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A SAÚDE DOS ANTIGOS REFLEXÕES GREGAS E ROMANAS

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A SAúde doS AntigoSReflexõeS gRegAS e RomAnAS

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Miriam Campolina Diniz Peixoto (org.)

A SAúde doS AntigoSReflexõeS gRegAS e RomAnAS

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Grupo de Filosofia Antiga da UFMG (??entra??, na ocasição,

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ISBN 978-85-15-_____________

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009

Preparação: Leila Silva de Miranda Bernardes Maurício Balthazar LealProjeto Gráfico: So Wai TamRevisão: C. Peres

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Sumário

7 Apresentação

11 Os conceitos de saúde mental na medicina e na filosofia gregas dos séculos V e IV a.C. (com um breve panorama da Antiguidade tardia) Philip van der Eijk

33 Calcular a saúde: a saúde como equilíbrio de forças na tradição pitagórica Gabriele Cornelli

43 Ordem do corpo, ordem do mundo: aitia, tekmêrion, sêmeion, historion nos tratados hipocráticos do fim do século V antes de nossa era Catherine Darbo-Peschanski

55 Kairos e metron: a saúde da alma na therapeia do corpo Miriam Campolina Diniz Peixoto

67 As afecções do corpo e da alma: a analogia gorgiana entre pharmakon e logos Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho

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87 A linguagem como pharmakon no Fedro de Platão Maria Aparecida Montenegro

95 Sócrates, o corpo, a morte e a tarefa do pensamento: um estudo do Fédon de Platão Anastácio Borges de Araújo Jr.

107 A relação entre a teoria da tripartição da alma e a teoria ético-política platônica Maria Dulce Reis

123 A relação corpo–alma no Timeu de Platão Karina Lucia Fabrini de Morais

135 A medicina e a filosofia prática em Aristóteles Fernando Rey Puente

153 Sabedoria e saúde do corpo em Epicuro Markus Figueira da Silva

163 Tradição e atualidade da parrêsia (“fala franca”) como terapia Edrisi Fernandes

181 O riso como sintoma: pontos de vista antigos (medicina, fisiognomonia, filosofia) Marie Humeau

203 Mistura das qualidades e determinação da saúde em Galeno: aspectos químicos e cósmicos Anne-France Morand

217 Cidade e saúde: Vitrúvio e a medicina filosófica Júlio César Vitorino

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Apresentação

O tema da saúde do homem (corpo e alma) e da cidade ocupou uma parte significativa das reflexões dos antigos. Nas civilizações grega e roma-na encontramos uma multifacetada reflexão sobre a noção de saúde: da cosmologia à antropologia, da física à ética, da medicina à política, e ainda nas artes retórica e poética. Numa homologia estrutural, a saúde do ho-mem e da cidade apresenta-se como um reflexo da ordem e do equilíbrio do cosmo. Este tema mostra-se, assim, como um dos topoi da literatura clássica e expressão da preocupação dos antigos em compreender os dife-rentes domínios da vida sob o signo do equilíbrio, da boa ordem e da pro-porção. Em que medida a reflexão sobre esses temas, aliada à busca de um princípio que articula a existência do universo e a de tudo que nele vive, da natureza em geral e da natureza humana, e à explicação de seus proces-sos, de sua permanência no tempo e de suas transformações no espaço, pode ser expressa pela noção de saúde?

Os campos semântico e lexical da noção de saúde remetem sempre às ideias de equilíbrio, de harmonia e de ordem, àquelas mesmas que os filósofos reconheceram no universo e em todas as coisas nele compreendi-das e que os oradores pretendiam estabelecer no microcosmo humano da cidade. Reconhece-se sua natureza dinâmica, a tensão que lhes é subja-

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A saúde dos antigos – Reflexões gregas e romanas

cente e a instabilidade do equilíbrio de suas partes. No dinamismo que lhes é próprio, passa-se de um momento ao outro da harmonia à desarmo-nia, da ordem à desordem, e vice-versa. Encontrar um princípio equivalia a encontrar o ponto de ancoragem a partir do qual o universo, a cidade e o homem se autoengendravam e tinham asseguradas sua permanência na mudança, sua unidade na multiplicidade, sua identidade na diferença, mantendo assim, de modo dinâmico e tenso, seu próprio equilíbrio. Quan-do os antigos, poetas, filósofos e médicos, precisaram definir em que con-sistia o estado de saúde para o homem e para a cidade, não hesitaram em reconhecer como noção-chave a de equilíbrio.

Foi assim que a definiu Alcmeon de Crotona, filósofo e médico pita-górico, no célebre fragmento que inspirou sucessivas gerações da tradição médica e filosófica:

Segundo Alcmeon, é o equilíbrio das potências, como o úmido e o seco, o frio e o quente, o amargo e o doce etc., que produz e conserva a boa saúde; é, ao contrário, a predominância de uma delas que pro-voca a doença e, quando duas dessas potências predominam, a morte se segue. A doença sobrevém de uma parte, no que concerne ao agen-te, em razão de um excesso de calor ou de frio, de outra parte, no que concerne à causa material, em razão de uma abundância ou de uma falta de alimento, e de outra parte, enfim, no que concerne aos luga-res, pelo fato <de afetar> seja o sangue, seja a medula, seja o cérebro. Essas partes podem também ser afetadas por causas externas, como certas qualidades das águas, certos climas, a fadiga ou uma violência sofrida, ou tudo o que disso se aproxima. Mas, para voltar à boa saúde, ela é a mistura harmoniosa das qualidades (Aécio, Opiniões, V, XXX, 1 = 24 B 4 DK).

Ao definir a saúde como “equilíbrio das potências”, Alcmeon inaugu-ra, no âmbito da investigação cosmológica que caracteriza a filosofia ante-rior a Platão, uma investigação sobre o microcosmo humano. A saúde seria para o homem o equivalente da ordem e da harmonia do cosmo preconiza-da pela escola pitagórica, e seria vista como um dos fins que movem o ho-mem em sua existência no âmbito das reflexões éticas e antropológicas que viriam a constituir o horizonte último da reflexão filosófica nos séculos seguintes. A própria noção de felicidade (eudaimonia) seria, de um ponto de vista etimológico ou filosófico, expressão de um estado bem equilibra-do, conveniente. O vocabulário da felicidade ou da beata vita exprime a

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Apresentação

ideia de ordem e justa proporção, de equilíbrio, as mesmas que, acredita-va-se, reinavam no cosmo, na natureza em sua diversidade de formas e sua permanente mudança.

Os textos reunidos neste volume apresentam as mais variadas e insti-gantes abordagens do tema. No primeiro deles, Philip Van der Eijk percor-re as diferentes tradições da Antiguidade grega tomando como fio condu-tor as diversas acepções do termo “saúde” e, particularmente, de “saúde mental”. Ele mostra que o conceito de “saúde” não é monolítico, mas an-tes um termo plástico que admite diferentes compreensões e definições, indo da ausência de doença até a felicidade e o bem-estar mental. Seu texto serve como uma introdução geral ao tema que será, nos textos se-guintes, objeto de uma ampla e rica discussão.

Nos textos seguintes, temos as contribuições de pesquisadores de di-ferentes áreas dos estudos clássicos: filósofos, historiadores, linguistas, li-teratos, médicos, arqueólogos, helenistas e latinistas. Esses textos versam tanto sobre a saúde do corpo como sobre a da alma, e, como não poderia deixar de ser no horizonte das culturas grega e romana antigas, sobre a saúde do cosmo político. Neles são abordados diversos aspectos relativos à investigação e à reflexão acerca da noção de saúde, aspectos ligados à doença e à saúde, sua etiologia, seu diagnóstico, sua sintomatologia, e con-sideradas suas manifestações físicas, psíquicas e psicofísicas. Da filosofia pré-socrática são examinadas as fontes do pitagorismo e do atomismo. Da sofística grega, as reflexões de Górgias de Leontino. As reflexões de Platão e de Aristóteles permitem-nos conhecer um pouco da rica reflexão levada a termo na antiga Academia e no Liceu. Na tradição do epicurismo grego e romano, temos os desdobramentos ulteriores da saúde do corpo e da alma, no quadro da qual vemos emergir uma therapeia da palavra. E, finalmente, as reflexões sobre a saúde no mundo romano, em que contamos com a contribuição de autores como Sêneca, Galeno e Vitrúvio. Do período ar-caico ao período imperial, da medicina hipocrática à de Galeno, diferentes tradições foram objeto da atenção dos autores aqui reunidos, com o intuito de iluminar nossa reflexão presente num diálogo extemporâneo com as tra-dições e os autores das civilizações gregas e romanas.

Miriam Campolina Diniz Peixoto

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Os conceitos de saúde mental na medicina e na filosofia gregas

dos séculos V e IV a.C.

(com um breve panorama da Antiguidade tardia)1

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Philip van der Eijk2

Introdução: mudando de perspectiva no estudo da medicina antiga

A história da medicina como disciplina acadêmica tem se voltado há muito tempo para o estudo da enfermidade e do sofrimento humanos no passado e dos modos pelos quais indivíduos e grupos sociais reagem à doença. Tais “reações” geralmente refletem as crenças e teorias sobre a doença, o corpo e as práticas de cura correspondentes. Entretanto, como mostram a antropologia médica e a sociologia do cuidado de saúde e da ciência, tais crenças e práticas podem assumir um grande número de for-mas diferentes, com ramificações sociais, culturais e institucionais dife-rentes; e é importante tomar consciência de que o que passamos a com-preender por “medicina” ou mesmo “ciência” médica é apenas uma entre uma série de reações desse tipo.

Essa variedade já começa no plano da experiência pessoal: aquilo que indivíduos ou grupos, em uma sociedade determinada, experimentam

1 Tradução de Marcelo P. Marques.2 University of Newcastle, Inglaterra.

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Philip van der Eijk

como dor, enfermidade, deficiência ou desconforto pode variar de um caso para outro. Todos sabemos o quanto os limiares de dor e o condicionamen-to social daquilo que é considerado tolerável quando se trata de desconfor-to ou aflição física ou mental são relativos: padrões “objetivos” não são fa-cilmente aplicáveis, certamente não no estudo do passado médico. Se consideramos todos os avanços no estudo da paleopatologia, apenas uma pequena porcentagem das doenças deixa vestígios nos registros arqueoló-gicos — e, enquanto esses vestígios podem nos permitir reconstruir, até certo ponto, as condições corpóreas de um certo povo, eles ainda nos di-zem relativamente pouco sobre o modo como os indivíduos experimenta-vam essas condições.

Uma variação ainda maior ocorre no modo como os indivíduos com-preendem, conceituam, nomeiam, classificam, categorizam e sistematizam as experiências de doença. Até mesmo chamar algo de “doença” ou “enfer-midade”, de síndrome ou “deficiência” já é um ato de interpretação de fe-nômenos, observações ou sentimentos, e às vezes uma decisão cognitiva com consequências sociais, políticas ou financeiras de grande alcance, como sabemos perfeitamente em nosso mundo contemporâneo de políti-cas públicas de saúde e companhias de seguro-saúde — sem falar nas dife-rentes formas de determinar, definir e classificar as experiências de doen-ça, com graus sensivelmente diferentes de seriedade, curabilidade etc.

Uma variação posterior surge quando se trata de agir com base em tais experiências, o que pode ir de tratar, curar, combater, esconjurar e ri-tualizar fenômenos patológicos até acolher, aceitar, racionalizar, resignar-se a eles ou mesmo considerá-los bem-vindos segundo uma determinada “visão de mundo” — além disso, todas essas reações diferentes podem as-sumir formas sociais e culturais variadas, o cuidado médico institucionali-zado sendo apenas um entre muitos fenômenos, como a medicina dos templos, os cultos de cura, as práticas de clãs ou de famílias, as associa-ções religiosas e outras coisas semelhantes.

Essa tomada de consciência acadêmica renovada da pluralidade de atitudes com relação à doença, incluindo as ações associadas a ela, reflete-se na linguagem dos historiadores contemporâneos da medicina, que se tornaram cada vez mais cautelosos e agora preferem falar em “curadores” e “intervenção terapêutica” em vez de em “médicos” ou “medicina”, por cau-sa do viés biomédico ocidental implícito neste último termo. Isso também teve implicações importantes no estudo da saúde e da doença no mundo

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Os conceitos de saúde mental na medicina e na filosofia gregas dos séculos V e IV a.C.

clássico e obrigou os classicistas e historiadores da medicina antiga a re-pensar tanto as razões como a metodologia para se estudar as medicinas grega e romana. Como indiquei na introdução de meu livro Medicina e fi-losofia na Antiguidade clássica, a medicina grega não é mais estudada prin-cipalmente por ter feito parte do miracle grec, ou mesmo exclusivamente por causa de sua influência formadora na “tradição médica Ocidental” — embora esses pontos continuem a ser importantes —, mas acima de tudo porque as reações dos gregos à saúde e à doença são fontes esclarecedoras de informação sobre o pensamento grego, seus valores morais e sua histó-ria social e cultural3.

Tal precaução metodológica não é uma defesa do relativismo total: pode-se ainda sustentar teorias “racionalistas”, “ocidentais” ou “biomédi-cas” com relação aos fenômenos da doença, do corpo humano e da eficá-cia de certos modos de tratamento, tal como são compreendidos pela ciên-cia médica contemporânea; e pode-se adotar padrões correspondentes quando se trata de estimar e tentar avaliar ou medir o estado “objetivo” da saúde ou da enfermidade em uma época histórica particular4. Entretanto, resta ainda saber se se deve utilizar essa consciência no estudo do pensa-mento médico e da prática médica do passado e, se for o caso, como se deve fazê-lo. Os dias do positivismo, do progressivismo teleológico e do helenocentrismo certamente já se acabaram5, e a tendência que tinham as gerações anteriores de classicistas e historiadores da medicina a privilegiar certas “reações” mais que outras — tal como a “atitude” grega racional, por oposição às atitudes dos babilônicos e dos egípcios, que eram dispensadas como “irracionais” ou “pré-racionais” — ou a descrever reações a doenças no passado tomando como referência o quanto elas se aproximavam dos padrões atuais já foi amplamente abandonada. Pois, mesmo que algumas dessas reações pudessem ser consideradas mais bem-sucedidas do que ou-tras quanto à sua eficácia médica ou terapêutica, ou mais influentes em seu impacto sobre épocas posteriores, o historiador atual da medicina deve adotar uma posição neutra, descritiva e tratar essas reações diferentes em

3 Philip J. van der Eijk, Medicine and Philosophy in Classical Antiquity, Cambridge, CUP, 2005, 4-8.

4 Um exemplo clássico é Mirko D. GrmEk, Diseases in the Ancient Greek World, Baltimo-re/London, The Johns Hopkins Press, 1989.

5 Exceto, talvez, por D. Wootton, Doctors Doing Harm since Hippocrates, Oxford, OUP, 2006, que ainda está preso ao velho paradigma “progressivista”.

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pé de igualdade: a questão não é se são corretas ou eficazes, mas como li-davam, funcionavam e se relacionavam com outros fatores sociais, políti-cos, culturais e econômicos6.

Da história da medicina à história da saúde

Um segundo desenvolvimento, mais recente, no estudo acadêmico da história da medicina é a mudança no sentido de se estudar a contrapartida da doença, a saúde, as diversas compreensões e definições que se teve dela no tempo e sua relação com outros valores adotados por uma sociedade determinada. Pois, tal como as doenças, a “saúde” não é um conceito auto-evidente e monolítico, mas admite compreensões e definições diferentes e, às vezes, conflitantes, variando da ausência de doença (independente-mente do modo como é definida) à felicidade e ao bem-estar mental ou espiritual. Consequentemente, tem havido um interesse crescente entre historiadores da medicina pelos modos como se acreditava que a saúde no passado podia ser mantida, administrada, controlada e ampliada, tanto no âmbito privado como no domínio público, e ainda por tópicos relaciona-dos, tais como a juventude, a velhice e a qualidade de vida.

A presente coletânea de artigos testemunha esse novo desenvolvi-mento e tem por intuito aplicar alguns de seus discernimentos ao mundo antigo7, o que é inteiramente apropriado, uma vez que para a maioria dos escritores médicos gregos e romanos — assim como para seus leitores e pacientes — a manutenção e a promoção da saúde eram partes da ativida-de do médico, tanto quanto o tratamento da doença; e eles entravam em muitos detalhes para definir a saúde e especificar suas exigências. A obra de Galeno, Sobre a preservação da saúde (De sanitate tuenda), é o testemu-nho mais impressionante disso, mas, como veremos abaixo, o desenvolvi-mento já havia começado no final do século V e no século IV, com alguns dos escritores hipocráticos, como Diocles de Caristos e Mnesiteu de Ate-nas, e com filósofos como Demócrito, Platão e Aristóteles, que definiam a saúde mental humana em termos de euthumia e eudaimonia.

