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1 Mágoas Para Beber Camila de Almeida

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Mágoas

Para

Beber

Camila de Almeida

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“Desde os tempos mais antigos, alguns homens

escravizaram outros homens, que não eram vistos

como seus semelhantes, mas sim como inimigos e

inferiores. A maior fonte de escravos sempre foram as

guerras, com os prisioneiros sendo postos a trabalhar

ou sendo vendidos pelos vencedores. Mas um homem

podia perder seus direitos de membro da sociedade

por outros motivos, como a condenação por

transgressão e crimes cometidos, impossibilidade de

pagar dívidas, ou mesmo de sobreviver

independentemente por falta de recursos. [...] A

escravidão existiu em muitas sociedades africanas bem

antes de os europeus começarem a traficar escravos

pelo oceano Atlântico”. (SOUZA, 2006, p. 47 apud

MOCELLIN; CARMARGO, 2010, p. 174).

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Da era cristã

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O Sol fulgurava nos territórios do império Mali,

espargiam-se pelo ar do deserto, minúsculas partículas do

grande astro há tanto adorado pelos homens e pelos deuses.

Fazia ele também refletir todo o esplendor daquele límpido céu

de um vívido azul, aquarelando raios alaranjados pela tarde no

espelho do velho Níger. O encontro magnânimo entre o

próspero rio e o disco solar, lançava sobre aquelas plagas,

bênçãos para o Mansa e seu povo.

Afar Akzaila Zambi desfrutava à margem do rio, com os

olhos fechados, a pouca brisa que lhe lambia a pele negra. A

formosa sudanesa, vinda de uma família de casta alta,

precisamente de um dos generais que governava uma das

províncias do império, a cidade de Tombuctu, brilhava tanto

quanto aquela poderosa bola de fogo, vindo de seus poros a

emergir uma substância qual dava a impressão de que pequenas

gotículas douradas, lhe enfeitavam a perfeita túnica que cobria

seus músculos. Aos dezesseis anos de idade, ainda não fora

apresentada a sociedade Mali por seu abastado pai, como uma

candidata ao noivado.

Sosso era um homem impiedoso quando provocado,

articulado com seu povo, bondoso de coração, mas de alma

vaidosa e idade relativamente nova, o governo de Tombuctu lhe

fora dado pelo imperador Musa, qual havia sido recentemente

sucedido por seu filho Musa II. Até então, sua grande ambição o

levara a ajudar a enriquecer a cidade e a si próprio com as

frequentes transações de ouro, sal, tecidos e peles. Tinha duas

alegrias em sua vida, a fortuna que conseguira juntar, e a quarta

filha. Afar provinha de sua terceira esposa, Farrima Sayejak, a

mulher qual verdadeiramente era apaixonado, e por este motivo

todas as atenções e mimos eram priorizados a Afar e Farrima.

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Este fato, muito desagradava suas outras filhas e esposas,

principalmente Tuma, a primeira consorte, mãe de sua

primogênita Somayaji, que fora chamada assim, para lembrar as

irmãs, quem era a legítima primeira herdeira de seu pai.

Mas longe desse universo de disputas, despeitos e

ambições, pairavam os pensamentos da jovem Afar. Adoradora

da natureza, a menina gostava de se cercar da magia das

paisagens agrestes, do doce olhar dos animais silvestres, do

aroma da vegetação nativa e do seu amigo de infância, Guma.

Tão jovem quanto ela, o rapaz, de casta muito inferior, crescera

ao lado da princesa de Sosso, por seus pais serem fiéis servos,

não escravos, mas trabalhadores do palácio central do

governante. Sua mãe Hanaman, era artesã, trabalhava para as

esposas do general, e muito apresso possuía por Farrima, pois

que a senhora sempre lhe tratava com simpatia e muitas vezes a

presenteava com panos e peles de seu próprio uso que não lhe

serviam mais. Já Goé, seu querido pai, dominava o cultivo do

plantio, e sendo camponês, cuidava das hortas de Sosso com

toda felicidade e simplicidade que possuía, simplicidade essa,

que ensinou a seu único filho. Ao general, muito agradava em

seus passeios matinais, as palestras que se habituara a ter com o

servo amigo, que muitas vezes lhe trazia reflexões esclarecidas e

interessantes à cerca da vida, e também das responsabilidades de

se exercer um cargo onde a vida de muitas pessoas dependia de

tal gestão. Assim sendo, Goé também fora privilegiado quando

Sosso lhe perguntou certa vez como poderia retribuir sua

amizade e serviços tão bem prestados, respondendo que para ele

nada queria, mas muito ficaria feliz se seu menino tivesse a

oportunidade de ser instruído, para que no futuro pudesse ser

mais que um simples camponês. Deste modo, o menino crescera

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um tanto fora de sua precária realidade, uma vez que Farrima

também fizera o pedido ao marido, que Guma, por ter a mesma

idade de Afar, recebesse as lições junto a ela, nos dias em que

sua mãe estivesse a lhe prestar os serviços. Sem nenhuma

resistência, assim se cumpriu a vontade da terceira esposa, e

logo, o menino tornou-se íntimo do palácio, pois que andava e

corria junto a Afar, nas brincadeiras infantis dos intervalos das

disciplinas e nas horas dos fartos lanches, entre as galerias

suntuosas, as salas perfeitamente ornamentadas com tapetes e

pinturas vindas de regiões longínquas, os longos corredores do

primeiro e segundo piso arquitetados em marfim, ébano e pedras

brutas, os jardins internos e externos, tão graciosamente

cuidados, e tudo mais que fazia aquela opípara construção

explodir em beleza e conforto. Guma também conquistou a

atenção e simpatia de Sosso, pelo jeito respeitoso e educado que

sua mãe lhe ensinara a ser, e pelo sentimental fato de o general,

apesar de possuir quatro esposas perfeitamente saudáveis, nunca

ter tido até o momento um filho que lhe pudesse herdar as

patentes. Guma, assim passara a receber vestes superiores a sua

própria casta, e seus pais ganharam uma casa de dois pisos perto

ao palácio, para que assim a família fosse mais facilmente

comunicada quando houvesse necessidade.

Os anos se passaram com a família de Guma sendo

favorecida pela simpatia de Sosso e Farrima. O menino raquítico

e tímido se tornou um belo rapaz, de estatura esguia, corpulento

e ágil, suas atitudes eram refinadas devido à educação

proporcionada igualmente a de Afar, possuía um vocabulário

vasto e um conhecimento sobremodo ao que sua real condição

lhe favorecia, mesmo porque era de uma curiosidade sem

tamanho e gostava de aprender sobre todas as coisas. De caráter

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íntegro, deixava visível o amor que possuía por seus pais, e o

grande respeito, gratidão e reconhecimento que adquirira por seu

protetor, o general, e sua esposa Farrima. Extravasava alegria e

bom humor, o que por muitas e muitas vezes fazia com que seu

luminoso sorriso atraísse a atenção de muitas moças de

tombuctu. Jovial e atlético, aos fins de tarde, ainda gostava de

disputar corrida com Afar até a margem do Níger e ver o sol

escaldante se despedir, dando a gentil oportunidade da

exuberante e redonda lua mostrar-se aos amantes daquele tempo.

Guma, que estava um pouco atrás da margem do rio,

ajeitava alguma coisa em sua sandália, ao se levantar percebeu

que Afar meditava com os braços abertos a saldar o sol que

partia, exatamente como sempre gostara de fazer. Dizia ela que

assim podia sentir a poderosa energia do astro rei lhe banhando

e renovando as forças. De forma gentil, ele aproximou-se e a

abraçou por trás, envolvendo carinhosamente seus braços na

curvatura da cintura da menina, e docemente beijou seu ombro.

Afar abriu um sorriso saindo completamente de sua

concentração, e deslizou as mãos com carinho pelos braços

fortes de Guma, até seus dedos se encontrarem e se cruzarem.

Afar

- Eu estava pensando, e se nós pedíssemos uma audiência com o

meu pai, e explicássemos tudo a ele?

Guma

- Explicássemos? Como assim?

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Afar

- E se eu lhe dissesse que estamos apaixonados um pelo outro?

Que sempre fomos apaixonados, e que você me respeita mais

que qualquer outra pessoa? Que acima de tudo estar com você é

o que me faz mais feliz? Se eu dissesse que eu o amo além de

qualquer coisa, e que você deseja fazer de mim sua primeira e

única esposa?

Guma disse ainda sorrindo acariciando as mãos de Afar;

- E esse seria seu discurso?

Afar

- Certamente que sim.

Guma

- Bem, se você assim o fizesse, creio que ele mandaria cortar

minha cabeça com mais gentileza.

Afar virou-se de frente para o rapaz;

- Que horror, Guma! Por que acha que meu pai faria com você?

Guma acariciou o rosto da menina;

- Afar! Parece que você não conhece seu próprio pai! O general

é fiel às tradições até na maneira de se vestir. Ele faz

rigidamente o Salah todos os dias. Sosso, nunca admitiria um

casamento em sua casa de castas diferentes.

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Afar se mostrou chateada afastando-se;

- Quando fala assim, sinto que não está disposto a lutar pelo que

diz sentir por mim. Sinto que fico parecendo uma boba

apaixonada por você, igual a todas as outras que não recebem a

sua atenção.

Guma aproximou-se novamente e segurou em suas mãos;

- Isso nunca seria verdade! Passo noites inteiras tentando

descobrir como resolver toda essa situação. Fico pensando em

como achar uma forma de pertencermos legitimamente um ao

outro. Sabe que sou tão apaixonado por você quanto você é por

mim, mas precisamos ser realistas, para que assim possamos dar

os passos certos em direção a nossa felicidade.

Afar mostrou-se desanimada;

- É verdade. Sei que tem razão. Mas me enerva só de pensar que

nosso tempo está passando e nada estamos fazendo, em breve

meu pai vai arranjar alguém da mesma casta para se casar

comigo, e tudo estará perdido. Penso que como ainda não há

propostas oficializadas, talvez ele tenha consideração pela sua.

Ele já te tem como a um filho, não é verdade? Por que se oporia

então, se seria para nossa felicidade?

Guma caminhando;

- Você não está errada. Sei que Sosso zela por sua felicidade

acima de muitas coisas, sei também que me ama como a um

filho, mas também é de conhecimento de todos sua vaidade e

teimosia. Se formos fazer isso, teremos que usar de toda nossa

delicadeza e artimanha para convencê-lo de que nos amamos. E

mesmo assim, meu amor, não é uma simples questão de

permissão da parte do seu pai, nós sabemos que é extremamente

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proibido o casamento entre castas diferentes. Este é um assunto

que vai além da nossa vontade, e isso parte meu coração todas as

vezes que penso, penso, penso, e continuo na agonia de não

arrumar uma solução.

Afar afastou-se com o olhar no horizonte;

- Então o que sugere que façamos? Não podemos fugir, não

podemos lutar, nem mesmo confrontar. Talvez você queira que

permaneçamos como estamos até o dia em que outro nos

afastará definitivamente.

Guma foi até ela e a abraçou;

- É claro que não! Alá sabe o quanto temo por este dia! (Ele a

olhou nos olhos). Se há tanto tempo procuramos uma saída e

não achamos, talvez seja porque ela não existe. Então acredito

que realmente seja a hora de revelarmos a nossa vontade

independente dos efeitos que isso causará. (Guma sorrindo, foi

até a beira do rio e com uma das mãos jogou água na namorada).

Sendo dessa forma, creio que devo me despedir do rio e dessa

vida! Pois é provável que seu pai arrume um jeito de acabar

comigo!

Afar sorriu de volta;

- Não seja tão dramático.

E saudando o misterioso casal, a lua definitivamente

banhou o níger e toda aquela quente planície com seu

sombreado prateado, trazendo frescor àqueles inflamados

corações apaixonados.

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No mediano palácio de Sosso, suas esposas

encontravam-se, como de praxe, na primeira sala de recepção,

cada uma em seu devido lugar a fazer sua específica tarefa de

lazer daquele horário. Somayaji acompanhava a mãe, ajudando-

a com o produto que passava na pele. As outras irmãs, Dana,

Taija e Suri, conversavam distraidamente sobre assuntos

irrelevantes quais faziam volta e meia se permitirem a uma

gargalhada ou outra. Budja e Farrad, a segunda e quarta esposa,

participavam da conversa. Farrima, como quase todas as noites,

fora requisitada pelo marido a lhe banhar os pés cansados em

seu aposento particular. Seguindo precisamente o ritual de

submissão, a terceira esposa o cumpria com total amorosidade e

carinho, se permitindo, uma ou duas vezes cruzar o enigmático

olhar que traduziam muitas palavras para Sosso. O orgulhoso

esposo apreciava a linda mulher com olhos de satisfação, como

se aquele simples ato estivesse a lhe comprazer a mais sutil das

fibras do seu corpo masculino. Fora quando ouviu um barulho

muito grande, como se algo houvesse se quebrado, e

imediatamente, ajeitando sua túnica, pôs-se para fora, onde seria

a varanda do segundo piso, para assim poder observar o que se

passava no jardim interno de sua morada. Igualmente a ele, os

demais assim o fizeram, na curiosidade de saber o que se tratava

tal barulho tão ensurdecedor.

Sosso, do parapeito esbravejou ao avistar Guma e Afar ao lado

de uma das gigantes jarras do jardim estraçalhada no chão:

- Afar! Guma! O que está acontecendo aqui?!

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Somayaji, que como todos também havia saído e encontrava-se

no primeiro piso, fez questão de esclarecer tão rápido quanto seu

olhar de reprovação;

- Afar e Guma derrubaram um jarro enquanto eles chegavam de

seu passeio noturno, papai.

Sosso

- Eu já disse a vocês dois que não quero ninguém fora do palácio

há essas horas?

Afar

- Mas justamente por isso nós estávamos voltando, papai!

Guma

- Devo pedir desculpas, senhor, fui eu quem fez com que Afar se

atrasasse.

Afar

- Isso não é verdade! Estávamos no rio e o sol se pôs muito

rápido, quando demos conta, já estava escuro.

Sosso

- Limpem essa bagunça e preparem-se para o jantar.

Guma

- Senhor! (Guma olhou para Afar rapidamente e a menina

percebeu que aquele seria o momento). Se não fosse incomodar,

eu gostaria de pedir uma audiência em particular antes do jantar,

senhor.

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Sosso

- Mas que assunto teria tal urgência?

Afar

- Creio que seria de sua importância, meu pai.

Sosso

- E por acaso esse assunto a envolve, minha filha?

Afar sorriu para Guma e depois para seu pai;

- Certamente que sim.

Sosso

- Então, com certeza este assunto não é tão urgente assim,

podendo vir a ficar para depois da ceia. Jante conosco Guma, e

após, eu o receberei em meu gabinete.

Guma sorriu com a boa recepção prevendo o futuro positivo da

reunião;

- Obrigado, senhor.

Em poucos minutos a grande e farta mesa fora posta

pelas escravas da casa, mulheres que haviam nascido naquela

condição, e outras, que por quaisquer motivos, perderam o

direito de sua liberdade. O general, ainda como homem bom que

se esforçava para ser, possuía muitos escravos e os tratava como

tal, contudo, sem a agressiva desumanização que muitos na

época praticavam.

Guma localizou-se ao lado de Afar. Depois de tantos

anos a frequentar a casa onde seus pais trabalhavam, e se achar

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íntimo da família, era estranho perceber que nunca havia

sentado à mesa para cear com eles. Ficou a observar como todos

eram servidos e se serviam, de certo modo parecia tímido.

Farrima

- Não se intimide Guma, uma família grande como a nossa, na

hora do banquete parece mais um bando de leões esfomeados,

não é mesmo?

Guma

- De maneira nenhuma, senhora. É que estava pensando que há

tanto tempo frequento esta casa, por toda consideração que

vocês têm por mim e meus pais, e nunca havia sentado a esta

mesa com todos desse jeito.

Tuma

- Isso não se daria por que você é um servo?

Afar prontificou-se rispidamente;

- Guma não é um servo!

Sosso a repreendeu;

- Afar! Comporte-se a mesa.

Afar

- Sim, meu pai. Só estou esclarecendo que Guma não é nosso

servo.

Sosso

- Não, ele não é. Hoje, Guma é meu convidado.

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Taija, a segunda filha de Tuma também se pronunciou:

- Ora, Guma, mas seus pais não são nossos servos?

Guma a olhou de cabeça erguida;

- São sim.

Suri, filha de Farrad, o defendeu;

- E por acaso isso seria algum problema, Taija, no caso do papai

convidá-lo para se reunir a nós? Não vejo problema algum

nisso!

Somayaji

- Penso que se seus pais são nossos servos, você também seria,

particular e injustamente nos serviços prestados a Afar.

Afar prontificou-se novamente, agora em tom ríspido;

- Guma não presta serviços a mim! Somos simplesmente

amigos!

Somayaji debochou com um sorriso;

- Jura? Não é o que parece.

Tuma

- A questão é que servos não deveriam jantar com seus senhores.

Taija

- Não deveriam fazer nenhuma atividade de lazer com seus

senhores, nem servos, nem escravos. Imagina como seria, caso

isso se tornasse uma rotina?

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Afar

- Creio que teríamos uma sociedade mais igualitária e menos

preconceituosa. Onde pessoas seriam vistas como pessoas, e não

simplesmente como servas, escravas ou seja lá como goste de

classificá-las.

Tuma sorriu;

- Ora, querida, nós somos o que somos. Mesmo que você não

queira, mesmo que a nomenclatura mude, um escravo sempre

será um escravo, um servo sempre será um servo, como um

senhor sempre será o senhor que manda neles. E essas classes

jamais deverão se relacionar diferentemente de como a

hierarquia manda. Isso se chama organização social.

Farrima explicou com a voz doce e calma;

- Mas pelo o que nós sabemos Guma não é nenhum dos dois.

Nem escravo, nem servo. Seus pais são trabalhadores, e nos

servem porque seus talentos nos ajudam e nos beneficiam, mas

Guma é um rapaz livre, e assim há de continuar por ser a

vontade do nosso marido.

Somayaji

- Ainda assim, sua casta é muito inferior a nossa.

Sosso esbravejou com um golpe de punhos fechados na mesa;

- Já chega! Chega dessa discussão absurda! Hoje Guma é meu

convidado, e mesmo que fosse escravo ou servo, eu sou o senhor

desta casa e faço o que achar melhor.

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Somayaji

- Só acho que o equilíbrio social está sendo cada vez mais posto

em risco desta forma. Imagina se servos e escravos começam a

acreditar que tem direitos iguais aos nossos?

Guma se levantou;

- Se tanto incomoda minha presença, com todo respeito ao

convite do senhor governador, eu posso me retirar.

Sosso

- Sente-se rapaz! (Guma obedeceu). Somayaji! (A filha olhou

para ele apreensiva com o tom que seu pai usou). Levante-se e

vá para o seu quarto, você não irá jantar conosco hoje.

Somayaji

- Mas papai!

Sosso subiu o tom de voz;

- Você constrangeu meu convidado e me desrespeitou. Levante-

se, e vá para o seu quarto, por favor. (A menina o obedeceu

contrariada). E se mais alguém tiver alguma opinião a expressar

contrárias as minhas decisões nessa casa, pode acompanhar

Somayaji.

Tuma levantou-se;

- Com licença.

Sosso olhou para a outra filha;

- Taija?

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Taija abaixou o olhar em respeito;

- Não papai, eu desejo ficar.

Sosso

- Então vamos comer em paz.

O jantar seguiu tranquila e descontraidamente, uma das

escravas que possuía o talento de cantar, distraiu a família

durante o descanso após a ceia. Afar mostrava-se um tanto

ansiosa para aquele momento acabar. Suas irmãs recolheram-se

cedo assim como suas mães. Farrima despediu-se do marido e

seguiu para seus aposentos particulares que ficavam na ala do

outro lado da casa. Sosso finalmente levantou-se e convidou

Guma para acompanhá-lo até seu gabinete.

O cômodo em si, era repleto de livros vindos de países

distantes, trazidos pelos acadêmicos da época, sendo estes

convidados de Sosso para formarem um corpo acadêmico em

Tombuctu, uma vez que o administrador prezava pela erudição.

A mesa larga e comprida talhada com detalhes de marfim,

guardava os inúmeros documentos e cartas que eram analisados

de maneira minuciosa diariamente. Sosso acomodou-se em sua

cadeira de chefe.

Sosso

- Sente-se meu rapaz. (Guma, um tanto temeroso, o obedeceu).

O que afinal tanto deseja falar comigo, e que deixa Afar tão

apreensiva quanto parece?

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Guma respirou fundo;

- Então senhor... É justamente sobre Afar o assunto o qual venho

abordar.

Sosso sorriu;

- Não me diga!

Guma

- Sei que pode parecer uma audácia da minha parte. Contudo,

apesar de conhecer e respeitar muito bem as regras da nossa

nação, qual muito me orgulha, devo dizer que meus mais

sinceros sentimentos me obrigam a revelar que amo sua filha, e

que reciprocamente ela me ama, e sendo desta forma, seríamos

muito felizes se o senhor permitisse que nos casássemos.

Sosso o encarou com o semblante ainda suave;

- Está me pedindo a mão de Afar?

Guma

- Respeitosamente sim, senhor.

Sosso

- Para se casar e ser o marido dela?

Guma

- Seria a maior realização da minha vida, senhor. Eu amo Afar

mais que qualquer coisa, mais que a mim mesmo, e desejo

ardentemente fazer dela minha única esposa, e amá-la até

mesmo depois de minha morte, onde a eternidade permitir.

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Sosso levantou-se calmamente;

- Guma, como o rapaz inteligente que demonstra ser, e que eu

sei que você é, deve saber que há leis nesse estado e no nosso

país que proíbe o casamento entre pessoas de castas diferentes,

não sabe?

Guma

- Sim senhor. Eu sei.

Sosso

- Então como imagina que exista a possibilidade de você e Afar

possuírem alguma comunhão neste sentido? Eu não desejo

ofendê-lo mais que minhas rebeldes filhas já o fizeram no jantar,

muito pelo contrário. Respeito seu pai que é um homem muito

sábio e digno apesar de um simples servo, por isso eu permiti

que você crescesse nesta casa. Mas me impressiona que você

acredite ser possível tal devaneio.

Guma mostrou-se constrangido e embaraçado;

- Eu... Eu... Eu e Afar nos amamos, Senhor.

Sosso

- Eu sei! Percebi isso quando vocês tinham treze anos e ela

ficava me perguntando quando você ia voltar para brincar com

ela. Inicialmente achei que fossem apenas os sentimentos de

uma criança que era solitária e recriminada pelas irmãs. Mas

conforme vocês foram crescendo, e obviamente você se tornou

um rapaz muito bonito, os olhares de Afar eram nitidamente de

uma moça apaixonada, e os seus também. (Sosso aproximou-se

de Guma). O Fato é que minha filha realmente está se tornando

uma linda mulher, e não me faltam propostas verdadeiramente

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consideráveis. Propostas de homens muito ricos e da mesma

casta que nós. Porém, Afar é como uma pedra preciosa para

mim, e eu sei que Alá guarda um grande destino para ela. Desta

forma, não acho que seria uma sábia decisão consentir a esse

pedido tão descabido.

Guma

- Mas o senhor não se importa com a felicidade dela?

Sosso

- Sim! Claro que sim! Quando for a hora, e Afar demonstrar ter

sentimentos por alguém, eu irei respeitar a sua vontade.

Guma

- Então... O que impede de aceitar meu pedido é...

Sosso o interrompeu;

- O que estou dizendo, Guma, é que é impossível realizar seu

desejo. Não somente pela minha vontade, mas também pelas leis

desse país. (Sosso segurou em seu ombro). Mas não fique

desanimado, meu filho. Vocês ainda são tão jovens, e seu pai me

disse que muitas moças mostram-se favoráveis a uma comunhão

com tão belo e inteligente jovem como você.

Guma

- Não senhor! O senhor não entende! Eu amo Afar mais que

qualquer coisa neste mundo, faria tudo para poder amá-la como

ela merece, por inteiro. Não desejo me casar com nenhuma outra

mulher que não seja ela, e sei que ela também não aceitará se

casar com nenhum outro homem. Se o que nos separa e impede

nosso amor é uma simples lei, lutarei para que ela seja

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derrubada. Mas se ainda assim o senhor me desaprova por eu ser

filho de pessoas que não escolheram ser servas, eu insisto que

pense na minha proposta.

Sosso refletiu por um instante, se dirigiu até a porta e falou com

um dos criados:

- Chame Afar aqui.

Em instantes a menina entrou com o semblante

apreensivo, todavia a esperança brilhava em seus olhos.

Afar

- Mandou me chamar, papai?

Sosso

- Feche a porta, querida! (Afar o obedeceu). Guma veio até mim

esta noite, com um pedido.

Afar

- Sim, eu sei meu pai! Fui eu quem o convenceu a finalmente

revelar o amor que sentimos um pelo outro. (Afar aproximou-se

do rapaz). Não podemos mais fingir que não sentimos nada um

pelo outro. Eu amo Guma além de todas as coisas. Não me

importa se ele é filho de servos, ou mesmo que ele fosse um

servo, até um escravo! Eu o amo, papai! Eu o amo e quero mais

que qualquer coisa ser sua esposa.

Sosso lançou um olhar de piedade para a filha;

- Isso faria você feliz?

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Afar respondeu em tom empolgante com um sorriso

incomparável nos lábios;

- Sim! Sim! Eu serei a pessoa mais feliz desse mundo! Não

precisarei de mais nada se puder cumprir com esse papel.

Esforçar-me-ei para ser a melhor esposa se o senhor permitir

nosso casamento.

Sosso passou uma das mãos na fronte, tinha o semblante

pesaroso, como se sofresse com tudo que estava pensando, ele

caminhou de um lado para o outro na tentativa de esclarecer

seus pensamentos.

Sosso

- Isso não é mais uma brincadeira de crianças. Vocês se amam

de verdade, não é mesmo?

Afar

- Tanto quanto o senhor ama a minha mãe e ela o senhor. Não

podemos mais viver separados.

Sosso

- Então serei breve para não mais instigar essa esperança vã que

os alimenta. É impossível que esse casamento aconteça.

Afar sentiu seu coração congelar e o sorriso que conservava

desmoronou;

- Mas papai!

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Sosso

- Não dou o meu consentimento, assim como na figura de seu

governante, o estado também os impede de manterem qualquer

relacionamento amoroso...

Afar começou a falar desesperadamente junto com o pai;

- Mas papai! Não! Não pode fazer isso!

Sosso não parou de dar sua declaração em tom sobressalente;

- E irei desconsiderar que Guma veio até mim com um pedido

tão impertinente...

Afar começou a chorar;

- Não! O senhor não está falando a verdade! Não é verdade! Não

pode fazer isso comigo!

Sosso

- Percebendo a proporção da gravidade deste problema, devo

declarar que a partir de agora está permanentemente proibido

que vocês dois mantenham qualquer tipo de contato. E ordeno

não somente como pai, mas também como seu governador.

Afar gritava;

- Não! Eu não irei obedecê-lo! Como pode?! Como pode fazer

isso comigo?! Eu te odeio! (Ela se virou para o namorado).

Guma! Fale alguma coisa! Não deixe ele fazer isso conosco!

Guma, por favor! Guma!!!

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Guma estava paralisado, não fez absolutamente nada.

Apenas ficou observando tudo que acontecia ao seu redor como

em câmera lenta. O desespero de Afar, Sosso chamando as

criadas para que a levassem para seu quarto. Ele não ouvia mais

nada, nem os gritos da amada, nem as ordens do general, nem

seu coração que batia fraco e triste. Fora exatamente ali onde

Guma verdadeiramente se percebeu um simples filho de servos,

um homem sem casta, sem fortuna, sem permissão para amar a

mulher que desejava, sem vontades ou qualquer autoridade. E

sentiu naquele momento, em pé, vendo Afar implorar para que

ele não deixasse que a levassem para longe dele, a dor da sua

castração moral. A porta se fechou, e definitivamente ele e a

bela menina estavam separados, finalmente não pode conter sua

angústia e as lágrimas caíram de seus olhos, banhando a face

com a amargura que lhe consumia. Sosso se colocou a sua

frente.

Sosso respirou fundo;

- Guma?! Filho?! Está me ouvindo?

Guma despertou enxugando as lágrimas;

- Sim, senhor.

Sosso

- Vá para casa descansar. Amanhã pela manhã, resolveremos o

restante. (Guma deu um sinal positivo com a cabeça). Agora

pode ir.

O rapaz se retirou educadamente, mas era impossível

esconder a frustação em seu rosto. Quando chegou em casa

contou aos pais tudo que se passara.

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Goé

- Ah, meu filho! Quantas vezes eu tentei dizer que seus

sentimentos pela menina Afar não poderiam passar de uma

grande amizade? Quantas vezes, Guma?

Guma

- Sim, meu pai, mas eu não pude evitar. O que sinto por Afar vai

além da minha razão. É algo incontrolável. É como se já nos

amássemos e nos pertencêssemos há muitos e muitos anos. E

esse meu delírio me fez acreditar por um instante que

poderíamos ser considerados iguais e dignos um para o outro.

Contudo, agora percebo que nunca fui nada além do filho de

dois servos daquela casa. Fora como fui tratado esta noite.

Hanaman

- Guma, não deve sentir vergonha de ser nosso filho. Deve ter

orgulho de sermos pessoas de bem e honestas, que trabalham

honestamente para termos uma vida com dignidade. Você não é

o filho de dois servos, você é quem você decide ser. Um homem

bom e justo que seria merecedor do amor de qualquer mulher.

Nunca permita que a insanidade dos homens faça você descrer

disso.

Guma

- O que vou fazer sem poder ver Afar? Sem poder estar com ela?

Foi dessa forma como passei os últimos dez anos da minha vida,

passando cada minuto ao lado dela, e achei que assim seria para

sempre.

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Goé

- Você vai fazer o que tiver que ser feito, meu filho. Vai superar

isso e seguir a sua vida. Vamos confiar em Alá.

Guma

- Então farei minhas preces, meu pai. Apesar de saber que Afar

jamais sairá da minha memória, e que talvez nunca entenda o

porquê que tive que me manter calado.

No palácio do governador, finalmente o desesperador

choro de Afar havia cessado, pois ela caíra no profundo sono

consolador que viera acalentar seu coração despedaçado. A casa

estava em silêncio, mas Sosso sentia um imenso pesar na área

cardíaca que lhe advertia sobre a decisão que havia tomado,

contudo, não enxergava como o destino poderia ser diferente

para a filha que tanto amava. Em seus aposentos particulares

conversava com Farrima.

Sosso

- Será que algum dia ela irá me perdoar?

Farrima acariciou os ombros do marido;

- É claro que sim, querido. Só não sabemos quando. Pode levar

uma semana, um ano, uma vida ou duas.

Sosso

- Mas a culpa não é minha! Temos regras nesse império e elas

precisam ser seguidas. Eu não poderia, no cargo que me foi dado

pelo Mansa por honra e mérito, ser a pessoa que descumpriria

com as leis. Isso poderia levar Guma à morte.

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Farrima

- Sim, eu sei! Afar e Guma também sabem, mas são tão

apaixonados e já faz tanto tempo que se amam, que seus

sentimentos superaram a razão. Ela sabe que na verdade você só

está zelando pelo bem de Guma.

Sosso

- Eu não sei, Farrima. Eu não sei. Ela disse que me odeia!

