Michel Foucault - As Palavras e as Coisas - Cap 10

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    CAPiTULO XAS CIENCIAS HUMANAS

    I. 0 triedro dos saberesomodo de ser do homem, tal como se constituiu no pen-

    samento modemo, permite-lhe desempenhar dois papeis: esta,ao mesmo tempo, no fundamento de todas as positividades,e presente, de urna forma que nao sepode sequer dizer privi-legiada, no elemento das coisas empiricas. Esse fato - e naose trata ai da essencia em geral do homem, mas pura e sim-plesmente desse a priori hist6rico que, desde 0 seculo XIX,serve de solo quase evidente ao nosso pensamento - esse fa-to e , sem duvida, decisivo para 0estatuto a ser dado as "cien-cias hurnanas", a esse corpo de conhecimentos (mas mesmoesta palavra e talvez demasiado forte: digamos, para sermosmais neutros ainda, a esse conjunto de discursos) que tomapor objeto 0homem no que ele tern de empirico.

    A primeira coisa a constatar e que as ciencias hurnanasnao receberam por heranca urn certo dominio ja delineado,dimensionado talvez em seu conjunto, mas nao-desbravado,e que elas teriam por tarefa elaborar com conceitos enfim

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    ,476 AS PALA VRAS E AS COISAScientificos e rnetodos positivos; 0seculo XVIII nao Ihes trans-mitiu, sob 0 nome de homem ou de natureza humana, urnespaco circunscri to exteriormente, mas ainda vazio, que elastivessem, em seguida, a tarefa de cobrir e analisar. 0 campoepistemologico que percorrem as ciencias humanas nao foiprescrito de antemao: nenhuma filosofia, nenhuma OP9aopolitica ou moral, nenhuma ciencia empirica, qualquer quefosse, nenhuma observacao do corpo humano, nenhuma ana-lise da sensacao, da imaginacao ou das paixoes, jamais en-controu, nos seculos XVII e XVIII, alguma coisa como 0homem; pois 0homem nao existia (assim como a vida, a lin-guagem e 0 trabalho); e as ciencias humanas nao aparece-ram quando, sob 0 efeito de algum racionalismo premente,de algum problema cientifico nao-resolvido, de algum inte-resse pratico, decidiu-se fazer passar 0 homem (por bern oupor mal, e com maior ou menor exito) para 0 campo dosobjetos cientificos - em cujo numero, talvez, nao estejaainda provado que seja possivel inclui-lo de modo absoluto;elas apareceram no dia em que 0 homem se constituiu nacultura ocidental , ao mesmo tempo como 0que e necessariopensar e 0 que se deve saber, Certamente, nao resta duvidade que a emergencia historica de cada uma das cienciashumanas tenha ocorrido por ocasiao de um problema, deuma exigencia, de urn obstaculo de ordem teorica ou prati-

    1ca; por certo foram necessarias novas normas impostas pelasociedade industrial aos individuos para que, lentamente, nodecurso do seculo XIX, a psicologia se constituisse comociencia; tambem foram necessarias, sem duvida, as ameacasque, desde a Revolucao, pesaram sobre os equilibrios .sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia,para que aparecesse uma reflexao de tipo sociologico. Masse essas referencias podem bern explicar por que e que foi

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    realmente em tal circunstancia determinada e para respon-der a tal questao precisa que essas ciencias se articularam,sua possibilidade intrinseca, 0 fato nu de que, pela prime iravez, desde que existem seres humanos e que vivem emsociedade, 0homem, isolado ou em grupo, se tenha tornadoobjeto de ciencia - is so nao pode ser considerado nem trata-do como um fenomeno de opiniao: e um acontecimento naordem do saber.

    E esse acontecimento produziu-se, por sua vez, numaredistribuicao geral da episteme: quando, abandonando 0espaco da representacao, os seres vivos alojaram-se na pro-fundeza especifica da vida, as riquezas no surto progressivodas formas da producao, as palavras no devir das lingua-gens. Nessas condicoes, era necessario que 0conhecimentodo homem surgisse, com seu escopo cientifico, como con-remporaneo e do mesmo veio que a biologia, a economia e afilologia, de tal sorte que nele se viu, muito naturalmente,um dos mais decisivos progressos realizados, na historia dacultura europeia, pela racionalidade empirica. Mas, como aomesmo tempo a teoria geral da representacao desaparecia eimpunha-se, em contrapartida, a necessidade de interrogar 0ser do homem como fundamento de todas as positividades,nao podia deixar de produzir-se urn desequilibrio: 0homemtornava-se aquilo a partir do qual todo conhecimento podiaser constituido em sua evidencia imediata e nao-problemati-zada; tornava-se, afortiori, aquilo que autoriza 0questiona-mento de todo conhecimento do homem. Dai esta dupla einevitavel contestacao: a que institui 0perpetuo debate entreas ciencias do homem e as ciencias propriamente ditas, ten-do as primeiras a pretensao invencivel de fundar as segun-das, que, sem cessar sao obrigadas a buscar se~ proprio fun-damento, a justificacao de seu metodo e a purificacao de sua

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    478 AS PALA VRASE AS COlSAShistoria, contra 0 "psicologismo", contra 0 "sociologismo",contra 0 "historicismo"; e a que institui 0 perpetuo debateentre a filosofia, que objeta as ciencias hurnanas a ingenui-dade com a qual tentam fundar-se a si mesmas, e essas cien-cias hurnanas, que reivindicam como seu objeto proprio 0que teria constituido outrora 0dorninio da filosofia.

    Mas, se todas essas constatacoes sao necessarias, issonao quer dizer que se desenvolvem no elemento da pura con-tradicao; sua existencia, sua incansavel repeticao desde hamais de urn seculo nao indicam a permanencia de urn pro-blema indefinidamente aberto; elas remetem a uma disposi-

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    480 AS PALA VRASE AS COISASapareceram, se se interrogar de urn ponto de vista radical-mente filos6fico 0 fundamento dessas empiricidades, onto-logias regionais, que tentam definir 0 que sao, em seu serproprio, a vida, 0 trabalho e a linguagem; enfim, a dimensaofilosofica define com a das disciplinas matematicas urn pla-no comum: 0da formalizacao do pensamento.

    Desse triedro epistemologico, as ciencias humanas saoexcluidas, no sentido ao menos de que nao podem ser en-contradas em nenhuma das dimensoes, nem a superficie denenhum dos pIanos assim delineados. Mas, pode-se tambemdizer que elas sao incluidas por ele, pois e no intersticio des-ses saberes, mais exatamente no volume definido por suastres dimensoes, que elas encontram seu lugar. Essa situacao(menor num sentido, privilegiada noutro) coloca-as em rela-~ao com todas as outras formas de saber: tern 0projeto, maisou menos protei ado, porem constante, de se conferirem ou,em todo 0caso, de utilizarem, num nivel ou noutro, uma for-malizacao matematica; procedem segundo modelos ou con-ceitos tornados a biologia, a economia e as ciencias da lin-guagem; enderecam-se, enfim, a esse modo de ser do homemque a filosofia busca pensar ao nivel da finitude radical, en-quanto elas pretendem percorre-lo em suas manifestacoesempiricas. E talvez essa reparticao nebulosa num espaco detres dimensoes que torna as ciencias humanas tao dificeis desituar, que confere sua irredutivel precariedade a localizacaodestas no dominio epistemologico, que as faz aparecer aomesmo tempo como perigosas e em perigo. Perigosas, poisrepresentam para todos os outros saberes como que urn riscopermanente: por certo, nem as ciencias dedutivas, nem asciencias empiricas, nem a reflexao filosofica, desde que per-manecam na sua dimensao propria, arriscam-se a "passar"para as ciencias humanas ou encarregar-se de sua impureza;

    III,

    AS CIENCIAS HUMANAS 481sabe-se, porem, que dificuldades por vezes encontra 0 esta-belecimento desses pIanos intermediaries que unem, umasas outras, as tres dimensoes do espaco epistemologico; e queo menordesvio em relacao a esses planos rigorosos faz cairo pensamento no dominio investido pelas ciencias humanas;dai 0perigo do "psicologismo", ou do "sociologismo" - doque se poderia chamar, numa palavra, "antropologismo"- que se torna ameacador desde que, por exemplo, nao se re-flita corretamente sobre as relacoes entre 0pensamento e aformalizacao, ou desde que nao se analisem conveniente-mente os modos de ser da vida, do trabalho e da linguagem.A "antropologiza~ao" e, em nossos dias, 0 grande perigo in-terior do saber. Facilmente se acredita que 0homem liberou-se de si mesmo, desde que descobriu que nao estava nem nocentro da criacao, nem no nucleo do espaco, nem mesmo tal-vez no cume e no fim derradeiro da vida; mas, se 0homemnao e mais soberano no reino do mundo, se ja nao reina noamago do ser, as "ciencias humanas" sao perigosos interme-diaries no espaco do saber. Na verdade, porem, essa posturamesma as condena a uma instabilidade essencial. 0 queexplica a dificuldade das "ciencias humanas", sua precarie-dade, sua incerteza como ciencias, sua perigo sa familiarida-de com a filosofia, seu apoio mal definido sobre outros do-minios do saber, seu carater sempre secundario e derivado,como tambem sua pretensao ao universal, nao e, como fre-qiientemente se diz, a extrema densidade de seu objeto; naoe 0estatuto metafisico ou a indestrutivel transcendencia des-se homem de que elas falam, mas, antes, a complexidade daconfiguracao epistemologica em que se acham colocadas, suarelacao constante com as tres dimensoes que lhes confere seuespaco.

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    482 AS PALA VRASE AS COISASII. A forma das cieacias humanas

    E preciso esbocar agora a forma dessa positividade. Deordinario, tenta-se defini-la em funcao dasmatematicas: querporque se busca aproxima-la 0mais possivel destas, fazendoo inventario de tudo 0que nas ciencias humanas e matemati-zavel e supondo que tudo 0que nao e suscetivelde semelhan-te formalizacao nao recebeu ainda suapositividade cientifica;quer porque se tenta, ao contrario, distinguir com cuidado 0dominio do matematizavel e aquele outro que Ihe seria irre-dutivel, porque seria 0lugar da interpretacao, porque se Ihesaplicariam sobretudo osmetodos da compreensao, porque seacharia estreitado em tomo do polo clinico do saber. Seme-Ihantes analises nao sao somente cansativas porque gastas,mas antes de tudo porque carecem de pertinencia. Certa-mente, nao ha duvida de que essa forma de saber empiricoque se aplica ao homem (e que, para obedecer it convencao,pode-se ainda chamar de "ciencias hurnanas" antes mesmode saber em que sentido e dentro de que limites podem serdenominadas "ciencias") tern relacao com as matematicas:como qualquer outro dominio do saber, elas podem, sob cer-tas condicoes, servir-se do instrumental matematico; algunsde seus procedimentos, muitos dos seus resultados podemser formalizados. E , seguramente, de primeira importancia,conhecer esses instrumentos, poder praticar essas formali-zacoes, definir os niveis em que podem ser efetuadas; e , semduvida, interessante para a historia saber como Condorcetpode aplicar 0 calculo das probabilidades it politica, comoFechner definiu a relacao logaritmica entre 0crescimento dasensacao e 0da excitacao, como os psicologos contempora-neos se servem da teoria da informacao para compreenderos fenomenos da aprendizagem. Mas, apesar da especifici-