6 Para uma visão geral acessível do estado atual da história médica como disciplina, ver J. C. Burnham, What is Medical History?, Cambridge, CUP, 2005.

7 Cf. também a coleção de ensaios editada por H. kinG, Health in Antiquity, London, 2005.

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Nesse ponto, assim como no estudo da doença e dos diferentes mo-dos como foi compreendida no tempo, a erudição relativa à história da medicina tem o que aprender com a antropologia médica e com a sociolo-gia do cuidado de saúde: é preciso adotar uma abordagem imparcial, que não seja determinada pelos padrões atuais de saúde ou por julgamentos de valores relativos à superioridade ou preferência por algumas compreensões ou práticas com relação a outras; mas também é preciso, antes de tudo, preocupar-se com o modo como essas compreensões e práticas surgiram e funcionavam em seus contextos históricos e culturais específicos.

Alegações rivais por competência

Mas outra lição que a história da medicina aprendeu é que, indepen-dentemente das variações de concepções e reações relativas à saúde e à doença através dos tempos, mesmo em uma mesma sociedade, ao mesmo tempo, pode haver definições diferentes do que constitui a saúde ou a doença; e pode haver conflito ou desentendimento quanto a quem possui a competência, a habilidade ou a autoridade para implementar tais deter-minações, quanto aos critérios em que se baseiam e os modos como são aplicadas e validadas. Como foi mostrado por Geoffrey Lloyd e outros, o ambiente competitivo da Grécia antiga revela um número considerável de perspectivas rivais, que não encontra paralelo em nenhuma outra civiliza-ção antiga, quando se trata da questão relativa a quem decide, e com que autoridade, se alguém está saudável ou doente — o paciente ou o médico, o indivíduo ou a sociedade, a medicina ou a filosofia, a experiência subje-tiva ou a definição “científica” objetiva etc. — e que ação deve-se adotar para curar quem está doente ou para impedir que quem está saudável adoeça8.

Pode-se obter uma boa impressão dessas alegações rivais por compe-tência na área da saúde e da doença nos tratados polêmicos do corpus hi-pocrático. O tratado Da doença sagrada não apenas critica as crenças e as práticas mágicas relativas à doença, mas, curiosamente, também separa a doença — em particular aquilo que chamaríamos de doença mental — dos domínios religioso e moral: alguém não pega epilepsia porque fez algo

8 Ver, em particular, G. E. R. LLoyd, In the Grip of Disease, Oxford, OUP, 2003.

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errado, ofendeu os deuses ou prejudicou outras pessoas, argumenta o au-tor, mas porque há algo errado com seu cérebro; a epilepsia não é um miasma, uma poluição causada por algum tipo de ofensa moral, religiosa ou ritual que precisa ser corrigida por meio de práticas religiosas ou rituais, mas um fenômeno natural que tem uma natureza e uma causa (phúsis kaì próphasis), e ela pode ser curada por meio de dieta:

Com relação à chamada doença “sagrada”, a questão é a seguinte. Essa doença não é, de modo algum, em minha opinião, mais divina ou sagrada do que as outras, mas ela tem uma natureza e uma causa, como todas as outras doenças têm uma natureza na qual encontram sua origem. […]

Mas eu sustento que o corpo de um homem não é poluído por um deus, aquilo que é mais corruptível por aquilo que é mais sagrado; que mesmo quando o corpo acontece de ser poluído ou afetado por algu-ma outra coisa é mais provável que ele seja purificado e santificado pelo deus do que poluído por ele. Com relação às maiores e mais ím-pias de nossas transgressões, é o divino que nos purifica e santifica e que nos livra delas, pelas abluções; somos nós mesmos que marcamos as fronteiras dos santuários e dos recintos dos deuses, no caso de que alguém que não esteja puro as transgrida; quando entramos nos tem-plos nos aspergimos, não para nos poluirmos mediante esse gesto, mas para nos limparmos de poluições anteriores que possamos ter contraí-do. Essa é a minha opinião sobre as purificações.

Mas me parece que essa doença não é de modo algum mais divina do que as outras; ao contrário, assim como as outras doenças têm uma natureza de onde cada uma delas surge, esta também tem uma natureza e uma causa, e recebe sua divindade da mesma fonte que todas as outras, e não é de modo algum menos curável do que as outras […]. (Da doença sagrada, 1-2)9.

Um debate polêmico semelhante envolvendo a área de competência dos escritores médicos com relação à saúde pode ser encontrado no tratado hipocrático Do regime, que delimita o campo de prognóstico com base nos sonhos de um indivíduo, por oposição ao campo da adivinhação. O autor

9 Por uma questão de coerência com a argumentação desenvolvida, todos os textos anti-gos citados foram traduzidos para o português a partir das traduções inglesas citadas ou feitas pelo próprio autor. (N. do T.)

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separa de modo bastante enfático sua própria reação profilática ao desafio representado pela doença iminente significada nos sonhos do paciente — e interpretada de modo competente pelo diaitêtikos que faz o prognóstico — das instruções religiosas dos adivinhos:

Alguns sonhos são de origem divina e significam, antecipadamente, um mal ou um bem para cidades ou indivíduos, e há indivíduos que têm a competência de interpretá-los. Entretanto, esses indivíduos também interpretam os signos que vêm da alma antes das afecções corpóreas […] e às vezes eles acertam, às vezes erram, mas em ne-nhum dos dois casos sabem a razão pela qual acertam ou erram; eles simplesmente dão o conselho para que se tomem as precauções con-tra algum mal. Entretanto, não esclarecem como se deve tomar essas precauções, eles dizem apenas que se deve rezar para os deuses. Ora, rezar é uma coisa boa, mas enquanto se evoca os deuses é preciso também cooperar (Do regime, 87).

O contrário, entretanto, também pode ser encontrado, pois a litera-tura antiga também preservou relatos conflitantes de curadores milagro-sos, como Empédocles (que algumas vezes foi considerado o alvo implícito de diversas polêmicas de autores hipocráticos), que despreza os médicos de sua época por sua incompetência em explicar, por exemplo, a ressuscita-ção de uma mulher que ficou sem respirar por trinta dias ou em lidar com a doença endêmica de Selinunte10.

Doenças endêmicas são um bom exemplo de uma área em particular que foi objeto de controvérsias durante toda a chamada “idade da razão grega” — um tema particularmente relevante quando consideramos o tema desta coletânea de artigos, a saúde do indivíduo em relação à saúde da ci-dade. Pois uma característica permanente do pensamento grego sobre a saúde e a doença é relacionar a saúde ou a doença do indivíduo com a de seu ambiente. Essa relação pode ser pensada em duas direções: de acordo com o paradigma arcaico, a doença de uma cidade pode ser causada pela ofensa religiosa de um de seus habitantes (como é o caso de Édipo), e a saúde deve ser, em contrapartida, mantida ou restaurada graças à justiça ou sabedoria de seus habitantes e líderes. Mas a relação de causa e efeito pode também ser revertida; a situação de saúde ou de doença pode ser

10 Essas histórias parecem ter sido contadas em Heráclides Pôntico, fr. 77-84 Wehrli.

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considerada o resultado de fatores ambientais, saudáveis ou não: é o que os autores do tratado hipocrático Epidemias chamavam de katastasis, o es-tado de saúde de um lugar específico, durante determinada época ou esta-ção, na medida em que era determinado pelo clima ou por outros fatores. Quanto a esse ponto, encontramos, pela primeira vez na história, tentati-vas de fazer o que chamaríamos de uma história médica “demográfica”, que descreve experiências coletivas de saúde e de doença, especificando fatores tais como idade, gênero, ocupação e procedência.

Por uma ciência profissional da saúde, e especialistas da saúde na Grécia antiga

A evidência que nos chegou sugere que durante os séculos V e IV as-sistimos à emergência da saúde (hugieia) como uma preocupação central tanto dos autores médicos como dos filósofos gregos, e de uma disciplina da saúde chamada ta hugieina, “assuntos relativos à saúde”, tanto para in-divíduos privados como para grupos específicos na sociedade. No nível mais básico, a saúde é geralmente definida (como no conhecido fragmento de Alcmeon, 24 B 4 DK) como um equilíbrio entre as qualidades, os pode-res ou os elementos constituintes que, acredita-se, estão presentes no cor-po. Mas como alcançar esse equilíbrio, como mantê-lo ou restaurá-lo quando ele é alterado? Tal abordagem abrangente da saúde e da cura foi desenvolvida pela primeira vez e principalmente na dietética, particular-mente por indivíduos como o autor do Do regime e por Diocles de Caristo. O primeiro, no início de sua longa obra, alega ter descoberto o regime (diaita) que impede que as pessoas adoeçam e um método de prognóstico e diagnóstico que permite um monitoramento altamente preciso da saúde de alguém, de modo que mesmo a menor mudança para pior pode ser de-tectada em um estágio inicial, e um regime corretivo pode ser aplicado para impedir que a situação piore. Um método de prognóstico do qual ele se sente particularmente orgulhoso é a interpretação dos sonhos de um ponto de vista médico, como, por exemplo, ao tomar os sonhos como indi-cadores de saúde ou de doença iminente:

Quando o corpo está em estado de vigília, a alma é sua escrava, divi-dindo-se entre muitas coisas e nunca ficando por conta própria; ela

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compartilha uma parte de si mesma com cada parte do corpo: com a audição, a visão, o tato, o movimento e com as atividades que envol-vem a totalidade do corpo; mas ela não dirige sua atenção a si mesma. Entretanto, quando o corpo está em repouso, a alma está em movi-mento e desperta, é capaz de administrar sua própria casa e realiza as atividades do corpo por conta própria. Pois o corpo, estando adorme-cido, não tem percepções, mas a alma está acordada e sabe tudo; ela vê o que é visível, ouve o que é audível, anda, toca, experimenta dor, tem pensamentos, sempre ficando no seu canto. Os serviços que a alma presta ao corpo, durante o estado de vigília, ela mesma faz sozi-nha durante o sono. Portanto, quem sabe julgar essas coisas correta-mente possui grande sabedoria (Do regime, 86).

Um pouco mais tarde no século IV, encontramos Diocles de Caristo redigindo uma obra chamada Assuntos de saúde para Pleistarco (Hugieina pros Pleistarkhon), da qual nos chegaram diversos fragmentos que, com sua atenção meticulosa aos menores detalhes, apresentam um grau im-pressionante de sofisticação. O famoso fragmento 182 de Diocles, “um regime de saúde” ou “um dia na vida de um cidadão ateniense saudável e rico”, pode muito bem ter pertencido a essa obra e descreve com grande detalhe o estilo de vida saudável, do nascer do dia ao pôr do sol. A citação abaixo é um tipo de resumo:

Que tipo de vida se deve adotar no verão e no inverno acaba, então, de ser explicado; na primavera e no outono, um regime que segue um meio-termo entre esses é, obviamente, o mais apropriado. Deve-se sempre ficar prevenido com relação a alimentos com os quais não se está acostumado, sejam eles fortes ou difíceis de digerir, e com relação a qualquer excesso; pois, algumas vezes, a quantidade de alimento ingerido causa tanto problema quanto sua qualidade ruim. Não se deve beber água com a qual não se está acostumado, na me-dida em que é servida, pois é ruim e arriscado, mas deve-se tomá-la com mel, vinho ou vinagre, farinha ou sal. É perigoso beber água muito fria e beber demais de uma só vez, principalmente quem tra-balhou muito ou quem ficou ao sol e ainda está quente. A coisa mais importante na saúde é que nada se torne mais forte do que a nature-za do corpo, e que se modifique o resto do seu modo de vida, tam-bém, de acordo com as estações, fazendo-o tender gradualmente na direção oposta, sem causar uma grande mudança repentina (frag. 182, seção 11).

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Diocles escreveu longamente sobre alimentação e os diferentes mo-dos de prepará-la — verduras, ervas, peixe, vinhos, águas, o uso do óleo de oliva para massagens e o uso da bengala durante as viagens11. Observamos aqui uma tendência crescente no sentido do que poderíamos chamar de uma cobertura abrangente, ou mesmo “enciclopédica”, de toda uma série de áreas diferentes. Autores como Diocles e também Mnesiteu e o autor do final do século IV, Dieukhes, cruzam as fronteiras das disciplinas e am-pliam os limites de seus campos de competência ao escrever sobre tópicos tais como o cuidado com as crianças, a preparação e o cozimento dos ali-mentos, guloseimas e a ingestão de vinho, etiqueta, coroas de flores, e ain-da sugerem regimes para atividades específicas tais como ginástica, via-gens e navegação. A consciência crescente da necessidade de prevenção de doenças por meio de um estilo de vida saudável parece ter levado a uma rápida expansão do território no qual os médicos gregos reivindicavam competência. Os autores médicos desse período estão, claramente, expan-dindo seu território e suas pretensões em relação à sua competência, expe-rimentando mais12 e tentando ter acesso a uma clientela maior. Eles escre-vem documentos populares em forma de cartas e poemas sobre a vida saudável, divulgando assim mais amplamente suas ideias e buscando exer-cer maior influência na sociedade. Há uma consciência crescente entre esses autores de que a saúde admite graus, de que existe algo como o que chamaríamos de “qualidade de vida”.

Essa “medicalização” da vida cotidiana foi reforçada pela marca inte-lectual e pela elegância retórica dos escritos médicos que os fragmentos de Diocles que nos chegaram certamente atestam. Mas é fácil ver como tal fato pode ter encontrado resistência — um mal-estar refletido no conhecido ataque feito por Platão à dietética em República 403 E s., que ele dispensa como um prolongamento desnecessário da vida das pessoas que são fracas demais para ainda ser úteis à sociedade. À luz desse mal-estar e dessas dúvi-das sobre a qualificação e a competência daqueles que praticam o cuidado médico, é compreensível que os médicos começassem a se especializar. Isso é ilustrado pelo fragmento de Mnesiteu, contemporâneo de Diocles, no qual a medicina é dividida em duas áreas, a preservação da saúde e o afastamen-to da doença (frag. 11 Bertier). Em um fragmento de Erasístrato (frag. 156

11 Ver P. J. van der Eijk, Diocles of Carystus, Leiden, 2000-2001, esp. fr. 176-186.12 Literalmente: “tentando enfiar o dedo num número maior de tortas”. (N. do T.)

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Garofalo), essa distinção entre a medicina (iatrika) e o cuidado com a saúde (ta hugieina) é relacionada com a distinção entre dois tipos de clínicos: o “curador” (iatros) e o “especialista em saúde” (hugieinos).

Da saúde física à saúde mental

Nenhum aspecto da saúde humana foi mais envolvido em controvér-sia e competição por autoridade do que a saúde mental, âmbito no qual os padrões religiosos de explicação, mais tradicionais, mantiveram sua força junto com as explicações médicas. Também nesse aspecto eram feitas ale-gações rivais por competência pela medicina, pela filosofia, pela literatura e pela religião gregas. O problema já começa com a definição: a própria distinção entre saúde e enfermidade, mental e física, é objeto de contro-vérsia ou ao menos suscita compreensões diferentes. Na tragédia grega, por exemplo, representações de loucura são, evidentemente, comuns e frequentemente atribuídas à raiva ou à ira de uma força divina: mas o ter-mo padrão para essas aflições mentais é nosos, sem indicação explícita da área afetada; não parece haver distinção categorial entre o tipo de frenesi mental que caracteriza Héracles, a enfermidade crônica, misteriosa de Fi-locteto ou a doença amorosa de Fedra: são todas aflições divinas e a cura, se é que é possível, é igualmente algo que apenas os deuses podem efe-tuar13. Quando há referência a tratamentos com ervas (como no caso da folha de Filocteto, 44, 698), parece tratar-se de conforto ou alívio de dor mais do que de cura.

Quando chegamos aos autores médicos hipocráticos, é genuíno per-guntar se eles tinham um conceito de enfermidade mental. Evidentemen-te, eles descrevem perturbações das funções mentais e têm, de fato, um rico vocabulário para isso. Mas não há uma categoria separada de saúde ou enfermidade mental enquanto tal: condições como loucura (mania) e epi-lepsia são atribuídas a causas físicas como a bile ou a fleuma, e o trata-mento é coerentemente conduzido inteiramente de modo físico. O mesmo vale para a saúde mental. Nesse sentido, o autor de Da doença sagrada dis-

13 Das muitas discussões sobre representações da loucura na tragédia grega, indico B. Simon, Mind and Madness in Ancient Greece, Ithaca/London, 1978; R. PadELL, Whom Gods des-troy: Elements of Greek and Tragic Madness, Princeton, 1995.

