Mídia e poder: uma perspectiva pós-positivista sobre o caso do Haiti

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Relações Internacionais

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  • Mdia e poder: uma perspectiva ps-positivista sobre o caso do Haiti

    Natlia Maria Flix de Souza

    Resumo: Na tentativa de contribuir ao desenvolvimento de uma reflexo mais crtica a respeito do locus assumido pelos meios de comunicao na contemporaneidade, o presente ensaio busca problematizar sua atuao ao longo de um evento especfico. Ao analisar o papel desempenhado pela mdia durante o processo de legitimao das misses das Naes Unidas no Haiti, elementos tericos das mais diversas reas das cincias sociais sero acionados. Indo alm de uma anlise puramente histrica, as teorias ps-positivistas de Relaes Internacionais, em especial o Construtivismo, oferecem o substrato crtico para uma abordagem transformadora, que possa contribuir com debates que discutam como a formao discursiva da mdia capaz de construir a realidade social. Palavras-chave: Mdia e modernidade; relaes internacionais; ps-positivismo; construtivismo; intervenes. Abstract: In order to contribute with the development of a more critical reflection about the currently locus taken on by the mass communication, this essay tries to question its task during a given event. In the analysis of the role played by the media throughout the legitimization process of the United Nations missions in Haiti, theoretical elements of several social sciences are brought into question. Going beyond a solely historical investigation, the post-positivist theories of International Relations, specially the Constructivism, offer the critical basis for a transformational perspective, able to contribute with the debates that discuss how the discursive formation of the media is capable of constructing the social reality. Key words: Media and modernity; international relations; post-positivism; constructivism; interventions.

    Introduo

    Discutir a importncia e abrangncia da mdia , hoje, um componente

    fundamental para as mais diversas reas de estudo. O entendimento do locus assumido

    pelos veculos de comunicao nos permite compreender quaisquer relaes objetivas

    ou intersubjetivas que se desenrolam na modernidade. Todo e qualquer evento, seja ele

    na esfera domstica ou internacional, perpassado pela atuao protagonista desses

    atores, sempre empenhados em alguma causa.

    a partir dessa perspectiva que o projeto procura discutir a mdia enquanto uma

    fora nas relaes de poder. Esse debate ser travado no mbito das teorias ps-

    positivistas das Relaes Internacionais, em especial a partir da abordagem

    Construtivista. Tais paradigmas comearam a entrar em cena nos debates

    epistemolgicos das RI a partir dos anos 80 e 90, propondo uma verdadeira alterao na

    pauta ontolgica e metodolgica at ento vigente. Segundo alguns autores como o

    caso do eminente terico Steve Smith o debate iniciado a partir de ento com as

    abordagens tradicionais representa o verdadeiro terceiro grande debate, capaz de

    Graduanda em Relaes Internacionais pela Unesp/Franca. End. eletrnico: [email protected]

  • redefinir a prpria disciplina das RI (YOUNGS, 1999). Ao entender que o senso comum

    o trunfo do poder poltico em sua incontornvel tentativa de se perpetuar e ampliar sua

    insero no cenrio mundial, esses autores propem ir alm do carter meramente

    explanatrio da realidade, entendida at ento como neutra e definitiva. Ao introduzir

    uma perspectiva crtica que prope a mudana, confere ao homem um papel de sujeito

    histrico, pleno de possibilidades e capacidades.

    O estudo proposto busca, portanto, a partir desse novo entendimento da

    realidade, tecer crticas atuao da mdia na contemporaneidade, enfocando, para

    tanto, um evento especfico. Ao analisar o papel desse ator na conformao das

    intervenes humanitrias que atuaram ou atuam no Haiti, procura-se compreender at

    que ponto ele representou e ainda representa um elemento fundamental de

    sustentao da misso das Naes Unidas no territrio caribenho, bem como da difuso

    do carter legtimo dessa atuao entre toda a sociedade internacional. Indo alm de

    uma mera explicao dos fatos, argumenta-se que, atravs do entendimento desse

    evento especfico, pode-se identificar a participao miditica na perpetuao de uma

    rede de poder hegemnica liderada pelos Estados Unidos que tem por fim absoluto

    de sua atuao a reproduo ad infinitum de um sistema poltico-econmico-ideolgico

    opressor por todos os continentes do globo, a despeito de suas caractersticas e

    especificidades.

