Migração Internacional

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migrao internacionalMigrao internacional e desenvolvimento econmico

Jan Brzozowski

Doutor em Economia, professor adjunto da Faculdade de Economia e Relaes Internacionais da Universidade de Economia de Cracvia (Polnia). Desenvolve pesquisas na rea de migraes internacionais e desenvolvimento. @ [email protected]

RESUMO

O Brasil um pas com uma longa tradio imigratria, porm a emigrao internacional um fenmeno recente. A inverso migratria comeou na dcada de 1980, quando a sada de brasileiros para o exterior evoluiu de maneira considervel. Esse processo foi continuado nas dcadas seguintes, convertendo um tpico pas de imigrao numa nao de emigrao. Assim, surgiu a dispora brasileira, estimada atualmente em 3,7 milhes de pessoas. A dispora constitui um grande desafio para o pas, especialmente em relao s consequncias econmicas da emigrao, visto que esses movimentos devero ainda se intensificar. O presente trabalho tem como principal objetivo descrever as vinculaes entre a emigrao e desenvolvimento econmico de pas de origem. Ao apresentar teorias de migrao internacional, procede-se a uma anlise dos estudos que analisam as consequncias econmicas da emigrao. A apresentao dessa contribuio teortica e emprica na rea da economia de migrao necessria na compreenso do problema brasileiro. O autor formula uma hiptese de que no atual quadro emigratrio a economia brasileira deve se beneficiar dos movimentos internacionais.

Palavras-chave: Emigrao e desenvolvimento econmico, Desenvolvimento econmico do Brasil.

ABSTRACT

Brazil is a country of a long immigration history, however its emigration experience is a recent issue. The migration transition started in the 1980s, when the first wave of migration was initiated. This process is continued in the next decades: therefore, the traditional nation of immigration was transformed in the nation of emigration. Brazilian Diaspora is now estimated in ca. 3,7 million and constitutes an important area of interest for the scholars and policy-makers interested in development policy. This article focuses on the relationship between migration and development from the perspective of the sending country. The author argues that in the Brazilian case, the impact of migration on the national economy should be beneficial, especially when analyzing the effects of remittances on the mezzo (i.e. regional) level.

Keywords: Migration and development, Economic development of Brazil.

Introduo

A migrao est presente na histria do ser humano desde o seu comeo: as primeiras relaes sobre os movimentos populacionais podem ser encontrados na Bblia e outras fontes histricas da Antiguidade. O xodo dos judeus do antigo Egito (aproximadamente em 1200 a.C.), a migrao dos gregos na regio mediterrnea (desde 800 a.C.) so apenas alguns exemplos desses processos. Os homens migravam sempre, porm desde o sculo XIX pode-se observar a intensificao dos movimentos populacionais no quadro mundial. Nos anos 1815-1930, aproximadamente 52 milhes de europeus emigraram rumo a ambas as Amricas incluindo o Brasil.1 A migrao adquire assim carter macio: o sculo XX foi descrito por alguns pesquisadores como "poca da migrao" (cf. Castles & Miller, 2009). Durante apenas cinco dcadas, o nmero de migrantes internacionais quase triplicou, de 76 milhes em 1960, para 214 milhes em 20102 (IOM, 2008; Desa, 2009). Nesse perodo, que abrangeu duas guerras mundiais, decolonizao e guerra fria, ocorreram mudanas profundas na economia mundial que tambm influenciaram o padro migratrio dos muitos pases e regies: tanto receptores como emissores. Nesse sentido, a transformao do padro migratrio que ocorreu no Brasil nas dcadas de 1980 e 1990 faz parte de um processo mais universal. A Europa Ocidental, que por mais de um sculo era a principal regio exportadora da mo de obra, aps 1945 comea a se tornar uma importante rea receptora de imigrao, oriunda da frica do Norte, do Oriente Mdio, do Subcontinente indiano, e em escala menor, da Amrica Latina.

Do outro lado, alguns pases tradicionais de imigrao se transformam em reas de emigrao. Esse , entre outros, o caso brasileiro. No Brasil, a inverso migratria comeou na dcada de 1980 (Ripoll, 2008). O pas sofreu uma perda lquida de aproximadamente 1,8 milho de pessoas3 por meio de fluxos migratrios internacionais entre 1980 e 1990. Esse volume de emigrao foi significativo e correspondia a 1,6% da populao residente no Brasil em 1990. O processo de converso numa nao de emigrao foi continuado na dcada seguinte. O saldo migratrio internacional em anos 1991-2000 foi tambm negativo, estimado em 550 mil pessoas. Esse nmero correspondia a 0,4% da populao brasileira em 2000 (Carvalho & Campos, 2006). Houve ento uma reduo do fluxo migratrio internacional nos anos 1990, porm a maioria dos emigrantes que deixaram o pas na dcada de 1980 no voltou para o Brasil. Surge assim um significativo grupo de brasileiros no exterior, chamado por alguns autores de "dispora brasileira".4 Em 2000, o nmero de emigrantes brasileiros, segundo dados estimativos do Itamaraty, alcanou quase dois milhes (Ripoll, 2008). Nos ltimos anos, esse nmero quase dobrou: de acordo com estimativas de Itamaraty, em 2008 havia 3,7 milhes de brasileiros residindo no exterior. As principais reas de residncia so: Amrica do Norte (principalmente Estados Unidos 1,5 milho), Europa (Espanha, Portugal, Itlia e Gr-Bretanha um milho), Amrica do Sul (especialmente Paraguai 766 mil) e sia (especialmente Japo 320 mil) (Fernandes & Diniz, 2009).

A emigrao dos brasileiros deve ser associada com a crescente interdependncia entre naes e pases, causada pela expanso do sistema econmico mundial (Sales, 1991). O progresso de meios de comunicao (internet, telefonia celular), a reduo de custos de transporte (especialmente do transporte areo), a expanso das atividades das corporaes transnacionais, a gradual reduo dos obstculos (tarifas e medidas no tarifrias, taxas de exportao, subsdios), facilitando a intensificao do fluxo de bens, servios e de capital entre as economias nacionais, todos esses fatores contriburam para a intensificao dos movimentos populacionais internacionais. A globalizao exerce influncia profunda na migrao internacional. George Martine (2005, p.3) acentua que, para o emigrante contemporneo,

seu horizonte o mundo vislumbrado no cinema, na televiso, na comunicao entre parentes e amigos. O migrante vive num mundo onde a globalizao dispensa fronteiras, muda parmetros diariamente, ostenta luxos, esbanja informaes, estimula consumos, gera sonhos e, finalmente, cria expectativas de uma vida melhor.

Ainda que a globalizao seja parcialmente inacabada, pois no existe um mercado de trabalho global, graas crescente interdependncia entre naes, a oferta e procura de mo de obra no Brasil foram enlaadas com a economia mundial. Assim, existe a expectativa que a emigrao dos brasileiros continuar como um fenmeno significante nos prximos anos (Fernandes & Diniz, 2009).

O problema interessante, que est associado migrao, o impacto econmico das deslocaes internacionais para o pas de origem. A conexo entre migrao intrarregional (e tambm intrer-regional) e o desenvolvimento econmico foi profundamente explorada e pesquisada na literatura nacional brasileira,5 mas no nvel de migrao internacional permanece uma rea de estudo relativamente nova. Portanto, existe a necessidade de assinalar as possveis consequncias da emigrao para economia brasileira. O presente trabalho tem como principal objetivo descrever as vinculaes entre a emigrao e desenvolvimento econmico do pas de origem no contexto brasileiro.

O texto est estruturado em quatro partes. A primeira tem um carter introdutrio, apresentando as principais teorias de migrao internacional, relacionando-as com o processo de movimento populacional internacional do Brasil. A descrio dessas teorias tem sido absolutamente necessria na compreenso da evoluo do fluxo migratrio, mas tambm na anlise das consequncias econmicas da emigrao, que feita na segunda parte do artigo. A seguir, sintetizam- se as mais importantes contribuies na rea de migrao e desenvolvimento, concentrando-se nos estudos que analisam os efeitos econmicos de remessas monetrias para regies de origem. Finalmente, so relacionados esses estudos situao do Brasil, apresentando dados atuais sobre as remessas, e as possveis consequncias do afluxo dessas para o pas. Formula-se uma hiptese, de que no atual quadro emigratrio, a economia brasileira deve se beneficiar das remessas oriundas da dispora.

As teorias da migrao no contexto brasileiro

Neide Patarra (2006) afirma que as teorias da migrao internacional podem ser classificadas em dois grupos; no primeiro entram os modelos que determinam o surgimento do movimento internacional contemporneo; no segundo esto as teorias que explicam a perseverana dos fluxos migratrios e a sua continuidade no tempo. Nesse sentido, deve-se comear a anlise dos modelos tericos que explicam a migrao dos brasileiros a partir desses conceitos, que determinam como o movimento foi iniciado. Desse grupo, a mais conhecida a perspectiva neoclssica, que destaca a desigualdade na distribuio internacional do capital e a mo de obra como o fator principal de movimentos populacionais no nvel macroeconmico. Existem, portanto, pases mais densos e mais rarefeitos de capital: enquanto as reas abundantes de capital so os polos de atrao para os migrantes, pois oferecem remuneraes relativamente altas; as regies com escassez desse fator de produo, nas quais os salrios so baixos, se tornam os principais pontos de exportao da populao (Massey et al., 1998). A abordagem neoclssica oferece tambm explicao do comportamento dos migrantes no nvel micro: o deslocamento o resultado do clculo feito pelos fatores racionais, que pretendem de maximalizar suas necessidades. "O indivduo migra porque espera um retorno financeiro que supere os gastos com a mudana e com investimentos em capital humano" (Fusco, 2005, p.16). Nesse quadro, no pode surpreender que nos anos 1980 no Brasil naquele perodo um pas de renda relativamente baixa iniciou-se a emigrao para os pases ricos e industrializados, como Estados Unidos e Japo. A crise na economia nacional, contrastante com a situao relativamente boa nas economias dos pases desenvolvidos, com certeza pode ser considerada fator que iniciou os fluxos migratrios. Esse movimento era entendido por muitos brasileiros como um investimento com retorno financeiro melhor, que oferecia carreira profissional nacional, j que a emigrao era associada com o padro de vida mais alto (Ferreira, 2007).

Segundo a nova economia de migrao, o movimento populacional deve ser analisado no contexto de imperfeies existentes no mercado de trabalho nos pases em desenvolvimento (que so os maiores exportadores de mo de obra), mas tambm nos outros mercados: de capitais, de produtos rurais, ou educacional. Portanto, a unidade familiar, que nessa abordagem considerada o principal agente econmico, tem a estratgia diferente daquela, que foi descrita na teoria neoclssica. Em vez de maximalizar suas necessidades, aqui o principal objetivo a minimalizao do risco econmico. Assim, a lgica de alocao de bens da unidade familiar proceder em diversificao dos disponveis recursos. O principal recurso da unidade familiar o trabalho. Dessa maneira, a diversificao significa que, numa famlia, alguns membros emigram para obter emprego no exterior, oferecendo um alternativo fluxo de renda para toda a unidade por meio de remessas monetrias (Stark & Bloom, 1985).