    AS CIENCIAS HUMANAS 483dade dos problemas colocados, e pouco provavel que a rela-(,(aocom as matematicas (as possibilidades de matematizacao,ou a resistencia a todos os esforcos de formalizacao) sejaconstitutiva das ciencias humanas na sua positivi dade singu-lar. E isso por duas razoes: porque, no essencial, elas ternesses problemas em comurn com muitas outras disciplinas(como a biologia, a genetica) ainda que eles nao sejam, aquie la, identicamente os mesmos; e sobretudo porque a analisearqueologica nao descortinou, no a priori historico das cien-cias humanas, urna forma nova das matematicas ou urn brus-co avanco destas no dominio do humano, mas, sim, muitomais uma especie de retraimento da mathesis, uma dissocia-(,(aode seu campo unitario e a liberacao, em relacao it ordemlinear das menores diferencas possiveis, de organizacoes em-piricas como a vida, a linguagem e 0 trabalho. Nesse senti-do, 0 aparecimento do homem e a constituicao das cienciashumanas (ainda que sob a forma de urn projeto) seriam cor-relativos de urna especie de "des-matematizacao". Dir-se-a,sem duvida, que essa dissociacao de urn saber concebido porinteiro como mathesis nao era urn recuo das matematicas ,pela simples razao de que esse saber jamais conduzira (salvoem astronomia e sobre certos pontos de fisica) a uma mate-matizacao efetiva; ao desaparecer, ele antes liberava a natu-reza e todo 0campo das empiricidades para urna aplicacao,a cada instante limitado e controlado, das matematicas; osprimeiros grandes progressos da fisica matematica, as pri-meiras utilizacoes macicas do calculo das probabilidadesnao datam do momento em que se renunciou a constituirimediatamente uma ciencia geral das ordens nao-quantifica-veis? Com efeito, nao se pode negar que a renuncia a umamathesis (ao menos provisoriamente) permitiu, em certos do-minios do saber, suspender 0obstaculo da qualidade, e apli-

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    484 AS PALA VRASE AS COISAScar 0 instrumental matematico Ia onde ele ainda nao pene-trara. Mas se, ao nivel da fisica, a dissociacao do projeto damathesis constitui uma unica e mesma coisa com a desco-berta de novas aplicacoes das matematicas, 0 mesmo naoocorreu em todos os dominios: a biologia, por exemplo, alemde uma ciencia das ordens qualitativas, constituiu-se comoanalise das relacoes entre os orgaos e as funcoes , estudo dasestruturas e dos equilibrios, investigacoes sobre sua forma-~ao e seu desenvolvimento na historia dos individuos ou dasespecies; tudo isso nao impediu que a biologia utilizasse asmatematicas e que estas pudessem aplicar-se a biologia bernmais amplamente que no passado. Todavia, nao foi em suarelacao com as matematicas que a biologia assumiu sua auto-nomia e definiu sua positividade. 0 mesmo ocorreu com asciencias hurnanas: foi0retraimento damathesis e nao 0avan-co das matematicas que permitiu ao homem constituir-se co-mo objeto de saber; foi 0 envolvimento do trabalho, da vidae da linguagem em torno deles proprios que prescreveu, doexterior, 0 aparecimento desse novo dominio; e e 0 apareci-mento desse ser empirico-transcendental, desse ser cujo pen-samento e indefinidamente tramado com 0 impensado, des-. se ser sempre separado de urna origem que lhe e prometidana imediatidade do retorno - e esse aparecimento que da asciencias humanas sua feicao singular. Tambem ai, como emoutras disciplinas, pode ser que a aplicacao das matematicastenha sido facilitada (e 0 seja cada vez mais) por todas asmodificacoes que seproduziram, no comeco do seculo XIX,no saber ocidental. Imaginar, porem, que as ciencias huma-nas definiram seu projeto mais radical e inauguraram sua his-toria positiva no dia em que se pretendeu aplicar 0 calculodas probabilidades aos fenomenos da opiniao politica e uti-lizar logaritmos para medir a intensidade crescente das sen-

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    AS CIENCIAS HUMANAS 485sacoes e tomar urn contra-efeito de superficie pelo aconteci-mento fundamental.

    Em outros termos, entre as tres dimensoes que abrem asciencias humanas seu espaco proprio e lhes facultam 0volu-me em que elas tomam corpo, a das matematicas e talvez amenos problematica; e com ela, em todo 0caso, que as cien-cias humanas entretem as relacoes mais claras, mais serenase, de certo modo, mais transparentes: tanto mais que 0 re-curso as matematicas, sob urna forma ou outra, sempre foi amaneira mais simples de emprestar ao saber positivo sobre 0homem urn estilo, uma forma, urna justificacao cientifica.Em contrapartida, as dificuldades mais fundamentais, as quepermitem melhor definir 0que sao, em sua essencia, ascien-cias hurnanas, alojam-se do lado das outras duas dimensoesdo saber: aquela em que se desenrola a analitica da finitudee aquela ao longo da qual se repartem as ciencias empiricasque tomam por objeto a linguagem, a vida e 0trabalho.

    As ciencias hurnanas, com efeito, enderecam-se ao ho-mem, na medida emque ele vive, em que fala, em que produz.E como ser vivo que ele cresce, que tern funcoes e necessi-dades, que ve abrir-se urn espacocujas coordenadas moveisele articula em si mesmo; de urn modo geral, sua existenciacorporal fa-lo entrecruzar-se, de parte a parte, com 0 ser vi-vo; produzindo objetose utensilios, trocando aquilo de quetern necessidade, organizando toda uma rede de circulacaoao longo da qual perpassa 0que ele pode consurnir e em queele proprio se acha definido como elemento de troca, apare-ce ele em sua existencia imediatamente imbricado com osoutros; enfim, porque tern urna linguagem, pode constituirpara si todo urn universo simbolico, em cujo interior serela-ciona com seu passado, com coisas, com outrem, a partir doqual pode imediatamente construir alguma coisa com urn sa-

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    486 AS PALA VRASE AS COlSASber (particularmente esse saber que tern de si mesmo e doqual as ciencias humanas desenham urna das formas possi-veis). Pode-se, portanto, fixar 0 lugar das ciencias do ho-mem nas vizinhancas, nas fronteiras imediatas e em toda aextensao dessas ciencias em que se trata da vida, do trabalho eda linguagem. Nao chegam estas justamente a se formar naepoca em que, pela prime ira vez, 0homem se oferece a pos-sibilidade de urn saber positivo? Contudo, nem a biologia,nem a economia, nem a filologia devem ser tomadas comoas primeiras ciencias humanas nem como as mais funda-mentais. Isso se reconhece sem dificuldade no caso da biolo-gia, que se dirige a muitos outros seres vivos alem do homem;tem-se mais dificuldade em admiti-lo no caso da economiaou da filologia, que tern por dominio proprio e exclusivo ati-vidades especificas do homem. Mas nao se pergunta por quee que a biologia ou a fisiologia humanas, por que e que aanatomia dos centros corticais da linguagem nao podem, demodo algum, ser consideradas como ciencias do homem. Eque 0 objeto destas ultimas jamais se da ao modo de ser deurn funcionamento biologico (nem mesmo sob sua forma sin-gular e como que a de seu prolongamento no homem); ele e. antes seu reverso, sua marca no vazio; ele comeca la ondepara - nao a ar;ao ou os efeitos - mas 0 ser proprio dessefuncionamento - la onde se liberam representacoes, verda-deiras ou falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscien-tes ou embrenhadas na profundidade de alguma sonolencia,observaveis direta ou indiretamente, oferecidas naquilo queo proprio homem enuncia ou detectaveis somente do exte-rior; a busca das Iigacoes intracorticais entre os diferentescentros de integracao da linguagem (auditivos, visuais, mo-tores) nao e da alcada das ciencias humanas; mas estas en-contrarao seu espaco de desempenho, desde que se interro-

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    ijtki~,!tf

    AS ClENClAS HUMANAS 487gue esse espaco de palavras, essa presen;:ll ou esse esqueci-mento de seu sentido, essa distancia entre 0 que se quer dizere a articulacao em que essa intencao e investida, coisas de queo sujeito talvez nao tenha consciencin, milS que nao teriamnenhurn modo de ser assinalavel se esse mesmo sujeito naotivesse representacoes .

    .De urn mooomais-geral, 0homem, para as ciencias hu-manas, nao e esse ser vivo que tern U1l\aforma bern particular(urna fisiologia bastante especial e U1l\aautonomia quase uni-ca); e esse ser vivo que, do interior u a vida a qual pertenceinteiramente e pela qual e atravessado ern todo 0 seu ser,constitui representacoes gracas as quais ele vive e a partirdas quais detem esta estranha capacidade de poder se repre-sentar justamente a vida. Do mesmo modo, conquanto 0ho-mem seja a unica especie no mundo que trabalha, ao menosaquela em que a producao, a distribuicgs, 0consurno dos bensassumiram tanta importancia e receberam formas tao multi-plas e tao diferenciadas, nem por isso a economia e urnaciencia hurnana. Dir-se-a talvez que esta. para definir leisque sao contudo interiores aos mecanismos da producao (co-mo 0 acumulo do capital ou as rela

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    488 AS PALA VRASE AS COISASo modo como se sentem integrados a ela ou isolados, depen-dentes, submetidos ou livres; 0objeto das ciencias humanasnao e esse homem que, desde a aurora do mundo, ou 0 pri-meiro grito de sua idade de ouro, esta destinado ao trabalho;e esse ser que, do interior das formas da producao pelas quaistoda a sua existencia e comandada, forma a representacaodessas necessidades, da sociedade pela qual, com a qual oucontra a qual as satisfaz, de sorte que, a partir dai, pode elefinalmente se dar a representacao da pr6pria economia. Quan-to a linguagem, ocorre 0mesmo: embora 0 homem seja, nomundo, 0unico ser que fala, nao constitui ciencia hurnana co-nhecer as mutacoes foneticas, 0parentesco das linguas, a leidos desvios semanticos; em contrapartida, poder-se-a falarde ciencia hurnana desde que sebusque definir a maneira co-mo os individuos ou os grupos se representam as palavras,utilizam sua forma e seu sentido, compoem discursos reais,mostram e escondem neles 0que pensam, dizem, talvez a suarevelia, mais ou menos do que pretendem, deixam dessespensamentos, em todo 0 caso, uma massa de traces verbaisque e preciso decifrar e restituir, tanto quanto possivel, a suavivacidade representativa. 0 objeto das ciencias hurnanas naoe , pois, a linguagem (falada, contudo, apenas pelos homens),mas, sim, esse ser que, do interior da linguagem pela qualesta cercado, se representa, ao falar, 0 sentido das palavrasou das proposicoes que enuncia e se da, finalmente, a repre-sentacao da pr6pria linguagem.