    Os meios de comunicao e a modernidade

    primeira vista, pode parecer muito recente a preocupao dos tericos sociais

    com o estudo da mdia. O crescente debate contemporneo sobre o tema da globalizao

    traz tona uma multiplicidade de enfoques que buscam trabalhar tanto as caractersticas

    tcnicas desse fenmeno dentre as quais a mdia representa um elemento chave

    como suas conseqncias sociais prticas. No que tange ao desenvolvimento tcnico-

    cientfico, o avano dos meios de comunicao e informao representa a supresso dos

    limites espao-temporais que um dia impuseram barreiras ao progresso da sociedade

    mundial. Por outro lado, as convulses sociais observadas por todo o globo representam

    um fracasso retumbante do atual modelo de desenvolvimento em abarcar o corpo social

    em sua totalidade.

    Diante da dificuldade cada vez maior de entender como esse processo se deu e

    de como superar suas mazelas, so cada vez mais abundantes as teorizaes que buscam

    propor solues para uma civilizao em crise. Nesse sentido, o papel da mdia tem sido

    analisado segundo diferentes perspectivas e enfoques, que no s a vem como

  • fomentadora primordial desse processo globalizante, mas tambm como uma via para a

    superao de diversos problemas nevrlgicos da sociedade moderna, haja vista sua

    insero e acesso ao mundo social.

    A partir desse panorama geral, o presente trabalho defende a hiptese de que o

    estudo da mdia possui uma relevncia crescente no mbito das relaes internacionais,

    em especial devido ao seu importante papel de formadora de significados e identidades

    dentro das sociedades, o que a torna alvo de interesses no s poltico-militares, mas

    tambm culturais e econmicos. Ademais, ressalta-se que o interesse por tais

    entendimentos abrange as mais diversas reas das cincias humanas que, de uma forma

    ou de outra, buscam compreender a importncia da informao e da comunicao na

    construo social.

    No mbito da cincia poltica, a tentativa de entender a relao ntima existente

    entre a produo do conhecimento e os processos de dominao social tem suas bases

    com a Escola de Frankfurt. Ainda nas dcadas de 1930 e 1940, dois de seus principais

    representantes, Adorno e Horkheimer, foram os primeiros a se debruar sobre os

    estudos do que chamaram de indstria cultural e de "cultura de massa", tecendo

    crticas bastante sistemticas sobre seu carter reprodutor da sociedade contempornea.

    J na dcada de 1960, os estudos culturais britnicos, partindo de uma

    perspectiva crtica, trabalharam a cultura enquanto produo e reproduo social, que

    fornecia bases para o processo de dominao. Instituies dessa dominao eram

    identificadas no s na mdia, mas na famlia, na Igreja, no trabalho, na escola e no

    Estado. Para eles, a cultura da mdia era responsvel pela formao de identidades e

    significados nos indivduos, que passavam a se integrar cultura dominante.

    Comprometam-se, ento, com um projeto poltico de transformao social atravs da

    resistncia a essas formas de dominao.

    Outros autores mais relacionados sociologia aprofundaram tais questes em

    termos especificamente miditicos. Para Thompson (2002), com o advento da imprensa,

    o poder simblico deixou de ser representado por instituies como o Estado ou a Igreja

    e passou a ser utilizado progressivamente segundo interesses econmicos. Nesse

    contexto, a utilizao crescente de lnguas vernculas fez-se imprescindvel enquanto

    tentativa de atingir uma quantidade cada vez maior de indivduos.

    O autor argumenta que todo o processo de interao social foi profundamente

    modificado com o desenvolvimento dos meios de comunicao, afetando de maneira

    irreversvel as chamadas sociedades modernas. Primeiro atravs de palavras impressas

    e, gradualmente, com as inditas realizaes do rdio e da televiso, os relacionamentos

  • e formas de interao inter-pessoais foram profundamente afetados. A prpria

    transformao na disperso dos eventos ao longo dos eixos temporal e espacial, que

    significou a total distino entre os contextos de produo e de recepo da informao,

    foi fundamental para a modificao no mbito das interaes sociais. O que antes se

    dava exclusivamente enquanto interao face a face, aos poucos passou por um

    processo de interao mediada (telefones, cartas) e culminou no que o autor qualifica

    enquanto quase-interao mediada, representada fundamentalmente pelos meios de

    comunicao de massa (jornais, rdio, televiso). Nessa nova forma de relacionamento,

    a interao passou a ser monolgica, ou seja, pautada no na troca de informaes, mas

    na transmisso unilateral das mesmas. A partir dessa capacidade de veicular uma

    diversidade de imagens e discursos, advindos de todas as partes do globo, a mdia influi

    diretamente na construo do mundo social, definindo acontecimentos, formas de

    conduta e atuao.

