-Nação na Europa - onde esse Estado se formou

e se consolidou - resultou da intersecção de condições e processos

históricos "nacionais" e "internacionais" complexos, que determinaram o

tamanho, estrutura organizacional, composição étnica, infra-estrutura

material, etc., de cada uma dessas entidades estatais e expressaram de

maneira condensada o triunfo do Estado-Nação na guerra (capacidade para

organizar os meios de coerção e para utilizá-los quando necessário), do

seu relativo sucesso econômico (crescimento do mercado, sobretudo a

partir da segunda metade do século XVIII, sustentando o processo de

acumulação de capital) e do grau elevado de legitimação alcançado em suas

populações e em outros estados (Held, 1995a).

Durante os séculos XIX e XX, à categoria fundamental de soberania do

Estado (com seus dois aspectos indissociáveis, ou seja, o interno, como

poder supremo, e o externo, como poder independente) adicionaram-se - com

não poucas

p. 143

contradições e conflitos - outras duas caraterísticas maiores da política

moderna, redefinidoras dos termos da relação entre Estado, "povo" e

cidadãos: o nacionalismo e a democracia (Hirst- Thompson, 1996). O

nacionalismo estendeu e aprofundou a abrangência da soberania ao requerer

e expressar uma pretensa homogeneidade cultural à qual se conformariam os

cidadãos (como conjunto comum de significados e entendimentos políticos

historicamente específicos - etnicidade, religião, língua, costumes - que

prevalecem sobre outras fontes primárias de lealdade e que configuram um

"povo" e uma "nação" expressos pelo Estado). Ele transformou o mapa

político através da formação ou dissolução de numerosos estados (fez, de

fato, implodir os impérios multinacionais europeus) e canalizou para uma

"comunidade imaginária" as massas trabalhadoras mobilizadas pela

Revolução Industrial e por diversas demandas de inclusão, mas sem alterar

a natureza dessas entidades políticas territorialmente soberanas

(Anderson, 1991; Hobsbawm, 1992).

Paralelamente, em rápida compatibilização com o nacionalismo, as

idéias e práticas democráticas modernas surgiram e se expandiram a partir

de acirradas lutas pelo deslocamento da aplicação da lógica da igualdade

política da sede originária das cidades-estados da Antigüidade e da

Itália medieval e renascentista para o âmbito mais vasto do Estado-Nação

(a chamada "segunda transformação democrática"), gerando uma série de

conseqüências fundamentais: governo representativo, limites à

participação política efetiva, heterogeneidade ou diversidade social,

multiplicação de divisões e conflitos, desenvolvimento de instituições

"poliárquicas" (funcionários eleitos, eleições livres e imparciais,

sufrágio universal, liberdade de expressão, autonomia associativa, etc.)

indispensáveis para o funcionamento do pro-

p. 144

cesso democrático em grande escala, pluralismo social e organizativo,

expansão dos direitos políticos primários de cidadania à quase totalidade

da população adulta (Dahl, 1991). O foco da teoria da democracia, ao

longo dos séculos XIX e XX, e desde as versões mais elitistas-

conservadoras até as mais radicais-participativas, tem se concentrado nas

condições que propiciam ou obstaculizam a vida democrática de uma

comunidade nacional que se autogoverna, compartilhando uma concepção

inquestionada de soberania do Estado-Nação e algumas premissas

subjacentes que dela decorrem: que as democracias podem ser tratadas como

unidades auto-suficientes; que são claramente separadas umas das outras;

que as mudanças no âmbito duma democracia podem ser explicadas pela

referência às estruturas internas e à dinâmica das sociedades nacionais;

e que a política democrática expressa, em última instância, a interação

de forças operando no plano do Estado-Nação (Held, 1991b). Noutras

palavras, temos uma série de categorias e idéias-força que, além de tomar

como um dado fixo o Estado-Nação, concebem os processos democráticos como

situados essencialmente dentro de suas fronteiras (consenso e

legitimidade, base territorial do processo político, responsabilidade da

decisão política, formas e alcance da participação política, garantia

institucional do Estado dos direitos e deveres dos cidadãos).

Por todas essas razões não surpreende que, no fundo, a imagem ou o

ideal da política no século XX ficasse identificada ao Estado-Nação,

incorporador duma nação homogênea,"uma cultura comum e uma economia

nacional submetida ao controle e regulação de democracias representativas

que funcionam dentro de fronteiras distintas e seguras" (Brown, 1995:

57). Ocorre que a comunidade política do Estado-Nação é um ideal cuja

realização, a rigor, nunca foi

p. 145

completa (apenas poucas experiências históricas no mundo conseguiram se

aproximar desse ideal) e que depende mais das políticas e instituições do

Estado do que da "Nação", operando na longa duração com um misto de

coerção, benefícios materiais e persuasão ideológica, através dum

processo político que envolve as forças políticas e sociais mais

relevantes. Ora, na atualidade essa mesma figura do Estado enfrenta, na

intersecção de relações e de forças nacionais e internacionais, profundas

mudanças de alcance mundial nos padrões de poderes e restrições, pressões

e condicionamentos, que assinalam uma série de hiatos ou disjuntivas

"externas" entre, por um lado, a idéia de autoridade política soberana

com capacidade de autodeterminação, que os estados-nação reivindicam para

si, e, por outro lado, os vetores primordiais de globalização econômica,

política e cultural que moldam e limitam as opções dos estados

individuais em domínios-chave (Held, 1995a). Daí a conveniência de mapear

esses desenvolvimentos da globalização e de se deter nos modos como eles

afetam - claro que com impactos diferenciados, segundo as condições

internacionais e nacionais de cada país - as capacidades dos estados-

nação para modelar a sociedade, a política e a economia.

4.0 capitalismo globalizado

A chamada globalização da economia refere-se à nova forma gerada nas

últimas décadas pelo processo de acumulação e internacionalização do

capital e às restrições crescentes que seu funcionamento e suas forças

dominantes (corporações transnacionais e detentores do capital

financeiro) impõem à soberania e à autonomia dos estados nacionais.

Inscrita num movimento de longa duração de reordenamento dos espaços

econômicos, tal forma é a resultante de

aceleradas

p. 146

mutações operadas em diversos âmbitos: tecnológico (microeletrônica,

processamento de informações e telecomunicação por satélite, que permitem

o incremento do volume e da velocidade das informações e reduzem os

custos de comunicação e de transporte), político (decisões governamentais

de ajuste estrutural baseado na liberalização e desregulamentação dos

mercados de bens, serviços e fatores de produção), geopolítico (fim do

comunismo), microeconômico (estratégias de investimento, produção e

comercialização em escala mundial, de firmas industriais e financeiras

submetidas à competição livre de entraves e de todos contra todos), de

evoluções macroeconômicas (crescimento de novos países industrializados)

e ideológico (hegemonia neoliberal) (Chesnais, 1996; Adda, 1996; Gill,

1995).

Embora contestada por alguns críticos - que consideram que a atual

internacionalização da economia não é inédita, que não alcançou ainda uma

integração global, que as corporações verdadeiramente transnacionais são

poucas e que os estados nacionais mais poderosos têm condições para

assegurar a governança da economia mundial (Hirst - Thompson,1996), há um

elevado consenso entre os autores de que se está diante duma nova era do

capitalismo, cujo sentido, alcance e conseqüências diferem tanto do

período precedente do "fordismo" quanto da era do imperialismo de um

século atrás, que vinculava os estados às grandes burguesias nacionais

(Chesnais, 1996).

Vários são os indicadores que evidenciam a magnitude, o caráter

expansivo e a interdependência sem precedentes alcançada pelo processo de

globalização econômica em curso, cujos efeitos de maior intensidade e

extensão sobre as políticas econômicas nacionais superpõem-se àqueles

decorrentes do fenômeno mais antigo da internacionalização das economias

p. 147

capitalistas e do fenômeno mais recente da regionalização (Bautnann,

1996). Do ponto de vista financeiro, o traço mais marcante é o aumento

monumental do volume e da velocidade dos recursos disponíveis, assim como

da interação dos seus efeitos sobre as diversas economias, num curto

espaço de tempo. Do ponto de vista comercial constata-se uma crescente

semelhança ou homogeneidade nas estruturas de demanda e de oferta nos

diversos países, a qual possibilita às empresas ganhos de escala,

uniformização de técnicas produtivas e administrativas, redução do ciclo

do produto e competitividade na fronteira tecnológica, no quadro duma

competição que ocorre cada vez mais em escala mundial. Do ponto de vista

produtivo há convergência também crescente das características do

processo produtivo entre os países (métodos de produção em favor de

elevados níveis de tecnologia e destreza, unidades de produção autônomas,

menores e mais flexíveis, terceirização, tendências para o trabalho de

tempo parcial e insegurança no emprego, normas e rotinas operativas

idênticas, etc.), já que as diversas unidades nacionais de produção são

componentes da mesma estrutura integrada de geração de valor, cujas ações

e decisões têm lugar no interior de empresas globais, cada vez menos

sujeitas às determinações de políticas nacionais e aos vínculos locais

entre empresas nacionais. A rigor, esse tipo de produção globalizada

expressa e estimula uma formidável concentração de poder econômico em

nível mundial, representado pelas corporações transnacionais, que hoje

controlam um terço da produção industrial mundial, além do fato de que as

vendas de suas filiais conseguem um montante superior ao do comércio

mundial; por outro lado, a desintegração espacial dos distintos segmentos

produtivos das empresas transnacionais, ao fazer parte de estruturas

globais de produção e oferta estrategicamente orientadas, permitiu o

crescimento do comércio

p. 148

intrafirma de 20% do comércio mundial em 1980 para cerca de 33% em 1994,

enquanto seu investimento constitui aparte mais importante dos fluxos de

investimento direto em nível mundial (Chesnais, 1996; Andreff, 1996).

Finalmente, do ponto de vista institucional, observam-se semelhanças

crescentes entre os sistemas econômicos nacionais, tendências cada vez

mais uniformes ou homogêneas nas relações entre as empresas e os estados,

e até na própria política econômica dos países, cuja agenda passa a ser

sobredeterminada por condicionantes externos (Baumann, 1996).

Dois fatores principais desencadearam a globalização econômica: a

liberalização dos intercâmbios de bens e serviços e a mobilidade

praticamente ilimitada do capital.O primeiro fator não é novo, pois tem

origem nas condições favoráveis ao crescimento do comércio internacional

logo após a Segunda Guerra Mundial, quando, por um lado, foram superadas

as barreiras entre as áreas de influência da libra esterlina, do franco,

etc. e surgiu a noção duma economia mundial em sentido estrito do termo,

e, por outro, teve lugar um aumento sustentado e contínuo do volume do

comércio internacional sem precedentes e em ritmo superior ao aumento da

produção,aumento possibilitado pela remoção de barreiras tarifárias e

outras, promovidas pelas diversas rodadas de negociações multilaterais no

âmbito do Gatt (Baumann, 1996). O elemento novo é que a liberalização dos

intercâmbios se amplia de forma crescente, sob a pressão particular dos

Estados Unidos, seguida com algumas resistências pelo resto dos países

centrais, envolvendo todos os setores econômicos (agricultura, direitos

de propriedade intelectual, serviços), todos os instrumentos de

intervenção do Estado (subsídios, mercados públicos, controles

alfandegários ou técnicos, políticas de concorrência, etc.) e todos os

parceiros comerciais

p. 149

(o documento final da Rodada Uruguai do Gatt contou com a assinatura de

111 países, em dezembro de 1994). Ademais, diferentemente de fases

anteriores de internacionalização, a atual globalização dos intercâmbios

não opera entre países produzindo bens e serviços complementáveis, mas se

organiza tanto entre países, tendo a mesma estrutura de produção e o

mesmo nível de desenvolvimento (daí a elevada concentração do comércio

entre os membros da OCDE - o clube dos 29 países mais ricos - e,

paradoxalmente,o estímulo à construção de grandes espaços regionais

integrados, especialmente na tríade que envolve os Estados Unidos, Europa

e Japão) quanto entre países industrializados e aqueles com baixo custo

de mão-de-obra, para onde se "deslocalizam" indústrias com alto

componente tecnológico e produtividade.

O segundo fator desencadeador refere-se à passagem, em menos de duas

décadas, dum mundo de autarquia financeira para um mundo de mobilidade do

capital quase ilimitada, isto é, para uma integração financeira global

cujo funcionamento parece realizar o "fim da geografia" (segundo

expressão de R. O'Brien, 1992). De fato, a chamada macroestrutura

financeira (constituída pelos principais bancos centrais, grandes bancos

internacionais, corporações transnacionais, companhias de seguro, fundos

de pensão, etc.) dispõe duma massa enorme de capital-dinheiro (o mercado

de derivativos gira perto de US$ 15 trilhões ao ano; os grandes

investidores institucionais norte-americanos - fundos de pensão e fundos

mútuos têm uma disponibilidade de cerca de US$ 8 trilhões, enquanto os

europeus dispõem de aproximadamente US$ 6 trilhões,

ao passo que o mercado de câmbio movimenta cerca de US$ l trilhão diário,

valor superior à soma total das reservas cambiais dos bancos centrais de

todo o mundo),massa de capital-dinheiro que cresce mais do que

p. 150

o comércio mundial e os investimentos diretos no exterior (entre 1980 e

1988, o primeiro duplicou, o segundo cresceu três vezes e as transações

financeiras internacionais aumentaram oito vezes e meia). Tudo isso cria

uma teia de conexões e interdependências crescentes entre forças

econômicas privadas transnacionais e estados nacionais (sobretudo através

do serviço da dívida pública e da política monetária a ele associada),

uma teia que, volátil e desterritorializada, não pára de movimentar-se

por toda parte em busca de lucros extraordinários e imediatos, na

simultaneidade decisória possibilitada pelos avanços tecnológicos nas

áreas de comunicações e de processamento de informações (Baumann, 1996;

Chesnais, 1996).

No novo cenário de mercados nacionais interligados em tempo real, os

capitais produtivos, comerciais e financeiros, sob comando destes

últimos, se expandem e se inter-relacionam; ao mesmo tempo, as forças do

mercado (especialmente, no plano internacional, investidores, credores e

as duas maiores instituições financeiras multilaterais, Fundo Monetário

Internacional e Banco Mundial) ampliaram seu papel e sua legitimação na

nova ordem econômica liberal emergente (Gill, 1995; Unrisd, 1995).

Conseqüentemente, incrementaram-se os recursos em circulação nos chamados

"paraísos fiscais" (mercados fora de controle das autoridade monetárias e

fiscais que, com freqüência, servem como fonte de financiamento para as

fusões de empresas) e aumentaram a vulnerabilidade dos sistemas

financeiros nacionais e a margem de risco sistêmico no plano mundial

devido à extrema volatilidade dos capitais especulativos (hot money).

Além disso, juntamente com a importância cada vez maior dos fluxos de

investimento direto externo (com um estoque total, em 1994, de US$ 2

trilhões), estreitamente associados às em-

p. 151

presas transnacionais, acirraram-se as disputas entre países e entre

empresas pelo acesso à liquidez e aos investimentos externos e pelas

alianças, fusões e aquisições empresariais, para fazer frente às

exigências das novas formas de competição internacional.

Todavia, nessa liberalização completa dos movimentos de capitais,

assim como na liberalização do comércio internacional, fatores de

natureza política desempenharam papel fundamental: decisões e medidas de

desregulamentação dos mercados tomadas pelos governos para fazer face à

crise econômica dos anos setenta, primeiro nos Estados Unidos e na Grã-

Bretanha, e mais tarde, nos anos 80, universalizadas sob a égide da

hegemonia neoliberal, permitiram e favoreceram a autonomização do

capital-dinheiro como campo próprio de valorização. A globalização

financeira diz respeito, então, a um processo que conseguiu contornar as

regras e controles instituídos pelos estados centrais, no quadro do

capitalismo "organizado" e do sistema multilateral de regulação da

economia mundial, sob o impulso dos maiores "disfuncionamentos" das

últimas quatro décadas (saída descontrolada de capitais dos Estados

Unidos nos anos sessenta, choque do petróleo nos setenta, endividamento

maciço dos Estados Unidos e crise da dívida externa do Terceiro Mundo nos

oitenta) e da própria vontade política dos estados de autonomizar um

capitalismo financeiro especulativo e parasitário que, paradoxalmente,

fragiliza e desestabiliza a instância do político. Como diz um autor,

"as contradições do sistema monetário e financeiro interestatal

estão, em grande medida, na origem da emergência de uma esfera financeira

privada que,progressivamente,tem despossuído os estados da maior parte de

suas prerrogativas

p. 152

nesses domínios. (...) Desintermediação, desregulamentação e

descompartimentalização (as três "d") dos mercados têm sido, assim, os

motores do processo de globalização financeira nos anos oitenta. Elas

demostram uma retirada em ordem dispersa dos estados diante da potência

da dinâmica de integração financeira lançada nos anos sessenta “(Adda,

1996: 96-102).

Isso não significa, porém, que as relações de rivalidade, dominação

e dependência entre os estados desapareçam. Pelo contrário, a

hierarquização acentuou-se, como o evidencia a gravitação decisiva dos

governos dos países mais ricos - o Grupo dos Sete (G-7) -, e dos Estados

Unidos em particular, na imposição das regras de jogo do comércio e das

finanças internacionais, através do seu poder formal nos organismos

internacionais - Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM),

Organização Mundial de Comércio (OMC) - e informal no seio do que

Chesnais denomina de "oligopólio mundial" (conjunto limitado de governos

e algumas centenas de grandes corporações concentradas na tríade). E fica

mais evidente ainda quando surgem graves dificuldades no "ambiente de

credibilidade" buscado pelos mercados financeiros (isto é, as celebradas

políticas macroeconômicas de "ajuste estrutural" adequadas a suas

expectativas), sobretudo nos países periféricos, enormemente fragilizados

pelo novo contexto e coagidos como estão a implementar sem gradualismos

as reformas econômicas de "modernização via internacionalização" e as

reformas políticas a elas subordinadas (reforma do Estado, reeleição

presidencial, etc.) (Fiori, 1995;Przeworski, 1993;BradfordJr., 1994).

Nessas circunstâncias, as potências do planeta não vacilam em

intervir ostensivamente, e inclusive pagar até altos preços na defesa dos

interesses do capital monetário ameaçado,

p. 153

tal como o ilustrou a crise mexicana de dezembro de 1994: o governo dos

Estados Unidos e as instituições monetárias internacionais adiantaram

nada menos que 52 bilhões de dólares - o maior empréstimo já concedido na

história do capitalismo - para evitar que a bancarrota do estado mexicano

desencadeasse uma crise financeira de alcance mundial. O que demonstra

que as interdependências inerentes à forma atual da globalização

econômica são indissociáveis duma "política da globalização" (Gill, 1995;

Unrisd, 1995) efetiva que, ao expressar relações assimétricas de poder

internacional, termina concentrando no espaço econômico da tríade não só

o desenvolvimento do progresso científico-tecnológico de ponta, dos

formatos organizacionais de competição global, da massa dos recursos

econômico-financeiros e da ideologia legitimadora, mas também as decisões

cruciais do seu ordenamento. Afinal, se ninguém consegue livrar-se

completamente dos seus impactos, a verdade é que estes não afetam

igualitariamente as diferentes regiões e países (e regiões dum mesmo

país), ou as diversas classes e grupos sociais, já que - seletiva e

polarizadora - a regra do jogo vigorante é a de que todos devem competir,

mas só poucos podem ganhar.

As conseqüências negativas que daí decorrem são hoje amplamente

reconhecidas, indo desde o aumento do fenômeno da exclusão social e

espacial (grupos e categorias sociais, zonas, países e até continentes

que, rapidamente, tornam-se irrelevantes porque não conseguem integrar-se

à dinâmica da economia mundial), passando pela brutal concentração da

renda, o achatamento salarial, o desemprego estrutural, a flexibilização

dos direitos sociais e o sentimento generalizado de insegurança no

trabalho, o debilitamento das antigas identidades e formas de

solidariedade de classe, e chegando até o crescimento das correntes

migratórias inter-

p. 154

nacionais, a intensificação da degradação ambiental, o consumismo

desenfreado e o fundamentalismo reativo de afirmação da identidade dos

não-incluídos (Gill, 1995; Unrisd,1995; Anderson, 1994; Luttwak, 1996).

Mas há uma conseqüência política do capitalismo globalizado que

merece ser destacada. Ela diz respeito à convivência cada vez mais

problemática entre a lógica de poder dum sistema político

fundamentalmente territorializado e a dinâmica dum sistema econômico de

desterritorialização e integração global crescentes.Vista desse ângulo -

e como contraponto às considerações expostas no tópico anterior sobre o

Estado -, parece irrefutável que a emergência da globalização marca uma

espécie de "revanche do econômico sobre o social e o político, (...)

tanto pelo questionamento dos compromissos sociais, elaborados pelo

Estado de bem-estar keynesiano, quanto pela lenta erosão da autoridade

econômica dos estados, que ilustra, para além das racionalizações

ideológicas, a grande onda de desregulamentação iniciada no final dos

anos setenta" (Adda, 1996: 112). Noutras palavras, nas novas condições de

internacionalização da produção, do comércio e das finanças (e do

capitalismo "desorganizado" a que elas dão lugar), constata-se a

diminuição efetiva da soberania e da autonomia do Estado na esfera da

política econômica (política fiscal, monetária, cambial, de juro,

salarial, etc.), com desdobramentos inevitáveis no seu papel de agente do

desenvolvimento econômico e de garantidor da coesão e integração social e

nacional. Isso implica que estamos diante duma disjuntiva crescente entre

a idéia de comunidade política capaz de determinar seu próprio futuro e a

dinâmica das relações e forças da economia mundial.