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cute formas diferentes de loucura devidas à bile ou à fleuma, que afetam o cérebro e suas conexões com o resto do corpo; a saúde mental consiste inteiramente em um funcionamento desimpedido do cérebro e num fluxo não interrompido da respiração através dos vasos do corpo:

Por essas razões, creio que o cérebro é a parte mais poderosa em um ser humano. Contanto que esteja saudável, ele é o intérprete daquilo que vem do ar para o corpo. A inteligência (phronesis) é fornecida pelo ar. Os olhos, ouvidos, língua, mãos e pés realizam aquilo que o cérebro sabe, pois espalhado pelo corpo há um grau de inteligência proporcio-nal à quantidade de ar que ele recebe. Com relação à compreensão (sunesis), o cérebro é a parte que a transmite, pois quando um homem inspira o ar chega primeiro ao cérebro e de lá é distribuído para o resto do corpo, tendo deixado no cérebro sua parte melhor e tudo o que é inteligente e tem discernimento (gnomê). Pois, se o ar fosse primeiro para o corpo e subsequentemente para o cérebro, o poder do pensa-mento que tem discernimento ficaria com a carne e com os vasos sanguíneos; ele alcançaria o cérebro em um estado aquecido e não mais puro, mas misturado com umidade da carne e do sangue, de modo que não teria mais precisão. Portanto, eu afirmo que o cérebro é o intérprete da inteligência (Da doença sagrada, 16).

É interessante observar que o autor jamais usa o termo “alma” (psukhê) e que ele localiza todos os processos mentais (pensamento, emoções, per-cepção sensível) em órgãos e tecidos físicos, entre os quais o cérebro ocupa um lugar de honra. Seu projeto de “naturalização da mente” está relaciona-do com uma tendência mais ampla no pensamento grego de sua época, qual seja, fornecer explicações naturais para fenômenos até então explica-dos tendo-se como referência a ação divina direta — por exemplo trovões, terremotos etc., mas também enfermidades mentais como a loucura ou ataques epilépticos. Como outros pensadores gregos, ele está à procura da “natureza”, da phusis das coisas; e como outros autores médicos está em busca da natureza do homem: o que é o homem, como ele é composto, como ele funciona e trabalha? E qual é a natureza do fracasso humano, sua fraqueza, sua doença, corpóreos e mentais?

O autor de Do regime discute a saúde e a enfermidade mentais com re-ferências igualmente físicas, como mostra a seguinte seleção de passagens:

Quanto à inteligência da alma e sua falta, as coisas são da seguinte maneira. O fogo mais úmido e a água mais seca, quando misturados

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em um corpo, resultam em maior inteligência, porque o fogo recebe a umidade da água, e a água recebe a secura do fogo. […] a alma enquan-to mistura desses dois elementos é mais inteligente e tem mais memó-ria. […] Se houver uma mistura do mais puro fogo e da mais pura água, e se houver um pouco menos fogo que água, essas pessoas também são inteligentes, mas ficam aquém da primeira mistura […] Essas al-mas são bastante constantes em sua atenção, e esse tipo de pessoa, sob esse regime, pode tornar-se mais inteligente e esperta do que os dons naturais garantem. Tal pessoa é beneficiada pelo uso de um regi-me que tende mais para o fogo, sem excesso seja de comida ou de bebidas. Ela deve, portanto, fazer corridas rápidas […] mas não é be-néfico que pratique luta, massagem ou exercícios desse tipo […] ca-minhadas, entretanto, são benéficas […] vomitar também é benéfico […] a unção é mais benéfica para tais pessoas do que os banhos, e a relação sexual deve ocorrer quando ocorrerem ataques de água, me-nos, entretanto, nos ataques de fogo. […] Mas quando o fogo é con-trolado, em grande quantidade, pela água na alma, temos os casos de pessoas que são chamadas, por alguns, de “insensatas”, e, por outros, de “grosseiramente estúpidas”. […] Elas choram sem razão, temem o que não é temível, sentem dor por algo que não lhes afeta, e suas sen-sações, realmente, não são as que pessoas sensatas experimentam. Essas pessoas beneficiam-se com banhos de vapor seguidos de purga-ção com heléboro, com a mesma dieta anterior. É preciso reduzir a carne e a secura […] (Do regime 35-36).

É surpreendente que o autor identifique, aqui, diversos estados ou condições mentais diferentes, em uma escala que vai de um optimum a um pessimum: trata-se de um bom exemplo da visão em escala, gradual da saúde característica da medicina grega. Mas as variações em uma escala são, em última análise, devidas à base física específica do indivíduo, tal como ele é caracterizado pela proporção peculiar entre fogo e água, que permite, aparentemente, variações sem fim. Outro aspecto surpreendente é que a saúde e a enfermidade mentais possam ser influenciadas por me-didas de dieta tais como padrões de comer, beber, de exercício, trabalho e lazer, atividade sexual, dormir e acordar. A saúde, incluindo a saúde men-tal, pode ser administrada, mantida, restaurada ou aumentada; e o espe-cialista que tem a habilidade de fazê-lo é o diaitêtikos que descobriu, para cada pessoa, o regime que garante a maior probabilidade de evitar a enfermidade.

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Medicina da alma, filosofia do corpo

É só quando chegamos ao Timeu de Platão que “doenças da alma” são diferenciadas de “doenças do corpo” (86B2 ss.). E isso não é sur-preendente se consideramos a visão geral de Platão sobre a relação entre corpo e alma. Nem deve surpreender que a enfermidade mental seja atri-buída à má administração do corpo ou que a saúde mental seja uma ques-tão de observar um regime no qual o corpo e sua influência sobre a alma, através da paixão e do desejo, sejam mantidos sob controle estrito. A saú-de mental é uma questão de moralidade, sustentada por um estilo de vida frugal e guiada pela razão — se não a do próprio indivíduo, a razão do lí-der da cidade.

Vemos, aqui, a filosofia em competição com a medicina pelo papel de guia de autoridade para a saúde. O corpo saudável é, essencialmente, não mais do que um substrato, uma base material sobre a qual pode ocorrer o bem-estar psíquico e espiritual. O corpo não contribui, muito menos cons-titui um aspecto dessa saúde mental: na melhor das hipóteses, ele é neu-tro, mas na maior parte dos casos ele significa um desafio para a boa vida tal como definida pelos filósofos.

É em Aristóteles que encontramos uma explicação mais integrada en-tre saúde mental e física e, talvez, a tentativa mais impressionante de com-binar filosofia e medicina, pois, embora Aristóteles tenha sido aluno de Platão, ele foi também o filho de um médico de corte, e em seu trabalho mostra grande interesse por questões médicas. Como bem se sabe, o as-pecto mais fundamental da teoria psicológica de Aristóteles é sua opinião de que alma e corpo não são entidades separadas, mas dois aspectos mu-tuamente complementares e inseparavelmente ligados — a “forma” (mor-phê, eidos) e a “matéria” (hulê) — de uma e mesma entidade, ou seja, de um ser vivo. Aristóteles tem uma abordagem mais neutra do que Platão com relação às emoções; elas têm seu lugar como partes da natureza hu-mana, e uma expressão regrada ou mesmo efusiva dessas emoções pode ser útil (como comprova sua famosa teoria da katharsis). Aristóteles propõe uma teoria psicofísica de emoções como a raiva, para a qual ele dá duas definições complementares, um “calor agitado na região do coração” e “um desejo de retaliação” (Da alma, 403a30-31): são duas explicações comple-mentares de um único e mesmo estado emocional, a primeira referindo-se ao físico, a segunda ao psicológico. Alma, segundo Aristóteles, é vida, for-

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ma; corpo é matéria; um complementa o outro. A alma é um conjunto de capacidades ou funções que informam o corpo e dão forma à sua estrutura física; ao mesmo tempo, o corpo deve ser feito de material adequado para fazer que essas funções funcionem. Entretanto, a alma não é apenas a for-ça vital, mas também a estrutura dinâmica e o padrão organizacional se-gundo o qual e para cujo propósito o corpo físico é moldado, constituído e internamente organizado.

Para Aristóteles, a saúde mental é uma combinação de fatores natu-rais e culturais, físicos, assim como psicológicos e morais. Baseado em sua definição de saúde corpórea como um “bom equilíbrio”, uma summetria ou eukrasia, entre os fatores constituintes (Física 246b6; As partes dos animais 673b26), ele igualmente compreende a saúde mental — de um modo que nos lembra Demócrito e o autor de Do regime — como um equilíbrio, uma eukrasia entre fatores constituintes tais como as qualidades elementares e as proporções específicas entre calor e frio. Assim, Aristóteles atribui virtu-de cognitiva e mental aos fatores materiais que levam a um exercício sau-dável, não alterado das faculdades “psíquicas”. Ele menciona variações no sangue, na qualidade da pele e mesmo no tamanho do coração como cau-salmente responsáveis pelas variações de acuidade de percepção, pensa-mento e da estabilidade das emoções de alguém14. É nesse sentido que ele nos diz que no homem o cérebro tem mais umidade e é maior do que em outros animais, porque no homem o calor no coração é mais puro: “essa boa proporção (eukrasia) é indicada pela inteligência do homem: pois o homem é o mais inteligente de todos os animais”15.

Por trás disso está a noção de krasis, ou “temperamento”, a “mistura” física ou a “proporção” de elementos ou qualidades elementares que Aris-tóteles parece ter adotado da teoria médica grega. De fato, Aristóteles tam-bém permite que fatores dietéticos e ambientais desempenhem seu papel: ele notoriamente fala de variações no ambiente como constituindo varia-ções na excelência intelectual e moral:

Os habitantes de regiões frias e da Europa são corajosos, mas defi-cientes em termos de inteligência e habilidade […] os habitantes da

14 Ver uma discussão dessas passagens em P. J. van der Eijk, Aristotle’s psycho-psysiologi-cal account of the soul-body relationship, in J. WriGht, P. PottEr (ed.), Psyche and Soma. Physicians and Metaphysicians on the Mind-Body Problem, Oxford, OUP, 57-77.

15 Geração dos animais, 744a30.

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Ásia são inteligentes, mas carecem de espírito […] Mas a raça grega tem ambas as coisas, assim como representa uma média geográfica, em virtude de seu caráter, tal como ele é determinado por sua consti-tuição física (eu kekrátai) (Política, VII 6, 1327b23-35).

Do mesmo modo, Aristóteles atribui o fracasso na tentativa de alcan-çar a saúde mental e a excelência moral à influência de fatores físicos, am-bientais e dietéticos perturbadores, como em sua conhecida discussão da “melancolia”, que é típica da akrasía, falta de autocontrole moral. Sua ex-plicação dessa deficiência moral e a possibilidade de “curá-la” é elaborada em termos surpreendentemente médicos:

O homem incontinente (akratês) é constituído de modo a buscar pra-zeres corpóreos que são excessivos e contrários ao princípio reto, sem qualquer crença de que ele devesse fazer isso, enquanto o intempe-rante, porque ele é constituído de modo a buscá-los, está convencido de que deve buscá-los. Portanto, o primeiro pode ser facilmente per-suadido a mudar, enquanto o segundo não. […] O homem inconti-nente conhece o que é certo, não no sentido de alguém que conscien-temente exerce seu conhecimento, mas apenas enquanto se pode dizer que um homem adormecido ou embriagado conhece algo. […] A cura é mais fácil no caso dos homens incontinentes do tipo melan-cólico do que no caso dos homens que deliberam quanto ao que fazer mas não conseguem se ater à sua decisão. […] Aqueles que se torna-ram incontinentes por hábito são mais facilmente curáveis do que aqueles que são incontinentes por natureza, uma vez que o hábito é mais fácil de curar que a natureza. […] Prazeres corpóreos parecem ser mais desejáveis do que outros, porque o prazer afasta a dor, e a dor excessiva faz que os homens busquem prazeres excessivos e prazeres corpóreos, geralmente, como cura. […] Prazeres corpóreos são busca-dos por causa de sua intensidade, por pessoas que são incapazes de desfrutar outros […] muitas pessoas sendo constituídas de tal modo que um estado neutro de sentimento é, para eles, positivamente dolo-roso. De modo semelhante, os jovens encontram-se numa condição que se parece com a intoxicação, porque eles estão em crescimento; a juventude é agradável em si mesma. Os melancólicos precisam cons-tantemente de tal cura: seu temperamento (krasis) mantém seus cor-pos em um estado de permanente irritação, e seus apetites estão con-tinuamente ativos; assim, qualquer prazer, se for forte, afasta a dor (Ética a Nicômaco, VII 8-14, 1151a10-1154b18).

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A influência do corpo e do ambiente sobre a saúde mental adquire uma significação ainda maior no famoso capítulo XXX.1 da obra pseudoa-ristotélica Problemas, na qual se oferece uma explicação fisiológica para um tipo especial de realização humana excepcional em áreas como a arte, a política e mesmo a filosofia16. A explicação está centrada em torno da noção de bile negra, um dos fluidos que, acreditava-se, estavam presentes no corpo, e da noção de “constituição”, “mistura” ou “temperamento” (krasis) melancólicos. Acreditava-se que os melancólicos, ou seja, indivíduos cuja constituição fosse dominada pela bile negra, eram particularmente incli-nados a tais estados de grande elevação mental e criatividade (beirando a insanidade mental e frequentemente caindo nela); e acreditava-se que a razão disso residia em sua constituição física, particularmente nas flutua-ções entre o quente e o frio na bile negra e na influência do pneuma. De fato, tal como no tratado hipocrático Do regime, acreditava-se que a varia-bilidade desse equilíbrio fisiológico fosse a causa da instabilidade mental dos indivíduos melancólicos. Pois “melancolia”, em grego, era geralmente sinônimo de “loucura” ou “insanidade”: em Problemas XXX.1, vemos que o termo refere-se tanto à forma extática ou “maníaca” de depressão como ao tipo “depressivo” ou “desesperado”, oferecendo, assim, uma descrição anti-ga do que é atualmente conhecido como o distúrbio bipolar da personali-dade. Mas, uma vez que um equilíbrio delicado entre esses dois estados é estabelecido, equilíbrio entre o calor e o frio excessivos, argumenta o autor de Problemas XXX.1, isso torna o melancólico capaz de realizar seus feitos criativos notáveis:

Por que todos os homens que se destacaram em filosofia, política, poesia ou nas artes são melancólicos? (Exemplos: Héracles, Lisandro, Ajax, Empédocles, Platão, Sócrates) […] Primeiro, devemos conside-rar a causa disso, usando o vinho como um exemplo natural. Pois o vinho, em grandes quantidades, parece produzir as características que atribuímos ao melancólico, e quando é bebido produz uma variedade de qualidades, tornando os homens mal-humorados, generosos, com-passivos ou inconsequentes […] Fica, então, evidente que o vinho e a natureza (phusis) produzem a característica de cada homem pelos

16 Para uma discussão dessa teoria e sua relação com os escritos aristotélicos genuínos, ver P. J. van der Eijk, Aristotle on melancholy, in Medicine and Philosophy in Classical Antiquity, Cambridge, CUP, 2005, cap. 5.

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mesmos meios: pois cada função realiza-se sob o controle do calor. E ambos, o vinho e o temperamento melancólico, estão cheios de sopro (pneuma) […] O humor melancólico é uma mistura de quente e frio […] A bile negra pode tornar-se muito quente ou muito fria […] Se estiver muito fria, ela produz apoplexia, torpor ou desespero e medo […] (e mesmo suicídio) […] torna os indivíduos morosos e estúpidos […] Quando a bile negra está quente demais, ela produz excitação por causa de uma canção e loucura […] torna os indivíduos amorosos e facilmente levados à paixão e ao desejo […] torna-os mais falantes […] e leva também a afecções de loucura ou frenesi (como faz com os adivinhos e as Sibilas) […] Mas aqueles nos quais o calor excessivo é temperado, de modo a que chegue a uma quantidade moderada, são os melancólicos mais inteligentes, que são menos excêntricos e supe-riores ao resto do mundo de muitas maneiras, alguns na educação, alguns nas artes, outros na política (Problemas XXX.1).

Temos mais um exemplo de “naturalização” de um fenômeno que era geralmente considerado uma manifestação de agenciamento divino — uma tentativa de associar as realizações elevadas do gênio humano com a presença de um fluido corpóreo pegajoso, a bile negra. Entretanto, seria errado concluir que esses melancólicos são, de algum modo, mentalmente “saudáveis”: eles são instáveis, voláteis e além do regramento, pois seus sucessos não têm nada a ver com o que Aristóteles chamaria de “virtude”. Seu acesso à realização bem-sucedida é incontrolado e imprevisível, e não obedece à instrução filosófica.

Breve panorama da Antiguidade tardia

A abordagem aristotélica da saúde mental oferece uma boa ilustração do desejo filosófico de dar a devida explicação da base física da saúde men-tal, mas ao mesmo tempo de mostrar que a filosofia, enquanto “cura da alma”, deve informar um regime, um estilo de vida regulado, no qual o corpo físico não prevalece. Vemos esse desenvolvimento continuar na filosofia he-lenística, principalmente no estoicismo; vemos também a competição entre filosofia e medicina continuar no período imperial, por exemplo na obra de Galeno As faculdades da alma seguem as misturas do corpo, na qual ele alega, de modo muito semelhante ao autor hipocrático de Do regime, que a orien-tação médica e dietética pode aumentar o bem-estar mental e espiritual.