    Ve-se que as ciencias humanas nao sao uma analise doque 0 homem e por natureza; sao antes uma analise que seestende entre 0que 0homem e em sua positividade (ser quevive, trabalha, fala) e 0que permite a esse mesmo ser saber(ou buscar saber) 0 que e a vida, em que consistem a essen-cia do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar. As

    AS CIENCIAS HUMANAS 489ciencias hurnanas ocupam, pois, essa distancia que separa(nao sem uni-las) a biologia, a economia, a filologia daquiloque lhes d a possibilidade no ser mesmo do homem. Seria er-ronco, portanto, fazer das ciencias humanas 0prolongamen-to, interiorizado na especie humana, no seu organismo com-plexo, na sua conduta e na sua consciencia, dos mecanismosbiol6gicos; nao menos erroneo colocar, nointerior das cien-cias humanas, a ciencia da economia e da linguagem (cujairredutibilidade as ciencias humanas e manifestada pelo es-force para constituir uma economia e urna lingiiistica pu-ras). De fato, nem as ciencias humanas estao no interior des-sas ciencias, nem as interiorizam, inclinando-as em direcaoa subjetividade do homem; se as retomam na dimensao darepresentacao, e antes reassumindo-as em sua vertente exte-rior, deixando-as na sua opacidade, acolhendo como coisasos mecanismos e os funcionamentos que elas isolam, inter-rogando estes ultimos nao no que sao, mas no que deixam deser quando se abre 0espaco da representacao; e, a partir dai,elas mostram como pode nascer e desdobrar-se urna repre-sentacao do que eles sejam. Elas reconduzem sub-repticia-mente as ciencias da vida, do trabalho e da linguagem, parao lado dessa analitica da finitude que mostra como pode 0homem haver-se, no seu ser, com essas coisas que ele conhe-ce e conhecer essas coisas que determinam, na positividade,seu modo de ser. Mas aquilo que a analitica requer na inte-rioridade ou ao menos na dependencia profunda de urn serque nao deve sua finitude senao a si mesmo, as ciencias hu-manas 0desenvolvem na exterioridade do conhecimento. Epor isso que 0especifico das ciencias hurnanas nao e 0dire-cionamento a certo conteudo (esse objeto singular que e 0ser hurnano); e muito mais urn carater puramente formal: 0simples fato de estarem, em relacao as ciencias em que 0 ser

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    490 AS PALA VRAS E AS COISAShUIlJ.anoe dado como objeto (exclusivo para a economia e afilclogia, ou parcial para a biologia), numa posicao de redu-plica~ao, e de que essa reduplicacao possa valer afortiori pa-ra elasmesmas.

    Essa posicao torna-se perceptivel em dois niveis: as cien-cias humanas nao tratam a vida, 0trabalho e a linguagem dohOI11emna maior transparencia em que se podem dar, masnaquela camada de condutas, de comportamentos, de atitu-des, de gestos ja feitos, de frases ja pronunciadas ou escritas,em cujo interior eles foram dados antecipadamente, numa pri-meira vez, aqueles que agem, se conduzem, trocam, traba-lham e falam; em outro nivel (e sempre a mesma proprieda-de formal, mas desenvolvida ate 0ponto extremo e mais ra-ro), e sempre possivel tratar, em estilo de ciencias humanas(de psicologia, de sociologia, de historia das culturas ou dasideias ou das ciencias) 0fato de haver para certos individuosou certas sociedades alguma coisa como um saber especula-tivo da vida, da producao e da linguagem - em Ultimaanali-se, Ulnabiologia, uma economia e uma filologia. Semduvi-da, isso e apenas a indicacao de uma possibilidade que rara-mente e efetuada e que talvez nao seja suscetivel, ao niveldas empiricidades, de oferecer uma grande riqueza; mas, 0fato de que ela existe como distancia eventual, como espacode recuo dado as ciencias humanas em relacao aquilo mes-mo donde elas vern, 0 fato tambem de que esse jogo podeapliear-se a elas proprias (podem-se sempre fazer as cien-cias humanas das ciencias humanas, a psicologia da psicolo-gia, a sociologia da sociologia etc.) bastam para mostrar suasingular configuracao. Em relacao a biologia, a economia, asciencias da linguagem, elas nao estao, portanto, em carenciade exatidao ou de rigor; estao antes, como ciencias da redu-plica~ao, numa posicao "metaepistemologica". Ainda assim,

    AS CIENCIAS HUMANAS 491

    o prefixo nao esta talvez muito bern escolhido: pois so sefala de metalinguagem quando se trata de definir as regrasde interpretacao de uma linguagem primeira. Aqui as cien-cias humanas, quando reduplicam as ciencias da linguagem,do trabalho e da vida, quando, na sua mais fina extremidade,se reduplicam a si mesmas, nao visam a estabelecer um dis-curso formalizado: ao contrario, elas embrenham 0homemque tomam por objeto no campo da finitude, da relatividade,da perspectiva - no campo da erosao indefinida do tempo.Talvez fosse melhor falar a seu proposito de posicao "ana"ou "hipoepistemologica"; se libertassemos este ultimo pre-fixo do que pode ter de pejorativo, ele explicaria sem duvidaas coisas: faria compreender que a invencivel impressao defluidez, de inexatidao, de imprecisao que deixam quase to-das as ciencias humanas nao e senao 0 efeito de superficiedaquilo que permite defini-las em sua positividade.

    III. Os tres modelosNuma primeiraabordagem, pode-se dizer que 0domi-

    nio das ciencias humanas e coberto por tres "ciencias" - ou,antes, por tres regioes epistemologicas, todas subdivididasno interior de simesmas e todas entrecruzadas umas com asoutras; essas regioes sao definidas pela triplice relacao dasciencias humanas em geral com a biologia, a economia, afilologia. Poder-se-ia admitir assim que a "regiao psicol6gi-ca" encontrou seu lugar la onde 0ser vivo, no prolongamen-to de suas funcoes, de seus esquemas neuromotores, de suasregulacoes fisiol6gicas, mas tambem na suspensao que osinterrompe e os limita, se abre a possibilidade da representa-~ao; do mesmo modo, a "regiao sociologica" teria encontra-

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    492 AS PALA VRASE AS COISASdo seu lugar la onde 0 individuo que trabalha, produz e.con-some se confere a representacao da sociedade em que seexerce essa atividade, dos grupos e dos individuos entre osquais ela se reparte, dos imperativos, das sancoes, dos ritos,das festas e das crencas mediante os quais ela e sustentadaou regulada; enfim naquela regiao onde reinam as leis e asformas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas per-manecem a margem de si mesmas, permitindo ao homemfazer ai passar 0 jogo de suas representacoes, la nascem 0estudo das literaturas e dos mitos, a analise de todas as ma-nifestacoes orais e de todos os documentos escritos, em su-rna, a analise dos vestigios verbais que uma cultura ou urnindividuo podem deixar de si mesmos. Essa reparticao, ain-da que muito sumaria, nao e certamente demasiado inexata.Ela deixa, porem, na integra, dois problemas fundamentais:urn concerne a forma de positivi dade que e pr6pria as cien-cias humanas (os conceitos em torno dos quais elas se orga-nizam, 0tipo de racionalidade ao qual se referem e pelo qualbuscam constituir-se como saber); outro, a sua relacao coma representacao (e a este fato paradoxal de que, embora ten-do lugar somente onde ha representacao, e a mecanismos,formas, processos inconscientes, e, em todo 0 caso, aos li-mites exteriores da consciencia que elas se dirigem).Sao bern conhecidos os debates a que deu lugar a buscade uma positividade especifica no campo das ciencias hu-manas: analise genetica ou estrutural? explicacao ou com-preensao? recurso ao "inferior" ou manutencao da decifra-c;ao ao nivel da leitura? Na verdade, todas essas discussoeste6ricas nao nasceram e nao prosseguiram ao longo de todaa hist6ria das ciencias hurnanas porque estas teriam que li-dar com 0 homem como com urn objeto tao complexo quenao se teria podido encontrar em sua direcao urn modo de

    AS CIENCIAS HUMANAS 493acesso unico, ou que se teria sido constrangido a utilizar va-rios alternadamente. De fato, essas discussoes s6 puderamexistir na medida em que a positivi dade das ciencias hurna-nas se ap6ia simultaneamente na transferencia de tres mode-los distintos. Essa transferencia nao e , para as ciencias hu-manas, urn fenomeno marginal (uma especie de estrutura deapoio, de desvio mediante urna inteligibilidade exterior, de con-firmacao no campo das ciencias ja constituidas); nao e tambemurn epis6dio limitado de sua hist6ria (uma crise de formacaonuma epoca em que eram ainda tao novas, que nao podiamfixar por si pr6prias seus conceitos e suas leis). Trata-se deurn fato indelevel, que esta ligado, para sempre, a sua dispo-sicao pr6pria no espaco epistemo16gico. Convem, com efei-to, distinguir duas especies de modelos utilizados pelas cien-cias humanas (pondo a parte os modelos de formalizacao),Houve, por urn lado - e ainda ha freqiientemente - conceitosque sao transportados a partir de outro dominio do conheci-mento e que, perdendo entao toda eficacia operat6ria, nao de-sempenham mais que urn papel de imagem (as metaforasorganicistas na sociologia do seculo XIX; as metaforas ener-geticas em Janet; as metaforas geometricas e dinamicas emLewin). Mas ha tambem os modelos constituintes que naosao, para as ciencias hurnanas, tecnicas de formalizacaonem simples meios para, com 0 menor esforco, imaginarprocessos; eles permitem formar conjuntos de fenomenoscomo tantos "objetos" para urn saber possivel; asseguramsua ligacao na empiricidade, mas os ofere cern a experienciaja ligados entre si. Desempenham 0papel de "categorias" nosaber singular das ciencias humanas.

    Esses modelos constituintes sao tornados de empresti-mo aos tres dominios da biologia, da economia e do estudoda linguagem. E na superficie de projecao da biologia que 0

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    homem aparece como um ser que tem funcoes - que recebeestimulos (fisiologicos, mas tambem sociais, inter-huma-nos, culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui,submete-se as exigencias do meio, harmoniza-se com as mo-dificacoes que ele impoe, busca apagar os desequilibrios,age segundo regularidades, tern, em suma, condicoes de exis-tencia e a possibilidade de encontrar normas medias de ajus-tamento que the permitem exercer suas funcoes. Na superfi-cie de projecao da economia, 0 homem aparece enquantotern necessidades e desejos, enquanto busca satisfaze-los, en-quanto, pois, tern interesses, visa a lucros, opoe-se a outroshomens; em suma, ele aparece numa irredutivel situacao deconflito; a esses conflitos ele se esquiva, deles foge ou chegaa domina-los, a encontrar uma solucao que apazigue, ao me-nos em urn nivel e por algum tempo, sua contradicao; ins-taura um conjunto de regras que sao, ao mesmo tempo, limi-ta~1ioe dilatacao do conflito. Enfim, na superficie de projecao.da linguagem, as condutas do homem aparecem como que-rendo dizer alguma coi sa; seus menores gestos, ate em seusmecanismos involuntarios e ate em seus malogros, tern umsentido; e tudo 0que ele deposita em torno de si, em materiade objetos, de ritos, de habitos, de discurso, toda a esteira derastros que deixa atras de si constitui um conjunto coerente eum sistema de signos. Assim, estes tres pares,junfiio e nor-ma, conjlito e regra, significadio e sistema, cobrem, por com-pleto, 0dominio inteiro do conhecimento do homem.