Mas não seria válido tirar daí conclusões simplistas e, no limite,

perigosas do tipo "fim do Estado", ou da indiferenciação

p. 155

de situações nacionais ou da superação da idéia de economia e de projeto

nacionais. Afinal, como já se viu, não apenas os estados continuam sendo

fundamentais para o próprio avanço da globalização econômica, mas também

persistem diferenças notáveis nas situações econômicas nacionais e

internacionais dos países; do mesmo modo, os governos não perderam

completamente sua capacidade de optar em matéria de política econômica e

de definir as prioridades dos projetos de sociedade que orientam sua ação

(Baumann,1996). Há até mesmo autores que sustentam que os estados-nação

mais poderosos ainda têm condições de implantar mecanismos de regulação

internacional, regional e nacional, capazes de assegurar a governança da

economia mundial (Hirst -Thompson, 1996).

5. A globalização da cultura

Todos os esforços de conceituação da globalização em termos de

ampliação ou extensão das atividades econômicas, políticas e sociais

através do mundo, de intensificação de interações em cada um desses

âmbitos, e até mesmo da própria percepção da existência de questões que

são por definição globais, têm ressaltado a centralidade das

transformações operadas pelos meios de comunicação nas últimas décadas e

seus impactos globalizantes, especialmente sobre as culturas e

identidades nacionais atreladas à construção e consolidação dos estados-

nação. Noutras palavras, de identidades que, como já se disse, foram o

resultado histórico de uma luta dupla: por um lado, a luta das elites

políticas e dos governos no sentido de criar e impor novas identidades

que legitimassem o Estado enquanto tal; e, por outro, a luta dos membros

das novas comunidades políticas pelo reconhecimento não apenas de

obrigações, mas também de direitos de cidadania.

p. 156

O que se observa, de fato, é o hiato crescente entre a permanente

pretensão dos estados de criar uma cultura e identidade nacional coerente

e os sinais de erosão provocados por um processo de globalização cultural

que escapa, em grande medida, ao controle dos estados e de qualquer tipo

de regulação política direta (Held, 1995a). No coração dessa disjuntiva

encontram-se os novos sistemas de comunicação (que se tornaram possíveis

graças à revolução na microeletrônica, nas tecnologias de informação e

nos computadores, e em estreita combinação com os avanços tecnológicos em

matéria de televisão, cabo e satélite), sistemas que estabelecem redes de

interconexões regionais e globais, constantes e simultâneas, sem as

barreiras da distância. Até mesmo, como o ilustra a Internet - realidade

e símbolo maior da emergente "sociedade ligada em rede"-, sistemas que

não têm ninguém no comando e que permitem a cada um dos conectados fazer

o que quiser. Veículos por excelência de todos os desenvolvimentos de

globalização (econômico, legal, militar, organizacional), esses sistemas

dão lugar a uma acirrada polêmica acerca de suas implicações e

conseqüências, num leque de posições, que vai desde a dos mandarins da

tecnologia de telecomunicações, que exaltam suas potencialidades no mundo

dos negócios e da liberdade individual, até aquelas que vislumbram a

possibilidade de revitalização da vida cívica, dos valores cosmopolitas,

bem como a extensão da deliberação e participação democráticas, passando

pelas posições mais pessimistas, que denunciam a tendência à

ocidentalização do mundo e ao tribalismo reativo, à vigilância e à

manipulação sem precedentes do acesso às informações, à ampliação do

fosso entre pobres e ricos, entre incluídos e excluídos, e ao perigo da

emergência dum totalitarismo global (Virilio, 1996; Lévy, 1993; Barber,

1995; Gates, 1995).

p. 157

De qualquer modo, as novas redes de comunicação, as tecnologias de

informações e a cultura de massa global (televisão, vídeo e filmes), ao

comprimirem a relação espaço-tempo e romperem o tradicional vínculo entre

local físico e situação social, sublinhado por diversos autores

(Robertson, 1992; Giddens, 1991 e 1996), criam novas experiências e

padrões de significação sobre eventos ocorridos em lugares distantes,

independentemente de contatos diretos entre indivíduos, grupos e povos,

podendo produzir uma pluralidade de impactos sobre a formação de

identidade. A adesão ao universalismo de mercado, proposto pela retórica

neoliberal dominante, serve de exemplo. Mas também é exemplo o

cosmopolitismo normativo de grupos e movimentos transnacionais de clara

orientação política global (Anistia Internacional ou Greenpeace), que

surgem da tomada de consciência dos desenvolvimentos que ultrapassam as

fronteiras nacionais e do sentido de pertencimento e vulnerabilidade que

transcende as lealdades com o Estado-Nação (Held, 1995a).

Já foi dito, porém, que isso não significa afirmar a existência duma

cultura global homogênea, mas sim duma situação de hibridização cultural

que afeta tanto o Primeiro Mundo (os efeitos das correntes migratórias

provenientes do sul) como o Terceiro Mundo (Featherstone, 1996), sem

desconhecer, evidentemente, nem a brutal desigualdade de poder nos fluxos

culturais e de comunicação entre grupos, regiões e países, nem os

impactos diferenciados conforme o que se transmite e quem o recebe. As

diferenças culturais não desaparecem; pelo contrário, o conhecimento e a

aproximação de povos e nações distintas gera uma maior consciência da

diferença nos estilos de vida e nas orientações valorativas, que pode

tanto expandir o horizonte de compreensão da própria sociedade e cultura

quanto fechar-se para reforçar identidades-

p. 158

étnicas, nacionais ou políticas sectárias que se sentem ameaçadas. Dado

que as novas redes de comunicação e tecnologias de informação estimulam

novas formas de identidade cultural e, ao mesmo tempo, reativam e

intensificam formas antigas (étnicas, religiosas, locais, regionais),

parece improvável que a identidade nacional permaneça inalterada e que

não se desencadeie um complexo processo de redefinições das identidades

políticas em diferentes níveis. Afinal, o incremento constante do fluxo

de idéias, imagens e práticas - através de fronteiras territoriais cada

vez mais porosas - não deixa de ser um claro indicador do debilitamento,

"por cima" e "por baixo", da hegemonia cultural do Estado-Nação.

6. Internacionalização das decisões e mundialização da política

Além das condições e implicações políticas decorrentes dos processos

de globalização econômica e cultural acima referidos, é preciso salientar

uma disjuntiva de natureza eminentemente política entre a idéia de

soberania do Estado, que ainda sustenta a dominância do paradigma

territorializado da política, e o desenvolvimento acelerado, depois da

Segunda Guerra Mundial, de padrões de internacionalização do processo

decisório e de mundialização das atividades políticas. Tais padrões

apontam, em primeiro lugar, para a densa rede de organizações

internacionais e de regimes internacionais (entenda-se por regime o

conjunto de princípios, regras e procedimentos decisórios acordado entre

diversos atores com relação a uma área ou questão específica — v.

Rittberger,1995), que se multiplicaram em função duma rápida expansão das

ligações transnacionais, da crescente interpenetração dos assuntos de

política internacional e doméstica em cada país e da necessidade, por

parte da maioria dos estados, de

p. 159

estabelecer alguma forma de governança internacional para o tratamento de

problemas de política coletiva (Held, 1995a; McGrew, 1992; Rosenau -

Czempiel, 1992). Como conseqüência disso, emergiram novas formas de

política multilateral e transnacional, com diferentes estruturas

decisórias envolvendo governos, organizações intergovernamentais e uma

vasta gama de grupos de pressão transnacional e organizações não-

governamentais. Da Eco 1992, reunida no Rio de Janeiro, além de cerca de

120 delegações oficiais, participaram centenas de associações e grupos

ambientalistas, nacionais e transnacionais; por outro lado, o número de

organizações intergovernamentais e não-governamentais, que era

respectivamente de 37 e 176 em 1909, passou para 300 e 4624, também

respectivamente, em 1989 - Held, 1995a).

Nesse universo heterogêneo de formas associativas, destacam-se

aquelas organizações e agências que, pela centralidade das questões

estratégico-militares e econômicas abordadas, revelam uma clara estrutura

e exercício assimétrico de poder sobre o controle das regras, recursos e

políticas de alcance global (basta lembrar o direito de veto das cinco

potências com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, ou as

conhecidas condicionalidades impostas aos países da periferia em favor do

"ajuste estrutural" pelo FMI e o BM), bem como aquelas instâncias

informais de coordenação que exercem enorme influência (o caso do G-7,

uma coalizão dominante dos países mais ricos, que funciona como um

verdadeiro "diretório global" em relação à economia mundial).

Também devem ser lembradas aqui as experiências de integração

regional que, com renovado impulso, difundiram-se em distintas partes do

mundo na última década. É que a globalização da economia - com seus

atores dominantes e seus sistemas (financeiro, produtivo e comercial) não

dirigi-

p. 160

dos pelos interesses, territórios e normas nacionais - constrangeu e

estimulou os estados-nação a criar ou reforçar um nível de regulação

regional, diante duma dupla constatação: a do debilitamento dos

instrumentos tradicionais de regulação nacional da economia e a das

pressões para se adaptarem às expectativas dos atores e sistemas

transnacionais através de reformas econômicas orientadas ao mercado. com

os novos instrumentos e modos de legitimação surgidos dessa forma de

interação cooperativa, pretende-se - apesar das ambigüidades e dos

obstáculos - que um mínimo de governança regional complemente aquela

nacional, através de processos de tomada de decisão articulada entre os

estados-membro, mediante arranjos institucionais exclusivamente

intergovernamentais (por exemplo, os casos do Nafta e do Mercosul) ou

combinados com importantes aspectos supranacionais (a União Européia, o

caso mais antigo e paradigmático de integração econômica e política)

(Schrim, 1996; Hurrell, 1995; Gómez, 1996b). De qualquer modo, isso

implica que a soberania e autonomia dos estados se vêem afetadas, cada

vez mais, pelos severos condicionamentos, pressões e limitações

provenientes tanto da estrutura de poder do sistema internacional quanto

das atividades das agências e organizações internacionais, regionais e

globais.

Outro fator que tem desempenhado um papel fundamental no processo de

internacionalização e mundialização crescentes da política é o direito

internacional. com efeito, nos últimos cinqüenta anos o direito

internacional tem submetido indivíduos, governos e organizações não-

governamentais a novos sistemas de regulação legal, que implicam o

reconhecimento de "poderes e limitações, direitos e deveres que

transcendem o Estado-Nação, e que, mesmo não sendo garantidos por

instituições dotadas de poder coercitivo, têm

p. 161

conseqüências de grande alcance" (Held, 1995a: 101). O que tais mudanças

de sujeito de direitos, de fontes e de conteúdo deixam em evidência é a

erosão da concepção originária do direito internacional, abordada mais

acima, enquanto direito exclusivo dos estados e suporte da soberania

nacional (já que o propósito das regras jurídicas era proteger a

autonomia dos governos em relação à política externa e impedir que os

tribunais de cada país decidissem sobre a conduta de estados

estrangeiros). O impacto dessas alterações é percebido corn clareza em

três temáticas que são, hoje, globais: direitos humanos, democracia

política e meio ambiente.

Com relação aos direitos humanos deve-se partir do marco de

referência fundamental, que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos

das Nações Unidas (1948). Esta declaração deflagrou, na comunidade

internacional do pós-guerra, uma vastíssima produção de instrumentos

jurídicos, de alcance global (pactos, declarações

convenções,conferências) e regional (Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das

Liberdades Fundamentais, Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos),

destinados tanto a atualizar o conteúdo dos direitos humanos reconhecidos

quanto a fornecer mecanismos de promoção, controle e garantia no plano

internacional (Cançado Trindade, 1991). De fato, a Declaração Universal

representa o ponto de inflexão na exclusão dos indivíduos como sujeitos

dum conjunto de direitos e obrigações que estariam acima daqueles

instituídos pelos sistemas nacionais de autoridade e justiça. O Tribunal

Internacional de Nuremberg também desempenhou um papel importante nesse

sentido, já que, pela primeira vez na história, estabeleceu-se o

princípio de que os indivíduos devem transgredir as leis dos estados

(exceto diante da impossibilidade

p. 162

de escolha normal) quando estas últimas entram em conflito com as normas

internacionais protetoras de valores humanitários básicos; ou seja,

procedeu-se à subversão da soberania nacional, desde o momento em que se

rejeitou o princípio da obediência devida a ordens superiores, inerente à

hierarquia e disciplina militar, em crimes contra a paz e a humanidade

(Held, 1991a).

Cabe destacar também, no âmbito regional de proteção internacional

dos direitos humanos, a radical inovação legal introduzida pela Convenção

Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades

Fundamentais de 1950 ao admitir o princípio de que os cidadãos

individuais podem iniciar processos contra seus próprios governos perante

a Comissão Européia dos Direitos do Homem. De todo modo a Declaração

Universal inaugurou, segundo Bobbio (1992) a terceira e última fase da

história moderna dos direitos humanos (a primeira resulta da obra dos

filósofos jusnaturalistas; a segunda, da obra do legislador, enquanto

direitos do cidadão que só valem no interior de cada Estado que os

reconhece). Nesta fase,

"a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo universal e

positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios

nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado,

mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um

processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não , mais apenas

proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente

protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No

final deste processo, os direitos do cidadão terão se transformado,

realmente, positivamente, em direitos do homem. Ou pelo menos,

p. 163

os direitos do cidadão daquela cidade que não têm fronteiras, porque

compreende toda a humanidade; ou, em outras palavras, serão os direitos

do homem enquanto direitos do cidadão do mundo" (Bobbio, 1992:30).

É preciso salientar que um passo importante nessa direção foi dado

pela Conferência de Viena, realizada em junho de 1993. Reunindo

delegações de 171 estados e 813 organizações não-governamentais

acreditadas como observadoras - além das 2000 mobilizadas no Fórum

Paralelo das ONGs -, ela consagrou os direitos humanos como um tema

global, fundamental para a governabilidade do sistema mundial, e

reafirmou, por consenso, sua universalidade,indivisibilidade,

interdependência e inter-relacionamento dos distintos componentes e

dimensões (Pinheiro, 1994; Lindgren Alves, 1994). Assim, afastou a

objeção de que essa temática pertenceria com exclusividade ao âmbito da

soberania dos estados e, portanto, de que poderia ser excluída a

preocupação internacional com a sua promoção e proteção invocando o

princípio da não-ingerência nos assuntos internos dos estados. Não

obstante os significativos avanços assinalados, sabe-se, porém, que a

situação dos direitos humanos no mundo hoje é mais do que dramática, como

o revelam os relatórios anuais da Anistia Internacional, que evidenciam

quanto ainda falta para alcançar as condições mínimas de realização duma

tutela internacional efetiva, capaz de superar as dificuldades de toda

índole (políticas, procedimentais e substantivas) que impedem que a

jurisdição internacional se imponha às jurisdições nacionais e se opere a

passagem definitiva "da garantia dentro do Estado - que é ainda a

característica predominante da atual fase - para a garantia contra o

Estado" (Bobbio, 1992: 41).

No que diz respeito ao regime democrático de governo, observa-se que

a tendência do direito internacional contemporâneo

p. 164

é a de rejeitar uma secular indiferença à natureza Q à forma do poder

político (ou seja, a afirmação do princípio de legitimação do Estado

enquanto tal) e, em contrapartida, a de sustentar, mediante instrumentos

legais, que a única forma de governo legítima é a do Estado democrático.

Embora necessariamente ambígua no período da Guerra Fria, por causa da

confrontação ideológica leste-oeste e da impossibilidade de chegar a

fórmulas consensuais no seio das organizações internacionais relevantes

(a não ser na Convenção Européia sobre Direitos Humanos, que já

estabelecia a conexão explícita entre democracia política e Estado

legítimo, e na atual União Européia, cujos formatos anteriores, desde o

início, exigiram a democracia como condição do Estado-membro), tal

tendência tornou-se nítida no final dos anos oitenta e começo dos

noventa.

Com efeito, as novas circunstâncias mundiais abertas pelo fim da

Guerra Fria e a queda do "socialismo real" provocaram mudanças políticas

domésticas imediatas, que se traduziram num incremento inédito do número

de estados democrático-liberais. Culminava, assim, o que Huntington

(1991) denominara de "terceira onda" da democratização, que se iniciou em

meados da década dos setenta com o colapso das ditaduras da Espanha, de

Portugal e da Grécia, e prosseguiu nos anos oitenta com as "transições"

latino-americanas, até alcançar, no início desta década, o Leste Europeu,

o continente africano e a Ásia, algumas vezes como restauração de regime,

outras como regime novo (Held, 1993). Explica-se então por que, nesse

contexto, sucederam-se resoluções e iniciativas multilaterais sem

precedentes, nos planos global e regional, tendentes a proteger os

regimes democráticos dos estados-membro. Por exemplo, no âmbito da ONU, a

resolução sobre eleições livres e a criação de agências

p. 165

e fundos financeiros destinados à observação de eleições e à assistência

técnica; da Conferência sobre Seguridade e Cooperação na Europa, os

documentos de Copenhague e Moscou, a Carta de Paris e a criação da

Comissão de Instituições Democráticas e Direitos Humanos; da OEA, o

compromisso de Santiago e o estabelecimento da Unidade para a Promoção da

Democracia; e, mais perto ainda, no âmbito do Mercosul, em decorrência da

recente tentativa fracassada de golpe de estado no Paraguai, a

incorporação no Tratado de Assunção da cláusula de salvaguarda da

democracia política (Journal of Democracy, 1993; Gómez, 1995 b e 1996 b).

Desse modo, a exigência das credenciais democráticas dos estados,

juntamente com a indissociável exigência do respeito aos direitos humanos

(a Declaração de Viena de 1993 foi o primeiro documento da ONU que afirma

explicitamente a democracia como a forma de governo que mais favorece o

respeito aos direitos humanos), além de expressar a emergência dum

consenso valorativo internacional, demonstra o hiato aberto pelo atual

desenvolvimento do direito internacional sobre o poder político legítimo

e o princípio e a prática da não-interferência nos assuntos internos dos

estados imanentes à noção de soberania nacional.

É claro que esses avanços em direção a uma espécie de "direito a

governar-se democraticamente" (dimensão, como diria o ex-secretário-geral

da ONU, B. Boutros Ghali, duma espécie de "soberania universal") são

ainda muito embrionários e frágeis, e não tem um efetivo alcance

universal. Como se sabe, além de existirem numerosos governos de natureza

abertamente antidemocrática ou que são democráticos apenas de fachada,

pode-se também registrar que a maioria das chamadas "novas" democracias

(para não falar dos inquietantes signos de desvitalização e

oligarquização política das

p. 166

"velhas" - v. Zolo, 1994) - por razões institucionais, econômicas,

sociais e culturais - ainda não se consolidaram e não há garantia de que

isso aconteça num futuro próximo (O'Donnell, 1996; Przeworski, 1994). Por

outro lado, a súbita extensão de regimes democrático-liberais em diversas

partes do mundo tem produzido efeitos paradoxais, já que, se em certos

países ela permitiu a participação eleitoral e a emergência de novas e

múltiplas associações voluntárias que ampliam e aprofundam a cidadania,

em outros detonou graves contradições internas de estados-nação, dando

lugar a conflitos étnicos,divisões territoriais e guerras civis

(Unrisd,1995). Além disso, o aumento do número de estados democráticos

não foi acompanhado por uma maior democratização nas relações entre os

estados (a concentração de poder nos processos decisórios de instituições

internacionais de peso, tais como o Conselho de Segurança da ONU e o

Fundo Monetário Internacional, permaneceu intocável depois da queda do

Muro de Berlim), revelando assim um dos limites mais sérios - e, sem

dúvida, o desafio maior - da legitimidade normativa alcançada pela idéia

da democracia neste final de século (Held, 1995a e 1995b).

Por último, com relação ao meio ambiente, o direito internacional

ultimamente tem questionado os clássicos princípios da soberania estatal

sobre a apropriação de território e recursos naturais. O novo conceito de

"herança comum da humanidade", proposto e discutido desde a década de

sessenta com o objetivo de regular o impacto das inovações tecnológicas

na exploração de recursos além das jurisdições nacionais (como os mares,

a lua e os outros planetas), apontou no sentido do desenvolvimento dos

vastos domínios ainda inexplorados em benefício de todas as nações e

povos do planeta (com exclusão do direito de apropriação e a obrigação de

explorar os recursos no interesse da humanidade, com

p. 167

objetivos apenas pacíficos e de proteção ambiental - Held, 1995 a). Ao

abrir a possibilidade de ordenamento legal internacional baseado na

eqüidade e na cooperação, esse conceito foi logo introduzido nos debates

sobre os indícios crescentes de deterioração ecológica e sobre a

necessidade de criar um sistema de governança internacional do meio

ambiente, que gerencie controvérsias e proteja os bens globais comuns,

para chegar, assim, a um desenvolvimento sustentável global (Comissão

sobre Governança Global, 1996). Daí a presença de elementos dessa nova

concepção na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e na

Agenda 21, adotadas na Conferência do Rio de Janeiro ou Eco-92, cujo

objetivo primordial é criar "uma nova e eqüitativa parceria global

através de novos níveis de cooperação entre os estados, setores-chave das

sociedades e povos", mas cuja implementação tem revelado fortes tensões -

e, conseqüentemente, escassos progressos - entre os reconhecidos direitos

soberanos dos estados e as prerrogativas da nova parceria global.