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A batalha alcança seu ápice no comentário sobre a obra aristotélica Da alma, de João Filopono, do final do século V d.C. Em seu comentário, Filopono enfrenta o desafio posto pela naturalização da saúde, da realiza-ção, da criatividade e da excelência humanas, tal como era empreendida pela medicina e pela filosofia natural gregas. Pois essa naturalização che-gou perigosamente perto de uma visão reducionista da vida mental huma-na e de uma visão determinista, talvez racial da habilidade humana. Pode-se considerar as notáveis realizações intelectuais e criativas em poesia, em arte, na política visionária e mesmo em filosofia, incluindo o temperamen-to (krasis), redutíveis à quantidade de bile negra no corpo ou, para mencio-nar um equivalente moderno, aos genes de alguém? João Filopono era consciente desses perigos e recusou-se a aceitar as implicações materialis-tas dessas teorias.

Filopono foi um neoplatônico cristão que viveu nos séculos V-VI d.C. e escreveu comentários às obras de Aristóteles, mas era também seria-mente interessado em física e medicina e conhecia bem as doutrinas mé-dicas de Galeno. Sua obra constitui uma tentativa impressionante de sin-tetizar várias tradições de pensamento, sem que sua independência intelectual cedesse ao ecletismo. Em seu comentário ao Da alma de Aris-tóteles, Filopono discute a alegação aristotélica (a que nos referimos aci-ma) de que todos os processos mentais implicam também algum tipo de mudança corpórea17:

Aristóteles: Acima de tudo, parece que o corpo está envolvido em todas as afecções da alma, [por exemplo, vivacidade, gentileza, medo, pieda-de, coragem e também alegria, amor e ódio; em todas essas afecções, o corpo também é afetado] (403a16-18).

Filopono: Aristóteles demonstra, com dois argumentos, que as afec-ções (ou seja, as emoções e experiências) da alma não lhe são exclusi-vas, mas próprias do composto (alma e corpo). Em primeiro lugar, baseado no argumento de que, em todos os casos, essas afecções são acompanhadas por movimentos do corpo: a raiva é acompanhada por um movimento do sangue, na região do coração, e o desejo por uma condição do fígado; a vergonha faz que a face core, porque o sangue se dispersa na superfície, enquanto o medo causa palidez, como resul-

17 Para uma discussão dessa passagem, ver Id., Philiponus. On Aristotle on the Soul. 1.1-2, London, 2005, 4-5.

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tado da contração do sangue na direção das partes mais profundas do corpo. Falando de um modo geral, em todas as afecções da alma o corpo é conduzido a uma determinada condição, junto com a alma. Se as afecções da alma são acompanhadas por movimentos do corpo, fica evidente que elas não são exclusivas da alma, mas próprias do com-posto. Por um lado, portanto, isso fica evidente a partir do que foi dito acima; mas, por outro lado, a partir do fato de que, quando as pessoas que têm uma mistura corpórea natural de um tipo particular são mo-vidas por certas afecções, elas naturalmente comportam-se de acordo com a mistura na qual se encontram seus corpos. Portanto, vemos que há pessoas que são inclinadas à raiva, porque têm uma mistura <cor-pórea> correspondente, enquanto outras pessoas não são facilmente movidas por essa afecção porque elas têm a mistura contrária. Do mesmo modo, no caso de outras afecções, vemos que quando as pes-soas estão embriagadas elas tendem a se irritar, a ser covardes, incon-sequentes ou cruéis. As doenças também podem fazer que um homem se torne inclinado à raiva, e certos tipos de comida estimulam o desejo de se ter uma relação sexual, enquanto outros o atenuam. Donde o fato de os médicos dizerem que “as faculdades da alma seguem as misturas do corpo”. Por essa razão, eles dizem que as pessoas com uma mistura particular têm tendência para a raiva; por exemplo, os que têm ten-dência para afecções melancólicas e aqueles que têm uma tendência a ter uma condição quente e úmida são mais dispostos a buscar rela-ções sexuais; falando de um modo geral, com relação a qualquer afec-ção singular, eles atribuem sua causa a uma certa qualidade da mistura. Eles até estendem essa visão às faculdades cognitivas mais elevadas e ale-gam que as pessoas cujo cérebro tem uma mistura mais seca têm memó-rias melhores, mas têm pensamentos mais lentos, enquanto aquelas que têm a mistura oposta devem enfrentar a afecção oposta, o mesmo ocorren-do com a imaginação e os outros afetos. Além disso, o efeito produzido pela mistura original pode também ser produzido pelo regime que produz essa mistura. Por essa razão, as pessoas que alegam ter algum tipo de conhecimento preocupam-se em ser moderadas com relação à ali-mentação e bebem moderadamente; donde o ditado segundo o qual “uma barriga grande não produz uma mente sutil”. É por isso que, quando estamos embriagados, não somos capazes de pensar as coisas que pensamos quando não estávamos embriagados. Isso vale para o comer moderadamente ou não, também. De modo geral, as pessoas tornam-se mais talentosas ou mais espertas ou, ao contrário, menos espertas, de acordo com a mistura correspondente. Esse, então, é o

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argumento usado para que os médicos possam dizer que as faculdades da alma seguem as misturas do corpo.

Em reação a isso, os intérpretes áticos dizem o seguinte. Assim como esses médicos afirmam que, porque os impulsos correspondentes da alma seguem as misturas do corpo, consequentemente a alma está no corpo enquanto seu substrato, do mesmo modo, nós também provare-mos o contrário, através de argumentos contrários. Se a alma é insepa-rável do corpo pela simples razão de que seus impulsos seguem a mis-tura do corpo, então, se ela não seguir a mistura do corpo, ela será separável. Ora, nós observamos que, em algumas pessoas, mesmo que tenham más misturas, seus impulsos não seguem essas misturas, por cau-sa da influência da filosofia; pelo contrário, elas adquiriram controle sobre esses impulsos, o que não teria acontecido se a faculdade da alma estivesse na mistura enquanto seu substrato, tal como acontece com relação a ser branco, pálido ou negro; essas afecções ocorrem como resultado de uma mistura correspondente, e não podem ser controladas, nem mesmo através de numerosas atividades filosóficas, ou seja, enquanto a mistura não for adaptada de modo adequado. Por-tanto, é absolutamente necessário que, se um ou outro impulso da alma é como se fosse o resultado de uma mistura, um homem que ti-ver tendência à raiva não poderá manter sua raiva sob controle, e as-sim também em outros casos. Entretanto, vemos que isso não aconte-ce; portanto, os impulsos da alma não necessariamente seguem as misturas do corpo. Os próprios médicos concedem esse ponto, pois, de-pois de terem dito que as faculdades da alma seguem as misturas do cor-po, acrescentam: “exceto com relação às atividades da filosofia”. Conse-quentemente, se as atividades filosóficas podem fazer que o impulso da alma não siga as misturas do corpo, há, realmente, algo que está sob nosso controle; essas atividades não seguem o corpo necessariamente. Consequentemente, seu ser não está na mistura, pois, se estivesse, como poderia um homem resistir às emoções? Qual seria a base para a batalha irreconciliável entre a razão e as emoções? Pois nenhuma das coisas que lutam contra o corpo o preserva; nem o corpo tem qual-quer ambição de lutar contra sua causa. Portanto, se a mistura fosse a causa de todos os movimentos da alma, ela nunca lutaria contra si própria; pois as coisas que lutam são contrárias entre si. Que a alma racional, então, seja de fato separável do corpo fica suficientemente demonstrado por aqueles que vivem uma vida bem-sucedida, desde-nhando seus corpos. Entretanto, nada deprecia seu próprio substrato; na verdade, a tendência é querer preservá-lo. A alma, entretanto, evi-

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dentemente, faz o contrário (Filopono, Comentário ao Da alma de Aristóteles, p. 50, 14-52, 4, trad. van der Eijk).

É assim que Filopono considera que a interpretação da alegação de Aristóteles proposta por Galeno e por outros autores médicos significa que “as faculdades da alma seguem as misturas (kraseis) do corpo”, mencio-nando os melancólicos como exemplo. Entretanto, Filopono insiste que, embora a influência do corpo sobre a alma possa ser muito profunda e es-tender-se mesmo às faculdades cognitivas, como a memória e o pensa-mento discursivo, isso não significa que os processos mentais sejam gover-nados por estados físicos. Isso só acontece, diz ele, se algo dá errado no composto psicofísico do organismo humano. Ele indica que a combinação de um regime frugal, saudável com a filosofia, como um tipo de cuidado da alma, pode capacitar os indivíduos a resistir aos movimentos do corpo e mesmo impor sua vontade sobre os estados corpóreos. É assim que, sem negar a relação íntima entre corpo e alma, Filopono insiste que um regime físico e espiritual rigoroso permite que um ser humano fique livre da do-minação de seu temperamento corpóreo. Ele alega — referindo-se de novo, implicitamente, a Galeno — que mesmo os próprios médicos admi-tem que é possível, por meio de ocupações filosóficas, ter o controle da própria mistura (krasis) corpórea. Portanto, em última análise, segundo Fi-lopono, quando se trata da saúde e do bem-estar mentais, a filosofia tem a última palavra com relação à medicina.

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Gabriele Cornelli*1

A eterna questão das fontes

O trabalho do historiador da filosofia, assim como do historiador do pensamento, é aquele do atento e muitas vezes pouco glorioso trabalho sobre as fontes. Um ofício que alia a arqueologia dos textos à hermenêuti-ca de uma história que é, em suas linhas interpretativas, sempre uma his-tória do presente, isto é, um olhar sobre o passado construído a partir das preocupações éticas e teóricas de hoje2.

A relevância desta questão das fontes e de sua interpretação para os estudos do pitagorismo, com relação, por exemplo, ao problema da “expan-são da tradição” ou à obrigação do silêncio e à oralidade da filosofia em suas origens, é de primária importância e de grande alcance.

A questão das fontes para a história do pitagorismo revela, além dos costumeiros problemas filológicos, uma clara resistência ideológica a con-

1 Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, UnB.2 O presente ensaio foi apresentado originalmente no V Seminário Internacional Archai.

Saúde do homem e da cidade na Antiguidade Greco-Romana, Caraça (MG), 28 de maio e 1º de junho de 2007.

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siderar grande parte da tradição pitagórica como filosofia tout court. E par-te desta resistência deriva exatamente da relação, de certa forma “perigo-sa”, do ponto de vista de uma pretensa “ortodoxia filosófica” do pitagorismo com as práticas de cura.

Para isso, vamos analisar a relação da tradição pitagórica com o mun-do da saúde antiga, nas diversas acepções do termo levantadas por estudos recentes3.

Já Burkert advertia contra a tentação de uma lógica historiográfica de “coleta seletiva”, como a de Hegel, que tende a distinguir no interior das tradições pitagóricas o que seria filosofia e o que seria, ao invés, “criação obscura e insegura de cérebros turvos e vazios”, como dizia Hegel4. Inclui-riam-se com facilidade neste “saco para o lixo não-filosófico” as teorias so-bre a metempsicose, a dietética, os ritos mistéricos e, obviamente, as prá-ticas de cura taumatúrgicas.

Assim, com relação à compreensão da “ambígua” figura de Pitágoras, Burkert escreve:

Muitas vezes pareceu insuficiente um “não somente, mas tam-bém”: ele não era somente um medicine-man, mas também um pensador. Mas não seria possível que até um xamã pudesse realizar conquistas intelectuais, sem necessariamente revesti-las de uma forma racional ou conceitual stricto sensu?5

É exatamente na trilha dessa reclamação de Burkert que será neces-sário compreender o pitagorismo como um amplo movimento em que di-versos aspectos convergem para a definição daquela que Platão já chamava não tanto, ou não somente, de filosofia, mas de um trópos tou bíou.

O pitagorismo, muitas vezes apresentado com uma seita mística, de-sencarnada, isolado em seu elitismo para poucos iniciados, vai se revelar, em vez disso, uma filosofia de vida, um tropos tou biou que articula num conjunto de grande efeito: vida mística, reflexão matemática e pesquisa científica, preocupações dietéticas e de saúde, e militância política ativa.

3 P. J. van der Eijk, Medicine and Philosophy in Classical Antiquity, Cambridge, Cam-bridge University Press, 2005.

4 G. F. hEGEL, Lecciones sobre la historia de la filosofia, México, Fondo de Cultura Econo-mica, 1996, v. I, 100.

5 W. BurkErt, Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, Cambridge, Cambridge Uni-versity Press, 1972, 209.

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Apraz-me anotar aqui, a título ainda de introdução, que, se este é o resultado da pesquisa arqueológica, ao mesmo tempo não é de estranhar que seja o anseio comum de uma filosofia que, nestes tempos de moderni-dade tardia, procura uma recuperação de uma integralidade filosófica, de uma filosofia que tenha algo a dizer, de um ponto de vista existencial, a todo ser humano. Um breve olhar para as prateleiras das livrarias de hoje não deixa dúvidas com relação a isso: a profusão de obras pretensamente filosóficas e de autoajuda que, mesmo que raramente reconhecidas como tais pelos experts e scholars, atraem a atenção de um público cada dia maior, que busca nelas conforto, iluminação, alívio. Deve-se entender des-ta forma também, ao que me parece, o renovado e genuíno interesse pela filosofia antiga, tradicionalmente alheia a certos exageros analíticos que desenharam um estilo filosófico pouco “vital” em nossas últimas décadas.

Pitagorismo e o diálogo dos princípios: Filolau

A economia destas páginas não nos permite aprofundar as relações entre o pitagorismo e o mundo mágico-ritual da saúde no mundo antigo. Tal problema passa pelas estreitas relações que o pitagorismo e toda a filo-sofia pré-socrática geograficamente identificada na Magna Grécia manti-veram com o orfismo6.

Falarei, em vez disso, da profunda relação do pitagorismo com aquele movimento de ideias, com aquele grande projeto de pesquisa que já cha-mei, em um artigo anterior, de invenção do método das arkhai, que data o final do século V7. Nessa invenção de uma pesquisa que procura arkhai no sentido epistemológico de princípios explicativos da realidade, encontra-mos convergências de preocupações em literaturas normalmente distan-tes: entre elas, o tratado sobre os Elementos do corpus hipocrático e as Histórias de Heródoto. Um diálogo de saberes no qual o pitagorismo se encontra, mais uma vez, num lugar central.

O estudo dos fragmentos de Filolau, primeiro pitagórico do qual te-mos com certeza alguns escritos, poderá ajudar a definir o locus central do pitagorismo neste debate.

6 A. BErnaBé, Textos órficos y filosofia présocratica, Madrid, Trotta, 2004.7 G. CornELLi, As origens pitagóricas do método filosófico: o uso das archai como princí-

pios metodológicos em Filolau, Hypnos, São Paulo, PUC, v. 11 (2003) 71-83.

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O fragmento DK 44 B 13 vem confirmar a existência na filosofia de Filolau deste que chamei antes de método das arkhai. A introdução do ter-mo arkhai, plural de arkhê, é feito por Filolau com um sentido bem distin-to de seu uso tradicional na língua jônica. De fato, Filolau não somente utiliza o conceito de arkhai para indicar os princípios fundamentais da or-dem cósmica, como vemos, por exemplo, no fragmento DK 44 B 6, mas dele também se serve para compreender outras realidades fenomênicas, como as doenças ou as capacidades psíquicas:

E quatro são os princípios (archai) do animal racional, como também Filolau diz em “Sobre a natureza”: cérebro, coração, umbigo e genitá-lias. A cabeça da mente, o coração da alma e da sensação, o umbigo do enraizamento e crescimento primitivo, as genitálias da jogada da semente e da geração. E o cérebro é o princípio (arkhê) do ser huma-no, o coração do animal, o umbigo da planta, e as genitálias de todas as coisas juntas: pois da semente brotam e crescem.

É mister notar a inversão literária na estrutura da argumentação das quatro causas do animal racional: as genitálias (aidion), citadas por último, são apontadas como causas, princípios de todas as coisas, pois “é da se-mente que todas as coisas brotam e crescem”.

Para além da questão antropológica, o uso que Filolau faz de arkhê no fragmento parece confirmar a constituição no interior de sua filosofia de um método das arkhai que pode ser definido como a procura do número mínimo de princípios (arkhai) que permite não tanto dizer a origem, mas “explicar” um dado fenômeno. De fato, no fragmento DK 44 B 13 as arkhai mencionadas indicam os quatro princípios que permitem dizer que tal zôon, tal organismo, é racional, e não outro tipo de zôon.

Como se vê, a questão que se encontra em jogo não é tanto a da ori-gem, mas a do que faz que as coisas sejam tais que são: sua causa — para utilizar a terminologia aristotélica.

Mas é especialmente em DK 44 A 27 que o pensamento de Filolau encontra o corpus hipocrático, em um testemunho que utiliza o conceito de arkhê em âmbito especificamente médico. No testemunho, citado por Mênon no Anônimo londinense, Filolau nomeia arkhai das doenças a bile, o sangue e a fleuma.