Farrima

-Mas é claro, querido! E se alguém chegasse para você e

dissesse que nunca poderíamos ficar juntos? Que seria

impossível vivermos o nosso amor e felicidade? Que teríamos

que passar o resto de nossas vidas sem nos vermos novamente?

Sosso

- Sim, é bem verdade que eu mataria essa pessoa. (Sosso

acariciou o rosto da mulher). Jamais poderia viver longe de

você.

Farrima

- Então tente compreender a dor que Afar está vivendo.

Sosso

- Eu imagino! Mas nós somos da mesma casta! Onde eles

estavam com a cabeça quando acreditaram que poderiam algum

dia ser um casal como nós?

Farrima

- O amor faz essas coisas com os apaixonados, querido. Você

bem sabe.

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Como dito pelo general, na manhã seguinte, antes que o

sol voltasse a comtemplar os malinqués, dois soldados bateram à

porta de Goé e Hanaman. Guma, que passara a noite em claro, já

esperava com uma pequena trouxa de roupas. O rapaz deu um

forte abraço no pai e um beijo na fronte da mãe chorosa. Nada

disse, seu olhar ofuscado pelo profundo pesar que sentia, eram

palavras o suficiente que mostravam aos pais que nada do que

dissessem faria diferença naquele momento. Guma não se

entristecia por que estava indo embora, mas porque sabia que

nunca mais veria o grande amor da sua vida. Em seguida fora

levado sem nem mesmo seus pais serem informados para onde.

Por mais que Hanaman quisesse acreditar no bom coração de

Sosso, e na consideração que tivera por eles até aquele

momento, não podia evitar de pensar que talvez seu único filho

pudesse ser capturado no meio da viagem, vindo a ser levado

para a escravidão em terras desconhecidas, ou mesmo sendo

mandado para as galés, onde se perderia para sempre, como

acontecera a muitos. Guma ouvia o choro da mãe com grande

pesar, mas aquele era um momento definitivo e irreversível em

sua vida, e que assim sendo deveria encarar o que viesse com

força e coragem. Quando passaram em frente ao palácio do

governo, o jovem sentiu a profunda tristeza rasgar seu peito, e

fechou os olhos lembrando-se dos românticos momentos que

tivera com a amada, tentando guardar em seu íntimo aquelas

memórias que tanto acalentavam seu coração.

Afar abriu os olhos quando o grande deus solar já raiava

alto, lembrou-se do ocorrido da noite passada, e mesmo sem se

aprontar, saiu pelos corredores a procurar pelo pai. Seus passos

eram apressados, quase desesperados, passou pelos criados, por

Farrad que chamou seu nome, mas a menina tinha pressa, por

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Dana e Somayaji, que apenas a observaram, então finalmente

encontrou Sosso em seu gabinete resolvendo os pormenores da

manhã que se passava com dois senhores tão respeitáveis quanto

ele.

Afar

- Papai! Preciso que me deixe falar!

Sosso observou o estado da filha e logo se prontificou;

- Senhores! Peço desculpas pelos trajes de minha filha. (Afar

olhou-se como se só naquele momento se lembrasse de que não

estava vestida adequadamente). Tenho certeza de que todos

esses problemas que aqui discutimos irão ser resolvidos

rapidamente. Não se preocupem. Agora, se puderem me dar

licença para resolver um problema de família... (Os senhores o

cumprimentaram e logo se retiraram).

Afar já sozinha com o pai;

- Desculpe-me! Eu não quis envergonhá-lo.

Sosso fechando a porta;

- Está tudo bem. O que deseja?

Afar aproximou-se;

- Papai! Não pode obrigar a mim e a Guma a nunca mais nos

falarmos ou nos vermos! Não pode fazer isso conosco! Deve

haver alguma maneira de podermos ficar juntos, mesmo que...

(Afar indecisa antes de continuar, respirou fundo). Mesmo que

seja de forma oculta.

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Sosso perpassava os olhos pelos documentos em sua mesa

quando a ouviu dizer a última frase e a olhou nos olhos;

- O que está sugerindo, Afar?

Afar continuou com a voz tremula;

- Estou dizendo que eu e Guma passamos todo esse tempo

juntos, como... Como pessoas comprometidas, e ninguém nunca

ficou sabendo.

Sosso enervou-se por um momento;

- Ora, Afar! Vou fingir que não está me propondo um absurdo

desses! Sem falar que todos nós sabíamos do envolvimento de

vocês dois, eu só não imaginava que fossem chegar a esse nível!

Para mim não passava de uma simples distração de crianças,

mas vejo que cometi um sério erro!

Afar igualmente irritou-se;

- Se sempre soube de nós, por que permitiu que continuássemos

juntos? Por que deixou que eu me apaixonasse dessa forma?

Agora quer tirar Guma de mim! Quando meus sentimentos

dizem que jamais irei pertencer a outro homem. Quando...!!!

Sosso a interrompeu;

- Chega! Eu já expliquei que não imaginava que estivessem

envolvidos a esse ponto.

Afar chorava;

- Não, papai! Não imaginava mesmo! Eu amo Guma! Amo mais

que qualquer coisa ou qualquer outra pessoa nesse mundo! Amo

ao ponto de pertencer a ele de alma, e se Guma alguma vez

tivesse ousado, pertenceria de corpo também.

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Sosso encarou a filha;

- Afar! Se continuar sendo insolente dessa forma, terei de ser

obrigado a castigá-la!

Afar

- Me castigar?! Mais do que você já está me castigando?! Não

há castigo pior que não poder falar com o homem que eu amo!

Não poder pertencer a ele! Ser dele! Mas eu não irei obedecê-lo!

Eu e Guma fugiremos para bem longe desse lugar mesquinho, e

nunca mais nós voltaremos!

Sosso deixava-se ficar expressivamente nervoso com a situação

que se agravava;

- Eu acho pouco provável que consiga realizar essa façanha!

Afar emudeceu-se, encarou o pai, e logo pronunciou em baixo

tom:

- Por quê? O que você fez?

Sosso desviou o olhar da filha, pois não aguentava ver o

desespero em seu rosto;

- O que era preciso.

Farrima entrou na sala;

- O que está acontecendo aqui? Todos estão escutando a gritaria

de vocês dois.

Afar foi até a mãe;

- Mamãe! O que o papai fez com Guma? O que ele fez?

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Farrima acariciou os cabelos da filha;

- Ah! Minha filha! Você não deve mais pensar em Guma.

Afar gritou ao se distanciar da mãe;

- Não! (Ela se dirigiu ao pai). O que você fez com ele?!

Sosso respirou fundo e disse calmamente;

- Há essa hora, Guma está bem longe daqui. (As lágrimas caiam

no rosto de Afar sem que seu choro ecoasse). Dois soldados o

estão levando para aonde ele deveria ter ido há muito tempo.

Rezo para que não ocorra imprevistos durante o longo e

estarrecedor percurso.

Afar pronunciou já sem achar esperanças em sua gritaria:

- Seu monstro!

Sosso a fitou com tristeza;

- Minha filha...

Farrima

- Não fale assim com seu pai, Afar.

Afar

- Eu odeio vocês dois! Odeio! Vocês são dois hipócritas! Ou

vocês pensam que eu não sei a verdade.

Sosso voltou a ficar nervoso;

- Cale-se, Afar! Antes que eu perca a minha razão!

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Afar

- Agora quer que eu me cale, não é papai?! Acha que não sei que

minha mãe também foi uma serva? Que o senhor se apaixonou

por ela ao ponto de enganar e falsificar documentos?

Sosso aproximou-se com a mão estendida;

- Ah! Sua insolente!

Farrima se colocou na frente e o impediu de bater no rosto da

filha;

- Sosso, não!

Sosso

- Eu quero que você vá para o seu quarto e fique lá até que eu

ordene que possa sair, e isso não irá ocorrer tão cedo! Nunca

mais! Eu disse, nunca mais, repita uma mentira dessas!

Farrima virou-se para Afar ajeitando sua roupa;

- Vá, minha filha! Obedeça a seu pai. (Afar assim o fez).

Sosso, andou de um lado para o outro tentando conter seu

nervosismo;

- Viu isso? A que ponto nós chegamos? Como pude deixar isso

acontecer?

Farrima

- Ela está com raiva, querido!

Sosso

- Ainda assim precisa saber que não pode sair por aí dizendo

inverdades.

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Farrima

- Mas nós sabemos que não é mentira.

Sosso encarou a esposa;

- E o que quer que eu faça, Farrima? Que seja decapitado e você

enforcada junto com todo o resto da família? Alá sabe dos meus

pecados, e amar você ao ponto de enganar e mentir, não é um

deles.

Farrima

- Era somente isso que Afar estava te pedindo. Exatamente o

que fizera por mim.

Sosso

- Mas isso é muito arriscado e perigoso. E eu não vim para uma

província tão longe com toda a minha família, simplesmente

porque me apraz. Tive que mover mundos, cobrar favores e

sujar minhas mãos de sangue para que chegássemos a ter a paz

que hoje nos pertence. Você mais que qualquer outro sabe muito

bem disso.

Farrima abaixou os olhos;

- Sim, é verdade. De qualquer maneira, Guma e Afar já estão

separados para todo o sempre. Não terá mais que se preocupar

com isso.

Sosso

- Assim espero.

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Farrima

- A melhor solução seria casar Afar o quanto antes. Quem sabe

assim ela o esquece.

Sosso mostrou-se contrariado;

- Ela não sabe, porém eu, como seu pai, mais do que ninguém,

gostaria que ela fosse feliz em seu casamento. Eu só não contava

com toda essa confusão. Contudo, espero que o tempo possa

curá-la e ela enfim se apaixonar por alguém de sua casta.

Farrima

- Então vamos esperar.

O velho Níger já não contava suas lágrimas. Quantas

vezes o abundante rio presenciou as cenas de carinho e afeição

guardadas no segredo da alma entre Afar e Guma? Quantos

momentos inesquecíveis de felicidade por serem dois espíritos

que deram a sorte de se encontrar naquele pedaço de terra?

Quantos beijos e carícias cobertos pelas águas do afluente?

Quantas vezes guardou os sonhos do futuro familiar, entre

filhinhos e filhinhas, e noites de amor? Fora ali onde cresceram,

e igualmente aquele sentimento outrora ingênuo entre crianças,

tornou-se uma paixão incontrolável, sensível ao menor e mais

singelo toque, de olhares profundos e cheios do sonho de uma

vida juntos.

Afar, pela primeira vez desobedeceu ao pai, ela passou

pelo seu quarto para arrumar-se, mas não permaneceu nele.

Precisava ver com seus próprios olhos o quarto vazio de Guma,

os pais tão amorosos, agora cabisbaixos pela perda do filho,

queria ver suas coisas no lugar de sempre e sentir que havia uma

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esperança dele retornar, ou se seu verdadeiro amor realmente

havia partido para todo sempre.

Hanaman ainda não conseguia conter as lágrimas, a

separação do filho lhe causou uma profunda tristeza. Afar não

pode acreditar que eles também não sabiam para onde haviam

levado o rapaz. Quando finalmente se convenceu de que Goé

sabia tanto quanto ela, fora em busca de notícias através dos

guardas do pai, onde simplesmente conseguiu a informação, de

que muito cedo ainda, Guma fora visto com dois soldados, mas

seu destino era confidencial. A menina logo percebeu que o

namorado não fora forçado a nada, e que talvez por livre e

espontânea vontade tenha aceitado algum dos acordos que seu

pai, muito tinha costume de oferecer. Mesmo assim, foram

meses onde a menina procurou por notícias, notícias essas, vãs,

muitas eram descabidas, outras só faziam com que ela sentisse

que cada vez mais era levada para longe da verdade e do destino

do amado. O primeiro ano passou, lento e demorado, Afar não

desistia de insistir para que o pai revelasse para onde havia

mandado Guma, e num excesso de impaciência, ele lhe revelou

que mandara o rapaz para uma outra província, onde serviria nos

campos de conhecidos seus, mas que recebera notícias de que a

caravana qual estava a viajar havia sofrido com os saqueadores,

e logo se perdera entre contrabandistas de escravos, quando

ainda poderia ter ido parar em alguma belonave nas galeras,

sendo assim, se ainda estivesse vivo, seria sorte. Sosso falou tão

firmemente e com tanta sobriedade, que Afar não teve como não

acreditar que o pai lhe revelava finalmente a verdade.

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Sosso

- Eu não quis te comunicar antes, porque imaginei que seria um

golpe muito duro, minha filha. Eu nunca desejei esse destino a

Guma.

Afar fora acalmada pela desesperança;

- A culpa é toda sua. Só sua.

Sosso

- Se isso fará com que se sinta melhor, posso aguentar o peso da

responsabilidade de pensar em uma vida tranquila para você.

Afar

- Tranquila? Acho que quis dizer triste, papai. Fora só o que o

senhor conseguiu, tornar-me uma pessoa triste.

Era bem verdade que Sosso havia mandado Guma para

uma província distante onde serviria a conhecidos seus, contudo,

o restante da história não passara de uma grande mentira, na

tentativa de fazer com que Afar desistisse de buscar pelo amado.

Guma fora mandado para a aldeia de Niani, o que hoje seria a

atual Guiné, onde pessoalmente serviria ao Mansa. Por ser

jovem e belo iniciou seus trabalhos no Palácio Imperial, e tão

cedo quanto pudera imaginar, ganhou a amizade de alguns

senhores importantes com sua estranha educação refinada e

sabedoria. Após cinco anos de servidão, pelo motivo de sempre

ajudar um dos comandantes da Tropa Imperial em suas

estratégias de combate e domínio em territórios inimigos, fora

indicado para o cargo de soldado, e o destino assim o levou a

conhecer Musa, o Imperador, que por coincidência ou não, tinha

a mesma idade que ele, sendo por este motivo que muito lhe

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agradava sua companhia nos treinamentos matinais e nas

célebres distrações onde pernoitavam entre lindas mulheres, as

quais nunca conseguiram apagar de sua memória o belo rosto de

Afar.

Naquele fim de tarde em Niani, Guma descansava em

um dos mais altos entre os inúmeros terraços da construção real.

O magnânimo lugar era ornamentado por arbustos e trepadeiras

verdíssimas, flores que exalavam aromas incomparáveis, tecidos

que volitavam no ar em perfeita harmonia com a menor das

brisas, ainda mobiliado com bancos, cadeiras e almofadas as

quais possibilitava completo e perfeito descanso para o corpo de

um soldado que acabara de chegar de longa batalha. O santuário

ao ar livre ainda transmitia uma tranquilidade celestial,

harmonizando forte encontro entre a mente incandescente do

homem mundano e sua intocada essência da alma feita por

Deus, com uma perfeita e bela vista para toda a cidade e o

esplendoroso pôr do sol de laranja intenso. Guma não sabia se

fora pelo cansaço da batalha, pela paz que aquele belíssimo

ambiente lhe proporcionava, ou ainda pela lembrança dos fins

de tarde que se passavam solitários, mas após tantos anos

permitiu-se a algo que evitara por muito tempo. Deixou-se o

valente homem que seus pensamentos divagassem por aquela

paisagem, e lembrou-se que certamente em Tombuctu sua

amada também contemplava o mesmo astro. Contudo, será que

contemplava sozinha? Depois de tantos anos era certo que

estivesse casada e até mesmo com seus filhos, crianças essas que

deveriam ser suas também. Mas do que adiantava sofrer com

esses pensamentos? Muito provavelmente Afar não pensava

mais nele, afinal, já faziam longos sete anos que Guma fora

embora e não fizera questão de anunciar a ninguém, nem mesmo

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a seus pais, onde se encontrava e como estava. A dor que sofrera

com a separação repentina o dilacerou a um ponto no qual

decidira apagar aquele passado, e recomeçar sua vida como se

fosse uma outra pessoa. Entristeceu-se ao pensar que Afar não o

reconheceria e muito menos se apaixonaria por ele caso o

conhecesse nos dias atuais. O rapaz romântico, compassivo,

tolerante e afável de Tombuctu, não mais existia.

Após ganhar a amizade de Musa, Guma adquiriu seus

documentos, onde afirmava que era um homem de posses e

completamente livre para fazer o que desejasse. O Imperador lhe

forneceu uma moradia razoável, um ótimo salário, e passou a

compartilhar com o amigo as festas e demais ocasiões onde o

que mais lhes interessava era diversão, boa comida e bebida.

Com a fama de guerreiro, Guma passou a ser apreciado por

muitas moças de dentro e de fora do grande palácio, o que

sempre lhe possibilitava estar na companhia de uma ou duas

belíssimas mulheres. Assim, descobriu ele um mundo onde não

se afundava nos pensamentos que o levavam a Afar, e que não o

fazia se sentir pequeno. Escondeu-se por trás da capa de homem

aventureiro e descontraído, de uma brutalidade inconsequente

em combate, de personalidade audaciosa respaldada por seu

amigo soberano, e de um apetite sexual insaciável. Este último

traço, sendo efeito da tentativa incansável de suprir a falta que

Afar lhe fazia. Todavia, o vazio sempre lhe batia à porta em

momentos como aquele no terraço. E percebendo o semblante

ausente de Guma, Musa quebrou o silêncio aproximando-se

segurando uma taça dourada de vinho.

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Musa

- Quando um homem volta de uma guerra e permanece estático

assim por muito tempo, significa que ele viu muitas coisas das

quais nunca conseguirá falar. Ou isso, ou o problema tem pele

sedosa, lábios macios, voz doce.

Guma sorriu;

- Sabe que não tenho problemas com as batalhas.

Musa

- Então me diga o lindo nome desse problema que o fez ficar

aqui parado por tanto tempo.

Guma caminhou até um dos bancos e se sentou;

- Essa história tem tantos anos. E desde que fomos separados,

nunca mais pronunciei o nome dela, e desejo que assim

permaneça, para que eu não desenterre algo que já morreu faz

tempo.

Musa

- Pelo o que observo, não parece que está morto. Eu nunca o

imaginaria apaixonado por alguém, Guma. Não você!

Guma

- Pois é! Por isso é melhor nem falarmos nisso. Já passou.

Musa

- Bem, se é assim, deveria fazer como eu, e se casar com uma

bela e jovem mulher.

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Guma

- Me casar? Com quem?

Musa

- Ora, meu amigo! Se olhar para os lados você descobrirá que

existem tantas possibilidades quanto gostaria. Sei que existe

uma jovem chamada Zaila que está perdidamente apaixonada

por você não é de hoje.

Guma novamente abriu um sorriso;

- E por acaso, você sabe disso por que Zaila é amiga de sua

esposa Sunieri?

Musa

- Claro que sim! Ela revelou a Sunieri os sentimentos que tem

por um certo soldado amigo íntimo do seu Imperador. E disse

que muito feliz a faria caso este desejasse uma comunhão com

ela.

Guma

- Não posso me casar com uma moça de casta como Zaila.

Musa

- É exatamente aí que a sua influência com o bondoso,

maravilhoso, esplêndido e belíssimo imperador, pode agir

favoravelmente na realização desse desejo.

Guma

- Do que está falando?

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Musa parou petrificando seu olhar na paisagem à frente;

- Estou falando, que a partir de hoje você não é mais um

soldado. Eu o estou promovendo a comandante, terá sua

pequena, porém, própria frota de soldados, e... (Ele virou-se para

o amigo). Sua casta está igualada aos nobres dessa aldeia, como

a casta de Zaila por exemplo. (Musa tomou um gole do vinho).

Guma foi até ele;

- Com todo respeito, mas deve estar delirando.

Musa

- Possivelmente estou mesmo, meu amigo. A aristocracia

comerá meu fígado, mas o que não se faz pela amiga da sua

linda, desejável e amorosa esposa?

Guma em um impulso abraçou Musa;

- Devo agradecer, então!

Musa

- Está bem! Não é para tanto. Estou mais ansioso pelos

agradecimentos de Sunieri

Guma

- Eu não irei decepcioná-lo.

Musa

- Claro que não, agora você se casará com Zaila querendo ou

não querendo.

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Guma

- Na verdade não estaria fazendo esforço algum. Zaila é uma

bela moça. Seus pais irão concordar com isso?

Musa

- Ah! Depois que seu imperador os informar de que vocês se

casarão, tenho dúvidas que alguém se contraponha a minha

vontade. Eu os abençoarei e estará feito.

Guma novamente abraçou o amigo. Era estranho

perceber em uma pessoa de tamanho poder, alguém que se

aproximava de um irmão, haja vista que Musa demonstrava

incompreensivelmente sentir o mesmo pelo atual comandante.

Seus bens acumularam, e rapidamente Guma tornou-se

um homem rico, mudou-se para uma propriedade maior, onde

agora possuía servos e escravos, os quais ele nunca deixou de

tratar com respeito e consideração. Sem demorar, casou-se com

Zaila, mesmo sabendo da insatisfação de seus pais, contudo,

eram felizes. A esposa dedicada o tratava sempre com extremo

carinho, respeitando suas ordens e vontades, pois que Guma não

demorou em se empoderar do título e da vaidade que este trazia,

além do poder que a amizade com Musa lhe fornecia, o que

despertava a inveja e revolta de alguns. Dessa forma, Zaila não

se importava que o marido desfrutasse de duas ou três noites

fora de casa, onde sabia que ele praticava suas orgias, uma vez

que o comandante sempre retornava dócil e amável para casa,

nunca faltando com seus deveres de esposo, e com carícias que a

convencia de que ela era seu único e verdadeiro amor. Após o

primeiro ano de casados, seu primeiro filho, qual chamou por

Tisuz, nasceu forte e saudável, sendo motivo de festa e orgulho.

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Logo em seguida, nascera Zaira, uma dócil criança que

preencheu a vida de Guma com amor e afabilidade.

Musa presenciava a felicidade do amigo, ansioso para

que pudesse compartilhar do título de pai, mas Sunieri não

engravidava. Apesar das inúmeras tentativas, dos doutores

vindos do oriente, e das ervas milagrosas, três anos se passaram

daquela data, e Musa não tinha um filho que pudesse lhe

substituir no trono. Desta forma, o casamento do mansa decaía,

e haviam semanas em que ele nem mesmo via sua esposa,

permitindo-se esquecer-se nos salões onde todo tipo de

promiscuidade se exacerbava entre aquelas almas iludidas com o

prazer e a saciedade da carne.

O salão de colossal estrutura, fora propositalmente

decorado nas cores dourado e vermelho intenso, ostentava

tapeçarias persas e piscinas que traziam a modernidade da

arquitetura romana, possuía iluminação precária devida às

poucas janelas que traziam discrição, muitas vezes havendo a

necessidade de luzes artificiais, o que também propiciava o

fervor das peles suadas que constantemente tocavam-se em

frenesis de emoções por vezes animalescas. O ambiente imitava

o que poderíamos chamar por harém, habitado e frequentado por

jovens moças, a maioria delas sendo criadas, possuidoras de

belezas exóticas e estonteantes. Também visitado a convite

pelos amigos mais íntimos do mansa. As festividades naquele

local pareciam intermináveis, assim como o sofrimento de Musa

na infelicidade de seu casamento infrutífero.

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Guma, que tinha total liberdade de acesso a quaisquer

dos cômodos do palácio, habituara-se a passar algumas noites no

salão, e entre um momento e outro onde procurava ar fresco nas

noites quentes de Niani, encontrou seu infeliz amigo em um dos

jardins internos.

Guma

- Vejo que um pesar te toma a todo instante. Este não deveria ser

um momento de alegria e distração como costumava ser, meu

amigo?

Musa permaneceu sentado onde estava com a postura

cabisbaixa;

- Sim, deveria, Guma. Mas existem esses pensamentos que não

me permitem desfrutar da bela vida que tenho.

Guma

- E o que mais o magnânimo Mansa poderia querer? Tens

absolutamente tudo que um homem gostaria de ter. Poder,

riqueza, mulheres, amigos, é amado e respeitado pelo seu povo.

Musa levantou-se repentinamente;

- Mas não tenho um filho! Sunieri não pode ser mãe, e assim

sendo, eu não terei meu herdeiro legítimo.

Guma

- Ora! Mas ainda há tanto tempo para se realizar esse desejo!

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Musa alterou-se um pouco;

- Não, Guma! Teus filhos já crescem, e nós que estamos casados

antes de você e Zaila, nós não temos nada. Cada vez que nos

frustramos nos distanciamos mais.

Guma

- Está dizendo que...

Musa

- Estou dizendo que o que eu sentia por Sunieri sucumbiu ao

fato dela ser seca, como as areias do deserto. Qual a razão de um

homem se unir a uma mulher se ela não pode lhe dar uma

família?

Guma

- Mas você não a ama? Sunieri é uma esposa... dedicada.

Musa

- E de que isso me adianta? Enquanto meu reino não tiver

herdeiros, serei visto como um imperador fraco! E todo o

império herdado das dinastias que me antecederam estará em

risco. (Musa cuspiu o licor que tomava e arremessou a taça

prateada). A verdade é que qualquer um poderá me tomar este

trono enquanto eu ainda não for pai.

Guma

- Com todo o respeito ao Mansa, a verdade é que qualquer um

pode te tomar o trono enquanto ele lhe for seu. Sempre estará

propenso a sofrer este golpe, com ou sem herdeiros.

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Musa encarou Guma;

- Não com um fiel comandante como você, meu amigo.

Guma

- Por que não se casa outra vez?

Musa

- Mais uma esposa? Isso não agradaria Sunieri, só pioraria as

coisas entre nós dois.

Guma

- E como acha que toda essa situação irá se resolver? Se Sunieri

não pode te dar um filho, então tenha uma outra esposa que

possa.

Musa refletiu;

- Bem, eu nunca lhe prometi que não possuiria outras esposas. E

mesmo que tivesse, ela não cumpriu com seu papel de dar um

herdeiro a este império.

Guma sorriu;

- Então! Já que resolvemos o problema, devo me apressar. Raja

está ao meu aguardo.

Musa lhe fez um cumprimento;

- Pois então, não a deixe esperando.

E adentrando ao salão, Guma inebriou-se daquela

atmosfera junto a Musa que novamente tomou de uma taça com

bebida, ambos se direcionaram as suas femininas distrações.

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Raja era uma jovem de origem estrangeira, ninguém

sabia ao certo de onde viera, mas imaginava-se que possuía

descendência egípcia, tinha a pele dourada pelo sol, seus cabelos

eram ondulados e longos, os olhos castanhos e profundos, de

braços longos e finos, assim como o corpo de mulher. Fora

casada com um mercador que perdera tudo que tinha em

apostas, inclusive ela. Não demorou até que conseguisse fugir

em uma das inúmeras tentativas, desta forma fora capturada e

vendida como escrava várias vezes, vindo a cruzar o

mediterrâneo em embarcações precárias, sofrendo toda forma de

abuso que uma mulher indefesa e sozinha poderia sofrer, até que

se acostumara a dar o corpo em troca de qualquer coisa que

pudesse lhe alimentar ou vestir. E desta forma Guma a

encontrou no porão de um dos navios do inimigo que atacava.

Havia algo naquela mulher imunda além do olhar aterrador, a

magreza não roubara sua exótica beleza, haja vista que o cabelo

desgrenhado, a face esmaecida com hematomas profundos nas

maçãs devido aos prováveis golpes que levara, o corpo

macerado pelo sofrimento e a violência que sofreu naqueles

últimos dias, tornaram sua aparência próxima a de um trapo

humano. Ainda assim, o comandante compadeceu-se

profundamente daquela mulher de aparência animalesca. Ele se

aproximou lentamente, quando no porão úmido e escuro, apenas

um raio da luz solar iluminava uma pequena parte do poço

fétido onde se encontrava Raja. Mesmo com toda cautela que

procurava ter, Guma levara golpes, bofetões e arranhões da

tresloucada que demorou a entender que ele não tentava atacá-la,

mas sim ajudá-la. Quando ela finalmente fixou seus olhos

amargurados no doce olhar do seu salvador, acalmou-se e

permitiu que ele suspendesse seu corpo nu e fraco, qual possuía

algumas lacerações que indicavam a prática do famoso chicote

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com ponta de ferro, que era usado para castigar escravos

insolentes. Raja, envolvida nos fortes braços de Guma com o

rosto afagado em seu peito, sentia-se agora, após muito tempo,

acolhida. E esse acolhimento não era simplesmente um

sentimento bom, era mais que isso, era como um carinho na

alma, como se seu guardião secular a houvesse encontrado em

meio aos escombros do mundo vil que ela quase desistira de

sobreviver. Aquela sensação durou um segundo, mas sua

gratidão seria eterna.

Guma lhe deu abrigo em uma pequena casinha que

possuía um tanto distante do palácio. Comunicou apenas Musa

sobre sua hospede, o imperador não se opôs, incentivando o

amigo na caridade que praticava. Ele ainda designou duas servas

de sua própria casa para que ficasse com Raja e lhe cuidasse até

sua total recuperação. Fora essa atitude que fez com que Zaila

desconfiasse que o marido mantinha clandestinamente uma

amante, porém, a consorte sabia que com um marido com tanto

poder e de viril beleza, seria em demasia ingenuidade acreditar

que lhe seria fiel, assim conformando-se com as aventuras de

Guma.

Após algum tempo recebendo os devidos cuidados

ordenados pelo seu querido anjo, a jovem Raja voltava a ter uma

aparência normal. Nenhuma palavra ainda trocara com aquele

belo estranho, que por vezes aparecia nos fins de tarde, a olhava

enquanto dormia e depois saía sem absolutamente emitir

nenhum som. Para aquela mulher prostituída pela fome e pelo

frio, maltratada pela ignorância e pelo primitivismo do ser, era

inconcebível que um homem nada quisesse explorar de seu

corpo. Mas Guma a resgatou quando ela só fazia parte do

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escárnio da civilização, nem mesmo os vermes lhe desejavam a

carne fétida naquele infeliz momento. E conforme as semanas se

passavam, Raja surpreendia até mesmo as servas que

presenciavam o florescer de sua beleza. Os cabelos e os olhos

resgataram seu brilho, o rosto parecia intacto, agora era possível

observar que seus olhos eram levemente puxados como dos

felinos, o nariz afilado harmonizava-se com os lábios carnudos e

desenhados, quais agora eram de um leve rosado, o corpo

outrora esquelético, voltara a possuir suas curvas tão graciosas.

Guma entrava na pequena residência em passos firmes,

nem mesmo ele entendia por que tanta ansiedade sentia em ir

ver aquela criatura que fora tão desprezada pela vida e quem

sabe até por Deus. Contudo, a verdade é que desde que salvara

Raja dos braços da morte, pensava nela noite e dia. E por

algumas noites ele adentrava o quarto da moça, que parava o

que estava fazendo e ficava a sua frente, esperando que ele

falasse ou fizesse algo, todavia, Guma apenas trocava olhares

com ela por alguns segundos e saía. Certa feita, o comandante

entrou na casa e como de costume encontrou Raja em seu

aposento, a jovem seguiu o ritual, parando o que estava fazendo

e olhando fixamente para os olhos negros de Guma, mas desta

vez, antes que ele se retirasse, Raja desatou os nós de sua túnica,

permitindo que todo o pano caísse sobre o chão deixando-se

completamente nua. Guma a observou por mais um tempo,

caminhou lentamente até ela, e ainda muito próximo, perpassou

o olhar pelo corpo escultural, com as costas de uma das brutas

mãos, acariciou sua face, que para ele mais lembrava o de uma

linda ninfa, um dos dedos passou pelos lábios úmidos que

aguardavam um beijo, então ele se abaixou pegando a túnica do

chão e voltou a cobrir o corpo que lhe fora ofertado. Seu olhar

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cruzou brevemente com o de Raja percebendo seu

desapontamento, e sem demora se retirou. Raja o seguiu até a

porta.