Direitos humanos, democracia e meio ambiente são, assim, três questões

globais que, entre tantas outras incorporadas à atual agenda de

discussões nos fóruns internacionais (risco sistêmico financeiro,

segurança coletiva, migrações, terrorismo, doenças, drogas,

desenvolvimento, pobreza e exclusão, etc.), só poderão ser resolvidas

mediante a intervenção de instâncias de responsabilidade e de regulação

global. Elas ilustram, portanto, não apenas as novas direções abertas

pelo direito internacional, mas também as bases normativo-valorativas

universalistas de constituição de identidades de atores não estatais e

não orientados pelo mercado (movimentos sociais, organizações não-

governamentais, etc.), que expressam uma emergente sociedade civil

internacional e uma política global "por baixo" (em contraposição à

política global "pelo alto", que prevalece na atualidade - Falk, 1995 a).

p. 168

Finalmente, cabe fazer uma breve menção da disjuntiva entre a

pretensão de todo Estado de agir como ator autônomo em assuntos

estratégico-militares e o debilitamento da autoridade e integridade dos

mesmos em razão de sua inevitável inserção num sistema global

extremamente hierarquizado, com dominância das grandes potências e das

alianças ou blocos de poder (Held, 1995a). Embora esse fenômeno não seja

novo, o século XX se caracteriza por ter sido o cenário de duas guerras

mundiais e da invenção, utilização e difusão de armas nucleares e de

outros meios de destruição de massa (armas químicas ou biológicas), cujas

conseqüências devastadoras não fazem a distinção entre "amigos" e

"inimigos", gerando instabilidade e insegurança para todos. Depois da

Segunda Guerra Mundial, com o início do período da Guerra Fria, a lógica

da bipolaridade levou as duas superpotências os Estados Unidos e a União

Soviética, com suas correspondentes alianças (principalmente a Otan e o

Pacto de Varsóvia) - a limitarem a capacidade de iniciativa e decisão de

numerosos estados (definição de interesses estratégicos, escolha de

tecnologia militar, etc.), impondo constrangimentos à política externa e

de defesa, e até participando de intervenções militares diretas ou

indiretas, especialmente nos países do Terceiro Mundo.

No atual período pós-Guerra Fria, os condicionamentos e limitações

da política de segurança dos estados certamente não desapareceram

(inclusive a própria ameaça de utilização de armas nucleares recebeu um

duro golpe, mas não foi eliminada), mas apenas se reconfiguraram em

função do colapso da União Soviética e dum maior grau de multipolaridade

do sistema global. No cenário europeu, por exemplo, a Otan continua a

operar como estrutura de comando integrado supranacional, sob hegemonia

americana, e assume novas iniciativas (sobretudo em relação ao Leste

Europeu e aos países da ex-União Soviética), enquanto surgem novas

estruturas

p. 169

de segurança coletiva (CSCE, Western European Union), com novas

responsabilidades e mecanismos de consulta e coordenação multilateral,

num contexto de renovada desestabilização e conflitos não só na própria

Europa (decorrentes da desintegração da ex-União Soviética e da antiga

Iugoslávia), mas em outras partes do mundo.

7) Para uma política de mundialização "por baixo" e de cidadania global

O mapeamento até aqui feito dos processos de globalização

e,necessariamente, de fragmentação) procurou demonstrar que o alargamento

das relações sociais no espaço e no tempo através das dimensões

econômica, política, militar, legal e cultural, bem como sua

intensificação em cada uma delas, criaram novos problemas e desafios ao

Estado-Nação e ao sistema interestatal. Há fortes evidências de que o

complexo-padrão de interconexões e forças internacionais e transnacionais

nesses âmbitos tem erodido a arquitetura do poder político associado ao

Estado moderno soberano e ampliado o sentido e o alcance da política para

além duma atividade exclusivamente centrada em torno dessa figura e das

relações interestatais. De fato, tais interconexões e forças

- regionais e globais - atravessam com surpreendente facilidade e

velocidade as fronteiras nacionais, tornando cada vez mais inapropriada a

tradicional distinção entre política doméstica e internacional (Walker,

1993); afetam a natureza e o alcance da capacidade reguladora do Estado,

com drásticas reduções em esferas cruciais; vinculam de tal maneira

decisões políticas e resultados entre os estados e seus cidadãos, que os

próprios sistemas políticos nacionais se alteram; e provocam até mesmo a

redefinição das identidades e culturas políticas, dando lugar a grupos e

movimentos locais,

p. 170

regionais e globais, que questionam o Estado-Nação como sistema de poder

representativo e responsável (Held, 1995a). Em suma, diante dos processos

interligados de globalização e fragmentação em curso, a autonomia e a

soberania do poder territorializado do Estado se vêem submetidas, por

cima e por baixo, a sérias erosões e restrições.

Para algumas interpretações, freqüentes na literatura sobre relações

internacionais e onipresentes na retórica dominante da globalização, essa

rápida expansão de vínculos, pressões e atores intergovernamentais e

transnacionais sinalizam o declínio ou a crise irreversível da forma do

Estado-Nação, quando não o seu fim. Mas as mesmas interpretações que

anunciam a crise ou o fim do Estado terminam reconhecendo que, exceto nos

casos extremos de desintegração, os aparatos estatais conservam - e às

vezes adquirem poderosos instrumentos e capacidades para dar forma à

política doméstica e internacional (entre os quais, o nada desprezível

monopólio dos meios de violência) (Dunn, 1995), sem ignorar o fato de que

os impactos da globalização variam segundo as diferentes condições dos

países (nem todos estão igualmente integrados à economia mundial, ou se

inserem de maneira idêntica nas maiores organizações internacionais, nos

sistemas legais internacionais ou nos blocos de poder).

Na realidade, do mesmo modo como os processos de globalização em

curso não estão conduzindo na direção duma sociedade global regulada

(pelo contrário, o que estaria em gestação no mundo, na visão de alguns

autores, é uma espécie de "novo medievalismo", com autoridades e centros

de poder superpostos e lealdades entrecruzadas) (Buli, 1977), eles

tampouco implicam que os estados nacionais e o sistema interestatal

estejam eclipsados ou superados. Como já se disse, embora cresça a

importância e o papel das organizações

p. 171

internacionais regionais e globais, corporações transnacionais,

movimentos subnacionais, movimentos sociais e organizações não-

governamentais, o Estado e o sistema de estados permanecem no coração da

política mundial e no centro dos debates sobre a natureza, alcance e

orientação - dominante ou alternativa - das mudanças, de todos os tipos,

que operam hoje em escala planetária. Ademais, o nível nacional da

política continua a ser o centro insubstituível da legitimidade coletiva

e dos projetos de sociedade de cada país, não podendo ficar esvaziado

pelos níveis local, regional e global.

Entretanto, isso não significa que a noção de Estado - e as noções

de comunidade política, poder soberano, cidadania e política propriamente

dita a ela atreladas - permaneça fixa e não problematizada através do

tempo. Afinal, se os chamados fenômenos da globalização afetam os modos

de conceber e de fazer política, eles também obrigam a reexaminar vários

conceitos fundamentais do pensamento político contemporâneo (Held, 1991b;

Linklater-MacMillan, 1995). Num contexto em que a forma e o vetor

econômico dominante da globalização (o capitalismo financeiro) se

caracterizam pela desterritorialização e desregulamentação, a pergunta

que se impõe é se ainda é possível pensar e agir sob o paradigma

exclusivamente territorializado da política.

Para os que discordam do difundido diagnóstico pseudo-realista do

curso único e irreversível da globalização atual ("'fora dela não há

salvação e, dentro, não há alternativa") e que se negam a aceitar os

escandalosos custos sociais, políticos, espaciais e culturais duma

adaptação passiva ao capitalismo sem fronteiras e sem regulação, a

mundialização da política resulta tão necessária e urgente quanto

possível. Esse tipo de globalização "pelo alto", de poder extremamente

concentrado e de benefícios restritos a uma pequena

p. 172

fração de habitantes do planeta e de pobreza, desigualdade e desempregos

crescentes, podem conduzir a direções e conseqüências imprevisíveis, que

vão desde a disseminação ampliada da violência e da anomia até formas

perversas de solidariedade, como as máfias, grupos religiosos

fundamentalistas ou movimentos sociais e políticos baseados na

discriminação e na intolerância (inclusive o ressurgimento do fascismo).

Mas, ao mesmo tempo, e não obstante a impotência e inadequação

demonstradas pelas atuais instituições internacionais no sentido de

resolver as complexas questões que a humanidade cria e tem de enfrentar

(éticas, sociais, políticas, econômicas, tecnológicas, etc.), os últimos

cinqüenta anos também testemunharam desenvolvimentos e oportunidades

inéditos de cooperação internacional. Envolvendo organizações

intergovernamentais, ONGs transnacionais, redes de associações e grupos

diversos da emergente sociedade civil global, tais desenvolvimentos deram

uma significação e alcance novos à noção de comunidade global (promoção e

proteção dos direitos humanos, proteção ambiental, assistência

humanitária, acordos sobre crime, droga e doenças, desenvolvimento

econômico e social, etc.).

Por essas razões, somente uma política de mundialização "por baixo"

- orientada por um novo internacionalismo de solidariedade e de cidadania

ampliada, para além das fronteiras nacionais - pode aglutinar forças e

pressionar governos na luta pela realização dos conteúdos normativos

universalistas já consagrados e pelas reformas ou pela implantação de

instituições indispensáveis de governança regional e global, no sentido

dum relacionamento mais democrático e responsável entre os estados

e de maior integração dos cidadãos individuais e de associações cívicas

(Held, 1995 a e 1995 b). Pensar e agir nessa perspectiva - duma política

"multiterritorial" e democrática, através de práticas de deliberação,

participação e

p. 173

representação que articulem os "mundos de vida" local, nacional, regional

e global - é certamente uma tarefa complexa, repleta de dificuldades e de

resultados incertos. A possibilidade duma tal política, porém, foi aberta

pelas próprias contradições e dilemas dos processos de globalização,

ainda mais num momento em que a hegemonia neoliberal parece perder o

fôlego e em que se multiplicam as resistências sociais e as dissidências

intelectuais, tanto no norte quanto no sul, contra o que I. Ramonet

(1997) denomina de "regimes globalitários" de mercado sem regulação, isto

é, de abdicação da política diante da lógica econômica da mundialização

do capital.

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José Maria Gómez é professor na Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro e na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O presente capítulo foi publicado na revista Praia Vermelha, l,

1997.

p. 179

6 Pierre Salama

Novas formas da pobreza da América Latina

Parece que o crescimento é, a priori, o remédio miraculoso à pobreza, por

duas razões: aumenta o emprego e cresce a produtividade e com ela os

salários (Edwards, 1995). Quando a distribuição da renda é estável, o

conjunto da renda aumenta no mesmo ritmo e, dessa forma, o crescimento

diminui o peso da pobreza num determinado prazo. Sua eficácia depende a

priori de dois parâmetros: da amplitude do crescimento e seu caráter

durável, dum lado, e, doutro lado, da importância da pobreza, do

afastamento da renda média dos pobres da linha de pobreza e da

distribuição da pobreza entre os pobres. Essa evolução pode ser

contrariada ou amplificada por dois fatores suplementares: o crescimento

não implica espontaneamente um crescimento homotético do conjunto da

renda, e uma política redistributiva da renda pode ser estabelecida.

A redução sensível e rápida dos indicadores que medem a amplitude e

a profundidade da pobreza, nos países asiáticos, parece confirmar o

importante papel que um crescimento conseqüente-e durável pode

desempenhar sobre a pobreza. De fato, o crescimento é bem elevado há duas

ou três décadas na maioria desses países, a desigualdade de renda é

moderada, a dispersão da renda dos pobres não é muito importante e a

pobreza diminuiu fortemente. Essa rápida evolução serve de lição para a

maioria dos países latino-americanos, permitindo-lhes definir políticas

econômicas capazes de fazê-los

p. 180

reatar com um crescimento elevado e durável e erradicar uma pobreza em

massa,profunda e heterogênea.

Testes econométricos, feitos principalmente pelas instituições

internacionais 1 e recentes fiscalizações parecem atribuir um importante

papel à distribuição da renda para explicar o crescimento. Quanto menos

importantes as desigualdades de renda - medidas pela relação entre os

dois primeiros (ou os quatro primeiros) decis e os dois últimos - mais

vivo e durável é o crescimento, e inversamente (Birdsall et alii. In:

Turnham et alii, 995) 2.

Fracas desigualdades de renda constituiriam, portanto, um

fator positivo para o crescimento, e este agiria a,,,,, prazo sobre a

diminuição da pobreza, primeiro de maneira fraca, se os pobres estivessem

distantes da linha de pobreza; e depois maciçamente, se as desigualdades

entre os pobres fossem fracas. Inversamente, as desigualdades elevadas

não favoreciam o crescimento, e o círculo vicioso traçado funcionar.

Nessas condições, em países onde as desigualdesde renda são

particularmente importantes; como é o caso da maioria das economias

latino-americanas? Será que é necessário redistribuir a renda em

p. 181

favor das camadas mais pobres ou antes "esperar" que o crescimento opere

em favor dos menos favorecidos 3, beneficiando, através de medidas de

liberalização, seu desenvolvimento?

Insistir no grau de desigualdade de renda e na não-liberalização da

economia poderiam fornecer uma "explicação" do crescimento mais moderado

na América Latina do que nos países asiáticos (Psacharopoulos et alii,

1992) 4 e definir uma política econômica suscetível de agir sobre a

pobreza, sua amplitude e sua profundidade, graças à liberalização do

mercado. Ao contrário, diminuir a pobreza e as desigualdades e recuperar

o crescimento poderiam resultar de uma intervenção do Estado, mais

conseqüente e menos burocrática, lançando mão ao mesmo tempo duma

política redistributiva da renda e duma política industrial, à semelhança

daquela observada em vários países asiáticos. Entretanto, é forçoso

constatar que as recomendações dominantes, feitas pelas instituições

internacionais, insistem em geral no papel regulador do mercado e nos

aspectos nocivos da intervenção do Estado quando ela ultrapassa os campos

restritos definidos pelo enfoque liberal; nenhuma intervenção na alocação

dos recursos, no investimento produtivo, uma política redistributiva

p.182

pelos princípios rawlsianos de eqüidade e de justiça 5, uma intervenção

do Estado limitada a alguns setores não mercantis: a saúde (insistindo na

prioridade do financiamento de políticas preventivas), a educação

(privilegiando o ensino primário), a infra-estrutura (transporte, mas

também energia, esgotos, etc.). Esse tipo de intervenção, limitado à

produção de externalidades para as empresas, ou prevenindo aquelas

negativas, produzidas pelo mercado, seria - e é de natureza diminuir - o

indicador de pobreza humana estabelecido pelo Pnud. Seus efeitos são

importantes no melhoramento do nível de vida das camadas mais pobres e

mais modestas 6, mas é muito limitado.

p. 183

Os estudos que preconizam reformas estruturais visando a

liberalizar fortemente a economia e a recentrar a intervenção do Estado

sobre setores não mercantis, sem proceder a uma redistribuição prévia de

renda, pecam muitas vezes por seu simplismo. As fracas desigualdades e o

forte crescimento constituem efetivamente remédios à pobreza. Mas o

crescimento durável não é "naturalmente" o produto duma liberalização

forte e repentina da economia. Acrescentar a este truísmo observações que

mostram a persistência da pobreza quando não poucos estados,

especialmente entre os países menos avançados, conhecem um inchaço

burocrático, um impulso da corrupção e uma inegável ineficiência, depois

ligar mecanicamente esses aspectos à intervenção excessiva do Estado, sem

buscar analisar esses fenômenos em sua relação com a construção dum

Estado num contexto em que as relações de produção capitalistas não são

dominantes, é no mínimo simplista. Notar que muitos governos consagram

uma parte importante de seus recursos para financiar os déficits

consideráveis das empresas públicas, sem interrogar-se sobre o fato de

saber se eles puderam ser eficazes no passado, se elas puderam produzir

externalidades positivas às empresas privadas, e se seus déficits atuais

não provêm para muitos de transtornos da conjuntura macroeconômica - em

conseqüência de drásticas políticas de ajustamento estabeleci das nos

anos oitenta - para deduzir que a intervenção do Estado não poderia ser

eficaz (por natureza?) no econômico, faz parte duma ignorância das

relações entre o Estado e o mercado e dum enfoque exclusivamente

ideológico dessas relações.

Esse enfoque liberal força, aliás muitas vezes, os fatos, e foi

necessária a controvérsia sobre o papel do Estado na Coréia

p. 184

do Sul 7 para que o Banco Mundial se dignasse reconhecer que aquele pôde

ter sido eficaz, para acrescentar quase imediatamente que a atividade

econômica teria sido mais sustentável(?) e que os recursos produtivos

teriam sido melhor alocados se o Estado tivesse se limitado ao domínio da

saúde, da educação e das infra-estruturas. E será necessário esperar o

relatório do Banco Mundial de 1997 para reconhecer um papel mais positivo

à intervenção do Estado do que aquele até então reconhecido, com uma

precisão que vincula, entretanto, essa intervenção e sua eficácia à

existência de "certas condições sócio-históricas", o que é uma banalidade

aparentemente, mas que pode também significar que este ou aquele país,

não conhecendo sequer as condições específicas que tomaram eficaz a

intervenção do Estado na Coréia ou no Japão, deveria abster-se de usá-la

para sair do subdesenvolvimento e diminuir a pobreza 8.

Como conseguir um crescimento forte e durável tal, que a pobreza

possa diminuir de maneira significativa? Será sem ou com uma política

redistributiva conseqüente do Estado, ou será sem ou com uma política

industrial? Enfim, com que tipo de crescimento, isto é, com que regime de

acumulação

p. 185

se pode obter um aumento da produção que permite começar a erradicar a

pobreza de maneira significativa e durável? Deve-se optar por um

crescimento através das exportações, favorecendo ao mesmo tempo a

concentração da renda do trabalho e a do conjunto da renda, ou então

escolher um regime de acumulação que combine ao mesmo tempo o impulso do

mercado interno e a concorrência externa?

Como se pode ver, a questão da pobreza e de sua erradicação está

longe de admitir soluções simples, receitas miraculosas. O objeto deste

estudo é ao mesmo tempo mostrar alguns dos fatores que agem sobre a

pobreza, sua amplitude, sua profundidade e suas formas, e analisar a

fragilidade das soluções postas em prática no contexto latino-americano

dos anos noventa.

1. Os fatores que concorrem para o agravamento e para a redução da

pobreza

Vamos limitar-nos aqui aos fatores estritamente econômicos como a

inflação e seu oposto, o crescimento do PIB e seu contrário, a relação

entre o crescimento da produtividade do trabalho e o da acumulação, a

evolução da distribuição da renda. Não é nosso intuito aqui medir os

efeitos das políticas sociais (educação, saúde) sobre a pobreza. De fato,

estas foram reduzidas nos anos oitenta, quando a pobreza se desenvolvia.

A profunda deterioração de toda uma série de serviços públicos contribuiu

para o agravamento da pobreza. Com a estabilização dos preços e a

retomada do crescimento, as medidas em favor dum incremento desses

dispêndios, ao invés de tentar sua extinção, não são suficientemente

importantes e por demais recentes para que pudessem ter produzido um

efeito significativo sobre a pobreza.

p. 186

1.1. A inflação e seu oposto numa conjuntura dinâmica

a) Alta dos preços e depressão

As economias latino-americanas conheceram fases de inflação bem

alta, ou até de hiperinflação, nos anos oitenta 9. Sabe-se que a alta dos

preços opera uma punção na renda, muitas vezes com exceção das rendas

mais elevadas, indexadas no curso do câmbio. Essa punção, chamada de

"taxa inflacionária" na literatura, é inversamente proporcional à

importância da renda. O exemplo da Argentina é ilustrativo. A renda

pertencente ao decil mais fraco sofre intensamente o golpe dessa taxa e

perde em 1989, ano de forte inflação na Argentina, 9,2% de seu poder

aquisitivo, enquanto a renda dos cinco por cento elevados conhecem uma

amputação desse poder aquisitivo de apenas 2,8%, em razão da aceleração

inflacionária (Canavese et alii, 1992).

As causas dessa evolução são bastante simples de compreender. É

preciso distinguir a renda protegida da inflação, da renda que é pouco

protegida. A renda pouco protegida sofre intensamente o golpe dessa

aceleração da alta dos preços. Essa renda é a renda das categorias da

população mais pobre e mais freqüentem ente dos aposentados do serviço

público, que pagam, assim, a crise fiscal do Estado. A pobreza dessas

camadas se acentua quase mecanicamente. As camadas protegidas são aquelas

que se beneficiam de mecanismos de indexação, tanto dos preços, como do

total da receita. A indexação aos preços não estabiliza o poder

aquisitivo, mas permite

p. 187

que ele abaixe menos do que se a renda não tivesse sido indexada. A

indexação ao total da receita é eficaz se houver um forte crescimento.

A eficácia de indexação dos preços é relativa. Podemos encontrá-la

sobretudo nas grandes empresas e ela atinge relativamente pouco as

camadas chamadas pobres, mais presentes nos empregos informais

industriais, comerciais e de serviço. Quando a indexação é completa - o

que é raro - a recuperação do poder aquisitivo se efetua no fim dum lapso

de tempo, definido de tal forma que, à taxa de inflação constante, a

perda de poder aquisitivo é igual à metade da diferença entre o poder

aquisitivo do salário no começo do período e o poder aquisitivo atingido

no fim do período. Se essa perda de poder aquisitivo não suscitar

comportamento de oposição da parte daqueles que a sofrem, ela se mantém

enquanto a taxa de inflação continuar constante. Ao contrário, se os

trabalhadores buscam manter seu poder aquisitivo inicial exigindo uma

recuperação superior àquela fornecida pela simples indexação, e se eles

encontram uma oposição do lado dos empresários, a taxa de inflação

aumenta. A razão essencial vem do fato de que os trabalhadores agem num

único mercado (o mercado do trabalho), enquanto os empresários, presentes

no mercado do trabalho, agem também no mercado dos bens e podem, assim,

recuperar o que eles às vezes tiveram que ceder no mercado do trabalho,

graças à sua capacidade de agir sobre os preços. O conflito distributivo

está na origem do aumento dos preços, segundo este enfoque kaleckiano

que, como compreendemos, se opõe nitidamente ao enfoque monetarista

(Salama - Valier, 1990).

Segundo esse enfoque kaleckiano, compartilhado pela corrente

estruturalista na América Latina, basta que o preço dos insumos

importados aumente, em conseqüência duma

p. 188

maxidesvalorização, para que as margens de lucro sejam amputadas a preços

mantidos. Se, ao contrário, essas margens são mantidas, os preços sobem,

o poder aquisitivo dos assalariados baixa e o conflito redistributivo é

relançado.