Filolau de Crotona afirma que nossos corpos são constituídos de calor. De fato não teriam participação do frio […] Diz, portanto, que esta é

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a constituição dos nossos corpos. Afirma, também, que as doenças vêm da bile, do sangue e da fleuma, sendo esses princípios (arkhai) das doenças.

Huffman nota, de maneira muito apropriada, que na argumentação aqui atribuída a Filolau parece existir uma contradição: como indicar três diversas arkhai para as doenças se no início do mesmo testemunho Filolau afirmava serem nossos corpos constituídos por um único princípio, o ca-lor? Não seria mais coerente atribuir ao mesmo princípio (o calor) a origem das doenças?8

Mas o método das arkhai de Filolau já não se preocupa simplesmente em procurar origens gerais e universais, mas busca antes os princípios mí-nimos e suficientes para explicar cada um dos fenômenos. Desta forma, três arkhai são mínimas e suficientes para explicar todas as doenças, en-quanto só o calor não daria conta de explicá-las em sua diversidade.

Portanto, no final do século V, as arkhai se tornam peças de um es-quema metodológico de compreensão da realidade: postulados mínimos na geometria, causas objetiváveis de doenças na medicina, princípios ex-plicativos de todos os fenômenos na filosofia.

A busca da reta proporção: Arquitas de Tarento

Uma geração depois, com o pitagórico Arquitas, contemporâneo e amigo de Platão, o diálogo sobre o método científico se aprofunda9. No fragmento DK 47 B 1 Arquitas utiliza o termo diagignoskein, cognato de diagnosis, para caracterizar a atividade daqueles que se ocupam das ciên-cias. Arquitas parece ter aqui em mente o sentido que permite identificar os três princípios na citação acima de Filolau. Isto é distinguir, no sentido de distinguir uma coisa da outra, um fenômeno do outro: “Aqueles que se ocupam das ciências (matemata) parecem fazer bem as distinções (kalos diagnomen)” (DK 47 A 27).

8 Cf. C. huffman, Philolaus of Croton: Pythagorean and Presocratic. A Commentary on the Fragments and Testimonia with Interpretative Essays, Cambridge, Cambridge University Press, 1993, 99.

9 Para uma avaliação geral da importância de Arquitas para a história da ciência, cf. L. Zhmud, The origin of the History of Science in Classical Antiquity, Berlin/NewYork, Walter de Gruyter, 2006, 60-70.

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Assume, assim, a ciência do número um papel central em Arquitas, isto é, o do cálculo: a logística. Em contraposição à aritmética, que é a ciência da classificação dos diferentes números, a logística — como em Platão (Górgias 451b) — é a ciência da quantidade e da relação dos núme-ros entre eles, quer dizer, da razão e da proporção. O fragmento DK 47 B 4 não deixa dúvidas: “A logística parece ser superior às outras disciplinas (tekhnai), com relação à ciência (sophia), pois, até de forma mais eficaz do que a geometria, ela consegue tratar o que quer”.

Aqui é possível reconhecer uma provável polêmica entre Arquitas e o Filolau do DK 44 A 7a: isto é, no que diz respeito à afirmação da geo-metria como arkhê e metropolis das outras ciências. De toda forma, a afirmação da superioridade epistêmica da logística sobre esta última é indiscutível.

Mas esta superioridade, para além da questão mais estritamente epis-têmica e da descrição do mundo físico, e nos aproximando daquilo que aqui nos interessa, possui uma segunda dimensão10 e se revela também na descrição do comportamento humano e da cidade justa. Em outras pala-vras, desta vez platônicas, da saúde do homem e da cidade.

Para isso é evidentemente central o fragmento DK 47 B 3 de Arquitas (Estobeu, Sobre as ciências de Arquitas; Jâmblico).

Arquitas afirma em Sobre as coisas científicas: é preciso chegar a conhe-cer as coisas que é preciso conhecer, seja aprendendo-as de um outro, seja descobrindo-as por si mesmo. Aprender é de outro e pertence a outro, en-quanto descobrir é de si mesmo e pertence a você. Descobrir quando não se procura é difícil e não frequente, mas, quando se procura, é fácil e frequente, mas se alguém não sabe como calcular se torna impossível procurar. Uma vez que o calculo é descoberto, este para toda discórdia (stasis) e aumenta a con-córdia (homonoia). Uma vez que acontece isso, não há desejo de ter mais (pleonexia) e existe equidade (isotês). Por sua causa procuramos reconciliação em nossas relações com os outros. Por meio do cálculo os pobres recebem dos poderosos, os ricos doam aos necessitados, ambos confiantes de que, graças a este, terão o que é justo. Ele serve como padrão e como obstáculo aos injus-tos. Ele impede aqueles que sabem como calcular antes de cometer injusti-ças, persuadindo-os de que não passarão despercebidos quando apelarem a

10 C. huffman, Arquitas of Tarentum. Pythagorean, Philosopher and Mathematician King, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, 72.

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este. Impede àqueles que não sabem calcular de cometer injustiças, pois nele são revelados como injustos.

O fragmento é com toda probabilidade original11, ao menos por dois motivos: a) a referência à homologia entre ricos e pobres na Tarento gover-nada por Arquitas é lembrada explicitamente por Aristóteles (Política 1320 b10) e pode ser de fato uma referência histórica importante; b) a referên-cia à pleonexia corresponde a um tema caro à discussão filosófica contem-porânea a Arquitas (como é o caso de Platão na República). Além disso, em DK 47 A 9, Aristoxeno, que escreve presumivelmente na segunda me-tade do século IV, pouco depois portanto, lembra do diálogo sobre a pleo-nexía dele com Poliarco de Siracusa, dito “o voluptuoso” (hedupathês), em-baixador de Dionísio, o Jovem.

O fragmento é, portanto, um verdadeiro hino à capacidade de cál-culo, isto é, do logismos, proposto como solução para o problema da stasis e da pleonexia que ocupava a vida política e, consequentemente, a filosofia do final do século V e início do século IV.

Com um detalhe realmente extraordinário: o pressuposto desta solu-ção equitativa, isonômica, e que gera o desejo contrário ao ser mais pleoné-xico, é que o logismos seja um exercício de todo e de cada um individual-mente, do pobre e do rico. Huffmann anota — a meu ver com razão — que aqui Arquitas apresenta-se como bem mais democrático do que Platão: na República (546 d) a matemática que regula a cidade justa é extremamente complicada e reservada a poucos. Em Arquitas, ao contrário, todos os cida-dãos são considerados capazes de compreender o cálculo pelo qual “os pobres recebem dos poderosos, os ricos doam aos necessitados, ambos confiantes de que, graças a este, terão o que é justo”12.

Como já acenamos acima, a própria biografia de Arquitas, governador da cidade de Tarento, parece revelar uma tendência política que vai neste sentido13.

Mas o logismos é também e sobretudo o fundamento da vida moral individual. Muitas anedotas apontam para este âmbito semântico: as pres-

11 Ibid., 184.12 Ibid., 191.13 Cf. para isso: ibid., 9-18; B. CEntronE, Alcmeon de Crotone, in R. GouLEt (org.), Diction-

naire des Philosophes Antiques, Paris, Editions CNRS, 1989, v. I, 116-117a; Id., Archytas de Tarente, in R. GouLEt (org.), Dictionnaire des Philosophes Antiques, v. I, 339-342 [341]; Id., I pitagorici, Bari, Laterza, 1996, 49-52.

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crições sobre atividades físicas, sobre a vida sexual, assim como a pró-pria dietética e as várias prescrições ligadas aos tempos e modos da ali-mentação (conservadas já em Aristóteles, assim como em Aristoxeno) podem ser compreendidas como um exercício de logismos, de cálculo. Dois exemplos neste sentido podem explicitar o uso do conceito. Em DK 47 A 7, Arquitas, enraivecido com os servos que abandonaram os cuidados para com os campos, não os pune. E age desta forma exata-mente por causa de sua emoção, isto é, por estar tomado não pelo racio-cínio e sim pela raiva. Na mesma linha, em DK 47 A 11, o filósofo pita-górico revela o hábito incomum de escrever palavrões na parede em lugar de dizê-los!

Ainda mais significativo do ponto de vista histórico é o célebre diálo-go dele com Poliarco de Siracusa, uma versão pitagórica do Cálicles pla-tônico (DK 47 A 9): aqui temos uma clara recusa de Arquitas do estado de prazer como alternativo à razão. É significativo, pois, que no Górgias de Platão Sócrates pareça referir-se diretamente a Arquitas ou, ao menos, a esta teoria pitagórica, quando critica duramente Cálicles e sua afirma-ção da pleonexia, alegando que ele teria esquecido a isonomia geométrica (508 a).

Em ambos os casos, o do cálculo para a cidade justa e o do cálculo para a moralidade individual, é a busca pela reta proporção que orienta a reflexão do filósofo pitagórico Arquitas. É o caso de relembrar o trecho fundamental do fragmento DK 47 B 3, acima citado, sobre a consequência da descoberta do cálculo: uma vez que acontece isso, não há desejo de ter mais (pleonexia) e existe equidade (isotas).

As estreitas relações históricas entre Platão e Arquitas tornam esta identificação bastante plausível14.

A saúde como isonomia em Alcmeon

A isonomia torna-se assim o coração da ética antiga, não somente do ponto de vista teórico, e sim, especialmente, em sentido político e jurídi-

14 É mister lembrar que Arquitas teria literalmente salvado a vida de Platão num desfecho infeliz de uma de suas aventuras siracusanas (Carta sétima 350 a5).

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co: a ideia acaba permeando toda a cultura. Clístenes e sua reforma de 505 constituem talvez o momento mais evidente deste sucesso15.

Em âmbito médico, é o que mais importa para a economia destas pági-nas. Compreender a figura de Alcmeon se torna, por isso, imprescindível.

Não irei aqui tratar da espinhosa questão da relação de Alcmeon com a escola pitagórica, relativa ao fato de ele ser anterior ou não a ela. Não há dúvidas das profundas ligações com esta escola, o que torna Alcmeon par-te de uma tradição de filosofia da saúde (cf. DK 44 B 13 de Filolau) pre-sente na escola pitagórica16.

O que cabe aqui notar é que a mesma equidade, a mesma isonomia, Alcmeon procura no fragmento 4 para a saúde.

Para Alcmeon a isonomia das forças conservaria a saúde: úmido–seco, frio–quente, amargo–doce etc.; enquanto a monarquia de um entre eles produziria a doença: destrutiva seria de fato a monarquia de um dos opostos. E aconteceria assim a doença, com relação à causa, por excesso de calor ou de frio; com relação à ocasião, por causa da abun-dância de comida ou de sua escassez; com relação à sede, no sangue ou medula ou cérebro; aconteceria também por causas externas: [qualidade?] das águas ou lugar ou fadigas ou torturas ou outras coi-sas parecidas. A saúde seria a mistura (temperamento) simétrica das qualidades.

Aparece aqui uma estreita interconexão de planos de saber orienta-dos por um método, o do cálculo, do logismos, da atenção às proporções, que pretende ser, para além de um instrumento heurístico de compreen-são (medição) do mundo, um instrumento ético-político e higiênico, de saúde.

15 P. LèvêquE, P. vidaL-naquEt, Cleisthenes the Athenian: An Essay on the Representation of Space and Time in Greek Political Thought from the End of the Sixth Century to the Death of Plato, New Jersey, Humanities Press, 1996.

16 Em Metafísica A 3, 986, Aristóteles separa Alcmeon dos pitagóricos, mesmo anotando proximidades teóricas entre os dois. Na Vita pitagorica, Jâmblico diz que Alcmeon teria sido discípulo e ouvinte do próprio Pitágoras. O mesmo diz Diógenes Laércio nas Vidas VIII, 83: dioGEnES LaErtiuS, Lives of Eminent Philosophers, Cambridge, Harvard Universi-ty Press, 2000, 2 v. Para os comentadores modernos da questão: B. CEntronE, Alcmeon de Crotone, in R. GouLEt (org.), Dictionnaire des Philosophes Antiques, v. I, 116-117a [116]; T. Cardini, 1958, v. I, 119.

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Conclusão

A filosofia pitagórica dedica-se assim à saúde do indivíduo e à saúde da cidade, primeiramente compreendendo-as como algo a ser calculado matematicamente, isto é, a ser definido por proporções em equilíbrio.

Mas, na esteira da tradição da filosofia como vida, antes que como exercício exclusivamente teórico, a tradição pitagórica procura oferecer os instrumentos para uma vida saudável: isto é, um estilo de vida, um tropos tou biou que seja o resultado da articulação de três elementos: os conheci-mentos científico-matemáticos, uma preocupação ético-política e algumas práticas e teorias médico-dietéticas.

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Ordem do corpo, ordem do mundo: aitia, tekmêrion, sêmeion, historion

nos tratados hipocráticos do fim do século V antes de nossa era1

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Quando se observa a saúde do homem e a da cidade, pode-se consi-derar em particular a seguinte questão: a da relação da ordem do corpo e da ordem do mundo (da qual a ordem cívica faz parte) por meio das no-ções de prova (tekmêrion, sêmeion, historion) e de causa (aitia). Eu a consi-derarei em alguns tratados hipocráticos, situados consensualmente no fim do século V antes de nossa era: Da medicina antiga, Do regime e o conjun-to Da geração, Da natureza da criança e Doenças IV.

Tripla continuidade

Entre o mundo exterior (tomado em toda a sua generalidade de mun-do natural e de mundo fabricado ou instituído) e o mundo interior (do corpo e da alma, ela mesma somática), costuma-se estabelecer a relação

1 Tradução de Fernando Rey Puente.2 Pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique — CNRS; Centre Louis

Gernet, Paris, França.

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Catherine Darbo-Peschanski

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analógica do macrocosmo com o microcosmo. Para isso, apoiamo-nos par-ticularmente em Do regime I, 10:

O fogo estruturou tudo no corpo de um modo que lhe é próprio para fazer deste uma imitação do universo (apomimêsis tou holou), relacio-nando os pequenos órgãos aos grandes (mikra pros megala) e os gran-des aos pequenos (kai megala pros micra).

Mas, observando de perto, mais que uma analogia, nossos tratados pressupõem uma tripla continuidade.

A primeira forma de continuidade que eles estabelecem entre o cor-po/alma, de uma parte, e o mundo exterior, de outra, é uma continuidade material.

É o caso de Do regime. Conhecer o regime, afirma o médico, autor do tratado, exige que se conheça previamente a natureza do homem. Ora, as-sim como o cosmo em geral, a natureza do homem é, tanto em relação ao seu corpo como em relação à sua alma, composta de água e de fogo. Esses dois elementos relacionam-se e constituem-se por meio de seus atributos associados (o quente e o seco, para o fogo; o frio e o úmido, para a água), pois cada um contém um atributo do outro. A água contém o seco do fogo e o fogo, o úmido da água.

No mundo, os dois elementos primordiais produzem, “por separação mútua a partir de eles mesmos (apokrinesthai)” e, acrescentaria eu, graças às composições que seus atributos comuns permitem, as formas (ideai), as sementes (spermata) e os seres vivos (zôia), os quais não se assemelham nem pelo aspecto (opsis), nem pela faculdade/potência (dunamis) (IV, 1).

Ora, tanto no corpo como na alma do homem “são disseminados par-tes de partes e todos de todos”, uns como outros compostos de água e de fogo (VI, 1). Pode-se pensar que essas partes humanas são retiradas da-quelas do mundo, bem como os todos. Tudo isso é levado pelas sementes que, no momento da fecundação, entram (eisienai) no homem, e é preciso que essas sementes “tenham todas as partes” (ta merea echein panta) para que o feto se desenvolva (VII, 1).

Além disso, nos dois casos, o elemento motor, aquele que anima o movimento, é o fogo, que progride nutrindo-se de água. É ele que, tan-to no mundo como no homem, estabelece a ordem ao separar (diakos-mein). Ele é invisível e intangível ao constituir a matéria da alma huma-na, caso ele organize o homem à semelhança do mundo, e é precisamente

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Ordem do corpo, ordem do mundo: aitia, tekmêrion, sêmeion, historion nos tratados hipocráticos

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por sua identidade material que ele coloca o homem em continuidade com o mundo.

Segundo todos os outros tratados do grupo considerado, há continui-dade material igualmente entre os humores contidos nos alimentos (tra-zidos do exterior) e os humores constitutivos do corpo. O corpo é composto dos mesmos humores que aqueles que a natureza exterior contém. Esta é a razão pela qual o homem pode se alimentar dos alimentos que ela oferece. Em Doenças IV, 24, 5 é-se informado de que cada planta utilizada como alimento ou bebida extrai da terra numerosos sucos e que cada um deles contém humor pituitoso e sanguíneo. Doenças IV, 23, 2 havia assinalado anteriormente que em todos os alimentos e bebidas há humores biliosos, aquosos, sanguíneos e pituitosos; aqui mais, lá menos.

