Milagre

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O Milagre João nascera, vermelho e pequenino, chorão e irrequieto. Quando a irmãzita o viu espernear nos braços da Rosa Pomba, fugiu a gritar pelo corredor: «Que feio, Pai ? Que feio !». Realmente a criança não devia nada à formosura. No rosto diminuto e achatado, os olhos eram enormes lanternas imóveis e sem brilho. Quando chamaram o médico e ele a examinou, uma ruga profunda vincou- lhe a testa ampla. - Rosa, chegue-me uma vela... - Credo, Sr. Dr.! Não me diga que quer chamuscar o pobre anjinho... - Já lhe disse, chegue-me uma vela! - Acesa? - Sim, mulher, acesa. Chegue a vela; quero ver uma coisa... - «Sã» Telmo, Sr. Dr. ! Olhe que queima os olhos a este anjinho!!! ... - Não, não queimo... É cego, Rosa! - Cego!!! ... A boa mulher abriu a boca desdentada e recebeu dos braços do médico a criança. Depois, foi deitá-la silenciosamente no berço de pinho enfeitado de chita cor de rosa. Do lado veio a voz da mãe: - Que disse o Sr. Dr., Rosa? - A criança é cega, mulher! Cega !!! ... Do corredor o homem perguntou: - Então, que tal vai o «ganapo» ? Fez-se um silêncio opressivo. De súbito, como um ruído de cristais estilhaçados, o choro convulso da mãe rompeu na atmosfera doentia do quarto... ..................................................................................................... - Bom dia, Mãe... A mulher volta-se, debruça-se toda para o lume e responde numa voz fechada: - Bom Dia! ... - A criança parece hesitar... Depois: - Vossemecê está zangada, Mãe? - Não... (e quase mete o rosto na panela que lava...) Porquê?!

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O Milagre João nascera, vermelho e pequenino, chorão e irrequieto. Quando a irmãzita o viu espernear nos braços da Rosa Pomba, fugiu a gritar pelo corredor: «Que feio, Pai ? Que feio !». Realmente a criança não devia nada à formosura. No rosto diminuto e achatado, os olhos eram enormes lanternas imóveis e sem brilho. Quando chamaram o médico e ele a examinou, uma ruga profunda vincou-lhe a testa ampla. - Rosa, chegue-me uma vela... - Credo, Sr. Dr.! Não me diga que quer chamuscar o pobre anjinho... - Já lhe disse, chegue-me uma vela! - Acesa? - Sim, mulher, acesa. Chegue a vela; quero ver uma coisa... - «Sã» Telmo, Sr. Dr. ! Olhe que queima os olhos a este anjinho!!! ... - Não, não queimo... É cego, Rosa! - Cego!!! ... A boa mulher abriu a boca desdentada e recebeu dos braços do médico a criança. Depois, foi deitá-la silenciosamente no berço de pinho enfeitado de chita cor de rosa. Do lado veio a voz da mãe: - Que disse o Sr. Dr., Rosa? - A criança é cega, mulher! Cega !!! ... Do corredor o homem perguntou: - Então, que tal vai o «ganapo» ? Fez-se um silêncio opressivo. De súbito, como um ruído de cristais estilhaçados, o choro convulso da mãe rompeu na atmosfera doentia do quarto... ..................................................................................................... - Bom dia, Mãe... A mulher volta-se, debruça-se toda para o lume e responde numa voz fechada: - Bom Dia! ... - A criança parece hesitar... Depois: - Vossemecê está zangada, Mãe? - Não... (e quase mete o rosto na panela que lava...) Porquê?!

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- É que Vossemecê parece que não tem a voz dos outros dias... - ... - Mãe, Vossemecê está a chorar... Ela não responde. Ergue-se. Com a ponta do avental de riscado, limpa o rosto sem expressão. A voz é agora doce quase pacificante. - Não andes mais filho. Olha aí esse cavaco... Aí, à tua frente. Vá, dá um passo mais... Assim... Isso. Senta-te nesse canto. - Não se incomode, Mãe. Eu sei por onde vou... Ah! Cá está o banquinho... Vê como eu não caí? - ... Vossemecê... - Vá, cala-te agora. Dói-me a cabeça... - Tá bem..., A mulher volta à panela. As mãos parecem argila. Torcidas, enrugadas, moles como sabão esquecido na água. Esfregam-se uma na outra contra o ferro da panela e traçam na água movimentos irrequietos. As faces da mulher definem-se na sombra da lareira, como se fossem esculpidas em bronze. Na fogueira, as achas crepitam ruidosamente e parecem cantar o seu suplício vermelho. - Mãe, a panela custa a lavar... - Pois custa... Novo silêncio. A porta bate e uma rajada de vento penetra, fazendo rodopiar o fumo numa dança cinzenta. A criança, de olhos parados, escuta... Depois: - Mãe, amanhã vou para a Escola... A mulher despeja a água gordurenta pelo postigo desmantelado e fica de pé espreitando a eira. - Vossemecê vai-me levar? As frases ficam sem resposta um instante no ar impregnado de cheiro resinoso... - E se a Senhora não te quer lá? Tu queres ir, João? A criança sorri. As mãos sobem-lhe ao rosto num gesto tímido. A mãe olha-o num misto de piedade e desespero. Depois senta-se, silenciosamente, esquecida da pergunta lançada. Tudo nela é desilusão, quase amargura. As rugas do rosto falam da miséria, cansaço, desalento, fome. As mãos falam de trabalho escravo e do calor da enxada fendendo a terra rubra e juncada de seixos. A blusa e a saia são farrapos unidos cuidadosamente, que as