Os pesquisadores que representam a abordagem da nova economia da migrao ressaltam que o movimento populacional para o exterior uma forma de investimento, portanto exige recursos que no so disponveis em todas as unidades familiares. Os emigrantes no pertencem s mais pobres partes da sociedade so aquelas pessoas que esto na situao de privao relativa (relative deprivation cf. Stark & Taylor, 1989). As pessoas relativamente privadas sofrem com a recente reduo de nvel de renda. Em consequncia, o padro de vida desse grupo mais baixo quando comparado com a situao anterior e com os grupos de referncia. A migrao pode contribuir para o aumento de renda e o melhoramento da posio econmica da unidade familiar na sociedade. A noo de privao relativa absolutamente necessria na compreenso da migrao dos brasileiros desde os anos 1980. Ricardo Ferreira salienta a dominao dos "limitados" nos fluxos migratrios para os Estados Unidos, Japo e pases da Europa. Nesse grupo se encontram pessoas da "classe mdia empobrecida", que na situao de "impossibilidade de ascenso social [...] seriam os principais candidatos s migraes internacionais" (Ferreira, 2007, p.11).

Outra contribuio importante a teoria do mercado dual de trabalho (Patarra, 2006), chamada tambm como teoria da segmentao do mercado de trabalho (Fusco, 2005). Proposta originalmente por Michael Piore (1983), destaca como fator principal dos movimentos populacionais internacionais as foras de atrao nas sociedades de destino. Em pases desenvolvidos existe a bifurcao do mercado de trabalho: no mercado primrio esto disponveis os empregos com altos salrios e boas condies de trabalho. J o mercado de trabalho secundrio instvel, com remuneraes baixas e condies de trabalho desfavorveis. Portanto, os trabalhadores nativos rejeitam empregos no setor secundrio. Nesse sentido, imigrao aos pases desenvolvidos causada por uma demanda por mo de obra pouco qualificada: os imigrantes satisfazem essa demanda, aceitando empregos rejeitados anteriormente pelos nativos (Fusco, 2005).

A teoria do mercado dual essencial para compreenso da imigrao dos brasileiros para alguns pases desenvolvidos, como Espanha ou Estados Unidos. Segundo Erika Ripoll (2008, p.162), os brasileiros empregados na Espanha so concentrados "em setores de atividades caracterizados por trabalhos precrios, que no requerem qualificao e nem especializao profissional", como servio domstico e construo. Caracterizando a situao socioeconmica dos imigrantes brasileiros no Estado de Massachusetts (Estados Unidos), Ana Cristina Martes (1999) salienta que a grande maioria trabalha na faxina domstica um nicho de mercado com a dominao brasileira e feminina. Esses imigrantes "esto dispostos a aceitar essas ocupaes porque os salrios, quando comparados queles de seus pases, so altos e o prestgio que se leva em conta o de seu pas de origem" (Ripoll, 2008, p.158). Vale acrescentar que os brasileiros no exterior, na sua grande maioria, trabalham ilegalmente, permanecendo clandestinamente no pas receptor.6 Portanto, a orientao dos imigrantes brasileiros que trabalham no setor secundrio est direcionada ao Brasil l que mandam remessas, investem e se comparam com vizinhos em relao sua posio socioeconmica.

Das teorias que explicam a perseverana dos fluxos migratrios e a sua continuidade no tempo deve-se ressaltar a importncia das redes sociais, chamadas tambm de redes migratrias. As redes "so constitudas por laos que conectam migrantes, migrantes pioneiros e migrantes em potencial nas reas de origem e destino por meio de relaes de parentesco, amizade e origem comum" (Fusco, 2005, p.22). Essas conexes facilitam o fluxo de capital e informao sobre as condies de vida e as possibilidades de emprego nas destinaes. Dessa forma, ajudam os novos migrantes na adaptao no novo ambiente e tornam os futuros fluxos migratrios mais provveis. O exemplo interessante, que mostra o funcionamento de redes, o caso dos imigrantes brasileiros em Massachusetts, que vendem seus empregos de faxina domstica. Quando uma imigrante est disposta a voltar ao Brasil, espalha-se a informao sobre a "venda" das casas, onde a faxineira trabalha, por meio das redes migratrias. A pessoa que compra o emprego introduzida dona da casa como a amiga da faxineira, que poder substitu-la. A confiana e a solidariedade tnica entre os imigrantes brasileiras so reconhecidos como fatores principais, para que essa forma de transao possa ser finalizada (Martes, 1999).

Wilson Fusco (2005) aponta que a teoria das redes sociais essencial na explicao do por que que a migrao dos brasileiros no ocorre de modo uniforme pelo territrio nacional. Existem portanto determinadas regies de alta concentrao de emigrantes, ligados pelas redes migratrias com especficas reas de destinao. O exemplo mais conhecido na literatura nacional o caso da cidade de Governador Valadares (Minas Gerais). A maioria de emigrantes provenientes dessa cidade chegou Regio Metropolitana de Boston, em Massachusetts. Analisando as redes sociais, Teresa Sales (1991) salienta o papel de igrejas evanglicas que, alm de oferecerem servio pastoral, exercem a funo de intermedirio entre regio de origem e destinao, ajudando em busca do emprego ou nos problemas administrativos, orientando para tirar passporte ou visto.

Migrao internacional e o desenvolvimento econmico: consideraes gerais

Analisando a relao entre os movimentos populacionais e desenvolvimento, aparece a questo fundamental: qual a direo do relacionamento entre esses dois processos? No debate sobre impactos econmicos de migraes existia a falsa pressuposio de que os movimentos populacionais eram causados pela ausncia de desenvolvimento: os homens emigravam de certas regies pobres, onde no havia possibilidade de ascenso social, direcionando-se s reas desenvolvidas. Porm, migrao internacional, que vinculava regies emissoras e receptoras, devia proporcionar o crescimento econmico da rea de origem graas a remessas e investimentos da dispora. Em consequncia, o desenvolvimento econmico na regio emissora devia reduzir a migrao. Essa linha de pensamento est ainda presente na poltica migratria dos pases desenvolvidos, especialmente os membros da Unio Europeia. Estados como Espanha ou Itlia enfrentam um desafio de macia imigrao irregular. Portanto, implementam nas suas polticas migratrias o "regime de encerramento e coarctao" (Nyberg-Srensen et al., 2002): os programas de assistncia oficial para o desenvolvimento so oferecidos e direcionados queles pases (especialmente da frica subsaariana) que admitem os imigrantes ilegais entregados pelas autoridades europeias. Esses programas tm como um objetivo principal criar empregos na regio emissora, limitando assim a migrao Europa.

As teorias de migrao, como a referida nova economia de migrao, apontam, no entanto, que no so os mais pobres que emigram. A migrao, especialmente internacional, deve ser considerada como uma forma de investimento: associada com risco e exige recursos prprios, os quais as pessoas pobres no possuem. "Pases e regies pobres frequentemente exibem baixas taxas de migrao, enquanto estes que participam de maneira ativa no sistema global podem ser caracterizadas pelos altos nveis de migrao e mobilidade" (Skeldon, 2008, p.5). Portanto, no comeo o fluxo migratrio dominado pelos indivduos que pertencem, como no caso brasileiro, "classe mdia empobrecida", ento o grupo que pode financiar sua migrao. O gradual desenvolvimento econmico na rea de origem associado com o progresso na educao e enriquecimento da populao. Dessa maneira, cresce o grupo que dispe de recursos financeiros e acesso a informaes necessrias para emigrar.

Alguns pesquisadores, como Hein De Haas (2009), salientam que a migrao deve ser considerada como um processo naturalmente vinculado com e constituindo a parte de um processo mais amplo, ou seja, o desenvolvimento econmico. O desenvolvimento exerce influncia profunda sobre a migrao, o fenmeno que descrito na literatura como "elevao migratria" (migration hump). Nos estgios iniciais do crescimento econmico, com o aumento de renda per capita, eleva-se o nvel de migrao. Com o enriquecimento da populao, cresce o nmero de pessoas que tem renda suficiente para sustentar custos de viagem e acomodao na nova destinao. Somente nos pases de renda alta, ou seja, no estgio de desenvolvimento avanado a emigrao est diminuindo; ao mesmo tempo, aumenta a imigrao (Figura 1). Nesse sentido, a evoluo do padro migratrio no Brasil confirma a hiptese de "elevao migratria". Nos anos 1980 e 1990, quando comeou o processo de emigrao, o pas era considerado uma economia de renda baixa. Assim, o nvel de migrao internacional era ainda modesto. No entanto, o desenvolvimento dinmico da economia brasileira nos ltimos anos deve estimular migrao internacional dos brasileiros, o fato que j pode ser observado, pois nos anos 2000-2008 o nmero de emigrantes brasileiros cresceu de 2 milhes para 3,7 milhes.

Ento, deve-se acrescentar que o relacionamento entre esses dois processos tem um carter complexo. A migrao pode influenciar o desenvolvimento econmico do pas de origem, mas tambm o desenvolvimento econmico como foi demonstrado no caso brasileiro exerce influncia sobre a migrao. Essa questo se torna ainda mais importante quando percebemos que nos ltimos anos a migrao percebida como um fenmeno que pode ser gerido e usado na poltica econmica de pases emissores. A crescente popularidade da orientao pr-migratria de algumas economias em desenvolvimento pode ser atribuda ao fenmeno do transnacionalismo. O transnacionalismo pode ser definido como "um processo no qual os imigrantes criam e mantm relaes multidimensionais sociais que enlaam suas sociedades de origem e de destinao" (Bash et al., 1994, p.7). "O progresso em transportes e comunicaes aproxima os locais de origem e destino dos migrantes" facilita a atividade transnacional, possibilita a existncia de mltipla identidade dos transmigrantes (Geiger, 2000, p.215).

Cresce, portanto, o nmero de pases de emigrao que procuram mobilizar o potencial de disporas, percebendo-a como a fora contribuinte para o desenvolvimento nacional. Os governos tentam facilitar e dinamizar a atividade transnacional, oferecendo aos migrantes privilgios e concedendo direitos especiais (Nyberg-Srensen et al., 2002). Esses instrumentos incluem: reduo parcial de impostos, rpidos procedimentos administrativos, facilidades infraestruturais e oportunidades para os investidores, programas de reintegrao para os migrantes que retornam ao pas emissor. Salienta-se a importncia das associaes dos migrantes, que alm de fornecerem conselho podem se envolver diretamente nos programas de desenvolvimento nas comunidades de origem (Zoomers et al., 2008).

Todos esses esforos que tentam incluir migrao na poltica econmica so associados com a suposio que a emigrao pode contribuir positivamente para o desenvolvimento do pas de origem dos imigrantes. Essa abordagem otimstica est dominando na discusso econmica nos ltimos 15-20 anos. Porm, existe tambm o enfoque pessimstico, com a pressuposio de que emigram os individuais mais aptos: jovens, empreendedores, trabalhadores altamente qualificados. Considerada assim, a migrao um fenmeno associado com o detrimento para os Estados emissores, contribuindo para a agravamento da pobreza. Essas abordagens contraditria esto presentes na anlise da relao entre o desenvolvimento econmico e o movimento populacional no quadro internacional desde os anos 1960 (De Haas, 2008). J que impossvel analisar todos os aspectos dessa discusso num simples artigo, na prxima seo analisaremos o aspecto mais conhecido na literatura de migrao e desenvolvimento o impacto das remessas monetrias sobre a economia do pas emissor.