Raja exclamou num impulso:

- Se não me deseja, por que ainda me mantém aqui?

Guma que montava em seu cavalo declarou:

- Você é livre para ir quando quiser.

Sem dar tempo para uma palestra, Raja ficou na porta a

observar o animal trotar para longe dali levantando a poeira do

caminho. Não sabia ela se se sentia aliviada ou ofendida, de

certa forma tinha certeza absoluta de que estava frustrada.

Guma não voltou no dia seguinte, a moça lhe aguardou, e

da janela espiava o panorama ao longe na esperança de ver o

garanhão do seu salvador cavalgar para encontrá-la. Mais uma

semana se passou, e nem mesmo suas servas sabiam sobre o

comandante. Fora quando em uma noite ele finalmente retornou,

colocou no cesto da mesa as frutas que sempre trazia. Raja que

estava no quarto preparando-se para dormir, ouviu seus

empoderados passos aproximarem-se, e em um piscar, lá estava

aquele que agora roubava-lhe a paz do coração e os românticos

pensamentos. Ela o olhou rapidamente e logo virou o rosto

continuando sentada naquela espécie de cama, na tentativa de

lhe devolver o desdém do último encontro.

Raja

- Sinto não ter obedecido. Prometo que em alguns dias estarei

providenciando minha partida.

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Guma caminhou calmamente para dentro do quarto;

- Mas eu não me lembro de tê-la expulsado.

Raja

- Disse que sou livre para ir quando quiser.

Guma

- Da mesma forma que é livre para ficar, se assim desejar. Se...

Não tiver ninguém que a esteja esperando.

Raja sorriu timidamente;

- Não. Não existe ninguém. (Guma prontificou-se a sair). Por

que não voltou?

Guma

- Como?

Raja

- Por que não voltou depois daquele dia constrangedor e

humilhante? Sei que deve ser um homem respeitável e sinto por

tê-lo ofendido, mas é que na dura vida que me foi consagrada,

estou acostumada a pagar pelos favores que me fazem desta

forma, já que não possuo nada além do meu corpo escravo.

Guma sorriu;

- Homem respeitável? Eu? Pelo visto os comentários que

rodeiam o palácio não passam por aqui. E não existem motivos

para se sentir constrangida ou humilhada.

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Raja

- Por qual outro motivo me desprezaria de tal forma? Sei que

posso não ter a beleza ideal que muitos homens elogiam, mas

onde cresci, não costumam desprezar mulheres que são muito

mais feias e horrendas que eu.

Guma sorriu novamente;

- É como você se vê?

Raja

- Foi como me olhou!

Guma respondeu prontamente;

- Não, não foi! Eu... Só não quis que fizesse isso pelos motivos

errados, como ainda pouco declarou que está acostumada a

pagar por favores com seu corpo escravo. Nunca tocaria em uma

mulher que não me desejasse igualmente.

Raja

- E se eu disser que o desejo?

Guma fixou seu olhar no dela;

- Eu diria que sou marido de outra mulher.

Raja

- Entendo.

Guma continuou;

- E que não poderia esperar mais de mim do que apenas

encontros noturnos e rápidos.

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Raja

- É mais do que já tive de qualquer outro homem.

O comandante caminhou até a moça, e fora estranho para

Guma, pois ele amava o corpo de Raja, mas era Afar quem

dominava seus pensamentos.

E após as incontáveis horas em que ele se embriagou da

bela egípcia, acreditando ser Afar, Guma cavalgou tão rápido

quanto podia para longe da moça. Sua mente parecia perturbada,

encoberta por um véu de extrema confusão. Tendo chegado

aonde chegou, sendo quem ele havia se tornado, sabia que

poderia possuir Raja como bem entendesse, e mantê-la como

sua mulher por trás da fantasiosa aparência familiar que

construíra para si, assim como a grande maioria dos homens

daquele tempo fazia. Mas era estranho o que sentia, aquele

medo lhe era uma novidade. O que ele poderia temer? Era um

homem poderoso. Repentinamente freou o animal e quis dar

meia volta. Por um segundo decidiu voltar e conferir que era

realmente Raja, quem o envolvera tão perfeitamente naquela teia

de amor e prazer, mas logo Afar lhe veio à mente, e seu cavalo

reagia tão indecisamente quanto os seus comandos confusos. Por

fim, decidiu voltar para casa, o sorriso de Zaila fora tão

receptivo e amável como sempre, e por também ser ela uma

linda mulher, de perfumes exóticos, pele de seda e olhares

atraentes, fizera amor com ela naquela noite, ainda desejando

Afar. O comandante passara três dias em profunda agonia,

sentimento este que não fugiu a observação de sua dedicada

esposa.

No terraço principal de sua casa, Guma procurava o

descanso para os nervos qual pareciam deixá-lo a cada dia ainda

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mais tenso. Zaila surgiu com uma bebida refrescante e lhe

ofereceu.

Zaila

- Vejo meu marido andando de um recinto para o outro como se

não soubesse onde está indo, ou como se desejasse ir a um lugar

que não pode. Vejo seu olhar vazio para tudo que está do lado

de fora, mas atencioso para o que lhe consome por dentro. (Ela o

acariciou no rosto). Você tem ficado mais em casa esses dias,

mas não está aqui. É alguma coisa que posso ajudar?

Guma devolveu o carinho à esposa;

- Não querida. Não é nada que deva se preocupar.

Zaila sentou-se ao seu lado;

- Devo me preocupar com qualquer coisa que possa lhe roubar a

tranquilidade, e sei que tem passado as noites em claro trancado

em seu gabinete. O que busca, Guma? Está apaixonado por

outra mulher?

Guma segurou em sua mão;

- Sabe que nunca escondi de você o homem devasso que vive

em mim.

Zaila

- E também sei que sempre foi o melhor marido que eu pude

escolher, o que muitas vezes sempre teve um peso maior que

suas aventuras insignificantes.

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Guma beijou sua mão;

- Por isso não serei desleal a você sobre a verdade. Faz um

tempo já, que eu resgatei uma mulher enfermiça das garras da

morte. Provavelmente ela estava, tem algum tempo, sendo

violentada de todas as formas por animais vestidos com a pele

dos homens, porque nem mesmo os bichos tratam dessa forma

suas presas. Eu a hospedei em uma residência que possuo pouco

longe daqui, e sem absolutamente nenhuma pretensão designei

duas servas para que lhe cuidassem até que se recuperasse e

retomasse as forças. Não sei por qual motivo tive esses

impulsos, mas quando vi aquela criatura jogada no porão de um

navio, mais parecia uma massa cinzenta e pútrida, senti uma

enorme compaixão e um desconforto na alma que me fez querer

tirá-la de lá, e quando eu a segurei em meu colo e caminhei para

fora dali, percebi que o que fazia era maravilhoso, e ainda me

vejo vivendo-o como em uma lentidão, porque senti naquele

exato momento, que de alguma forma eu estava a resgatar

também a mim. Porém, não compreendo como tal situação pode

me ser tão marcante.

Zaila perguntou quase que afirmando;

- E é essa moça que o perturba?

Guma se levantou mansamente;

- Em nosso casamento nunca mentimos ou guardamos segredos

um do outro. Sabes que amei alguém há muitos e muitos anos, e

que mesmo tendo feito todos os esforços para repelir esse

sentimento, ela continua guardada em meu coração, talvez não

mais da forma como foi no passado. Pois bem, a mulher outrora

enfermiça que estou hospedando, curou-se. De algum jeito, por

algum motivo, ela desperta em mim a lembrança desse alguém,

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e junto com essas lembranças, vem milhões de frustrações e

sentimentos que não sei como domar.

Zaila mirou o horizonte;

- O que está tentando dizer é que você acha que a ama?

Guma foi até a esposa;

- Não. Isso não seria mais possível para mim, não nessa vida. Eu

não desejo te magoar, Zaila. Tem sido a melhor esposa que um

homem poderia querer. Sempre compreensiva, amiga, amante e

uma excelente mãe. Dera-me filhos perfeitos os quais enchem

minha vida de alegria e satisfação. Mas sei, e sinto que posso

compartilhar de meus verdadeiros sentimentos com você. Não

seria justo se não fosse assim. Acredito que me tornei alguém

incapaz de amar novamente.

Zaila abaixou a cabeça;

- Eu nunca quis acreditar nisso. As suas aventuras nunca me

incomodaram realmente porque eu sempre soube que eram

insignificantes para você. Mas agora parece que essa pobre

moribunda está conquistando aquilo que me esforcei para ter por

todos esses anos.

Guma abraçou a esposa;

- Como eu disse, não desejo magoá-la.

Zaila se levantou;

- Sim, eu sei. O que você não sabe, Guma, é que me magoa o

fato de saber que nunca possuirei o amor que deveria ser meu.

(Zaila caminhou até a porta de entrada para a casa). Você

pretende mandá-la ir embora?

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Guma

- É o que você deseja?

Zaila

- Se isso fizer com que você volte a ser como antes, nem meu,

nem de ninguém, acharei justo, e poderei me conformar com o

nosso destino.

Guma

- Então considere realizado.

Naquela mesma noite, Guma cavalgou até a residência

onde hospedara Raja, desanimado, tentava manter o pensamento

focado na razão de que seria melhor assim, dar-lhe uma pequena

sacola com moedas de ouro e mandá-la ir embora para todo

sempre, sabendo que ela se perderia no mundo, e ele nunca mais

a encontraria, preservando daquela vez, a vontade de Zaila que

já lhe aturava toda a realidade e as traições. Ele entrou na casa e

estranhamente não encontrou ninguém, nem mesmo as servas,

como a casa era pequena, em pouco tempo vasculhou todos os

cômodos, e estes estavam vazios. Guma sentiu seu coração

disparar, e qual louco ia ficando ao perceber que Raja poderia

simplesmente ter ido embora. O comandante voltou a olhar

recinto por recinto, mesmo sabendo que não havia onde se

esconder devido à precariedade de mobília. Na sala, parou por

um momento com as mãos na cabeça na tentativa de organizar

os pensamentos e controlar a respiração ofegante, fora quando

ouviu a harmoniosa voz de Raja que chegava.

Raja

- Você está bem?

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Guma inquiriu nervoso;

- Onde você estava?

Raja

- Eu fui respirar um pouco de ar...

E demonstrando que o final daquela frase pouco

importava, Guma a surpreendeu com um beijo feroz.

Não! Ele não podia simplesmente dizer a Raja que ela

deveria ir embora. Não agora após tantos anos de solidão, depois

de tantas mulheres, tantas guerras, tanto ódio não declarado,

tantos quilômetros longe de Afar, justo agora que seu corpo

havia encontrado uma casa, pois era como ele se sentia enquanto

suas peles se tocavam, e seus olhos fechados enxergavam quem

ele realmente queria ver. E por mais que ele achasse justo com

Zaila não alimentar aquele sentimento, por mais que desejasse

satisfazê-la ao menos nisso, não podia. Guma estava apaixonado

pela estrangeira.

E fora dessa forma que ela tornou-se sua amante.

Passado poucas semanas, Zaila constatou que o marido não

cumpriu com a sua palavra, e de certa forma, por mais que

alguma tristeza lhe batesse à porta, a jovem esposa continuou

suas tarefas e obrigações jamais voltando a tocar no assunto.

Zaila era realmente uma excelente esposa, além disso, alguém

que já havia entendido que tudo na vida é transitório, e que pelos

motivos que ela confiava não precisar saber, aceitava

resignadamente as dores e desafios que lhe cabiam enfrentar no

matrimônio, naquela atual encarnação.

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Não foi por esse motivo que o riso lhe faltou. De uma

família religiosa, seguia os ritos diários da fé, do jejum, e da

reza, todavia descobrira que para falar com seu Deus, não

necessitava de cerimônias, nem mesmo palavras ou

pensamentos, bastava fechar os olhos e pensar Nele. Assim, ela

sabia que seu coração era ouvido, e como de imediato, podia

sentir como uma sutil garoa, o que era visto no mundo do éter,

como um chuvisco de luz, cair sobre ela e lhe acalentar o

coração sofrido. O que ela não sabia, é que irmãos do mundo

espiritual, especialmente familiares de outras vidas, lançavam

sobre ela, fluidos para lhe abastecer as forças psíquicas, sendo

desta forma, possível a perseverança no resgate com as faltas

cometidas em vidas pretéritas.

Musa preparou uma caravana para longa jornada.

Desejava viajar para esquecer a amargura que arruinava seu

casamento. Sunieri não quis lhe acompanhar, ele não insistiu,

haja vista que os dois praticamente não se falavam mais. Guma

precisava ficar, em poucas semanas estaria de volta às fronteiras

onde os exércitos do Mali conquistavam territórios. Mas Musa

não podia esperar mais, não parecia tão divertido passar as

noites na companhia de tantas beldades, as práticas de luxúria

não lhe alimentavam o sentido da existência, a vida perdia aos

poucos seu significado, uma vez que tudo que se habituara a

fazer, não lhe supria as expectativas da alma que era impelida ao

progresso. Era preciso esquecer e partir. Talvez dessa forma,

Sunieri voltasse a ser a esposa de antes. Talvez ele voltasse a ser

o marido que sempre fora. Talvez eles superassem a frustração e

a raiva.

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Sem prazo para o seu retorno, Musa embarcou no que

esperava ser uma grande aventura. Beirando às margens do rio,

o comboio, em sua maior parte composto pela guarda real,

visitava as províncias e hospedava-se no palácio do Kelé-Tigui,

general chefe. Passando por Djenné, Macina e Kabara, o jovem

imperador, famoso por suas intermináveis noites de prazer e

luxúria, surpreendia seus anfitriões quando em momentos

agradáveis após a última refeição, apenas exilava-se no retiro de

seu quarto.

Musa era belo, tinha um olhar vívido, qual transmitia

toda sua sagacidade e energia enquanto imperador, todavia o

que encantava as moças não era simplesmente o título que

carregava, mas também o alegre sorriso com dentes perfeitos

que possuía o poder de emitir aquilo que havia de melhor em si.

Quando ele sorria, era como se um menino o fizesse. Apesar de

seu milenar espírito ainda permanecer submerso às frivolidades

da vida, estava ele envidado na ordem de se aprimorar a alma

transgressora, e tosar as daninhas de sua consciência imortal.

Sentia no fundo de seu coração que algo precisava mudar, mas

permanecia de certa forma desorientado pela vantajosa posição

que ocupava, qual lhe fora propositalmente concedida nos

planos do mundo espiritual, no desafio maior dele vencer as

verdadeiras dificuldades morais das facilidades cotidianas

proporcionadas na carne pelo seu cargo.

Após alguns longos meses na peregrinação em busca

daquilo em que inconscientemente clamava, chegou à cidade de

Tombuctu, sendo Sosso quem o recebeu com grande estima.

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Desde a partida de Guma, aqueles dez anos haviam

passado para Sosso, Tuma, Budja, Farrima e Farrad, passaram

também para Somayaji, Taija, Dana e Suri. Até mesmo para

Hanaman e Goé, pais de Guma, que seguiram com devoção no

trabalho de servirem ao general. Mas Afar ainda estava lá, na

beira do rio, de braços abertos e olhos fechados, quase podia

sentir os braços de Guma lhe envolverem, e junto a ela sua

lembrança se despedia da estrela maior, pensava ainda que onde

ele estivesse também estaria sob a luz do astro rei, e talvez

pensasse nela com o mesmo carinho.

Zânia, jovem criança de apenas cinco anos, se aproximou

da bela e lhe chamou com puxões na saia.

Zânia

- Já podemos ir?

Afar baixou-se até ela;

- Por que está com tanta pressa, querida? Sempre pede para

ficarmos mais um pouco.

Zânia

- O vovô disse que o Mansa poderia estar chegando hoje.

Afar segurou em uma das pequenas mãos da menina;

- E você está ansiosa para conhecê-lo?

Zânia sorriu e respondeu entusiasmada;

- Sim! Você não?

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Afar suspirou;

- Ah, querida! Faz muitos anos que não me sinto entusiasmada

dessa forma. Mas quem sabe eu possa ao menos sentir alguma

alegria.

No palácio de Sosso, a agitação era evidente. Criados e

escravos se confundiam em uma correria que já se podia esperar,

além, mais crianças brincavam no jardim principal. Afar chegou

com seu aparente desinteresse pelo fato de possivelmente o

Mansa já se encontrar na cidade. Zânia correu até Somayaji que

observava as crianças.

Zânia

- Mamãe! Mamãe! Ele chegou?

Somayaji abraçou a filha;

- Ah! Querida! Aonde vocês foram?! Eu já estava ficando

preocupada, Afar!

Afar

- Não entendo por que ainda se preocupa, sabe que sempre

chegamos um pouco mais tarde.

Somayaji

- Quem sabe quando você tiver seus próprios filhos, me

entenderá.

Afar falou para si mesma;

- É. Quem sabe?!

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Sosso adentrou ao jardim cercado por guardas, as esposas e as

outras filhas lhe acompanhavam. Musa já havia sido apresentado

a todos, e agora conhecia a residência. Como Afar chegara tarde

de sua caminhada, era a única que não o tinha visto. Em gesto

respeitoso, abaixou a cabeça assim que percebera que o

imperador estava cinco passos a sua frente.

Sosso

- Esta é minha quarta filha, Afar.

Musa a encarou com seu semblante descontraído;

- A atrasada?

Afar

- Perdoe-me, mas... Atrasada para quê?

Musa sorriu;

- Para a minha chegada.

Sosso

- Eu disse ao mansa que havia desejado reunir toda a família em

sua chegada, mas não fora possível porque você sempre chega

horas depois do que promete voltar da sua caminhada até o

níger.

Afar

- Desculpe, não imaginei que fariam disso um evento.

Certamente...

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Musa a interrompeu;

- Certamente se equivocou. A visita de seu imperador sempre

será um evento, onde quer que ele vá.

Sosso

- É provável que sim. (Afar e Musa continuaram a se encarar).

Por este motivo preparamos um grande jantar em homenagem a

sua vinda.

Musa olhou para Sosso;

- Sim! Contudo, não creio que o senhor ficaria chateado se eu

me retirasse para um breve descanso antes das festividades, a

viagem tem sido estarrecedora, e como não ficaremos mais de

dois ou três dias, devo aproveitar para recuperar as forças.

Ficaria satisfeito se pudesse assim, solicitar que uma das servas

me conduzisse até meus aposentos.

Sosso

- É perfeitamente compreensível. Mas sei que Afar ficará feliz

em levá-lo até a suíte da ala norte.

Afar

- Eu? Mas...

Sosso a interrompeu;

- Tenho certeza que para ela será um prazer poder servi-lo.

Aquele corredor parecia muito mais longo que

habitualmente, apesar de Afar raramente passar pela ala norte do

palácio, porém, o silêncio enquanto andavam fazia parecer uma

eternidade a chegada até o suntuoso cômodo que seu pai havia

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mandado preparar para a estadia do mansa. Chegado à porta, os

guardas foram liberados por Musa, e ficaram apenas ele e a

quarta filha.

Afar fora abrir as janelas;

- Bom... Desse quarto não ficará difícil ouvir os gritos e rizadas

das crianças. Minhas irmãs tiveram muitos filhos, então se não

quiser ser perturbado, aconselho que peça a uma das escravas

para fechar as janelas se sentir algum incomodo.

Musa

- E seus filhos?

Afar se retirava quando a pergunta de Musa a impeliu;

- Senhor?

Musa

- Você disse que suas irmãs tiveram muitos filhos, e os seus?

Afar mostrou-se desconfortável;

- Eu não me casei, consequentemente não tenho filhos.

Musa

- É inacreditável que uma moça tão bonita ainda não tenha

recebido ofertas.

Afar

- Pois é! Talvez por esse motivo meu estimado pai tenha me

mandado aqui para fazer o trabalho de uma serviçal. (Afar

caminhou até a porta).

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Musa

- Aonde vai?

Afar se virou para ele;

- Irei retomar a minha vida, se permitir.

Musa pegou um cacho de uvas que tinha na mesa e começou a

comer;

- Não.

Afar

- Como?

Musa

- Eu não permito. (Afar cruzou os braços). Eu não sou o

imperador? Acho que por esse simples e ridículo motivo você é

obrigada a me obedecer. (Ele sorriu).

Afar deixava transparecer sua irritação;

- Ao menos reconhece que é ridículo.

Musa

- Eu também poderia mandar prendê-la por isso, mas como

incrivelmente fiquei de bom humor desde o momento em que

pisei no jardim do seu pai, vou relevar.

Afar

- Não creio que por eu não possuir um marido, e ter um pai que

não mede seus esforços para me oferecer ao imperador, o senhor

deva acreditar que sou como as mulheres que o cercam em

Niani.

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Musa colocou o cacho de uvas sobre a mesa e a encarou;

- Em momento nenhum eu a tratei como se fosse.

Afar

- Então creio que já posso me retirar?

Musa

- Pelo visto, as notícias de Niani chegam até aqui.

Afar

- Pelo visto, com perfeita clareza.

Musa

- Está bem, já pode ir. (Afar ia se virar). Não me incomodam.

Afar

- O quê?

Musa

- As crianças. Elas não me incomodam, só me alegram. Já que

não posso ter as minhas me distraio com elas.

Afar sorriu brandamente;

- Então aproveite sua estadia, alteza. (Afar fechou a porta).

Farrima conversava com Sosso em seu gabinete quando

a filha entrou sem bater.

Afar

- Não acredito que fez isso comigo?

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Sosso

- Ah! Por favor! Você também?!

Farrima

- Não se desgaste Afar, eu já estou repreendendo seu pai pela

atitude mesquinha que teve.

Sosso

- Não foi uma atitude mesquinha! Musa gostou de Afar! Eu

pude ver assim’ que seus olhos a viram!

Afar

- Papai! Como o senhor pode fazer isso comigo? Como pode me

oferecer assim, como se eu fosse um embuste na família?

Sosso

- Muito pelo contrário. Por eu saber de sua grandeza, beleza e

simpatia é que resolvi ajudá-la.

Afar

- Ajudar? Ajudar-me em quê? Em parecer uma desesperada.

(Houve silêncio).

Sosso

- Afar, minha querida. Sabemos que já passou da hora de você

escolher um marido. Eu pensei que com a vinda do mansa,

talvez se ele se apaixonasse por você. Sem dúvida está

interessado, todos perceberam como seus olhos se iluminaram

ao te ver no jardim.

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Afar

- Isso sim é ridículo! Todos sabemos como o imperador conduz

sua vida amorosa.

Farrima

- Neste caso, concordo com seu pai. Musa não viajou com a

esposa. Dizem que eles nem mesmo se falam mais. (Ela

aproximou-se da filha). Quem sabe se vocês ficassem amigos,

talvez você finalmente se apaixonasse por alguém.

Afar abismou-se;

- Mamãe! Até mesmo a senhora sabe que o imperador é um

homem de relacionamentos superficiais. Eu jamais poderia me

apaixonar por alguém tão desprezível. Vocês dois falam como

se não soubessem da vida promiscua que ele leva dentro e fora

do seu palácio.

Sosso

- Como pode saber se não são apenas boatos? Niani fica longe

demais para que alguma notícia verdadeiramente chegue aqui.

Alguém bateu à porta e Sosso permitiu que a abrissem,

Musa entrou calmamente.

Sosso

- Mansa!? Há quanto tempo está aí?

Musa

- Desde o momento em que o senhor concluiu pelo meu olhar

que eu gostei da sua filha, Afar.

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Sosso

- Eu peço des...

Musa o interrompeu;

- O que eu devo constatar que foi uma observação bem

arguciosa, uma vez que é verdade.

Farrima

- Nós não desejávamos falar tudo que fora dito. Afar só está

nervosa com tudo isso. Na verdade, não acreditamos nesses

absurdos que são espalhados sobre o senhor.

Musa

- Mas deveriam. É a mais pura verdade. Creio que eu realmente

seja um homem superficial, desprezível e promíscuo. Como

sabem, desde o meu nascimento as coisas me são facilmente

ofertadas. Assim como o general fizera com Afar. E sei que não

poderia ser de outra maneira, eu me deixei levar por todo esse

universo de facilidades, festejos e belas mulheres. Ah! Sim! Se

eu possuo uma fraqueza, essa sem dúvida nenhuma é uma delas.

Todavia, creio que não devam saber a verdadeira razão de eu

fazer uma viagem tão longa. É que estranhamente nos últimos

meses, nada dessa maravilhosa vida como imperador, nem as

festas, as facilidades, ou as lindas mulheres que posso ter

quando e como quiser, tem me intrigado o suficiente para que a

felicidade permaneça em mim. (Seu olhar ficou vago). Nem

mesmo meu casamento, matrimônio este que concordei por livre

e espontânea vontade, consegue me convencer da alegria que eu

deveria sentir por ser tão abençoado. Sunieri não pode ter filhos,

e talvez... Digo, certamente, nossa relação está limitada as doces

satisfações que meu poder pode realizar, contudo, ter uma

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criança, esse poder eu não tenho. E talvez tenha sido esse ponto

que fez com que primeiramente eu tenha sentido muita raiva de

tudo, eu só não sabia que sentia tanta raiva. Por ser fútil, sempre

achei que bastava eu querer para ter. Agora percebo que existem

porquês que não podem ser respondidos, simplesmente porque

não compreenderíamos a resposta. De qualquer forma,

finalmente estou a conhecer Tombuctu. (Musa olhou para Afar).

E reservo-me na esperança de um futuro melhor, onde sei que

poderei ser um homem melhor. Por hora, só vim pedir um

mensageiro. Keita, que viaja conosco está doente e não desejo

sobrecarregá-lo com a estrada, senão poderá correr o risco de

nem mesmo chegar ao destino.

Sosso

- Sim, é claro! Irei fazer com que providenciem.

Musa retornou aos seus aposentos, sentiu-se bem depois

de todo aquele discurso, qual mesmo fora um desabafo. Coisa

que raramente fazia era falar de si mesmo para estranhos, porém,

por algum motivo ficou confortável naquela sala entre aquelas

pessoas. Não estava determinado em conquistar Afar, apenas

não podia deixar de assumir que a beleza da moça chamara sua

atenção, mas ele sabia que este não era mais o seu objetivo.

Após aquele constrangedor momento no gabinete de seu

pai, Afar reavaliou seus julgamentos sobre o mansa. Quem sabe

os boatos fossem realmente fantasias da imaginação popular,

pois, aquele homem que ali estava não parecia ser tão superficial

e degenerado, aproximava-se mais de alguém que sofria muito e

que tentava enganar-se disso com as supérfluas distrações de sua

vida poderosa. Afar entendeu que Musa era apenas uma pessoa

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que estava perdida entre a estrada das ilusões e a do que ele

realmente desejava viver.

Os festejos seguiram com extrema alegria e exuberância,

toda a família de Sosso deveria estar presente, mas Afar deixara

de obedecer a seu pai havia muito tempo. Não pode deixar de

notar que algo a incomodava bem no centro do peito, um

desconforto que não permitia que organizasse seus pensamentos,

e ela pensava em Guma. Por algum motivo, ele voltara

fortemente do fundo de suas memórias para lhe assombrar. Por

muitos anos ela quis acreditar que o rapaz poderia reaparecer em

algum momento para levá-la para longe, onde pudessem viver

seu amor, e por este motivo Afar nunca se permitiu sequer

acreditar que poderia amar alguém novamente, pois o esperava.

Mas quando finalmente decidiu acreditar que nunca mais o

veria, que ele poderia verdadeiramente estar morto ou

escravizado, a jovem perdera o brilho que tinha em seu olhar, e

todos podiam ver que apesar da grande família que tinha, das

pessoas queridas que conhecia, ela estava mergulhada em sua

solidão. Seu pai acreditou que seria mais fácil fingir que não

percebia a tristeza da filha, e por sua vez, a bela menina

mantinha-se aparentemente normal, pois talvez nem mesmo ela

soubesse o quanto sofria.

Hanaman, a mãe de Guma, que continuara a prestar seus

serviços no palácio, entrou no quarto procurando por Afar, e a

avistou recostada sobre a janela com os olhos fixos no nada a

sua frente.

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Hanaman

- Menina Afar!? O que ainda faz aqui? Sua mãe mandou que eu

a chamasse. Todos estão comemorando a vinda do Mansa.

Afar olhou para a gentil serva;

- Hanaman, não estou para festejos essa noite.

Hanaman aproximou-se;

- Mas você está tão linda. Tenho certeza que o mansa ficará

admirado com tanta beleza. (Houve um silêncio).

Afar

- Você ainda pensa nele?

Hanaman percebeu que a menina falava de Guma, seus

olhos miraram o chão na tentativa de disfarçar a tristeza, o

sorriso murchou, mas seu semblante estava em paz. Ela se

aproximou calmamente com um pano que dobrava em sua mão.

Hanaman

- Todos os dias.

Afar

- E como faz para suportar? Você parece estar tão bem. Todos

estão bem, como se Guma nunca tivesse existido. Como se não

sentissem a falta dele.

Hanaman deu um leve sorriso;

- Mas eles não sentem. Apenas nós que o amamos é que

sentimos, querida. A única coisa que posso fazer é continuar

vivendo. Sei que Guma não gostaria de me ver triste. Também

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sei que ele a amava o suficiente para não querer que você

deixasse de tentar ser feliz.

Afar

- Sim, é verdade, mas não posso evitar. Tenho passado todos

esses anos tentando esquecê-lo, mas não consigo. Quando passo

pelos corredores lembro-me de como corríamos brincando de

pega. Quando vou ao rio, quando passeio pelas ruas, quando

estou nos jardins... Ele está em todos os lugares desta maldita

cidade! E por mais que não esteja aqui, ele ainda está comigo,

está em mim! É insuportável porque estou tentando viver sem

ele, mas não posso, porque ele vive em mim.

Hanaman

- Então por que não desiste de tentar esquecê-lo e simplesmente

lembre-se dele sem o sofrimento de terem sido separados?

Afar

- Eu não consigo! Não consigo parar de sentir raiva por ele não

ter lutado por nós dois!

Hanaman

- Mas como ele faria isso, querida? Guma era só um rapaz, sem

casta, sem condições de te proporcionar o que você passou a

vida inteira tendo.

Afar

- Eu poderia eternamente viver na miséria ao lado dele, e ainda

estaria feliz. Do que adianta tudo isso, se sou infeliz?

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Hanaman sorriu;

- Ah, Afar! Você ainda é tão romântica.

Afar

- De qualquer forma, estou cansada. Cansada de amá-lo e de

odiá-lo. Cansada do meu pai e deste lugar infernal. Cansada de

ainda esperar, de ainda ter esperanças. Eu só queria poder

esquecer tudo isso.

Hanaman

- Eu creio que chegou o momento que você deve se permitir

ouvir o seu coração. Não tem problema se apaixonar por outra

pessoa, sei que Guma iria querer que você fosse amada e que se

permitisse ser feliz.

Afar encarou a leal amiga e lágrimas escorreram de seus olhos;

- Eu sei! Só não quero que ele suma da minha memória! Sei que

sempre irei amá-lo, mas não posso continuar assim! Sinto como

se estivesse morrendo! Não sei o que fazer!

Hanaman a abraçou;

- Querida, isso você terá que descobrir sozinha. Guma estará

sempre em nossos corações, e sempre estaremos no dele onde

quer que ele esteja, mas você deve seguir com a sua vida, e se a

felicidade está tão perto, não permita que ela se vá novamente.

Não tem problema em você ser feliz com outra pessoa.

Afar enxugou as lágrimas;

- Está bem. Você está certa.