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pedras do rio limparam ano, após ano, numa esfrega extenuante. Vida de preta! - diria o marido, se fosse vivo. Mas ele morreu na soltura da represa. Ana cresceu e foi para a cidade servir. Às vezes, vêm cartas perfumadas... e ela tem medo. A filha não é feia. E tem só dezasseis anos... - Gostava tanto, Mãe! - Gostava tanto, Mãe! A criança responde à pergunta anterior, mas ela não ouve. Continua mergulhada nas suas dolorosas cogitações. Só. Com aquele cangalho... É dura a vida, para ela, habituada a cortar fundo e longe, quando da união com o marido. Agora, está pobre e com um filho cego!... Cego!... Espevita o lume que dança em labaredas gritantes, e enxuga uma lágrima furtiva... - Vossemecê leva-me, Mãe? A criança insiste, mas ela não ouve. A Ana pode perder-se... A filha faz-lhe lembrar a videira plantada à beira do silvado... Frágil e pequena. E tem medo... - Vossemecê não está aí, Mãe? Mãe, vossemecê está a ouvir? Desperta. Sacode a saia... - Estou... estão... Amanhã... Amanhã, vou-te levar... - Ó Mãe, como estou contente! ... A criança inclina-se toda e adormece sobre a lareira iluminada. As chamas erguem-se mais e mais, até encher de luz amarelada a cozinha escura e fria. A mãe fica de joelhos perdidos no fogo, monologando, sofrendo. No dia seguinte, de novo a enxada, os seixos cinzentos, o andar hesitante do filho procurando de mãos estendidas um ponto de guia e apoio. E sempre aquele bom dia, mesmo que seja noite! E sempre aquele sorriso, mesmo que a pense chorosa!... Uma dor surda entra-lhe na alma e num gesto de revolta espalha a fogueira que se desfaz em mil rastos de brasas e fumo. Fica de pé como uma estátua, na semi-penumbra, sob a chaminé enegrecida... O filho mexe-se: - Mãe !!! A mulher cai de joelhos junto do filho adormecido, e por momentos, no silêncio profundo da cozinha a voz dela ergue-se num brado surdo de desespero e dor:

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- Senhor! Não, o meu menino não irá à escola... para quê! Para quê, se não pode ver a luz do Sol nem conhecer os braços que o acarinham?... Meu filho! Meu filho! E fica ali prostrada, até que o frio e o sono a tomam. Noite alta, ergue-se. Deita o filho e ela própria de olhos no espaço, hirta como um cadáver, suspensa dum letargo sem limites, estende-se no catre ouvindo dentro de si uma sinfonia estranha irreal, desconhecida e inesperada. O filho, apesar de cego, é o seu amor, a sua mais próxima riqueza. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... - Mãe, de que cor é o Sol? - O Sol... - Eu sei, Mãe... A Senhora contou-me... Deve ser assim... assim... Dizem que é cor de fogo! Ela contou-me, Mãe. E disse que há flores lindas que cheiram bem, parecidas com seda... E pôs-mas aqui nas mãos... Que macias, Mãe! E ensinou-me que o Céu é muito azul!... E pareceu-me que o via... É tão bom ir à Escola, Mãe! Ela põe-se a falar de mansinho e eu ouço... E fala-me e pega-me nas mãos, quando os outros andam à roda... E eu canto com eles: - «Vai numa roda, numa roda é qu'é...» Que lindo, Mãe!... Quem me dera ver o Céu! E ser como os outros. Mas não. Fico-me caladinho no meu lugar e ouço, ouço, ouço... Tantas coisas que não sei... Vem um e diz: - «Quem sou eu?» E eu logo: «- És o Zé». Eles então chamam a senhora e gritam: «Ele adivinha!» Ela vem e ri-se alto... E diz: «Foi o Jesus que lhe disse...» E eu fico contente, tão contente, Mãe! E quando entro na sala adivinho sempre se ela lá está... Deve ser linda, Mãe?! - ... E a criança, de olhos transparentes, fica a olhar o vácuo... Depois... - Mãe, ontem rezei!... - Também eu, filho! - Vossemecê sabe rezar? - Sei... - Mas nunca me ensinou!... - Pois não...