Remessas monetrias e desenvolvimento do pas de origem

O mais evidente e visvel efeito econmico da emigrao para o pas de origem dos imigrantes o afluxo das remessas monetrias.7 Esse afluxo a consequncia da estratgia descrita nas teorias de migrao mais precisamente, na nova economia da migrao. A unidade familiar diversifica os recursos disponveis: alguns membros emigram para obter emprego no exterior. Os emigrantes contribuem para o oramento familiar das pessoas remanescentes no pas de origem, transferindo a parte dos seus salrios. Eles tambm realizam a estratgia individual de diversificao dos recursos, investindo parte do capital poupado no pas de origem e parte na destinao. Nesse contexto, as remessas devem provocar impactos econmicos considerveis no nvel micro, nas reas de emigrao (Taylor, 1999).

As consequncias econmicas das remessas, no entanto, devem ser visveis tambm no nvel macro, levando em considerao que o fluxo de recursos dos imigrantes para os pases emergentes tem crescido de maneira impressionantemente considervel nos ltimos quarenta anos (Figura 2). Em 1970, todos os pases emergentes8 recebiam apenas US$ 405 milhes, e os pases da Amrica Latina e Caribe a regio de maior recebimento , US$ 51 milhes. Em 1990, esses nmeros subiram para US$ 31 bilhes e US$ 5,7 bilhes, respectivamente. Em 2008, o influxo bruto de remessas para os pases emergentes atingiu US$ 338 bilhes, o nmero que constituiu 2% do Produto Interno Bruto dessas economias. Os pases da Amrica Latina receberam nesse ano US$ 64,7 bilhes de remessas, que constituam 1,8% de seus PIB (Ratha et al., 2009). Mesmo com a recente reduo do afluxo das remessas, em razo da crise financeira mundial, esses nmeros so impressionantes.9 Portanto, deve-se levantar a questo se as remessas de recursos dos imigrantes podem afetar positivamente as economias de pases de emigrao.

Na discusso em torno de implicaes econmicas das remessas devem-se destacar duas abordagens contraditrias: a otimstica e a pessimstica. O enfoque otimstico salienta que as remessas podem contribuir para a formao do capital humano, por meio de investimentos em educao ou sade. Esse tipo de transferncias pode ser denominado como remessas produtivas (Canales, 2005): elas podem tambm proporcionar um aumento de investimentos privados em capital fsico, porque os emigrantes criam empresas e novos lugares de trabalho. Assim, em vez de influenciar a economia da maneira temporria, as remessas constituem um fator importante para o desenvolvimento econmico em longo prazo, aumentando a renda per capita e reduzindo a pobreza. Esses efeitos positivos devero ser visveis tanto no nvel micro como no macroeconmico (Ghosh, 2006).

Existe tambm, no entanto, uma abordagem pessimstica que aponta que duvidoso que as remessas podiam causar efeitos positivos em situaes em que "tanto as polticas do estado, como as aes de mercado haviam fracassado sistematicamente" (Canales, 2005, p.3). Apenas uma pequena parcela de recursos transferidos do exterior usada de maneira produtiva, pois "as remessas esto sendo direcionados principalmente para despesas correntes do dia-a-dia [...] ou seja, o dinheiro usado para aquisio dos bens de consumo de curto prazo" (Martes & Soares, 2006, p.41). Isso acontece em razo do grande grau de pobreza no qual as famlias de emigrantes se encontram. Portanto, no nvel micro, as remessas ajudam a manter um mnimo padro de vida, mas no constituem fora suficiente para a promoo de mobilidade social (Oliveira Vidal, 2008). O estvel afluxo de recursos do exterior para unidade familiar pode desmotivar aqueles que permaneceram. Portanto, as famlias de emigrantes podem trabalhar menos do que teriam feito se no tivessem o dinheiro transferido por dispora. Assim, existe perigo de dependncia estrutural dessas famlias de ajuda financeira dos emigrantes (Fajnzylber & Lpez, 2008). No nvel macro, o afluxo de remessas pode contribuir para a "elevao da reserva de moeda estrangeira, que pode gerar valorizao da moeda nacional, o que por sua vez interfere na lucratividade da exportao dos produtos manufaturados" (Oliveira Vidal, 2008, p.13-14), o conceito econmico conhecido na literatura como a "doena holandesa" (Dutch disease Taylor, 1999).

Os estudos empricos sobre os efeitos econmicos das remessas demonstram resultados contraditrios. No nvel macro, algumas pesquisas indicam que no existe evidncia de que remessas recebidas por um pas afetem positivamente a taxa de crescimento econmico. Esse foi o caso do estudo efetuado por Nicola Spatafora (2005), que analisou 101 pases em desenvolvimento nos anos 1970-2003. Esse estudo demonstrou que no existe uma relao estatisticamente significante entre o volume de remessas e gastos em educao ou sade, nem entre as remessas e os investimentos. Da mesma forma, essa relao no podia ser comprovada no caso da taxa do crescimento, at em caso de pases nos quais as remessas constituam mais de 1% do PIB. O autor concluiu que o impacto das remessas sobre o desenvolvimento tem um carter complexo e indireto, portanto, muito difcil evidenci-lo nos estudos macroeconmicos (Spatafora, 2005).

A tentativa de demonstrar a contribuio indireta das remessas no desenvolvimento econmico est presente no estudo de Giuliano & Ruiz-Arranz (2009). As autoras analisaram a relao entre o afluxo de remessas e o crescimento econmico, incluindo a efetividade do setor financeiro dos pases de origem dos imigrantes. A pesquisa, realizada nos setenta pases emergentes nos anos 1975-2002, demonstra que as remessas podem afetar positivamente a taxa de crescimento econmico quando se levam em considerao as variveis que descrevem o nvel de desenvolvimento do sistema financeiro nacional e a efetividade do mercado de crdito. Nos pases onde o acesso ao crdito difcil ou custoso, os recursos transferidos pelos imigrantes constituem uma fonte alternativa de financiamento dos investimentos. Nesse grupo de economias, a relao entre remessas e taxa de crescimento foi positiva e estatisticamente significante. Ademais, nos pases com baixo nvel de desenvolvimento do setor financeiro, as remessas tm um carter pr-cclico, ou seja, crescem quando aumentam as possibilidades do investimento, durante o boom econmico (Giuliano & Ruiz-Arranz, 2009).

O debate entre as abordagens pessimstica e otimstica est visvel tambm nas pesquisas que analisam os efeitos econmicos das remessas na Amrica Latina e Caribe. No estudo emprico efetuado em quatro pases latino-americanos (Mxico, Colmbia, El Salvador e Repblica Dominicana) nos anos 1980-2004, Alejandro Canales (2005, p.6) salienta que "no h evidncia estatstica que permita definir as remessas como a fonte de investimento produtivo". Segundo o autor, as remessas produtivas na Amrica Latina constituem apenas 5% do afluxo total de transferncias. Mesmo com a duplicao da proporo de remessas produtivas para o 10% do total, elas "representariam apenas 1% de investimentos privados no Mxico, menos de 2,5% em Colmbia e Equador, menos de 5% em Repblica Dominicana, Guatemala, Honduras e Nicargua e menos de 8% em El Salvador e Haiti" (ibidem, p.23). Ao contrrio do que foi comprovado por Giuliano & Ruiz-Arranz (2009), Canales (2005) aponta que no seu estudo as remessas demonstram carter anticclico e aumentam seu volume em situaes de crise econmica.10 Ademais, o efeito positivo de remessas, notavelmente a sua contribuio na reduo de pobreza, limitado: nos oito pases analisados (Mxico, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicargua, Repblica Dominicana, Equador e Peru), elas possibilitaram reduzir a taxa de pobreza em menos de 1,5 ponto percentual.

O estudo de Acosta et al. (2008) demonstra, no entanto, que as transferncias de recursos dos imigrantes podem ajudar consideravelmente na reduo de pobreza. A anlise emprica feita pelos autores abrangeu 59 pases emergentes nos anos 1970-2000. Para todos os pases da Amrica Latina e Caribe, o aumento do afluxo de remessas por um ponto percentual era em mdia associado com a reduo de pobreza11 por 0,37%. Dessa forma, as remessas reduziam o nmero de pessoas vivendo por menos de um dlar por dia por 35% na Repblica Dominicana, 36% em El Salvador e 40% no Mxico.

Nos nveis mezo (regies) e micro (comunidades locais), as pesquisas sobre os efeitos econmicos de remessas tambm mostram um quadro no unilateral. De um lado, as anlises mostram que as famlias de emigrantes gastam os recursos obtidos no exterior em consumo, muitas vezes comprando bens de luxo, que so importados. Por exemplo, no estudo de Slask Opolski, uma regio de intensiva emigrao de poloneses para a Alemanha e a Holanda, Romuald Jonczy percebe que a maioria dos servios encomendados pelos emigrantes e suas famlias tem sua origem em outras regies do pas (construo de casas, reparos), enquanto os bens comprados por esse grupo so, em sua maioria, importados da Alemanha (especialmente automveis). O autor conclui que o dinheiro das remessas, em vez de circular na economia local e regional, estimulando o desenvolvimento econmico, volta rea onde foi ganho (Jonczy, 2006).

Deve-se tambm salientar que a produtividade das remessas e seu impacto sobre o desenvolvimento dependem especialmente das condies socioeconmicas existentes na regio de emigrao. Martes & Soares (2006, p.50) acentuam que

as remessas monetrias, raramente, so usadas com propsito produtivo, o que se deve em larga medida inexistncia de ambiente propcio a esse tipo de investimento: se o pas de origem no oferece ambiente social, econmico e institucional favorvel para que o migrante use seu capital econmico e humano produtivamente, parece irreal esperar que as remessas possam, por si mesmas, promover a reduo da pobreza e o desenvolvimento local.

O que "produtivo", portanto, quando analisamos as despesas de recursos remetidos depende do contexto socioeconmico. No estudo efetuado na regio de Oaxaca, Mxico, Silvia Grigolini (2005) mostra que as remessas dos emigrantes podem ser usadas de maneira produtiva, mesmo se os gastos de unidades familiares podem ser classificados como a compra dos bens de luxo. O que no primeiro momento podia ser visto como consumo desnecessrio se tornava investimento que trazia lucro: automveis trazidos do exterior eram usados como txis; geladeiras e aparelhos de televiso faziam parte de um bar. A mulher que recebeu um aparelho telefnico de seu filho imigrante nos Estados Unidos abriu um posto telefnico oferecendo seu nmero a todos que precisavam dele, e cobrando uma pequena proviso pelo servio (Grigolini, 2005). Essas descobertas foram possveis somente porque a autora passou muito tempo nas comunidades locais, conversando com os habitantes e observando suas atividades. A concluso simples: querendo avaliar o efeito econmico das remessas no nvel local, no basta somente analisar os dados sobre o consumo; necessrio estudar a consumao dos habitantes no contexto local, como tambm observar como esses bens so utilizados.