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Afar secou o rosto banhado de lágrimas, e ao cruzar

aquelas portas, sentiu-se aliviada, estava determinada em seguir

com a vida após tanto tempo. Quando adentrou ao salão onde

era celebrada a vinda do mansa, seus olhos se encontraram com

os dele, ela sorriu discretamente, e Musa logo percebeu que algo

havia mudado.

O gigantesco cômodo estava perfeitamente ornamentado

para uma celebração tão importante. Sosso não mediu esforços

para ostentar sua riqueza e bom gosto. Chamara ele os melhores

músicos da região, e o perfeito e contagiante som dos

instrumentos que lembravam os atabaques, dominavam a

energia do local com alegria e agitação. As batidas ritmadas

fizeram com que Afar dançasse com seu querido pai e com mais

três bonitos homens, os quais respeitosamente demonstravam

sua fascinação por ela. Musa simplesmente a observava, não

conseguindo evitar que seus olhos reparassem em outra coisa

que não fosse os perfeitos movimentos que ela fazia com os

braços e todo o corpo. Inesperadamente ele se levantou no ritmo

daquela maravilhosa batida frenética e daquele canto harmônico,

e pôs-se a dançar indo até a jovem. Os dois se divertiram, e o

imperador pode então conhecer o belo sorriso de sua anfitriã.

Após alguns minutos, Afar gentilmente lhe pediu licença, pois

que precisava tomar um pouco de ar. Enquanto a jovem olhava

para as estrelas e se sentava no beiral da fonte de um dos belos

jardins, Musa aproximou-se intrigado.

Musa ofegante perguntou em tom descontraído:

- Pode me dizer onde foi parar a moça bonita, mal criada e

rabugenta que me acha um degenerado? (Ele se sentou ao lado

dela).

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Afar sorriu;

- Me desculpe por isso. Eu estava com raiva do meu pai.

Musa

- Parece ser um bom homem, que sabe como receber seu

imperador.

Afar

- É que há muito tempo não comemoramos nada desta forma.

Meu pai na verdade é um tanto conservador, contudo, tem se

esforçado para fazer as pazes comigo. E esta festa, talvez seja

mais para mim do que para o grande mansa!

Musa

- Seria indiscrição perguntar o que ele fez?

Afar respirou fundo;

- Não, mas não desejo mais falar sobre isso. Apenas é algo que

estou tentando deixar no passado. (Musa balançou a cabeça

demonstrando compreensão). Creio que tenho me enganado

sobre você, as coisas que disse mais cedo foram... Reveladoras.

Sinto muito por seu casamento.

Musa

- Eu também sinto. Mas também é algo que não desejo falar, não

esta noite sob as estrelas com você aqui ao meu lado e de bom

humor.

Afar sorriu e se levantou;

- Quer conhecer um lugar especial?

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Musa também se levantou;

- Sim! Mas deverá ficar para depois. Amanhã bem cedo seu pai

irá me levar para visitar as fazendas de algodão e desejo estar

bem disposto.

Afar

- Está bem. Também irei me retirar. (Ela caminhou para trás).

Está ficando tarde.

Musa

- Ainda não aprendi o caminho até meus aposentos, preciso

chamar um servo para me ajudar.

Afar

- Posso ajudá-lo, se assim desejar. Meu quarto fica na ala em

frente a sua.

Musa

- Sem dúvida seria uma companhia mais agradável, mas temo

que possam pensar coisas impróprias. Não se preocupe, eu

mesmo chamarei um de meus servos.

Afar sorriu timidamente;

- Está bem. Tenha uma boa noite. (Musa a cumprimentou com

um aceno de cabeça).

Musa conseguiu achar o caminho até seu quarto, e ao

olhar pela janela, reparou que do outro lado uma luz iluminava

um cômodo, presumiu que aquele fosse o quarto de Afar. Não

sabia ele que se sentiria tão ansioso por ver alguma sombra que

lembrasse a jovem. Contudo, sabia que precisava domar seus

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impulsos e emoções, para que assim não se precipitasse e

acabasse por cometer mais erros irreversíveis. Ele só não

conseguia evitar sentir todo aquele desejo de logo estar com

Afar novamente.

Como prometido por Sosso, após seus rituais religiosos,

bem cedo o imperador colocou-se a disposição para visitar as

plantações de algodão. O império Mali tornara-se rico e

suntuoso, principalmente por ser um importante centro

comercial, ampliando sua rede de poder e domínio sobre outros

reinos da África. Todavia, Musa se esforçava para focar seus

pensamentos em tudo que Sosso lhe dizia. Na volta para o

palácio o imperador não conseguia mais esconder sua

curiosidade.

Musa

- Ontem a noite, eu e Afar conversamos brevemente, e ela me

disse que vocês precisavam fazer as pazes. Fiquei curioso por

que um pai precisaria se desculpar com a sua própria filha.

Sosso

- Creio que esse seja um assunto um tanto íntimo e

demasiadamente complicado para falar assim, em um simples

passeio matinal. Mas sabendo que se interessa pelos assuntos de

Afar, devo revelar que minha filha fora muito apaixonada por

um rapaz, e logicamente ele fora por ela. Quando os dois vieram

a mim para revelar suas intensões de se unirem em matrimônio,

eu tive que ser contra e separá-los de uma vez por todas.

Musa

- Mas por qual motivo o senhor tomou essa decisão?

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Sosso

- O rapaz não tinha casta. Era simplesmente filho de um casal de

servos que trabalham para mim. Cometi o erro de permitir que

ele crescesse junto a Afar, e os dois se apaixonaram ainda

quando eram apenas duas crianças.

Musa

- Entendo.

Sosso

- Mas deve ficar surpreso se eu disser que já se passaram dez

anos.

Musa

- E Afar nunca o perdoou?

Sosso

- Não, até ontem.

Musa

- Explique-se.

Sosso

- Afar não dançava e sorria como ontem, desde seus dezesseis

anos, que fora quando eu os separei. Mas parece que sua vinda

mudou alguma coisa. Talvez ela tenha me perdoado

simplesmente.

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Musa

- Sinceramente espero poder ajudar de alguma forma. Afar é tão

jovem quanto eu, e creio que talvez eu possa compreendê-la,

mesmo sem saber verdadeiramente o que ela sente.

Sosso

- É uma pena que não ficará conosco por mais tempo. Quem

sabe poderiam se conhecer melhor.

Musa

- Poderia estender minha permanência em Tombuctu por mais

uma semana. Niani está sendo bem administrada, e não exige

minha presença.

Sosso

- Será um prazer tê-lo conosco o tempo que precisar.

Ao retornarem, Musa sentiu a ligeira vontade de

caminhar entre os harmoniosos jardins da residência. Dentro

daquele centro familiar, havia silêncio, pensou ele que talvez as

crianças ainda estivessem dormindo, pois que era possível ouvir

o canto dos pequenos pássaros. Uma brisa lhe acariciou a pele

trazendo o doce aroma das flores, e logo avistou Afar, que

aparentemente fazia o mesmo que ele. Ela sorriu ao vê-lo

distante, e ambos se aproximaram.

Afar

- Como foi a visita às fazendas?

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Musa respondeu sorridente;

- Mais interessante do que eu pude imaginar que seria. Na

verdade, o general concorda comigo que devo precisar ficar por

mais uma semana em Tombuctu. Há muitas coisas que eu

gostaria que ele me pusesse à par.

Afar sorriu;

- Isso seria muito bom.

Musa

- Na verdade, espero que possamos nos conhecer melhor durante

esse tempo. Pensei que talvez agora queira me mostrar o lugar

especial do qual falou na noite passada.

Afar

- Ficarei feliz em fazer, mas devo dizer que ele se torna especial

em determinado horário, justamente quando o sol está caindo e

as estrelas começando a aparecer.

Musa

- Então podemos combinar de nos encontrarmos aqui, e assim

poderá me levar até lá no momento certo.

Afar

- Está bem.

Musa precisou analisar alguns documentos naquele dia,

mas não parava de pensar no momento em que voltaria a ver

Afar, indo muitas vezes à janela verificar a posição do sol. Sua

viagem era apenas como uma expedição, mas não podia fugir

das obrigações que tinha enquanto mansa. Finalmente ele a

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encontrou, e se surpreendia por achar que cada vez que a via ela

parecia ainda mais bonita. Afar o levou até a beira do niger, e

lhe apresentou a beleza que seus olhos viam, uma vez que o

imperador já bem conhecia toda aquela paisagem, mas não

como os olhos de Afar enxergavam. Ela lhe falou sobre o céu

alaranjado, a magia do sol, e o encantamento das estrelas. O fez

reparar em como a abóboda celeste se fundia ao flúmen

tornando-se um só painel, o qual a fazia se sentir tão pequena

naquele mundo que era só seu, ao menos por aqueles minutos.

Discursou ainda, com encantamento e beleza, sobre os espíritos

do rio e da natureza, crença essa que aprendera quando criança

quando brincando de esconder, ouvia alguns dos escravos

conversando e rezando para aquelas entidades.

Musa estava apaixonado, as palavras de Afar fluíam com

tanta naturalidade, seus lábios se mexiam em perfeitos

movimentos como se dançassem uma valsa. A voz melodiosa e

feminina lhe despertava uma sensação de aconchego e

intimidade, todavia, a antes odiosa jovem, revelava-se uma

criatura doce e divertida. E quase sem perceber, eles

conversaram por horas sobre os mais diversos assuntos, e riram

de suas próprias bobagens e dos assuntos mais tolos. Por um

breve momento, Guma retornara às lembranças de Afar, e seu

semblante enrijeceu, Musa não pode deixar de reparar.

Musa

- Está pensando em alguém?

Afar fitou o horizonte;

- Apenas me veio à lembrança um velho amigo. É que

costumávamos fazer exatamente isso.

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Musa

- Sinto muito se eu a entristeci.

Afar aproximou-se dele;

- Não! De maneira nenhuma. É que há muitos anos que não me

sinto como estou me sentindo agora.

Musa

- E como está se sentindo?

Afar sorriu timidamente;

- Feliz.

Musa retribuiu ao sorriso;

- Fico aliviado em saber. Também não me sinto assim há

bastante tempo. Na verdade acho que eu nunca havia

experimentado esse tipo de sensação antes. (Ele se aproximou

dela). E confesso que te daria um beijo agora mesmo se não

acreditasse que você fosse me achar um aproveitador

degenerado.

Afar fitou aqueles olhos que transbordavam alegria e se

aproximou calmamente, possibilitando que seu corpo ficasse

bem próximo ao de Musa, todavia era possível perceber seu

nervosismo pela respiração que tentava controlar.

Afar

- Talvez se eu o beijasse não correríamos esse risco.

Musa sorriu;

- Certamente que não.

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Lentamente ela aproximou seus lábios do dele, e os uniu

em um longo beijo. Musa esforçava-se para se controlar, mas

em certo ponto, ele se esqueceu de quem era. Seus pensamentos

rodopiavam e todos os seus sentidos voltaram-se para o toque na

pele dela.

Naquela noite, eles retornaram ao palácio de Sosso e

cearam com toda a família que podia perceber os olhares que

trocavam.

No final daquela semana Musa precisava voltar aos

planos da viagem, todavia, as noites de namoro com Afar à beira

do niger lhe fizeram decidir por passar o resto do mês, e quando

o final daquele mês mostrou-se presente, o imperador mandou

breve missiva a Niani informando sobre a necessidade

administrativa de se permanecer na cidade de Tombuctu. Após

quatro meses de sua ausência na cidade imperial, Axar, seu

conselheiro e amigo íntimo, lhe respondeu a última missiva

informando que ele não deveria se ausentar por tanto tempo, e

que rumores já se espalhavam pelas ruas de Niani. Musa

somente respondeu dois meses depois, dizendo que confiava no

corpo suplementar que deixara em sua falta, e que Guma poderia

tomar as decisões que lhe coubessem, uma vez que estava frente

aos exércitos e era do seu círculo de pessoas que mais confiava.

Axar não se contentou com o descaso do mansa, escreveu-lhe

uma carta com insinuações de que muitas coisas aconteciam na

sua ausência, e que acreditava que o imperador deveria escolher

alguém mais imparcial para lhe substituir nas responsáveis

decisões imediatistas que se necessitava tomar, dizendo ainda,

que não deveria incumbir tarefas de alta responsabilidade, por

mera simpatia e predileções. A vaidade de Musa fora afetada por

aquelas palavras, e tão logo respondeu com outra carta dizendo

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que o conselheiro devia escolher melhor suas palavras para com

o seu soberano. Disse ainda que se fosse se preocupar com os

boatos sobre sua vida, certamente não poderia ser aquele que

chamam por mansa, pois que seu cargo lhe permitia tomar as

decisões que ele compreendesse e acreditasse serem melhor para

o povo e para o império, no mais, exigiu que não o

contestassem, e que suas ordens fossem cumpridas sem

queixumes e ciúmes tolos.

Por onze meses Musa permaneceu em Tombuctu, e no

décimo segundo mês, após Axar continuar lhe enviando

missivas exigindo sua presença, Musa se casou com Afar,

tornando-a sua segunda esposa em uma belíssima celebração na

mesquita que Sosso havia mandado construir. E para não haver

drama, informou por carta que estava a possuir uma segunda

legítima esposa, e que esta informação deveria ser divulgada a

todos da cidade imperial, até mesmo para a imperatriz, qual

deveria receber sua nova companheira com estima e respeito.

Era certo que o imperador necessitava retornar para Niani, haja

vista que estava consciente de ter extrapolado o tempo de sua

ausência. Então, no décimo terceiro mês, ele retornara à cidade

com sua mais nova esposa.

Afar nunca tinha feito uma viagem tão longa, só havia

conhecido Niani pelas pinturas que os artistas contratados por

seu pai, muitos deles árabes, retratavam em folhas de papiro

aquilo que suas memórias conseguiam lembrar. Quando avistou

a grandiosa cidade de construções monumentais e seus relevos,

sentiu o coração disparar. Niani era tão esplendorosa quanto os

minuciosos retratos pintados por aqueles talentosos homens. E

quando o comboio aproximou-se, o povo malinquê recebeu seu

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mansa e sua nova esposa com alegria e festividade. Musa estava

feliz por voltar, mas o cansaço e as preocupações surgidas a

partir das missivas de Axar, fizeram com que ele dispensasse as

receptivas comemorações. E fora o conselheiro quem

primeiramente o recebeu no palácio imperial. De prontidão, o

imperador designou um corpo de escravas que serviriam a Afar,

e com um carinhoso beijo lhe informou que seria melhor que ela

descansasse em seus aposentos antes dele lhe apresentar a quem

cabia. Compreensiva, a jovem esposa o obedeceu, permitindo-se

ser levada para a parte do palácio que lhe serviria como casa,

composta por uma majestosa sala de estar, duas deslumbrantes

varandas, uma lauta sala de banho, e uma deslumbrante suíte.

Guma encontrou Musa no caminho até a sala do trono,

deram um longo e forte abraço seguido da euforia de se

reencontrarem após tanto tempo. Mas não fora possível

abordarem nenhum outro assunto, assim que as portas do

cômodo real se abriram, Musa avistou Sunieri sentada em seu

acento ao lado do trono, estava belíssima como nunca deixara de

estar, e em seus braços segurava um bebê que aparentava seus

onze meses. O imperador pode perceber o nervosismo da

primeira esposa que lhe olhava fixamente aguardando qualquer

reação de sua parte, mas Musa não sabia o que pensar.

Rapidamente fez os cálculos do tempo que passara fora,

lembrando-se de que mesmo antes de viajar, ele e Sunieri já não

se encontravam em momentos íntimos. O silêncio o perturbou, e

houve um minuto em que ele olhou para Axar mostrando que só

agora compreendia sua preocupação. Em seguida virou-se para

Guma que estava do lado oposto do conselheiro, mas o

comandante abaixou a cabeça.

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Musa

- O que está acontecendo aqui?

Sunieri se levantou com a criança nos braços;

- Olá, querido! Viemos te dar as boas vindas!

Musa se aproximou;

- Isso é alguma brincadeira de mau gosto?

Axar

- Antes fosse, senhor.

Sunieri

- Não há nenhuma brincadeira, apenas eu e seu filho o

estávamos esperando. Eu expliquei a Axar que, enquanto

viajava pelas cidades vizinhas, nós nos encontrávamos nos

caminhos.

Musa franziu o sobrolho;

- Isso é ridículo! Eu... Eu não sei nem o que dizer Sunieri! Você

está louca? Essa criança jamais poderia ter sido concebida por

você.

Axar

- Devo informar senhor, que a imperatriz gestou a criança

durante o tempo devido, e consequentemente a concebeu através

do parto. Eu mesmo estava na sala.

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Sunieri entregou a criança a uma escrava;

- O que comprova que o motivo de nossos tormentos, onde você

me culpava por não poder te dar um filho, estava errado. Sou

perfeitamente capaz de fazê-lo, sou uma esposa completa.

Musa ficava nervoso;

- Isso é um absurdo! Sabemos que esse filho não é meu!

Axar

- Nós quatro sabemos. O povo acredita que a imperatriz o

encontrava durante a viagem. Assegurei que Sunieri não

aparecesse em público quando desconfiei do ocorrido e o senhor

ignorou meus chamados.

Musa olhou para Guma e partiu para cima dele;

- Foi você?! Foi você, Guma?! Eu confiei em você! Confiei na

sua amizade?!

Sunieri gritou;

- Não foi o Guma!

Musa parou de empurrar o amigo que não revidara;

- Então quem foi?! Diga-me quem foi e ele morrerá ainda hoje

pelas minhas mãos!

Axar

- Foi um viajante, senhor.

Musa encarou novamente o amigo que olhava para baixo;

- Por que sinto que estão conspirando contra mim?

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Guma

- Não existe conspiração, Musa. Apenas tentamos assegurar que

não se promovesse um escândalo onde o governo pudesse ser

abalado.

Musa

- E qual foi o seu real papel nisso?

Axar

- Sabendo que Guma era de sua inteira confiança, pedi a ele que

cassasse o culpado dessa traição. Sabia que o senhor desejaria

fazer justiça com as próprias mãos. Contudo, mesmo o

comandante esgotando seus esforços, não fora possível, o infeliz

escapou.

Sunieri aproximou-se de Musa;

- Veja pelo lado bom, querido. Agora seu reino pode dizer que

tem um herdeiro, e não sofrerá mais ameaças por causa disso.

Musa empurrou abruptamente a mão de Sunieri que lhe tocava

no braço;

- Não me toque! Eu não tenho um herdeiro! Esse filho não é

meu! E você será julgada por traição.

Sunieri

- E um escândalo irá se espalhar por todas as cidades do seu

império, e logo outros reinos saberão, e seus soberanos pensarão

que o Mansa é fraco e impotente, então eles acharão que podem

tomar o seu poder. Niani entrará em guerra...

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Musa gritou;

- Chega! (Ele olhou para Guma).

Guma

- Sunieri tem razão. Todo nosso esforço foi para que justamente

a força e virilidade do Mansa não viesse cair em dúvida ou

descrédito. Não sabemos como isso pode repercutir.

Musa

- E o fato de eu ter me casado novamente? De ter uma linda e

maravilhosa esposa? Isso não conta? (Ele se virou para Sunieri).

Pois eu me livrarei de você e dessa criança bastarda ainda essa

semana, nem que eu a condene a viver aprisionada nas alas dos

escravos.

Axar

- O fato do senhor ter se casado novamente é muito positivo,

quanto mais esposas tiver mais sua força e virilidade são

reafirmadas. Mas o senhor esteve ausente por muito tempo, não

aconselho um escândalo ou qualquer suspeita nesse momento.

Estamos fragilizados e precisamos conquistar a tranquilidade do

povo.

Guma

- Ganhamos muitos territórios enquanto esteve fora, mas

também fomos atacados mais frequentemente.

Musa

- Mas isso é inacreditável! Estão me dizendo que essa mulher

me traiu, teve um filho de outro homem, e mesmo eu sendo seu

senhor não posso fazer nada para puni-la?

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Axar

- O senhor pode puni-la como desejar, só não podemos permitir

que o povo saiba e que a notícia se espalhe. Na verdade, todos

acreditam que o filho é seu, pois a Imperatriz veiculou a notícia

o quanto antes.

Musa caminhou de um lado para o outro, passou um das

mãos sobre a testa que fervilhava em mil pensamentos confusos

de vingança e ódio. O velho homem que ainda o habitava, não

conseguia se controlar mediante tal provação. Ele queria segurar

o pescoço de Sunieri e apertar até que ela parasse de respirar.

Musa

- Se descobrirem que tudo isso aconteceu e eu não fiz nada, serei

visto como fraco da mesma maneira.

Axar

- Eu posso assegurar que ninguém além de nós, sabe a verdade.

Para todos os efeitos, o senhor e a imperatriz receberam a graça

de Alá. O povo está feliz.

Musa caminhou até Sunieri;

- Eu vou te odiar pelo resto da minha vida por isso. Não por ser

a mulher imunda que me traiu com um forasteiro, mas por não

poder te matar.

Lágrimas caíram do rosto da jovem mãe. Sunieri sabia

que a partir daquele dia, não receberia as regalias das quais

estava acostumada, viveria como imperatriz para o povo, mas

como um fantasma para seu marido, se havia alguma esperança

em voltarem a se amar como antes, seu erro arruinara tudo. Ela

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se retirou da sala sem mais nada dizer. Musa sentou-se em seu

trono, os olhos guardavam rancor e certa suspeita. A história que

Axar contava e Guma reafirmava não lhe parecia tão

contundente.

Fora quase em seguida que as portas se abriram para

Afar, que fora conduzida por uma serva até onde Musa se

encontrava. Ela entrou sorridente, com seu semblante reluzente

e entusiasmado, precipitava-se em dizer algo insinuando que não

estava cansada e que desejava que Musa lhe mostrasse o

encantador palácio, porém, logo seu semblante mudou e a face

endureceu, o coração disparou fazendo com que a forte

adrenalina tomasse todo o seu corpo, possibilitando que ela

sentisse algo como um grande choque sobre seus nervos.

Percebera ela que o forte homem que estava de pé ao lado de

Musa era em demasia muito parecido com as lembranças que

tinha de Guma. E ao encará-lo e perceber em seus olhos tanta

surpresa e espanto quanto ela, pode quase afirmar que via o

fantasma do seu velho amor, bem ali, na sua frente.

Musa percebeu que a esposa cambaleou e logo se

prontificou em ir ampará-la.

Musa

- Afar! Mas o que houve?

Afar tentou tirar os olhos do comandante;

- Eu não sei! Talvez eu esteja realmente muito cansada e não

tenha percebido. Creio mesmo que estou até vendo coisas.

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Musa a conduziu para apresentá-la;

- Agora que está aqui, desejo que conheça Axar, meu

conselheiro mais confiável.

Axar a cumprimentou devidamente;

- Senhora.

Musa

- E este é Guma, nosso comandante, e também um grande amigo

meu.

No instante em que Afar ouviu o nome de Guma, ela

teve absoluta certeza que era ele quem realmente estava ali, a

menos de dois passos dela. Ele, quem a jovem tanto procurou,

tanto esperou, e tanto sofreu por pensar estar morto. Guma não

conseguia falar, fez respeitoso gesto com a cabeça, seus olhos

reconheceram os olhos de Afar, e ela pode perceber que ele

também sabia quem era ela.

Axar

- Com devido respeito, o Mansa não nos contou que estava a se

casar com uma beldade das margens do niger.

Afar pronunciou sem pensar;

- Tombuctu! Meu pai, o general Sosso, governa a província.

Musa sorriu;

- Pois quem diria que tão longe de casa eu acharia uma gema tão

preciosa como Afar. Ela iluminou minhas noites com o sol que

brilha em seu coração. Agora você entende porque tive que me

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ausentar por tanto tempo. Não podia eu voltar sem minha Afar.

(Ele passou o braço por sua cintura). Mas o que veio mesmo me

dizer?

Afar

- Não se preocupe, posso pedir para que um escravo me

apresente o palácio. Ele é tão colossal que creio ser mesmo

demorado o passeio.

Musa

- Sinto não poder satisfazê-la nesse momento, mas é que cheguei

e já me cercam grandes problemas para pensar e resolver com

Axar. Talvez Guma possa lhe apresentar, ele conhece este lugar

como ninguém.

Guma

- Não! Não posso! (Musa estranhou a negativa do amigo). É que

Zaila me espera com as crianças e...

Afar

- Zaila? Que nome bonito.

Musa

- Ah! Sim! Vocês irão se conhecer em breve! Zaila é esposa de

Guma e tenho certeza que poderão ser amigas.

Afar esforçava-se para sorrir;

- E o senhor tem filhos?

Guma respondeu sem conseguir encará-la nos olhos;

- Sim. Tenho dois. Uma menina e um menino.

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Afar

- Em breve espero poder ter os meus também. (Ela aproximou-

se de Musa). Digo, os nossos.

Musa

- Tenho certeza que Alá não nos furtará de tal felicidade.

Afar

- Foi um prazer conhecê-los. Talvez seja melhor que a visita seja

feita outra hora... (Ela virou-se para Musa). Quando finalmente

puder me acompanhar. Sei que com nenhuma outra pessoa será

tão agradável quanto passar o meu tempo com você.

Guma pareceu mudar de ideia, talvez fosse melhor

esclarecer logo as coisas para Afar. Explicar por que ele nunca a

procurou, os motivos que o levaram a se manter longe de

Tombuctu, mesmo após sua ascensão. Dizer que jamais teria se

casado com outra sabendo que Afar ainda poderia ser sua.

Guma

- Então, talvez eu possa levá-la até seus aposentos.

Afar

- Tenho certeza que estou segura. Gambini, minha serva, poderá

me conduzir.

Musa

- Afar tem o ligeiro costume de ser um tanto rebelde com

desconhecidos. Eu mesmo levei um tempo para lhe conquistar a

confiança. (Ele virou-se para ela). Sei que pode permitir que

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Guma demonstre sua estima servindo-a como seu guia neste

momento.

Afar deu um ligeiro sorriso;

- Como meu marido quiser.

Guma pôs-se a andar na frente. Afar observou seu

caminhar, o mesmo de anos atrás do jovial menino que ela

seguia por todos os cantos onde quer que ele fosse. Não sabia o

porquê mais estava enfurecida, esforçando-se ao máximo para

não gritar e bater naquele homem, que agora se fazia ainda mais

belo que antes. E ao chegarem nos aposentos da segunda esposa,

Guma tomou a ousada atitude de permitir que Afar entrasse,

entrando com ela em seguida e fechando a porta. Afar só

conseguiu se virar com todo ódio que sentia e mesmo sem

querer e nem perceber, havia lágrimas no seu rosto.

Afar

- Eu te odeio! Odeio! Odeio tanto! Não acredito que esperei todo

esse tempo, Guma!

Guma aproximou-se dela e lhe segurou os braços que tentavam

bater nele;

- Eu posso explicar, Afar! Me deixe explicar! Pare de tentar me

bater, é inútil! Temos pouco tempo!

Afar se afastou desvencilhando-se de suas mãos abruptamente,

o ar lhe faltava;

- Eu não quero ouvir nada! Não agora, depois de todos esses

anos!

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Guma tentava manter-se calmo;

- Mas você precisa saber.

Afar parou e o encarou;

- Saber o quê? Que foi fácil pra você me esquecer e se casar com

outra? Você teve filhos!!! Filhos, Guma!!!

Guma se aproximou;

- Fale baixo! Musa não sabe de nada. Nunca contei sobre você

pra ninguém, e percebo que não contou de mim.

Afar acalmava-se;

- Não o suficiente.

Guma

- Seu pai me mandou para cá...

Afar

- Eu sei da culpa do meu pai, mas também sei que você não

lutou por nós. Agora entendo por quê?

Guma

- Eu não planejei nada disso! Fui mandado para cá para servir

senhores de menor poder que eu atualmente possuo.

Praticamente fui forçado a me casar para que me firmasse como

homem livre, onde não preciso obedecer ninguém além de

Musa, mesmo porque é mais a sua amizade que me reserva tal

poder que qualquer outro motivo. Mas sou livre e aprisionado ao

mesmo tempo, porque nunca deixei de te amar, mesmo quando

tentava te esquecer.

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Afar

- Deve ser um verdadeiro sofrimento, por isso teve dois filhos.

Guma

- Deveria me entender, está casada com Musa.

Afar irritou-se novamente;

- Ah! Não ouse! Eu desperdicei todos esses anos da minha vida

esperando que você voltasse e me levasse com você. Eu ia todas

as tardes ao níger pedir aos espíritos do rio que trouxessem você

de volta pra mim. Eu chorei noites e dias inteiros acreditando

que você estava morto, e por fim, tornei-me uma mulher amarga

e odienta que nunca se permitiu amar outra pessoa além de você.

Guma falou após longo silêncio;

- Parece que agora, você e Musa... Você o ama? Porque para

mim o que importa é que você esteja feliz, como eu nunca

poderei ser.

Afar o fitou com seu olhar melancólico;

- Eu o amo. (Guma abaixou sua cabeça). De um jeito que jamais

será como eu amei você.

Guma

- Musa é meu amigo, talvez o único que eu tenha. E desejo sua

felicidade mais que a minha. Sou um homem poderoso e rico

agora, se você tivesse se casado com qualquer outra pessoa, eu

certamente a roubaria para mim, a faria minha esposa, e a

amaria todos os dias e noites do resto da minha vida, porque não

houve um minuto sequer, ou uma única mulher que tive, que eu

não tenha te procurado na sede de afogar todo esse amor que eu

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nunca deixei de sentir por você, Afar. Mas parece que o destino

insiste em nos separar, e sinto que mesmo em vidas passadas,

fui, e sou compelido a viver com você sem poder te ter.

(Lágrimas caíram sobre a face de Guma). Eu não sei que odioso

pecado foi esse que pratiquei para um castigo tão tormentoso,

mas sei que devo tentar obedecer à vontade maior.

Afar num impulso abraçou Guma;

- Eu não acredito que você está vivo! Que está aqui bem na

minha frente! (Ela acariciou seu rosto). Que posso finalmente te

tocar.

Guma sobrepôs uma de suas mãos sobre a dela, seus

dedos se entrelaçaram e se seguraram fortemente, os olhos

fechados para sentir melhor o toque não permitiram que ele

mantivesse o raciocínio claro, e quando deu por si, estava

beijando Afar com a força e a vontade reprimida de todos

aqueles longos anos. Porém, o quanto antes e logo, o

comandante se afastou recriminando-se por sua falta de controle

em trair o amigo.

Guma

- Eu devo me retirar. Isso não está correto.

Afar

- Por favor, fique. Preciso saber sobre a sua vida depois de todos

esses anos.

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Guma a olhou nos olhos;

- Tudo que precisava saber eu já disse. Preciso ir agora, Musa

chegará logo para vê-la. Depois das notícias que recebeu, sei

que está ansioso para estar com você. (Guma se retirou).

Afar

- Guma! Não vá!

A porta se fechou, e novamente Afar pode sentir aquela

velha sensação amarga de não poder segui-lo onde quer que ele

fosse. Estranhamente também sentia raiva daquelas amarras

invisíveis que lhe seguravam e apertavam o coração, não

possibilitando que sua alegria por saber que Guma estava vivo, e

que igualmente passara todos esses anos a amando, fosse

completa. Fechou os olhos pela confusão que lhe embaralhava

os pensamentos, e o gosto do doce beijo do antigo amor lhe

arrancou um sincero sorriso. Ela passou os dedos sobre os lábios

e Musa lhe veio à mente causando nova perturbação, pois que se

casou acreditando amá-lo, e verdadeiramente o amava, mas não

conseguia evitar a explosão da enorme paixão que Guma ainda

despertava em seu peito.