Quando esse conflito é neutralizado, a alta dos preços continua

constante, em nível elevado, e a inflação evolui por escalões sucessivos.

Tal indexação se engata ao fim dum período definido. Chama-se,

portanto, "ex post". Por isso sua eficácia é reduzida. Quanto menor o

prazo da não-indexação, menos importante é a amputação do poder

aquisitivo, à taxa de inflação constante. Ao inverso, quando a indexação

é "ex ante", como é o caso dos produtos financeiros, a inflação beneficia

a renda do capital 10, uma vez que a correção do poder aquisitivo se faz

diante duma alta de preços antecipada, superior à taxa de inflação

presente. As desigualdades entre a renda do capital e a renda do trabalho

aumentam; o empobrecimento dos trabalhadores assalariados se acentua; os

trabalhadores próximos da linha de pobreza a transpõem e se tornam pobres

no sentido estatístico do termo.

A renda não assalariada, geralmente mais importante nos empregos

informais não industriais, comerciais e de serviço é indexada ao total da

receita. Trata-se duma indexação de certo modo instantânea. Segundo o

raciocínio que vem sendo feito, esses trabalhadores não deveriam sofrer

nem da inflação nem de sua aceleração, uma vez que poderiam repercuti-la

instantaneamente sobre seu preço de venda e manter, pelo menos, seu poder

aquisitivo estável. Ora, o que acontece

p. 189

é exatamente o inverso. São as camadas mais pobres que conhecem as

reduções mais severas de seu poder aquisitivo. Essa situação é lógica

para as camadas cuja renda não é indexada, mas parece menos compreensível

para aquelas que têm uma indexação de fato. A explicação desse paradoxo

aparente é simples. A renda dessas camadas depende da evolução da demanda

que lhes é dirigida. Quando esta baixa, o total da receita também se

reduz e sobretudo se elas repercutem a alta dos preços sobre seus

produtos. Ora, esta demanda enfraquece à medida que a inflação amputa a

renda dos empregados formais indexados e que se desenvolve a crise

econômica. Esses dois fatores interagem de maneira desmultiplicada sobre

a demanda que lhes é dirigida e, por repercussão, sobre seu poder

aquisitivo.

Setor informal ou empregos informais?

O setor informal é um conjunto profundamente heterogêneo não só

pelo tipo de ofícios que o compõem, pelas suas relações com o Estado e

com a legalidade, mas também por suas origens. A terminologia setor

informal é ambígua: ela não sublinha a especificidade das situações e não

permite analisar as evoluções possíveis dos diferentes empregos informais

(Lautier, 1994). Um exemplo permite compreender isso melhor. Pode-se, por

exemplo, observar na Argentina a presença dum setor informal muito

importante, quando ele é definido pelo não-pagamento dos encargos sociais

e pela não-declaração (ou pela declaração incompleta) dos trabalhadores

aos serviços fiscais e à previdência social, de tal forma que esses

empregados não são objeto de adiantamentos obrigatórios e, como corolário

dessa ausência, não têm acesso à previdência social definida pela lei.

p. 190

O emprego informal na Argentina não tem as mesmas origens que no

Brasil, por exemplo, porque as duas formações sociais não tiveram o mesmo

trajeto na história. No caso da Argentina, a colonização européia de

povoamento foi acompanhada da erradicação da maioria dos índios em número

mais importante é verdade nos Andes e no México - e quase não se apelou

para a importação de mão-de-obra escrava. Os empregos informais se

caracterizam, portanto, essencialmente pelo fato de contornarem a lei, à

semelhança do que se observa, numa escala menor, nos países europeus. No

caso do Brasil, a nova inserção na divisão internacional do trabalho e o

estabelecimento de economias exportadoras levaram a uma desestruturação

das relações de produção que existiam nas comunidades indígenas, e em

alguns casos a uma importação em massa de mão-de-obra escrava. Essas

formas de trabalho específicas desestruturaram as relações de produção

preexistentes, desviando-as de suas finalidades. Elas se traduziram por

uma importante redução da expectativa de vida das populações subjugadas,

quando não por massacres ou até mesmo por genocídios, para impor a

economia de exportação, mas também por uma adaptação dessas relações de

produção à produção de bens destinados a serem comercializados em massa e

muitas vezes por uma mestiçagem das populações. Resta que traços

importantes dessas antigas relações de produção perduram com o

desenvolvimento do capitalismo. É sobre essa base que se desenvolverão,

com auxílio da violência, as relações comerciais e capitalistas, de novo,

com a industrialização. É por isso que as formas de

salariado trarão aqui, mais do que noutros lugares, formas de dominação

pessoais. Longe de tornar-se anônimas, as relações de produção se

caracterizarão pelo favor, e o salário

p. 191

não será somente uma troca de valor, mas também e sobretudo uma troca de

favor. Essa combinação "valor-favor", sublinhada por G. Mathias (1987),

dá lugar ao mesmo tempo, no nível político, a formas de dominação

caracterizadas pelo autoritarismo e o paternalismo; no nível econômico,

pela "modernização conservadora"; e em nível salarial, pela salariação

incompleta, isto é, por formas de empregos informais. É afirmar, por

conseguinte, que não se pode reduzir a informalidade à ilegalidade,

sobretudo quando ela repousa sobre mecanismos de legitimação, aliás, "não

comerciais" (Mathias - Salama, 1983), para opô-los à legitimação

comercial resultante do impulso das relações capitalistas, anônimas.

Um terceiro fator intervém: o aumento do número de pobres nos

empregos informais de estrita sobrevivência. Com efeito, quando a crise

se agrava, os empregos formais se tornam mais raros e as demissões se

multiplicam nas grandes empresas. As pequenas empresas industriais, que

trabalham direta ou indiretamente para essas grandes empresas, ou

utilizam insumos produzidos por elas, sofrem igualmente os efeitos da

crise, e os empregos informais, que dominam nesse tipo de atividade,

também se tornam mais raros 11. Os empregos que desta maneira se perdem

não aparecem, ou só fracamente, nas estatísticas do desemprego, com

exceção de alguns países como a Argentina, na medida em que o

p. 192

abono-desemprego, quando ele existe, é geralmente de montante muito

baixo. Os empregos informais se desenvolvem então nos serviços ou no

comércio e mais particularmente os de estrita sobrevivência. A oferta

aumenta mas a demanda diminui. Então, é lógico que o nível da receita

total da maioria desses empregos se reduz consideravelmente e que a

pobreza se desenvolve e se aprofunda. A desigualdade entre os pobres

cresce e a heterogeneidade dos empregos informais aumenta à medida que a

inflação, a crise e o número desses empregos se desenvolvem.

O conjunto dos efeitos da inflação pode ser resumido no quadro

seguinte:

Aceleração da alta dos preços

Renda| Crescimento| Recessão

Renda indexada ex post| -| --

Renda indexada ex ante| +| ++

Renda não indexada| --| ---

Renda indexada indiretamente| O ou -| ---

b) Estagnação da inflação galopante e retomada do crescimento

A evolução da renda das camadas modestas e pobres é invertida, num

primeiro tempo, quando a alta dos preços cai brutalmente e é retomado o

crescimento. Numa primeira fase, a renda dessas camadas e seu poder

aquisitivo têm a tendência de aumentar mais depressa e muito mais

fortemente do que a renda dos empregos formais. Numa segunda fase, a

evolução dessa renda é menos positiva ou até negativa em certos países,

como se pode observar no quadro seguinte.

p. 193

Gráfico 2 - Renda média dos trabalhadores segundo

seu estatuto formal e informal no Brasil (em reais

de dez. 1995) a partir do Plano Real

Média 1994 |Média 1995 | Média 1996 | Jan. 1997 |Fev. 1997 | Mar. 1997

| Abr. 1997

. Assalariado com carteira 519,74 | 533,22 | 570,13 | 562,58 | 559,09

| 548,27 | 555,38

. Assalariado sem carteira 350,27 | 399,78 | 423,29 | 433,79 | 426,29

| 423,56 | 427,59

. Por "conta" própria 383,81 | 460,93 | 490,07 | 481,03 | 483,93 |

480,43 | 486,19

. Empregadores 1.695,76 | 1.817,76 | 1.830,64 | 1.769,52 | 1.746,17 |

1665,32 | 1.764,92

Fonte: Ipea. Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 5, julho de

1997.

A primeira linha trata dos empregos formais, em média melhor

remunerados, que os empregos informais. As duas linhas seguintes se

referem aos empregos informais. Nestas é que se concentram os pobres. As

evoluções dessa renda são mais amplas do que as dos empregos formais,

tanto na baixa, quando há crise e inflação, como na alta, quando é

retomado o crescimento e detido o processo inflacionário. Esse ciclo

específico do poder aquisitivo desses trabalhadores levou alguns

economistas a pensar que a mudança de conjuntura e o fim da alta inflação

seriam suficientes para melhorar duravelmente o poder aquisitivo dos

pobres e que uma política redistributiva da renda não só se tomaria menos

necessária, mas podia contribuir para contrariar essa evolução positiva.

Esta legitimava a política liberal de saída da crise escolhida e militava

contra uma intervenção do Estado além das fronteiras delineadas pela

saúde, educação e as funções reais, como a justiça, a polícia e o

exército.

Para compreender a evolução específica dessa renda e a

amplitude de seu ciclo é preciso levar em conta dois fatores:

p. 194

a evolução da renda e das despesas dos trabalhadores que ocupam empregos

formais; a deformação possível dos preços relativos em favor dos

trabalhadores do comércio, da pequena indústria e de certos serviços.

Esses dois fatores combinados agem positivamente sobre a renda de fração

importante dos empregos informais, mas sua ação tende a esgotar-se

rapidamente. Por isso, após uma fase de viva recuperação, essa renda

tende a estagnar, se não a regredir.

Os empregos formais crescem pouco ou até regridem em alguns países,

por ocasião da mudança de conjuntura, mas os salários são beneficiados

com a estagnação da inflação num primeiro momento. Entretanto, as

despesas aumentam mais do que o crescimento do poder aquisitivo. De fato,

há uma mudança no comportamento de consumo e de endividamento. A queda

dos preços é percebida favoravelmente, não só porque o espectro do

empobrecimento se afasta, mas também porque uma melhora do poder

aquisitivo se toma possível. O medo de que a desaceleração da alta dos

preços seja temporária pode levar a precipitar as compras, a esbanjar e a

endividar-se muito; também porque as compras foram adia

das na fase da crise. Esse dinamismo da demanda alimenta e estimula o

crescimento, restabelece em parte as margens de lucro graças à

reutilização de capacidades de produção excedentes e abre grandes

possibilidades ao aumento de salários. Tal modificação do comportamento

amplifica, portanto, a demanda de produtos simples, produzidos e vendidos

pelos trabalhadores informais.

O aumento da demanda é responsável pela melhoria do poder

aquisitivo das camadas que mais sofreram da crise e da inflação, uma vez

que é possível uma deformação dos preços relativos dos bens não expostos

à concorrência estrangeira em relação àqueles que o são. De fato, o

cenário muda no fim

p. 195

dos anos oitenta para alguns países, e no começo dos anos noventa para

outros. A abertura das fronteiras fez passar grande parte desses países

do estatuto de economia fechada ao de economias abertas. Como veremos, o

setor exposto à concorrência internacional não pode prosseguir a

valorização de seu capital, a não ser na condição de que os custos

unitários baixem, a fim de que os preços sejam inferiores aos dos

produtos importados. Essa nova coação - visto que é produzida pela

liberalização do comércio externo e pela retirada do apoio à produção -

traduz-se por um rápido aumento da produtividade do trabalho e por uma

desaceleração da alta dos salários nos empregos formais (Brasil), ou até

mesmo por um importante recuo após uma breve fase de progresso

(Argentina). Entretanto, nem todos os produtos estão sujeitos à

concorrência estrangeira. A globalização não é total, existindo setores

relativamente protegidos e outros expostos. Os primeiros não são mais

protegidos administrativamente e sofrem profundamente os efeitos da

concorrência internacional. Os segundos conhecem uma proteção de fato

ligada à natureza do produto, às suas características; seja quando é

fabricado, seja quando é vendido. Alguns produtos continuam, pois, a ser

produzidos localmente com uma produtividade relativamente fraca, uma

organização de trabalho simples e empregos informais. Outros, sejam eles

importa

dos ou produzidos localmente, são objeto de desenvolvimento do comércio

de rua e de incremento das atividades informais não industriais. Essa

dualidade dos setores, expostos e protegidos, cobre em parte a dos

empregos formais e informais e autoriza que uma deformação dos preços

relativos desses dois setores possa fazer-se em favor do setor protegido.

As atividades informais, menos sensíveis aos preços internacionais, têm

pois possibilidade de definir seus preços mais livremente do que os

outros. Seu grau de liberdade

p. 196

depende, contudo, da elasticidade dos preços em relação à renda e das

perspectivas de emprego, e para algumas atividades, especialmente

comerciais, da probabilidade de serem concorrenciadas pela vinda de

empresas modernas e oscilarem, assim, para o setor exposto. Se estas são

favoráveis, uma argumentação dos preços não altera o volume da demanda e

o total da receita dos trabalhadores "por conta própria" aumenta na mesma

proporção, melhorando assim sua renda, mas, num grau mínimo, a dos

trabalhadores informais e assalariados. Mas se mudam as perspectivas de

evolução do emprego e da renda - o que acontece rapidamente - então o

grau de liberdade diminui e o poder aquisitivo desta categoria de

empregos informais não cresce tão rapidamente ou até pode regredir de

novo.

A evolução da renda dos empregos informais no Brasil tende a

estagnar num segundo tempo, desde o fim de 1996, se não a regredir.

Paralelamente, a importância relativa desses empregos tende a elevar-se

(quadro seguinte). Esse movimento reflete, portanto, uma participação

mais elevada desses empregos informais no total dos empregos.

Gráfico 3 - Evolução dos empregos informais

no Brasil (com exceção dos empregadores), em

porcentagem do total de empregos

Média 1994 |Média 1995 | Média 1996 | Jan. 1997 |Fev. 1997 | Mar.

1997 | Abr. 1997

. Assalariado sem carteira 23,73 | 24,14 | 24,83 | 24,41 | 24,88 |

24,91 | 25,08

. Por "conta" própria 21,72 | 22,02 | 22,83 | 22,97 | 22,81 | 23,12 |

22,86

Fonte: Ipea. Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 5, julho de

1997.

Esta tendência para uma informalização acentuada dos empregos pode

também ser constatada a partir da análise das

p. 197

evoluções do desemprego aberto e total. O argumento do desemprego aberto

traduz a baixa dos empregos formais e a do desemprego total 12, o

crescimento dos empregos informais "mais informais", uma vez que estes

não permitem aos trabalhadores sobreviver e os levam a procurar empregos

suplementares que não chegam a encontrar.

Gráfico 4 - Evolução das taxas de desemprego aberto

e de desemprego total em São Paulo, em média anual

(salvo para 1997): 1994 (Plano Real) a 1997

1994 | 1995 | 1996 | Jan. 1997 | Fev. 1997 | Mar. 1997 | Abr. 1997

Aberto 4,00 | 3,44 | 3,67 | 3,45 | 3,90 | 3,74 | 3,78

Total 14,18 | 13,24 | 15,03 | 14,20 | 15,00 | 15,90 | 16,00

Fonte: Ipea. Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 5, julho de

1997.

Quando a maior parte dos pobres se encontra perto da linha de

pobreza, o indicador de pobreza cai rapidamente quando a inflação baixa

rapidamente, mas sobe fortemente quando o desemprego aberto 13 cresce,

como se pode ver no gráfico seguinte, que trata da Argentina. O

crescimento do desemprego aberto teve lugar até mesmo quando a Argentina

conhecia um crescimento elevado de seu Pib (7% ao ano, de 1992 a 1994) e

se acelerou quando a economia entrou em recessão em 1995.

p. 198

Gráfico 5 - Evolução da pobreza (1ª linha) e desemprego

(2ª linha) na grande Buenos Aires, de outubro de 1988

a outubro de 1996, segundo o indicador da linha

de pobreza, medido para pessoas

1988 | 1989 | 1990 | 1991 | 1992 | 1993 | 1994 | 1995 | 1996

Pobreza 32,4 | 5,7 | 47,4 | 7,0 | 33,8 | 6,0

Desemprego 5,7 | 7,0 | 6,0 | 5,3 | 6,7 | 9,6 | 13,1 | 17,4 | 18,8

Fonte: Indec no Informe Econômico, n. 20, abril 1997, p. 62 e 184

A retomada econômica, moderada no começo de 1996, viva depois (8%

do último semestre de 1996 ao primeiro semestre de 1997), não chega a

reduzir de maneira significativa a taxa de desemprego e a encontrar os

mesmos níveis anteriores à crise de 1995 (a taxa de desemprego aberto era

de 10,7% em maio de 1994, antes da crise, e de 16,1% em maio de 1997). O

crescimento, mesmo vivo, é muito pobre em emprego e os empregos criados

são geralmente mais informais do que antes, com uma remuneração 40%

inferior em média, aos que se beneficiam dos empregos formais, segundo os

números oficiais argentinos. Os salários reais baixam em média desde

1993, enquanto a produtividade do trabalho cresce fortemente desde 1990.

Isso explica que, apesar da criação de empregos, fraca é verdade, o valor

da massa salarial diminui em 3,5% no ano de 1997 (Fide, Conjuntura y

desarrollo, n. 225, julho de 1997). Isso também explica que 80% da

população de Buenos Aires (capital e grande Buenos Aires) veja sua

participação na renda nacional reduzir-se, sobretudo em benefício dos 20%

mais ricos (gráfico 6) e que a degradação relativa e absoluta dos quatro

primeiros decis seja particularmente elevada.

p. 199

Gráfico 6 - Distribuição pessoal da renda (por decis)

em Buenos Aires, de maio de 1990 a maio de 1997

1990 | 1991 | 1992 | 1993 | 1994 | 1995 | 1996 | 1997

1°| 2,0 | 2,4 | 2.4 | 1,9 | 1,8 | 1,8 | 1,7 | 1,6

2°| 3,7 | 3.3 | 2,9 | 2,8 | 2,7 | 2,9 | 2,7 | 2,7

3°| 4,3 | 3,8 | 4,0 | 4,1 | 4,0 | 4,1 | 4,0 | 3,9

4°| 4,9 | 5,2 | 5,4 | 5,1 | 5,2 | 5,2 | 5,0 | 4,9

. Estrato baixo| 14,9| 14,7| 14,8| 13,9| 13,7 | 13,9| 13,5| 13,3

. Estrato médio 5° ao 8°| 32,8 | 34,6 | 35,1 | 34,4 | 34,8 | 35,1 |

34,8 | 34,0

. Estrato elevado 9º e 10º| 52,3 | 50,7 | 50,2 | 51,7 | 51,5 | 51,0 |

51,8 | 52,9

Fonte: Fide. Conjuntura y desarrollo (agosto de 1997, n. 226), com dados

do Indec.

Em resumo, quando o crescimento é retomado e os preços abaixam, os

assalariados recuperam uma parte de seu poder aquisitivo perdido. Essa

fase é porém de curta duração porque a indexação é rapidamente abandonada

ou submetida a condições muito restritivas, e o crescimento se torna

pouco gerador de empregos com a liberalização brutal da economia 14.

A queda da taxa de inflação e a retomada do crescimento não são,

entretanto, os únicos fatores de ordem econômica que explicam a evolução

da renda e, num primeiro tempo, o forte impulso duma parte importante da

renda que provém de

p. 200

empregos informais. A alta dos salários é de curta duração e a

probabilidade de que seja interrompida ou fortemente freada é grande nas

empresas sujeitas a uma forte concorrência estrangeira e a uma

incapacidade de modificar com a devida urgência as técnicas e a

organização do trabalho. Outros fatores devem, pois, ser levados em

conta, principalmente porque a retomada do crescimento nos anos noventa,

ao contrário dos anos anteriores, veio acompanhada da retomada dos

empregos industriais formais, mas que, justamente ao contrário, estes têm

tanto a tendência de cair como de manter-se no nível rebaixado, herdado

da depressão (Dedecca, 1994). A esta estagnação ou até recuo dos empregos

industriais geralmente se acrescenta uma redução, às vezes maciça, de

empregos no setor público, em conseqüência das medidas de liberalização

estabelecidas.

O melhoramento do poder aquisitivo das camadas pobres, mais ampla

do que a dos trabalhadores que ocupam empregos formais, é de curta

duração; a possibilidade de deformar os preços relativos se esgota; o

crescimento é pobre em empregos; o desemprego cresce e suas formas

ocultas se desenvolvem com a informalização dos empregos; a pobreza que

ontem se desenvolvia com a inflação e sua aceleração, aumenta hoje com o

aumento do desemprego.

1.2. Um comportamento rentista menos pronunciado mas ainda persistente

Durante a década perdida dos anos oitenta, a maioria das economias

latino-americanas conheceu uma sensível redução de sua taxa de

acumulação, um desvio considerável de sua produtividade em relação aos

países desenvolvidos. A hiperinflação se estabiliza em níveis bem

elevados, o sistema

p. 201

produtivo se torna obsoleto em muitos setores. Cresce a pobreza. mas o

emprego em seu conjunto parece pouco afetado pela situação. É verdade que

o emprego no setor estatal tende a aumentar paralelamente ao aumento de

sua eficácia. em muitos países, dando assim argumento àqueles que,

favoráveis à retirada do Estado, denunciam o populismo praticado por

diferentes governos (Dornbush - Edwards, 1990) em certos períodos,

durante essa década perdida. Certamente a composição do emprego muda:

menos empregos formais nas grandes empresas 15, menos empregos informais

nas pequenas empresas industriais, mais empregos informais nas pequenas

empresas comercias e de serviço, mais trabalhadores "por conta própria"

ocupando empregos informais. Mas no total, o crescimento da pobreza vem

sobretudo da alta dos preços e de seus efeitos sobre a renda auferida do

trabalho, num contexto macroeconômico depressivo. O emprego não é

responsável por esse crescimento. O aumento sensível dos empregos

informais, os de estrita sobrevivência, é muito mais reflexo do

crescimento da pobreza do que uma de suas causas.