Remessas e a economia brasileira

O Brasil um dos principais recebedores de remessas na Amrica Latina: o influxo de transferncias, segundo os dados do Banco Mundial, aumentou de maneira considervel no final dos anos 1980, alcanando US$ 1,1 bilho no ano 1991 (Figura 3).

Deve-se acrescentar que o fluxo desses recursos tem carter bilateral: dinheiro que imigrantes remetem para suas famlias no pas, mas tambm os membros de famlia que permaneceram ajudam os imigrantes no exterior. Essa ajuda financeira intensificada especialmente nas situaes de crise econmica na destinao: por exemplo, no ano 2001, quando houve a reduo do PIB dos Estados Unidos (a principal destinao para os imigrantes brasileiros) de 0,8%, o refluxo de remessas do Brasil quase dobrou em relao ao ano anterior (2000), atingindo US$ 709 milhes. Portanto, analisando os possveis impactos de remessas para a economia brasileira, preciso considerar o influxo lquido, ou seja, influxo bruto subtraindo o refluxo. Esse alcanou o pico em 2008: eram US$ 3,9 bilhes. Em 2009, por causa da crise financeira da economia global, o fluxo de remessas reduziu consideravelmente as estimativas para esse ano, que incluem apenas influxo bruto, demonstram diminuio de remessas para o Brasil de 3,5% em relao ao ano anterior (Ratha et al., 2009).

Neide Patarra (2006) aponta que transferncias dos recursos de imigrantes contribuem significantemente para a diminuio do desequilbrio da balana de pagamentos. De acordo com os dados apresentados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, US$ 5,8 bilhes de remessas (influxo bruto) que entraram no Brasil em 2003 representavam 7% das exportaes brasileiras.12 Patarra afirma que transferncias dos recursos de imigrantes superaram as exportaes de soja (US$ 4,3 bilhes em 2003) e do caf (US$ 1,3 bilho). Dessa maneira, "o emigrante continua sendo o maior produto de exportao do Brasil" (ibidem, p.30).

Cumpre, no entanto, ressaltar que as remessas para o Brasil, mesmo alcanando valores impressionantes nos ltimos anos, formam uma pequena frao da economia nacional, constituindo apenas 0,3% do PIB em 2008. Portanto, alguns pesquisadores apontam que em caso de grandes pases-receptores de remessas como o Brasil, o peso das remessas no nvel macroeconmico limitado (Canales, 2005). Outros autores ressaltam que, em razo da grande disperso de remessas pelo territrio brasileiro, "parece razovel admitir efeito virtuoso pouco significativo na dinmica econmica das grandes cidades So Paulo, Belo Horizonte e Vitria" (Martes & Soares, 2006, p.50); j o efeito benfico pode ser considervel nas regies de intensiva emigrao, como as cidades de Governador Valadares (MG), Cricima (SC) e Maring (PR). Segundo Wilson Fusco (2005), das remessas mandadas para essas cidades, uma das principais finalidades era o investimento que variava entre 16% (Cricima) e 19% (Maring) do montante.

O estudo de Weber Soares (Martes & Soares, 2006) demonstra que na economia da cidade de Governador Valadares (MG) o fim produtivo das remessas era ainda maior: 38% dos recursos transferidos eram aplicados em compra, construo ou reforma de imveis. Portanto, as remessas influenciaram de maneira considervel o mercado imobilirio: 35,9% de transaes no perodo 1984-1993 eram realizadas pelos emigrantes. Soares afirma que os emigrantes valadarenses obtiveram um avano social na comunidade de origem, passando a ocupar a posio de investidores. Esses investimentos dos emigrantes contriburam para o desenvolvimento econmico local: no perodo 1991-1996, o PIB do Estado de Minas Gerais registrou a taxa de crescimento de 3,2% ao ano, enquanto em Governador Valadares o PIB crescia num passo de 6,1%. O autor sinaliza que esse desenvolvimento dinmico deve ser atribudo ao "boom da construo civil, gerado pela poupana enviada do exterior pelos emigrantes internacionais de Valadares" (Martes & Soares, 2006, p.47).

Os estudos nacionais demonstram que no Brasil as remessas produtivas constituem a parte importante do afluxo total de transferncias, o nmero consideravelmente maior do que o mdio uso produtivo das remessas na Amrica Latina (5% do montante), estimado por Alejandro Canales (2005). Portanto, pode-se alegar que, no caso brasileiro, as remessas contribuem de maneira positiva para o desenvolvimento econmico. Com o aumento da emigrao do territrio nacional, que dever ser continuado nos prximos anos, existe a expectativa de que a importncia das remessas como um fator positivo para economia brasileira ainda crescer. No entanto, esses efeitos benficos no so visveis em nvel macroeconmico (economia nacional), mas sim em nvel mezo, ou seja, as principais regies de intensiva emigrao, com especial nfase em Governador Valadares.

Ademais, o efeito positivo de remessas pode ser ainda maior, se levarmos em considerao o contexto socioeconmico das comunidades onde o dinheiro mandado do exterior gasto. Nas regies pobres, onde o acesso ao crdito difcil, recursos remetidos constituem uma fonte alternativa de financiamento dos investimentos. Como demonstrou Silvia Grigolini no estudo sobre as remessas no Estado de Oaxaca, no Mxico (descrito na seo anterior), os recursos oriundos de remessas que inicialmente poderiam ser classificados como consumo desnecessrio, depois de cautelosa anlise podem emergir como investimentos produtivos. Porm, no Brasil esses efeitos positivos escondidos de remessas somente podem ser descobertos com estudos profundos, realizados em nvel microeconmico nas reas de maior concentrao das famlias dos emigrantes.

O uso produtivo de remessas no Brasil est tambm limitado pela inexistncia de ambiente social e institucional favorvel a esse tipo de investimento. Portanto, existe a necessidade da introduo das polticas em mbito federal, estadual ou municipal, que promovam o uso produtivo de remessas. O exemplo da estratgia que teve resultados positivos o programa desenvolvido pelas associaes de emigrantes do Estado de Zacatecas (na parte centro-norte do Mxico). Essas associaes, em colaborao com o governo estadual de Zacatecas e o governo federal, desenvolveram programas de investimento em infraestrutura nas comunidades de origem dos emigrantes. O nome do projeto "3x1" (trs por um), por causa do sistema de financiamento: a cada peso transferido pelas associaes de emigrantes, os governos estadual e federal contribuem com adicional de um peso. Com esse dinheiro foram construdas estradas, escolas e hospitais nas comunidades locais. O fator mais importante, que contribuiu para o sucesso desse programa, no apenas o capital remetido pelos emigrantes, mas tambm o envolvimento da dispora no processo de identificao das necessidades de projetos infraestruturais, seu planejamento e superviso. Portanto, os investimentos financiados com esse programa foram mais efetivos do que os projetos realizados pelo Estado (Kuznetsov & Sabel, 2008). Esse tipo de poltica pode ser adaptado e transferido para o caso brasileiro, especialmente nas comunidades de intensiva emigrao. Na dispora brasileira, que neste momento constitui quase quatro milhes de indivduos, existe um grande potencial, que pode ser usado para atrair os emigrantes s atividades econmicas produtivas e benficas para as regies de origem. A condio principal para que esse potencial possa ser liberado o envolvimento mais ativo da classe poltica nacional nos problemas de dispora brasileira.

Notas

1 Baseando-se nos censos brasileiros, Maria Stella Ferreira Levy (1974) ressalta que durante cem anos entre 1872 e 1972 entraram no Brasil cerca de 5,4 milhes de imigrantes; a grande maioria era de origem europeia (isto , portugueses, italianos, espanhis, alemes, poloneses, ucranianos e judeus).

2 Esse nmero o resultado da projeo feita pelo Departamento de Assuntos Econmicos e Sociais (Desa, 2009) da Organizao das Naes Unidas em 2009.

3 Nesse caso, os nmeros referem-se a migrantes com dez ou mais anos de idade no ano de 1990 (Carvalho & Campos, 2006).

4 Entende-se o conceito de dispora no sentido proposto pelo Robin Cohen (1996), e introduzido na literatura brasileira por Neide Lopes Patarra (2006), ou seja: um grupo dispersado de seu pas de origem rumo a (pelo menos) duas destinaes no exterior que mantm nas reas de imigrao a particular identidade tnica. Esse grupo sustenta laos com pas de origem, mas tambm entre as vrias comunidades de compatriotas no exterior. Finalmente, a disperso desse grupo foi originada pelo acontecimento trgico (guerra, golpe de Estado migrao forada), ou por fatores econmicos (desenvolvimento do comrcio, procura do emprego no exterior). Nesse sentido, os emigrantes brasileiros podem ser definidos como uma dispora de trabalho.

5 As anlises mais recentes veem os papis apresentados durante o VI Encontro Nacional Sobre Migraes, da Associao Brasileira de Estudos Populacionais, 12 a 14 de agosto de 2009; por exemplo, estudo de Kleber Fernandes de Oliveira (2009) sobre a migrao interna em Sergipe nos anos 1980-2000 e o impacto desse processo para o nvel de pobreza nas reas de origem e nas regies destinatrias.

6 Por exemplo, Marcelo de Oliveira Vidal (2008) aponta que no caso de brasileiros na Espanha, 66,2% esto em situao ilegal. Martes & Soares (2006) afirmam que no grupo de entrevistados brasileiros na rea metropolitana de Boston, nos Estados Unidos, 83% dos imigrantes declararam-se no documentados.

7 De acordo com a definio construda pelo Banco Mundial, pelas remessas monetrias entende-se um afluxo conjunto de 1) remessas de emigrantes, 2) compensao dos trabalhadores e 3) transferncias dos emigrantes. As "remessas de emigrantes" so transferncias dos trabalhadores que permanecem no exterior por mais de um ano, enquanto "compensao de trabalhadores" so transferncias dos trabalhadores que permanecem no exterior por um tempo menor do que um ano. Enfim, "transferncias dos emigrantes" so bens e ativos financeiros trazidos pelo emigrante quando ele (ela) ultrapassa a fronteira, por exemplo: o carro comprado no exterior (Ghosh, 2006).

8 Os pases emergentes, segundo o Banco Mundial, constituam em 2007 um grupo de 144 economias, que podiam ser adicionalmente divididas em trs grupos: economias de baixa renda (low-income economies 49 pases em 2007), economias de renda mdia-baixa (lower-middle-income economies 54 pases) e economias de renda mdia-alta (upper-middle-income economies 41 pases).

9 Deve-se tambm salientar que os nmeros apresentados so apenas os dados oficiais a grande parte de remessas no est documentada, pois transferida por meios no oficiais. As estimativas feitas pela Organizao Internacioanal de Migrao (IOM) mostram que remessas no documentadas constituem no mnimo 50% do fluxo oficial (IOM, 2008).

10 Alejandro Canales analisa cada pas separadamente, portanto em cada modelo macroeconmico o nmero de observaes modesto (25 observaes). Ademais, a escolha de variveis independentes duvidosa, pois existe perigo de correlao entre a taxa de cmbio e a taxa do crescimento econmico. Dessa forma, os resultados dessa anlise devem ser tratados com cautela.