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- Mas a Senhora ensinou-me... Começa assim: «Jesus, que estás no Céu, faz um milagre para eu poder conhecer a minha Mãezinha...» - ... - O Pai sabia rezar, Mãe? - Sabia... - E rezava, Mãe? - Antes de nasceres... - E depois? - Depois, não... - Porquê? - Porque... (e fica suspensa...) - Vossemecê não diz, mas eu sei... Ele depois não rezava, porque eu nasci cego... - João!!!... - Vossemecê está a chorar, Mãe? Olhe que eu não choro... A Senhora disse que Jesus gostava muito de mim, porque eu era amigo de toda a gente... E se rezasse, havia de fazer-me um milagre... Nem parece que sou cego, Mãe! Ontem encontrei no caminho o Zé Toinho a chorar, porque lhe tinha caído o pião ao ribeiro, e depois eu desci a buscá-lo... A mãe grita: - E não caíste? - Não vossemecê não se aflija, que eu nunca caio... E apanhei o pião... - Tem cautela, meu filho! - Ó Mãe, eu rezo sempre, por isso nunca caio... - ... - Rezo sempre... sempre... Nunca caio, Mãe! - Fazes bem, filho. E pela Ana também... E pelo milagre... - Há de fazer, Mãe! Há de fazer... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... - Tens frio, João? - Não, Mãe. A noite está fria... - Eu tenho... A criança volta-se para a lareira quase apagada. Sente que o calor diminui e sabe que não há em casa mais um graveto para espevitá-la... A mãe, doente, embrulhada numa velha manta, dormita, mas a tosse sufoca-a, por vezes. A mãe tem frio... E não há lenha para espevitar o lume. E se ele...

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- Mãe, vossemecê quer que feche a porta? - ... A mulher, encolhida na manta, não responde. Dorme. João arrasta-se em silêncio e sai para a noite escura e gélida. As nuvens são flocos de algodão, mas ele não pode vê-las... A mãe tem frio... A mãe está doente... A mãe não pode morrer de frio... E pela primeira vez sente-se desesperado ao peso da sua invalidez... Os pés enterram-se-lhe no chão espumoso de lama... Onde ir? Onde procurar ajuda, se a noite é de neve? As mãos dançam-lhe no espaço... E da alma sobe-lhe a prece feita choro: «Jesus, que estás no Céu...» E vai caminhando, às cegas... Tropeça e cai a soluçar, enrolando-se na lama do barranco, como um farrapo velho e apodrecido. Encontram-no na madrugada inerte, de mãos estendidas, voltadas para o chão, num gesto de defender a cabecita ferida nos seixos limosos da levada. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... - Como vai o pequeno? - Ai, mulher que não há mezinha que o cure! Está para ali há dois dias como morto sem falar, o meu menino, o meu menino... O senhor tenha piedade de mim que sou uma infeliz... A vizinha vai adiante, que o jantar se tarda... E ela fica-se ali meditando as estranhas palavras do médico que socorreu a criança... - M...ã...ãe...e !... - Meu filho! E os braços da mulher, sôfregos e tensos, apertam o pequeno num abraço de desesperada surpresa. Depois: - Vossemecê sabe uma coisa? E as mãos da criança são gaivotas, esvoaçando sobre a cabeça grisalha da mãe... - Não, meu Amor! - Eu vejo-a, Mãe!!!... A mulher ergue-se transfigurada. Depois, cai a soluçar, de joelhos gritando como louca: - Milagre! Milagre!!! ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

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Quando ela se foi e me disse adeus, talvez para sempre, fiquei-me a vê-la desaparecer, toda inclinada para o lado direito, pelo peso da mala, na curva do caminho poeirento. E meditei por largos momentos a estranha história desse rapazito que ela me acabava de contar, história dum milagre que ela ajudara a realizar... E, hoje, quando entro na sala e olho a secretária que ela outrora ocupou, parece-me escutar, no silêncio povoado de coisas invisíveis, as últimas palavras que me dirigiu: - «Ensine-os a rezar...» Agora... Recordo-a. Onde foi? Não sei. Mas a história deste estranho milagre ficou-me na alma…

Maria Helena Amaro

In, «Maria Mãe», 1973.

Data da conclusão da edição no blogue – 22 de maio de 2012.

http://mariahelenaamaro.blogspot.com/