    Contudo, nao se deve julgar que cada um desses pares deconceitos permanece localizado na superficie de projecao emque puderam nascer: a funcao e a norma nao sao conceitospsicologicos e exclusivamente tais; 0 conflito e a regra naotern uma aplicacao limitada apenas ao dominio sociologico;a significacao e 0 sistema nao valem somente para os feno-

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    menos mais ou menos aparentados a linguagem. Todos es-ses conceitos sao retomados no volume comum das cienciashumanas, valem em cada uma das regioes que ele envolve:dai se segue ser freqiientemente dificil fixar os limites, naoso entre os objetos, mas tambem entre os metodos proprios apsicologia, a sociologia, a analise das literaturas e dos mitos.No entanto, pode-se dizer, de maneira global, que a psicolo-.gia e fundamentalmente urn estudo do homem em termos defuncoes e de normas (funcoes e normas que se podem, demane ira secundaria, interpretar a partir dos conflitos e dassignificacoes, das regras e dos sistemas); a sociologia e fun-damentalmentei um estudo do homem em termos de regras ede conflitos (mas estes podem ser interpretados, e somosconstantemente levados a interpreta-los secundariamente,quer a partir das funcoes, como se fossem individuos orga-nicamente ligados a si mesmos, quer a partir de sistemas designificacoes, como se fossem textos escritos ou falados); en-fim, 0 estudo das literaturas e dos mitos procede essencial-mente de uma analise das significacoes e dos sistemas signi-ficantes, mas sabe-se bern que esta pode ser retomada e~termos de coerencia funcional ou de conflitos e de regras. Eassim que todas as ciencias humanas se entrecruzam e po-dem sempre interpretar-se umas as outras, que suas frontei-ras se apagam, que as disciplinas intermediarias e mistas semultiplicam indefinidamente, que seu objeto proprio acabamesmo por dissolver-se. Mas, qualquer que seja a naturezada analise e 0dominio a que ela se aplica, tem-se urn criterioformal para saber 0que e do nivel da psicologia, da sociolo-gia ou da analise das linguagens: e a escolha do modelo fun-damental e a posicao dos modelos secundarios que permitemsaber em que momenta se "psicologiza" ou se "sociologiza"no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz,

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    em psicologia, decifracao de textos ou analise sociologica,Mas essa superposicao de modelos nao e urn defeito de me-todo. So ha defeito se os modelos nao forem ordenados e ex-plici tamente art iculados uns com os outros. Sabe-se com queprecisao admiravel se pode conduzir 0estudo das mitologiasindo-europeias util izando, com base nurna analise dos signi-ficantes e das significacoes, 0modelo sociologico. Sabe-se,em eontrapartida, a que trivialidades sincreticas conduziu 0sempre mediocre empreendimento de fundar urna psi colo-gia dita "clinica".

    Quer seja ele fundado e dominado, quer se realize naconfusao, esse entrecruzamento dos modelos constituintesexplica as discussoes dos metodos ha poueo evoeadas. Elasnao tern sua origem e sua justificacao nurna complexidadepor vezes contraditoria que seria 0 carater proprio do ho-mem; mas, sim, no jogo de oposicao que permite definir ca-da urn dos tres modelos em relacao aos dois outros. Opor agenese a estrutura e opor a funcao (em seu desenvolvimento,em suas operacoes progressivamente diversificadas, em suasadaptacoes adquiridas e equilibradas no tempo) ao sincro-nismo do conflito eda regra, da significacao e do sistema;opor a analise pelo "inferior" a que se mantem ao nivel deseu objeto e opor 0 confl ito (como dado primeiro, arcaico,inscrito ja nas necessidades fundamentais do homem) a fun-9ao e a significacao tais como se desdobram na sua realizacao. propria; opor a compreensao a explicacao e opor a tecnicaque permite decifrar urn sentido a partir do sistema signifi-cante aquelas que permitem explicar urn conflito com suasconsequencias, ou as formas e as deformacoes que pode as-surnir e sofrer uma funcao com seus orgaos. Mas e preciso irmais longe. Sabe-se que, nas ciencias hurnanas, 0 ponto devista da descontinuidade (limiar entre a natureza e a cultura,

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    irredutibilidade mutua dos equilibrios ou das solucoes en-contradas por cada soeiedade ou cada individuo, ausencia deformas intermediarias, inexistencia de urn continuum dadono espaco ou no tempo) se opoe ao ponto de vista da eonti-nuidade. A existencia dessa oposicao se explica pelo caraterbipolar dos modelos: a analise em estilo de continuidadeapoia-se na permanencia das funcoes (que se eneontra desdeo fundo da vida nurna identidade que autoriza e enraiza asadaptacoes sucessivas), no encadeamento dos conflitos (aindaque assurnam formas diversas, seu ruido de fundo nao cessajamais), na trama das significacoes (que se retomam umasas outras e constituem como que a superficie de urn discur-so); a analise das descontinuidades, ao contrario, procura an-tes fazer surgir a coerencia interna dos sistemas significan-tes, a especificidade dos conjuntos de regras e 0 carater dedecisao que elas assurnem em relacao ao que deve ser regula-do, a emergencia da norma aeima das oscilacoes funcionais.

    Poder-se-ia talvez retracar toda a historia das cienciashumanas desde 0 seculo XIX, a partir desses tres modelos.Com efeito, eles cobriram todo 0 seu devir, po is que se podeseguir, ha mais de urn seculo, a dinastia de seus privilegios:primeiro, 0reino do modelo biologico (0homem, sua psique,seu grupo, sua soeiedade, a linguagem que ele fala existem,na epoca romantic a, enquanto vivos e na medida em que defato vivem; seu modo de ser e organico e e analisado em ter-mos de funcao); depois vern 0 reino do modelo economico(0homem e toda a sua atividade sao 0 lugar de conflitos deque constituem, ao mesmo tempo, a expressao mais ou me-nos manifesta e a solucao mais ou menos bem-sucedida);enfim - assim como Freud vern apos Comte e Marx - eome-ca 0reino do modelo fi lologico (quando se trata de interpre-tar e de descobrir 0 sentido oeulto) e l ingiiistico (quando se

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    498 AS PALA VRAS E AS COISAStrata de estruturar e de trazer it luz 0 sistema significante).Urn amplo declive conduziu, pois, as ciencias humanas deurna forma mais densa em modelos vivos a urna outra maissaturada de modelos tirados da linguagem. Esse desvio, po-rem, foi duplicado por outro: aquele que fez recuar 0prime i-ro termo de cada urn dos pares constituintes (funcao, confli-to, significacao) e fez surgir com mais intensidade a impor-tancia do segundo (norma, regra, sistema): Goldstein, Mauss,Dumezil podem representar, quase igualmente, 0momentoem que se realizou a reversao em cada urn dos modelos. Umatal reversao tern duas series de conseqiiencias notaveis: en-quanto 0ponto de vista da funcao prevalecia sobre 0da nor-ma (enquanto nao era a partir da norma e do interior da ati-vidade que a estabelece que se tentava compreender a reali-zacao da funcao), era entao preciso realmente separar deJacto os funcionamentos normais daqueles que nao 0 eram;admitia-se, assim, urna psicologia patologica bern ao lado danormal, mas para ser como que sua imagem invertida (dai aimportancia do esquema jacksoniano da desintegracao emRibot ou Janet); admitia-se tambem urna patologia das so-ciedades (Durkheim), das formas irracionais e quase morbi-das de crencas (Levy-Bruhl, Blondel); do mesmo modo, en-quanto 0ponto de vista do conflito prevalecia sobre 0da regra,supunha-se que certos conflitos nao podiam ser superados,que os individuos e as sociedades corriam 0 risco de nelessocobrar; enfim, enquanto 0ponto de vista da significacaoprevalecia sobre 0 do sistema, separava-se 0 significante e 0nao-significante, admitia-se que em certos dominios do com-portamento hurnano ou do espaco social havia sentido e queem outros nao. De mane ira que as ciencias hurnanas exerciamno seu proprio campo uma partilha essencial, estendiam-sesempre entre urn polo positivo e urn polo negativo, designa-

    AS CIENCIAS HUMANAS 499yam sempre urna alteridade (e isso a partir da continuidadeque elas analisavam). Ao contrario, quando a analise foi efe-tuada do ponto de-vista da norma, da regra e do sistema, ca-da conjunto recebeu de si mesmo sua propria coerencia esua propria validade, nao foi mais possivel falar, mesmo aproposito dos doentes, de "consciencia morbida", mesmo a pro-posito de sociedades abandonadas pela historia, de "menta-lidades primitivas", mesmo a proposito de narrativas absur-das, de lendas aparentemente sem coerencia, de "discursosnao-significantes", Tudo pode ser pensado na ordem do sis-tema, da regra e da norma. Ao pluralizar-se - visto que ossistemas sao isolados, que as regras formam conjuntos fe-chados e que as normas se estabelecem na sua autonomia -ocampo das ciencias hurnanas achou-se unificado: deixou,de imediato, de estar cindido segundo urna dicotomia de va-lores. E se se lembrar que Freud, mais que qualquer outro,aproximou 0 conhecimento do homem de seu modelo filo-logico e linguistico, mas que foi tambem 0primeiro a tentarapagar radicalmente a divisao entre 0 positivo e 0 negativo(0 normal e 0 patologico, 0 compreensivel e 0 incomunica-vel, 0 significante e 0 nao-significante), compreende-se deque modo anuncia ele a passagem de urna analise em termosde funcoes, de conflitos e de significacoes para urna analiseem termos de norma, de regras e de sistemas: e e assim quetodo esse saber, em cujo interior a cultura ocidental se pro-veu, em urn seculo, de urna certa imagem do homem, gira emtorno da obra de Freud, sem contudo sair de sua disposicaofundamental. Mas nao e ainda ai - como se vera dentro empouco - que esta a importancia mais decisiva da psicanalise.

    Em todo 0caso, essa passagem para 0ponto de vista danorma, da regra e do sistema nos aproxima de urn problemaque foi deixado em suspenso: 0 do papel da representacao

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    500 AS PALA VRASE AS COISASnas ciencias hurnanas. Ja podia parecer bern contestavel en-cerrar estas ultimas (para opo-las a biologia, a economia, afilologia) no espaco da representacao; nao se deveriaja esti-mar que urna funcao pode exercer-se, urn conflito desenvolversuas conseqiiencias, uma significacao impor sua inteligibili-dade sem passar pelo momenta de urna consciencia explici-ta? E agora nao sera preciso reconhecer que 0que e especifi-co da norma em relacao a funcao que ela determina, da regraem relacao ao conflito que ela rege, do sistema em relacao asignificacao que ele torna possivel esta precisamente em naoserem dados a consciencia? As duas vertentes historicas jaisoladas nao sera preciso acrescentar urna terceira e dizer que,desde 0 seculo XIX, as ciencias hurnanas nao cessaram deaproximar-se dessa regiao do inconsciente onde a instanciada representacao e mantida em suspenso? De fato, a repre-sentacao nao e a consciencia e nada prova que este trazer aluz elementos ou organizacoes que jamais sao dados comotais a consciencia faca as ciencias hurnanas escaparem a leida representacao. Com efeito, 0papel do conceito de signi-ficacao e mostrar de que modo alguma coisa como urna lin-guagem, ainda que nao se trate de urn discurso explicito emesmo que nao seja desdobrada para urna consciencia, po-de, em geral, ser dada a representacao; 0papel do conceitocomplementar de sistema e mostrar de que modo a signifi-cacao jamais e primeira e contemporanea de si mesma, massempre segunda e como que derivada em relacao a urn siste-ma que a precede, que constitui sua origem positiva, e que seda, pouco a pouco, por fragmentos e perfis atraves dela; emrelacao a consciencia de urna significacao, 0 sistema e , naverdade, sempre inconsciente, pois que ja estava la, antesdela, pois que e nele que ela se aloja e a partir dele que ela seefetua; mas isso porque ele fica sempre prometido a urna

    AS CIENCIAS HUMANAS 501consciencia futura que talvez jamais 0 totalizara, Em outraspalavras, 0 par significacao-sistema e 0 que assegura, a urntempo, a representabilidade da linguagem (como texto ouestrutura analisados pela filologia e pela lingiiistica) e a pre-senca proxima mas recuada da origem (tal como e manifes-tada como modo de ser do homem pela analitica da finitu-de). Da mesma forma, a nocao de conflito mostra de que mo-do a necessidade, 0desejo ou 0 interesse, ainda que nao sejamdados a consciencia que os experimenta, podem tomar for-ma na representacao; e 0papel do conceito inverso de regrae mostrar de que modo a violencia do conflito, a insistenciaaparentemente selvagem da necessidade, 0 infinito sem leido desejo estao, de fato, ja organizados por urn impensadoque nao so lhes prescreve sua regra, mas tambem os tornapossiveis a partir de urna regra. 0 par conflito-regra assegu-ra a representabilidade da necessidade (dessa necessidadeque a economia estuda como processo objetivo no trabalho ena producao) e a representabilidade desse impensado desve-lado pela analitica da finitude. Enfim, 0 conceito de funcaotern por papel mostrar de que modo as estruturas da vida po-dem dar lugar a representacao (ainda que nao sejam cons-cientes), e 0conceito de norma, de que modo a funcao se daa si mesma suas proprias condicoes de possibilidades e oslimites de seu exercicio.