    A despeito dessa considerao de que a mdia exerce um papel ativo no que

    Thompson chama de processo de formao do self (ao fornecer novas bases para o

    entendimento do mundo e das relaes), o autor acredita que esse processo parte de

    um projeto simblico construdo ativamente pelos indivduos. Isso significa dizer que a

    interpretao ou o carter hermenutico do entendimento das informaes recebidas

    so elementos demasiado importantes ao longo da construo individual do self. Tal

    viso procura desmistificar a idia de que o papel dos meios de comunicao na

    formao das identidades individuais seja autoritrio, afirmando que eles so capazes,

    na realidade, de ampliar a gama de recursos simblicos que podem ser utilizados nos

    processos de construo individual. No entanto, por entender que existe uma

    distribuio muito desigual dos recursos simblicos entre os indivduos, o autor

    argumenta a necessidade de modificar a forma de atuao dos meios de comunicao,

    de modo que sejam capazes de contribuir para a formao de um modo de vida

    autnomo e responsvel (THOMPSON, 2002, p.15).

    Douglas Kellner (2001), por sua vez, representa uma forma diferenciada de

    entender o papel da mdia na construo das identidades na modernidade. Segundo essa

    viso, a produo de identidades se tornou, hodiernamente, um processo de criao de

    imagens, aparncias. Enquanto para Thompson o indivduo responsvel ativamente

    pela construo do self, servindo-se da tradio hermenutica, para Kellner a identidade

    antes definida a partir do reconhecimento que advir do contato com o outro. E devido

    fluidez e transitoriedade das relaes inter-pessoais modernas (fato contemplado

  • tambm nos estudos de Bauman sobre a modernidade), as prprias emoes so

    forjadas atravs de imagens sem qualquer profundidade.

    O discurso de Kellner se encontra em plena consonncia com aqueles

    apresentados por Guy Debord (1997), j que este se empenhou na especificao de uma

    sociedade moderna que, para alm do ser e do ter, est mais preocupada com o parecer.

    Nessa perspectiva, a ateno dispensada imagem se coloca enquanto centro das

    relaes sociais contemporneas, e a prpria essncia da humanidade perdida. Em sua

    teorizao de uma sociedade espetacularizada, a representao teria tomado o lugar da

    coisa real e o poder assumido pela imagem estaria sendo definido atravs das prprias

    relaes sociais midiatizadas, fundadas na aparncia e sustentadas pelo imprio do

    consumo.

    Mdia e relaes internacionais: a virada do ps-positivismo

    A abordagem proposta pelas relaes internacionais no se afasta de maneira

    significativa das perspectivas at ento apresentadas. Durante as dcadas de 1980 e

    1990, os debates presentes nas RI representaram o surgimento de novas perspectivas e

    conceitos, pautados pela tentativa de compreender as transformaes na poltica

    mundial. Seus autores ficaram conhecidos como ps-modernistas ou ps-estruturalistas

    e se basearam em uma dura crtica ao mtodo cientfico, por acreditar que a suposta

    verdade cientfica era uma tentativa de impor uma estrutura dominante atravs de um

    discurso de neutralidade (MESSARI; NOGUEIRA, 2005). O ps-estruturalismo

    propunha que toda forma de entendimento do mundo parte de uma interpretao

    fundada em bases subjetivas o que torna a idia de uma realidade objetiva

    insustentvel. Desse panorama relativista, no existe neutralidade possvel, e qualquer

    olhar passa por um estgio interpretativo e valorativo.