Ora, no corpo, a cabeça é o lugar fonte da fleuma; o coração, do san-gue; o baço, da água; a vesícula, da bile — órgãos que são naturalmente feitos para seus humores respectivos.

Em Da medicina antiga, 14, a propósito das substâncias contidas nos alimentos, também há a referência: “Eles viam que essas substâncias esta-vam igualmente presentes no homem (kai en tôi anthrôpôi eonta) e que elas o incomodavam”.

Outra forma de continuidade: a continuidade funcional. No tratado Do regime, a onipresença do fogo e da água no mundo e no homem asse-gura aos dois domínios a mesma forma de vida: a mistura é simétrica à separação e tudo é movido segundo a alternância do dar e do receber. O fogo avança alimentando-se de água e, quando ela lhe falta, ele recua sem força. A água avança então, mas perde progressivamente o ímpeto que a move. Decorre disso o fato de que, no homem como no mundo, as partes e os todos são misturas de água e de fogo (ekhonta sugkrisin puros kai hudatos), umas para receber (ta men lêpsomena), outras para dar (ta de dôsonta).

Em Doenças IV as cavidades do corpo em presença dos humores, como a terra em presença das plantas, funciona sob o mesmo princípio de atração do semelhante pelo semelhante.

Enfim, a continuidade funcional não vincula apenas os mundos físi-cos interiores e exteriores, mas também o interior do corpo com o domínio das artes (tekhnai). Mais uma vez, não se trata de uma analogia introduzi-da pelo analista. Se há semelhança entre as artes e as funções do corpo, isso ocorre em virtude do exercício de uma mesma regra objetiva comum

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aos usos sociais (nomos) e à natureza (phusis), regra de aparência heracli-tiana no que se refere ao tratado Do regime I, 11:

Os homens não sabem observar (skeptesthai) o invisível (ta aphanea) a partir do visível (ek tôn phanerôn). Eles não sabem (ou ginôskousin) que as artes (tekhnêsi) que eles utilizam são semelhantes (homoiêsin) à natureza humana (phusei anthrôpinêi). O espírito (noos) dos deuses ensinou-os a imitar (mimeisthai) as suas próprias funções (ta heôutôn), mas eles sabem o que fazem, sem saber o que imitam (ou ginôskontas ha mimeontai). Pois todas as coisas são semelhantes (homoia), embora diferentes (anomoia eonta); compatíveis (sumphora), embora incom-patíveis (diaphora); em diálogo (dialegomena) sem dialogar (ou dialego-mena); dotadas de inteligência (gnômên echonta) sem a ter (agnômo-na). O modo de cada um é oposto embora esteja em concordância (hupenantios ho tropos hekastôn homologeomenos); o costume (nomos) e a natureza (phusis), pelos quais nós fazemos tudo, não estando em concordância, concordam, todavia (oukh homologeitai homologeome-na). O costume, os próprios homens o estabeleceram sem saber em relação a que eles o estabeleceram; a natureza de todas as coisas, ao contrário, foram os deuses que a dispuseram ordenadamente (diekosmêsan).

Enfim, a continuidade se mostra igualmente estrutural.No tratado Do regime, por exemplo, o corpo e a alma são divididos em

regiões (khôrai) nas quais residem temporariamente misturas de água e de fogo e que, em relação a essas misturas, desempenham a tal ponto um pa-pel de fôrmas compressoras que as misturas de dimensões não adaptadas são forçadas a se deslocar para outras regiões. O corpo e a alma, portanto, são dotados de uma estrutura territorial fixa e, nisso, organizam-se como o pró-prio mundo exterior, que também é recortado em regiões, dotadas em si mesmas de caracteres higrométricos e de exposição diferentes (acerca des-se ponto, Do regime II, 37 deve ser relacionado a I, 6 e I, 7, consagrados à embriologia).

Uma lógica circular

A tripla continuidade que tínhamos constatado em nossos tratados suscita e autoriza simultaneamente o recurso a uma lógica circular que

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permite ao mundo exterior fornecer as premissas dos raciocínios sobre o interior ou inversamente.

Consideremos o par aitia ou aition (a causa)/diaita (o regime). Essas palavras são morfologicamente relacionadas no que diz respeito ao fato de pertencerem ao mesmo campo léxico: o de aisa (a parte). Com efeito, o regime reparte os alimentos, as bebidas e os exercícios, enquanto o corpo e a alma possuem eles mesmos uma ordem feita de repartição (diakosmein).

Mas essas palavras também são relacionadas logicamente: graças à continuidade material que as coloca no prolongamento uma da outra (os humores, dos alimentos, e estes, do corpo, ou os componentes elementa-res, dos alimentos, e aqueles, do corpo), elas podem, efetivamente, trocar de lugar no raciocínio médico.

Nesse movimento o par aitia/diaita cruza um outro que já havíamos encontrado em Do regime 11-12: o par visível/invisível, que, igualmente, pode se inverter: o visível tomando o lugar de premissa para concluir no invisível ou vice-versa.

Assim, quando o médico, autor do tratado Da medicina antiga, expli-ca como a medicina progrediu, ele faz do regime o instrumento heurístico que permitiu descobrir o sistema interno dos humores e, com isso, a causa (invisível) dos sofrimentos e das doenças: o predomínio de um humor quando ele chegou a seu grau extremo (Da medicina antiga VI, 3; XX, 2). Inversamente, porém, se o regime permite descobrir essa causa, ele é do mesmo modo a própria causa da doença e da saúde ao influenciar o siste-ma de humores. Isso também vale para o tratado Do regime.

Outra circularidade intervém no uso das noções de tekmêrion e sêmeion.

Outra observação impõe-se antes de desenvolver esse ponto: não se encontrará nos tratados estudados uma distinção lógica entre as duas no-ções, análoga àquela feita por Aristóteles na Retórica (1357a34-b25) e nos Primeiros analíticos (II, 27, 70).

Lembremo-nos, com efeito, que para Aristóteles na ordem das provas técnicas, as que se fazem por meio do discurso (dia tou logou), o sêmeion desempenha a função de gênero. Ele se divide então em duas espécies: o signo que apresenta a relação do particular com o universal, denominado igualmente sêmeion, e aquele que apresenta a relação do universal com o particular, o tekmêrion. Este último divide-se, por sua vez, em um tekmê-rion necessário, do qual se pode extrair um silogismo demonstrativo, e um

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tekmêrion refutável (lutos). Desse modo, não se pode retirar um silogismo da proposição “Sócrates era sábio e justo” porque se deveria então concluir do particular ao universal. Portanto, isso é um sêmeion. Ao contrário, pode-se considerar a proposição “ela possui leite” como uma prova necessária de que ela deu à luz, pois toda fêmea que dá à luz possui leite. Quanto a uma proposição como “ele treme”, ela constitui um tekmêrion refutável de “ele está com febre”, pois se pode tremer por outra coisa que não a febre.

Nossos tratados não fazem tal distinção entre o sêmeion e o tekmê-rion. Em todo caso, com efeito, o mecanismo interno invisível tendo sido previamente o objeto de uma exposição dogmática, o sêmeion ou o tekmê-rion, indiferentemente, constituem um indício (ou uma prova, pouco im-porta) que apresenta uma relação do universal (o tal mecanismo) ao parti-cular (um fato observável, um fato admitido). Mas trata-se em todo caso, e no interior da lógica mesma do tratado, de um indício refutável, pois se po-deria invocar o mesmo indício para outro mecanismo interno ao qual o próprio autor recorre alhures. A relação estabelecida pelo indício não é nem necessária nem única.

Assim o caso da transformação do esperma na matriz que o tratado Da natureza da criança desenvolve nos capítulos 11 e 12. A passagem co-meça pela exposição dogmática do modo segundo o qual a semente se anima, mecanismo que se encontra bem resumido em 12, 5 e 6:

No momento em que a mãe atrai sobre si um ar frio, a semente se aproveita. Ela é quente visto que ela está no calor, logo, ela tem e emite um sopro (isso em virtude da lei estabelecida, mais acima, de que “tudo o que esquenta emite um sopro”). A semente inchada se envolve de uma membrana; esta cresce por todos os lados em direção ao exte-rior; ela é contínua, forte e viscosa […] No meio da semente, há pas-sagem para o sopro — entrada e saída — através da membrana. Nessa região da membrana aparece uma diminuta saliência; muito pouca se-mente se encontra nela.

Depois, a partir daquilo que ele viu alhures de uma semente de seis dias, o médico fabrica os tekmêria, ou seja, os indícios que provam sua teo-ria (hokoiê moi ephaineto en gnômê tote ap’ ekeinôn ta loipa tekmêria poieu-mai, 13, 1). Vê-se sua origem em 13, 3:

Eu vou dizer como isso se apresentava (hokoion d’ên…). É como se a gente retirasse a casca de um ovo cru e que o humor fosse transparen-

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te na membrana interior. Eis aí, grosso modo, sua aparência. Além dis-so, ela era vermelha e esférica. Na membrana apareciam fibras bran-cas e espessas e, ao redor da membrana, no exterior, havia coágulos de sangue. Do meio da membrana destacava-se algo fino que me pareceu ser o cordão umbilical (omphalos): era através dele que se fazia inicial-mente a inspiração e a expiração.

Vê-se aqui que o tekmêrion assegura a relação entre uma tese, com pretensão de universalidade, sobre a animação da semente — tese ela própria deduzida de uma lei dada igualmente de modo universal sobre o sopro — e um caso particular observado, mas que essa relação nada tem de necessá-ria. O cordão umbilical pode muito bem, por certo, mesmo para o próprio médico do tratado, servir para outra coisa do que para deixar passar o so-pro. Por exemplo: pode servir para assegurar a passagem de certos humores.

Acrescentemos que, a fim de designar o indício que estabelece uma relação do universal com o particular, pode-se também, certamente, en-contrar a palavra sêmeion, como eu o dizia precedentemente.

Assim ocorre em Da natureza da criança 38, 3. Após uma exposição dogmática sobre o como e o porquê da presença do sangue mais abundan-te no corpo, exposição apoiada na teoria que pretende que os quatro hu-mores (o sangue, a bile, a fleuma e a água) sejam mais abundantes no corpo por causa dos alimentos e das bebidas, um sêmeion é proposto, indí-cio ou prova, constituído por uma constatação empírica:

Eu expliquei como o sangue se torna mais abundante. Eu mostrei as-sim como e por que os quatro humores, o sangue, a bile, a fleuma e a água, são mais abundantes no corpo por causa dos alimentos e das bebidas. Que são realmente destes que eles provêm, eis aqui a prova (sêmeion): se a gente come e bebe pouco, isso não provoca nenhuma doença.

Vê-se que a relação do universal com o particular que o sêmeion traz aqui consigo, tanto quanto a do tekmêrion precedente, é uma relação re-futável. Com efeito, pode haver outra razão para a boa saúde do que a quantidade reduzida de alimentos absorvidos. No tratado Da medicina an-tiga, por exemplo, o médico mostra, ao contrário, que em alguns casos uma escassa quantidade de alimento provoca uma falta que desregula o corpo até levá-lo à doença. Além disso, essa prova não remete diretamen-

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te ao mecanismo dos quatro humores, mas a uma teoria diversa que pre-tenderia que a saúde fosse ligada à escassa quantidade de alimento e de bebida absorvida.

Mas o que é mais surpreendente no uso das noções de tekmêrion e de sêmeion é antes a circularidade lógica que elas permitem. Elas podem ser, efetivamente, tanto os indícios ou as provas constatáveis — fornecidas em apoio a uma teoria relativa à organização interna do corpo —, em outras palavras, um instrumento hermenêutico, como as próprias manifestações somáticas, isto é, os sintomas, que exigem ser interpretados.

Elas preservam também, com efeito, o seu sentido de signo concreto de uma realidade oculta a ser interpretada. Pensemos e esse propósito em Do regime IV, 86, onde à expressão tekmêria ta en hupnoisi é atribuído o sinônimo ta enuptia (os sonhos). Ora, se certos desses tekmêria são envia-dos pelos deuses e dependem da mântica, outros são enviados pela alma para assinalar (prosêmainein) as afecções do corpo (pathêmata tou sôma-tos). Neste caso, é a medicina que deve se encarregar da interpretação.

O historion

Há, entretanto, outra noção que se deve levar em conta, noção que se costumou traduzir por prova, exatamente como tekmêrion e sêmeion, em-bora ela não dependa de modo algum do mesmo mecanismo: a de histo-rion. Se aitia, tekmêrion e sêmeion testemunham a continuidade que nos-sos tratados estabelecem entre o interior e o exterior, permitindo a inversão da lógica do percurso de um para o outro, o historion reenvia à norma de justiça que opera nessas duas esferas.

Deve-se logo lembrar que a palavra historion só aparece em três trata-dos do corpus hipocrático, tratados que, desde Littré, que se considera consensualmente ter sido escritos pela mesma mão no fim do século V antes de nossa era: Da geração, Da natureza da criança e Doenças IV.

Ora, esse conjunto começa pela frase: nomos panta kratunei, a qual, tendo em vista a data do tratado, deve antes ser relacionada ao nomos basi-leus de Píndaro do que à ideia de lei física no sentido moderno do termo.

Os outros tratados que estudamos, visivelmente da mesma época, in-citam, além disso, a perceber aqui uma referência a uma ordem de justiça. Assim, o médico de Da medicina antiga fala da relação que os humores

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trazidos pelos alimentos mantêm com aqueles que o corpo contém em si como de relações bélicas. Trata-se, com efeito, de impor seu poder pela força (kratunein ainda). Ora, a guerra, desde os primeiros textos gregos conhecidos e ao menos até o século IV, é a iniciadora de um mecanismo de destruição e restabelecimento dos equilíbrios rompidos, mecanismo co-locado sob a égide da justiça (dikê).

Outro exemplo: o médico de Da medicina antiga ainda usa a palavra hamartêma para designar o fato de administrar ao homem uma alimenta-ção inferior, em quantidade e em qualidade, ao conveniente (tôn hikanôn) (IX, 2). É um erro ou uma falta contra a justiça? Eu escolheria a falta, pois esse atentado à medida (metron) recebe seu “castigo” (timôria). Lidamos aqui claramente com o par ofensa/reparação pela punição que é o quadro fundamental do mecanismo da justiça (dikê) no século V.

Mais ainda, em Do regime, tanto a natureza (phusis) interior como a exterior ordenam-se segundo a troca entre o dar e o receber. Ora, é igual-mente isso que anima dikê: comete-se injustiça ao “receber dikê” (lamba-nein dikên) e, ao revés, repara-se ao dar justiça (dikên didonai), que signifi-ca igualmente ser punido ou punir. Não causará surpresa que, como no mundo de Sólon, ele também regido pela justiça, “cada coisa cumpra seu destino para o mais ou para o menos” (tên peprômenên moiran hekaton ek-plêroi). Em Sólon, cada um recebe do destino uma parte (moira), garantida pela justiça, mas ir tomar aquilo que não está inscrito em sua parte desen-cadeia inevitavelmente a vingança da filha de Zeus. Do mesmo modo, no corpo, tal como o vê o autor do tratado Do regime, no momento do cresci-mento do embrião, cada parte tem um lote (moira) que também é uma parte de espaço (khôrê), e desde que esta parte completou sua sorte, isto é, desde que ela preencheu esse espaço, ela passa a um outro lote (de desti-no e de espaço). É a alma que anima esse movimento sob a égide da phusis (kata phusin), figura do destino que distribui as partes. Ir contra ela é uma injustiça, uma falta passível de represálias, sobrevindo o sofrimento e o desequilíbrio que conduz à doença.

Nesse mundo de justiça, deve-se — parece — relacionar o historion com a historia, tal qual Heródoto, um contemporâneo, a pratica. Heródoto também concebe o mundo como inteiramente colocado sob o controle de dikê. Esta, com efeito, em Heródoto vela para que cada homem em sua sociedade, cada povo em suas leis e seus costumes e cada parte do mundo físico permaneçam no lugar que lhes é designado ou paguem pelas trans-

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gressões. Conhecer esse mundo é antes de tudo julgá-lo no sentido judiciá-rio do termo. A historia constitui um julgamento desse tipo, mas o primeiro de um sistema de dois. O praticante da historia decerto escuta, vê e reco-lhe relatos, julgando-os. Mas seu julgamento não é de modo algum defini-tivo. Ele próprio será julgado pelos leitores/ouvintes da obra, que, fora do texto, na recepção deste, e de acordo com a convicção que eles terão por obra da persuasão (pisteuein), emitirão a sentença (gnômê) definitiva que fixará o fato em discussão.

Eis aí o que pode ajudar a compreender o historion. Trata-se de um fato (de experiência pessoal, de um fato relatado ou mesmo retirado, para além de toda experiência, de certa teoria dogmática sobre o funcionamen-to interno do corpo) que julga, em primeira instância, a tese que o médico propõe. É preciso, a seguir, que os ouvintes do tratado vejam se querem realmente se deixar convencer e tirem suas conclusões.