A situação muda radicalmente desde o final dos anos oitenta em

alguns países, e desde o começo dos anos noventa em outros: as fronteiras

se abrem e as subvenções às exportações são consideravelmente reduzidas,

quando não desaparecem totalmente. A fortíssima redução da proteção

aduaneira provoca importantes efeitos no sistema de produção. Algumas

empresas desaparecem, especialmente nos setores de forte progresso

técnico, em razão do atraso acumulado e do abandono duma política

industrial de apoio; outras se

p. 202

modernizam rapidamente. Entretanto, o jogo da reestruturação não é

totalmente nulo. A integração dos processos produtivos, quando existia

como no Brasil, se quebra em vários pontos e aparece uma

"desverticalização". As importações em massa de bens de equipamento

fecham sem dúvida de novo a brecha tecnológica que se havia alargado na

década anterior, mas traduzem também o aparecimento de várias linhas de

fratura no sistema produtivo 16. Nesse novo contexto, o emprego no setor

industrial se toma mais raro. Ao contrário da década perdida, é o

emprego, sua raridade e sua precariedade, que poderia estar na origem do

crescimento da pobreza, como já se pode ver na Argentina e na maioria dos

países desenvolvidos.

Com exceção do Chile, que teve aumento sensível de sua taxa de

acumulação (26%), os outros países da América Latina só tiveram um fraco

acréscimo. Essas taxas de acumulação são fracas, em tomo de 20%, em

comparação com o que

eram nos anos setenta e sobretudo estão muito aquém das taxas da maioria

dos países asiáticos (entre 32 e 36%). É nessa medida que se pode falar

da persistência do mimetismo, no consumo das camadas médias altas, em

relação aos países desenvolvidos, e por conseguinte da insuficiência de

poupança 17. É também nesse sentido que se pode evocar a

p. 203

persistência do comportamento rentista entre os investidores que optam na

maioria das vezes em favor dos investimentos em papéis de crédito (compra

de títulos ou de ações), de consumo ostentador, ao invés de optar por

investimentos no setor produtivo 18. Pode-se certamente nuançar o

propósito fazendo observar que os investimentos de hoje deveriam ser

reavaliados quando comparados aos dos anos setenta na medida em que uma

parte importante dos bens de equipamento é importada e que ela se

beneficia, assim, da sensível avaliação da moeda (30 a 40% desde a

estabilização dos preços de vários países). Mas, mesmo levando em conta

esta observação, a taxa de acumulação deveria reavaliar ao máximo dois

pontos do Pib, o que deixa ainda uma margem considerável em relação às

taxas asiáticas.

Ao contrário do período precedente, a forte liberalização das

transações leva a um Importante crescimento da produtividade, reduzindo a

brecha tecnológica com os países industrializados. Como antes, também

aqui convém nuançar, desta vez para baixo, os resultados observados. De

fato, tal produtividade não é calculada em relação ao valor acrescentado

nos diversos ramos, em razão das insuficiências do sistema estatístico,

mas em relação ao valor produzido e importado. Ora, o volume das

importações cresceu muito com a liberalização. Seja como for, mesmo

levando em conta essas observações, é inegável que a taxa de crescimento

da produtividade do trabalho foi muito mais rápida do que a da acumulação

do capital. Do ponto de vista macroeconômico, isto significa que as

forças de expulsão do emprego foram superiores à

p. 204

força de criação de emprego 19. Por isso, o crescimento do produto cria

menos emprego do que antes à taxa dum dado crescimento, ou, noutras

palavras, seria necessária uma taxa de crescimento particularmente

elevada para que o emprego industrial se mantenha ou aumente. As

economias semi-industrializadas latino-americanas estão hoje numa

situação caricatural em relação à que conhecem as economias européias.

Estas, de fato, sofrem ao mesmo tempo duma acumulação insuficiente, no

próprio momento em que seus mercados financeiros conhecym um impulso

considerável (Salama, 1996 e 1997), e dum aumento duas vezes mais fraco

de sua produtividade do trabalho em relação à dos "trinta gloriosos"

(Hutton, 1997). A indústria perde empregos que o aumento dos serviços não

pode reabsorver, e o desemprego atinge níveis muito elevados; a pobreza

toma novo impulso. É com essa problemática, em sua versão mais

pessimista, que se confrontam as economias latino-americanas. Como criar

empregos se a acumulação se situa num nível fraco e a produtividade do

trabalho cresce consideravelmente?

A resposta a esta questão está nesta simples abstração: basta que a

taxa de acumulação cresça e que as mudanças

p. 205

industriais sejam realizadas levando em conta os custos sociais

envolvidos. Para isso seria necessário que os empresários tivessem um

comportamento menos rentista, que fossem incitados a investir mais, a

consumir e especular menos do que o fazem no presente (com exceção do

Chile) e que o Estado adotasse uma política industrial incentivadora.

Acompanhar as mudanças e até preveni-Ias, minimizar os custos sociais,

privilegiar a negociação coletiva, investir na educação e na saúde,

adotar uma política de proteção do meio ambiente e desenvolver as infra-

estruturas não fazem parte dos objetivos prioritários dos governos

atuais.

Portanto, o diagnóstico é simples, mas traduz também a

dificuldade de aplicar as medidas eficazes. Se tais medidas não forem

tomadas, então pode-se pensar que a dificuldade de encontrar empregos

formais na indústria, no comércio ou nos serviços se traduzirá por um

crescimento do emprego informa 20 de estrita sobrevivência e do

desemprego, isto é, da pobreza, o que já se pode observar.

2. Tendência a uma pobreza de duas facetas

A pobreza conserva os estigmas duma sociedade subdesenvolvida e

adquire os duma sociedade moderna. O novo regime de acumulação dominante

nos anos noventa está vinculado ao crescimento e à baixa da inflação.

Mas, dum lado, é extremamente frágil e não pode levar a uma baixa durável

da pobreza. Não só o aumento da pobreza vem,

p. 206

hoje, da insuficiência de empregos criados, mas a própria durabilidade do

crescimento é problemática. A pobreza pelo emprego e a pobreza pela

recessão são os dois espectros que dominam nos anos noventa. Por outro

lado, as principais características do regime de acumulação são

profundamente marcadas pelas novas regras do jogo liberais dominantes.

Por isso, a natureza dos empregos criados leva a formas de pobreza

modernas, análogas às que se desenvolveram na maior parte dos países

industrializados.

2.1. Uma conexão macroeconômica particularmente frágil

Os países latino-americanos passaram muito depressa de economias

relativamente fechadas às transações internacionais, ao estatuto de

economias abertas. As formas de sua sensibilidade e de sua

vulnerabilidade ao contexto internacional mudaram. Ontem, ainda que

fechadas, elas eram muito sensíveis à variação de sua taxa de câmbio nos

mercados paralelos, pois exprimiam ao mesmo tempo a fraca credibilidade

de sua política econômica e o anúncio das taxas futuras de inflação.

Hoje, a ancoragem de sua taxa de câmbio nominal ao dólar é mais ou menos

estrita, tendo a inflação quase desaparecido com a liberalização do

conjunto das transações comerciais e financeiras, do sistema bancário e

da conseqüente retirada do Estado. O crescimento, às vezes fraco

(México), às vezes elevado (Argentina) foi retomado, e aqueles que

preconizavam esta saída para a crise pensavam que ela seria durável. Mas

não foi. Sem tardar, o México teve que enfrentar uma especulação

importante, sendo obrigado a desvalorizar sua moeda (1994, 1995). O

"efeito tequila" teve repercussões no conjunto das chamadas bolsas

emergentes, mas

p. 207

também em bolsas mais antigas, como a de Paris. A conjuntura inverteu-se

e o México e a Argentina entraram em profunda recessão em 1995. A

amplitude das flutuações, tanto na alta como na baixa, não deixa de

evocar aquelas conhecidas pelos países desenvolvidos no fim do século

passado até o começo os anos trinta 21.

O intuito desta seção não é relatar a conjuntura econômica dos

cinco-dez últimos anos dos principais países latino-americanos. Nosso

propósito consiste em discutir a eficácia do tipo de crescimento

instaurado para sair de suas profundas crises, sobre a evolução da

pobreza, sua amplitude, sua profundidade e sua diferenciação. Os déficits

da balança comercial e das contas correntes se acentuam profundamente e o

prosseguimento do crescimento depende cada vez mais da entrada maciça de

capitais do exterior. Trata-se de característica estrutural do regime de

acumulação fixado para sair da crise inflacionária dos anos oitenta. É o

que vamos ver.

A rápida abertura das fronteiras levou a uma destruição-

reestruturação do sistema de produção, prevalecendo a destruição sobre a

reestruturação. O nível de abertura cresceu, mas continua ainda bem

distante daquele que domina nas economias semi-industrializadas da Ásia.

Com o aumento sensível do comércio internacional, delineia-se em

pontilhado uma redefinição da inserção internacional dessas economias.

Foi possível falar, às vezes, de reprimarização dessas

p. 208

economias 22. Mas, essas evoluções em pontilhado não significam

absolutamente que esses países regridem a um regime de acumulação em que

predominavam exportações de produtos primários não trabalhados. Ao

contrário do que se observa nos países menos avançados, ou no século

passado, o valor acrescido é na maioria das vezes importante e as

produções são muitas vezes sofisticadas.

O vivo impulso das exportações e a transformação ocasional de seu

conteúdo não são, porém, suficientes para compensar o das importações. E

mesmo quando o conteúdo das exportações favorecia 'em alguns países as

importações de bens de equipamento e de produtos intermediários

sofisticados, a reestruturação do sistema industrial que elas permitem

não é suficientemente rápida e importante para que as empresas

modernizadas possam exportar em massa e transfor mar positiva e

duravelmente o saldo da balança comercial. Os investimentos não são de

fato suficientemente elevados, comparados ao Pib, como já vimos.

A brecha comercial cresce consideravelmente, mais ainda porque a

moeda é fortemente avaliada 23, as subvenções às exportações suprimidas e

os direitos aduaneiros consideravelmente rebaixados no momento em que se

desenvolve nos

p. 209

países desenvolvidos um protecionismo oculto, não tarifário e centrado na

qualidade do produto. Seja o Brasil, o México ou a Argentina, todos

conhecerão profundos déficits. E foi preciso esperar a crise de 1994 para

que o México pudessse recomeçar com um superávit na balança comercial,

superávit que se explica ao mesmo tempo pelas fortíssimas desvalorizações

e pela recessão. Da mesma forma na Argentina, a recessão (-7%) de 1995

permitiu que um superávit reaparecesse, bem frágil, porém uma vez que,

com a retomada do crescimento, os déficits aparecem a partir de 1997. O

Brasil, depois de conhecer superávits muito importantes (da ordem de 10 a

16 milhões de dólares anuais, nos anos oitenta), recomeça com déficits

importantes (estima-se de 8 a 12 milhões de dólares o déficit de 1997).

A brecha comercial é apenas uma fração do déficit externo desses

países. Outros fatores contribuem para aumentar a necessidade de

capitais: os gastos com o turismo, cuja progressão tão forte se explica

pela valorização das moedas nacionais em relação ao dólar, os gastos

ligados à volta dos lucros e dividendos das firmas multinacionais, cuja

progressão é consoante à crescente internacionalização do capital 24, o

aumento dos gastos ligados à compra de patentes estrangeiras, e enfim e

sobretudo, o serviço duma dívida externa fortemente crescente e sua

amortização. Tal dinâmica dos déficits se observa no conjunto desses

países, mas com um parêntese, que é imediatamente fechado, quando

sobrevém uma

p. 210

desvalorização (México) e/ou quando chega a recessão (México, Argentina).

Gráfico 7 - Endividamento externo do Brasil:

1994-1996, em milhões de dólares

1994 | 1995 | 1996

1. Dívida externa total| 148,295 | 159,256|| 175,800

2. Dívida externa a longo prazo| 119,668| 129,313| 141,900

3. Reservas internacionais líquidas| 38,806| 51,840| 60,110

4. Ativos dos bancos brasileiros no exterior| 15,035| 8,834| 10,000|

5. Dívida externa líquida (1-3-4)| 94,454| 98,582| 105,690

6. Juros brutos pagos| 8,140| 10,643| 12,758

7. Juros líquidos pagos| 6,338| 8,158| 9,840

8. Custos da dívida: jur. br. sobre dívida total| 5,49%| 6,68%| 7,26%

9. Custos da dívida: jur. líq. sobre a dívida líquida| 6,71%| 8,27%|

9,31%

10. Parte do setor privado na divida a médio e longo prazos| 27,41%|

29,30%|

37,27%

11. Parte do setor privado na dívida a curto prazo| 98,37%| 87,62%|

99,92%

12. Parte do setor privado na dívida externa total| 41,11%| 45,09%|

49,16%

Fonte: Sobeet, n. 1, março de 1997. Elaborado a partir dos dados do

Banco

do Brasil (1996, estimativas).

A amplitude desses déficits e sua provável exacerbação são por

demais importantes para que se possa imaginar que só um impulso

conseqüente das exportações possa reabsorvê-los 25. Resta então como

única possibilidade de cobrir esses déficits, a de transformar a economia

em "economia

p. 211

cassino". Esta política teve um franco sucesso. Não só a necessidade de

financiamento foi satisfeita, como também aparece um acréscimo das

reservas.

Gráfico 8 - Entradas líquidas de capitais na Ásia

e na América Latina (milhões de dólares

americanos - taxa anual)

(A primeira linha refere-se aos capitais privados do respectivo país;

a segunda, aos capitais oficiais)

1980-90 | 1991 | 1992 | 1993 | 1994 | 1995 | 1996

Total| 12,9 | 52,5 | 81,3 | 99,1 | 78,7 | 77,7 | 149,8

13,8 | 12,8 | 19,8 | 13,2 | 13,8 | 33,8 | 0,9

Brasil| 3,8 | 2,5 | 9,1 | 9,9 | 9,1 | 31,8 | 35,4

1,0 | -1,4 | -0,5 | -1,2 | -0,7 | -0,7 | -1,8

México| 1,6 | 20,6 | 23,6 | 30,3 | 10,3 | -13,2| -13,5

2,1 | 2,4 | 2,0 | -0,9 | 0,3 | 24,5 | 10,0

Outros países da América Latina *| 0,8 | 5,0 | 17,6| 17,0 |18,0 | 7,6

| 21,1

2,7 | 0,6 | -0,4 | 3,9 | 1,2 | 1,1

| 1,8

___

* Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Venezuela.

Fonte: Bri, relatório anual 1997, p. 109.

Mas a manutenção e mesmo a alta das taxas de juros, dum lado, tomam

mais vulneráveis os bancos, principalmente abaixando em parte o valor de

seus ativos, incitando-os a conceder maus créditos e aumentando o risco

de inadimplência dos devedores (Mishkin, 1995; Goldstein Weatherstone,

1997) 26; doutro lado, eleva consideravelmente

p. 212

o custo dos empréstimos e incita a rever por baixo os projetos de

investimento por duas razões: uma ligada ao custo e a outra à

possibilidade de arbitrar em favor da compra de bônus do tesouro, mais

rentáveis do que o próprio investimento 27. Essa política de taxas de

juros fortes é, portanto, no conjunto um freio ao investimento -

contrariamente ao que ensinam os modelos inspirados no enfoque de

McKinnon-Shaw e onera consideravelmente o serviço da dívida interna dos

Estados. Isso explica que ela não pode ser seguida e que o diferencial

com as taxas q,e juros americanos se reduz, salvo quando ameaça a

especulação contra a moeda nacional.

Como regra geral, as taxas de juros elevadas, e sobretudo sua alta,

não impedem necessariamente o aumento dos empréstimos e principalmente

fazem crescer a parte dos não pagos no conjunto dos créditos outorgados.

A vulnerabilidade dos bancos, já fragilizados pela tão rápida

liberalização do mercado financeiro e pelo aumento dos créditos incertos,

cresce quando os depósitos não acompanham o mesmo ritmo do crescimento

das taxas de juros, e sua capitalização se torna mais premente quando

aparece a crise (Gavin - Haussman, 1995).

Ao contrário, quando as taxas de juros reais abaixam, como é o caso

desde 1996 no Brasil e no México, a vulnerabilidade dos Bancos diminui,

os encargos da dívida interna dos Estados se reduzem, mas o atrativo dos

capitais estrangeiros pode ser relativamente menos importante, sobretudo

se, paralelamente, as taxas de juros aumentam nos Estados

p. 213

Unidos e as bolsas dos países industrializados se tomam cada vez mais

lucrativas. A evolução das taxas de juros e da capitalização das bolsas,

assim como de sua ratio de dividendos pagos, não são, entretanto, os

únicos fatores que incitam a afluência de capitais (Calvo et alii, 1993,

Goldstein. - Weatherstone, 1997). Grandes espaços integrados, um

importante crescimento, embora longe do crescimento dos países asiáticos,

são propícios a melhorar as perspectivas de valorização do capital

produtivo e a incitar um impulso dos investimentos estrangeiros diretos.

Forçoso, porém, é constatar que a parte dos investimentos diretos, como

também dos créditos bancários, no conjunto das entradas de capitais, é

muito mais fraca do que nos países asiáticos. Pelo contrário, a parte dos

investimentos em papéis de crédito, tanto as ações como os bônus, é muito

mais elevada 28. A vulnerabilidade é maior, e basta sobrevir uma crise de

confiança, alimentada pela importância dos déficits e um certo pessimismo

quanto à capacidade dos governos em administrá-la, para que os capitais

fujam em massa (México, 1994) e apareça com toda força a fragilidade do

sistema bancário (Argentina, 1995).

No total este tipo de crescimento repousa sobre "o fio da navalha",

e sua durabilidade é problemática. Enquanto não se modificam as condições

que fundam tal crescimento e enquanto se preservam esse regime de

acumulação e esse tipo de inserção na divisão internacional do trabalho,

os riscos

p. 214

sistêmicos são grandes. A reviravolta da conjuntura devida às políticas

de austeridade estabelecidas após uma grande crise especulativa (México,

1994; Argentina, 1995) aumenta profundamente a pobreza e aniquila

brutalmente os raros progressos que puderam ser realizados nas primeiras

fases da retomada do crescimento. Os mais pobres se afundam ainda mais na

pobreza, outros se tomam pobres e uma parte importante das camadas médias

conhece uma brutal redução em seu poder aquisitivo, em razão da

diminuição da renda do trabalho e das obrigações de reembolsar sua dívida

que, como notamos, tinha a tendência de ser desmedida e às vezes indexada

ao câmbio do dólar. A crise financeira, inscrita na lógica da

liberalização brutal e não controlada das economias semi-industrializadas

latino-americanas, projeta-se na economia real sob forma de importantes

recessões e de flexibilização, de fato, duma grande fração da mão-de-

obra. Aumentam as demissões e diminui o poder aquisitivo.

2.2. O desenvolvimento de formas modernas da pobreza

A liberalização traz dois efeitos aparentemente contrários, mas de

fato complementares um do outro. Dum lado, ela acentua a convergência no

modo de acumular e de trabalhar com os países desenvolvidos; doutro, ela

acentua sua heterogeneidade. Esse aspecto paradoxal do crescimento numa

economia aberta foi sublinhado por Parvus, depois por Trotsk 29, no

começo deste século, mas também por alguns pensadores do desenvolvimento

na América Latina (Caio Prado Jr., C. Furtado, etc.) em suas análises que

tomam o

p. 215

contrapé dos estudos em termo de dualismo 30, e hoje por muitos

economistas (Thurow, 1996). Com a liberalização, estes dois aspectos

tendem a ser acentuados.

A convergência é muito fácil de conceber. A abertura das fronteiras

e o quase-desaparecimento das políticas de subvenção à produção, sejam

quais forem suas formas, acentuam a pressão internacional por definição.

Os produtos afetados pela concorrência internacional são mais numerosos

do que antes, com o aumento do grau de abertura da economia. A definição

desses produtos e a maneira de produzi-los são fortemente influenciadas

pelas imposições internacionais de normas e de custo. Em outras palavras,

é cada vez mais difícil opor-se à padronização dos produtos cada vez mais

numerosos, segundo características internacionais, e continuar produzindo

bens cujas especificidades seriam diferentes daquelas dominantes no

mundo. A produção dessas mercadorias é cada vez mais controlada pela

busca da competitividade e, mesmo que esta não se limite exclusivamente à

dimensão-custo,os custos unitários da mão-de-obra pesam

consideravelmente. A escolha das técnicas é então mais restrita do que

aquela que predominava

p. 216

quando a industrialização se expandia ao abrigo das fronteiras e da

proteção do Estado, e a obrigação de optar por tecnologias intensivas em

capital mais forte. É a adaptação a essa imposição interna brecha de

produtividade emprego industrial.

Essa busca absoluta de competitividade é feita nas piores

condições: obsolescência industrial, após a "década perdida" quase

ausência de uma política industrial, forte valorização da moeda nacional,

liberalização rápida do comércio exterior. É o que explica que a

utilização de novas tecnologias não basta para diminuir os custos e que

também é necessário limitar a progressão dos salários e até mesmo

diminuir a massa salarial. Os salários não evoluem, portanto,

contrariando o crescimento da produtividade do trabalho, contrariando

aqueles que esperavam do crescimento uma melhoria auto desigualdades se

acentuar.