Por sua vez, Guma parecia ainda mais perturbado que

Afar. Sempre sorridente e comunicativo, o povo lhe tinha

estima, e mesmo possuindo alguns inimigos invejosos, na sua

maioria não havia quem não lhe fosse amigo, ou não lhe

cumprimentasse ao vê-lo por suas andanças nas ruas de Niani.

No caminho até sua casa, encontrara Raja, qual já havia se

mudado, por influenciação do amante, para uma melhor

residência próxima ao palácio. Acostumada a não precisar se

conter frente aos demais, uma vez que Guma não fizera esforços

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para esconder seu relacionamento extraconjugal, o que também

despertava os mais inflamados boatos sobre o devasso e

intocável amigo do Mansa, Raja tentou lhe abraçar, mas logo

fora impedida pelo próprio moço que lhe segurou os braços

repreendendo-a.

Raja

- Oras! O que foi? Um bicho peçonhento o mordeu?

Guma olhava para as varandas do palácio como se procurasse

por alguém;

- Claro que não! Já falei que essas demonstrações de afeto em

público incomodam minha esposa.

Raja

- Você falou, mas nunca me recriminou! E desde quando se

importa tanto com ela assim?

Guma deixava aparente seu incomodo;

- Desde que me casei com ela. Como se sentiria se fosse com

você?

Raja emburrou-se;

- O que está acontecendo, Guma? Está estranho desde que

recebera o Mansa.

Guma olhou para ela e a acariciou no braço enquanto respirava

fundo;

- Desculpe-me, não é nada. Apenas tenho muitos problemas para

discutir e resolver com Musa, mas ele está impedido.

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Raja

- Deve estar distraído com a nova esposa. Ouvi dizer que sua

beleza é surpreendente, que o Mansa só tem olhos para ela.

Guma

- Certamente que sim.

Raja

- Você a viu?

Guma

- Brevemente.

Raja

- E é verdade o que dizem?

Guma

- Poderá ver com seus próprios olhos na celebração que se dará

daqui a cinco dias.

Raja

- Pelo o que conheço dos homens, não está querendo assumir

para mim que também se encantou com sua beleza.

Guma

- Por que me encantaria com a dela se tenho a sua?

Raja sorriu;

- Falou com Musa sobre me tornar sua segunda esposa?

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Guma

- Raja, Musa está ocupado com outras coisas. E aqui não é lugar

para falarmos sobre esse assunto. Sabe que já existem muito

comentários sobre nós.

Raja olhou para ele com afeto;

- Está bem, você tem razão. Mas o quanto antes me tornar sua

esposa, esses comentários cessarão. Vou esperá-lo esta noite

como sempre, não se atrase.

Guma concordou se despedindo breve e friamente, pôs-

se a caminhar para sua casa sem nem mesmo olhar para os

lados. O corpo de aparência forte e sagaz lhe trazia uma

sensação de fraqueza e insegurança, como se não pudesse

controlá-lo e a qualquer momento seus joelhos pudessem lhe

faltar e ele cair sobre o chão. Zaila estranhou o atormentado

semblante do marido e lhe aconselhou que tirasse à tarde de

descanso, ofertando-lhe frutas e chás curativos, disponibilizando

ainda o colo reparador cheio de carinho e cuidados após ordenar

que as criadas ficassem com as crianças, para que assim, não

perturbassem o pai. A sábia esposa não lhe fizera nenhuma

pergunta, apenas comentou com o marido que as batalhas

cominadas às noites mal dormidas, não permitiam que ele

recuperasse suas forças, e que agora que a juventude passava, as

mesmas começavam a faltar. Guma concordava com tudo e não

se abstinha a nada, todavia sabia que o mal repentino que se

sobrepusera, era o fato de seu doloroso passado estar de volta a

sua vida, e além disso, descobrira que o amor que sentia por

Afar quando ainda era só um garoto, estava mais vivo que

nunca, e todos os mínimos impulsos nervosos de seu corpo,

desejavam lhe conduzir até ela, segurá-la no colo e levá-la para

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longe dali, onde ela poderia ser sua e ele poderia ser dela. O que

Guma não sabia, é que as ideias que insistiam em impregnar sua

mente, eram também reminiscências de vidas anteriores, onde

ele e Afar já haviam praticado o adultério e abandono de seus

dedicados cônjuges e lares, partindo os mesmos corações que

agora lhe eram novamente destinados a amar, que por lei de

causa e de efeito, e a lei maior de reparação, viam-se

enfrentando o mesmo paradigma que há tantas vidas se repetia

não lhes possibilitando o progresso. Guma logo estava enfermo

e altíssima febre lhe possuiu o corpo de músculos claramente

aparentes. Os delírios lhe tomaram a mente, delírios esses que

nada mais eram que as cenas do seu delituoso passado, onde ele,

por cobiça e ciúmes, seduzira a mulher do irmão mais novo,

roubando-lhe a felicidade do lar. Essa mulher que na atual

existência chamou-se Afar, e o irmão que agora era seu melhor

amigo, Musa, concordaram na reparação da dívida, onde o

desafio se repetiria. E por justiça, não foi permitido que Guma

esquecesse ainda que também abandonara dedicada esposa e os

filhinhos que órfãs ficaram de pai, e também de mãe, uma vez

que em seu passado, Zaila definhou até a morte por desgosto e

por lhe faltar condições de manter-se sem o marido, vindo a

separar os irmãos que tiveram uma vida amargurada e trágica.

Ouvia-se os aterrorizantes gritos do forte timbre de

Guma por todo o entorno de sua enorme casa. Foram

necessários dez escravos bem dispostos na tentativa de conter a

ira do comandante que entrara em profundo transe, onde se

contorcia e se batia na desesperadora luta com a sua própria

consciência. Nunca ouviu-se um homem bramir tão

desesperador choro, pois que Guma também presenciava o

suicídio do irmão que desprezado pela amada esposa, traído pelo

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adorado irmão, vingou-se jogando sobre eles a culpa de toda sua

desgraça. O comandante ainda urrava desesperadamente, a face

rubra permitia a visão das veias sobressalentes que saltavam da

garganta que implorava por misericórdia. Guma via a tão amada

mulher, que por fraqueza roubara de seu irmão, também tirar a

própria vida, outrossim, ela não suportara a culpa de ter

desgraçado o marido traído, e a loucura de sua paixão por quem

Guma fora, a fizera acreditar que ele a traía, o que também fora

verdade, uma vez que passando por complicada situação

financeira após toda a tragédia familiar, Guma viu-se obrigado a

corresponder os flertes de uma distinta moça que usava seu

poder e dinheiro para atraí-lo até sua libertina cama, esta moça

era Raja, deixando o relacionamento com Afar em aterrador

colapso, o que a conduziu ao suicídio passional. Dilacerado pela

perda dos entes que mais amava e pela precária situação, Guma

também desistiu da vida acreditando que poderia reencontrar

Afar no mundo dos mortos, mas ele apenas encontrou a

repetição das cenas narradas, onde morava a dor da sua

usurpadora consciência. E assim se torturou anos após anos e

anos, onde pode até mesmo esquecer-se de quem era e por que

sofria, até que recebera ajuda de uma luminosa silhueta, a qual

lhe trouxera o refrigério da esperança na reparação de suas

faltas, qual lhe fora a esposa desprezada e novamente lhe

prometia ser dedicada esposa na vida que programavam, esta era

Zaila.

A face de Guma, banhada em suor e choro, acalmava-se,

e lá estava Zaila a lhe limpar a fronte, exatamente como

prometera antes de retornar ao vaso da vida terrena. Ela esperou

que ele adormecesse, e ainda assim, ficou perto a segurar sua

mão. O comandante abriu os olhos na tarde do dia seguinte,

todas aquelas dolorosas lembranças lhe exigiram muito de seus

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fluidos, e o corpo ainda estava como se acabasse de voltar de

longa e estarrecedora batalha.

Guma tentava se erguer;

- O que aconteceu?

Zaila

- Querido! Não se levante! Ainda está fraco.

Guma sentou-se;

- Eu estou bem.

Zaila

- Não se lembra de nada do que aconteceu?

Guma

- Lembro-me de sentir forte agonia no peito e uma dor imensa

na cabeça, como se tivesse caído sobre pedras de um lugar bem

alto. (Ele pôs uma das mãos sobre o crânio). Na verdade ainda

posso sentir. Parece que minha mente foi estilhaçada, quebrada

em mil pedaços. Me esforço, mas ainda não consigo organizar

os pensamentos.

Zaila

- Deve ficar de repouso por hoje. Pode deixar, eu irei mandar

uma criada avisar ao Mansa sua situação.

Guma

- Musa! Musa se casou! Ele se casou com Afar.

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Zaila

- Sim, dizem que esse é o nome da segunda esposa.

Guma encarou a mulher;

- Zaila, preciso te contar uma coisa.

Zaila

- Estou aqui por você, querido! Pode me contar o que quiser.

Guma

- Sabe a mulher que amei por toda a minha vida, mas nunca

pude ter?

Zaila

- Aquela que sempre evita falar?

Guma

- Essa mesma. Eu a reencontrei ontem no Palácio.

Zaila obscureceu o semblante;

- Guma, não me diga que...

Guma

- Sim! Afar se casou com Musa, meu único e melhor amigo.

Afar é a mulher que eu sempre amei, e agora é a segundo esposa

do Mansa.

Zaila

- Então... Então por isso passou tão mal?!

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Guma

- Creio que sim! Nunca imaginei que fosse reencontrá-la, muito

menos nessa situação.

Zaila

- E o que pretende fazer? Vai revelar a Musa?

Guma respirou fundo;

- Não! Isso só pioraria as coisas. E de forma alguma posso trai-

lo, musa é como um irmão querido para mim, e sei da sua

reciprocidade quanto a isso.

Zaila

- Somente por este motivo não ficaria com ela?

Guma aproximou-se da mulher e acariciou um dos lados de sua

face;

- Zaila! Eu verdadeiramente amo você, mas sabemos que esse

amor que sinto é diferente. Não é maior nem mesmo menor,

apenas diferente.

Zaila deu um breve sorriso;

- Eu entendo, e o aceito como é. Afar já o reconheceu?

Guma

- Sim. Em certa oportunidade disse que pensava que eu estava

morto, que me odiava.

Zaila

- Talvez isso seja bom. Assim manterão distância.

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Guma cambaleou ao andar;

- Sim, é verdade.

Zaila prontificou-se em socorrê-lo e o ajudou a se sentar

novamente;

- Fique deitado, querido! Ainda está debilitado, não deve fazer

esforços.

Guma obedeceu à mulher;

- Devo me encontrar com Musa ainda esta tarde, mas creio que

posso descansar mais um pouco. (Ele pôs novamente uma das

mãos sobre a cabeça). Meus pensamentos ainda parecem

desorganizados.

Zaila cuidou para que o marido ficasse bem acomodado,

e se prontificou em dar ordens às criadas para que lhe suprissem

as necessidades sem que ele precisasse fazer qualquer esforço.

Quando já estava na sala de recepção a dar as ordens, ouviu

como que por um assalto, uma estridente voz feminina chamar

pelo nome de Guma repetidas e desesperadas vezes. A esposa

imaginou que fosse a ciumenta Raja, uma vez que sabia que o

marido não fora vê-la naquela noite que passou como de

costume, devido à repentina enfermidade que o tomou. Uma das

criadas apressou-se para ir resolver o pequeno escândalo que a

amante fazia em sua porta, porém, Zaila educadamente a

impediu, e colocou-se a frente, indo de encontro a rival. Quando

Raja avistou a majestosa matrona, espantou-se pela sua

iniciativa de ir ao seu encontro. A moça de longos cabelos

soltos, agarrara-se nas grades do grande portão que separava o

belo jardim da rua comum. A massa de transeuntes, ciente de

toda a situação amorosa do comandante e senhor mais

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importante do império, lançava olhares de repressão e sarcasmo

sobre a atitude de Raja, qual não se importava mais com os

desenfreados comentários sobre a vida de Guma. Zaila ergueu a

cabeça e aproximou-se calmamente do portão, o semblante

estava sério e impenetrável.

Raja falou sem saber controlar tão bem sua ira:

- Onde ele está?! Onde está, Guma? Você o impediu de ir me

ver?

Zaila a olhou bem nos olhos;

- Acalme-se Raja! Está chamando toda a atenção para você.

Raja

- Eu não vou me acalmar enquanto não me disser onde ele está!

O que fez para que ele não fosse me visitar?

Zaila

- Guma está doente.

Raja

- Está mentindo. Ontem mesmo nos falamos, e ele estava bem.

Zaila

- O que acha que eu conseguiria fazer com um homem da altura

e do porte de Guma? Sua força me impeliria a obedecê-lo no

que ele quisesse se assim ele precisasse me tratar.

Raja

- Não sei! Talvez você o tenha envenenado! Guma nunca deixou

de cumprir com seus compromissos comigo!

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Zaila

- Ele ainda é meu marido, e pai dos meus filhos, eu o amo.

Jamais faria isso! E queira você acreditar ou não, temos a

convivência de um casal que se ama e é apaixonado.

Raja riu;

- Talvez por isso ele esteja planejando me ter como sua segunda

esposa.

Zaila mostrou-se surpresa, mas não perdeu sua postura;

- Isso seria impossível. Você não é da mesma casta que nós.

Raja deixou aparentar não saber do que Zaila estava falando;

- Isso não interessa! Guma consegue tudo o que quer! E ele quer

a mim!

Zaila

- De qualquer forma, ele não irá atendê-la. Vá para a sua casa e

o espere como está acostumada. E não volte mais a fazer

escândalos no meu portão. Sou uma senhora distinta e

respeitável neste império, e sei que o Mansa não iria gostar de

receber reclamações, logo ele diria ao meu marido para que se

livrasse de você. Então se faça o favor de se dar o devido

respeito.

Zaila virou-se de costas e pôs-se a caminhar de volta

para sua casa. A balbúrdia que Raja fizera espalhou-se por todos

os cantos de Niani, e chegara aos ouvidos de Musa. Apesar do

recente casamento e dos agradáveis momentos com Afar, o

imperador não conseguia controlar a ligeira irritação que lhe

corroía os mais minúsculos nervos do corpo. Musa acreditava

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que assim estava devido ao descobrimento da traição de Sunieri,

passava grande parte das horas pensando em como poderia se

vingar da esposa, mas não era simplesmente por isso que uma

incomoda ansiedade o consumia. Se ele parasse por um simples

segundo e interrogasse sua consciência, e se perguntasse o

porquê de estar se sentindo tão atormentado, haveria chance de

entender que no fundo de seu coração, a traição de Sunieri não

lhe ofendia tanto assim, e se fosse possível que ele superasse seu

orgulho, procuraria entender que também era culpado por aquele

erro, afinal, Musa a deixou sozinha e emocionalmente

desamparada no momento em que os dois mais precisavam um

do outro para que resolvessem as tribulações e provas que

surgiram no caminho do matrimônio. O imperador ainda poderia

descobrir, se lhe fosse possível desvendar seu passado e os

escaninhos de sua própria alma, que aquele sentimento vinha de

um lugar da sua memória que lhe fora escondido pelo véu do

esquecimento temporário, mas que não escapava a sensibilidade

das fibras do espírito imortal que nada esquece. Ele saberia que

a ansiedade provinha da intuição que sentia, em novamente estar

se aproximando o momento da prova, onde Afar e Guma

deveriam lhes ser fiel e não se renderem a egóica ideia de

viverem seu atemporal romance. Entretanto, Musa não possuía

esses conhecimentos, nem mesmo aprendera a ouvir a voz da

intuição que fala no silêncio oculto dos nossos pensamentos.

Assim, atribuía todo o desconforto que sentia a traição da

primeira esposa, pois que era mais fácil.

O imperador aguardava Guma no fim daquela tarde, após

longa reunião com seus conselheiros. Musa estava

aparentemente cansado, e no intervalo de suas

responsabilidades, requisitara a presença da segunda esposa

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como um pequeno momento de refrigério para suas tormentas.

Todavia, Afar também passava por oculta agonia, pois por mais

que se esforçasse para acreditar que seu amor por Musa

prevaleceria ao passado que tinha com o comandante, seu

coração tinha a legítima certeza dos verdadeiros sentimentos que

perduraram por todos aqueles anos, reprimidos pela força do

destino, porém, vívidos no ígneo eterno de seu espírito. Haja

vista, a bela esposa não perdera o carinho que viera a possuir

pelo afetuoso marido, e como se habituaram naqueles meses de

convívio conjugal, trocavam íntimas e ternas carícias na solidão

daquela sala de reuniões. Afar e Musa davam caloroso beijo

quando Guma, por força do hábito e pela intimidade que

possuía, entrou sem ser anunciado, possibilitando assim, que

presenciasse a particular cena do casal. Pelo susto, virou-se de

costas o comandante.

Guma

- Perdão! Eu não sabia que estava ocupado, Musa! Posso voltar

outra hora.

Musa levantou-se sorridente;

- Fique, Guma! Eu é que devo aprender a controlar minhas

indiscrições, uma vez que este não seria um local apropriado

para tal situação. Mas o que fazer? Sou um marido apaixonado

pela minha linda esposa. Muitas vezes não sei como me

controlar. Mas é provável que você entenda muito bem tudo

isso. (Guma acenou com a cabeça, ainda se sentindo

constrangido).

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Afar também se levantou;

- Eu irei me retirar. Não quero atrapalhar suas obrigações,

querido.

Musa segurou em uma de suas mãos;

- Não, meu amor! Fique! Guma é mais como o irmão que não

tive. E iremos basicamente falar sobre assuntos corriqueiros,

como as frequentes fugas dos escravos, e o fato de eu desejar

nomeá-lo conselheiro.

Afar e Guma pronunciaram juntos;

- Como?!

Guma

- Musa, que novidade é essa? Estou satisfeito com o posto na

guarda real. Além do mais, sabe que a maioria do conselho será

contra, tenho meus inimigos, e esse é um fato que prefiro não

ignorar.

Musa

- Sim, é verdade! Mas sabemos também que essas implicâncias

não passam de ciúmes bobos. Ultimamente tenho sentido que

existe a possibilidade de estarem conspirando contra o império,

e na verdade, não vejo a figura de amigo em muitos por aqui.

Posso apenas estar passando por um momento de delírios devido

ás ultimas notícias, mas devo me precaver. Preciso de alguém

dentro da cúpula do conselho para que verdadeiramente me

informe o que acontece fora do alcance dos meus olhos.

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Guma

- Sei que posso muito bem cumprir esse papel sem que precise

me nomear conselheiro, todos sabem a autonomia e força que já

me concede no império. Sem falar que não acredito que haja

nenhuma conspiração. Quanto aos escravos, designei a Attos

que investigasse, e descobrimos que um dos guardas estava

facilitando a fuga no intuito de capturar os mesmos para vendê-

los aos comerciantes do oriente.

Musa

- E você já liquidou este traidor?

Guma

- Ele está preso, mas ouso dizer que acredito nos ser mais

vantajoso escravizá-lo que lhe tirar a vida. Não nos fará

recuperar o número que já perdemos, mas servirá de lição aos

demais guardas.

Musa

- Sim, eu concordo, contanto que lhe açoitem frente a todos,

para que a lição seja bem aproveitada.

Guma

- Direi a Attos para que cuide disso.

Afar

- Mas isso parece tão cruel. Eu não sabia que aqui se tratavam

pessoas de forma tão desumana.

Musa

- Mas não são pessoas, querida, são escravos.

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Afar olhou para Guma;

- O comandante concorda com a opinião do meu marido?

Guma igualmente a encarou;

- Não tenho autoridade para concordar ou discordar do Mansa.

Meu lugar neste império é confiar e obedecer.

Afar

- E se fossem seus pais a serem escravizados e açoitados?

Musa sorriu;

- Isso seria impossível, Afar! Guma veio de uma província

distante, não possui parentes aqui. Mesmo que sua pergunta

seja metafórica, ainda seria descabida. O infeliz não é só um

escravo, ele traiu o império para benefício próprio.

Afar

- Ainda assim é desumano.

Guma

- Ouso perguntar se de onde veio, seus pais não possuíam

escravos e não os tratava da mesma forma?

Afar

- Particularmente nunca presenciei nenhuma atitude dessas de

meu pai para com seus criados.

Guma

- O que não significa que ele nunca tenha feito.

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Ouviu-se gritos alarmantes vindos do corredor, a voz

feminina, qual Guma percebera ser a de Raja, promovia grande

escândalo naquela ala do palácio, e por gritar seu nome, ele logo

se prontificou em ir ver o que se passava, mas não fora

necessário. A jovem adentrou a sala do trono, tresloucada e

enfurecida, dois guardas tentavam lhe conter, quando Guma

ordenou que a largassem.

Musa

- Mas o que está acontecendo?

Raja foi até Guma e lhe desferiu alguns golpes no peitoral;

- Por que você não foi me ver ontem, Guma?! Por quê?! Não

quer mais me ver?! Está enjoado de mim?! Não me ama mais?

Guma a segurou com força e esbravejou firmemente;

- Chega! Pare com isso, Raja! Respeite seu Mansa! (Raja se

conteve).

Afar

- Oras! Achei que sua esposa se chamasse Zaila, comandante.

Guma respondeu encabulado;

- Sim, este é o nome da minha esposa.

Afar proferiu um cínico sorriso;

- Então não estou entendendo.

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Raja

- A primeira esposa se chama Zaila, mas logo eu serei sua

segunda esposa, e não haverá mais queixumes e boatos quanto a

nossa relação.

Musa

- Guma! Controle Raja! Gostaria que alguém me explicasse o

porquê de toda essa bagunça.

Guma se prontificou demonstrando aparente irritação;

- Não é nada que deva perturbá-lo! Raja perdeu seu equilíbrio e

está fora de si!

Raja

- Então não irá se casar comigo?! (Raja o empurrou

violentamente sem conseguir causar grande abalo em sua

estrutura física). Seu mentiroso! Eu...

Musa

- Chega! (Raja conteve-se por si só). Estou sabendo dos

escândalos que Raja tem causado. Não acho apropriado esse tipo

de comportamento e liberdade. Sem falar que os casamentos

realizados nesse império só ocorrem após passar pela minha

aprovação. Guma nunca mencionou o desejo de possui-la como

sua segunda esposa. Além do mais, a união matrimonial de

vocês jamais poderia ocorrer, uma vez que são de castas

diferentes.

Guma falou em tom sobressalente;

- Eu já expliquei isso a ela! (Ele a pegou por um dos braços).

Agora vamos, antes que me envergonhe ainda mais!

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Raja se soltou;

- Não! Você disse que poderia me tornar sua esposa! Disse que

falaria com o Mansa. Pois bem, aqui estamos.

Afar virou-se para Musa;

- Ah! Por favor! Eu não sou obrigada a presenciar esse tipo de

cena deprimente. Sou senhora desse império e não desejo

permanecer no mesmo recinto que as vulgas mulheres dessa

cidade. Não sabia que era de costume a frequência dessa classe

dentro do palácio. (Ela virou-se para Musa). Se me permite,

desejo me retirar.

Musa acenou positivamente com a cabeça, e sem nem

mesmo esperar que as portas lhe fossem abertas, Afar saiu da

sala em passos que pareciam quase quebrar o chão, o rosto

estava visivelmente enfurecido, o que não escapou a observação

de Guma, nem de Raja. Musa chamou a atenção do comandante

mais uma vez sobre controlar suas relações extraconjugais, e

ordenou que mantivesse a amante longe do palácio. No caminho

até seus aposentos Afar avistou uma linda mulher a ser cuidada

por suas criadas, e no seu colo havia um bebê, ela estacionou,

imaginando que aquela seria a imperatriz. Sunieri não pode

ignorar a presença da segunda esposa, nem tão pouco a beleza

que lhe pertencia, agora entendia o motivo de seu marido

realmente não precisar perdoá-la. Com um gesto, mandou que

fechassem a porta, deixando claro para Afar que não desejava

tecer nenhum tipo de amizade com ela.

Naquela mesma tarde, Guma levou Raja para a casa onde

a hospedava, e proferiu grande discurso enfurecido sobre suas

últimas atitudes. Raja estava mesmo diferente naquela semana,

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ela se perguntava por que se via tão amedrontada pela ideia de

não possuir aquele homem que tanto amava. Acreditava que a

paixão por Guma a estivesse fazendo perder o controle sobre

suas atitudes, e de certo, isso também ocorria, todavia, não sabia

ela que já há muitas encarnações que alimentava em si a

obsessão por ele, onde na vida anterior à que vivia, fora uma

mulher rica e poderosa, qual o atraiu e tentou obter seu amor

através da sua abastada situação econômica e suas influências.

De início, Guma na figura do amante miserável, se viu propelido

as condições daquela jovem senhora viúva que se esbaldava nas

noites quentes. Com o coração apertado por saber que traía a

verdadeira mulher que amava, o cavalheiro não demorou em se

habituar a deitar-se com ela sem nem mesmo lembrar que o que

fazia era errado. Pela manhã, sempre voltava a sua humilde casa

com uma pequena sacola, e dali tirava o sustento da semana e os

mimos que desejava dar a esposa que encarnou na atual história

como Afar. A jovem, sabendo das traições do companheiro, viu-

se em profunda tormenta, e logo começou a ter furiosas

discussões com o mesmo. Em noite sombria, quando pelo ar se

espargiam os eflúvios da pele dos amantes de perfume agridoce,

a atmosfera envolvida pelas densas camadas construídas através

dos pensamentos daquelas almas iludidas pela sedução do corpo,

e pela perversão do sexo descompromissado com os belos

sentimentos da união esponsal, Guma rompeu por definitivo seu

devasso envolvimento com a viúva. Por sua vez, ela lhe

ameaçou dizendo que não mais o sustentaria, e que com sua

influência, tornaria impossível que ele arrumasse emprego

digno, logo então, ele estaria de volta a seus pés, implorando por

seu perdão. Assim a rica senhora fizera, porém, ao contrário do

que pensava, Guma não retornou, ficando em condições

degradantes por não conseguir arrumar emprego. E por um surto

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de ciúmes, acreditando que sempre conseguiria o que desejasse,

a jovem senhora traçou um plano, vindo a pagar altas quantias

para que dois brutos homens, criaturas que ainda obtinham em

seu íntimo a índole primitiva do assassínio, para que dessem fim

a vida de Afar, fazendo parecer que ela havia tirado a própria

vida. Pensava a viúva, que sem o empecilho da presença do

verdadeiro amor de Guma, logo ele endereçaria seus

sentimentos para ela, contudo, como sabemos, pela dificuldade

de sobrevivência, mas principalmente pela perda da mulher

amada e a culpa de seu falecimento, veio ele a cometer o pior

dos crimes contra à leis de Deus, tirando a própria vida quando

em noite deprimente, atirou-se de um penhasco estraçalhando o

próprio crânio nas duras pedras da amargura. E apesar de seus

erros naquela encarnação, por ser bom e generoso, e também

pela misericórdia de Deus que sempre enxerga o maravilhoso

potencial de caminharmos até Ele, mesmo que pelos caminhos

escabrosos da própria alma, Guma passou alguns longos anos

perdido e confuso no mundo das sombras, não sabendo dizer

quem era, ou onde estava, ou até mesmo por quem procurava.

Porém, pela divina força do amor, fora resgatado por amigos e

familiares que tanto se esforçavam e rogavam à espiritualidade

maior a seu favor, sendo possível delicado tratamento na

reorganização do órgão de seu corpo espiritual, vilipendiado

pela ação da escolha da própria morte, não escapando ele da lei

de causa e efeito, aonde viria para o seu próprio bem, resgatar

em momento oportuno a falta cometida. E por abandonar a

família e os filhos, imputou-lhe o destino que fosse separado

daqueles que mais lhe teriam amor, seu pai e sua mãe, espíritos

esses comprometidos com ele pela afinidade dos milênios e os

fortes fios do coração.

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Voltando aquela tarde, Raja ainda pressentia que algo

ruim estava acontecendo, o peso sobre o peito e a amargura

presa na garganta, fazia com que ela sentisse que Guma estava a

lhe escapar por entre os dedos, sendo a sensação velha e familiar

para ela. De fato, desde a chegada de Afar, o comandante não

conseguia achar tempo para pensar em outra pessoa que não

fosse o antigo amor, e sabia ele que perderia o interesse em

qualquer outra mulher, se lhe fosse possível viver seu sonho de

amar Afar. Outrossim, as possibilidades lhe atormentavam, uma

vez que a consciência e o inconsciente lhe alertavam que aquele

ainda não seria o momento em que poderiam viver o amor

pleno, pois que era preciso vencer o egoísmo e a vaidade de

estarem juntos apesar do sofrimento alheio. Guma estava

chateado com o destino, e por ainda vivenciar na infância da

alma a rebeldia de não poder ter o que desejava no momento em

que lhe fosse conveniente, descontava e acusava implicitamente

Raja, mesmo porque, sua recente memória não lhe permitia, mas

não escapava dos pergaminhos de seu espírito eterno, as dores

que no passado Raja veio lhe causar. A discussão fora intensa, a

jovem descontrolada, no desespero de saber que o estava

perdendo, lhe arremessou os objetos da casa que tinha acesso,

não deixando de tentar machucar Guma como podia.

Raja

- Eu odeio você! Odeio você, Guma! Maldita hora em que você

apareceu na minha vida! Preferiria mil vezes apodrecer naquele

porão, que encontrá-lo!

Guma em seu excesso de raiva também esbravejava;

- Pois então se sinta a vontade para retornar para lá! Eu estou

cansado das suas crises de ciúme! Você parece uma louca!

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Definitivamente foi um erro mantê-la aqui! Só o que faz é me

envergonhar e prejudicar minha imagem! Já não basta o que

meus inimigos inventam sobre mim, você ainda os ajuda com

suas demonstrações em público!

Raja chorava furiosamente;

- Ah! Sim! Agora que já sugou de mim tudo que eu podia te

oferecer! Agora que já experimentou e fez de mim o que bem

quis, quer me jogar fora?! Dar-me aos cães?! Por que está

fazendo isso comigo? Por que não me ama mais? Existe outra

mulher?! Me diz quem é?!

Guma se desconsertou e desviou o olhar a tentativa de disfarçar;

- Deixe de loucura, Raja! Eu não poderia... Isso seria

inaceitável!

Raja

- Está vendo?! Você tem outra! Eu sei que tem! Posso sentir! E

você nem mesmo consegue disfarçar!

Guma respirou fundo tentando conservar o pouco da paciência

que lhe restava;

- Já chega! Eu vou embora!

Raja o segurou pelo braço e gritou;

- Não! Você não vai embora até me dizer quem é ela! É melhor

me dizer logo! Por acaso é a segunda esposa do Mansa?!

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Guma congelou os olhos nos de Raja, tentava descobrir como

ela poderia saber tão rápida e precisamente, e como se a moça

lesse seus pensamentos logo respondeu:

Raja

- Eu vi como olhou para ela e como ela o correspondeu.

Guma tentou disfarçar;

- Está mesmo ficando louca! O que diz é um absurdo!

Raja

- Não minta para mim! Eu sei que é ela!

Guma

- Como poderia saber?! Isso... Isso... Isso é ridículo! E chega

dessa conversa!

Raja continuava gritando;

- Está vendo como fica desconsertado só de falar nela?! Mal

consegue olhar para mim, Guma! Está apaixonado por ela?!