    Um dos principais autores a inspirar os ps-modernos, o filsofo Michel

    Foucault via o conhecimento e o poder como inextricavelmente articulados. Para este

    autor, a modernidade :

    (...) um tempo em que a dominao passa a ser exercida por meio de mecanismos de disciplina e vigilncia muito mais sofisticados e eficazes, uma vez que o nexo poder/conhecimento produz sujeitos que internalizam as normas e os cdigos morais que os tornam indivduos socialmente funcionais (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p.195).

    Somando-se a essa nova perspectiva, os construtivistas deram uma importncia

    ainda maior ao papel das idias e dos valores na conformao dos eventos sociais. Essas

  • idias seriam responsveis por estruturar o conhecimento que os agentes tm do prprio

    mundo e da realidade que s existem a partir daquilo que utilizamos para nos referir a

    eles. Para construtivistas como Onuf e Kratochwil1, o discurso, a linguagem, so

    fundamentos da ao, ou seja, representam a prpria ao poltica. Para Kratochwil, os

    processos de comunicao social e de intersubjetividade so centrais para o

    entendimento do processo por meio do qual as decises e as aes dos atores so

    analisadas (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p.171).

    A compreenso central dos construtivistas de que as cincias sociais diferem

    essencialmente das naturais simplesmente por ter nos homens e no nos fenmenos

    naturais seu objeto de anlise, traz consigo uma perspectiva muito mais reflexiva, na

    qual a identidade assume grande relevo. Assim, toda ao entendida enquanto um

    fenmeno intersubjetivo, representando muito mais do que uma simples deciso

    baseada em interesses imediatos. Para tal perspectiva, torna-se necessrio observar uma

    relao fundamental: aquela existente entre o mundo social e a construo social de

    significados (GUZZINI, 2000).

    Os enfoques supracitados referentes s RI compem uma pauta ampla e com

    muitas divergncias, mas enquadram-se coletivamente dentro de uma perspectiva que

    ficou conhecida como ps-positivismo. Tal assimilao funda-se, justamente, na idia

    compartilhada pelos autores dessas e de outras vertentes (teoria crtica, ps-

    colonialismo, feminismo) de que o uso exclusivo do mtodo positivista para o estudo

    das Relaes Internacionais empobrece sua produo terica ao determinar no s

    aquilo que existe nas RI, como tudo aquilo que pode ser por ela estudado. Assim, esses

    tericos compreendem a importncia das percepes e entendimentos subjetivos dos

    valores e processos cognitivos para os debates na disciplina. Por entenderem que por

    trs de toda teoria existe uma ideologia e que paradigmas epistmicos so capazes de

    influenciar a forma que enxergamos o mundo (dade poder/conhecimento), propem

    novas pautas para a disciplina, de modo a ampliar sua capacidade de anlise da

    realidade.

    Apesar de muitos desses tericos no se pautarem especificamente no

    entendimento da mdia enquanto forma de poder dentro da sociedade, bastante clara

    sua preocupao com as questes da informao e da comunicao como responsveis

    pela elaborao de conhecimentos e discursos conformadores de uma realidade social.

    1 Tais autores so importantes presente discusso, haja vista seu enquadramento na virada lingstica, que coloca a anlise de discurso em relevo como forma de proceder qualquer estudo dos eventos sociais, em especial nas Relaes Internacionais. justamente esta, dentre as variadas perspectivas que se enquadram no Construtivismo, a que se utiliza para proceder a anlise aqui proposta.

  • Mdia e poder: o caso do Haiti

    Tendo sido a primeira colnia latino-americana a alcanar a independncia

    formal obtida pelos escravos o Haiti jamais deixou de lutar por uma soberania real,

    j que as intervenes externas foram uma constante em seu desenvolvimento histrico.

    No momento imediatamente posterior independncia, a separao entre os dois

    principais grupos tnicos, negros e mulatos, tornou-se cada vez mais patente,

    culminando na diviso do pas, em 1916, em dois Estados rivais. Aps a reunificao,

    em 1820, os interesses conflitantes entre a massa negra e a elite mulata foram obrigados

    a se acomodar em um mesmo pas que estava em evidente declnio econmico. Tal

    quadro favoreceu a escalada da violncia, introduzindo elementos que contriburam para

    o completo colapso do sistema econmico-poltico-social.