    Compreende-se, assim, por que essas grandes catego-rias podem organizar todo 0campo das ciencias humanas: eque elas 0atravessam de ponta a ponta, mantem a distancia,mas tambem reunem as positividades empiricas da vida, dotrabalho e da linguagem (a partir das quais 0homem histori-camente destacou-se como figura de urn saber possivel) asformas da finitude que caracterizam 0modo de ser do ho-mem (tal como se constituiu a partir do dia em que a repre-

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    502 AS PALA VRASE AS COISASsentacao cessou de definir 0espaco geral do conhecimento).Essas categorias nao sao, pois, simples conceitos empiricosde urna bern grande generalidade; elas sao, na verdade, aqui-10a partir do qual 0 homem pode oferecer-se a urn saber pos-sivel; elas percorrem todo 0 campo de sua possibilidade e 0articulam fortemente com as duas dimensoes que 0delimitam.

    Mas isso nao e tudo: elas permitem a dissociacao, ca-racteristica de todo saber contemporaneo sobre 0 homem,entre a consciencia e a representacao. Definem a mane ira co-mo as empiricidades podem ser dadas it representacao, massob urna forma que nao esta presente it consciencia (a fun-

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    504 AS PALA VRASE AS CO/SAS AS CIENC/AS HUMANAS 505Nao cessam de exercer para consigo proprias uma retomadacritica. Vao do que e dado a representacao ao que toma pos-sivel a representacao, mas que e ainda uma representacao.De maneira que elas buscam menos, como as outras cien-cias, generalizar-se ou precisar-se do que desmistificar-sesem cessar: passar de uma evidencia imediata e nao-contro-lada a formas menos transparentes, porem mais fundamen-tais. Esse percurso quase transcendental da-se sempre sob aforma do desvelamento. E sempre desvelando que, por con-tragolpe, elas podem generalizar-se ou se refinar ate pensa-rem os fenomenos individuais. No horizonte de toda cienciahumana, M0projeto de reconduzir a consciencia do homemas suas condicoes reais, de restitui-la aos conteudos e as for-mas que a fizeram nascer e que nela se esquivam; e por issoque 0problema do inconsciente - sua possibilidade, seu es-tatuto, seu modo de existencia, os meios de conhece-lo e deo trazer a luz - nao e simplesmente urn problema interior asciencias humanas e que elas encontrassem ao acaso de seusprocedimentos; e um problema que e, afinal, co-extensivo asua propria existencia. Uma sobrelevacao transcendental re-vertida num desvelamento do nao-consciente e constitutivade todas as ciencias do homem.

    Ai talvez se encontrasse 0meio de demarca-las no queelas tern de essencial. 0 que manifesta, em todo 0 caso, 0 es-pecifico das ciencias humanas, ve-se bern que nao e esse obje-to privilegiado e singularmente nebuloso que e 0 homem.Pela simples razao de que nao e 0homem que as constitui elhes oferece um dominio especifico; mas, sim, e a disposi-~ao geral da episteme que lhes d a lugar, as requer e as ins-taura - permitindo-lhes assim constituir 0homem como seuobjeto. Dir-se-a, pois, que M "ciencia humana" nao ondequer que 0homem esteja em questao, mas onde quer que se

    analisem, na dimensao propria do inconsciente, normas, re-gras, conjuntos significantes que desvelam a consciencia ascondicoes de suas formas e de seus conteudos. Falar de "cien-cias do homem", em qualquer outro caso, e puro e simplesabuso de linguagem. Avalia-se assim quao vas e ociosas saotodas as enfadonhas discussoes para saber se tais conheci-mentos podem ser ditos realmente cientificos e a que condi-coes deveriam sujeitar-se para vir a se-lo. As "ciencias dohomem" fazem parte da episteme modema como a quimicaou a medicina ou alguma outra ciencia; ou, ainda, como agramatica e a historia natural faziam parte da episteme clas-sica. Mas dizer que elas fazem parte do campo epistemolo-gico significa somente que elas nele enraizam sua positivi-dade, que nele encontram sua condicao de existencia, quenao sao, portanto, apenas ilusoes, quimeras pseudocientifi-cas, motivadas ao nivel das opinioes, dos interesses, das cren-cas, que elas nao sao aquilo a que outros dao 0 estranho no-me de "ideologia". 0 que nao quer dizer, porem, que por issosejam ciencias.

    Se e verdade que toda ciencia, qualquer que seja, quandointerrogada ao nivel arqueologico e quando se busca desen-redar 0 solo de sua positividade, revela sempre a configura-~ao epistemologica que a tomou possivel, em contrapartida,toda configuracao epistemologica, mesmo se perfeitamentedemarcavel em sua positividade, pode muito bern nao seruma ciencia: nem por isso se reduz a uma impostura. E pre-ciso distinguir, com cuidado, tres coisas: M temas com pre-tensao cientifica que se podem encontrar ao nivel das opi-nioes e que nao fazem (ou nao mais fazem) parte da redeepistemologica de uma cultura; a partir do seculo XVII, porexemplo, a magia natural cessou de pertencer a episteme oci-dental, mas prolongou-se por muito tempo no jogo das cren-

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    506 AS PALA VRASE AS COISAS AS CIENCIAS HUMANAS 507cas e das valorizacoes afetivas. Ha, em seguida, as figurasepistemologicas cujo desenho, posicao, funcionamento, po-dem ser restituidos em sua positivi dade por uma analise detipo arqueologico; e, por sua vez, podem obedecer a duasorganizacoes diferentes: urnas apresentam caracteres de obje-tividade e de sistematicidade que permitem defini-Ias comociencias; outras nao respondem a esses criterios, isto e , suaforma de coerencia e sua relacao com seu objeto sao deter-minadas tao-somente por sua positivi dade. Estas ultimas,conquanto nao possuam os criterios formais de urn conheci-mento cientifico, pertencem, contudo, ao dominio positivodo saber. Seria, portanto, tao vao e injusto analisa-las comofenomenos de opiniao, quanta confronta-las, pela hist6ria oupela critica, com as formacoes propriamente cientificas; maisabsurdo ainda seria trata-las como urna combinacao que mis-turasse, segundo proporcoes variaveis, "elementos racionais"com outros que nao 0 fossem. E preciso recoloca-las ao ni-vel da positividade que as toma possiveis e determina neces-sariamente sua forma. A arqueologia tern, pois, para comelas, duas tarefas: determinar a maneira como elas se dis-poem na episteme em que se enraizam; mostrar tambem emque sua configuracao e radicalmente diferente daquela dasciencias no sentido estrito. Essa configuracao que lhes e pe-culiar nao deve ser tratada como urn fenomeno negativo: naoe a presenca de urn obstaculo, nao e algurna deficiencia in-tema que as fazem malograr no limiar das formas cientifi-cas. Elas constituem, na sua figura propria, ao lado das cien-cias e sobre 0mesmo solo arqueol6gico, outras configura-r;oes do saber.

    Ja foram encontrados exemplos de tais configuracoesna gramatica geral ou na teoria classica do valor; tinham 0mesmo solo de positividade que a matematica cartesiana, mas

    nao eram ciencias, ao menos para a maioria daqueles que lheseram contemporaneos. E 0 caso tambem do que se denomi-na hoje ciencias hurnanas; elas desenham, quando se lhesfaz a analise arqueologica, configuracoes perfeitamente po-sitivas; mas, desde que se determinam essas configuracoes ea mane ira como estao dispostas na episteme modema, com-preende-se por que nao podem ser ciencias: 0 que as tomapossiveis, com efeito, e uma certa situacao de "vizinhanca"em relacao it biologia, it economia, it filologia (ou it lingiiis-tica); elas so existem na medida em que se alojam ao ladodestas - ou antes, debaixo delas, no seu espaco de projecao.Com elas mantem, entretanto, urna relacao que e radicalmen-te diferente daquela que se pode estabelecer entre duas cien-cias "conexas" ou "afins": essa relacao, com efeito, supoe atransferencia de modelos exteriores na dimensao do incons-ciente e da consciencia e 0 refluxo da reflexao critica emdirecao ao proprio lugar donde vern esses modelos. Inutil,pois, dizer que as "ciencias hurnanas" sao falsas ciencias;simplesmente nao sao ciencias; a configuracao que definesua positividade e as enraiza na episteme modema coloca-as,ao mesmo tempo, fora da situacao de serem ciencias; e se seperguntar entao por que assurniram esse titulo, bastara lem-brar que pertence it definicao arqueologica de seu enraiza-mento 0 fato de que elas requerem e acolhema transferenciade modelos tornados de emprestimo a ciencias, Nao e , pois.pirredutibilidade do homem, aquilo que se designa como suainvencivel transcendencia, nem mesmo sua complexidadedemasiado grande que 0 impede de tomar-se objeto de cien-cia. A cultura ocidental constituiu, sob 0 nome de homem,urn ser que, por urn unico e mesmo jogo de razoes, deve serdominio positivo do saber e nao pode ser objeto de ciencia.

    I

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    508 AS PALA VRASE AS COISASIV . A Historia

    Falou-se das ciencias humanas; falou-se destas grandesregioes que a psicologia, a sociologia, a analise das literatu-ras e das mitologias aproximadamente delimitam. Nao se fa-lou da Historia, embora seja a primeira e como que a mae detodas as ciencias do homem, embora seja tao velha talvezquanto a memoria humana. Ou melhor, e por esta razao mes-rna que ela permaneceu ate agora em silencio. Com efeito,ela talvez nao tenha lugar entre as ciencias humanas nem aolado delas: e provavel que entretenha com elas uma relacaoestranha, indefinida, indelevel e mais fundamental do que 0seria uma relacao de vizinhanca num espaco comum.