Você a ama?! Ama Afar?! Já esteve com ela?! Me diz, Guma!

Não minta para mim! Você a ama?! Ela ama você?!...

Guma em seu excesso de raiva e pela confusão que os

gritos e as perguntas de Raja lhe causavam na mente já

desbaratada, gritou com fúria;

Guma

- Sim!

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Raja petrificou, assim como o comandante, que de

imediato se arrependeu de ceder à pressão que a amante

descontrolada lhe fazia. Não vendo como voltar atrás e escapar

da situação, Guma concluiu rapidamente que talvez fosse

melhor contar logo toda a verdade.

Guma disse calmamente olhando nos olhos fixos de Raja;

- Sim, eu a amo. Eu a amo antes mesmo de conhecer você, ou

Zaila, ou Musa, ou qualquer outra pessoa desse lugar. Eu cresci

com Afar e a amo desde o dia em que soube da sua existência

nesse mundo. Eu a amo, mas não posso tê-la. E sim, desde a sua

chegada tenho estado distante não só de você, mas de todas as

outras pessoas, inclusive das mulheres que me saciavam além de

você, as quais você nunca desconfiou porque eu sempre

consegui agir naturalmente com todas, mas agora não. Não

posso e não consigo mais fingir.

Raja se acalmava;

- Então me enganou por todo esse tempo?

Guma respondeu de prontidão;

- Não! Eu me apaixonei por você, e é por esse motivo que a

mantenho aqui. É por esse motivo que desafiei os comentários

feitos por toda Niani, o que você sabe que poderia muito bem

acabar com a minha reputação e tudo que construí. Eu sempre

me envolvi com muitas mulheres, me casei pela condição que

me foi imposta, e me apaixonei por você porque sempre tivemos

uma conexão. Eu não sei o que é isso, nem como pode

funcionar, já que sempre estamos brigando como dois animais

que se odeiam.

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Raja chorava;

- Mas eu amo você.

Guma continuou;

- Mas agora... Eu estou cansado, Raja! Estou cansado e confuso,

e chateado. Não quero enganá-la, mas não quero que me odeie.

Raja

- Está dizendo que não me ama?

Guma

- Estou dizendo que nunca fui essa pessoa que você diz que ama.

Eu nem mesmo sei o que pode ver em mim que tanto a atrai. Por

mais que eu diga que tenho outras mulheres...

Raja aproximou-se dele e segurou suas mãos;

- Eu não me importo! Não me importo com elas! Posso suportar

que se deite com quantas mulheres quiser! Posso suportar que

não corresponda o meu amor! Que não me torne sua esposa!

Mas não sei se posso suportar que ame outra.

Guma se afastou;

- Não percebe quanto egoísmo tem nas suas palavras? O que

sente por mim não é amor, você apenas está preocupada em me

ter de alguma forma. Se verdadeiramente me amasse nunca

concordaria com absurdas condições. Não vê que é impossível

amar outra pessoa quando não amamos a nós mesmos?

Raja

- Do que está falando? É claro que eu te amo!

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Guma inspirado pelos amigos espirituais tentava resolver o

impasse de longos anos com aquela alma ególatra, atormentada

pelo desejo de possui-lo;

Guma

- Não! Você não me ama, Raja! Apenas precisa saber que me

possui de alguma forma! Pra você, pode ser que isso ainda seja

amor, pois que desconhece o que é verdadeiro. Aquele que é

desprendido de todas as coisas e todas as posses. O amor que

tudo liberta e que nada pede em troca, nem mesmo o seu

reconhecimento. O amor que não conta o tempo, nem pede de

volta. Aquele que abnega e se sustenta por si só, sem pedir

recompensa. Onde mesmo quando tarda, é impossível de acabar.

Não diminui com a demora, nem se extingue quando aparecem

as dificuldades do caminho longo e tardio. Esse amor que aceita

derrotas, que suporta as dores do destino, e que na humildade da

sua resiliência, espera e confia. Isso é amor, e reconheço que eu

também preciso aprender com as lições que a vida tenta me

ensinar, para que enfim eu possa também dizer que sei amar.

Mas antes disso, é impossível que possamos sentir pelo outro

aquilo que nem mesmo sentimos por nós. Quando assim o

fizermos, estaremos amando a Deus sobre todas as coisas, pois

que Ele vive em nós, e nós somos partes d’Ele. Amar ao

próximo então será simples tarefa de exercício, onde

despertaremos para a prática desse sentimento maior.

Raja, ainda mergulhada na escuridão da própria

ignorância, ouviu as palavras de Guma, mas não lhe absorveu a

essência. O jovem comandante, também surpreso pela singular

reflexão, pode sentir uma ligeira dormência por todo o corpo,

como se estivesse a flutuar poucos centímetros do chão, não

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sabendo ele que aquela pequena sensação de paz que

brevemente o tomou, era os resquícios dos fluidos deixados

pelos espíritos amigos que tentavam ajudar aquelas duas almas

endividadas com a Justiça Divina.

Guma

- Acho que por hoje já chega. Estou cansado das nossas brigas.

Raja tristemente falou:

- Aonde vai?! Hoje você deveria ficar comigo.

Guma

- Creio que concordamos que se ficarmos juntos hoje, nada de

bom sairá de nós. Vou para casa, tenho assuntos a resolver.

E sem esperar a contestação da amante, Guma saiu, ainda

a refletir sobre o equívoco de revelar a Raja sobre seu amor pela

segunda esposa do Mansa. Como se não bastasse os escândalos

provocados pelos ciúmes da moça, o comandante enfrentava

forte resistência de poucos conselheiros e certo grupo de

importantes e influentes homens ligados ao imperador, os quais

insistiam em fazer fortes reclamações sobre a vida pessoal do

militar, explanando que sua fama e índole prejudicavam a

imagem do império. Ainda, contestavam que para a posição qual

Guma ocupava na hierarquia Mali, o poder e a liberdade dados a

ele pelo Mansa, eram descabidos e por certo inadmissíveis.

Musa recebia semanalmente insistentes reclamações, uma vez

que Guma não importava-se verdadeiramente em ostentar sua

riqueza que só crescia, e o poder de comando que a amizade de

Musa lhe conferia. De qualquer forma, o amigo do imperador

era intocável, e mesmo seguindo os pedidos de Musa na

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tentativa de ponderar suas atitudes, não deixara de incomodar

aqueles que tanto desejavam vê-lo longe de Niani. Se não

reclamavam dos festejos e noites desregradas do comandante,

acusavam-lhe de exageros em seu comando na usurpação de

suas funções, quando ainda, por forte despeito, não reclamavam

do exibicionismo do seu corpo escultural que provocava as

damas da cidade.

Do contrário, o imperador agora experimentava nova

experiência no seu íntimo, uma vez que a semente germinada

pelo Criador na primitiva terra do ser, é sempre convidada a

arvorecer no quintal da alma de quem se permite o cultivo do

amor e do bem. Sentia ele, que não lhe cabia mais os

comportamentos de outrora, não fugindo ainda à observância de

que o velho homem retornava-lhe nos impulsos diários, quando

se tratava dos desafios de seu orgulho e da soberba vaidade, qual

consumiam seus nervos a cada hora que os assuntos pessoais lhe

tomavam a mente por assalto, sendo essa a verdadeira armadilha

de seus inimigos invisíveis, conquistados ao longo de suas

encarnações, quais tentavam alimentar seus pensamentos com as

perniciosas imagens sugestivas, plantadas em seu imaginário

pelos mudos sussurros das sombras. Musa sentia-se confuso,

todavia, havia com ele também amigos espirituais que de tudo

faziam para lhe proteger, na tentativa de que lhe fosse possível,

pelas escolhas das próprias atitudes, alcançar os objetivos

desejados antes mesmo de vestir aquele corpo. Nos momentos

que podia, obedecia ao profundo desejo de permanecer em suas

meditações, e era no silêncio da consciência onde encontrava

paz e alívio para aquelas angústias quais nem mesmo ele sabia

responder de onde vinham. E mesmo sem perceber, as práticas

religiosas lhe foram tomando às prioridades, não lhe sendo

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possível escapar das dificuldades naturais do espírito em

ascensão, partindo do simples e ignorante para a áurea grandeza

da Sabedoria Maior, dentro da caminhada de cada instante do

leme da vida. Musa, vivia o antigo conflito dos homens entre o

bem e o mal da própria índole.

Por força da vontade, certa noite fora visitar Sunieri,

encontrando-a em seus aposentos a brincar com a pequena

criança. O Mansa a observou primeiramente, e de forma sutil, os

amigos do invisível lhe convenciam que aquela criança que ali

estava, nada tinha a ver com os erros de sua esposa sênior, nem

mesmo com os que ele também não deixara de praticar. O

pensamento surgia como se fosse seu, e junto a ele uma

agradável sensação lhe diminuía o peso do coração amargurado

com aquela mulher. Musa sorriu por um breve momento,

pensando na possibilidade de perdoar, e desta forma, voltar a

viver a felicidade que possuía com Sunieri.

Sunieri

- Você está aí?

Musa aproximou-se;

- Sim, estou.

Sunieri ostentava leve semblante;

- Finalmente arranjou tempo.

Musa

- Tenho pensado em tudo que ocorreu conosco, e muitas vezes

me vejo querendo insistir em sentir uma raiva que na verdade

não possuo.

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Sunieri sorriu;

- Você sempre foi muito teimoso.

Musa também sorriu;

- Tem razão. Mas agora posso reconhecer que seus erros não

foram mais graves que os meus. Eu deveria ter ficado e insistido

em resolver tudo antes de precisar partir. Deveria tê-la

priorizado.

Sunieri

- Nunca é tarde para consertarmos as coisas, querido.

Musa

- Sim, mas existem coisas que ficam passando pela minha

mente. Imagens e perguntas que não posso evitar.

Sunieri entregou a criança a uma serva e aproximou-se de

Musa;

- Eu direi tudo que quiser saber.

Musa

- Se apaixonou por ele?

Sunieri

- Sim! Assim como se apaixonou por Afar.

Musa

- É diferente, mas posso compreender melhor sendo desta forma.

Talvez não a pudesse perdoar se tivesse agido friamente.

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Sunieri

- Foi algo impensado, contudo, já passou.

Musa

- Por que não foi embora com ele?

Sunieri

- Não podia simplesmente jogar fora tudo que havíamos vivido

juntos. Eu me apaixonei, mas creio só ter acontecido pela

imensa solidão e revolta que sentia por estarmos tão aborrecidos

um com o outro. De outra forma, não sei se teria permitido que

acontecesse.

Musa

- Então... Está me dizendo que no fim das contas, o que sentia

por mim pesou mais do que o que sentiu por ele?

Sunieri

- Ficamos brigados por muito tempo, mas eu nunca disse que

deixei de te amar por isso. (Musa caminhou em silêncio pela

sala mostrando estar confuso). Espero que você também não

deixe que o que tínhamos morra desta forma.

Musa

- Estou apaixonado por Afar.

Sunieri

- Eu sei. Quem não ficaria? É uma bela mulher, e creio que se

não fosse o fato dos meus ciúmes me fazerem odiá-la,

poderíamos ter afinidades a trocar. Mas sempre acreditei que eu

bastaria.

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Musa logo declarou;

- E teria bastado. Você teria sido a única se... Se tudo fosse

diferente. Mas agora parece que estamos presos aos

acontecimentos, e eu fico me perguntando como chegamos até

aqui? Como todos aqueles momentos que tivemos pode permitir

que chegássemos a esse ponto, onde somos quase estranhos.

Sunieri

- Eu também não sei. Só sei que desejo cumprir todas as tarefas

que me pedir. Serei a esposa que sempre fui, e se nada mais

quiser comigo, eu entenderei, mas ainda estarei aqui para você.

Musa

- Quem sabe um dia não seja possível que essa mágoa se desfaça

e possamos viver o que prometemos um ao outro.

Sunieri

- Eu estarei aguardando quando assim for.

Musa sorriu brandamente e logo se retirou. Não podia

evitar que uma tristeza se alojasse no peito traído, quando as

felizes memórias de sua relação com Sunieri retornavam às

fotografias da memória. Ao chegar no quarto de Afar, sem

demora, a lindíssima imagem da nova cônjuge que arrumava-se

para se deitar, lhe fez esquecer tudo aquilo. A jovial esposa

vestida com a mais bela túnica de seda, tinha a pele iluminada

pela prateada luz da abundante lua que invadia o ambiente de

seu quarto através da grande janela. Musa ordenou que as vinte

escravas que serviam Afar se retirassem, e estando sozinho com

a esposa submissa, pôs-se a admirá-la no implícito jogo de

sedução, onde Afar continuou os cuidados que dava a pele negra

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de tom perfeitamente uniforme, passando os produtos que

mandava importar do continente europeu. Aprazia ao Mansa

apenas a observar, e aquele ritual de encantamento e beleza lhe

enchia de ânimo e vivacidade. Enfeitiçado pelos olhares que

Afar ligeiramente lhe lançava, e também pelos incensos que

perfumavam a sala, se permitiu envolver e embriagar da paixão

que queimava seu corpo feito brasa fumegante.

Na manhã seguinte as obrigações de soberano

chamavam-no, passara o dia com muito bom humor. Musa

estava inspirado pelos planos que tinha na vontade de realizar

grandiosas construções e marcar seu império pelas

materializações de seus objetivos. Desejava erguer madraças e

mesquitas, porém, para isso precisava trazer arquitetos e

estudiosos do oriente, além, ambicionava a edificação de uma

universidade, pois lembrava-se de ter conversado sobre tal

empreendimento com Sosso, o pai de Afar, qual assemelhava-se

com suas ideias visionárias. Guma, que inevitavelmente estava

sempre com Musa, não pode deixar de reparar na espontânea

alegria que brotava de seus poros, irradiando para todos os lado

do palácio, o olhar vívido e alegre que enxergava o maravilhoso

em tudo, o sorriso fácil e gentil que passou a seduzir até os

criados. Era impossível não saber que a responsável por toda

aquela felicidade era sua amada, uma vez que Musa não se

privava de conversar com o amigo sobre a maravilha que estava

vivendo junto à nova esposa.

Musa

- Mas estou aqui, falando pelos cotovelos, quando na verdade

reparo que você está estranhamente cabisbaixo, Guma. O que

está acontecendo?

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Guma

- Não é nada. Só estou cansado.

Musa

- Algum problema com a família? Sei que seus filhos estão

crescendo saudáveis e fortes, e Zaila não perdeu a beleza que

sempre lhe pertenceu.

Guma

- Minha família está bem, por isso, só tenho a agradecer.

Musa

- Então me diga logo, o que o aborrece tanto?

Guma virou-se para Musa;

- Tenho andado cansado de tudo isso. Raja tem me causado

muitas dores de cabeça...

Musa sorriu;

- Isso é verdade.

Guma

- E não sei como faço para me livrar dela.

Musa

- Como assim? Não está apaixonado por ela?

Guma

- Por um momento, acreditei que estivesse, mas agora nossa

relação é quase tóxica. Fica cada vez mais insustentável estar

com ela. (Ele virou-se para Musa). Estive pensando, acha que

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seria possível me tornar kelé-tigui em alguma dessas províncias

que conquistamos?

Musa

- General chefe? Para quem seria um escravo é uma ambição e

tanto, não acha?

Guma abaixou a cabeça entristecido;

- Tem razão, foi o que eu pensei.

Musa

- O trabalho que Raja está dando é tanto que está pensando em ir

embora?

Guma

- Não somente por isso. Estou farto das perseguições que venho

sofrendo. Sinto que talvez eu precise recomeçar em outro lugar.

Musa

- E nossa amizade, como ficaria?

Guma

- Sabe que tem minha amizade e lealdade para sempre. Por isso

preciso partir.

Musa franziu o sobrolho;

- Não entendo.

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Guma tentou disfarçar;

- Por que não desejo mais decepcioná-lo e causar os

aborrecimentos que venho causando. Sei que os boatos sobre a

vida que levo são muitos, e tudo isso chegou a um ponto que

não sei mais como faço para consertar.

Musa abraçou Guma pelo ombro;

- Ah, meu amigo! Não se preocupe com isso! As palavras o

vento leva, só o que perdura é o que for verdadeiro, e eu sei o

quanto você é merecedor de tudo que conquistou. Mas... Se

realmente estiver precisando de um novo começo, posso torná-lo

o Kelé-tigui de uma dessas províncias. Aliás, não sei se conhece

a cidade de Tombuctu, mas vi grande potencial ali para realizar

algum dos meus projetos.

Guma

- Sim, conheço bem, mas pensei que já houvesse um general

responsável pela cidade.

Musa

- O pai de Afar. Mas ele está velho, e lamento por isso, contudo

não demorará para que precise de alguém que o auxilie na

administração daquela fortaleza. Afinal, esse trabalho é duro e

requer muita responsabilidade. O general Sosso é um homem

interessante, penso que vocês se dariam muito bem.

Guma

- De qualquer forma, farei o que me pedir.

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Musa

- Bem, agora devo dispensá-lo. Axar pediu-me uma reunião e

penso que será demorada como todas as outras. Creio mesmo

que durará todo o dia, mas me conforta saber que pela noite

tenho a melhor companhia que poderia desejar. (Eles se

despediram).

No final daquela tarde, Guma sabia que precisava

descansar seu coração, pois que sentia no fundo da alma uma

tristeza lhe tomar conta devido às ideias que o consumia, quais

deixavam claro que Afar jamais poderia ser sua. Todavia, existia

uma força dentro dele que gritava com toda sua vontade que ele

poderia simplesmente abdicar de tudo, não se importar com

mais nada, e viver seu romance com ela, mesmo que para isso

precisasse voltar a miséria. Vivendo o mais temido confronto

dos homens, aquele qual se deve vencer as próprias

imperfeições, o comandante buscou pelo único lugar onde

sempre recorria para sentir um pouco da paz que nunca lhe

pertenceu. O terraço mais alto do palácio, onde o arborizo

jardim permitia que entre as flores acampasse a tranquilidade,

para a perfeita apreciação da fenomenal paisagem do horizonte

que anoitecia. Mas, uma surpresa o tomou quando lá chegou. A

silhueta de Afar estava no mesmo lugar que ele costumava ficar

quando contemplava o pôr do sol. Guma logo tentou dar meia

volta, mas Afar percebeu sua presença sem nem mesmo precisar

se virar.

Afar se virando para ele;

- Não vá! Fique um pouco.

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Guma parou onde estava;

- Pensei que não tivesse ninguém aqui. Geralmente não tem,

essa ala do palácio fica deserta por ser um tanto longe dos

cômodos principais e toda a movimentação.

Afar respirou tranquilamente;

- Sim, eu percebi. Estou com saudades de casa. Sinto falta do

meu pai, da minha mãe, e até mesmo das minhas irmãs. Esse foi

o único lugar que eu consegui achar que me lembrasse de

Tombuctu.

Guma se aproximou e se posicionou ao seu lado olhando para o

sol que se punha;

- Eu costumava vir aqui quase todos os finais de tarde e ver o

pôr do sol.

Afar olhava para o seu perfil;

- Como fazíamos à margem do rio?

Guma sorriu brandamente ao se lembrar daqueles tempos;

- Sim, como fazíamos à margem do rio. Vinha exatamente nesse

momento em que o sol está se pondo. Fechava meus olhos, abria

os braços, e podia sentir com se estivesse lá.

Afar

- E você se lembrava de mim?

Guma se virou para ela e a olhou nos olhos;

- Eu nunca precisei me lembrar de você, Afar, porque nunca te

esqueci. Você sempre esteve comigo.

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Afar

- Por isso se casou e teve tantas amantes?

Guma virou-se se apoiando no balaústre do parapeito;

- Sabia que em algum momento iria me confrontar com esse

assunto.

Afar

- Mas foi a cena que eu vi. E também o que as escravas

comentaram sobre você. Muitas até alegam já terem sido sua

amante em algum momento. Algumas até mesmo choram por

você nunca mais tê-las procurado

Guma andou tentando fugir das acusações;

- Está exagerando! Você... Você não deveria falar com as

escravas.

Afar

- Oras! Por que não?

Guma

- Porque são escravas e você é uma soberana.

Afar

- Você é um comandante e nem por isso deixou de dormir com

elas.

Guma encarou Afar e percebeu que ela estava rindo;

- Está se divertindo comigo?

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Afar

- Você está preocupado com os meus ciúmes, isso me diverte.

(Ela se aproximou dele). Tem sorte por eu já ter descontado os

impulsos da minha raiva nas almofadas da minha cama. Mas

com a cabeça fria pude compreender porque se tornou esse

homem sem critérios.

Guma sorriu;

- Sem critérios?

Afar fez certa expressão com a face ratificando o que dizia;

- Sem nenhum critério.

Guma

- E o que concluiu?

Afar

- Foi como soube lhe dar com a falta que eu fazia. Por tanto me

querer e não poder me ter. Por tanto me amar, e não poder me

dar tudo isso, passou esses anos me procurando nessas pobres

coitadas. Mas o que você sente por mim, é meu. Assim como o

que eu sinto por você nunca deixou de ser seu.

Guma olhava para o horizonte tentando disfarçar a dor que o

rosto não escondia;

- É estranho, porque ainda sinto a sua falta. Você está aqui, mas

ainda assim é intocável para mim.

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Afar se aproximou e segurou nas mãos de Guma;

- Isso não é verdade. Estou aqui, e posso ser sua. (Ela colocou

uma de suas mãos sobre seu rosto). Eu sou sua, Guma! Sempre

fui.

Guma recuou;

- Afar! Do que está falando? Está casada com Musa! Ele a ama e

está feliz como nunca vi.

Afar aproximou-se novamente;

- Mas eu não sei, não quero, e não consigo evitar o que sinto por

você! E posso sentir que você também não!

Guma

- Está certa. Eu te amo e não negarei isso, mas o que vamos

fazer? Trair alguém que também amamos e nos tornar amantes?!

Por que você não sabe! Não sabe os milhares de planos e

possibilidades que já tracei e desenhei na minha mente tentando

arrumar uma maneira de ficar com você, e todos eles me levam

a culpa de estar traindo aquele que me tornou quem eu sou hoje!

Essa é uma escolha que não sei se consigo fazer.

Afar

- Então me escolha! (Afar o segurou com força pela roupa)

Porque eu escolho você! Escolho trair o mundo, e quem mais for

preciso! Escolho sofrer a pena desse pecado dez mil vezes por

dez mil vidas se for necessário, para que eu seja sua por inteiro.

Eu só preciso que você me ame! E posso ser responsabilizada

por todos os erros de todos os amantes, Guma! Eu não ligo! (Ela

aproximou seu rosto do dele e disse calmamente). Não ligo. Eu

amo você.

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Guma a beijou, e naquele momento verdadeiramente

nada mais importava. Não era possível que o raciocínio lhe

retornasse, uma vez que suas mãos tocavam o corpo de Afar, e o

peito nu sobre o dela pesava-lhe na sincronia dos dois corpos

que se amavam na conexão que apenas as almas que se

pertencem podem ter. Era como se ele e a jovem fossem uma

única consciência, mesmo quando ainda indivíduos inteiros,

estavam completos por estarem juntos. Após o ato de amor,

deitados sobre o sofá de descanso, Guma tinha Afar em seus

braços novamente, e por mais que soubesse que aquilo estava

errado, os sentimentos conflitavam por parecer tão certo, uma

vez que a sensação de plenitude os saciava e as carícias

preenchiam os diálogos dispensando palavras.

Afar disse enquanto passeava uma das mãos pelo peitoral do

comandante;

- Deveríamos fugir.

Guma

- Fugir para onde?

Afar

- Não sei! Apenas fugir!

Guma se sentou e vestiu a túnica;

- Por que diz isso?

Afar sentou-se também;

- Porque posso fingir amar Musa, mas não sei se posso fingir

não amar você.

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Guma sentia o peso de sua consciência;

- Afar! Está ouvindo o que está me dizendo? O que aconteceu

aqui foi um erro. Não devemos repetir isso nunca mais. Logo

estarei indo embora e...

Afar se levantou vestindo-se;

- O quê? Eu é que pergunto se está se ouvindo? Depois de tudo

isso, de toda a nossa história, você me diz que o que fizemos foi

um erro? E ainda diz que tem planos para ir embora? Eu

realmente devo ter me enganado sobre você! Não acredito que

permiti que me tocasse depois de ouvir todas aquelas histórias!

Guma foi até ela;

- Não é nada disso!

Afar

- Você deve mesmo ter se tornado um boçal, ignorante e

insensível! Ou a fortuna e a fama com certeza o tornaram quem

é hoje!

Guma a segurou pelos braços;

- Pare de falar essas coisas! Sabe que não sou assim! Olha pra

mim! (Afar o obedeceu). Eu amo você, tudo que fizemos foi

incrível. E posso dizer que jamais amei uma mulher como amei

você hoje, mas não seremos felizes sabendo que para ficarmos

juntos teremos que magoar outras pessoas. Você não pensa

nisso? Porque o coração que ainda me resta está explodindo de

felicidade por tê-la, mas também sofre por ter traído um irmão.

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Afar se acalmou;

- É claro que penso. Aprendi a amar Musa, mas o que sinto por

ele nem mesmo se compara ao amor que tenho por você. Talvez

ele supere e seja feliz com outra pessoa. Sei que ele e Sunieri

foram felizes e apaixonados por um tempo. Prefiro acreditar que

tudo ficará bem.

Guma

- E se não ficar?! Conheço Musa melhor que ele mesmo, e sei

que esse tipo de coisa o destruiria! Ele iria nos odiar, caçar e

matar! Sou excelente com minha espada, mas sou um único

homem, e longe daqui não tenho poder algum. Serei apenas um

guerreiro. Também preciso ser realista e pensar que construí

uma família e uma vida aqui, não posso simplesmente ir embora

com você e esquecê-los, como se nunca tivessem existido.

Afar

- Sim, você pode! Nós podemos! Será meu guerreiro, e eu serei

sua todas as noites e pelo tempo que desejarmos. Não teremos

que nos preocupar se estarão nos vigiando, ou se seremos pegos.

Posso aprender a trabalhar, podemos dar um jeito...

Guma a interrompeu e a acariciou no rosto;

- Não, Afar, não faremos isso. Não podemos mais nos ver. Musa

irá providenciar a minha partida, eu aceitarei qualquer lugar que

me mandar ir, em qualquer posição que me colocar, não

questionarei. Serei o marido que Zaila sempre mereceu ter, e o

pai que deveria estar sendo. Você ficará, viverá com Musa como

sua esposa e irá amá-lo. E talvez, talvez um dia a felicidade nos

pertença.

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Afar segurava Guma pelos braços;

- Não Guma! Não faça isso comigo outra vez! Não me deixe!

Não desista de nós! Eu não irei viver sem você! Não vou

suportar essa dor outra vez!

Guma a abraçou acalentando seu choro;

- Você vai, Afar! Vai viver sem mim, e eu sem você, até o dia

em que a terra consumir nossos corpos e nossas almas

finalmente se unirem no eterno. Viveremos separados porque é

assim que o destino nos pede que seja. Não sabemos o porquê,

mas devemos ser obedientes. (Ele a olhou nos olhos e Afar pode

perceber que ele também chorava). Eu te amo e vou te amar para

sempre, mas devemos nos separar.

Repentinamente, palmas foram ouvidas, Musa saiu das

sombras onde os tecidos volitavam ao sopro da brisa refrescante.

Os olhos vermelhos deixavam lágrimas escorrerem feito lava

vulcânica pelo rosto igualmente rubro de raiva, qual claramente

demonstrava que o Mansa sabia exatamente o que estava

acontecendo. Axar o acompanhava e servia de testemunha da

cena romântica entre o casal de amantes. Musa bateu três vezes

no centro do próprio peito com um dos punhos fechado. Afar e

Guma ficaram estupefatos.

Musa

- Punhaladas! Duas punhaladas! É o que estou recebendo dos

dois!

Guma

- Musa...

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Musa gritou;

- Calado! Não tem o direito de dirigir a palavra ao seu soberano

sem que ele permita, seu traidor! Eu devo parabenizá-lo por todo

o fingimento dessa manhã, onde você me jurou sua fidelidade,

canalha! (Ele se virou para Axar). Axar! Chame os guardas! O

comandante será preso e julgado como traidor insolente que é!

Afar

- Não! Não pode fazer isso!

Musa a fitou com ódio e gritou;

- Não o defenda! Como ousa fazer isso bem na minha frente?!

Como ousa falar comigo, olhar para mim depois de tudo que

disse?

Afar

- Musa, por favor! Sei que podemos explicar se assim permitir.

Musa gritou furiosamente indo para cima de Afar;

- Não há o que explicar!

Guma por um reflexo deu um salto para frente no

impulso de defender Afar, uma vez que pareceu que o imperador

desejava agredi-la, mas logo se conteve percebendo que Musa

não tinha essa intenção.

Musa virou-se para ele;

- O que foi?! Acha que pode defender a minha esposa da minha

ira?! Seu tolo! Eu sou o marido dela! Ela pertence a mim! A

mim!!!

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Guma

- Precisa se acalmar, Musa! Para tudo que ouviu existe uma

explicação.

Musa aproximou-se dele;

- Não existe explicação para traição! (Musa cuspiu em seu

rosto). Em pensar que ainda hoje eu o chamei de meu amigo. (A

guarda chegou). Levem Guma para a ala dos escravos, e

prendam-no no buraco mais desprezível desse lugar.

Afar

- Musa, por favor! Deixe-me explicar, Guma não tem culpa! Fui

eu quem o seduziu!

Musa se irritou ainda mais;

- Eu não quero ouvir nem mais uma palavra, Afar! Você já

deixou bem claro a quem realmente pertence o seu amor. Será

escoltada até seus aposentos, e será mantida lá até segunda

ordem. Levem eles! E que nenhuma palavra do que aqui

aconteceu seja dita nem mesmo dentro deste palácio.

Guma deixou-se levar sem nenhuma resistência,

conhecia o trajeto até as pequenas e fétidas saletas onde os

escravos mais rebeldes eram deixados nas galerias subterrâneas.

De repente, viu-se um miserável, pensando que não havia saída

se Musa realmente ouviu tudo que fora dito, todavia, não

desejava mentir se lhe fosse dada a oportunidade de se explicar.

Às cinco horas e meia que passou sentado no chão gelado de

lodo e excrementos não o atormentaram, e nem mesmo ele

entendia como podia estar tão calmo em uma situação tão

desesperadora, uma vez que sabia que Musa não o perdoaria

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pela falta de verdade entre eles, e por ser ele o dono do coração

de Afar. Seu pai, Goé, qual já havia falecido alguns poucos

anos, por ser espírito entendido e resignado, fora resgatado por

seus amigos e familiares espirituais pouco tempo após seu

falecimento, e na verdadeira vida do mundo dos espíritos, fora-

lhe concedido que acompanhasse a trajetória do filho errante,

qual havia se responsabilizado como pai quando lhe ajudou a

conceder a vida de Guma na carne. Goé ainda se sentia

responsável, e lá estava, na masmorra escura e sombria ao lado

do filho, fazia preces, rogando ao alto para que o fardo de seu

amado filho, fosse leve, e que o Senhor pudesse conceder-lhe a

força e a coragem para suportá-lo até o fim, uma vez que Goé já

pressentia o possível caminho que Guma teria que percorrer na

remissão de seus crimes cometidos não somente naquela vida,

mas também em vidas passadas, para que lhe fosse possível

alçar o belo voo da alma pecadora em direção a purificação de

sua própria consciência, caminho este, inevitável a cada um de

nós. A calma de Guma provinha dos fluidos que o pai lançava

sobre ele com o auxilio da prece e dos espíritos superiores, quais

os olhos humanos não podiam enxergar devida à sutileza da

matéria fluídica, mas uma redoma de luz esbranquiçada se

adensava ao seu entorno, e sobre fluxo contínuo, concentravam-

se na cabeça e no tórax na parte cardíaca.