Voltemo-nos, por exemplo, para Doenças IV, 56, 7. O médico tenta sustentar que a bebida não se dirige aos pulmões. Eu proponho a seguinte tradução:

Eis aqui um novo fato que vem julgar a coisa (historion). Eu não teria acumulado tantos [é o último historion de uma série de sete]3 se tantas pessoas não fossem da opinião (dokeousi) de que a bebida vai aos pul-mões, e é necessário, diante de opiniões fortemente estabelecidas, levantar muitos fatos (polla historia) que julguem, se se quiser, por seus propósitos, persuadir o ouvinte (ton akouonta peisein).

Os tratados em questão são os akroaseis, ou seja, objeto de exibições orais. O público se encontra situado assim, em relação ao historion, na po-sição do júri dos tribunais cívicos que escutava cada um dos pleiteantes propor uma maneira de julgar o caso ou tentando convencer os pleiteantes ou permanecendo mudo; era ele, o júri, entretanto, que, em última instân-cia, decidia ao adequar sua sentença (gnômê) àquela da parte que o havia convencido.

O historion aparece então como um modo de prova, se se quiser, mas que testemunha sobre uma época na qual o saber se construía comumente de acordo com os procedimentos judiciais. Se a cidade está presente nos tratados que estudei, eu sugiro que é por isso.

3 A observação é minha.

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Para além desta conclusão, pode-se postular que a tripla continuida-de, material, funcional e estrutural, que os tratados escolhidos para este estudo estabelecem entre a phusis interna e a phusis externa, bem como a normatividade judiciária que rege uma e outra, também permitem com-preender, em suas diferenças e especificidades, certo número de instru-mentos lógicos usados pelos médicos do século V.

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A questão que nos interessa aqui examinar é suscitada pela constata-ção da importância concedida pelas tradições médica e filosófica às noções de medida (metron) e momento oportuno (kairos) como noções que con-cernem tanto à prevenção e à terapia de certas doenças no âmbito da arte médica (iatrikê tekhnê), ou seja, a saúde do corpo, quanto à aquisição da virtude e da felicidade no âmbito da reflexão filosófica, ou seja, a saúde da alma. Em outras palavras, noções relacionadas com o que entendiam os antigos ser as diferentes formas de expressão da saúde do homem.

Consoante às noções acima mencionadas, encontramos outra de igual importância: trata-se daquela expressa pelo termo grego diaita. No exame de suas ocorrências, verificamos que este termo, nas diferentes acepções em que é empregado, compreende, do ponto de vista do sentido, os dois primeiros, a saber, metron e kairos. Ou seja, a dietética consiste na obser-vância desses dois aspectos por meio dos quais é possível ao homem mo-delar ou temperar sua vida, conferindo-lhe, assim, o estado de excelência que se manifesta tanto no bem-estar físico quanto no psíquico e moral.

1 Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG.

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Nosso interesse se volta, então, para uma investigação acerca do emprego desses termos e das noções por eles expressas no corpus dos testemunhos e fragmentos atribuídos a Demócrito, graças às quais pensamos ser possí-vel sustentar que, nesta tradição, a ética corresponde a uma espécie de dietética em que a alma atua, por meio do cálculo espacial e temporal, na therapeia do corpo.

Para tanto nos empenharemos em avaliar o parentesco de algumas noções e categorias da reflexão ética com aquelas que encontramos, por exemplo, em tratados da coleção hipocrática como o Da medicina antiga e o Do regime, tratados que se considera ter sido redigidos por volta dos sé-culos V-IV a.C., e nos quais as noções de metron e kairos ocupam uma po-sição importante na prevenção e na terapia das doenças do corpo.

Começaremos pelo exame do tratado Da medicina antiga para, em seguida, precisar em que consiste a ideia de dietética que nele figura e o apelo à medida que lhe é adjacente. Feito isso, procederemos ao confronto das teses expostas nos tratados mencionados da coleção hipocrática com os testemunhos e fragmentos do filósofo atomista com o intuito de verifi-car se o uso que fazem destas noções aproximaria as duas tradições no que nelas figura como dietética (medicina) e ética (filosofia).

Encontramos no tratado Da medicina antiga2 uma interessante asso-ciação das experiências humanas na descoberta e na utilização dos ali-mentos ao surgimento da arte médica. Seu autor aponta para a singulari-dade da natureza humana, que, diferentemente da dos demais animais, não se contenta, para fazer face à satisfação de suas necessidades, mera-mente com aquilo que se encontra pronto à sua volta para se nutrir. A re-lação que os homens mantêm com a natureza advém de sua própria expe-riência e se constitui de modo lento e gradual. Nesta perspectiva, a descoberta dos alimentos adequados à conservação de sua natureza e a crescente consciência do efeito diferenciado que eles produzem nos es-tados de saúde e de doença apresentam-se como condição de possibilida-de para a sobrevivência do homem. Foram necessários muitos anos para que uma arte viesse finalmente a se constituir, se desenvolvesse e pudesse

2 Todas as referências aos tratados da coleção hipocrática serão indicadas, no corpo do texto, pelas iniciais do título, seguida da indicação do capítulo em algarismos romanos e da página correspondente na edição de E. Littré, a saber: MA para Da medicina anti-ga; R para Do regime.

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auxiliar a natureza humana na manutenção de seu estado de equilíbrio. E esta arte não é outra que a arte médica, que, segundo o Da medicina anti-ga, teria vindo a ser como uma consequência natural da experiência hu-mana no terreno da nutrição.

A filiação da arte médica a este tipo particular de saber aparece ainda mais claramente pela presença nela subsistente de duas outras artes que lhe são inerentes: a arte da medida e do momento oportuno, tornada possí-vel pela associação da experiência, da observação proporcionada pelos sen-tidos e pelo raciocínio ou cálculo através do qual tem lugar. Certo cálculo da conveniência é determinante na direção dada pelo médico à sua inter-venção nos processos de prevenção da saúde e cura das doenças. Assim, no estabelecimento do regime adequado a um determinado indivíduo em uma determinada circunstância se reconhece o bom médico. Tal conduta é resultado de uma experiência acumulada através dos tempos em que, por exemplo, os homens se aperceberam de que “o regime da saúde não convinha à doença”. Em outras palavras, as diferentes circunstâncias e na-turezas (humanas) demandavam uma arte da medida, uma arte do cálculo. A arte médica deixa entrever, assim, seu parentesco com a arte culinária no que diz respeito à sua capacidade de temperar, de calcular, enfim, de julgar acerca do que é oportuno a cada natureza individual e a cada estado particular3. Insiste o autor: “ninguém, eu já o disse no início, teria buscado a medicina, se o mesmo regime tivesse sido conveniente para a doença e para a saúde” (MA, 5; L, 581). Logo, é porque constatamos o caráter varie-gado da natureza humana que não podemos nos contentar com um só e mesmo procedimento em todas as circunstâncias. O médico se apresenta, então, como aquele que sabe temperar a natureza dos homens, suprimin-do ou limitando determinados alimentos, “tendo o cuidado de regular a quantidade e o temperamento (tauta têsi te krêsesi kai tôi plêthei diaphulas-sontes hôs metriôs ekhêi), e de não lhes dar nem muito, nem muito pouco nem muitos destemperados (mête pleiô tôn deontôn mête akrêtestera pros-pheromenoi, mêd’endeestera)” (MA, 5; L 583). No exercício de sua arte de regular a quantidade e o temperamento, o médico levará ainda em conta o momento ou ocasião, para saber em que momento, particularmente, ela

3 Cf. MA 5-6; L. 583-585: “É preciso saber que existem doentes aos quais os caldos não convêm […]”; “Se há homens que se encontram em tais condições […]”; “Por um outro lado, o doente que pode tomar caldos, mas não comer […]”.

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pode se mostrar favorável. Ele tem em mente que tanto a abstinência (apo kenôsios) quanto a plenitude (apo plêrôsios) fora de seu tempo (akairos) são causas de más afecções (kakopatheiai ginontai) (MA, 10; L 591). O exercí-cio da arte médica não se pauta, pois, por certezas. Isso não significa, en-tretanto, que seja obra do acaso (orthôs exeurêtai, kai ouk apo tukhês) (MA, 12; L 599). São a pesquisa e a observação, associadas ao raciocínio, que podem conduzir o médico para mais perto da exatidão.

E. Benveniste, ao discorrer acerca da raiz *med-, observa que os ter-mos dela derivados recobrem toda uma série de domínios e sentidos que poderiam ser englobados pela definição, segundo ele, “aproximada” que se segue: “tomar com autoridade as medidas que são apropriadas a uma difi-culdade real; remeter à norma — por um meio consagrado — um proble-ma definido”, e acrescenta, quanto ao substantivo *medes- ou *modo, que esses servem para designar “a medida comprovada que restabelece a or-dem numa situação conturbada”4. Embora não examine as aplicações dos termos gregos ligados a essa raiz no âmbito da coleção hipocrática, é inte-ressante observar que as conclusões de E. Benveniste aplicam-se bem à descrição do tipo de atividade realizada pelo médico e do caráter, sempre particular e circunstancial, de sua aplicação: “Essa ‘medida’ é considerada sempre aplicável numa determinada circunstância, para resolver um pro-blema particular”5. Neste âmbito, é pois a capacidade de um juízo acerca do particular, do singular, que se mostra a mais eficaz.

Assim considerada, a noção de medida parece coerente com os pro-pósitos de uma tekhnê iatrikê que, recusando-se a se apoiar em hupothe-seis, precisamente por reconhecer o caráter singular de seu objeto, adverti-rá o médico a se valer dos sentidos e do raciocínio no exercício de sua atividade. Arte, portanto, não ciência, o saber próprio ao exercício da arte médica no âmbito da tradição hipocrática, presente nestes tratados, leva em conta o quanto a natureza humana é refratária a reduções. Como bem notou Aristóteles nas primeiras páginas da Metafísica, a medicina cura o homem particular, não o universal6.

4 E. BEnvEniStE, O vocabulário das instituições indo-europeias, trad. D. Bottmann, Campi-nas, Ed. Unicamp, 1995; v. II: Poder, direito, religião, 125-134: “*Med- e a noção de medida”.

5 Ibid., 131.6 ariStótELES, Metafísica, 981a8- 20.

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Mas no caso da reflexão filosófica, e particularmente da filosofia de-mocritiana, como são considerados o homem e seus modos de vida?

A disposição que se depreende da leitura dos fragmentos e testemu-nhos de Demócrito no que concerne à saúde da alma não destoa daquela da arte médica com relação às condições favoráveis à saúde do corpo. A saúde da alma pode ser dita, em Demócrito, felicidade (eudaimonia), en-quanto sua doença é nomeada por seu oposto, infelicidade (kakodaimonia) (68 B 170). Tal felicidade, em Demócrito, recebe diversas designações: “A felicidade (eudaimonia), o bom ânimo (euthumia), o bem-estar (euestô) e a harmonia, ele as nomeia justa proporção (summetria) e ausência de pertur-bação (ataraxia)” (68 A 167 DK). Cada um desses termos exprime um as-pecto desse estado de summetria da alma e, logo, do que seria para o filóso-fo a saúde da alma: um estado equilibrado do thumos, do ânimo: euthumia.

As afecções são, por sua vez, e antes de qualquer coisa, o resultado de um estado de desequilíbrio da alma, e é no próprio homem que deve ser buscado o remédio para se restabelecer sua saúde. É o que testemunha Plutarco a propósito de Demócrito:

Digamos, pois, para nós mesmos: oh, homem, teu corpo produz bem diversas doenças e diversas afecções por sua própria natureza, mas se tu abrires teu interior, aí encontrarás um amálgama e uma conserva, como diz Demócrito, de muitos bens diversos e diferen-tes males, os quais não vieram parar aí do exterior, mas têm aí suas próprias fontes originárias brotando da mesma terra, que o vício, que é abundante e rico em paixões, leva adiante7.

Mas quais seriam as causas das doenças do corpo? Algo em seu inte-rior deve, pois, explicar sua origem. Algo que certamente desempenha, no complexo psíquico-físico que é o homem, um papel predominante. Outro testemunho de Plutarco nos aponta o caminho para compreendê-lo. Se-gundo ele, se é o corpo que se encontra doente, será, contudo, na alma que precisaremos buscar a causa dos males que ele sofre. Se assim é, o desequilíbrio da alma não causa apenas a doença da alma, mas também a do corpo. E não é por outra razão que Demócrito recomenda um maior cuidado com a alma do que com o envelope corporal (skênos), pois “a per-feição da alma (psukhês teleotês)” — perfeição decorrente de seu estado

7 PLutarCo, Que paixões são as piores, as da alma ou do corpo, 2, 500 D = 68 B 149 DK.

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bem ordenado e equilibrado — “corrige a fraqueza do envelope corporal (skêneos mokhthêriên orthoi), enquanto a força do envelope corporal priva-do de inteligência (skêneos iskhus aneu logismou) não torna em nada me-lhor a alma (psukhên ouden ti ameinô tithêsin)” (68 B 187 DK).

Compreendem-se, assim, as razões do veredicto democritiano. Em lugar de buscar fora de si as causas para os seus males, e os remédios para curá-los, o homem deveria voltar-se para si mesmo e, pelo conheci-mento de si, estabelecer as bases para uma boa gestão da vida. Entretan-to, considera Demócrito a ignorância da maioria dos homens nesse terre-no: “Os homens pedem aos deuses a saúde em suas orações; mas eles não sabem que possuem neles mesmos o poder de obtê-la. Mas eles fa-zem o contrário por falta de temperança e entregam eles próprios, por traição, sua saúde às afecções” (68 B 234 DK). Como numa certa tradição da medicina hipocrática em que a natureza humana dispõe em si mesma dos meios necessários para restabelecer o equilíbrio comprometido. No tratado das Epidemias se lê: “As naturezas são os médicos dos doentes. A natureza encontra por si mesma as vias e os meios, não por inteligência […]; a nature-za, sem instrução e sem saber, faz o que convém” (Epidemias VI, 5, 1).

O equilíbrio humano, no que tange tanto à alma como ao corpo, e também no que se refere ao conjunto corpo–alma, é dinâmico, e precisa ser objeto de um cuidado permanente, que se traduz, tanto numa tradição como na outra, no conhecimento do que é o homem, nesse exercício que lhe permite, conhecendo-se e experimentando-se, reconhecer suas possi-bilidades e seus limites, evitando tudo aquilo que ultrapassa suas forças e sua natureza. Aqui nos encontramos diante de uma imperativa etiologia, para a qual as causas são variadas e exigem daquele que as investiga uma sensibilidade para ir além do já estabelecido. A mesma obsessão que en-contramos em Demócrito pela descoberta de uma causa pode ser encon-trada na coleção hipocrática:

Assim, eu acredito firmemente, escreve Hipócrates, que todo médico deve estudar a natureza humana e buscar cuidadosamente, se ele quer cumprir bem suas obrigações, quais são as relações do homem com seus alimentos, com suas bebidas, com todo seu gênero de vida, e quais influências cada coisa exerce sobre cada um (MA XX, 621-623).

Quanto à origem e à natureza do homem, encontramo-nos mais uma vez no terreno das convergências. Uma passagem de Da medicina

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antiga lembra em muito o relato antropogônico democritiano que nos foi transmitido, ao mesmo tempo, por três fontes distintas: Diodoro de Sicília, em sua Biblioteca histórica, Hermipo, em sua Astronomia, e Tzetzes, em um escólio a Hesíodo. Consideradas as diferenças entre essas três versões, encontramos em ambas uma ideia comum: a de que o desenvolvimento da comunidade humana e da linguagem, assim como a invenção e o desenvolvimento de técnicas, foi lento e teve por escola a necessidade. Além da referência comum à “escola da necessi-dade”, na qual, segundo Demócrito, os homens teriam se instruído, te-mos o desenvolvimento da linguagem, o reconhecimento dos alimentos, a transformação dos homens e a invenção de instrumentos, que lhes permitiram usufruir dela sem os riscos que dela poderiam lhes advir. Da leitura dessas passagens conclui-se também a diferença entre os homens e os outros animais, sendo os primeiros mais despreparados para fazer face às necessidades e às vicissitudes da vida: os animais, Hipócrates escreve, alimentam-se de “simples produtos da terra, frutos, ervas e feno”, “vivem sem ser incomodados”, pois conhecem, e têm a seu dispor tudo de que necessitam para sua nutrição e seu crescimen-to; quanto aos homens, eles precisaram tudo descobrir, a duras penas, submetendo-se por vezes a experiências malsucedidas, quando não se expondo ao risco de morte — sobre o que concordam os dois relatos. A fragilidade humana se revela em seu lento processo de adaptação, de aprendizado, de descoberta: “o animal que experimenta uma necessida-de, dizia Demócrito, sabe <exatamente> de que ele necessita, o ho-mem que experimenta uma necessidade não o sabe” (68 B 198 DK).