    , verdade que a Historia existiu bern antes da constitui-~ao das ciencias humanas; desde os confins da idade grega,exerceu ela na cultura ocidental um certo numero de funcoesmaiores: memoria, mito, transmissao da Palavra e do Exem-plo, veiculo da tradicao, consciencia critica do presente, de-cifracao do destino da humanidade, antecipacao do futuro oupromessa de um retorno. 0 que caracterizava esta Historia-o que, ao menos, pode defini-Ia, em seus traces gerais, emoposicao a nossa - e que, regulando 0 tempo dos humanospelo devir do mundo (numa especie de grande cronologiacosmic a, como nos estoicos), ou, inversamente, estendendoate as menores parcelas da natureza 0 principio e 0 movi-mento de uma destinacao humana (urn pouco a maneira daProvidencia crista), concebia-se uma grande historia plana,uniforme em cada um de seus pontos, que teria arrastado nummesmo fluir, numa mesma queda ou numa mesma ascensao,num mesmo cicIo, todos os homens e, com eles, as coisas,os animais, cada ser vivo ou inerte, e ate os semblantes maiscalmos da terra. Ora, e esta unidade que se achou fraturada,

    AS CIENCIAS HUMANAS 509no comeco do seculo XIX, na grande reviravolta da episte-m e ocidental: descobriu-se uma historicidade propria a natu-reza; definiu-se mesmo, para cada grande tipo do ser vivo,formas de ajustamento ao meio que iam permitir, em segui-da, definir seu perfil de evolucao; mais ainda, pode-se mos-trar que atividades tao singularmente humanas, como 0 tra-balho ou a linguagem, detinham, em si mesmas, uma histo-ricidade que nao podia encontrar seu lugar na grande narra-tiva comum as coisas e aos homens; a producao tern modosde desenvolvimento, 0capital, modos de acumulacao, os pre-cos, leis de oscilacao e mudancas que nao podem nem res-tringir-se as leis naturais nem reduzir-se a marcha geral dahumanidade; do mesmo modo a linguagem modifica-se naotanto com as migracoes, 0 comercio e as guerras, ao sabordo que sucede ao homem ou ao capricho do que ele podeinventar, mas, sim, sob condicoes que pertencem propria-mente as formas foneticas e gramaticais de que ela e consti-tuida; e se se pode dizer que as diversas linguagens nascem,vivem, perdem sua forca envelhecendo e acabam por mor-rer, esta metafora biologic a nao e feita para dissolver sua his-toria num tempo que seria 0 da vida, mas, antes, para subli-nhar que tambem elas tern leis internas de funcionamento eque sua cronologia se desenvolve segundo um tempo que de-corre primeiramente da sua coerencia singular.

    Tende-se comumente a crer que 0 seculo XIX, por ra-zoes na maior parte politicas e sociais, dirigiu uma atencaomais aguda a historia humana, que se abandonou a ideia deuma ordem ou de um plano continuo do tempo, assim comoa de um progresso ininterrupto, e que, pretendendo narrarsua propria ascensao, a burguesia encontrou, no calendariode sua vitoria, a espessura historica das instituicoes, 0 pesodos habitos e das crencas, a violencia das lutas, a alternancia

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    510 AS PALA VRAS E AS COISASdos sucessos e dos fracassos. E supoe-se que, a partir dai,estendeu-se a historicidade descoberta no homem aos obje-tos que ele fabricara, a linguagem que falava e, mais longeainda, a vida. 0 estudo das economias, a historia d~s litera-turas e das gramaticas, enfim, a evolucao do ser vivo, nadamais seriam que 0 efeito de difusao, em regioes do conheci-mento cada vez mais longinquas, de uma historicidade des-coberta primeiramente no homem. Na realidade, foi 0 con-trario que se passou. As coisas receberam primeiro uma his-toricidade propria que as liberou deste espaco continuo quelhes impunha a mesma cronologia que aos homens. De sorteque 0 homem se achou como que despojado do que consti-tuia os conteudos mais manifestos de sua Historia: a nature-za nao the fala mais da criacao ou do fim do mundo, de suadependencia ou de seu proximo julgamento; ela so fala deurn tempo natural; suas riquezas nao mais the indicam a an-tiguidade ou 0 retorno proximo de urna idade de ouro; elasso falam das condicoes da producao que se modificam naHistoria; a linguagem nao traz mais as marcas de antes deBabel ou dos primeiros gritos que teriam ressoado na flores-ta; ela traz as armas de sua propria filiacao. 0 ser hurnanonao tern mais historia: ou antes, porque fala, trabalha e vive,acha-se ele, em seu ser proprio, todo imbricado em historiasque nao the sao nem subordinadas nem homogeneas. Pelafragmentacao do espaco onde se estendia continuamente 0saber classico, pelo enredamento de cada dominio assim li-berado sobre seu proprio devir, 0homem que aparece no co-meco do seculo XIX e "desistoricizado".

    E os valores imaginaries que 0passado entao assumiu,todo 0halo lirico que cercara, nessa epoca, a consciencia dahistoria, a viva curiosidade pelos docurnentos ou os vesti-gios que 0 tempo pode deixar atras de si - tudo isso manifes-

    AS CIENCIAS HUMAN AS 511ta, na superficie, 0 fato nu de que 0 homem achou-se vaziode historia, mas que ja se entregava a tarefa de reencontrar,no fundo de si mesmo e em meio a todas as coisas que pu-dessem ainda the devolver sua imagem (as outras estandocaladas e voltadas sobre si mesmas), uma historicidade quelhe estivesse ligada essencialmente. Essa historicidade, po-rem, e desde 0 inicio ambigua. Uma vez que 0homem so seda ao saber positivo na medida em que fala, trabalha e vive,podera sua historia ser outra coisa senao 0 no inextrincavelde tempos diferentes, que the sao estranhos e que sao hete-rogeneos uns em relacao aos outros? Sera a historia do ho-mem mais que urna especie de modulacao comurn as mu-dancas nas condicoes de vida (dimas, fecundidade do solo,modos de cultura, exploracao das riquezas), as transforma-coes da economia (e, por via de consequencia, da sociedadee das instituicoes) e a sucessao das formas e dos usos da lin-gua? Mas, entao, 0homem nao e, ele proprio, historico: umavez que 0 tempo the vern de fora dele mesmo, ele nao seconstitui como sujeito da Historia senao pela superposicaoda historia dos seres, da historia das coisas, da historia daspalavras. Esta submetido aos puros eventos dessas. Logo,porem, esta relacao de simples passividade se inverte: pois 0que fala na linguagem, 0 que trabalha e consome na econo-mia, 0 que vive na vida humana e 0proprio homem; e, poresse motivo, tambem ele tern direito a urn devir tao positivoquanto 0dos seres e das coisas, nao menos autonomo - e tal-vez ate mais fundamental: nao e acaso urna historicidadepropria ao homem e inscrita profundamente em seu ser quelhe permite adaptar-se como todo ser vivo e, tambem ele,evoluir (gracas porem a instrumentos, a tecnicas, a organi-zacoes que nao pertencem a nenhurn outro ser vivo), que lhepermite inventar formas de producao, estabilizar, prolongar

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    512 AS PALA VRASE AS COlSASou abreviar a validade das leis economicas, pela conscienciaque delas tern e pelas instituicoes que organiza a partir delasou em torno delas, que the permite, enfim, exercer sobre alinguagem, em cada uma das palavras que pronuncia, umaespecie de pressao interior constante que, insensivelmente,fa-lo deslizar sobre si mesmo em cada instante do tempo?Assim aparece, por tras da historia das positividades, aque-la, mais radical, do proprio homem. Historia que concerneagora ao ser mesmo do hom em, pois que se evidencia quenao somente ele "tern", em torno de si, "Historia", mas que elemesmo e , em sua historicidade propria, aquilo pelo que se de-lineia uma historia da vida humana, uma historia da econo-mia, uma historia das linguagens. Haveria, pois, a urn nivelmuito profundo, uma historicidade do homem que seria, porsi mesma, sua propria historia, mas tambem a dispersaoradical que funda todas as outras. E justamente essa erosaoprimeira que 0 seculo XIX buscou na sua preocupacao detudo historicizar, de escrever, a proposito de cada coisa, umahistoria geral, de remontar incessantemente no tempo e derepor as co is as mais estaveis na liberacao do tempo. Tam-bern ai, e preciso, sem duvida, rever a maneira como se es-creve tradicionalmente a historia da Historia; tem-se 0habi-to de dizer que, com 0 seculo XIX, cessou a pura cronica dosacontecimentos, a simples memoria de urn passado povoadosomente de individuos e de acidentes, e que se buscaram asleis gerais do devir. De fato, nenhuma historia foi mais "ex-plicativa", mais preocupada com leis gerais e com constan-tes que as da idade classica - quando 0mundo e 0hom em,num so movimento, se incorporavam numa historia unica. Apartir do seculo XIX, 0 que vern a luz e uma forma nua dahistoricidade humana - 0 fato de que 0 homem enquanto talesta exposto ao acontecimento. Dai a preocupacao, seja de

    AS ClENClAS HUMANAS 513encontrar leis para esta pura forma (e tem-se filosofias co-mo as de Spengler), seja de defini-la a partir do fato de que 0homem vive, de que 0homem trabalha, de que 0homem fa-la e pensa: e tem-se as interpretacoes da Historia a partir dohomem considerado como especie viva, ou a partir das leisda economia, ou a partir dos conjuntos culturais.

    Em todo o caso, essa disposicao da Historia no espacoepistemologico e de grande importancia para sua relacaocom as ciencias humanas. Uma vez que 0homem historico eo homem que vive, trabalha e fala, todo conteudo da Histo-ria, qualquer que seja, concerne a psicologia, a sociologia ouas ciencias da linguagem. Mas, inversamente, uma vez que 0ser humano se tornou, de ponta a ponta, historico, nenhumdos conteudos analisados pelas ciencias humanas pode ficarestavel em si mesmo nem escapar ao movimento da His-toria. E isto por duas razoes: porque a psicologia, a sociolo-gia, a filosofia, mesmo quando aplicadas a objetos - isto e, ahomens - que the sao contemporaneos, nao visamjamais se-nao a cortes sincronicos no interior de uma historicidadeque os constitui e os atravessa; porque as formas assumidassucessivamente pel as ciencias humanas, a escolha que elasfazem de seu objeto, os metodos que lhes aplicam sao dadospela Historia, incessantemente levados por ela e modifica-dos a seu gosto. Quanto mais a Historia tenta ultrapassar seuproprio enraizamento historico, quanta mais se esforca poratingir, para alem da relatividade historica de sua origem ede suas opcoes, a esfera da universalidade, tanto mais c1ara-mente traz ela os estigmas do seu nascimento historico, tan-to mais evidentemente aparece atraves dela a historia de queela mesma faz parte (e disso, tarnbem Spengler e todos osfilosofos da historia diio testemunho); inversamente, quantamais ela aceita sua relatividade, quanta mais se entranha no

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    514 AS PALA VRASE AS COISASmovimento que e comum a ela e ao que ela conta, tanto maisentao ela tende a exigiiidade da narrativa, e todo 0 conteudopositivo que ela se conferia atraves das ciencias humanas sedissipa.