Guma estava resignado, pois por mais que seus

pensamentos superficiais rodeassem não o permitindo entender

por que se sentia estranhamente imperturbável, seu inconsciente

sabia que o momento da prova lhe havia chegado, haja vista que

a oportunidade de escolher não trair o irmão amigo outra vez,

abdicando de suas vontades na prática do desprendimento de si

mesmo, lhe fora dada para que pudesse viver outra possibilidade

um tanto branda, no pagamento das mesmas dívidas que o

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destino não deixaria de cobrar de qualquer maneira. Contudo, o

velho guerreiro não conseguiu resistir como observado nas

cenas anteriores, de modo que o caminho agora escolhido por

sua fraqueza e traçado pela lei de causa e efeito, lhe seria

inevitavelmente mais cruel.

Guma fora arrancado do cubículo por soldados, os quais

não demoraram em esquecer que até o dia anterior recebiam

ordens do mesmo infeliz que ali estava, e mesmo sabendo que

sua estrutura corpulenta e forte lhe permitia revidar naqueles

quatro homens os golpes que levava no rosto e no abdômen,

decidiu sofrer o ataque. Por vontade de Musa, suas vestes nobres

lhe foram tiradas e substituídas pelos trapos dos escravos. Por

um momento pensou em Zaila e nas crianças, e lembrou-se de

orar para o seu Deus pedindo para que Ele os amparasse, pois

temia nunca mais poder vê-los novamente, recordando que

naquela manhã não fora se despedir da filha que brincava no

jardim como de costume, porque seus pensamentos estavam em

Afar. Guma fora levado para a sala do trono, onde Musa o

esperava incrédulo de sua inocência.

O semblante de Musa, agora estava coberto por certa

frieza, Guma fora compelido a prostrar-se diante dele, e em sinal

de respeito, mas principalmente porque conhecia sua culpa,

manteve a cabeça baixa. Suas mãos estavam atadas para trás e

claramente se via pelos ombros caídos o cansaço psicológico

que o abatia, assim como também era visível em Musa.

Musa

- Por quê? É só o que eu quero saber, depois você será

executado.

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Guma

- Afar e eu nos conhecemos bem antes de...

Musa falou irritado;

- Ela já me contou esse absurdo!

Guma, cansado, olhava nos olhos de Musa;

- Então irá se lembrar de que há muitos anos, no mesmo terraço

de hoje, antes mesmo de eu me casar, reparou que eu sofria de

certa forma por causa de uma mulher a qual eu não quis revelar

o nome...

Musa riu desacreditado;

- Isso é um absurdo. Vai me dizer que a mulher era Afar?

Guma

- Me arrependo de não ter sido totalmente sincero naquele

momento.

Musa

- Isso sim é verdade! Não foi sincero comigo, Guma!

Guma

- Me contou que no tempo que esteve em Tombuctu, Afar o

levava para a margem do rio para verem o pôr do sol. Ela fazia a

mesma coisa comigo, por isso sei que quando o sol está prestes a

desaparecer, ela abre os braços, fecha os olhos e roga aos

espíritos do rio para que estejam ao lado dela. Crença essa, que

aprendeu com os escravos do pai.

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Musa aproximou-se de Guma;

- Isso não é possível! Você... Você não pode ser justamente

aquele que eu mais invejei.

Guma

- E vai conseguir se lembrar de que sempre que estava comigo

ao pôr do sol, me via fazendo a mesma coisa, porque na verdade

fui eu que a levei naquele rio certa vez onde nos amávamos

antes de nos separarem.

Musa

- Já chega! (Musa caminhou desnorteado de um lado para o

outro). Então, a cidade de onde viera...

Guma

- Tombuctu. Eu nasci lá e cresci com Afar, meus pais eram fies

servos de Farrima e Sosso, a mãe, e o pai de Afar, que foi quem

me mandou para cá para servi-lo, simplesmente porque nos

amamos desde criança. Mas nem os anos ou à distância

conseguiram fazer com que eu a esquecesse. Afar foi arrancada

de mim, e eu dela, como as raízes são tiradas da terra na

tentativa de que se elimine o mal por definitivo. Eu quis

acreditar que isso seria possível, mas quando você a trouxe e eu

a vi bem na minha frente, como sua esposa, eu...

Musa

- Por isso me pediu para ir embora?

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Guma

- Sim! Eu nunca planejei trai-lo! Você sempre foi um irmão pra

mim, e saber que Afar era sua, foi... Eu tinha que ir embora,

sabia da minha fraqueza e precisava partir.

Musa

- Então por que me traiu? Por que não foi embora antes?

Guma

- Teria resistido se fosse você no meu lugar? A mulher que você

sempre amou, e que sabe que também te ama está ao alcance das

suas mãos. O coração acelera e você não consegue mais pensar,

apenas age com o instinto animal que ainda vive fortemente

dentro de você. Você se esquece de onde está, de quem é, do

que é certo ou errado, nem mesmo sabe se ainda respira porque

sua consciência desliga e você está tão interiorizado que não

ouve nenhum outro som sem ser a voz dela. Você está... Está tão

mergulhado no turbilhão de sentimentos dentro de você que não

se sente mais uma pessoa. É como se tudo se expandisse e você

fosse imenso como o céu e ao mesmo tempo pequeno como um

grão de areia. Eu o traí porque fui fraco em sentir um amor tão

forte ao ponto de não me importar se isso custaria a minha vida.

Musa

- Então não está arrependido?

Guma

- Me arrependo de magoá-lo.

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Musa

- Por que não disse, Guma, assim que olhou para ela? Assim que

soube que era ela? Por que não me contou tudo isso?

Guma

- Já estava casado com ela! Do que adiantaria? O que faria de

diferente? Deixaria de me odiar?

Musa

- Eu não te odeio porque você a ama, te odeio por não ter sido

sincero, por não ter sido meu irmão. Odeio por ter sido tão fácil

me trair depois da vida que eu te dei. Eu fiz você se tornar quem

é hoje, por isso me devia sua lealdade, e por isso também irá

pagar com a vida pelo seu erro. (Musa falou a um dos soldados).

Tragam Afar aqui!

Afar não conseguiu parar de chorar, imaginando o que

Musa iria fazer com Guma. Nas horas anteriores, contou e

repetiu toda sua história com o comandante até o momento do

seu reencontro com ele, não deixando de afirmar a Musa que

sempre o amou, e que apesar de ter se apaixonado pelo

imperador, ainda era a Guma que pertencia seu coração. Quando

a jovem avistou o ex-comandante na terrível situação em que

estava, pois que o rosto sangrava e o corpo estava sujo, teve o

impulso de ir ao seu encontro abraçá-lo.

Afar

- Guma! O que fizeram com você?!

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Musa ordenou;

- Segurem-na! (Ele caminhou até Afar). O que você fez com ele.

Guma responderá por seus crimes porque você se deixou

seduzir.

Afar

- Eu já disse que não fui seduzida. Isso é o que você quer

acreditar.

Musa gritou inflamado pela fúria;

- Cale-se ou eu...!!! Eu esquecerei que apesar de tudo, ainda a

quero para mim. (Ele voltou a se acalmar). É necessário que eu

pergunte, para que assim possa determinar melhor a sentença, se

devo apenas torná-lo um escravo, ou se deve ser executado.

Você se entregou para ele?

Afar

- Não! Não fizemos nada! Escravize-o! Mande-o para outro

lugar, mas não tire sua vida! Não faça isso, Musa! Eu imploro!

Musa caminhou até Guma e o encarou;

- É verdade?

Guma engoliu sua sinceridade, não se achou no direito

de mentir mantendo-se calado, porém, seu olhar confirmou que

havia feito amor com Afar. Como Musa o conhecia bem,

entendeu a silenciosa resposta.

Musa

- Muito bem! Será executado pela manhã, mas não antes de ser

castigado.

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Afar gritou desesperadamente;

- Não!!! Não pode fazer isso!!! Não pode matá-lo!!! Eu vou te

odiar, Musa! Vou te odiar pelo resto da minha vida! Vou te

odiar por toda minha existência! Não faça isso! Deixe-o ir e eu

serei sua esposa! Serei a melhor esposa que poderá ter! Eu vou

te amar! Mas deixe que Guma vá embora! Castigue-o, mas deixe

que ele viva!

Musa a fitou friamente;

- O que pensa que sou? Uma criança? Que pode me convencer

com promessas? Guma será executado, e apesar de ainda ser

minha esposa, você será uma serva para mim e fará tudo que eu

mandar. Viverá enclausurada nos seus aposentos, as janelas

serão fechadas e nunca mais verá o pôr do sol, até o dia em que

seus olhos se fecharem para sempre. Se não me obedecer, serei

obrigado a usar a força e o poder que me é legítimo. (Ele virou-

se de costas e ordenou aos guardas). Agora levem eles daqui.

As ordens de Musa foram severamente cumpridas. Guma

recebeu as chicotadas, quais foram dadas sem misericórdia,

onde suas carnes foram retalhadas pela pequena ponta de prata.

O imperador se sentou sozinho na sala que conservava pouca

luz, descansado sobre o trono de ébano, sentia como se seu

corpo carregasse o peso de mil homens. Havia uma voz sutil e

quase falha no fundo da sua consciência lhe dizendo para que

não fizesse aquilo, que vingar-se seria errado, que apesar de sua

dor, deveria perdoá-los e permitir que seguissem suas vidas se

assim desejassem, uma vez que o próprio destino se encarregaria

de cobrar suas dívidas. A voz lhe instruía para o esquecimento

de si mesmo, fazendo-o saber que Deus o ajudaria a curar suas

feridas. Mas Musa não conseguia escutar, o orgulho estava

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ferido e a vaidade derrotada inflamou seu ódio, o que

possibilitou que gerasse em volta de si um campo energético

propício para que a falange de espíritos comprometida com as

trevas se aproximasse por sintonia e invadisse seus

pensamentos, lhe hipnotizando com ideias malévolas e

despeitadas. O Mansa, assim, por ainda não saber e não

conseguir administrar seus sentimentos, fechou-se no calabouço

de sua cólera e se entregou a escuridão de sua alma.

Todavia, na calada noite que ainda se alongava, um

soldado qual muito admirava seu comandante, de nome

Abdulaye, despistou os companheiros que tomavam conta da

sela de Guma após o cumprimento do castigo, e sem nenhuma

dificuldade, conseguiu resgatar o amigo ferido. Surpreso com a

atitude do garoto, Guma não negou a ajuda, entendendo que

precisava aproveitar a oportunidade que lhe aparecia. Sabia ele

que não poderia mais ficar em Niani, e triste por não ter tempo

para poder se explicar e se despedir da esposa e dos filhos,

pegou o camelo que Abdulaye deixou atrás do palácio e seguiu

pela rota de fuga que sabia ser a dos escravos.

Zaila fora comunicada do destino do marido, e sem

pensar duas vezes, correu até Musa para implorar pela vida do

pai de seus filhos. Seu pedido fora insistentemente negado, mas

o mansa lhe prometeu que não tiraria sua fortuna, e que

permitiria que seus filhos vivessem se caso ela viesse a se mudar

para outras terras que não fossem as suas. Sem escolhas, Zaila

manteve-se forte, e obedeceu a implícita ordem.

Quando Musa foi avisado da fuga de Guma, sua ira fez

com que apontassem um responsável, e Abdulaye não escapou à

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memória dos soldados que havia enganado. O menino de apenas

dezoito anos fora executado no lugar de seu protegido.

Afar, presa em seus aposentos, sem nenhuma de suas

criadas para lhe servir, estava incomunicável, portanto não ficou

sabendo que seu amado havia escapado da morte. Debulhou-se

em lágrimas e gritou por todo aquele dia como uma louca,

acreditando que a vida de Guma já havia sido tirada. Até que o

cansaço a venceu, e a voz lhe faltou, uma vez que seus gritos

foram tão aterrorizantes que suas cordas vocais sofreram séria

inflamação, não lhe permitindo mais falar por longo tempo.

Alguns meses se passaram, não sendo necessário dizer que

desde aquele dia tudo nela virou deserto. Quando Musa a

visitava, tinha certeza que dentro do corpo imóvel e dos olhos

vazios, não havia mais uma pessoa. Afar foi congelada pela

imensa tristeza que a consumiu, desta forma, o imperador

permitiu que suas criadas voltassem com seus cuidados, uma

vez que observou que a jovem esposa definhava, não se

movimentando mais, nem mesmo comendo, apesar da gravidez,

onde gerava um filho que sabia ser de Guma. Um dia, uma das

escravas que a banhava, atreveu-se a dizer em seu ouvido que o

comandante Guma havia fugido antes de ser levado para a

execução, e que o imperador proibiu que falassem nesse assunto

quando estivessem com ela. Afar, após todo aquele tempo,

direcionou seu olhar para o da escrava, permitindo que um

ligeiro e gentil sorriso brotasse no canto da boca.

Com o estado debilitado de sua segunda esposa, Musa

enviou uma longa carta a Sosso onde contou com detalhes tudo

que se passou até aquele momento, e junto à correspondência,

enviava também a criança qual Afar veio a dar a luz, um menino

forte de nome Goé, explicando-lhe que o filho não era seu.

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Pouco tempo depois, pelo sofrimento da separação de Guma e

agora de seu filho amado, Afar faleceu sozinha em seu quarto,

quando pela falta da vontade de viver, contribuiu que o corpo

enfraquecesse a tal ponto que não lhe fosse possível conservar a

vida. Decisão essa, também considerada uma forma de suicídio,

uma vez que somos responsáveis pela preservação e bem-estar

da matéria que nos é dada, feito maravilhoso presente, onde

devemos seguir o cumprimento das expiações de nossas provas,

para assim ascendermos às camadas da luz e do bem, na divina

direção do progresso espiritual.

O que não tinha como ninguém saber, era de que forma

se seguiu o destino do nosso guerreiro. Guma percorreu longo

caminho sobre o camelo, que de esgotamento e desidratação

morreu na estrada. Mesmo sendo ele um homem forte, o

sangramento das feridas o abateu, sofrendo ainda com a fome e

a sede no inóspito clima onde era muito quente pelo dia, porém

muito frio à noite, uma vez que caminhou por longo período

pensando ser perseguido pelos guardas de Musa, arrancando as

últimas fibras de sua resistência, quando seus pés machucados

pelas pedras do caminho, cederam aos maus-tratos. Guma usou

uma rocha para apoiar o corpo que implorava por descanso, e

encolhido feito animal ferido, tentava se proteger do frio e do

vento. Assim fora achado por mercadores de escravos, quais

vinham do oriente. Deduzindo que o forte negro havia fugido de

seu senhor, os mercadores apanharam o comandante que não

teve forças para se defender. E por poucos meses Guma sofreu

fortes golpes de homens tão brutos quanto ele, uma vez que

tentava convencê-los de que não era escravo, contudo, aos

mercadores não interessava seu nome ou sua história, Guma era

uma boa mercadoria devido ao seu porte. Acorrentado pelos pés

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e pelas mãos, as covardes surras que levava toda vez que repetia

seu nome, o fizeram inibir sua própria identidade, ele percebeu

que de nada adiantaria tentar provar que não era um escravo,

uma vez que a vida o havia tornado um. Em certa caravana,

acorrentado a outros tantos negros fugidos, capturados e mesmo

roubados de suas famílias, viajou para o Egito onde fora vendido

para as galeras do Mediterrâneo. E mesmo tento aprendido a se

manter calado e obediente, Guma inexplicavelmente despertava

a fúria dos companheiros de miséria, onde muitas vezes se via

obrigado a se defender em lutas truculentas, quais sempre

ganhava, com homens onde suas ideias e atitudes

assemelhavam-se a bestialidade de animais ferozes, almas ainda

enraizadas no primitivismo do ser. Certa feita, quando ainda

dormia, por vingança e covardia, Guma recebeu um forte golpe

na cabeça, qual o fizera sangrar até perder a consciência. O ex-

soldado foi deixado na estrada, sua respiração e seus batimentos

cardíacos ficaram tão fracos que fizeram acreditar que ele estava

morto. Mas, pela necessidade de se resgatar com suas faltas das

vidas pretéritas, ao acordar não conseguiu recobrar sua

consciência, perdendo a fala e a memória, sendo lesadas as

partes de seu cérebro quais na vida passada ele violentou por

vontade própria na decorrência do suicídio.

Pela lei de causa e efeito, pela força e necessidade do

resgate das próprias faltas, qual nos é cobrada através da própria

consciência, essência Divina pela qual somos criados, imaculada

semente de luz que vive em nós sob as terras da insensatez e da

ignorância da alma infantil, o velho guerreiro passou anos a

mendigar pelas ruas de Alexandria, não tinha memória, não

sabia quem era, mas também se soubesse, desaprendera a falar,

ainda com os pensamentos perturbados e assombrados pelos

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espíritos que vinham volta e meia cobrar suas dívidas pelas

ações ignóbeis praticadas em outras existências, Guma ficara

conhecido como o louco do sol, pois que todo fim de tarde,

aproximava-se do oceano, e sem nem mesmo saber por que fazia

aquilo, abria seus braços para o poente, fechava os olhos e sentia

leve alívio na alma sofredora. Goé, seu pai, nunca o abandonou,

e por todos aqueles cinquenta anos ele esteve ao seu lado

rogando a espiritualidade maior, a Jesus e a Deus, fazendo

preces pelo filho louco e maltrapilho que vivia das migalhas da

pouca compaixão que encontrava pelo caminho. Guma veio a

falecer com quase oitenta anos, quando em uma bela e calma

tarde, onde o ar perfumado pela maresia refrescante e o aroma

das flores amareladas adoçavam seu simpático sorriso

conformado com o destino calejado, onde seus passos já

vacilantes devido à idade, aproximaram-se de um elevado

rochedo, não muito alto, para contemplar e se despedir do astro

rei, viera ele a tropeçar nos próprios pés, causando-lhe a queda

inevitável sobre as pedras, onde seu corpo fora levado pelas

ondas do mar, vindo a desaparecer no fundo do oceano. O louco

do sol se desprendeu do fardo terreno.

Pela misericórdia Divina, e por ter cumprido boa parte

dos seus deméritos, Guma nada sentiu quando o vaso da vida se

quebrou nas rochas, desatando os nós que seguram a alma ao

corpo físico. Amigos espirituais, organizados por seu

benevolente pai e por sua amorosa mãe, ajudavam a afastar os

espíritos cobradores que lhe aguardavam no mundo das

sombras, onde ainda se mantinham presos pela força do

pensamento angustiante, entre eles estavam Raja e Musa, que

também sofriam no mundo espiritual. Contudo, o comandante

fora levado adormecido pelo efeito de fluidos, à sublime colônia

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espiritual, cidade magnífica, de beleza exuberante, esfera astral

que emitia cintilante luz, qual resplendia sobre as camadas do

planeta e do cosmos. Avistavam-se ainda as belas construções

egípcias, templos monumentais e jardins suntuosos, quais

pareciam transmitir divina paz e exalar límpida tranquilidade

aos habitantes daquela maravilhosa colônia, sintonia de

sentimentos estes, que parecia ser possível respirar nas

micropartículas daquele ar etéreo, como se seus moradores

emanassem sutilmente tal efeito maravilhoso. Tudo naquele

lugar despertava sensação de alegria e beleza.

Guma fora levado para certo local onde seria possível a

reorganização de seu corpo fluídico, no qual receberia

primeiramente os devidos cuidados nas áreas afetadas do seu

cérebro lesado, para que assim lhe fosse possível recobrar as

vias da razão e a memória secular, tratamento esse que era

delicado e demasiadamente demorado, feito por amigos

especialistas na área da medicina espiritual. Outro grupo

trabalhava com passes na reorganização dos membros e o

funcionamento dos órgãos, revitalizando as áreas necessárias da

sutil matéria. Após longo tempo, foi possível que ele

despertasse.

A sala de cor branca reluzente possuía gravuras de cores

fascinantes em linha reta na parede, eram belos desenhos que

retratavam histórias que Guma sentia saber do que se tratava.

Fixou seus olhos no desenho de um homem que pregava em

uma montanha, e aproximou-se cambaleante, quando tentou

tocar, visualizou suas mãos, estavam jovens, e quando tocou seu

rosto, percebeu ter a idade de um homem não mais velho que

uns trinta e poucos, percepção essa que não lhe revelava muito,

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uma vez que quando perdeu a memória estava com essa mesma

aparência, pois que após o choque, não percebera a passagem do

tempo e nem mesmo o envelhecer do corpo físico. Os

pensamentos ainda estavam confusos, e a memória, mesmo

restaurada nos seus mecanismos, ainda lhe falhava, uma vez que

passara muito tempo preso ao fardo carnal sem de nada lembrar,

seu corpo então, como engrenagem empoeirada, precisava ainda

do retorno de seu regular funcionamento através da força da sua

vontade. Uma jovem mulher abriu a porta com leveza, trazia-lhe

uma bandeja com um copo de água, a qual possuía fluidos

revigorantes. Guma não a reconheceu, mas pode sentir a bem

querência despertada em seu âmago, e não poderia ser diferente

sua reação, uma vez que aquela singela mulher fora sua mãe

pelos laços da carne e do coração. Hanaman tentava controlar

sua emoção, pois sabia que a possibilidade de seu filho a

reconhecer de imediato não era evidente.

Hanaman

- Olá, Guma! Como está se sentindo hoje?

Guma

- Ainda estou um pouco tonto. Sinto leve dor na cabeça.

Hanaman

- Onde? (Guma lhe mostrou o lobo temporal e Hanaman o

acariciou transmitindo-lhe fluidos analgésicos). Não se

preocupe, logo irá melhorar.

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Guma

- Sinto que já está melhor! Mas... Onde estou? Não me lembro

de muita coisa, e apesar de não conseguir evitar a tranquilidade

que me toma, tenho leve inquietação sobre isso.

Hanaman

- Não se desgaste tanto. As lembranças voltarão a seu tempo.

Por hora, tente me dizer do que se lembra?

Guma parou com o olhar no vazio;

- Lembro-me de um clarão queimando meus olhos, mas de uma

forma boa. Vejo braços para cima e ouço um barulho aquoso.

(Ele inquieta-se). Nada faz sentido!

Hanaman sorriu carinhosamente;

- Está tudo bem. (Ela o acomodou na cama e o fez beber a

água). Não precisa se apressar, temos todo tempo do mundo.

Guma deu um gole;

- Também não me lembro de me dizer quem é você.

Hanaman o fitou com amor;

- Eu sou Hanaman. (Ela esperou para ver sua reação e logo

sorriu com singeleza). Sou enfermeira nessa localidade e vou

ajudá-lo até sua total recuperação.

Guma

- E eu estou me recuperando de quê?

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Hanaman

- Você sofreu um acidente muito grave. Caiu e se machucou,

mas está se recuperando bem, e logo suas lembranças irão

retornar, vai ser nesse momento que precisará manter a calma e

o equilíbrio.

Guma sentiu leve desconforto na região do chacra esplênico;

- Calma e equilíbrio. Tentarei me lembrar.

Hanaman tocou em sua fronte;

- Não se preocupe. Você está seguro aqui. Deve descansar. Logo

estará recuperado.

A mão que Hanaman acariciava a fronte de Guma

transmitia-lhe paz e reconforto, pacificando os sentimentos que

as lembranças ainda escondidas no calabouço do inconsciente

traziam, no ansioso desejo que ele tinha de recobrá-la. Não era

mesmo aconselhável que Guma recobrasse por inteiro tudo que

havia passado, pois ele sofreria grande choque, e de certo isso

lhe seria prejudicial, podendo retardar a sua recuperação ou

mesmo prejudicá-lo. Ele adormeceu, e por muitas vezes

acordou, recebendo os cuidados da mulher misteriosa que o

fazia se sentir seguro e em paz. Qual também sempre aliviava as

eventuais dores que sentia na cabeça e no corpo. Após a

avaliação do seu estado, Guma fora levado até outra sala onde se

realizaria nova cirurgia. Despertando somente quando estava de

volta ao seu quarto, percebeu que a mulher zelava seu sono

reparador, ainda não se lembrando de nada, nem mesmo

sabendo que lugar seria aquele, tão diferente e belo.

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Hanaman

- Se sente melhor?

Guma sorriu;

- Sim, porém ainda sofro a frustração de não me lembrar de

nada.

Hanaman

- Tenha calma.

Guma

- Só consigo ver a mesma imagem, de novo e de novo. (Ele a

olhou nos olhos). Sempre.

Hanaman

- Tenho certeza que ela o afaga de alguma forma.

Guma

- É certo que sim, mas também me causa grande agonia, como

se faltasse algo, como uma parte de mim.

Hanaman manteve-se quieta e Guma permitiu que seus

pensamentos divagassem, fora quando como que por um assalto,

algo lhe veio à mente.

Guma

- Espere! Afar!

Hanaman o fitava calmamente;

- Quem?

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Guma deu um salto da cama;

- Eu... Eu não sei! Sinto que preciso vê-la! Ela está aqui?! Eu

preciso vê-la!

Hanaman o amparou;

- Acalme-se, Guma. Logo suas perguntas serão respondidas.

Guma

- Você a conhece? Ela está aqui?

Hanaman

- Não, não está. Mas fique calmo, nós a acharemos.

Guma a olhou no fundo dos olhos;

- Estou me controlando para ficar calmo, mas as lembranças...

(Ele torna a vaguear o olhar). Elas estão vindo! Vindo como um

rio que viaja e não cessa! Não posso evitá-las! Não consigo!

Talvez... Oh, Não! Afar! Tombuctu! O níger! (Guma se

emocionava) Não! Não é possível! Xerxes!

Xerxes fora o nome de Musa em sua encarnação na

pérsia, e era o nome qual por hora Guma conseguia recordar.

Hanaman o levou de volta para a cama;

- Não se perturbe, Guma! Vai ficar tudo bem.

Mais uma vez, a mãe zelosa colocou uma das mãos sobre

a fronte do enfermo, e assim ele se acalmou, adormecendo em

profundo e demorado sono.

No dia seguinte, Guma despertou aos prantos, não

somente sua memória recente havia sido recobrada, mas uma

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boa parte de vivências anteriores, onde viu a crueldade de seus

atos e a iniquidade com que os praticava. A dor que sentia em

seu peito fora tanta que caiu de joelhos e implorou perdão a

Deus. Quando Hanaman abriu a porta, Guma atirou-se em seu

colo abraçando-a fortemente.

Guma

- Mãe! Perdoe-me! Perdoe-me, mãe! Eu falhei novamente!

Falhei novamente! Me perdoe!

Hanaman o envolveu em seus braços, confortando o forte

choro compulsivo, deixando que a túnica enxugasse as doloridas

lágrimas do filho. Guma não conseguia conter-se e os urros do

sofrimento seriam inexplicáveis se apenas tivesse recobrado os

erros da recente existência terrena. Porém, o guerreiro viu um

importante rei de coração cruel e egoísta, qual se aliou a bela

jovem que o seduziu tornando-se sua amante, possuidora dos

conhecimentos dos segredos ocultos da alquimia e do verbo

sobrenatural com o além, Mahara era conhecida pelo dom da

magia, haja vista que muitas vezes viera a usá-lo em benefício

próprio, causando grande dor até mesmo para todo um reino.

Em dia ensolarado, sobre as lajes de Persépolis, quando ainda

fazia sua caminhada, apaixonou-se de imediato pelo jovem Oco,

desde que o avistou entre a guarda real. General do exército,

Oco fora precocemente nomeado sátrapa, uma vez que seu dom

para a guerra fora observado pelo pai. Era destemido e possuía

sagacidade surpreendente para a arte da luta, e sendo o terceiro

filho, esforçava-se para obter a atenção do pai. Certa feita,

Mahara o surpreendeu em seus aposentos e ofereceu-se para

segui-lo onde quer que ele fosse, prometendo que o guiaria por

muitas vitórias, podendo mesmo torná-lo grande como ela o

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enxergava. Oco também se apaixonou imediatamente por aquela

mulher misteriosa, de estupenda beleza e olhar penetrante.

Mesmo casando-se com sua sobrinha, qual teria sido Raja,

Mahara permaneceu ao seu lado como amante, uma vez que não

podia se imaginar sem aquele homem. Apesar de Oco não ser

herdeiro direto, veio a reinar como Xá, após organizar uma

revolta contra seu meio irmão, assassinando-o com fogo,

vingança essa também fomentada pelo fato de que esse meio

irmão havia assassinado seu pai e seu querido irmão Xerxes pela

conquista do poder. Oco tornou-se um rei sanguinolento,

incitado pelo relacionamento com Mahara, que também por

ciúme e despeito, direcionava sua raiva para suas vítimas,

fomentando junto ao seu amado, práticas de tortura como o

escafismo contra aqueles que julgavam seus inimigos, inclusive

seus parentes.

Ali estava o motivo pelo qual Guma e Afar precisavam

manter-se separados. Por muitos anos, em muitas vidas, mesmo

unidos por um sentimento puro, o casal de amantes contribuiu

para que um, tanto quanto o outro, aumentasse ainda mais sua

dívida com a Lei Maior, a Lei de Amor e de Caridade, qual

todos somos impelidos ao aprendizado no transcurso secular dos

erros da vida, da livre escolha e do amadurecimento humano.

No mais, Guma e Afar sacrificaram vidas no objetivo de se

manterem unidos e invictos, criando dívidas com esses irmãos,

acima de tudo, com suas próprias consciências. E já havendo

passado algumas encarnações desde a Pérsia, também houvera o

arrependimento de ambas as partes, no que tange o resgate de

suas dívidas, contudo, Guma descobriu antes de Afar, que

somente pelo caminho da abnegação, da resignação e da fé, que

se é possível alçar voo em direção ao Altíssimo e a verdadeira

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felicidade. Ainda assim, seu amor por aquela criatura,

sentimento esse que nasceu no berço das ilusões sedutoras da

promiscuidade e da sensualidade, amadureceu durante o

processo do longo fio das vidas que tiveram juntos, e se tornou

árvore belíssima com fortes raízes fincadas no terreno do

coração.

Por mais que os tempos tivessem passado e Guma já

entendesse que Deus não nos culpa nem nos pune por nossas

malévolas ações, e que essa cobrança é feita verdadeiramente

pela nossa própria consciência que através das vivências

inevitavelmente amadurece no bem, o sofrimento o abalava,

sendo ainda difícil que ele próprio se perdoasse, uma vez que

também sabia que aquela mulher que o abraçava com todo

carinho e dedicação, e que viera lhe dar a vida na última

existência terrena possibilitando seu avanço moral e espiritual

através da experiência na carne, fora uma de suas vítimas no

passado, assim como o pai que ele tanto amava. Guma chorava

rios de lágrimas que brotavam da nascente do fundo de seu

peito, e desaguavam por seus sofridos olhos negros como fonte

de bálsamo que expurga as chagas da alma arrependida.

Hanaman também se emocionava, mas suas lágrimas eram de

gratidão por finalmente estar vendo aquele ser tão querido

passar pelas etapas mais duras do crescimento e da iluminação

da alma, com força e com fé.

Hanaman

- Meu filho, precisa descansar! (Hanaman o ajudou a se

levantar).

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Guma a encarou com o rosto banhado em lágrimas;

- Como poderei viver com tudo isso?! Com todas essas

lembranças?!