Mais precisamente, a evolução do custo unitário depende

fundamentalmente de três variáveis: o crescimento da produtividade do

trabalho, a avaliação da taxa de câmbio e a evolução do índice de salário

real. A primeira variável cresce consideravelmente desde a saída a crise

por duas razões: a diminuição das capacidades de produção ociosa num

primeiro tempo, a adoção de técnicas modernas e de uma organização do

trabalho mais flexível, num segundo tempo. Entretanto, o nível médio da

produtividade do trabalho permanece muito aquém do da indústria

aproximando-se ao mesmo tempo em algumas indústrias de exportação. A

segunda variável atua negativamente sobre a evolução do custo unitário do

trabalho dos produtos do setor

p. 217

exposto. A avaliação da moeda é com efeito bem elevada 31 e as medidas

tomadas para sair da crise tomam muito difícil uma desvalorização, não

obstante necessária, da moeda. A terceira variável, os salários reais,

sofre o peso da insuficiência relativa do crescimento da produtividade -

em relação aos atrasos acumulados - e efeitos negativos sobre a

competitividade da forte avaliação da moeda. Isso explica que os salários

reais tenham podido regredir em muitos países (Argentina) ou evoluir

aquém do que teria permitido o aumento da produtividade. E é isso que

explica também que a despeito da modéstia da progressão dos salários, ou

até mesmo de seu recuo, o custo unitário do trabalho deflacionado do

preço bruto norte-americano tenha podido aumentar de maneira pronunciada

(Fenelliet et alii, 1976: 77). Dessas evoluções decorre a importância da

brecha comercial e a probabilidade de que, por outro lado, mantendo-se

iguais todas as coisas, os salários reais possam aumentar no setor

exposto de maneira significativa.

A tendência à convergência está acoplada a uma acentuada

heterogeneidade. A natureza dos empregos muda: a precariedade e

simultaneamente a intensidade do trabalho aumentam. Com o crescimento da

precariedade, tomam-se mais fortes entre os empregados, do que no passado

os temores de encontrarem novo emprego, em caso de demissão, nas mesmas

condições de salário e de trabalho. Noutras palavras

p. 218

e como se observa nos Estados Unidos (Wacquant, 1996, Freeman, 1995) e na

Grã-Bretanha (Grahl, 1996, Hutton, 1996) sobretudo, a flexibilidade

numérica (em nível do emprego) e a chamada flexibilidade funcional (em

nível da organização do trabalho) mudam não só as condições de trabalho,

mas também as maneiras de vivê-lo. O stress aumenta por causa das novas

condições de trabalho, e também porque o medo de perder tal trabalho e de

encontrar-se na pobreza são hoje mais fortes do que antes. Com a busca

duma maior flexibilidade do trabalho na empresa e de novas formas de

dominação deste, suas condições tendem a aproximar-se daquelas que

dominam nos empregos informais. Assiste-se então a um duplo movimento:

dum lado, com a democratização dos regimes políticos, os empregos

informais começam a beneficiar-se modestamente com algumas das prestações

(acesso aos benefícios) e se aproximam das vantagens ligadas aos empregos

formais; doutro lado, os empregos informais se informalizam com o aumento

da precariedade e da flexibilidade do trabalho.

A retomada do crescimento por si só não é suscetível à diminuição da

pobreza de maneira significativa, tanto em nível de sua amplitude como de

sua profundidade. Ela é muito profunda, extensa e o crescimento é

excludente, criando cada vez menos emprego; também repousa num regime de

acumulação, particularmente frágil e pobre em criação de empregos. A

pobreza que antes aumentava com a inflação, desenvolve-se quando o

crescimento não ultrapassa um limiar elevado. A nova inserção

internacional dessas economias e a maneira pela qual ela se realiza

tendem a ampliar a pobreza e a acentuar as desigualdades sociais. A

dinâmica desse regime de acumulação aumenta consideravelmente a

probabilidade de sérias crises financeiras, cujos efeitos sobre a pobreza

são e serão profundamente negativos.

p. 219

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Pierre Salama é professor na Universidade de Paris (Paris XIII).

O presente capítulo (Dês formes nouvelles de Ia pauvreté en Amérique

Latine) foi publicado como documento de trabalho pelo Centre d'Études dês

Dynamiques mternationales (Cedi-Greitd) em 1998.

Traduzido para o português por Lúcia Endlich Orth.

p. 222

NOTAS:

______

1. É surpreendente que, para demonstrar as relações entre eqüidade e

crescimento, a maioria dos testes toma períodos muito longos, por exemplo

1965 a 1990, nos quais se misturam fases de alta conjuntura (1965-1982) e

fases de forte depressão (a década perdida dos anos oitenta), e compõem

amostras de países e Banco Mundial, 1993).

2. Essas conclusões se oporiam assim à tese desenvolvida por Kuznets,

segundo a qual a distribuição da renda seguiria uma curva em U invertida.

No começo as desigualdades se acentuariam com o crescimento, uma vez que

os trabalhadores se deslocariam dos setores de fraca produtividade para

aqueles de produtividade mais elevada. Ou ainda às análises Kaldor, que

comparam o grau de desigualdade com a importância da poupança. Uma

argumentação das desigualdades deveria permitir deduzir fontes de

poupança suplementares (as camadas mais folgadas poupam mais do que as

que não o são) e, consecutivamente, mais investimento é crescimento.

p. 181

______

7. O Banco apresentava o crescimento da Coréia do Sul como um modelo de

liberalismo e subestimava profundamente o papel do Estado na atividade

econômica, tanto direto (empresas públicas) como indireto (política

industrial que se servia ao mesmo tempo do protecionismo, temporário e

seletivo, da ajuda à pesquisa e das condições de financiamento

particularmente eficazes).

8. V. Watanabe, S. (1997), onde é lembrado que, segundo as autoridades

japonesas, "o Banco deveria apresentar provas de pragmatismo: faria

melhor se incitasse os paises em desenvolvimento a limitar os riscos de

falência do poder público, em vez de desincentivar a execução de

políticas industriais" (p. 316). Sendo assim, é provável que, depois de

ter sido keynesiano, depois liberal, depois, enfim, liberal-pragmático, o

Banco Mundial mude de opinião sobre a necessidade duma política

industrial por causa do esgotamento da via liberal e em razão do jogo das

nomeações em sua direção.

p. 185

______

9. Não vamos analisar aqui as causas desses ímpetos hiperinflacionistas

(v. Salama - Valier, 1990). Basta notar apenas aqui a responsabilidade

das políticas de ajustamento estabelecidas, citando o relatório do PNUD

de 1996: "As políticas de ajustamento estabilizaram muitas vezes os

orçamentos desestabilizando a vida das pessoas" (p. 54).

p.187

______

10. É o que acontece quando são subscritos bônus do Tesouro indexados a

taxas que pretendem representar a inflação futura, como a taxa de câmbio

no mercado paralelo.

p. 189

______

11. Esses empregos formais e informais seriam o objeto dum desemprego

"keynesiano", visto que a flexibilidade se faria pelas quantidades,

enquanto que as empregadas domésticas, numa mesma situação de má

conjuntura, sofreriam um desemprego "clássico", porque a flexibilidade se

faria pelos preços. Notemos, entretanto, que a redução, às vezes

importante, da renda duma grande parte das camadas médias, acarretou uma

redução das horas de trabalho das empregadas domésticas e

conseqüentemente uma baixa de sua renda.

p. 192

______

12. O desemprego total se define como o desemprego aberto, ao qual se

acrescenta o desemprego chamado oculto, que vem da precariedade

(desempregos informais, isto é, os trabalhadores "sem carteira" e "os que

trabalham por conta própria", até um certo limiar de renda, que não

encontram emprego nessas atividades informais) e do desencorajamento.

13. Os economistas argentinos geralmente acrescentam a esse quadro as

demandas de empregos daqueles que, ainda que ocupados, não ganham o

suficiente e desejariam trabalhar mais horas. Em outubro de 1996, essas

demandas eram avaliadas em 22,3% contra 13,3 em outubro de 1990. Podemos

também acrescentar a demanda "não feita" pelos subocupados, avaliada

respectivamente nestas duas datas em 5,3% e 4,8% e, enfim, aqueles que

são "desocupados", mas que também desejam trabalhar mais, ou seja, 8,3% e

11,95%.

p. 198

______

14. Mais precisamente, quando o crescimento é elevado, a criação líquida

de empregos é o resultado de importantes destruições de empregos e de

criação em outros setores superiores a essas destruições. É dizer como,

de fato, a flexibilidade se acentua com o crescimento da mobilidade do

trabalho. Mas não são principalmente aqueles que perdem seu emprego os

que encontram um outro.

p. 200

______

15. Diversamente do período precedente, o emprego nas grandes indústrias

não encontra nas fases de expansão o nível atingido anteriormente. É mais

ou menos como se os períodos de recessão provocassem uma baixa do emprego

c que acontecesse um fenômeno de histerese por ocasião do retorno do

ciclo.

p. 202

______

16. É duplo o efeito dessas importações. Negativo, porque elas substituem

a produção local, que não é capaz de competir com o produto importado. As

demissões aumentam com pouca perspectiva de nova classificação. Positiva,

porque esses novos bens de equipamento, incorporando muitas vezes

tecnologia de ponta, aumentam sensivelmente a produtividade do trabalho e

participam na reestruturação do sistema produtivo, trazendo mais eficácia

econômica.

17. Colocando de lado os professores e os pesquisadores, as camadas

médias tiveram níveis de renda, de qualificação igual, semelhantes

àqueles das camadas correspondentes nos paises desenvolvidos. Com um Pib

per capita bem mais fraco, isto significa matematicamente que a

distribuição da renda, particularmente desigual, bem mais do que nos

paises desenvolvidos e nos países asiáticos. Nestes últimos, de

qualificação igual, os engenheiros tinham e têm renda bem inferior do que

na América Latina ou nos paises desenvolvidos.

p. 203

______

18. Ver nossa contribuição na obra publicada sob a direção de F. Chesnais

(1996).

p. 204

______

19. Quando a melhoria da produtividade do trabalho só acontece no setor

dos bens de consumo (progresso técnico de tipo capital using no sentido

de J. Robinson, o jogo é, em suma, nulo quando as taxas de crescimento da

produtividade do trabalho e da acumulação são iguais. Quando o progresso

técnico acontece no setor dos bens de produção (no assim chamado capital

saving), o valor dos bens de equipamento abaixa e o crescimento da taxa

de acumulação pode ser inferior à da produtividade do trabalho para que o

emprego seja mantido (para uma apresentação completa dessas relações, v.

Salama, P. - Tran Hai Hoc, 1993). O "catching up" das técnicas com o

impulso das importações de bens de equipamento e a valorização da moeda

permitem concluir que o progresso técnico dominante é hoje do tipo

capital saving. A taxa de acumulação continua, porém, insuficientemente

elevada para que o saldo líquido de criação de emprego seja positivo. É

menos negativo do que se o progresso técnico tivesse sido orientado

principalmente para o setor dos bens de consumo.

p. 205

______

20. Os empregos informais não são uma "esponja" que permite absorver o

excedente de mão-de-obra (Lautier, 1994), salvo no que diz respeito aos

empregos de estrita sobrevivência. Estes traduzem ao mesmo tempo a

impossibilidade de receber um abono-desemprego e de encontrar emprego.

Por conseguinte, eles são de alguma forma uma informalização do informal

e traduzem a escalada da pobreza.

p. 206

______

21. É na Argentina que a amplitude das flutuações foi particularmente

importante nos anos noventa. Provavelmente ela foi devida à instauração

duma moeda única (com o dólar), uma vez que essa medida neutralizou uma

série de instrumentos da política econômica, Paradoxalmente, a

experiência Argentina poderia prefigurar, então, o que poderia acontecer

depois na Europa, se fosse instaurada a moeda única, com um banco central

independente dos poderes políticos e uma ausência de coordenação das

políticas orçamentárias e industriais.

p. 208

______

22. O processo ainda não é nítido, salvo no Chile. Ele é um pouco menos

na Argentina, onde, porém, as exportações de produtos energéticos, de

cereais, de produtos da criação e agroindustriais tomaram um certo

impulso, mas ao mesmo tempo a exportação da indústria automobilística (um

dos raros setores em que foi preservada uma política industrial) se opõe

à idéia de reprimarização completa, da inserção internacional da

Argentina no comércio mundial.

23. Esta avaliação tem fundamentalmente duas causas: a primeira resulta

do próprio sucesso das políticas de estabilização dos preços. Com efeito,

um dos meios utilizados foi ancorar a taxa de câmbio nominal ao dólar,

liberalizando ao mesmo tempo as transações. A rápida baixa dos preços e a

manutenção dessa taxa de câmbio nominal traduziu-se então por uma

avaliação em termos reais dessa taxa. A segunda razão vem da afluência

maciça de capitais, que não só permitiu cobrir o conjunto dos déficits,

mas também um aumento das reservas internacionais dos bancos centrais.

p. 209

______

24. o exemplo do México é instrutivo. A liberalização financeira foi

particularmente importante e rápida: em dezembro de 1989, a parte dos

ativos detidos pelos estrangeiros na bolsa de valores era de 3,04%. Ela

passou a 9,07% um ano depois, a 18,23% em dezembro de 1991, 26,66% em

dezembro de 1992 e 27,3% em dezembro de 1993. Em dezembro de 1994, ela

era ainda de 26,49%, se bem que em valor absoluto baixou 33,7% em relação

ao mês de novembro do mesmo ano. A queda prosseguiu com o desenrolar da

crise, ao mesmo tempo em que a bolsa caía fortemente, mas a porcentagem

dos valores detidos pelo estrangeiro era sempre ligeiramente superior a

um quarto da capitalização da bolsa. Para maiores detalhes e análise

desta crise, v. Griffith-Jones (1996).

p. 210

______

25. Colocada de lado a exceção chilena, o comportamento dos empresários é

ainda muito rentista e a política industrial hoje muito embrionária e

desacreditada para esperar um progresso sensível nas exportações que

possa permitir cobrir o déficit comercial. Mas é verdade que a própria

dinâmica da integração mais importante na América Latina, o Mercosul, é

propícia a modificar o contexto macroeconômico e os comportamentos. Sem

entrar em detalhes, pois não é este o objeto de nosso estudo, observamos

que o progresso das transações comerciais foi muito mais rápido (um

triplo do valor das transações em cinco anos) do que a progressão das

exportações para o resto do mundo, e que o Brasil e a Argentina são hoje

muito mais dependentes um do outro do que eram há apenas cinco ou seis

anos. Essa nova solidariedade de interesses pode ajudar a consolidar o

Mercosul como mercado comum, muito mais do que como zona de livre câmbio,

e opor-se assim aos desejos da América do Norte, como já se pode observar

na conferência de Belo Horizonte (1997). Essa nova situação é favorável à

retomada duma política industrial e a um aumento da taxa de investimento

em seu conjunto.

p. 211

______

26. Limitando-se exclusivamente aos bens domésticos, observa-se que as

camadas médias fazem empréstimos tanto a taxas de juros elevadas com um

grande risco de não poder pagar, se as perspectivas quanto à evolução de

sua renda não se confirmarem, como a taxas de juros menores mas cujo

reembolso está indexado ao dólar, como foi o caso, por exemplo, no

México. O endividamento e o serviço dessa dívida aumentam fortemente,

tomando-se quase impossível honrar o compromisso, quando a moeda é

brutalmente desvalorizada.

p. 212

______

27. Existe uma outra possibilidade, mas reservada às grandes empresas e

aos bancos, que consiste em emprestar diretamente no mercado estrangeiro

a taxas menores, mas arcando com o risco do câmbio.

p. 213

______

28. De 1990 a 1993, a parte dos investimentos em papéis de crédito,

compreendendo aqui a compra de ações mas também de notas e de bônus;

eleva-se a 67% do conjunto das entradas de capitais no México, 37% na

Argentina, 22% no Chile, mas só 6% na Tailândia. O investimento direto,

inclusive as privatizações, eleva-se a 21 % do total no México, 42% na

Argentina, 31 % no Chile, 20% na Tailândia. Os créditos concedidos, entre

os quais os dos bancos, não passam de 12% do conjunto das entradas de

capitais no México, 21% na Argentina, 47% no Chile e 75% na Tailândia (v.

Griffith-Jones, 1996: 6).

p. 214

______

30. Uma palavra para lembrar que, segundo essas análises, o avanço para a

modernidade não se faz por simples absorção das formas antigas ou até

arcaicas de trabalhar. Bem ao contrário, com muita freqüência as formas

antigas são o produto dum avanço dessas formas modernas. Pôde-se assim

mostrar que aquilo que aparece como feudal era o resultado duma

regressão, por razões históricas diversas, de formas de produção que

puderam dominar no passado. Noutras palavras, o "feudalismo" sucede às

formas mercantis do capitalismo e não o precede, como é o caso na Europa.

É este enfoque que permite compreender que o salariamento possa ser

incompleto por ocasião do impulso do capitalismo, e que ele seja ao mesmo

tempo o produto duma troca de valor e duma troca de favor (Mathias,

1986). Nessa combinação de trocas, a segunda continua tendo uma

importante força, se bem que vem declinando com a generalização das

relações mercantis, e se traduz pela manutenção persistente do

clientelismo nas transações comerciais.

p.216

______

31. Esta avaliação tem fundamentalmente duas causas. A primeira resulta

do próprio sucesso das políticas de estabilização dos preços. Com efeito,

um dos meios utilizados foi ancorar a taxa de câmbio nominal ao dólar,

liberalizando ao mesmo tempo as transações. A rápida baixa dos preços e a

manutenção dessa taxa de câmbio nominal traduziu-se então por uma

avaliação em termos reais dessa taxa de câmbio. A segunda razão vem da

entrada maciça de capitais que não só permitiu cobrir o conjunto dos

déficits, mas também levou ao aumento das reservas internacionais dos

bancos centrais.

p. 218

7 – Immanuel Waüerstein

A reestruturação capitalista e o sistema-mundo

Creio que nos encontramos num momento de bifurcação fundamental no

desenvolvimento do sistema-mundo. Acho, porém, que nós o encaramos como

se se tratasse de transição corrente no decurso de uma evolução quase

predestinada. O que devemos fazer é "impensar" não apenas o

desenvolvimentismo neoclássico tradicional, como também o

desenvolvimentismo de seus críticos de esquerda, cujas teses ressurgem

regularmente apesar de todas as suas rejeições, mas na realidade

compartilham da mesma epistemologia.

Vou elaborar duas teses principais nesta exposição. Tese n. l: É

absolutamente impossível a América Latina se desenvolver, sejam quais

forem as políticas governamentais,porque o que se desenvolve não são os

países. O que se desenvolve é somente a economia-mundo capitalista e essa

economia-mundo é de natureza polarizadora. Tese n.2: A economia-mundo

capitalista se desenvolve com tanto sucesso que está destruindo-se, e por

isso nos defrontamos com uma bifurcação histórica que aponta para a

desintegração deste sistema-mundo, sem que nos seja oferecida garantia

alguma de melhoria na nossa existência social. Apesar de tudo, acho que

trago para vocês uma mensagem de esperança. Vejamos:

Comecemos pela Tese n. l. As forças dominantes do sistema-mundo têm

sustentado, pelo menos desde os começos

p. 223

do século XIX, que o desenvolvimento econômico foi um processo muito

natural, que tudo o que é preciso para sua realização é libertar as

forças produtivas e permitir aos elementos capitalistas crescerem

rapidamente, sem empecilhos. Evidentemente, também foi essencial a

vontade. Quando o estado francês começava a reconstruir a vida econômica

das suas colônias no início do século XX, essa política era chamada “Ia

mise en valeur dês territoires” ("a valorização dos territórios"). Não é

preciso dizer mais nada. Antes, os territórios não valiam nada, e depois

(com o desenvolvimento imposto pelos franceses) valem alguma coisa.

A partir de 1945, a situação geopolítica mudava fundamentalmente com

o alcance político do mundo não-"europeu" ou não-ocidental. Politicamente

o mundo não-ocidental se dividia em dois setores, o bloco comunista (dito

socialista) e o outro, denominado Terceiro Mundo. Do ponto de vista do

Ocidente, e sobretudo, claro, dos Estados Unidos, o bloco comunista foi

deixado sozinho, para sobreviver economicamente como bem pudesse. E esse

bloco escolheu um programa estatal de rápida industrialização com o

objetivo de "ultrapassar" o Ocidente. Khrutchev prometia "enterrar" os

Estados Unidos no ano 2000.

A situação no Terceiro Mundo foi bem diferente. Nos primeiros anos

depois de 1945, os Estados Unidos concentraram todos os seus esforços em

ajudar a Europa Ocidental e o Japão a se "reconstruírem". No princípio,

ignoraram mormente o Terceiro Mundo, com exceção parcial da América

Latina, campo de preferência dos Estados Unidos desde muito antes. O que

os Estados Unidos pregavam na América Latina era a tradicional cantilena

neoclássica: abrir as fronteiras econômicas, permitir o investimento

estrangeiro, criar a

p. 224

infra-estrutura necessária para fomentar o desenvolvimento, concentrar-se

em atividades para as quais esses países têm "vantagem comparativa". Uma

nova literatura científica começava a aparecer, nos Estados Unidos, sobre

o "problema" do desenvolvimento dos países subdesenvolvidos.

Os intelectuais da América Latina foram muito recalcitrantes contra

essa pregação. Reagiram com bastante ferocidade. A primeira reação

importante foi a de criar uma nova instituição internacional, a Cepal,

presidida por Raul Prebisch, cuja própria criação foi contestada

energicamente pelo governo norte-americano. A Cepal desmentia os

benefícios duma política econômica de fronteiras abertas e sustentava em

contraposição um papel regulador dos governos a fim de reestruturar as

economias nacionais. A principal recomendação foi a de promover a

substituição de importações através da proteção das indústrias nascentes,

política que foi amplamente adotada.Quando resumimos as ações sugeridas

pela Cepal, vemos que o essencial foi que se o Estado seguisse uma

política sensata poderia garantir o desenvolvimento nacional e, como

conseqüência, um incremento considerável no produto interno bruto per

capita.