    A Hist6ria forma, pois, para as ciencias humanas, umaesfera de acolhimento ao mesmo tempo privilegiada e peri-gosa. A cada ciencia do homem ela da urn fundo basico quea estabelece, lhe fixa urn solo e como que uma patria: ela de-termina a area cultural- 0 epis6dio cronol6gico, a insercaogeografica - em que se pode reconhecer, para este saber, suavalidade; cerca-as, porem, com uma fronteira que aslimitae, logo de inicio, arruina sua pretensao de valerem no ele-mento da universalidade. Desta mane ira, ela revela que se 0homem - antes mesmo de 0 saber - sempre esteve submeti-do as determinacoes que a psicologia, a sociologia, a analisedas linguagens podem manifestar, nem por isso ele e 0obje-to intemporal de urn saber que, pelo menos ao nivel de seusdireitos, seria, ele pr6prio, sem idade, Ainda quando evitamtoda referencia a hist6ria, as ciencias hurnanas (e, a esse titu-lo, pode-se colocar a hist6ria entre elas) nao fazem mais quepor em relacao urn epis6dio cultural com outro (aquele a queelas se aplicam como ao objeto delas, e aquele em que seenraizam quanto a sua existencia, seu modo de ser, seus me-todos e seus conceitos); e se elas se aplicam a sua propriasincronia, e ao pr6prio homem que reportam 0 epis6dio cul-tural donde procedem. De sorte que 0homemjamais apare-ce na sua positividade sem que esta seja logo limitada peloilimitado da Hist6ria.

    Ve-se reconstituir aqui urn movimento analogo ao queanimava interiormente todo 0 dominio das ciencias do ho-mem: tal como foi analisado acima, este movimento remetiaperpetuamente das positividades que determinam 0 ser do

    AS CIENCIAS HUMANAS _ 515homem a finitude que faz aparecer estas mesmas positivida-des; de sorte que as pr6prias ciencias eram arrastadas nestagrande oscilacao, a qual, porem, elas, por sua vez, retoma-yam na forma de sua pr6pria positividade, buscando ir, semcessar, do consciente ao inconsciente. Ora, eis que, com aHist6ria, urna oscilacao semelhante recomeca; desta feita,porem, ela nao se exerce entre a positividade do homemtornado como objeto (e manifestado empiricamente pelo tra-balho, a vida e a linguagem) e os limites radicais de seu ser;exerce-se entre os limites temporais que definem as formassingulares do trabalho, da vida e da linguagem, e a positivi-dade hist6rica do sujeito que, pelo conhecimento, tern aces-so a eles. Tambem agora, 0 sujeito e 0 objeto estao ligadosnurn questionamento reciproco; mas, enquanto que antes es-te questionamento se fazia no interior mesmo do conheci-mento positivo e pelo progressivo desvelamento do incons-ciente pela consciencia, agora ele se faz nos confins exterio-res do objeto e do sujeito; ele designa a erosao a que ambosestao submetidos, a dispersao que os afasta urn do outro,arrancando-os a urna positivi dade calma, enraizada e defini-tiva. Desvelando 0 inconsciente como seu objeto mais fun-damental, as ciencias hurnanas mostravam que havia sempreo que pensar ainda no que ja era pensado ao nivel manifesto;descobrindo a lei do tempo como limite extemo das cienciashurnanas, a Hist6ria mostra que tudo 0 que e pensado 0 seraainda por urn pensamento que ainda nao veio a luz. Mas tal-vez nao tenhamos aqui, sob as formas concretas do incons-ciente e da Hist6ria, senao as duas faces dessa finitude que,descobrindo que era por si me sma seu pr6prio fundamento,fez aparecer, no seculo XIX, a figura do homem: urna fini-tude sem infinito e, sem duvida, urna finitude que jamaistern fim, que esta sempre em recuo em relacao a si mesma, a

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    516 AS PALA VRAS EAS COISAS AS CIENC/AS HUMANAS 517qual resta ainda algurna coisa para pensar no instante mes-mo em que ela pensa, a qual resta sempre tempo para pensarde novo0que ela pensou.

    No pensamento modemo, 0 historicismo e a analiticada finitude estao frente a frente. 0 historicismo e uma formade fazer valer por ela mesma a perpetua relacao critica quese exerce entre a Historia e as ciencias hurnanas. Mas ele ainstaura somente ao nivel das positividades: 0conhecimentopositivo do homem e limitado pela positividade hist6rica dosujeito que conhece, de sorte que 0momento da finitude edissolvido nojogo de uma relatividade a qual nao e possivelescapar e que vale, ela mesma, como urn absoluto. Ser finitoseria,muito simplesmente, ser tornado pelas leis d e umapers-pectiva que, ao mesmo tempo, permite urna certa apreensao- do tipo da percepcao ou da compreensao - e impede queesta jamais seja inteleccao universal e definitiva. Todo co-nhecimento se enraiza nurna vida, nurna sociedade, Dumalinguagem que tern urna historia; e, nesta hist6ria mesma, eleencontra 0elemento que the permite comunicar-se com ou-tras formas de vida, outros tipos de sociedade, outras signi-ficacoes: e por isto que 0historicismo implica sempre umafilosofia ou, aomenos, urna certa metodologia da compreen-sao viva (no elemento da Lebenswelt), da comunicacao in-ter-humana (sobre 0 fundo das organizacoes sociais) e dahermeneutica (como retomada, atraves do sentido manifestode urn discurso, de urn sentido ao mesmo tempo segundo eprimeiro, isto e, mais escondido porem mais fundamental).Com isto, as diferentes positividades formadas pela Historiae nela depositadas podem entrar em contato urnas com as OU-tras, envolverem-se a maneira de conhecimento, liberarem 0conteudo que nelas dormita; nao sao entao os proprios limi-tes que aparecem no seu rigor imperioso, mas totalidades

    parciais, totalidades que se acham limitadas de fato, totalida-des cujas fronteiras se podem, ate certo ponto, alterar, masque jamais se estenderao no espaco de urna analise definiti-va e tambem jamais se elevarao ate a totalidade absoluta. Epor isto que a analise da finitude nao cessa de reivindicar,contra 0historicismo, a parte de que este descuidara: ela ternpor projeto fazer surgir, no fundamento de todas as positivi-dades e antes delas, a finitude que as toma possiveis; la on-de 0historicismo buscava a possibilidade e a justificacao derelacoes concretas entre totalidades limitadas, cujo modo deser era dado, de antemao, pela vida, ou pelas formas sociais,ou pelas significacoes da linguagem, a analitica da finitudequer interrogar esta relacao do ser hurnano com 0 ser que,designando a finitude, toma possiveis as positividades emseu modo de ser concreto.

    V. Psicanalise, etnologiaA psicanalise e a etnologia ocupam, no nosso saber, urn

    lugar privilegiado. Nao certamente porque teriam, melhorque qualquer outra ciencia hurnana, embasado sua positivi-dade e realizado enfim 0velho projeto de serem verdadeira-mente cientificas; antes porque, nos confins de todos os co-nhecimentos sobre 0homem, elas formam seguramente urntesouro inesgotavel de experiencias e de conceitos, mas, so-bretudo, urn perpetuo principio de inquietude, de questiona-mento, de critica e de contestacao daquilo que, por outro la-do, pode parecer adquirido. Ora, ha para isto urna razao quetern a ver com 0objeto que respectivamente cada urna se atri-bui, mas tern mais ainda a ver com a posicao que ocupam ecom a funcao que exercem no espaco geral da episteme.

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    518 . AS PALAVRAS E AS COISASA psicanalise, com efeito, mantem-se 0mais proximo

    possivel desta funcao critica acerca da qual se viu que erainterior a todas as ciencias humanas. Dando-se por tarefa fa-zer falar atraves da consciencia 0discurso do inconsciente, apsicanalise avanca na direcao desta regiao fundamental on-de se travam as relacoes entre a representacao e a finitude.Enquanto todas as ciencias humanas so se dirigem ao in-consciente virando-lhe as costas, esperando que ele se des-vele a medida que se faz, como que por recuos, a analiseda consciencia, ja a psicanalise aponta diretamente para ele,de prop6sito deliberado - nao em direcao ao que deve expli-citar-se pouco a pouco na iluminacao progressiva do impli-cito, mas em direcao ao que esta ai e se furta, que existe coma solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre simesmo, ou de uma lacuna branca num texto visivel e que as-sim se defende. Nao ha que supor que 0 empenho freudianoseja 0componente de uma interpretacao do sentido e de umadinamica da resistencia ou da barreira; seguindo 0mesmocaminho que as ciencias humanas, mas com 0olhar voltadoem sentido contrario, a psicanalise se encaminha em direcaoao momenta - inacessivel, por definicao, a todo conheci-mento te6rico do homem, a toda apreensao continua em ter-mos de significacao, de conflito ou de funcao - em que osconteudos da consciencia se articulam com, ou antes, ficamabertos para a finitude do homem. Isto quer dizer que, aocontrario das ciencias humanas que, retrocedendo embora emdirecao ao inconsciente, permanecem sempre no espaco dorepresentavel, a psicanalise avanca para transpor a represen-tacao, extravasa-la do lado da finitude e fazer assirn surgir,la onde se esperavam as funcoes portadoras de suas normas,os conflitos carregados de regras e as significacoes forman-do sistema, 0 fato nu de que pode haver sistema (portanto,

    AS CIENCIAS HUMANAS 519significacao), regra (portanto, oposicao), norma (portanto,funcao). E, nessa regiao onde a representacao fica em sus-penso, a margem dela mesma, aberta, de certo modo aofechamento da finitude, desenham-se as tres figuras pelasquais a vida, com suas funcoes e suas normas, vern fundar-se na repeticao muda da Morte, os conflitos e as regras, naabertura desnudada do Desejo, as significacoes e os siste-mas, numa linguagem que e ao mesmo tempo Lei. Sabe-secomo psicologos e filosofos denominaram tudo isso: mito-logia freudiana. Era realmente necessario que este empenhode Freud assim Ihes parecesse; para um saber que se aloja norepresentavel, aquilo que margeia e define, em direcao aoexterior, a possibilidade mesma da representacao nao podeser senao mitologia. Mas, quando se segue, no seu curso, 0movimento da psicanalise, ou quando se percorre 0 espacoepistemologico em seu conjunto, ve-se bern que estas figu-ras - imaginarias, sem duvida, para um olhar miope - sao aspr6prias formas da finitude, tal como e analisada no pensa-mento moderno: nao e a morte aquilo a partir de que 0saberem geral e possivel- de sorte tal que ela seria, do lado da psica-nalise, a figura desta reduplicadio empirico-transcendental quecaracteriza na finitude 0modo de ser do homem? Nao e 0dese-jo 0 que permanece sempre impensado no coracao do pensa-mento? E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistemada fala) que a psicanalise se esforca por fazer falar, niio e aquiloem que toda significacao assume uma origem mais longinquaque ela mesma, mas tambem aquilo cujo retorno e prometidono ato mesmo da analise? E bern verdade que nem esta Morte,nem este Desejo, nem esta Lei podem jamais encontrar-se nointerior do saber que percorre em sua positividade 0 dominioempirico do homem; mas a razao disto e que designam as con-dicoes de possibilidade de todo saber sobre 0homem .. .