11 O nvel de pobreza era definido com a linha de pobreza mundial, ou seja, nvel de renda inferior a um dlar por dia.

12 Os dados apresentados por Neide Patarra so os estimativos do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Esses nmeros so mais altos do que os dados apresentados pelo Banco Mundial. Porm, Neide Patarra est descrevendo o influxo bruto de remessas. Como foi comentado antes, no nvel macroeconmico deve-se analisar o tamanho de remessas lquidas, que no caso brasileiro seria consideravelmente menor.Introduo As migraes internacionais, atualmente, constituem um espelho das assimetrias das relaes scio-econmicas vigentes em nvel planetrio. So termmetros que apontam as contradies das relaes internacionais e da globalizao neoliberal.Numa perspectiva sociolgica, as migraes so percebidas sob a tica estruturalista como uma das conseqncias da crise neoliberal contempornea. No contexto do sistema econmico atual, verifica-se o crescimento econmico sem o aumento da oferta de emprego. O desemprego passa a ser uma caracterstica estrutural do neoliberalismo, e as pessoas, ento, migram em busca, fundamentalmente, de trabalho. E isto se verifica tanto no plano interno como no internacional. Sobre a lgica do progresso econmico e do desenvolvimento social impera a lgica do lucro, onde todos os bens, objetos e valores so passveis de negociao, como as pessoas e at os seus rgos, a educao, a sexualidade e, inevitavelmente, os migrantes.Tomando por base o referencial demogrfico, tem-se que os deslocamentos migratrios fazem parte da natureza humana, mas so estimulados, quando no forados, nos dias de hoje, pelo advento da tecnologia e pelo impacto da problemtica econmica, nesta lgica inversa de sua preponderncia em relao ao ser humao..Na tica jurdica, um olhar rpido sobre a regulamentao da matria evidencia as mudanas: No sculo XIX, muitos pases no adotavam diferenas entre os direitos dos nacionais e os dos estrangeiros. Assim, o cdigo Civil holands (1839), o Cdigo Civil chileno (1855), o Cdigo Civil Argentino (1869) e o Cdigo Civil Italiano (1865) eram legislaes que equiparavam direitos. Com as guerras mundiais ocorridas nas dcadas de 20 e 30 houve um retrocesso em relao compreenso dos direitos do migrante e muitos pases estabeleceram restries aos direitos dos estrangeiros em suas legislaes.No Brasil, a Constituio de 34[3] e a de 37[4] refletem esta tendncia. A Constituio de 46 seguiu esta orientao de restrio aos direitos dos estrangeiros, consubstanciada em abundante legislao infraconstitucional. Com o fim da II Guerra Mundial, o Brasil entra em um perodo de expanso. Flexibiliza-se a poltica de imigrao para poder buscar mo-de-obra especializada. Tal situao configura-se no texto do Decreto-Lei no. 7.967[5], de 18/09/1945, buscando aliar aquela necessidade com a proteo do trabalhador brasileiro. Mas, por outro lado, mantm uma postura racista, ao privilegiar a imigrao europia.J a Constituio de 1988 abre-se para outra viso. Assegura carter hegemnico ao conceito de que os estrangeiros residentes no pas esto em condio jurdica paritria dos brasileiros no que concerne aquisio e gozo de direitos civis, como afirma o art. 5, caput[6], que assegura a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana[7]. Contudo, o Brasil convive, ainda em nossos dias, com um Estatuto do Estrangeiro superado, editado em plena vigncia do regime militar, a Lei 6815/80. 1. Conjuntura atual1.1. O final do sculo XX e o comeo do novo milnio esto caracterizados por um clima de desiluso e desconfiana, conseqncia de situaes vividas e sofridas durante o sculo findo. Apesar dos ideais libertrios e igualitrios do mundo moderno, a humanidade conheceu os crimes hediondos de Auschwitz, de Hiroshima, do campo de concentrao de Gulag, das ditaduras militares, da depredao do meio ambiente e do empobrecimento dos povos do sul do mundo.Esta sensao de desiluso foi impulsionada tambm pela conjuntura poltica. A queda do muro de Berlin representou um golpe para os que acreditavam na possibilidade de planejar sociedades igualitrias e justas. Sobrou a dura lei do mercado, logo proclamada como nica vencedora. Os falsos profetas vaticinaram: o fim da histria e da utopia; no precisa olhar mais para o horizonte, nem buscar mais, pois o destino da humanidade j est traado: o caminho da globalizao neoliberal.Desfrutando do barateamento e dos avanos tecnolgicos no mbito da comunicao e dos transportes, este modelo de globalizao garante mais direitos aos capitais e s mercadorias que aos seres humanos. Com efeito, o que caracterizaria a poca atual, mais que uma globalizao, seria uma verdadeira dualizao do planeta, estruturada de forma a enriquecer os mais ricos e empobrecer os mais pobres. Estes, no raramente, so reificados ou mercantilizados em vista da maximizao do lucro, o grande mvel da nova ordem internacional.Nesta conjuntura, agravada com os atentados de 11 de setembro (EUA) as migraes, que no passado eram vistas como um potencial de trazer novidades enriquecedoras, agora so tidas como uma fonte de terrorismo, ameaa ao emprego dos autctones e segurana dos Estados.Por outro lado, a intensidade e a complexidade da mobilidade humana contempornea trazem srias interrogaes em relao a suas causas. Trata-se de um fenmeno espontneo ou induzido? Estamos diante de migraes voluntrias ou foradas? Na realidade, tem-se a impresso de que a emigrao macia para os pases do Norte do Mundo, antes que conseqncia da livre escolha de indivduos, decorra diretamente da crise do atual modelo de globalizao neoliberal que concentra as riquezas e subordina o capital produtivo e gerador de empregos ao capital especulativo. A propsito, vale citar a afiramo de Roberto Kurz: preciso deixar de dar explicaes do tipo o ser humano sempre fez guerras e sempre migrou. Isto no ajuda a compreender este fenmeno que indito e nunca ocorreu em to alta escala como agora. A migrao no nada novo na histria da modernizao, mas, sim, h um erro na avaliao ao dizer que as pessoas migram livremente em busca de melhores condies. um processo coativo. Os pobres so livres para vender sua mo de obra, porm fazem isto porque no tm condies para controlar sua existncia. A transformao da sociedade capitalista numa situao mundial produziu uma sociedade de excluso. O ser humano participa de um sistema no qual vende abstratamente sua mo de obra e integra uma engrenagem (montada) para produzir acumulao infinita de capital, afirma.1.2. Essa realidade pode ser elucidada por meio de alguns dados estatsticos. O relatrio da FAO de 2003 sobre Insegurana Alimentar[8] mostra que entre 1995/97 e 1999/2001 houve um aumento em 18 milhes de pessoas que sofrem fome crnica. Esses dados tornam praticamente invivel o propsito, feito na Cpula sobre Alimentao de 1996, de reduzir pela metade o nmero de pessoas famintas at 2015. Conforme o mesmo relatrio, as regies geogrficas em que a porcentagem de pessoas famintas maior so: a frica (com exceo da frica do Norte), a Amrica Central, o Caribe e a sia Meridional. No Dia Mundial da Alimentao, 17 de outubro de 2004, a FAO denunciou que morre de fome uma pessoa a cada quatro segundos: dos 842 milhes de seres humanos que passam fome no mundo inteiro, 798 (sobre)vivem nos pases em desenvolvimento.O dcimo relatrio anual da UNICEF, A situao Mundial da Infncia - 2004[9], revela que entre os 2,2 bilhes de crianas (at os 15 anos) que vivem no mundo, 1,9 bilhes residem em pases em desenvolvimento, sendo que um bilho delas subsistem na pobreza. Aproximadamente, uma em cada duas crianas vive com alimentao no adequada, sem acesso educao nem gua potvel. O relatrio denuncia tambm o elevado nmero de crianas que trabalham (180 milhes), morrem em conflitos blicos (45% das vtimas), so obrigadas a fugir de conflitos (20 milhes), so traficadas (1,2 milhes) e exploradas sexualmente (2 milhes).Estes dados tornam-se mais dramticos ao constatar que a raiz da fome no a falta de alimentos, mas a falta de vontade poltica, como afirma Jacques Diouf, Diretor Geral da FAO, no prlogo do supracitado relatrio. Os fracassos das cpulas multilaterais sobre desenvolvimento sustentvel (Johanesburgo) e alimentao (Roma) revelam a pouca preocupao dos pases mais ricos com a Auschwitz contempornea - a misria e a excluso da maioria da populao mundial - e a frgil e hedionda tentativa de resolver o problema migratrio atravs de polticas excludentes.1.3. Essa situao, j dramtica, ulteriormente agravada pelo recrudescimento de polticas imperialistas e unilaterais, ideologicamente legitimadas pelo combate ao terrorismo. De fato, aps os atentados de Nova Iorque, alastrou-se um clima de desconfiana e suspeita em relao a todos os estrangeiros. Em nome da defesa dos direitos humanos, implementam-se polticas e legislaes imigratrias cada vez mais rgidas, a ponto de provocar reiteradas denncias por parte de organizaes internacionais de promoo de direitos humanos.A utilizao indiscriminada da fora blica, mesmo sem o consentimento de organismos multilaterais, torna cada vez mais difcil distinguir aquelas aes realmente voltadas luta contra o terrorismo e aquelas que, ao contrrio, visam a imposio dos interesses geopolticos e econmicos de determinados pases. Na realidade, tem-se a impresso de que os acontecimentos do dia 11 de setembro tenham apenas radicalizado e legitimado uma tendncia pr-existente em considerar o estrangeiro como uma ameaa - econmica e cultural - para os pases ocidentais. 2. Sinais de esperanaNo faltam, no meio de todas essas sombras, sinais de esperana. O Frum Social Mundial com seu lema Um outro mundo possvel, os generalizados protestos, em 2004, contra a guerra no Iraque, a prtica inserida e cotidiana de movimentos populares pacifistas, ecolgicos, contra o racismo, pela promoo da mulher, contra o trabalho escravo, contra o trfico e explorao de crianas e, mais em geral, em prol dos direitos humanos, revelam a existncia de uma rede de resistncias contra o atual modelo de globalizao neoliberal. Muitos desses movimentos populares esto se tornando verdadeiras caixas de ressonncia do clamor de milhes e milhes de empobrecidos e excludos que com suas vidas sofridas, seus corpos martirizados e seus coraes feridos clamam por uma sociedade planetria em que todos tenham reconhecidos e respeitados os direitos de cidadania.