Até certo ponto, as recomendações da Cepal foram seguidas pelos

governos latino-americanos e efetivamente houve uma melhoria econômica,

embora limitada, nos anos cinqüenta e sessenta. Sabemos hoje que essa

melhoria não perdurou e foi, em primeiro lugar, conseqüência da tendência

geral das atividades econômicas em nível mundial no período Kondratieff-

A. Em todo caso, a melhoria da situação média na América Latina parecia

insignificante para a maioria dos intelectuais latino-americanos,que

decidiram radicalizar a linguagem e as análises da Cepal. Chegamos assim

à

p. 225

época dos dependentistas, primeira versão - entre outros: Dos Santos,

Marini, Caputo, o Cardoso dos anos 60 e Frank, assim como Amin fora da

América Latina.

Os dependentistas achavam que tanto as análises como os remédios

preconizados pela Cepal eram muito tímidos. Dum lado, pensavam que, para

os países periféricos se desenvolverem, seus governos deviam ir muito

além da simples substituição de importações; deveriam, nas palavras de

Amin, desligar-se definitivamente da economia-mundo capitalista -

segundo, implicitamente, o modelo dos países comunistas.

Doutro lado, as análises dos dependentistas foram muito mais

políticas. Incorporaram aos seus raciocínios as situações políticas

presentes em cada país e no sistema-mundo.Consideravam conseqüentemente

as alianças existentes e potenciais e, por fim, os obstáculos efetivos a

uma reestruturação econômica. Eles entendiam, é claro, que o papel das

sociedades transnacionais, dos governos ocidentais, do FMI, do Banco

Mundial e todos os outros esforços imperialistas, eram negativos e

nefastos. Mas ao mesmo tempo, e com igual paixão, se não ainda mais

vigorosa, atacavam os partidos comunistas latino-americanos e, por trás

deles, a União Soviética. Eles diziam que a política defendida por esses

partidos, uma aliança entre os partidos socialistas e os elementos

progressistas da burguesia, eqüivalia afinal às recomendações dos

imperialistas, no sentido do fortalecimento do papel político e social

das classes médias, e uma tal política não poderia concretizar uma

revolução popular.Em suma, aquilo não era revolucionário nem eficaz, se o

objetivo era uma transformação social profunda.

p. 226

Os dependentistas escreviam num momento de euforia da esquerda

mundial: a época do Che e do foquismo, da revolução mundial de 1968, da

vitória dos vietnamitas, dum maoísmo furioso que expandia-se depressa

através do mundo. Mas o Oriente já não era tão vermelho quanto se

pretendia. Tudo isso não levava em consideração os começos de uma fase

Kondratieff-B. Ou melhor, a esquerda latino-americana e mundial achava

que o impacto duma estagnação da economia-mundo afetaria em primeiro

lugar as instituições políticas e econômicas que sustentam o sistema

capitalista. Na realidade, o impacto mais imediato recaiu sobre os

governos ditos revolucionários no Terceiro Mundo e no bloco comunista. A

partir da década de 70, todos esses governos passaram por dificuldades

econômicas e orçamentárias que não podiam resolver,mesmo parcialmente,

sem comprometer suas políticas estatais tão propaladas e suas retóricas

tão afagadas. Começa o recuo generalizado.

No plano intelectual foi apresentado o tema do desenvolvimento

dependente (Cardoso dos anos 70, e outros). Ou seja: um pouco de

paciência, companheiros; um pouco de sabedoria na manipulação do sistema

existente, e poderemos achar algumas possibilidades intermediárias que

são ao menos um passo na direção certa. O mundo científico e jornalístico

inaugurava o conceito dos Nic's (New Industrial Countries). E os Nic's

eram propostos como modelos a se imitar.

Com a estagnação mundial, a derrota dos guevarismos e o recuo dos

intelectuais latino-americanos, os poderosos não mais precisavam das

ditaduras militares, não muito mais em todo caso, para frear os

entusiasmos esquerdistas. Olé!, vem aí a democratização. Sem dúvida,

viver num país pós-ditadura militar era imensamente mais agradável do que

viver

p. 227

nos cárceres e no exílio. Contudo, olhando com mais cuidado, os "vivas" à

democratização na América Latina foram um tanto exagerados. com essa

democratização parcial (incluídas as anistias para os carrascos) vinham

os ajustes à Ia FMI e a necessidade de os pobres arrocharem os cintos

ainda mais. E não podemos deixar de reparar este fato: se nos anos 70 a

lista dos principais Nic's incluía normalmente o México e o Brasil, ao

lado de Coréia e Taiwan, nos anos 80, México e Brasil desapareciam dessas

listas, deixando sozinhos os quatro dragões da Ásia Oriental.

Veio depois o choque da queda dos comunismos. O recuo dos anos 70 e

80 virou fuga desordenada nos anos 90. Grande parte dos esquerdistas de

ontem viravam arautos do mercado e os que não seguiam esse caminho

procuravam ansiosamente por trilhas alternativas. Eles rejeitavam,

certamente, os senderos luminosos, mas não queriam renunciar à

possibilidade de alguma luminosidade, qualquer que fosse. Infelizmente,

não foi fácil dar com ela.

Para não desabarmos diante do júbilo da direita internacional

ressuscitada, que delicia-se com a confusão das forças populares em toda

parte, devemos analisar com novos olhos, ou ao menos novamente abertos, a

história do sistema-mundo capitalista nos últimos séculos. Qual o

problema principal dos capitalistas num sistema capitalista? A resposta é

clara: individualmente, otimizar seus benefícios, e, coletivamente,

assegurar a acumulação contínua e incessante de capital. Existem certas

contradições entre esses dois objetivos, o individual e o coletivo, mas

não vou discutir isso aqui. Limitar-me-ei ao objetivo coletivo. Como

concretizá-lo? É menos óbvio do que se costuma achar. Os benefícios são a

diferença entre as rendas dos produtores e os custos de produção.

Evidentemente, ao

p. 228

ampliar-se a brecha entre ambos, aumentam os benefícios. Logo, se os

custos diminuem, aumentam-se os benefícios? É o que parece, desde que

isso não afete o volume de vendas. Mas, sem sombra de dúvida, se os

custos são diminuídos, talvez diminuam as rendas dos compradores em

potencial. Por outro lado, se aumentam os preços de venda, aumentam os

benefícios? É o que parece, desde que isso não afete o volume de vendas.

Mas, se os preços aumentam, os compradores em potencial podem buscar quem

venda mais barato, se houver. São decisões delicadas, é claro!

Esses não são, além do mais, os únicos dilemas. Existem duas

variedades principais de custos para os capitalistas: os custos da força

de trabalho (inclusive a força de trabalho que entra em todos os insumos)

e os custos de transações. Mas aquilo que reduz os custos da força de

trabalho poderia aumentar os custos de transações,e vice-versa. Trata-se,

essencialmente, duma questão de localização. Para minimizar os custos das

transações é preciso concentrar as atividades geograficamente,ou seja, em

zonas com altos custos de força de trabalho. Para reduzir os custos da

força de trabalho é conveniente dispersar as atividades produtivas, mas é

inevitável que isso afete negativamente os custos de transações.

Portanto, há pelo menos 500 anos os capitalistas deslocam seus centros de

produção de cá para lá, a cada 25 anos mais ou menos, em correlação

básica com os ciclos de Kondratieff. Nas fases A, predominam os custos de

transações e há centralização, e, nas fases B, predominam os custos de

força de trabalho e verifica-se a fuga de fábricas.

O problema fica ainda mais complicado. Não basta ganhar os

benefícios. É preciso fazer o necessário para preservá-los. São os custos

de proteção. Proteção contra quem e

p. 229

contra quê? Contra os bandidos, é claro. Mas também, e por certo mais

importante, contra os governos. Não é tão óbvio assim de que modo

proteger-se contra os governos quando se é capitalista de nível

considerável, porque necessariamente um tal capitalista lida com

múltiplos governos. Poder-se-ia defender contra um governo fraco (onde se

localizam forças de trabalho baratas) por meio da renda (coletiva, isto

é, impostos; e individual, isto é, o suborno) e/ou pela forte influência

dos governos centrais sobre os governos fracos, mas por esta última os

capitalistas têm de pagar uma outra renda. Ou seja, a fim de reduzirem a

renda periférica, devem pagar uma certa renda central. Para proteger-se

contra o roubo dos governos, devem sustentar governos financeiramente.

Finalmente, para realizarem lucros maiores e não menores, os

capitalistas precisam de monopólios, pelo menos monopólios relativos, em

certos recantos da vida econômica,por algumas décadas. E como obter esses

monopólios? Claro que toda monopolização exige um papel fundamental dos

governos, seja legislando ou decretando, seja impedindo outros governos

de legislarem ou decretarem. Doutro lado, os capitalistas devem criar os

canais culturais que favoreçam tais redes monopolísticas, e para isso

necessitam do apoio dos criadores e sustentadores de padrões culturais.

Tudo isso resulta em custos adicionais para os capitalistas.

Apesar disso tudo - ou talvez por causa disso tudo - é possível lucrar

magnificamente, como se pode verificar estudando a história do sistema-

mundo capitalista desde seus primórdios. Entretanto, no século XIX surgia

uma ameaça a essa estruturação, que podia derrubar o sistema.Com uma

produção crescentemente centralizada, emergia a ameaça das "classes

perigosas", sobretudo na Europa Ocidental e na

p. 230

primeira metade do século XIX. Na linguagem da Antigüidade, que foi

introduzida no nosso arcabouço intelectual pela Revolução Francesa,

falamos do problema do proletariado.

Os proletariados da Europa Ocidental começaram a ser militantes na

primeira metade do século XIX e a reação inicial dos governos foi

reprimi-los. Nessa época o mundo político estava dividido principalmente

entre conservadores e liberais, entre os que rechaçavam totalmente os

valores da Revolução Francesa e os que procuravam,em meio a um ambiente

hostil, recuperar sua pujança para continuarem na construção dum estado

constitucional, laico e reformista. Os intelectuais de esquerda,

denominados democratas, republicanos, radicais, jacobinos, ou às vezes

socialistas, não passavam de pequeno bando.

Foi a revolução "mundial" de 1848 que serviu como choque para as

estruturas do sistema-mundo. Ela mostrou duas coisas. A classe operária

era verdadeiramente perigosa e podia provocar a degringolada do

funcionamento do sistema. Conseqüentemente, não era prudente ignorar

todas as suas reivindicações. Por outro lado, a classe operária não era

forte o bastante para fazer o sistema cair corn sublevações quase

espontâneas. Isto é, o programa dos reacionários era autodestrutivo, mas

também o foi o programa dos partidários de conspirações esquerdistas. A

conclusão à direita e à esquerda foi essencialmente centrista. A direita

entendia que por certo algumas concessões deveriam ser feitas face aos

reclamos populares. E a esquerda nascente entendia que teria de

organizar-se para uma luta política longa e difícil a fim de chegar ao

poder. Entravam em cena o conservadorismo moderno e o socialismo

científico. Sejamos claro: estes são ou

p. 231

chegaram a ser duas alas, dois avatares do liberalismo reformista,

intelectualmente já triunfante.

A construção do estado liberal "europeu" - europeu em sentido amplo

- foi o principal fato político do século XIX e a contrapartida essencial

da já consumada conquista européia do mundo inteiro, baseada no racismo

teorizado. Eu chamo isso de institucionalização da ideologia liberal como

geocultura da economia-mundo capitalista.O programa liberal para os

estados do centro, estados nos quais a ameaça das classes perigosas

parecia iminente, sobretudo no período 1848-1914, foi tríplice. Primeiro,

conceder o sufrágio progressivamente a todo mundo. A lógica era que o

voto satisfaria o desejo de participação, criando nos pobres um senso de

pertencerem à "sociedade", e assim eles não exigiriam muito mais.

Segundo, aumentar progressivamente a renda real das classes mais baixas

através do bem-estar estatal. A lógica era que os pobres ficariam tão

contentes por não mais viverem na indigência, que aceitariam continuar

mais pobres do que as classes superiores.Os custos dessas transferências

de mais-valia seriam menores do que os custos de insurreições e, de

qualquer modo, seriam pagos pelo Terceiro Mundo. E, terceiro,criar a

identidade nacional e também transnacional branco-européia. A lógica era

que as lutas de classes seriam substituídas pelas lutas nacionais e

globais raciais e destarte as classes perigosas dos países do centro

ficariam no mesmo lado que suas elites.

Temos de admitir que esse programa liberal foi um enorme sucesso. O

Estado liberal conseguiu domar as classes perigosas no centro, isto é, os

proletariados urbanos - inclusive aqueles que estavam bem organizados,

sindicalizados e politizados. O célebre consentimento dos proletariados

às políticas

p. 232

nacionais de guerra em 1914 é a prova mais evidente do fim da ameaça

interna para as classes dominantes.

No entanto, no exato momento em que esse problema era resolvido,

surgia para os poderosos uma outra ameaça de outras classes perigosas, as

classes populares do Terceiro Mundo. A revolução mexicana de 1910 foi um

sinal importante, mas certamente não o único. Pensemos nas revoluções no

Afeganistão, na Pérsia e na China. E pensemos na revolução de libertação

nacional russa, que foi essencialmente uma revolução por pão, por terra,

mas acima de tudo pela paz, isto é, com o intuito de abandonar uma

política nacional que servia principalmente aos interesses das grandes

potências do Ocidente.

Caberia dizer que todas essas revoluções, inclusive a mexicana,

foram ambíguas? Certo, mas não existem revoluções não-ambíguas. Caberia

dizer que todas essas revoluções,inclusive a mexicana, foram finalmente

recuperadas? Certo, mas não existem revoluções nacionais que não tenham

sido reintegradas ao seio deste sistema-mundo capitalista.Não é esse o

ponto.

Do ponto de vista dos poderosos do mundo, a possível sublevação

global dos povos periferizados e desatendidos constituía-se em grave

ameaça à estabilidade do sistema,pelo menos tão grave quanto a possível

sublevação dos proletariados europeus. Eles precisavam tomar consciência

do problema e decidir como fazer-lhe frente. Especialmente porque os

bolcheviques na Rússia apresentavam-se, aos olhos da esquerda

internacional, como um movimento de volta para uma postura

verdadeiramente anti-sistêmica.Os bolcheviques afirmavam que a política

de "centrificação" dos

p. 233

socialdemocratas devia ser descartada. Eles queriam liderar uma

sublevação global renovada.

O debate direita-centro em torno do método para combater as classes

perigosas se repetia. Como fez no caso dos proletariados europeus na

primeira metade do século XIX, a direita mais uma vez favorecia a

repressão, mas dessa feita na forma racista-popular (ou seja, o

fascismo). O centro favorecia a reforma recuperadora. O centro foi

encarnado por dois líderes sucessivos nos Estados Unidos, Woodrow Wilson

e Franklin Delano Roosevelt, que adaptaram as táticas do liberalismo do

século XIX ao novo cenário mundial. Woodrow Wilson proclamou o princípio

da autodeterminação dos povos. Esse princípio foi o equivalente global do

sufrágio nacional. Uma pessoa,um voto; um povo, um país soberano. Como no

caso do sufrágio, não se cogitava dar tudo a todos imediatamente. Para

Wilson, essa foi, mais ou menos, a saída para a desintegração dos

impérios derrotados austro-húngaro, otomano e russo. É óbvio que não

tentou aplicar o princípio no Terceiro Mundo, pois foi o próprio Wilson

quem interveio no México para vencer Pancho Villa. Mas em 1933, com a

política de boa vizinhança, Roosevelt incluiu, ao menos teoricamente, a

América Latina. E na Segunda Guerra Mundial estendeu a doutrina aos

impérios do oeste europeu em desintegração, aplicando-a primeiro na Ásia

e mais tarde na África e no Caribe.

Além disso, quando Roosevelt incluía em suas Quatro Liberdades "a

liberdade da necessidade" (freedom from want), falava em redistribuição

da mais-valia. Mas ele não foi muito explícito. Alguns anos mais tarde,

seu sucessor Truman proclamou no seu discurso inaugural quatro

prioridades nacionais. A única que recordamos é o célebre ponto

p. 234

quatro, que dizia: os Estados Unidos devem "deslanchar um programa novo e

audacioso" de ajuda aos países "subdesenvolvidos". Começou então o que

viria a ser o equivalente do estado de bem-estar social em nível

nacional, isto é, o desenvolvimento do Terceiro Mundo através de um

keynesianismo mundial.

Esse programa liberal mundial patrocinado pelos Estados Unidos, poder

hegemônico, foi também um enorme sucesso. Suas razões remontam ao

Congresso de Baku, em 1920, convocado pelos bolcheviques. Quando Lênin e

os outros viram que era impossível impulsionar os proletariados europeus

para uma verdadeira virada à esquerda,decidiram não esperar por Godot.

Voltaram-se para o Oriente, para os movimentos de libertação nacional do

Terceiro Mundo como aliados para a sobrevivência do regime soviético. As

revoluções proletárias eram substituídas eficazmente pelas revoluções

antiimperialistas. Mas com isso eles aceitaram o essencial da estratégia

liberal-wilsoniana.O antiimpenalismo foi um vocabulário mais ostentado e

mais impaciente do que a própria autodeterminação dos povos. A partir

desse momento, os bolcheviques transformaram-se na ala esquerda do

liberalismo global. com a Segunda Guerra Mundial, Stáhn prosseguiu nessa

rota ainda mais além. Em Yalta, aceitou um papel limitado e consagrado no

seio do sistema que os Estados Unidos pretendiam criar no período pós-

guerra. E quando nos anos cinqüenta, e depois, os soviéticos pregavam a

"construção socialista"

desses países, no fundo utilizavam um vocabulário mais ostentatório e

impaciente para o mesmo conceito de desenvolvimento dos países

subdesenvolvidos, pregado pelos Estados Unidos. E quando, na Ásia e na

África, uma colônia após outra foi conseguindo a sua independência,

p. 235

com lutas mais ou menos fáceis, foi com o consentimento talvez oculto e

até prudente, embora importante, dos Estados Unidos.

Quando digo que a estratégia liberal mundial foi um imenso sucesso,

penso em duas coisas. Primeira, entre 1945 e 1970, na grande maioria dos

países do mundo, os movimentos herdeiros dos temas da velha esquerda do

século XIX alcançaram o poder, utilizando diversos rótulos: comunista, em

torno da União Soviética; movimentos de libertação nacional, na África e

na Ásia;socialdemocrata, na Europa Ocidental; populista, na América

Latina. Segunda, o resultado do fato de tantos movimentos da velha

esquerda terem alcançado o poder estatal foi uma euforia enfraquecedora

e, ao mesmo tempo, também o ingresso de todos esses movimentos na máquina

do sistema histórico capitalista. Deixaram de ser anti-sistêmicos e

passaram a ser pilares do sistema sem deixar de gargarejar uma linguagem

esquerdista, desta vez com língua de madeira (langue de bois). Esse

sucesso, portanto, foi mais frágil do que pensavam os poderosos, e em

todo caso não foi tão relevante quanto a recuperação da classe operária

branca-ocidental. Houve duas diferenças fundamentais entre as situações

nacionais dos países do centro e do sistema-mundo globalmente. O custo

duma distribuição nacional ampliada da mais-valia aos operários

ocidentais não foi muito grande como porcentagem do total mundial e pôde

ser pago em grande parte pelas classes populares do Terceiro Mundo. Pelo

contrário, uma redistribuição significativa em benefício das populações

do Terceiro Mundo teria de ser paga necessariamente pelos poderosos, e

isso teria limitado seriamente as possibilidades de acumulação de capital

no futuro. Por outro lado, foi impossível lançar mão do re-

p. 236

curso do racismo para integrar os povos de cor no sistema-mundo. Se o

mundo todo era considerado "nós", quem ia ser o outro, alvo de rejeição e

desprezo? O desprezo racial para fora tinha sido um elemento fundamental

na construção da lealdade dos operários de sangue privilegiado para com

suas nações. Mas desta vez não existia um Terceiro Mundo para o Terceiro

Mundo.

O ano de 1968 assinalou o começo dum rápido desmoronar de tudo o que

os poderosos erigiram no sistema-mundo com a geocultura liberal depois de

1945. Dois elementos concorriam. O crescimento fenomenal da economia-

mundo atingia seus limites e íamos entrar para a fase B do nosso atual

ciclo Kondratieff. Politicamente, chegáramos ao cume dos esforços anti-

sistêmicos mundiais: Vietnã, Cuba, o comunismo com rosto humano na

Tchecoslováquia, o movimento do poder negro nos Estados Unidos, o início

da revolução cultural na China, e tantos outros movimentos não previstos

nos anos cinqüenta. Tudo isso culminava nas revoluções de 1968,

revoluções sobretudo estudantis, mas não exclusivamente, em muitos

países.

Vivemos depois as conseqüências da ruptura histórica gerada por essa

segunda revolução mundial, uma ruptura que teve sobre as estratégias

políticas um impacto tão grande quanto o da primeira revolução mundial,

que foi aquela de 1848. É claro que os revolucionários perderam no

imediato. Os múltiplos incêndios impressionantes pelo mundo todo, durante

três anos, extinguiram-se para acabar na criação de várias pequenas

seitas matizastes, que logo feneceram.

No entanto, 1968 deixou feridas e duas vítimas agonizantes: a ideologia

liberal e os movimentos da velha esquerda.

p.237

Para a ideologia liberal, o golpe mais sério foi a perda de seu papel

como única ideologia imaginável da modernidade racional. Entre 1789 e

1848, o liberalismo já existia, mas apenas como uma ideologia possível,

confrontado por um conservadorismo duro e um radicalismo nascente. Entre

1848 e 1968, a meu ver, como acabo de afirmar, o liberalismo chegou a ser

a geocultura do sistema-mundo capitalista. Os conservadores e os

socialistas - ou radicais - tornaram-se avatares do liberalismo. Depois

de 1968, conservadores e radicais reassumiram suas atitudes anteriores a

1848, negando a validez moral do liberalismo.

A velha esquerda, comprometida com o liberalismo, fez esforços corajosos

para mudar de pele, adotando um verniz de nova esquerda, mas na verdade

não conseguiu.Em vez disso, corrompeu os pequenos movimentos da nova

esquerda bem mais do que estes conseguiram realmente transformá-la.