    Em 1915, teve incio a ocupao americana da ilha. Era um momento em que os

    interesses imperialistas norte-americanos estavam em franca ascenso na busca por

    estabelecer reas de influncia por todo o globo, em especial na Amrica Latina e

    Caribe. Durante os 19 anos em que os EUA estiveram no comando da poltica e das

    finanas do pas, os negros foram deixados completamente margem do processo

    poltico, acentuando as rivalidades internas.

    Com um discurso liberal e que elevava os valores da negritude, Franois

    Duvalier foi eleito em 1957, quando o povo haitiano exercia de maneira indita o

    sufrgio universal. No entanto, suas prticas logo desmentiram seu discurso, e o

    governante, conhecido como Papa Doc, instalou uma das mais sanguinrias ditaduras

    que ocorreram no continente americano. Durante os 14 anos em que permaneceu no

    poder, o ditador tratou de neutralizar as Foras Armadas, tendo montado uma milcia

    encarregada pessoalmente da defesa e perpetuao de seu governo os tontons

    macoutes. O desenvolvimento de tais polticas foi assegurado pelo apoio angariado de

    Washington que, em plena Guerra Fria, prezou acima de tudo por salvaguardar seus

    interesses pessoais representados na posio anticomunista do Papa Doc.

    Seguindo na mesma linha de atuao que o governo anterior, Jean-Claude

    Duvalier sucedeu seu pai no poder, implementando as mesmas medidas autoritrias e

    reprimindo violentamente todos os seus opositores. Foi s quando saiu de cena que as

    idias democratizantes passaram a encontrar terreno frtil no bojo da sociedade haitiana,

    ameaando as foras duvalieristas que ali permaneceram mesmo aps a retirada de Baby

    Doc.

    Aps a promulgao pelo governo do General Henri Namphy de uma

    Constituio com carter democrtico, previu-se a realizao das eleies ainda no ano

  • de 1987. No entanto, o grupo duvalierista conseguiu desarticular tal movimento,

    promovendo absoluto terror entre os eleitores e pondo fim ao processo iniciado. Em

    uma nova articulao das eleies, que previa o pleito para dezembro de 1990, a

    comunidade internacional foi acionada pelo governo haitiano para auxiliar o processo e

    garantir sua efetivao. Nesse contexto, a Organizao dos Estados Americanos (OEA),

    mais do que a ONU, ficou responsvel por garantir a transio plenamente democrtica

    no Estado caribenho.

    Tendo se destacado no perodo ps-duvalierista, o padre Jean-Bertrand Aristide,

    o Pre Titid, saiu representativamente vitorioso daquela que ficou conhecida como a

    primeira eleio plenamente democrtica em dois sculos de histria do Haiti

    independente. Esse novo governo a favor de uma reforma social e democrtica

    entrou em confronto direto com o Exrcito e as elites. Frente a tais medidas, um novo

    golpe de Estado, orquestrado pelas Foras Armadas, derrubou Aristide que partiu para

    o exlio.

    Em um contexto que abarcava o fim da Guerra Fria e a conseqente

    multilateralizao dos eventos, o golpe perpetrado no Haiti teve repercusso

    internacional e clamou por resposta dos organismos multilaterais. A OEA representou a

    primeira fora a exigir a restituio imediata da ordem democrtica e do governo

    legtimo. Dentre outras tentativas, uma misso planejada entre a OEA e representantes

    diplomticos de diversos pases americanos, apoiada pela ONU a OEA/DEMOC foi

    criada sob os auspcios do Secretrio-Geral da Organizao regional, tendo sido enviada

    em algumas misses ao territrio caribenho (entre novembro de 1991 e fevereiro de

    1992) para auxiliar um entendimento entre o Parlamento legtimo, o governo

    constitucionalmente eleito de Aristide e o governo de fato. No entanto, os esforos no

    alcanaram os objetivos almejados devido resistncia incessante das partes envolvidas

    em ceder a quaisquer acordos.

    As sucessivas tentativas concebidas no mbito da OEA no encontraram sucesso e, em

    10 de novembro de 1992, a ONU foi chamada formalmente atuao no contexto

    haitiano. Nesse momento, a crise at ento tratada em mbito regional foi

    universalizada: a OEA atuava em defesa da democracia; a ONU agia amparada pela

    gide dos direitos humanos. Assim, foi instituda uma misso civil internacional, a

    MICIVIH, que, com um escopo de atuao bastante semelhante quele atribudo

    OEA/DEMOC, representava um trabalho unificado das duas organizaes na busca de

    uma soluo negociada crise instaurada.