[10] 3. Dimenso do fenmeno 3.1. Migraes InternacionaisO World Economic and Social Survey 2004[11] aponta que 175[12] milhes de pessoas vivem fora do pas em que nasceram. Isso significa que uma em cada 35 pessoas migrante, o que corresponde a 2,9% da populao mundial. A intensidade do fenmeno pode ser elucidada levando em conta que, em 1910, o nmero de emigrantes era de 33 milhes, ou seja, 2,1% da populao planetria.No que se refere distribuio da populao migrante, em 2002, a maior parte vivia na sia (43,8 milhes), seguida pelos EUA e Canad (40,8 milhes), Europa ocidental (32,8 milhes) e a ex-Unio Sovitica (29,5 milhes). Menor a presena na frica (16,3 milhes), Amrica Latina (5,9 milhes) e Oceania (5,8 milhes).A Amrica do Norte passou por um relevante fluxo migratrio nas ltimas duas dcadas, sendo que atualmente incorpora 23% do total de migrantes mundiais. J na Europa, excluindo a ex-URSS, a porcentagem no total de migrantes permaneceu estvel entre 1960 e 2000 (em torno de 18%), mas houve um sensvel aumento da porcentagem em relao populao da regio: passou-se de 3,3%, em 1960, para 6,4%, em 2000.Apesar da evoluo e diversificao dos destinos, segundo o Informe, as migraes internacionais continuam bastante concentradas, sendo que 75% do total de migrantes esto em 28 pases (em 1960, estavam em 22 pases). Nos EUA se encontra 20% do total (35 milhes), seguidos pela Rssia (13 milhes), a Alemanha (7,3 milhes), a Ucrnia (6,9%), a Frana e a ndia (6,3 milhes cada). O informe da ONU aponta tambm 16 pases que nos 10 qinqnios - entre 1950 e 2000 - tiveram saldo migratrio sempre negativo e 7 pases que, nos mesmos perodos, tiveram saldo migratrio positivo. Os primeiros podem ser considerados pases de emigrao (entre eles, Mxico, Cuba, Bolvia, Colmbia, Bulgria, Polnia, Bangladesh e ndia) e os segundos de imigrao (EUA, Frana, Canad, Sucia, Israel, Austrlia e Costa de Marfim). A maioria dos pases, todavia, intercala saldos negativos, positivos ou saldo zero. Os pases que passaram por trs ou mais qinqnios com saldo migratrio negativo so classificados como pases de emigrao, como, por exemplo, Brasil.Segundo o informe da ONU, 63% dos migrantes residem em pases desenvolvidos (110 milhes). Embora seja um fenmeno recente - a maioria dos migrantes internacionais vivia em pases em desenvolvimento nos levantamentos de 1980 (52%), de 1970 (53%) e 1960 (58%) - no h dvida de que os fluxos migratrios das ltimas duas dcadas esto se direcionando preferencialmente para os pases economicamente mais ricos. No por acaso que a porcentagem de migrantes nos pases desenvolvidos passou de 3,4% para 8,7% da populao.Cabe ressaltar, contudo, que os fluxos migratrios internacionais so complexos e volteis, sendo bastante comum, por exemplo, a brusca inverso de saldos migratrios ou a existncia simultnea de uma forte emigrao e imigrao. Por exemplo, dos EUA, o principal plo de atrao do mundo, saem anualmente 200 mil cidados.Quanto perspectiva de gnero, o Informe da ONU aponta uma substancial igualdade da participao feminina e masculina nas migraes internacionais. As mulheres, que eram 46,7% dos migrantes em 1960, atualmente perfazem 48,6% do total. No entanto, o aumento da migrao feminina no universal nem homogneo. Na sia, por exemplo, as mulheres passaram de 46%, em 1960, para 43%, em 2000. Na frica, embora em aumento, as mulheres migrantes perfazem apenas 46,7% do total. J houve um significativo aumento entre os anos 1960 e 2000: na Amrica Latina, de 44,7% para 50,2%; na Oceania, de 44,4% para 50,5%; e, na Europa, de 48,5% para 51%.No que diz respeito aos refugiados e desplazados, os ltimos dados divulgados pelo ACNUR referentes ao ano 2003, calculam em 17,1 milhes as pessoas sob o cuidado da instituio, uma diminuio de 18% em relao ao ano anterior. Do total, cerca de 9,6 milhes so refugiados reconhecidos, cujo nmero registrou uma diminuio em todos as regies, com exceo da frica ocidental (+0,6%). Ocorreu, entre 2002 e 2003, uma sensvel diminuio de refugiados na Bsnia-Herzegvina (-108 mil), Serra Leoa, Crocia, Burundi, Somlia e Timor Leste. Por outro lado, aumentaram os refugiados do Sudo (+100 mil) e da Libria. O Paquisto o principal lugar de acolhida, seguido pelo Ir, Alemanha, Tanznia e Estados Unidos.3.2. Migraes Latino-americanasDe acordo com os dados da CEPAL contidos no "Panorama Social de Amrica Latina 2004"[13], a maioria da populao migrante presente na regio oriunda da prpria Amrica Latina (58,7%), totalizando 2.700.000 pessoas. Isso constitui uma novidade, pois em 1990, a porcentagem era de 48,8% e, em 1980, de 36,9%. Entre as razes apontadas para o crescimento da emigrao intra-regional, sinalizam-se: a caracterstica cultural, as razes histricas comuns e a complementaridade dos mercados laborais subjacentes aos intercmbios migratrios, alm, claramente, da cessao das correntes imigratrias de ultramar[14].Os dados da CEPAL confirmam tambm a intensidade do fluxo migratrio dos anos 90, cujo resultado a presena de, no mnimo, de 20 milhes de latino-americanos fora do pas de nascimento. Entre eles, cerca de 15 milhes vivem nos Estados Unidos, sendo a maioria formada por mexicanos (54%), cubanos, dominicanos e salvadorenhos. Desde 1970, o nmero de latinos nos EUA quase decuplicou. A populao migrante indocumentada nos EUA estimada em 7 milhes de pessoas, 70% das quais de origem mexicana. (O Censo de 2000 contabilizou 7 milhes de ilegais e outros 12 milhes de estrangeiros vivendo legalmente no pas.)A CEPAL sinaliza tambm a presena de cerca de 3 milhes de latino-americanos que escolheram viver em outros pases, com preferncia pelo Canad, Japo, Austrlia, Israel e a Unio Europia. Entre eles h muitos que optaram por retornar nos pases de origem dos prprios familiares, freqentemente aps o pedido de reconhecimento da cidadania. Destaca-se tambm a presena de 840 mil latinos na Espanha que, desta forma, se tornou o segundo plo de atrao da emigrao latino-americana.Quanto perspectiva de gnero, o Informe relata que as tendncias da participao de mulheres sugerem uma feminizao quantitativa, o que uma caracterstica distintiva da migrao latino-americana e caribenha, em comparao com outras regies do mundo. Na emigrao para os EUA, verifica-se uma alta porcentagem de mulheres entre os emigrantes sul-americanos. Entre as causas apontadas destacam-se a demanda trabalhista, a reunificao familiar e motivaes individuais.Um ltimo dado quantitativo a ser realado refere-se ao aumento das remessas financeiras da regio - cerca de US$ 34 bilhes. O Diretor do Fundo de Multilateral Investimento do BID declarou em entrevista, em maro de 2005[15]: os dados revelam as importantes tendncias nos mercados de trabalho mundiais. E ressaltou que "A importncia destas remessas vai muito alm dos indivduos que enviam US$ 200 ou US$ 300 s suas famlias. Em alguns pases da regio, as remessas equivalem a mais de 10% do PIB e a mais de 30% das exportaes. Numa tica scio-antropolgica, esse fenmeno revela tambm a existncia de comunidades transnacionais, ou seja, comunidades formadas por migrantes que residem em localidades diferentes, mas que mantm estreitas relaes econmicas, culturais e sociais.[16] 5. Desafios e prioridades O fenmeno migratrio contemporneo, por sua intensidade e diversificao, torna-se cada vez mais complexo, principalmente no que se refere s causas que o originam. Entre elas destacam-se as transformaes ocasionadas pela economia globalizada, como vimos anteriormente, as quais levam excluso crescente dos povos, pases e regies e sua luta pela sobrevivncia; a mudana demogrfica em curso nos pases de primeira industrializao; o aumento das desigualdades entre Norte e Sul no mundo; a existncia de barreiras protecionistas que no permitem aos pases emergentes colocarem os prprios produtos em condies competitivas nos mercados; a proliferao dos conflitos e das guerras; o terrorismo; os movimentos marcados por questes tnico-religiosas; a urbanizao acelerada; a busca de novas condies de vida nos pases centrais, por trabalhadores da frica, sia e Amrica Latina; questes ligadas ao narcotrfico, violncia e ao crime organizado; os movimentos vinculados s safras agrcolas, aos grandes projetos da construo civil e aos servios em geral; as catstrofes naturais e situaes ambientais.Em todas as pocas, as migraes levantaram desafios para os pases, para as sociedades locais ou regionais e para a comunidade internacional. Mas, em cada contexto histrico, esses desafios se configuraram de forma quantitativa e qualitativamente diferenciada. Assinalamos, aqui, alguns desafios hodiernos que, em nossa tica, destacam-se pela urgncia e gravidade. 5.1. Restries nas polticas migratrias A intensificao dos fluxos migratrios internacionais das ltimas dcadas provocou o aumento do nmero de pases orientados a regulamentar e at reduzir a imigrao. Os argumentos alegados no so novos: o medo de uma invaso migratria, os riscos de desemprego para os trabalhadores autctones, a perda da identidade nacional e, at, o espetro do terrorismo. No temos aqui o espao suficiente para avaliar a legitimidade desses argumentos. Entretanto, alguns breves esclarecimentos so necessrios. O supracitado Informe da Comisso Mundial sobre a Dimenso Social da Globalizao apresenta, de forma sucinta e clara, as vantagens decorrentes do estabelecimento de um regime multilateral para a mobilidade humana internacional: A maioria dos pases industrializados conta com uma populao que envelhece e tende a diminuir, enquanto que a maioria do pas em desenvolvimento conta com uma populao jovem e crescente. Muitos problemas derivados do envelhecimento da populao, como so a diminuio da populao ativa ou as dificuldades pra financiar a seguridade social pelo crescimento dos nveis de dependncia, poderiam atenuar-se mediante um incremento da imigrao baseado no respeito dos direitos dos trabalhadores migrantes. Em geral, a produtividade mundial da mo de obra aumentaria com este processo, j que a migrao seria de pases com excedente laboral e baixa produtividade a pases com alta produtividade. Isto no s beneficiaria aos prprios migrantes, como tambm a seus pases de origem, graas ao envio de remessas de divisas, transferncia de qualificaes e ao estmulo da atividade comercial que provocaria a dispora. () Em resumo, ditos movimentos da mo de obra podem resultar em benefcios mtuos para o Norte e o Sul (n. 432). Essas rpidas reflexes revelam a complexidade do fenmeno migratrio e a inconsistncia da estigmatizao dos migrantes como responsveis pelas crises sociais dos pases de chegada. Para isso, devem ser questionadas tambm aquelas anlises dos fluxos migratrios Sul-Norte que interpretam a deciso de emigrar como uma opo exclusiva e autnoma de indivduos, isentando os pases de recepo de qualquer responsabilidade. Essas anlises, ideolgicas e descontextualizadas, na realidade, omitem as influncias que as dinmicas geopolticas e econmicas planetrias exercem nos processos decisrios dos emigrantes do Sul. De forma especfica, encobrem as graves responsabilidades da crise da globalizao neoliberal, sustentada pelos pases do Norte, no acirramento do fenmeno migratrio contemporneo.[17]Acreditamos que as restries das polticas migratrias tenham prioritariamente uma finalidade simblica: transformar os estrangeiros em bodes expiatrios, encobrindo, desta forma, as reais causas das crises econmicas e/ou culturais que atingem numerosos pases do Norte.[18] evidente que essa vitimizao dos migrantes no resolve as crises, mas alimenta cada vez mais a espiral da violncia. Diante das crescentes dimenses das migraes internacionais, particularmente as latino-americanas, a CEPAL, em seu relatrio j citado, expressa preocupao pela falta de proteo dos emigrantes, principalmente daqueles mais vulnerveis: A desproteo dos migrantes representa uma grande preocupao. A existncia de uma populao imigrante em situao indocumentada de magnitude estimada em mais de 6 milhes de pessoas, concentradas nos Estados Unidos , as restries imigrao por parte dos pases desenvolvidos, com seu resultante na vulnerabilidade de muitos imigrantes, atiada pela indocumentao e a operao de organizaes dedicadas ao trfico de pessoas, so situaes que impedem o exerccio de seus direitos em forma plena, preocupaes que para os pases da regio desafiam a governabilidade.