Prosseguia inevitavelmente o declínio global dos movimentos da velha

esquerda.

Ao mesmo tempo, sofríamos os imprevistos duma fase B dum ciclo

Kondratieff. Não é preciso relembrar agora os itinerários em detalhe.

Recordemos apenas dois momentos.Em 1973 a Opep deflagrou a alta dos

preços do petróleo. Observemos as diversas conseqüências. Houve bonança

em termos de renda para os países produtores, inclusive na América Latina

- México, Venezuela e Equador. Foi uma fase de bonança para as empresas

petrolíferas multinacionais. Foi benéfico para os bancos multinacionais

onde foi depositada a receita não gasta de imediato. Ajudou, por algum

tempo, os Estados Unidos na sua concorrência com a Europa Ocidental e com

o Japão, porque os Estados Unidos eram menos dependentes da importação de

petróleo. Foi um desastre para todos os países do Terceiro Mundo e do

bloco

p. 238

comunista que não fossem produtores de petróleo. Os orçamentos nacionais

foram atingidos por déficits dramáticos. Complicaram-se as dificuldades

dos países centrais,com a redução ainda maior da demanda global dos seus

produtos.

Qual foi o resultado? Houve duas etapas. Primeiramente, os bancos

multinacionais, com o apoio dos governos centrais, ofereciam ativamente

empréstimos aos governos pobres em situações desesperadas, e até aos

próprios governos produtores de petróleo. É claro que os governos pobres

pegaram esse salva-vidas para se manterem diante da ameaça de revoltas

populares, e os governos produtores de petróleo aproveitaram a

oportunidade de "se desenvolverem" rapidamente. Ao mesmo tempo, esses

empréstimos reduziram os problemas econômicos dos países centrais,

aumentando a possibilidade de venderem seus produtos no mercado

internacional.

A única pequena dificuldade com essa bela solução era que os

empréstimos tinham de ser reembolsados. Em poucos anos, o juro composto

das dívidas chegou a representar uma porcentagem altíssima dos orçamentos

anuais dos países devedores. Ficou impossível controlar esse sumidouro

galopante dos recursos nacionais. A Polônia sofreu a crise de 1980 por

causa desse problema. E em 1982 o México anunciou que não podia mais

continuar a pagar como até então.

A crise da dívida perdurou na imprensa por alguns anos e depois essa

imprensa esqueceu dela. Para os países endividados, porém, a crise ainda

está aí, não apenas como uma carga a onerar o orçamento, mas como um

castigo, em vista das exigências draconianas do FMI que foram impostas a

esses estados. O nível de vida tem caído em todos eles, sobretudo para a

camada pobre, que abrange 85-95% da população.

p.239

Ficaram os dilemas duma economia-mundo em estagnação. Se não mais

era possível atenuar essa estagnação mundial com os empréstimos a países

pobres, era necessário,nos anos oitenta, achar outros expedientes. O

mundo financeiro-político inventou dois. Apresentou-se um novo

emprestador, os Estados Unidos, que na administração Reagan praticava uma

política keynesiana dissimulada. Como sabemos, a política de Reagan tem

sustentado certas grandes empresas norte-americanas e limitado o

desemprego,mas acentuando a polarização interna. Assim, tem ajudado a

sustentar a renda na Europa Ocidental e no Japão. Mas era evidente que o

mesmo problema tornaria a apresentar-se.Os juros da dívida começavam a

ser pesados demais. Mais uma vez sobreveio uma crise de dívida nacional.

Os Estados Unidos ficaram numa situação tão desconcertante que, para

desempenharem o papel de líder militar na Guerra do Golfo em 1991, foi

necessário que o Japão, a Alemanha, a Arábia Saudita e o Kuwait pagassem

a parte principal dos gastos. Sic transit gloria! A fim de evitarem em

parte um ocaso precipitado que se avizinhava, os Estados Unidos lançam

mão da solução FMI, infligindo-se o seu próprio castigo. Chama-se

"Contrato para América". Exatamente como insiste em receitar o FMI para

os países pobres, os EUA estão baixando o padrão de vida

dos pobres, sem prejuízo de manter, e até aumentar, as possibilidades de

acumulação para uma minoria da população.

O segundo expediente resultou do fato de que um aspecto fundamental

de toda fase B dos ciclos Kondratieff é a dificuldade acentuada de se

obter grandes benefícios no setor produtivo. Ou, para sermos mais

precisos, a fase B se caracteriza, explica-se, pela restrição de

benefícios. Isso não chega a ser um obstáculo para um grande capitalista.

Se a produção

p. 240

não gera uma margem suficiente de lucro, volta-se para o setor financeiro

para tirar ganhos da especulação. Nas decisões econômicas dos anos

oitenta vemos que isto traduzia-se no fenômeno do súbito controle

(takeover) de grandes corporações por meio dos assim chamados junk bonds,

ou títulos podres. Visto do exterior,o que acontece é isto: as grandes

corporações estão se endividando, com a mesma conseqüência, no curto

prazo, para a economia-mundo: uma injeção de atividade econômica que

representa um forma de luta contra a estagnação. Mas elas lutam com as

mesmas limitações. Têm que pagar as dívidas. Quando isso torna-se

impossível, a empresa vai à falência ou entra nela um "FMI privado" que

impõe a reestruturação, ou seja, a demissão de empregados. Coisa que

ocorre com muita freqüência nesses tempos.

Que conclusões políticas têm extraído as massas populares desses

acontecimentos tristes, quase indecentes, dos anos 1970-1995? Parece-me

óbvio. A primeira conclusão a que chegaram é que a perspectiva de

reformas graduais que permitiriam a eliminação do abismo entre ricos e

pobres,desenvolvidos-subdesenvolvidos, é impossível na situação atual, e

que todos os que haviam dito isso foram mentirosos ou manipuladores. Mas

quem foram eles? Sobretudo,foram os movimentos da velha esquerda.

A revolução de 1968 abalou a fé no reformismo, inclusive o tipo de

reformismo que chamava-se revolucionário. Os vinte e cinco anos

posteriores, de eliminação dos ganhos econômicos do período 1945-1970,

destruíram as ilusões que ainda persistiam. Em país após país, o povo

retirou seu voto de confiança nos movimentos herdeiros da velha esquerda,

quer populista, de libertação nacional, socialdemocrata ou leninista. A

derrubada dos comunismos em 1989 foi

p. 241

a culminação da revolução de 1968, a queda dos movimentos que pretendiam

ser mais fortes e mais militantes. A sua perda de apoio popular foi muito

dramática, e para muitas pessoas, inclusive evidentemente para muitos

intelectuais das Américas, foi uma desestruturação de toda uma vida

mental e espiritual.

Os coiotes do capitalismo proclamaram-se vitoriosos. Mas os

defensores mais sofisticados do sistema atual eram mais espertos. A

derrota do leninismo - derrota definitiva- é uma catástrofe para os

poderosos. Ela eliminou o último e melhor escudo político, a sua única

garantia, o fato de as massas acreditarem na certeza do êxito do

reformismo. Como conseqüência, essas massas não mais estão dispostas a

ser tão pacientes como no passado. A queda dos comunismos é um fenômeno

muito radicalizante para o sistema. O que foi derrubado em

1989 foi exatamente a ideologia liberal.

O que o liberalismo proporcionava às "classes perigosas" era, acima

de tudo, a esperança, ou melhor, a certeza do progresso. Era uma

esperança bem materialista;no fim, todo mundo terá um padrão de vida

confortável e sadio, educação, uma posição digna para si mesmo e seus

descendentes. Isso foi prometido, se não para hoje,para um amanhã não

muito distante. A esperança justificava os adiamentos, desde que houvesse

certas reformas governamentais visíveis e alguma atividade militante

também visível daqueles que esperavam. Enquanto isso, os pobres

trabalharam, votaram e serviram nos exércitos. Isto é, fizeram funcionar

o sistema capitalista.

Entretanto, se forçadas a perder essa esperança, o que fariam as

"classes perigosas"? Nós sabemos, pois é o que vivenciamos atualmente.

Elas desistem da sua fé nos estados,

p. 242

não somente no Estado em mãos dos "outros", mas em todo Estado. Tornam-se

muito cínicas no que diz respeito aos políticos, aos burocratas e também

aos líderes ditos revolucionários. Começam a abraçar um antiestatismo

radical. É quase como querer fazer sumir os estados que não inspiram

confiança alguma. Podemos ver essa atitude em toda parte, no Terceiro

Mundo, no mundo ex-socialista, bem como nos países centrais. Nos Estados

Unidos, tanto quanto no México!

Será que as pessoas comuns estão felizes com essa postura? Também

não. Ao contrário, elas têm muito medo. Os estados foram certamente

opressivos, pouco confiáveis,mas foram também e ao mesmo tempo fontes de

segurança cotidiana. Na ausência de fé nos estados, quem vai garantir a

vida e a propriedade pessoal? Torna-se até preciso retornar ao sistema

pré-moderno: devemos providenciar a nossa própria segurança. Assumimos as

funções da polícia, do arrecadador de impostos e do professor de

escola.Além do mais, uma vez que é difícil assumir todas essas tarefas,

submetemo-nos a "grupos" construídos de diversas maneiras e com diversos

rótulos. A novidade não é a organização desses grupos, mas que eles

comecem a assumir as funções que outrora pertenciam à esfera estatal. E,

ao fazer isso, a população esta cada vez menos disposta a aceitar o que

os governos lhe impõem para essas atividades. Depois de cinco séculos de

fortalecimento das estruturas estatais, no contexto dum sistema

interestatal também em contínuo fortalecimento, vivemos hoje a primeira

grande retração do papel dos estados e necessariamente, portanto, também

do papel do sistema interestatal.

Não é coisa de somenos importância. E um terremoto no sistema

histórico do qual somos participantes. Esses grupos aos quais nos

submetemos representam algo bem diferente

p. 243

das nações que construíamos nos dois últimos séculos. Os membros não são

"cidadãos", porque as fronteiras dos grupos não são definidas

juridicamente, mas miticamente;não para incluir, mas para rejeitar.

Isso é bom ou ruim? E para quem? Do ponto de vista dos poderosos, é

um fenômeno muito volátil. Do ponto de vista duma direita ressuscitada,

fornece a possibilidade de erradicar o estado de bem-estar e permitir o

florescimento dos egoísmos de curta duração (après mói lê délugeí). Do

ponto de vista das classes oprimidas, é uma faca de dois gumes, e elas

também não têm certeza se devem lutar contra a direita porque suas

propostas lhes causam graves prejuízos imediatos, ou apoiar a destruição

dum estado pelo qual foram defraudadas.

Tenho para mim que o colapso da fé popular na inevitabilidade duma

transformação igualizadora é o golpe mais sério para os defensores do

sistema atual, mas certamente não o único. O sistema-mundo capitalista

está desagregando-se em virtude dum conjunto de vetores. Poder-se-ia

dizer que essa desagregação é muito sobredeterminada.Vou tratar

brevemente alguns desses vetores inquietantes para o funcionamento do

sistema-mundo.

Antes de fazê-lo, devo dizer que a questão não se apresenta como um

problema de tecnologia. Há quem afirme que o processo contínuo de

mecanização da produção resultará na eliminação de empregos possíveis. Eu

não acredito. Ainda podemos inventar outras tarefas para a força de

trabalho. Outros declaram que a revolução informática acarretará um

processo de globalização que, em si, toma obsoleto o papel dos estados.

Também não acredito nisso, porque a globalidade tem sido elemento

essencial da economia-mundo capitalista

p. 244

desde o século XVI. Não tem nada de novo. Se esses fossem os únicos

problemas para os capitalistas do século XXI, estou certo que eles

poderiam fazer o necessário a fim de manter o impulso da acumulação

incessante de capital. Mas há coisas piores.

Em primeiro lugar, para os empresários existem dois dilemas de quase

impossível solução: a desruralização do mundo e a crise ecológica. Ambos

são bons exemplos de processos que vão de zero a cem por cento, e quando

se aproximam da assíntota perdem valor como mecanismos de ajuste. Isto

configura a fase final duma contradição interna.

Como aconteceu a progressiva desruralização do mundo moderno? Uma

explicação tradicional é que a industrialização exige a urbanização. Mas

não é verdade. Ainda restam indústrias localizadas nas regiões rurais e

já temos notado a oscilação cíclica entre concentração e dispersão

geográfica da indústria mundial. A explicação é diferente.Toda vez que há

estagnação cíclica na economia-mundo, um dos resultados no fim do período

é uma maior mobilização do proletariado urbano contra o declínio de seu

poder aquisitivo. Cria-se assim uma tensão à qual os capitalistas

resistem, claro. No entanto, a organização operária cresce e começa a ser

perigosa. Ao mesmo tempo,as reorganizações empresariais chegam a um ponto

em que poderiam fazer a economia-mundo deslanchar novamente na base de

novos produtos monopolizados. Mas falta um elemento: demanda global

suficiente.

Diante disso, a solução é clássica: aumentar as rendas dos

proletários, sobretudo dos operários qualificados, até mesmo facilitar o

ingresso de alguns nessa categoria.Com isso ficam resolvidos, duma só

vez, os problemas da tensão

p. 245

política e da falta de demanda suficiente. Mas há uma contrapartida. A

porcentagem de mais-valia que corresponde aos proprietários diminuiu.

Para compensar essa redução da mais-valia relativa, novamente existe uma

solução clássica: transferir alguns setores de atividade econômica que já

não são muito rentáveis para zonas onde há população rural considerável,

parte da qual poderia ser atraída para novas localidades urbanas de

produção, por salários que representam para eles um aumento de sua renda

familiar, mas que no cenário mundial representam custos mínimos de

trabalho industrial.Com efeito, para resolverem as dificuldades

recorrentes das estagnações cíclicas, os capitalistas fomentam em cada

ocasião uma desruralização parcial do mundo. Ora, e se não restarem mais

populações por desruralizar? Hoje nos aproximamos dessa situação. As

populações rurais, ainda há pouco fortes na própria Europa, desapareceram

totalmente de muitas regiões do mundo e diminuem em toda parte.

Provavelmente são menos de 50% hoje no mundo todo, e daqui a 25 anos a

cifra será menos de 25%. A conseqüência é clara. Não haverá novas

populações de baixa renda para compensar os salários mais altos dos

setores previamente proletarizados.Com efeito, o custo do trabalho

aumentará no mundo inteiro, sem que os capitalistas possam evitar.

O mesmo acontece com a ecologia. Por que existe hoje uma crise

ecológica? Não é difícil explicar. A fim de maximizar seus benefícios, o

capitalista conta com dois recursos principais: não pagar muito a seus

operários e não pagar muito pelo processo de produção. Como? Mais uma

vez, é óbvio: fazer com que seja pago em grande parte por "outros". Isso

se chama "externalização de custos". Existem dois métodos principais para

externalizar custos. Um é esperar que o

p. 246

Estado arque com os custos da infra-estrutura necessária para a produção

e venda dos produtos. A desagregação dos estados representa uma ameaça

aguda a essa possibilidade.Mas o segundo e mais importante método é não

pagar os custos ditos ecológicos; por exemplo, não replantar as florestas

desmaiadas ou não pagar pela limpeza do lixo tóxico.

Enquanto existiam outras florestas, ou zonas ainda não utilizadas, e

portanto não poluídas, o mundo e os capitalistas podiam ignorar as

conseqüências. Mas hoje estas atingem os limites da externalização de

custos. Não restam muitas florestas. Os efeitos negativos da poluição

excessivamente acelerada na terra implicam impactos graves e múltiplos,

dos quais temos conhecimento através de cientistas esclarecidos. Por isso

surgiram movimentos "verdes". Do ponto de vista global, há apenas duas

soluções: fazer com que os capitalistas paguem os custos e/ou aumentar os

impostos. Mas a última é pouco provável, dada a tendência a reduzir o

papel dos estados.

E a primeira implica uma considerável redução nos lucros dos

capitalistas.

Existem outros vetores que representam dilemas, não para os

empresários, mas sim para os estados. Primeiro, a polarização

socieconômica cada vez mais aguda no mundo acompanha a polarização

demográfica. É bem verdade que há uma transformação demográfica em

andamento há pelo menos 200 anos e que neste momento atinge pela primeira

vez a África, que no período pós-1945 tinha a taxa de crescimento mais

alta do mundo. Contudo, embora as taxas em geral estejam caindo, a brecha

entre o norte, onde elas são muitas vezes negativas, e o Terceiro Mundo,

onde ainda são elevadas, continua a alargar-se. Se houver recuperação da

economia-mundo no primeiro quartel do século XXI, a brecha

p. 247

econômica já irá crescer, porque a recuperação será fortemente desigual.

É fácil prever a conseqüência. Haverá um forte incremento da

migração sul-norte, legal ou ilegalmente. Tanto faz. Não existem

mecanismos viáveis para barrar ou sequer limitar seriamente esse fluxo.

As pessoas que gostariam de ir para o norte serão arregimentadas entre as

mais capazes do Terceiro Mundo e estarão determinadas a chegar lá. Haverá

para elas muitos empregos insuficientemente remunerados. Por certo,

ocorrerá oposição política xenófoba contra essa migração, mas não bastará

para fechar as portas.

Se ao mesmo tempo o papel dos estados diminuir - e isto servirá

também para permitir o aumento do número de migrantes —, a integração

econômica desses imigrantes será limitada. Se a oposição política não

conseguir refrear a entrada, provavelmente conseguirá limitar os direitos

políticos e sociais dos imigrantes. Nesse caso,eu prevejo o seguinte: o

verdadeiro número de imigrantes "sulinos" e seus descendentes imediatos

nos países do norte será entre 10 e 35% da população, ou até mais.E isso

não apenas na América do Norte e na Europa Ocidental, mas também no

Japão. Ao mesmo tempo, esses 10-35% da população mais jovem, muito mais

pobre, e situada em bairros urbanos segregados de fato, será uma

população operária sem direitos políticos nem sociais. Voltaremos à

situação da Grã-Bretanha e da França na primeira metade do século XIX,

aquela de proletariados, que são "classes perigosas". Dessa forma se

desfazem duzentos anos de recuperação liberal e desta vez sem

possibilidade de repetir o roteiro. Em minha previsão, as zonas de

conflito social mais intenso no século XXI não serão Somálias nem

Bósnias, mas Franças e Estados Unidos. Será que as

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estruturas estatais já enfraquecidas vão sobreviver a esse tipo de guerra

civil?

E se isso não bastasse, há o problema da democratização. Problema,

sim! A democratização não é mera questão de multiplicidade de partidos,

sufrágio universal e eleições livres. Democratização é questão de igual

acesso às verdadeiras decisões políticas e a um padrão de vida e uma

seguridade social razoáveis. A democracia não pode coexistir com uma

grande polarização socieconômica, nem no plano nacional, nem no plano

mundial. Entretanto, existe uma onda de sentimento democratizador que vai

ganhando enorme força hoje em dia. Como ela se manifesta? A imprensa e os

últimos arautos do liberalismo apregoam que a democratização se evidencia

na queda de diversas ditaduras no mundo todo. Sem dúvida, isso representa

um esforço visando democratizar esses países. Mas estou um tanto

descrente quanto ao êxito efetivo dessas mudanças.

Mais interessante é a pressão continuada, não apenas no sul, mas também e

corn mais vigor nos países do norte, pelo aumento dos gastos corn saúde,

educação e vida dos despossuídos. Só que essa pressão agrava, e

muitíssimo, os dilemas fiscais dos estados. A onda democratizadora será o

último prego no caixão (nail in the coffin) do estado liberal. Estamos

vendo aí o que se passa hoje nos Estados Unidos.

Por todas essas razões, o período que temos pela frente, os próximos

30-40 anos, será o momento da desintegração do sistema histórico

capitalista. Não será um momento agradável de se viver. Mas um período

negro, cheio de inseguranças pessoais, incertezas quanto ao futuro e

ódios violentos. Ao mesmo tempo, será um período de transição maciça para

alguma outra coisa, um sistema (ou sistemas) novo. Isto

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posto, com certeza vocês se perguntam por que eu lhes disse que trago uma

mensagem de esperança.

Encontramo-nos numa situação de bifurcação bem clássica. As

perturbações aumentam em todas as direções. Estão fora de controle. Tudo

parece caótico. Não podemos,ninguém pode, prever o que vai resultar

disso. Mas isso não quer dizer que não possamos influir no tipo de nova

ordem que será construída no final. Muito pelo contrário.Numa situação de

bifurcação sistêmica, toda pequena ação tem conseqüências enormes. O todo

se constrói de coisas infinitesimais. Os poderosos do mundo sabem muito

bem disso. Preparam de diversas maneiras a construção dum mundo pós-

capitalista, uma nova forma de sistema híbrido desigual, a fim de

manterem seus privilégios. O desafio para nós, sociólogos e outros

intelectuais, e para todas as pessoas que procuram um sistema democrático

e igualitário (os dois adjetivos têm idêntico significado),é mostrarmos

que somos tão imaginativos quanto os poderosos, e não menos audaciosos,

mas com uma diferença: precisamos vivenciar as nossas crenças na

democracia igualitária, o que nunca (ou raramente) faziam os movimentos

da velha esquerda. Como fazê-lo? É isso que devemos discutir hoje, amanhã

e depois de amanhã. É possível fazer isso, mas não existe uma certeza a

respeito. A história não garante nada. O único progresso que existe é

aquilo pelo qual lutamos e, é bom lembrarmos, com grandes chances de

perder. HicRhodus, hic salta. A esperança reside, agora como sempre, em

nossa inteligência e em nossa vontade coletiva.

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Immanuel Wallerstein é o diretor do Fernand Braudel Center (Sony-

Binghamton).

O presente texto foi apresentado numa das conferências magistrais do XX

Congresso da Associação Latino-americana de Sociologia (Alas), realizado

no México (out./1995).

Traduzido para o português por Ricardo Aníbal Rosenbusch.

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