  • Nesse contexto, a atuao dos EUA se mostrava bastante questionvel, j que,

    apesar do comprometimento poltico assumido nos mbitos multilaterais, o governo de

    Bush acionou medidas bastante particulares, ignorando muitas decises acordadas

    internacionalmente. Parecia que o interesse maior era em um Haiti estvel e afinado

    com os interesses norte-americanos, do que em um pas redemocratizado, mas em mos

    de um mandatrio populista (CMARA, 1998, p. 136).

    Amparada sob o captulo VII de sua Carta que qualificava a crise enquanto

    uma ameaa paz e segurana regionais a ONU deu incio a um processo de

    crescentes presses sobre o governo inconstitucional, permitindo que os prprios

    Estados membros tomassem medidas individuais de presso segundo acreditassem

    necessrias. Durante os anos de 1992/93 as tenses escalaram, contribuindo ao

    endurecimento das posies internacionais. Foi somente aps a ameaa de sofrer uma

    interveno militar composta por uma fora multinacional que o posicionamento do

    governo de fato se afrouxou, dando margem ao estabelecimento de um acordo que

    previa uma interveno pacfica no territrio visando promoo de um ambiente

    propcio volta do presidente Jean-Bertrand Aristide, a qual ocorreu no dia 15 de

    outubro de 1994.

    Tendo concludo seu mandato em 1996, Aristide voltou ao poder atravs das

    eleies de 2000. No entanto, acusaes de fraude durante o processo eleitoral geraram

    novo clima de instabilidade e violncia, levando renncia do presidente em fevereiro

    de 2004. Diante da interminvel instabilidade econmica, poltica e social que assola a

    histria do pas caribenho, ainda em 2004 foi autorizada pela ONU a entrada de uma

    misso de carter humanitrio para a estabilizao do Haiti, a MINUSTAH. Seu

    mandato objetiva essencialmente garantir a transio do governo aps a renncia de

    Aristide promovendo um ambiente pacfico, auxiliando o desarmamento de grupos

    guerrilheiros e protegendo a populao civil e estabilizar as bases polticas para uma

    transio plenamente constitucional e democrtica, suportando acima de tudo as

    instituies dos direitos humanos. Frente aos diversos problemas enfrentados pela

    misso em garantir suas premissas bsicas, seu mandato tem sido prorrogado inmeras

    vezes. Assim, sua legitimidade e popularidade tm decrescido ao longo dos anos, em

    especial devido s diversas denncias de violao dos direitos humanos contra os

    prprios capacetes azuis.

  • O papel dos meios de comunicao

    Tendo por base os elementos supra-apresentados, intenta-se proceder uma breve

    discusso da atuao miditica ao longo desse processo de intervenes internacionais

    no Haiti, em especial a partir da crise iniciada em 1990.

    Com uma perspectiva anloga desenvolvida neste projeto, Chomsky (2003),

    em seu livro Contendo a Democracia, discute de maneira bastante crtica a relao

    existente entre os meios de comunicao e a viabilizao dos conflitos internacionais.

    Tendo em vista a proposta desse trabalho, que assume a ausncia de neutralidade e

    identifica um vnculo estreito entre as fontes de poder e a posse da informao,

    argumenta-se que os meios de comunicao foram, em grande medida, responsveis

    pela legitimao das intervenes que se processaram no Haiti no perodo ps-Guerra

    Fria, bem como dos argumentos que as embasaram. Apesar de muitas vezes ressaltarem

    os fracassos, problemas e crticas dispensados aos organismos internacionais e seus

    mecanismos de atuao, seu empenho maior sempre foi o de evidenciar o caos e a

    incapacidade dos governos e populao locais de retomarem as rdeas de seu prprio

    desenvolvimento a fim de superar a desordem e instabilidade.