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    520 AS PALA VRASE AS COlSAS AS CIENCIAS HUMANAS 521E precisamente quando esta linguagem se mostra em

    estado nu, mas se furta ao mesmo tempo para fora de todasignificacao como se fosse urn grande sistema despotico evazio, quando 0Desejo reina em estado selvagem, como seo rigor de sua regra tivesse nivelado toda oposicao, quando aMorte domina toda funcao psi c o logic a e se mantem acimadela como sua norma unica e devastadora- entao reconhe-cemos a loucura em sua forma presente, a loucura tal comose d a a experiencia modema, como sua verdade e sua alteri-dade. Nessa figura empirica, e contudo estranha a (e em)tudo 0 que podemos experimentar, nossa consciencia naoencontra mais, como no seculo XVI, 0vestigio de urn outro,mundo; ela nao constata mais 0vaguear da razao extraviada;ela ve surgir 0 que nos e perigosamente 0mais proximo -como se subitamente se perfilasse, em relevo, 0 reconcavomesmo de nossa existencia; a finitude, a partir da qual nossomos, pensamos e sabemos, esta subitamente diante denos, existencia a urn tempo real e impossivel, pensamentoque nao podemos pensar, objeto para nosso saber mas que aele se furta sempre. E por isso que a psicanalise encontranesta loucura por excelencia - a que os psiquiatras chamamesquizofrenia - 0 seu intimo, 0 seu mais invencivel tormen-to: pois nesta loucura se dao, sob urna forma absolutamentemanifesta e absolutamente retraida, as formas da finitudeem direcao a qual, de ordinario, ela avanca indefinidamente(e no interminavel), a partir do que the e voluntaria-involun-tariamente oferecido na linguagem do paciente. De sorteque a psicanalise "reconhece-se ai", quando e colocadadiante destas mesmas psicoses as quais, no entanto (ou an-tes, por essa mesma razao) ela quase nao tern acesso: comose a psicose expusesse nurna iluminacao cruel e oferecessede urn modo demasiado longinquo, mas justamente demasia-

    do proximo, aquilo em cuja direcao a analise deve lentamen-te caminhar.

    Mas esta relacao da psicanalise com oque toma possi-vel todo saber em geral na ordem das ciencias hurnanas ternainda urna outra conseqiiencia. E que ela nao pode desenvol-ver-se come puro conhecimento especulativo ou teoria geraldo homem. Nao pode atravessar 0campo inteiro da represen-tacao, tentar contomar suas fronteiras, apontar para 0maisfundamental, na forma de urna ciencia empiric a construida apartir de observacoes cuidadosas; essa travessia so pode serfeita no interior de uma pratica em que nao e apenas 0conheci-mento que se tern do homem que esta empenhado, mas 0proprio homem - 0homem com essa Morte que age no seusofrimento, esse Desejo que perdeu seu objeto e essa lingua-gem pela qual, atraves da qual se articula silenciosamentesua Lei. Todo saber analitico e , pois, invencivelmente ligadoa uma pratica, a este estrangulamento da relacao entre doisindividuos, em que urn escuta a linguagem do outro, libertan-do assim seu desejo do objeto que ele perdeu (fazendo-o en-tender que 0perdeu) e libertando-o da vizinhanca sempre re-petida da morte (fazendo-o entender que urn dia morrera), Epor isso que nada e mais estranho a psicanalise que algumacoisa como urna teoria geral do homem ou urna antropologia.

    Assim como a psicanalise se coloca na dimensao do in-consciente (dessa animacao critica que inquieta interiormen-te todo 0 dominio das ciencias hurnanas), a etnologia se co-loca na da historicidade (desta perpetua oscilacao que fazcom que as ciencias humanas sejam sempre contestadas, doexterior, por sua propria historia). E sem duvida dificil sus-tentar que a etnologia tern urna relacao fundamental com ahistoricidade, ja que ela e tradicionalmente 0 conhecimentodos povos sem historia; em todo 0caso, ela estuda nas cultu-

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    522 AS PALA VRASE AS COISASras (ao mesmo tempo por escolha sistematica e por falta dedocumentos) antes as invariantes de estrutura que a sucessaodos acontecimentos. Suspende 0 longo discurso "cronologi-co" pelo qual tentamos refletir nossa propria cultura no inte-rior dela mesma, para fazer surgir correlacoes sincronicasem outras formas culturais. E, contudo, a propria etnologiaso e possivel a partir de uma certa situacao, de um aconteci-mento absolutamente singular, em que se acham empenhadasa um tempo a nossa historicidade e a de todos os homensque podem constituir 0objeto de uma etnologia (ficando en-tendido que podemos perfeitamente fazer a etnologia de nos-sa propria sociedade): a etnologia se enraiza, com efeito, nu-rna possibilidade que pertence propriamente a historia denossa cultura, mais ainda, a sua relacao fundamental comtoda historia, e que the permite ligar-se as outras culturas amaneira da pura teoria. Ha uma certa posicao da ratio oci-dental que se constituiu na sua historia e que funda a relacaoque ela pode ter com todas as outras sociedades, mesmo comaquela sociedade em que ela historicamente apareceu. Istonao quer dizer, evidentemente, que a situacao colonizadoraseja indispensavel a etnologia: nem a hipnose, nem a aliena-~ao do doente na personagem fantasmatica do medico saoconstitutivos da psicanalise; mas, assim como esta so pode .desenvolver-se na violencia calma de uma relacao singular eda transferencia que ela requer, do mesmo modo a etnologiaso assume suas dimens6es proprias na soberania historica -sempre retida, mas sempre atual- do pensamento europeu eda relacao que 0pode confrontar com todas as outras cultu-ras e com ele proprio.

    Mas essa'rela~ao (na medida em que a etnologia naobusca apaga-la, mas, ao contrario, escava-a, instalando-sedefinitivamente nelajnao a encerra nos jogos circulares do

    AS CIENCIAS HUMANAS 523historicismo; coloca-a, antes, em posicao de contornar seuperigo, invertendo 0movimento que os faz nascer: com efei-to, em vez de reportar os conteudos empiricos, tais como apsicologia, a sociologia ou a analise das literaturas e dos mi-tos podem faze-los aparecer, a positividade historica do su-jeito que os percebe, a etnologia coloca as formas singularesde cada cultura, as diferencas que a opoem as outras, os li-mites pelos quais se define e se fecha sobre sua propria coe-rencia na dimensao em que se estabelecem suas relacoes comcada uma das tres grandes positividades (a vida, a necessi-dade e 0 trabalho, a linguagem); assim, a etnologia mostracomo se faz numa cultura a normalizacao das grandes fun-~6es biologicas, as regras que tornam possiveis ou obrigato-rias todas as formas de troca, de producao e de consumo, ossistemas que se organizam em torno ou sobre 0modelo dasestruturas lingiiisticas. A etnologia avanca, pois, em direcaoa regiao onde as ciencias humanas se articulam com aquelabiologia, com aquela economia, com aquela filologia e aque-la lingiiistica acerca das quais se viu de que altura as domi-navam: e por isto que 0 problema geral de toda etnologia eexatamente aquele das relacoes (de continuidade ou de des-continuidade) entre a natureza e a cultura. Mas, neste tipo deinterrogacao, 0 problema da historia se acha invertido: poistrata-se entao de determinar, segundo os sistemas simbolicosutilizados, segundo as regras prescritas, segundo as normasfuncionais escolhidas e estabelecidas, de que especie de devirhistorico cada cultura e suscetivel; ela busca retomar, desde araiz, 0modo de historicidade que ai pode aparecer, as razoespelas quais a historia ai sera necessariamente cumulativa oucircular, progress iva ou submetida a oscilacoes reguladoras,capaz de ajustamentos espontaneos ou submetida a crises. Eassim se acha esc1arecido 0 fundamento deste flui~ historico,

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    524 AS PALA VRASE AS COISAS AS CIENCIAS HUMANAS 525em cujo interior as diferentes ciencias humanas assumem suavalidade e podem ser aplicadas a uma dada cultura e numadada regiao sincronica,

    A etnologia, como a psicanalise, interroga nao 0propriohomem tal como pode aparecer nas ciencias humanas, mas aregiao que toma possivel, em geral, um saber sobre 0homem;como a psicanalise, ela atravessa todo 0 campo desse sabernum movimento que tende a atingir seus limites. Mas a psi-canalise se serve da relacao singular da transferencia paradescobrir, nos confins exteriores da representacao, 0Dese-jo, a Lei, a Morte que desenham, no extremo da linguagem eda pratica analiticas, as figuras concretas da finitude; ja aetnologia aloja-se no interior da relacao singular que a ratioocidental estabelece com todas as outras culturas; e, a partirdai, ela traca 0 contomo das representacoes que os homens,numa civilizacao, se podem dar de si mesmos, de sua vida,de suas necessidades, das significacoes depositadas em sualinguagem; e ela ve surgir, por tras destas representacoes, asnormas a partir das quais os homens cumprem as funcoes davida, mas repelindo sua pressao imediata, as regras atravesdas quais experimentam e mantem suas necessidades, os sis-temas sobre cujo fundo toda significacao lhes e dada. 0 pri-vilegio da etnologia e da psicanalise, a razao de seu profun-do parentesco e de sua simetria - nao devem, pois, ser bus-cados numa certa preocupacao que uma e outra teriam empenetrar 0profundo enigma, a parte mais secreta da nature-za humana; de fato, 0 que se espelha no espaco de seu dis-curso e muito mais 0 a priori historico de todas as cienciashumanas - as grandes cesuras, os sulcos, as partilhas que, naepisteme ocidental, desenharam 0 perfil do homem e 0 dis-puseram para urn saber possivel. Era, portanto, muito neces-sario que ambas fossem ciencias do inconsciente: nao porque

    atingem no homem 0que esta por sob a sua consciencia, masporque se dirigem ao que, fora do homem, permite que sesaiba, com urn saber positivo, 0 que se da ou escapa a suaconsciencia.

    Pode-se compreender, a partir dai, urn certo mimero defatos decisivos. E, no primeiro plano, 0 seguinte: que a psi-canalise e a etnologia nao sao tanto ciencias humanas aolado das outras, mas percorrem 0 dominio inteiro destas, 0animam em toda a sua superficie, expandem por toda a parteseus conceitos, podem propor em todos os lugares seus me-todos de decifracao e suas interpretacoes. Nenhuma cienciahumana pode assegurar-se de nada lhes dever, nem de sertotalmente independente do que elas puderam descobrir, nemestar certa de nao depender delas de uma forma ou de outra.Porem seu desenvolvimento tern a particularidade de que pormais que pretendam ter urn "alcance" quase universal, nempor isso se aproximam de urn conceito geral do homem: emnenhum momento elas tendem a delimitar 0 que nele pode-ria haver de especifico, de irredutivel, de uniformemente va-lido em toda a parte onde ele e dado a experiencia. A ideiade uma "antropologia psicanalitica", a ideia de uma "nature-za humana" restituida pela etnologia nao passam de preten-sees piegas. Nao apenas elas podem dispensar 0 conceito dehomem, como ainda nao podem passar por ele, pois se diri-gem sempre ao que constitui seus limites exteriores. Pode-sedizer de ambas 0que Levi-Strauss dizia da etnologia: elas dis-solvem 0homem. Nao que se trate de reencontra-lo melhor,mais puro e como que liberado; mas, sim, porque elas re-montam em direcao ao que fomenta sua positividade. Em re-lacao as "ciencias humanas". a psicanalise e a etnologia saoantes "contraciencias"; 0que nao quer dizer que sejam me-nos "racionais", ou "objetivas" que as outras, mas que elas

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