Hanaman

- Como todos nós vivemos. Na senda da vida, somos todos

infratores da lei de amor e caridade, e quando chegamos ao

ponto em que entendemos isso, podemos também compreender

quando nosso próximo, ainda cego da verdade maior, comete

seus enganos. Dessa forma, entendemos o que é o verdadeiro

perdão, e então podemos ser úteis praticando o bem. Assim,

haverá um dia em que teremos feito mais o bem que o mal, e

essas lembranças não nos machucarão tanto, pois irão servir

apenas para nos lembrar de que foi necessário passar por essa

ponte, fazendo-nos entender os irmãos que ainda estão

cruzando-a.

Guma

- Ainda assim, é difícil me perdoar.

Hanaman

- O tempo é remédio para todos os males, Guma. (Hanaman

sorriu brandamente). Tem alguém aqui que deseja te ver.

Goé passou pela porta, e movido pela força da saudade,

deu forte abraço no filho que agora se emocionava por

reencontrá-lo.

Guma

- Pai! Que saudade, pai! Também preciso te pedir perdão!

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Goé emitia luminoso sorriso;

- Guma, meu filho! Que bom que está entre nós! Só falamos de

perdão com aqueles que se sentem ofendidos, eu estou é muito

feliz por finalmente poder vê-lo se recuperando.

Guma

- Por que não veio antes?

Goé

- Tenho trabalhado muito, junto a outros irmãos, graças a Deus!

E sabendo que sua mãe reservou esse tempo para cuidar de

você, não precisei me preocupar. (Guma manteve-se pensativo).

Sei que está ansioso para ver Afar, mas precisa se recuperar

antes.

Guma

- Eu sei, é que não consigo evitar os pensamentos sobre como

ela está. Eu a deixei em circunstâncias tão comprometedoras.

Sei que também sofreu e sofre com tudo isso.

Goé

- Mas precisa entender que você não poderia ajudá-la nesse

momento, antes, deve estar totalmente equilibrado.

Guma

- E onde ela está? Eu poderei vê-la?

Goé

- Não, meu filho. Afar encontra-se em um lugar onde seus

sentimentos estão afinizados. Creio não ser o melhor momento

para lhe revelar isso, mas sei também que não te furtará a

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preocupação e a curiosidade só te corroerá as energias que deves

empenhar na tua melhora para ajudar aqueles que tu amas.

Contudo, saiba de antemão que temos amigos tão empenhados

quanto nós no progresso de Afar. Mesmo eu tenho sempre ido

visitá-la e muitas vezes conversamos. Afar exasperou-se e

entrou em profunda depressão após aquele triste dia em que

você fugiu. Musa esforçou-se para que ela acreditasse que sua

morte havia sido concluída, e mesmo uma serva lhe revelando

que você havia escapado, a jovem não encontrou forças para

suportar novamente a ideia de viver sem você. Quando a

gravidez foi descoberta... (Guma arregalou os olhos de surpresa

e Goé lhe segurou uma das mãos). Sim, Afar teve um filho seu,

Guma. Quando descobriu que estava grávida, ainda enxergou

certa esperança no futuro, lutando para que a tristeza não a

consumisse, conservando e transferindo todo o amor que tinha

para a criança. Porém, assim que o menino nasceu, Musa o

mandou para a casa de Sosso, mas a criança recém-nascida não

resistiu a viagem. Afar enlouqueceu antes mesmo que seu corpo

definhasse por completo, e mesmo já havendo deixado o corpo

putrefato na clausura daquele quarto, sua alma ainda acreditava-

se presa no recinto em eterna agonia. Não fora fácil fazê-la

perceber que seu físico já havia morrido, todavia, mesmo

percebendo que estava na vida após a morte, não conseguiu

abandonar o sofrimento por todos esses anos, isolando-se em

vale tenebroso.

Houve longo silêncio no ambiente, mas a face e o

profundo olhar de sofrimento de Guma, diziam muitas palavras.

Estava ele dilacerado pela dor de saber que sua amada até

aqueles dias ainda sofria a sua falta, e sentiu-se responsável por

todos aqueles acontecimentos, mesmo pelo filho amado que não

conheceu e que tão breve morreu.

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Goé

- Não se deixe abalar pela tristeza, Guma. A planta, para

contemplar o sol, antes precisa vencer o impositivo da terra

sobre ela, abrindo caminho com sua própria força de vontade até

chegar à superfície, onde realmente começará sua jornada. Só

poderá ajudar Afar, se estiver suficientemente forte para resistir

às vibrações de dor e desespero que os assola. Precisas estar

bem para ajudá-los.

Hanaman

- Escute seu pai, meu filho! Aproveite esse tempo longe de Afar

para crescer e aprender. E através da superação de si mesmo e

do burilamento que os aprendizados da vida nos oferecem,

quando menos esperar poderá estar junto a ela.

Guma

- E Xerxes?

Goé

- Está perguntando sobre Musa. Ele ainda não se perdoou pelos

erros que cometeu após a sua partida. Culpa-se incansavelmente

pela morte de Afar, qual sabemos que ele criou fortes laços

quando em vivências anteriores, foi seu marido. Ainda

encarnado mudou alguns hábitos, fez peregrinações, atos

religiosos, mas não percebeu que essas atitudes eram externas, e

que o que precisava mudar era seu íntimo, os sentimentos que

conservava, o ódio que o consumia, e o perdão que nunca

conseguiu consentir. Ao se desprender do corpo, isolou-se no

seu sofrimento, e não nos permiti chegar perto desde então. Ele

sempre o procurava, e incitava os escravos ao seu redor para que

brigassem com você, até que conseguiu machucá-lo na cabeça.

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Infelizmente, não pode perdoar sua traição. Mas devemos

perseverar. Musa possui grande coração, apenas precisa superar

o orgulho inflamado pelas muitas vidas que teve favorecidas

pelo poder e a glória.

Guma

- Sei que sou culpado por seu sofrimento. Eu nunca quis

machucá-lo, mas sempre que tento não fazer isso, parece que

todas as forças me arremessam a fazer justamente o contrário.

Hanaman

- Meu filho, do que adianta desperdiçar esse tempo se punindo?

Assim que estiver recuperado, nós conversaremos, e creio que

será possível que possa ajudar Musa a vir conosco para a

colônia. Como todos nós, Musa fez coisas ruins, mas tem seus

méritos. E não temos dúvidas de que ele também o ama como a

um irmão.

Goé

- Sim. É inacreditável como tantos irmãos perdidos pelo

desvario do ódio, não percebem que esse sentimento também é

uma forma de amor.

Aos poucos, a felicidade foi brotando de dentro do nosso

guerreiro, trazida pela esperança de dias melhores, e pela certeza

de que Deus estava junto a ele. Guma podia sentir aquela força

maior no seu coração, como se fizesse sólido abrigo, onde era

impossível existir qualquer sensação de vazio ou de solidão, até

mesmo quando em dias de profunda melancolia, isolava-se em

recantos de tranquilidade serena, a força dentro dele, como

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amigo incansável, o revigorava lhe dizendo em seu íntimo:

Ânimo, meu filho! A vida é maravilhosa!

Passou-se poucos anos até que ele pudesse finalmente

visitar Musa. O irmão de outrora e imperador do Mali,

encontrava-se em região trevosa, moldada pelos fios do rancor e

da raiva que sentia, onde também encontravam-se outros tantos

espíritos que possuíam afinidade com aquela vibração de sede

de vingança e ódio. Todavia, Musa passara tempo o suficiente

preso naquela camada vibracional, possibilitando o agravamento

de seu sofrimento, e agora encontrava-se exausto, uma vez que

naquele lugar, não possuía escravos e nem era imperador, nem

mesmo coisa nenhuma. Espíritos de perversidade maior, o

haviam capturado, e ele fora escravizado por certo tempo, até

que lhe foi possível fugir com a ajuda de amigos espirituais que

tentavam resgatá-lo, porém, aterrorizado, Musa sentia medo e

fugia.

Guma, com o auxílio de Goé, Hanaman e mais alguns

experientes amigos, foi levado até fétida caverna de profunda

escuridão e frio intenso, onde no canto de uma parede,

encontrou seu irmão praticamente desnudo e com o corpo

coberto por lama e algumas feridas, agachado e encolhido perto

da parede rochosa. O guerreiro sabia que não poderia demorar,

uma vez que os sentimentos que moldavam aquele panorama

eram muito intensos, e Guma ainda não possuía força o

suficiente para permanecer em tal local sem sucumbir ao

envolvimento com aquela energia. Uma áurea cintilante e

brilhosa circundava todo o seu corpo, e fora ela que iluminou

aquele lugar chamando a atenção de Musa, que de imediato não

o reconheceu e gritou para que ele se afastasse, escondendo o

rosto barbado e desfigurado pelo sofrimento, entre os braços e as

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pernas magras pela fome que ele acreditava sentir. O irmão não

insistia e partia. Guma fora recepcionado dessa forma nas três

tentativas quando retornava à caverna para resgatar Musa. Na

quarta, ele finalmente conseguiu se aproximar, e Musa o

reconheceu, contudo, ainda preso aos sentimentos da traição, o

xingava e tentava agredi-lo. Ferido e exausto, percebera que

suas investidas de nada adiantavam, até que finalmente aceitou,

ainda a contra gosto, a ajuda de Guma, que com amor e carinho

o levou para a colônia onde pudesse se recuperar. Após

determinado tempo, Musa passou por processo parecido com o

de Guma, lembrou-se das muitas vezes em que o irmão o

magoou, mas também não pode lhe fugir às memórias das

muitas vezes em que Guma tudo fez para salvá-lo pelo tanto que

o amava. Mesmo ainda sendo difícil, longos anos se passaram,

até que finalmente entendeu que precisava perdoar o irmão pela

sua fraqueza, uma vez que ele próprio não era perfeito e também

praticara seus equívocos.

Guma alegrou-se, e cada vez mais sentia as raízes da fé

viva se fincarem em seu peito, com a alegria e confiança que

construía em si mesmo, através dos trabalhos de resgate que

fazia nos planos espirituais junto a Goé e Hanaman. Assim,

aprendera a esperar sem questionar, mesmo sabendo que não

podia esconder seus sentimentos e a saudade que sentia de sua

Afar.

E lá estava o comandante, de volta ao reino do Mali, no

palácio imperial agora deserto e silencioso, onde somente a

melodia do vento era orquestrada pelas lembranças que possuía.

Afar ainda acreditava-se presa naquele quarto escuro e frio, e

nenhuma tentativa de qualquer irmão espiritual a convenceu de

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que seu sofrimento não a ajudaria, e que ela poderia abandonar

aquele local. Mas a jovem, submersa pela escuridão da própria

alma, não se interessava em ser resgatada e se sentia exausta

para ter interesse em se levantar dali. Guma penetrou nos

escaninhos da confusa e deprimida vibração que Afar criou em

torno de si, encontrando-a recolhida em uma parede, imóvel

como um objeto inanimado, ela repetia palavras para si mesma,

e clamava por seu nome. Guma esperou não precisar que aquele

momento chegasse, fez preces para que Afar conseguisse sair

daquela situação antes que ele fosse autorizado a vê-la, mas lá

estava sua amada. Ele se aproximou tentando conter o impulso

de ir abraçá-la, segurá-la no colo e tirá-la dali, mas não, isso

seria imprudente, era necessário pelo bem de Afar que ela

mesma vencesse seus obstáculos e buscasse o caminho da

regeneração. Era preciso que a sua própria vontade a tirasse da

situação em que ela se colocara.

Afar inquiriu ainda imóvel;

- Quem está aí? Já disse que não irei a lugar algum! Guma virá

me buscar, nós resgataremos nosso filho e fugiremos para longe!

(Ela gritou). Vá embora!

Guma se abaixou ao lado dela calmamente, tentando

controlar a desconfortável emoção que sentia por ver aquele ser

tão amado em estado emocional tão deprimente. A fraqueza de

Afar era evidente, recolhida como a um animal indefeso, a

energia que seus pensamentos liberavam era de medo e tristeza.

Ela ainda não havia olhado para o rosto iluminado de Guma,

estava decidida que ninguém a tiraria dali.

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Guma

- Afar, eu não a forçarei sair daqui se não desejar. Na verdade,

só quem pode decidir a hora que deve sair, é você.

Afar ainda com o rosto escondido entre os braços e os joelhos;

- Pois então vá embora e me deixe em paz! Estou esperando

pelo Guma! Ele vai voltar! Vai voltar para mim, e nós vamos

fugir para bem longe!

Guma

- Por que você não olha para mim? Talvez eu possa te ajudar a

encontrá-lo.

Afar sem vê-lo;

- Não! Não pode! Eu estou presa nesse quarto infernal! Musa me

prendeu aqui! Mas Guma virá me resgatar!

Guma falava pacientemente;

- Oras, se você está presa, como foi que eu entrei?

Afar

- Eu não sei! Você é servo dele? É servo de Musa?! Deixe-me

em paz! Vá embora!

Guma manteve a calma;

- Não, eu não sou servo de Musa, estou aqui para ajudá-la a

reencontrar Guma.

Afar finalmente o fitou, e por um instante seus olhos

penetraram os de Guma. O guerreiro logo observou suas

profundas olheiras, o rosto pesaroso pelo sofrimento que a pobre

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alma enfrentava no íntimo de seus sentimentos, aguardou para

saber se ela o havia reconhecido, implorando a Deus em seus

pensamentos para que o ajudasse naquele momento, uma vez

que para ele, passar por tal situação, assistindo um ser amado

mergulhado em seu próprio sofrimento que nem mesmo

conseguia reconhecê-lo, estava sendo verdadeira prova de fé e

controle.

Afar

- Quem é você?

Guma

- Sou um amigo, sei que posso levá-la até onde Guma está se

desejar sair daqui.

Afar segurou em seus braços;

- Você o viu? Sabe onde ele está? Por que ainda não veio me

resgatar? Sinto que está demorando, nosso filho precisa que eu o

alimente! Musa o arrancou de mim... (Afar começou a chorar).

Guma a abraçou delicadamente, e tentando fazer com

que ela não penetrasse ainda mais naquelas lembranças que

traziam ainda mais desespero e tristeza, a interrompeu com a

voz branda. O amor pelo qual Guma fora envolvido naquele

momento, não cabia em si, a luz a sua volta resplandecia, mas

era necessário que ele se controlasse para que Afar não se

assustasse e continuasse a vê-lo. Com Afar em seus braços feito

uma criança ferida e desprotegida, Guma encheu-se do espírito-

santo, esse jarro de sentimentos benévolos, onde somente o

amor e o bem podem reinar, mesmo na caverna obscura do ser

ainda em caminhada rumo ao Altíssimo.

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Guma

- Está tudo bem, minha querida. Eu posso levá-la até ele, mas é

necessário que você queira ir. Este lugar não nos serve para mais

nada, podemos sair se você aceitar ir comigo.

Afar esboçou um leve sorriso aceitando lhe dar as mãos;

- Está bem.

Guma conseguiu fazer com que ela se erguesse do chão,

e após tanto tempo, necessitou lhe dar auxilio nos primeiros

passos. Ele segurava sua mão firmemente, com o olhar

compenetrado no dela, preocupado em lhe passar segurança e

amor. Afar conseguiu sair do quarto, e o panorama a sua volta

ainda era aquilo que ela se lembrava sobre o palácio onde

vivera.

Afar olhava assustada;

- Onde estão todos? Está tão vazio aqui, tão quieto.

Guma

- Vou levá-la a um lugar especial. Sei que vai gostar.

Afar caminhava receosa;

- Que lugar? Guma está me esperando?

Guma

- Sim, ele sempre a esperou. (Lágrimas saíam do canto dos olhos

de Afar).

Afar sorrindo;

- E eu também, sempre o esperei. Onde ele está? Preciso vê-lo!

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Guma

- Tenha calma. Não se exalte tanto. Confie em mim, e logo

estará com ele.

Eles penetraram o último lugar onde estiveram juntos

sob a atmosfera do amor que os unia, o terraço onde se podia

apreciar o radiante pôr do sol do Mali. Afar observou aquele

lugar, e um brilho retornou ao seu olhar, a face não mais se

encontrava coberta pelas escamas do sofrimento, mesmo ainda

inquieta, já era possível ver a esperança retornar em seu coração.

Ela soltou as mãos de Guma e caminhou até o parapeito para

observar a paisagem alaranjada que Guma e outros amigos

ocultos ajudavam a construir. A brisa passou por sua pele,

volitou os tecidos, e balançou levemente as flores que exalaram

maravilhoso perfume.

Afar fechou os olhos e respirou fundo;

- Ar fresco.

Guma aproximou-se brandamente por trás;

- Você se lembra como era quando o sol batia em nossa pele?

Afar sorriu;

- Sim, posso até mesmo sentir nesse momento, o sol aquecendo

cada centímetro do meu corpo. Era como... Como se quando

abrisse meus braços... (Afar fez o movimento narrado).

...permitisse que minha alma se abrisse também, e fosse

alimentada por sua luz e seu calor.

Guma aproximou-se mais, e repetiu o gesto cheio de

carinho que fazia quando encarnado, levando uma de suas mãos

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até a de Afar que se estendia no alto, entrelaçando seus dedos

aos dela. Afar sentiu como se um choque muito forte tivesse

atingido seu coração e se espalhado por todo seu corpo, e

mesmo antes de se virar, sabia que aquele que estava junta a ela,

era seu grande amor. – Guma! Ela se virou repentinamente

abraçando-o com toda força que podia empregar naquele

momento, lágrimas molhavam todo o seu rosto, mas não eram

apenas as suas que a banhava, Guma não conseguiu controlar

suas emoções, e o choro compulsivo tomou-lhe o peito pesado

de saudades, ele segurou Afar em seus braços com toda força

que podia, temendo, mesmo sabendo ser improvável, que ela

voltasse a esquecer de que era ele quem estava ali junto a ela. E

como um coração que acha sua casa, Guma e Afar

experimentaram uma paz que há muito havia desacreditado que

existia. Os bons amigos espirituais socorristas que ajudavam

Guma, envolveram o casal, aproveitando-se daquele momento, e

os ajudaram a retornar para a devida colônia.

Afar precisou repousar em um grande centro de

recuperação, os danos que possuía se manifestaram mais no seu

psicológico, no consciente e no inconsciente, do que

propriamente no organismo físico, que sofrera o desencarne pela

falta da energia dos alimentos. Por muito haver sofrido no além-

túmulo, era necessário passar por vigorosa regeneração dos

fluidos no que chamamos por corpo fluídico. Dormira longo

sono, onde por muitas vezes necessitou tomar passes que

permitiriam a volta de sua consciência e memória. Ao acordar

recebera a assistência de amigos e familiares devotados ao bem

maior, porém, nenhuma palavra interessou-se em trocar. Não

demorou para que Guma estivesse ao seu lado com amistoso

sorriso.

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Guma

- Vejo que está melhor. (Afar ajeitou-se sentada na cama). Não

se exalte. É necessário que poupe suas forças.

Afar

- Estamos mortos?

Guma respondeu com tom de felicidade;

- Se sente morta?

Afar sorriu;

- Não.

Guma

- É porque o que chamamos por morte, é apenas o nosso

desprendimento do corpo físico, apenas ele morre, retornando ao

pó, à natureza.

Afar

- Então... O que foi tudo aquilo? Todo aquele frio? O escuro? As

vozes sem rostos? O medo? A solidão?

Guma

- Existem perguntas às quais não tenho respostas, ainda. Sei que

tem suas dúvidas, e todas elas serão respondidas no tempo que

lhes cabe, de antemão, é necessário que aprendamos a ouvir.

Mas não vamos mais nos prender ao que passou. É preciso

confiar em Deus, e vamos aprendendo a fazer isso quando nos

percebemos ainda como criancinhas, simples e ignorantes,

necessitados de todo aprendizado.

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Afar o fitava nos olhos;

- Nós tivemos um filho.

Guma deixou seu sorriso desaparecer;

- Eu sei.

Afar

- Por que não voltou? Disseram que havia fugido.

Guma

- Eu não consegui. A história é longa, teremos tempo para que

eu possa te contar com detalhes a necessidade que tive de passar

por tudo que passei, e responderei cada pergunta que me fizer,

mas sei que não é isso que quer, sei que está magoada comigo.

Afar

- Se tivesse me ouvido, nada disso teria acontecido. Teríamos

vivido uma vida juntos.

Guma a fitou com o olhar cheio de compaixão;

- Não pense assim, Afar. Haverá um momento que você vai

entender que o que vivemos era para ser vivido, de um jeito ou

de outro, e graças a Deus por isso, pois o que seria de nós se não

pudéssemos espiar nossas culpas e expurgar nossas faltas

através da vivência na carne, pelos espinhos que plantamos e

sobre as pedras que nós mesmos colocamos no caminho?

Afar

- O que aconteceu com o nosso filho?

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Guma

- Ele foi mandado para o seu pai no mesmo dia em que nasceu,

mas é claro que não resistiu à viagem. Sosso recebeu o corpo de

uma criança.

Afar não resistiu às lágrimas, outrossim, Guma não

conseguia esconder a mesma dor que sentia, todavia, o guerreiro

encontrava-se resignado aos designíos de Deus, confiante na fé

que reinava no santuário do seu ser.

Guma

- Sei que vai precisar de tempo.

Afar

- Tudo que eu queria era estar com você, mas agora... Agora não

sei mais. Sei que estou aqui, com você, porém, sinto como se

uma parte de nós tivesse morrido dentro de mim.

Guma

- Aceito que me culpe por todas as coisas que sinta necessidade

de culpar, sou servo do amor que sempre possuí por você, e se

for necessário que me seja imputada todas as culpas para que

possas usufruir um pouco de paz, pagarei a penitência de por

hora não ter seu amor, com alegria no meu coração. Contudo, já

é tarde para nós, que tantas dores causamos, e é preciso que

aprendamos a perdoar para que sejamos perdoados. Preciso que

saiba que após muito sofrer, Musa está aqui. (Afar olhou em

seus olhos).

Afar enrijeceu o semblante;

- Musa? Como ousa falar de Musa para mim?

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Guma continuou com o tom de voz sereno e pacífico;

- Fique calma. Você não precisa vê-lo, mas sei que haverá um

momento em que desejará isso. Ele necessita do seu perdão.

Afar

- Jamais! Musa é a causa de todo o meu sofrimento, do seu

também, da nossa separação! Da morte do nosso filho! Como

pode falar nele? Você o perdoou? Como pode perdoá-lo? Ele

quis te matar! O açoitou sem piedade! Ele é o responsável por

tudo isso, por toda essa desgraça!

Guma se aproximou de Afar e segurou em suas mãos, a

calma que dominava os mínimos impulsos de sua alma,

imperava sobre a revolta de Afar, e aos poucos ela foi sentindo

seu corpo e seus pensamentos relaxarem, como um nó que se

afrouxa, uma vez que os olhos cristalinos de Guma transmitiam

serenidade plena.

Guma

- Eu preciso que me escute, Afar, pois vou falar com você como

alguém que te ama profundamente, e mesmo que nesse

momento sua mágoa para comigo se sobreponha aos

sentimentos que você tão lindamente possui, sei que também

conserva esse sublime amor por mim. Não a recrimino por sentir

raiva, por estar magoada, por até mesmo desejar ferir assim

como foi ferida, eu mesmo tive esse impulso por muitas vezes,

mas reflita sobre os nossos atos, e pense se fomos totalmente

honestos e justos, ao ponto de não merecermos tudo que

passamos. Não existe um caminho pelo qual eu possa te

conduzir e fazer com que veja e entenda o que somente hoje eu

consigo compreender, quisesse eu que existisse. Mas o Pai,

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onipresente, onisciente e onipotente, fez com que fosse assim

para que possamos desfrutar da Sua sabedoria, do Seu amor e da

Sua paz, em plenitude, através do próprio esforço e merecimento

no aprendizado. Precisei caminhar os meus passos até aqui, e

posso dizer que não foi fácil. Não odiei Musa por desejar a

minha morte, nem mesmo por fazer de você sua prisioneira ao

ponto de te deixar morrer de tristeza e solidão. Não o odiei por

me tornar escravo e mendigo, por passar fome e frio, perdendo

minha família, meus filhos, deixando-os ao relento para morrer.

Eu sabia que a culpa de tudo isso era minha, eu o traí, e o que

ele sentia por você, era a fonte de luz que poderia resgatá-lo da

escuridão que tentava cobri-lo, fui egoísta e não respeitei isso.

Mas não posso mentir e dizer que não o odiei por deixar aquela

criança morrer, nosso filho, fruto inocente do amor que

sentimos. Mesmo assim, só pude perdoar Musa no instante em

que me vi tão criminoso, e que Deus me perdoe pela falta de

coragem nessas palavras, mas devo dizer que fui mesmo até pior

que ele. Dizimei famílias inteiras por capricho e pela ira da

minha vaidade soberana. Quantos filhos e filhas, pais, mães, e

casais como nós, em muitas vidas eu fiz morrer porque

simplesmente podia lhes tirar a vida, fosse pelo comando ou

pela força das minhas próprias mãos. Nada há de eximir a minha

culpa, que eu pagarei pela misericórdia de Deus, pois que não

haverá paz em mim se assim eu não puder me redimir.

Houve breve silêncio.

Afar

- Eu não sei o que dizer, Guma. Entendo tudo que diz, mas meu

coração está carregado com o peso da mágoa que carrego, tanto

de Musa que uma vez eu me permiti amar, por todo o sofrimento

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que nos causou, quanto de você, que eu sempre conservei

infinito amor, por me sentir abandonada.

Guma

- Não exigirei compreensão de sua parte, o amor que tenho por

você, sabe respeitar o momento certo em que estará pronta para

entender. Contudo, quero que saiba que por onde desejar

caminhar, seja por lindo jardim de gramíneas, ou por estrada

pedregosa, se Deus permitir, eu estarei com você. Todavia, meu

coração clama ao Pai para que você possa estar ao meu lado

nesse sentimento de perdão e resignação, para que possamos

caminhar juntos rumo à verdadeira felicidade.

Afar silenciosamente deixava lágrimas caírem no canto dos

olhos;

- Sei que há muitas coisas as quais eu ainda preciso saber. Sinto

como se um pano empoeirado cobrisse um velho móvel, não me

possibilitando apreciar seus detalhes. Talvez, quando me for

possível ver com clareza, eu possa compartilhar desses

sentimentos com você.

Guma

- Sim! Nenhuma outra pessoa lhe poderá tirar esse pano, apenas

você. Mas é preciso que antes analise seus sentimentos, e

fortaleça essa vontade maior de amar e perdoar.

Afar

- Não sei se consigo, Guma. Acho que tudo que tínhamos se

perdeu dentro de mim quando você se perdeu e deixou-me outra

vez.

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Guma

- Eu saberei esperar, e quando estiver pronta, eu estarei aqui.

Nada abala o verdadeiro sentimento edificado pela força dos

destinos no imo do ser. Assim, eu permanecerei te amando.

Por longo período Afar encontrou-se em estado

melancólico, mesmo recebendo toda a assistência necessária dos

irmãos espirituais que nunca descansam no trabalho do bem

onde cada um é especial, como somos aos olhos de Deus. Após

sua recuperação, ela pode reencontrar sua mãe Farrima e seu pai

Sosso. Guma não deixou de atuar junto à equipe de espíritos

socorristas ajudando aos espíritos desencarnados que por falta

de crença ou por dificuldades maiores, sofriam no mundo das

sombras. Ele sempre buscava o trabalho no bem com o coração

resignado, firme no propósito de sua alto-iluminação. Muitas

vezes encontrou Raja no plano espiritual em centros de grande

promiscuidade, onde tentava lhe trazer para a razão da

consciência, mas a jovem, ainda submersa no mundo das ilusões

humanas, debochava de suas atitudes e provocava-o com

argumentos que deliberavam sobre suas condutas quando

encarnado. Guma, qual amigo incansável, não se permitia

envolver por aquela atmosfera de provocações, e sempre a

deixava fazendo preces por sua melhora. Sabia ele, que antes de

Raja ser sua sobrinha esposa na Pérsia, antes de ser viúva

apaixonada por ele, e mesmo de ser a sofrida egípcia que ele

encontrara moribunda no porão de uma galera, ela havia sido

rude homem, estuprador e explorador de meninas e mulheres,

qual uma delas fora mesmo Guma, encarnação qual Raja

apaixonou-se por ele.

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Com o passar dos anos, fora inevitável a melhora de

Afar, sempre estimulada a assistir as dissertações públicas,

organizadas por espíritos tão benevolentes e articulados na arte

linguística, onde o intuito maior era pautado no esclarecimento

das leis Divinas e no amor do Cristo. Seu reencontro com Musa

não foi tão difícil quanto imaginou que seria, pois que já era

possível acessar a memória em que ela tanto o fez sofrer.

Mesmo assim, observou friamente as copiosas lágrimas que

encharcavam o rosto do algoz que incansavelmente lhe pedia

perdão ao cair de joelhos, quando em encontro particular. Afar,

acima de tudo, sentia-se constrangida, pois mesmo que não

conseguisse absolver Musa pelos seus sofrimentos na verdade

de seu coração, tinha plena consciência de suas culpas na

recente existência terrena, e em tantas outras. Amparado por

seus genitores, Musa experimentou forte alívio no peito, mesmo

percebendo a dificuldade que Afar encontrava em perdoá-lo, e

assim cumpria-se a certeza que ele tinha em seu íntimo, que

Deus sabia do seu real arrependimento e de sua vontade de se

redimir com aquela mulher qual tanto amou e odiou. Para Musa,

não importava mais o quanto ela já o havia magoado, não podia

ele medir ou pesar quaisquer erros e dores que ela havia lhe

causado ao longo das existências, só importava que ele

encontrasse a paz da consciência, e para tanto, sabia a

necessidade de espiar seus erros pela lei de causa e efeito em

existências futuras. Certa ansiedade tomava seus dias na colônia,

onde devotadamente buscava absorver os conhecimentos na

esperança de se instruir para as novas oportunidades que teria.

Não descobrira totalmente a felicidade, mas também sabia que a

tristeza não lhe ajudaria a impulsionar para a realização de seus

nobres ideais.

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Zaila, que desencarnou antes de Guma, fora um dos

espíritos que o ajudou muitas vezes, mesmo quando ele ainda

vestia-se do fardo carnal. Sempre empenhada na melhora

daquele que em existência pretérita havia sido sua esposa traída

e explorada, abandonada a própria sorte, virando vítima fácil aos

brutos homens de épocas remotas. A jovem esposa, agora

veneranda amiga, contentava-se em manter-se solícita às

necessidades do amigo, no âmbito de prestar incansável apoio a

Afar, que com paciência soube aprender a admirar a devoção

com a qual Zaila lhe prestava assistência.

E fora desta forma, que através dos tempos, por

orientação e programação de amigos da espiritualidade, nosso

grupo de espíritos veio a reencarnar na terra de Santa Cruz,

quando esta já batizada por Brasil expandia seus engenhos de

açúcar na Capitania de Pernambuco, hoje conhecida por

Alagoas, para que assim pudessem espiar as Marcas do

Passado.

Fim.

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Título: Mágoas para beber

Autora: CAMILA DE ALMEIDA

Membro Titular da ACLAC

Capa: Artista Plástico “Caó”

Diagramação e Edição:

LENARDO SANCHES

EDIÇÃO 2017

(PRODUÇÃO INDEPENDENTE)

CONTATOS:

[email protected]

http://camiladalmeida.blogspot.com/