Infelizmente, no existe hoje uma legislao internacional slida sobre as migraes internacionais. o que constata o Informe Por uma globalizao justa: criar oportunidades para todos[19], elaborado pela Comisso Mundial sobre a Dimenso Social da Globalizao: o maior vazio da atual estrutura internacional da economia global a ausncia de um marco multilateral que regule o movimento transfronteirio de pessoas (n. 428). Assim, enquanto que os direitos relativos ao investimento estrangeiro foram se reforando cada vez mais nas regras estabelecidas para economia global, deu-se muito pouca ateno aos direitos dos trabalhadores (n. 431). 5.2. A migrao clandestina e o trfico humano Outro desafio da mobilidade humana contempornea o aumento da migrao clandestina, que diretamente relacionado s polticas migratrias restritivas. Neste sentido, muito apropriadas as palavras de Mons. Stephen Fumio Hamao - Presidente do Conselho Pontifcio para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes:...as rgidas leis da imigrao, estabelecidas por muitos pases receptores, serviram, ao contrrio, de fato, para estimular a migrao irregular. Quando difcil atravessar uma fronteira legalmente, e existe uma necessidade impelente de faz-lo, tentam de fato a migrao no autorizada. Quando as pessoas esto despojadas de seus direitos, como os migrantes em situao irregular, fcil explor-los e maltrat-los, e, ao mesmo tempo, obter benefcios econmicos custa delas..[20] Os migrantes em situao irregular vivem numa condio de extrema vulnerabilidade. Esto facilmente sujeitos extorso, aos abusos e explorao por parte de empregadores, agentes de migrao e burocratas corrompidos. Por medo de serem descobertos e expulsos, eles sequer utilizam os servios e assistncia a que tm direito, embora contribuam com seus trabalhos ao enriquecimento dos pases para onde migraram.Na realidade, a acolhida de imigrantes nos pases do Norte no responde a uma opo axiolgica, e sim puramente instrumental: oferece-lhes a possibilidade de preencher vazios do mercado de trabalho, mas no de serem includos na sociedade de chegada. Assim, apesar da retrica oficial, a presena de clandestinos explorveis tolerada desde que funcional ao crescimento das economias. Isso representa um duro obstculo para o reconhecimento pleno dos direitos trabalhistas dos migrantes, inclusive pela ratificao da Conveno internacional sobre a proteo dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e seus familiares[21].A restrio das polticas migratrias incentivou tambm a formao de organizaes destinadas a favorecer o ingresso, legal ou ilegal, de migrantes nos pases mais cobiados (de certo modo, a atual novela Amrica, tambm ilustra esta realidade). O que torna mais dramtico e urgente o desafio que este trfico no se limita a contrabandear pessoas para os pases de emigrao (o assim chamado smuggling), mas desenvolve um verdadeiro trfico de pessoas (traffincking) que definido, de acordo com as Naes Unidas, como:...o recrutamento, o transporte, a transferncia, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo ameaa ou uso da fora ou outras formas de coao, ao rapto, fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou situao de vulnerabilidade ou entrega ou aceitao de pagamentos ou benefcios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de explorao sexual, o trabalho ou servios forados, escravatura ou prticas similares escravatura, a servido ou a remoo de rgos.[22]No deixa de ser uma nova forma de escravido. Nos casos de aliciamento para fins de explorao sexual, as vtimas so vendidas a donos de bordis que costumam confiscar seus documentos e, atravs de ameaas e outras formas de violncia, cobram o pagamento da dvida contrada pela viagem e pelas demais despesas decorrentes da estadia no pas de chegada. Numerosas organizaes mafiosas internacionais envolveram-se nesse negcio pela alta lucratividade que produz.No que se refere s razes do fenmeno, antes de tudo, cabe sinalizar que o proliferar do trfico de pessoas constitui a resposta a uma demanda de corpos para a explorao sexual ou para o trabalho escravo que aumenta cada vez mais, sobretudo nos pases do Norte ou desenvolvidos. Cresce cada vez mais o turismo sexual. Para os que no podem ou no querem sair do pas, promoveu-se a importao de mulheres atravs do trfico humano.Em segundo lugar, as mfias exploram as condies dramticas de vida que assolam as populaes dos pases mais pobres. As falsas promessas dos aliciadores encontram terreno frtil nos pases e nas classes sociais que mais sofrem pela falta de oportunidades e perspectivas para o futuro. No raramente, as vtimas dos aliciamentos desconfiam da veracidade das encantadoras promessas dos algozes, mas preferem arriscar antes que permanecer nas desumanas condies de vida em que se encontram.Fica evidente, portanto, que a soluo do problema no pode ser encontrada apenas em medidas policias, mas, na criao de polticas pblicas que visem superao das causas profundas do fenmeno, a saber, a procura por corpos a serem explorados, sobretudo nos pases desenvolvidos, e a vulnerabilidade econmica e social dos pases do Sul do mundo, lugar de origem da grande maioria das vtimas. 5.3. A feminizao da migrao Um espao especfico merece tambm o que hoje definido de "feminizao da migrao". H autores que negam que exista, de fato, uma real predominncia feminina, em relao ao passado, nos fluxos migratrios atuais. Esta seria apenas uma concesso feita questo de gnero, muito em voga na atualidade.[23] Conforme o j citado Estudo Econmico e Social das Naes Unidas, atualmente as mulheres representam 48,6% dos migrantes internacionais, enquanto que em 1960 essa porcentagem era de 46,7%. Embora percentualmente a mudana seja pouco relevante, no h dvida de que existem transformaes e problemticas especficas que atingem as mulheres migrantes.Historicamente, a presena feminina no mbito da migrao estava ligada, predominantemente, chamada "reunificao familiar". No entanto, nos ltimos anos, aumentou muito o nmero de mulheres que se deslocam sozinhas com um projeto migratrio meramente laboral. Na origem desta mudana deve ser realado o sensvel aumento, nos pases do Norte, da demanda de mo-de-obra feminina para tarefas "domsticas", tanto de limpeza, quanto de cuidado com as pessoas (crianas ou idosos).Estes trabalhos domsticos, comumente, exigem mo-de-obra extremamente flexvel, principalmente em relao aos horrios, o que, muitas vezes, dificulta a integrao da migrante na sociedade de chegada, alm de tornar mais complexa a reunificao familiar e a autonomia pessoal. Num interessante ensaio, Rhacel Salazar Parreas mostra como o atual processo de globalizao refora as relaes de desigualdade entre as mulheres, sendo que o reconhecimento de determinados direitos por parte de alguns grupos ocorre em detrimento dos direitos de outros: Para livrar-se do peso do trabalho domstico, as mulheres dependem da comercializao deste trabalho e compram os servios das mulheres mais pobres a preo baixo. E em nossa sociedade globalizada, so as trabalhadoras migrantes do Sul que esto liberando cada vez mais as mulheres do Norte desse peso. Todavia, isso traz conseqncias significativas para a relao entre as mulheres. O progresso de um grupo de mulheres d-se s custas da desvantagem de outro grupo de mulheres, porque, no processo de livrar outras mulheres desse peso, s trabalhadoras domsticas migrantes do Sul comumente negado o direito de cuidar de sua prpria famlia.[24] Cabe lembrar tambm o crescimento da presena feminina no universo dos refugiados: de acordo com o ACNUR, crianas e mulheres perfazem cerca de 75% do total. Muitas delas so vtimas de abusos sexuais, como no caso da Bsnia e de Ruanda, onde o estupro tornou-se um objetivo deliberado da guerra.[25]A abordagem das migraes na tica de gnero revela a extrema vulnerabilidade em que se defrontam as mulheres migrantes. Estamos de acordo com Graeme Hogo quando afirma que "se o migrante est em situao dupla de insegurana dado o seu status de migrante e ilegal, o aumento do nmero de mulheres envolvidas nesse processo as expem a uma situao de tripla insegurana por causa da questo de gnero, havendo um risco ainda maior de explorao".[26] 5.4. Os refugiados O drama dos refugiados e refugiadas sem dvida um dos desafios mais urgentes da conjuntura internacional. A realidade das pessoas coagidas a fugir da prpria terra porque perseguidas to dramtica que pode ser, justamente, considerada a nossa Auschwitz[27].Em relao ao passado, h, pelo menos, trs fatores que modificaram a abordagem sobre a temtica: o fim da guerra fria, os atentados do 11 de setembro e o acirramento dos fluxos migratrios internacionais, sobretudo de migraes foradas. A queda do muro de Berlim reduziu as razes ideolgicas que, durante a guerra fria, estavam na origem do compromisso de alguns pases em abrigar refugiados e refugiadas. Por sua vez, os atentados s Torres Gmeas de Nova York, como acima j exposto, provocaram um endurecimento das polticas imigratrias, despertando suspeitas generalizadas em relao a muitos estrangeiros, inclusive aos solicitantes de proteo internacional. Finalmente, a intensificao dos fluxos migratrios, alm de exacerbar medos e preconceitos xenfobos, contribuiu a dificultar os procedimentos de determinao da condio de refugiados.Nesse novo cenrio verifica-se uma crescente aproximao, prtica e terica, entre a condio dos migrantes econmicos e aquela dos refugiados. Esta aproximao pode ser comprovada por dois fatos. Por um lado, como afirmamos, a imerso dos refugiados e refugiadas no meio da ingente massa de migrantes econmicos dificulta o procedimento de identificao, induzindo muitos pases a considerar como migrantes os solicitantes de asilo enquanto no provarem o contrrio[28]. Por outro lado, o empobrecimento progressivo do Sul do mundo gera migraes econmicas cada vez mais foradas, sendo o drama humano de muitos desses migrantes comparvel quele de refugiados e refugiadas. Em sntese, no primeiro caso, a intensidade das migraes econmicas internacionais acaba encobrindo ou, at, negando a existncia de refugiados; no segundo, ao contrrio, a violncia inerente a todo tipo de migrao forada leva a uma situao onde o migrante pode ser caracterizado como um refugiado de fato.Ao nosso ver, pode-se falar em aproximao, mas no em plena identificao entre a condio do migrante econmico e aquela do refugiado. importante salvaguardar o especfico de cada condio, sobretudo em vista da busca de solues apropriadas e douradoras. Por outro lado, seria extremamente perigoso contrapor ou, simplesmente, isolar a proteo internacional dos refugiados e refugiadas do compromisso pelos direitos dos migrantes, sob pena de criar uma casta de privilegiados no meio de milhes de migrantes explorados e vitimizados. Na realidade, a preservao dos instrumentos internacionais de proteo em matria de refugiados representa a contundente afirmao do direito universal vida e segurana que todos os seres humanos tm.Auspicia-se, nesse sentido, que a proteo internacional dos refugiados seja abordada de forma inclusiva e abrangente, priorizando a superao das causas do fenmeno. H que se sublinhar, aqui, na afirmao do Plano de ao do Mxico (2004) e insistir na sua efetivao: necessrio que os pases de origem dos refugiados, com a cooperao da comunidade internacional, continuem realizando esforos para criar condies adequadas para o retorno com segurana e dignidade de seus nacionais refugiados[29]. Vale, no entanto, no esquecer das responsabilidades que a prpria comunidade internacional tem, por ao ou omisso, na gerao de graves crises humanitrias em vrios continentes. De forma especfica, precisa claramente apontar aqueles pases que, de forma unilateral e, s vezes, contrariando explcitas resolues da prpria ONU, geram ou mantm situaes de generalizada violao de direitos humanos.Ademais, ao analisar as causas profundas das situaes de violncia generalizada ou de macia violao dos direitos humanos, percebe-se que, na maioria dos casos, so os mesmos fatores que provocam tanto o empobrecimento do Sul do mundo, quanto as ondas de refugiados e desplazados. da mesma fonte que nasce o rio de migrantes econmicos e o rio de refugiados. aqui, ao nosso ver, que a questo do refgio e da migrao econmica convergem mais. Os rios so diferentes, mas nascem da mesma fonte. E por isso que verdadeiras solues douradoras s podem ser encontradas na eliminao ou, pelo menos, na forte reduo das causas profundas que originam os fenmenos. s a partir desse pano de fundo que podem e devem ser abordadas as perspicazes propostas do Plano de Ao do Mxico[30]: 1) o Programa de auto-suficincia e integrao Cidades solidrias, que busca uma maior integrao dos refugiados e refugiadas urbanos atravs de uma proteo mais efetiva que abarque os direitos e obrigaes sociais, econmicos e culturais do refugiado; 2) o Programa integral Fronteiras solidrias, que responde necessidade de individuar e socorrer aqueles que requerem e merecem proteo internacional por meio de um desenvolvimento fronteirio promovido pela presena das instituies do Estado, projetos concretos da comunidade internacional e o envolvimento das populaes locais; 3) o Programa Regional de Reassentamento solidrio para refugiados latino-americanos, proposto em 2004 pelo Governo do Brasil e marcado pelos princpios de solidariedade internacional e responsabilidade compartilhada. E, no mbito de toda esta ao, a sociedade civil chamada a articular, integrar e fortalecer as Redes de Proteo, para atuar no conjunto da estrutura tripartite Governo, ACNUR e sociedade civil na efetivao de solues duradouras. 5.5. Dilogo Inter-religoso e Inter-cultural As migraes internacionais esto provocando a difuso do pluralismo religioso no mundo inteiro. cada vez mais difcil identificar pases ou regies geogrficas com determinadas religies. Comea-se a falar em islamizao da Europa, pois se estima que, em 2020, o continente poder contar com cerca de 20 milhes de muulmanos.[31] Nos Estados Unidos a migrao mais intensa provm da Amrica Latina e Caribe, ou seja, de pases predominantemente catlicos. Essa migrao trar conseqncias tanto religiosas quanto culturais: calcula-se, por exemplo, que em 2050, 53% dos catlicos estadunidenses sero latinos, o que poder acarretar significativas mudanas no rosto do catolicismo do pas.A instruo Erga Migrantes Caritas Christi assim descreve os desafios inerentes ao pluralismo religioso:Encontramo-nos frente a um pluralismo cultural e religioso talvez jamais experimentado assim conscientemente como agora. De um lado, se procede a grandes passos rumo a uma abertura mundial, facilitada pela tecnologia e pelos meios de comunicao que chega a pr em contato, ou coloca internos um ao outro, universos culturais e religiosos tradicionalmente diferentes e estranhos entre si ; do outro lado, renascem as exigncias de identidade local, que encontram na especificidade cultural de cada um o instrumento da prpria realizao.[32]No h dvida de que o multiculturalismo e o pluralismo religioso sejam fenmenos crescentes e, talvez, irreversveis. A questo no se aceit-los ou no, mas como lidar com eles. A presena do "outro", numa tica intercultural, pode gerar dilogo e enriquecimento recproco; j, numa tica etnocntrica e fundamentalista, gerar preconceitos e conflitos.No que se refere integrao scio-cultural dos migrantes, deve-se excluir tanto os modelos de assimilao, que tendem a fazer do diverso uma cpia de si mesmo, como os modelos de marginalizao, com atitudes que podem chegar at s opes do apartheid[33]. A integrao deve ser abordada na tica da interao simtrica entre interlocutores em vista do enriquecimento recproco.Num mundo que vive o paradoxo de uma aldeia global cada vez mais individualista, o desafio da alteridade - religiosa e cultural - tornou-se uma prioridade absoluta, sobretudo no que concerne o dia-a-dia dos migrantes e refugiados. Cabe s religies haurir foras de suas prprias tradies espirituais e interagir com os processos sociais, polticos e culturais a fim de criar maior solidariedade humana e harmonia universal. por isso que, embora afirmando a riqueza de cada tradio religiosa, precisamos tambm destacar a importncia do encontro das religies para salvar o mundo, a humanidade e a natureza".[34] 5.6. Os Brasileiros no ExteriorO Brasil passou de Pas de imigrao a Pas de emigrao. O fluxo emigratrio teve incio nos anos 80, tendo como causas centrais a falta de trabalho, de perspectivas, de condies de sobrevivncia e de um futuro melhor, bem como a oferta de empregos e as perspectivas de melhores salrios nos pases do norte. Em 2002, as estimativas do MRE j apontavam a existncia de aproximadamente 2 milhes e meio de emigrantes brasileiros, dado este que hoje, sempre como estimativa, supera os 3.000.000 de brasileiros emigrados.Esta realidade e a problemtica situao vivida pelos brasileiros e brasileiras no exterior levou um grupo de organizaes, entre elas a Pastoral dos Brasileiros no Exterior, da CNBB, a Procuradoria Geral da Repblica e a Casa do Brasil em Lisboa a realizar, em 2002, em Lisboa, o I Encontro de Brasileiros no Exterior. O objetivo do encontro foi propor solues e debater as expectativas dos emigrantes no que se refere atuao dos poderes Executivo, Judicirio e Legislativo brasileiros, bem como a necessidade de implementao de possveis medidas protetivas aos cidados e cidads brasileiras no exterior, e de aes de fomento das relaes entre os emigrantes e a Nao brasileira.Dos debates e discusses resultaram, em suma, as seguintes propostas: formulao de polticas pblicas para a emigrao; criao de uma secretaria ou departamento para assuntos de emigrao; representao poltica para os emigrantes brasileiros; elaborao do estatuto do brasileiro no exterior, contemplando seus direitos e deveres; fortalecimento da atuao dos consulados e embaixadas brasileiras; ampliao da dotao oramentria para o atendimento do programa de assistncia aos brasileiros no exterior; melhoria dos servios bancrios e as condies para remessas; auxlio e incentivo formao de pequenos empresrios; ampliao e efetivao dos acordos e negociaes diplomticos garantia de direitos fundamentais dos trabalhadores migrantes brasileiros, repatriao dos brasileiros presos no exterior e exerccio do voto a emigrantes brasileiros no pas de acolhimento; questes criminais relacionadas emigrao; criao de um call center para atendimentos e registros de casos envolvendo brasileiros no exterior; proposio de transcrio de registros civis consulares e do registro de nascimento no exterior e acesso informao; censo dos brasileiros emigrados. Hoje, pode-se constatar alguns avanos, mas seguramente desproporcionais em relao necessidade e ao prprio crescimento da emigrao. A situao de migrantes indocumentados, a explorao a que so submetidos, as condies de residncia de muitos deles, a proteo dos direitos como trabalhadores, a questo das remessas, entre outros, so temas ainda distantes de alcanarem um patamar mnimo que assegure um pouco de tranqilidade e de acesso aos direitos de cidadania.