    Por serem as principais, seno nicas, fontes de informao de amplo alcance e

    confiabilidade, os meios de comunicao acabam sendo essenciais definio dos

    entendimentos e impresses da opinio pblica internacional. Desse modo, passam a

    existir dois acontecimentos: o real e aquele produzido pela mdia. Esta, alm de

    informar sobre os fatos, serve ao propsito de fabricar um consentimento (CHOMSKY,

    2003). Devido a essa caracterstica, a mdia tem sido utilizada historicamente por

    Estados que buscaram, por motivos diversos fossem eles culturais, econmicos ou

    poltico-estratgicos qualificar ou legitimar suas atuaes no s perante seu pblico

    domstico como frente opinio pblica internacional.

    Foi durante a Guerra Fria que os meios de comunicao alcanaram vertiginoso

    crescimento, j que seu uso se tornou um imperativo estratgico para as duas

    superpotncias em conflito. Tendo em vista que j na dcada de 1970 podia-se

    vislumbrar a eminente vitria norte-americana, a mdia passou a ser o mecanismo

    fundamental para justificar as intervenes e posicionamentos dos EUA

    extremamente controversos, tendo patrocinado diversas ditaduras na Amrica Latina

    sempre rotulados segundo a defesa frente ao perigo comunista.

    justamente essa funo que a mdia continuou a desempenhar no ps-Guerra

    Fria. Nesse contexto, em que a superpotncia norte-americana j era absoluta e a defesa

    contra o comunismo no mais se justificava, um controle ainda maior dos meios de

  • comunicao se fez necessrio de maneira a legitimar as atuaes do governo

    estadunidense, as quais no sofreram qualquer alterao significativa. As incurses

    norte-americanas no ps-Guerra Fria continuaram a acontecer, imagem dos

    acontecimentos ocorridos durante o conflito bipolar. No entanto, esse novo momento

    clamaria por uma nova rotulagem das ameaas: o ideal democrtico da liberdade e

    pluralidade desempenhou de maneira triunfal tal funo, j que encontrou na

    comunidade internacional o reconhecimento que lhe era necessrio.

    Assim, a idia central aqui defendida a de que foi atravs do domnio dos mais

    diversos e importantes meios de comunicao social que os EUA conseguiram

    perpetuar sua influncia na Amrica Latina, implantando nela seu modelo de

    democracia e de desenvolvimento. Colocando-se em uma posio diametralmente

    oposta daquela representada outrora pela URSS (com seu desejo de dominao e

    incorporao dos demais Estados ao seu padro de desenvolvimento), a nao

    americana bradava aos quatro cantos seu mais absoluto comprometimento com a

    liberdade, o pluralismo e a democracia, em defesa dos direitos humanos e contra

    qualquer forma de imposio e autoritarismo. A partir dessa posio neutra e

    benevolente, os EUA se colocam enquanto os responsveis por levar aos pobres do

    mundo o caminho certo e a felicidade estes representados claramente por sua

    democracia, aquela que prev um sistema poltico com eleies regulares, mas sem

    nenhum questionamento srio da dominao empresarial (CHOMSKY, 2003, p.411).

    E foi justamente para esses governos democrticos que o controle da opinio

    pblica se tornou to fundamental, no s como maneira de garantir o afastamento

    popular das questes pblicas, mas tambm para fabricar o consentimento necessrio

    legitimao de suas atuaes. Como expressa Edward Bernays, figura de destaque nas

    relaes pblicas dos EUA, a manipulao consciente e inteligente dos hbitos e

    opinies organizados das massas um componente importante da sociedade

    democrtica. (...) So as minorias inteligentes que precisam servir-se da propaganda, de

    maneira contnua e sistemtica (CHOMSKY, 2003, pp. 454-455).

    Concluso

    Tais elementos apresentados incitam questionamentos. Em especial porque foi

    depois da instaurao da bem aventurada democracia por todo o continente latino-

    americano que os ndices sociais apresentaram piora substantiva. No caso haitiano, o

    desenrolar dos eventos permite o questionamento sobre a prpria ideologia dos direitos

    humanos e seus principais propulsores.

  • Longe de exaurir o assunto, o presente artigo prope, a partir destas reflexes,

    que se passe a um posicionamento mais crtico quanto s informaes e discursos

    veiculados pela mdia hegemnica, em especial no que tange promoo da democracia

    estadunidense e sua dade inseparvel liberdade-controle. Afinal, no sentido de uma

    perspectiva transformadora que ele se dirige, podendo contribuir com debates que

    discutam como a formao discursiva da mdia capaz de construir a realidade social.

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