O depoimento de um missionrio revelador e ilustrativo:

Todos esto l devido questo econmica, uma minoria dos jovens foi estudar. Muitos perderam tudo, faliram. O processo de sada do Brasil at a entrada na Amrica uma verdadeira Via Sacra. Muitos tentam entrar pelo Mxico, onde enfrentam prises e tm que pagar muitos dlares para os atravessadores e a imigrao. Chegando l, iniciam uma outra Via Sacra, com relao moradia, emprego, lngua e a SAUDADE. Muitos deixam no Brasil a esposa ou o esposo, filhos e pais. Estive com um casal muito jovem, que havia chegado h 6 meses. Deixaram com os pais um beb (...) e outro filho de 1 ano e meio... Por isso se submetem a todo tipo de servio: faxina, bab, construo civil, entrega de jornal e pizza, etc., de domingo a domingo, vrias horas por dia (...).[35]

5.7. Uma nova Lei de Estrangeiros no Brasil A situao do estrangeiro no Brasil ainda regida pela Lei 6815, aprovada em 1980, em plena vigncia do regime militar. Superada e desatualizada, no corresponde s exigncias de novo contexto migratrio que caracteriza a realidade atual. Urge uma nova lei de estrangeiros ou, como preferimos dizer, lei de migraes no Brasil. Barreto[36], secretrio geral do Ministrio da Justia afirma que o dinamismo dos movimentos migratrios faz com que o Estatuto do Estrangeiro, editado em momento de exceo, necessite, h muito, de reviso. E completa sua reflexo com a mxima de que a lei sempre deve acompanhar o fato social. Em outras palavras, a realidade tem a finalidade de alertar nossas mentes para as demandas sociais e fazer evoluir o direito. Reafirma-se, pois, que o Pas reclama uma lei mais dinmica, voltada nova conjuntura. Do contrrio, diz Barreto, ainda continuaremos a tratar o estrangeiro como assunto de segurana nacional, vinculao h muito desprezada pelo prprio Direito Internacional.A mudana de perspectiva global no tratamento aos migrantes passa, necessariamente, pela mudana legislativa interna de pases, como o Brasil, que consigam entender a problemtica das migraes como uma realidade indiscutvel e desafiadora, mas que, alm das questes meramente controladoras, policiais e estatais, deve ser visto como uma questo social, sob o paradigma do respeito aos direitos humanos em sua totalidade.Ao falarmos de estrangeiros, imigrantes ou emigrantes, a perspectiva de proteo aos seus direitos pressupe a compreenso do conceito de cidado numa viso de cidadania universal, que no est vinculada e nem sinnimo de nacionalidade. Por mais que as legislaes e as posturas dos poderes constitudos possam ser cada vez mais rgi