Outro aspecto diz respeito à singularidade dos indivíduos e, logo, da medida. A medicina hipocrática sustenta que o homem é algo de variegado, que sua natureza difere de homem para homem e que, em-bora sejam todos constituídos dos mesmos elementos, eles diferem quanto à variedade de combinações e proporções possíveis. Isso o leva ao reconhecimento de que, na investigação acerca de uma doença e em sua terapia, os homens não são todos iguais. Ou seja, uma atenção re-dobrada se impunha para não se esquecer de que, na busca das causas, algo podia haver, no caso de um indivíduo particular, que escapava ao quadro dos sintomas previamente estabelecido (cf. MA 581-583). Quanto a Demócrito, ele diz que o “homem é um microcosmo” (68 B 34 DK), o que implica reconhecer o que há de universal e de particular

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na natureza humana, perceber os elementos que identificam os homens tanto quanto aqueles que os diferenciam, pois “o bem e o verdadeiro são idênticos para todos os homens, mas o agradável varia de homem para homem” (68 B 69 DK); ou, nas palavras de Hipócrates, alguns “ali-mentos e bebidas são nocivos ao corpo humano, mas não o afetam da mesma maneira” (MA XX, 623).

Chegamos, enfim, ao ponto que, nos parece, melhor traduz a conver-gência das duas perspectivas e se refere tanto à saúde do corpo como à saúde da alma. Trata-se da condenação de todo excesso, de toda deficiên-cia, de todo desequilíbrio — causas da doença do corpo e da alma —, e da recomendação, como condição para a saúde do corpo e da alma, da medi-da e justa proporção. As noções de justa proporção e de momento oportu-no são fundamentais tanto no pensamento de Demócrito como na coleção hipocrática.

No Da medicina antiga a atividade médica é associada à superação dos estados de excesso ou de deficiência, de desequilíbrio ou intempe-rança. A arte médica se desenvolveu em duas frentes: numa “para eli-minar o que, por causa de qualidades destemperadas e agrestes, estava acima das forças da economia humana em saúde”; na outra “tudo o que estava além das forças da constituição por causa do estado acidental em que se encontrava” (MA VII, 585). O lugar central reservado à dieta se relaciona com esta busca do equilíbrio, particular a cada indivíduo, entre o excesso e a deficiência: “cometeríamos”, diz o tratado, “uma falta igual, uma falta não menos maléfica ao homem se lhe déssemos um alimento insuficiente ou para além de suas necessidades” (MA IX, 589). E de modo lapidar, numa sentença que nos remete a Demócrito, afirma: “Que uma abstinência intempestiva não causa menores sofri-mentos que uma intempestiva plenitude é o que ensinará uma aproxi-mação com o estado de saúde […]” (MA X, 591). O que explicita com um exemplo concreto: “Existem pessoas que se sentem bem fazendo apenas uma refeição; e, porque se sentem bem assim, elas se impuse-ram isso como regra. Outras fazem, a mais, uma refeição matinal, pela mesma razão, a saber, porque sua saúde o exige […]” (MA X, 591).

Na mesma direção encaminha-se a reflexão de Demócrito acerca das condições que asseguram ao homem a saúde do corpo e da alma. Predomina em cada caso a singularidade de cada homem, perante a universalidade do princípio que lhe assegura a plena realização de sua

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natureza: “Em toda coisa o equilíbrio é honesto: o excesso e a deficiên-cia não o são […]” (68 b 102 DK), e ainda “é falta de razão não se aco-modar às necessidades da vida” (68 B 289 DK). Com outras palavras, diz o Da medicina antiga, “toda sorte de males é engendrada pela vacui-dade, diferentes, é verdade, daqueles que engendra a plenitude, mas não menos funestos” (MA IX, 589).

Um grande número de fragmentos atesta, em Demócrito, sua conde-nação ao excesso e à deficiência, caracterizando-os a cada vez como indí-cios de um homem ainda não plenamente homem: “o desejo sem medida é próprio da criança, não do homem” (68 B 70 DK); “desejar violentamente alguma coisa torna a alma cega para o resto” (68 B 72 DK). O mesmo ocorre com os prazeres e toda outra coisa, que quando inoportunos “geram aversão” (68 b 71 DK) ou fazem que “as coisas mais deliciosas cessem completamente de ser deliciosas” (68 B 233 DK). É o que podemos verifi-car no fragmento que se segue:

Todos os que tiram seus prazeres do estômago e que ultrapassam o limite da oportunidade em alimentação, em bebida e em amor não conhecem senão prazeres fugitivos e temporários, limitados ao instan-te em que comem e bebem, mas acompanhados de numerosas penas. Pois o desejo se apresenta, sem cessar, pelas mesmas coisas e, quando se obtém o que se deseja, o prazer logo se dissipa, e aqueles que dele usufruíram não tiram dele senão um breve instante de contentamen-to; depois do que a necessidade dos mesmos objetos se faz sentir no-vamente (68 B 235 DK).

Trata-se, pois, de um cálculo temporal, que tem em vista assegurar ao homem um equilíbrio tanto em sua dimensão física como na psíquica, proporcionando-lhe o estado preconizado como o melhor: a euthumia ou bom ânimo. Pois, segundo Demócrito, esse estado que exprime no homem a saúde do corpo e da alma nasce “da moderação do prazer e da medida na vida”, enquanto “as faltas e os excessos” degeneram a vida e produzem grandes agitações na alma, roubando dos homens o estado de equilíbrio, de bem-estar, de harmonia, ou seja, o bom ânimo (68 B 191 DK).

Daí sucede a apologia da medida, da justa medida ou proporção — aspecto espacial — e do momento oportuno, kairos, aspecto temporal, pois “é próprio ao homem de valor reconhecer <o momento oportuno>” (68 B 229 DK). Atento à medida e ao momento oportuno, os homens, com a

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ajuda do intelecto que calcula, da phronesis, são capazes de realizar o bom cálculo, de falar bem e de fazer o que é preciso (68 B 2 DK), concorrendo assim para a saúde da alma. Em todos os âmbitos da vida, sem exceção, a medida proporciona aos homens o suficiente e, como diz Demócrito, “se a sorte pode oferecer uma mesa abundante, a temperança oferece, ela, uma mesa suficiente” (68 B 210 DK), “multiplica os prazeres” (68 B 211 DK), proporciona um sono tranquilo (68 B 209 DK). E afirma em tom categórico: “Afortunado é aquele para o qual os bens mesurados trazem o bem-estar, in-fortunado aquele a quem numerosos bens trazem angústia” (68 B 286 DK).

Podemos agora compreender a acusação contra a alma quando lhe atribui a responsabilidade pelo que acontece ao corpo e a ela própria, pois, segundo Demócrito, não é por outra razão que ambos padecem. Afinal, o filósofo reconhece que “tudo o que o envelope corporal necessita encon-tra-se ao alcance da mão de todos, sem pena nem sofrimento: mas o que exige pena e sofrimento e torna a vida dolorosa é objeto de desejo desme-dido, não do corpo, mas de uma consciência sem limite” (68 B 223 DK).

Isto se deve ao fato de que a determinação do modo de vida adequado ao homem, ao seu bom ânimo, tem na alma, e nas atividades que lhes são próprias, seu fator determinante. Ora, se é a alma a responsável tanto pela intelecção quanto pelas sensações, é nela, pois, que podemos encontrar as causas dos males que atingem a natureza humana. Para evitá-los existe, en-tretanto, um meio: o exercício da phronesis, atividade da qual são capazes os homens quando a própria alma se encontra num estado de boa mistura (kra-sis), de simetria, como testemunha Teofrasto em seu tratado Das sensações:

No que diz respeito ao pensar (phronein), Demócrito chegou a ponto de dizer que o pensar tem lugar quando a alma conhece uma disposição simétrica com relação à mistura. Mas se a alma, de al-guma maneira, chega a uma temperatura muito quente ou muito fria, ele diz que ela muda; razão pela qual os antigos tinham razão em supor que ocorra o desvario. Assim é evidente que é da mistura corporal que ele faz depender a consciência, o que sem dúvida é para ele lógico, uma vez que considera que a alma é um corpo (68 A 135: 58 DK).

Neste ponto, o pensamento de Demócrito reencontra a medicina hi-pocrática, fazendo derivar da boa krasis da alma o pensamento, e deste a phronesis, o discernimento do qual depende não a arte médica, mas uma

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metretikê tekhnê, uma arte da medida, que permite escapar ao excesso e à deficiência instaurando o equilíbrio e o bom ânimo. A saúde do corpo en-contra-se assim implicada na saúde da alma, do mesmo modo que no Da medicina antiga Hipócrates reconhece ao raciocínio (logismos) um papel fundamental no julgamento dos sentidos (textos 4 e 5).

A arte da medida insiste ainda no caráter particular de toda medi-da, o que se encontra na base da doutrina exposta no Da medicina anti-ga. Falando do efeito dos mesmos alimentos sobre diferentes pessoas, o tratado faz prevalecer, como fiel da balança, o raciocínio capaz de esta-belecer o cálculo oportuno, de discernir acerca do que é o melhor para cada um e em cada momento:

O queijo não faz mal a todo mundo; há pessoas que podem se alimen-tar dele sem o menor inconveniente, e ele até mesmo fortifica àqueles aos quais convém; mas há, ao contrário, os que apenas o digerem com muita dificuldade. As constituições de uns e outros diferem, pois, e elas diferem nisso: a saber, que o humor que, no corpo, não é compa-tível com o queijo foi despertado e colocado em movimento por essa substância. As naturezas em que semelhante humor é superabundan-te e predominante devem naturalmente sofrer mais com este alimen-to; mas se ele fosse maléfico para a constituição humana em geral […] faria mal a todos os homens (MA XX, 623-625).

À guisa de conclusão, parece-nos possível sustentar que a preo-cupação que encontramos em ambas as tradições inscrevem-se, cada uma a seu modo, no âmbito do que chamavam os antigos de diaita, e que tanto o exercício do logismos do qual fala o autor do tratado Da me-dicina antiga como o da phronesis, que segundo Demócrito é origem, para o homem, do bem calcular (eulogizesthai), do bem falar (eulogein) e do bem agir (eupratein), tem como finalidade o estabelecimento de uma medida para vida e de um juízo acerca do momento oportuno. Ob-servadas, pois, as diferenças e peculiariadades que caracterizam a arte médica e a reflexão ética levada a termo pelos filósofos é que nos pare-ce possível reuni-las sob o signo da dietética. A reflexão democritiana acerca da terapia da alma faz coro à da medicina hipocrática principal-mente no que concerne aos seguintes pontos:

1) A concepção de saúde e de doença, tanto do corpo como da alma, consiste num estado de equilíbrio ou desequilíbrio dos elementos constitutivos da natureza humana.

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2) Para ambas, a busca das causas mostra-se fundamental para uma boa compreensão e intervenção no horizonte da saúde e da doença.

3) A evolução do homem e dos instrumentos e meios de que dispõe para sua nutrição e seu crescimento deu-se mediante um processo lento e gradual sob a ação da necessidade.

4) A identificação dos excessos e deficiências como causas do dese-quilíbrio que engendra a doença.

5) A recomendação da medida, que deve ser estabelecida por e para cada indivíduo, mediante um raciocínio e um juízo corretos.

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As afecções do corpo e da alma: a analogia gorgiana entre

pharmakon e logos1

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Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho2

Meu objetivo neste artigo é tratar de alguns aspectos das afecções do corpo e da alma a partir da analogia entre pharmakon e logos no Elogio a Helena, tentando mostrar que, embora esta analogia tenha se tornando re-corrente em alguns autores do período clássico grego, o modo como Gór-gias se utilizou dela foi particularmente interessante, não apenas porque ele propôs ideias instigantes, ainda hoje presentes no âmbito da filosofia da linguagem e da psicologia, mas porque articulou, de modo inovador, conceitos do campo das narrativas literárias e de práticas médicas na es-trutura argumentativa da famosa (e ainda mal compreendida) obra, em que, entre outras coisas, defendeu Helena de Troia das acusações que lhe eram feitas.

Podemos traduzir o primeiro termo da analogia, pharmakon, por dro-ga, lembrando, porém, que esta pode ter um efeito tanto benéfico como

1 Uma versão simplificada deste texto foi apresentada no simpósio Saúde do Homem, Saúde da Cidade na Antiguidade Greco-Romana e publicada em CD-ROM nos anais do simpósio, com o título O phármakon gorgiano e outros discursos helênicos. Algumas das questões destes dois textos foram discutidas em minha dissertação de mestrado Górgias: verdade e construção discursiva, defendida em 1997.

2 Mestre em Filosofia e doutora em Letras Clássicas pela USP.

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maléfico3. Quanto ao segundo, logos, as possibilidades de tradução, aqui, foram três: palavra, discurso ou proporção4. No entanto, para compreen-dermos melhor esta analogia devemos prestar atenção ao modo como esses dois termos são relacionados a outros como corpo, alma, doença, técnica, encantamento, magia e feitiço (sôma, psukhê, nosema, tekhnê, epoidês, ma-geia, goeteia), a fim de entender em que medida Górgias é, por um lado, herdeiro de uma tradição que entendia a palavra poética na sua função mágica em um processo de cura de males que afetam o corpo e a alma; por outro, um autor que propõe, digamos, um programa que visa tornar racio-nal o poder encantatório da palavra, para cujo limite ele aponta, mas cujo efeito ele exalta. Pretendo ainda indicar algumas consequências do modo como Górgias utilizou esta analogia. Uma hipótese frutífera é a de que, ao manipular uma tradição da palavra mágica por meio da exploração de “téc-nicas discursivas” e propor uma prosa poética persuasiva, Górgias provo-cou uma resposta incisiva de Platão, pois a palavra persuasiva, em seu mau uso político (porque manipulada por retores e não por filósofos), produzi-ria males tanto para alma como para a cidade, podendo deixá-las incura-velmente inflamadas (hupoulon, Górgias 480b, 518e).

Comecemos pelo texto de Górgias. Tratando-se do Elogio a Helena (doravante Elogio) é muito frequente a afirmação de que ele é, na verdade, um elogio ao logos. Geralmente isso ocorre, também, pelo fato de que um terço do encômio está explicitamente dedicado ao poder do logos (a ques-tão ocupa sete dos 21 parágrafos do texto). Como podemos notar, as partes mais longas do Elogio são aquelas que tratam do discurso e do amor como possíveis causas da ação de Helena. Como o autor afirma, já no início, de-fender a bela espartana da responsabilidade pelas consequências de seus

3 J. SCarBorouGh, The Pharmacology of Sacred Plants, Herbs, and Roots, in C. faraonE, d. oBBiCk (ed.), Magika Hiera: Ancient Greek Magic and Religion, Oxford, Oxford Uni-versity Press, 138-174. Seguindo a informação de SCarBorouGh: “the pharmakon was a plant-based drug, fundamentally ambiguous in its nature. Hence in Homeric poetry no less than eight adjectives ranging from most harmful (i.e. pharmakon as ‘poison’) to very beneficial (i.e. pharmakon as ‘remedy’) are used to characterize pharmaka” 139). Se nos lembrarmos da tragédia grega, o pharmakon pode produzir tanto um mal (Medeia, 385, 789, 806, 1126, 1201; Íon, 845, Traquínias, 684) como um bem (Medeia, 718; Prometeu, 249; Hipólito, 516).

4 Sobre o uso do termo, ver M. C. M. N. CoELho, Górgias: Elogio de Helena e Tratado do não-ser, Cadernos de Tradução, São Paulo, Departamento de Filosofia/USP, n. 4 (1999) (trad. do grego com introd. e notas). Para a tradução integral do texto, M. C. M. N. CoE-Lho, Retores e sofistas gregos: o uso do termo logos em alguns autores dos séculos V e IV a.C., Ideias, Unicamp, n. 11(2) (2004) 213-232.

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atos não será tarefa fácil, já que ela é a mulher cuja “fama do nome se tor-nou memento de males (te tou onomatos phêmê, ho tôn sumphorôn mnêmê gegonen […])” (4)5. Contra o discurso daqueles que a condenam, Górgias construirá um discurso-antídoto, não apenas para inocentar Helena, mas para mostrar seu próprio poder.

Este poder é explicitado em uma das passagens mais comentadas da pequena e polêmica obra, a saber, aquela em que se afirma que “o discurso é um grande soberano, que com o menor e o mais invisível corpo executa os mais divinos feitos (logos dunastes megas estin, hôs smikrotatoi sômati kai aphanestatoi theiotata erga apotelei)” (8). Esta famosa afirmação é sempre citada no contexto da história da retórica, em geral corroborando a leitura platônica, apresentada no diálogo Górgias, de que o único objetivo da ativi-dade do famoso siciliano era produzir a persuasão e usufruir do poder que esta confere6. Tanto quanto eu saiba, os comentadores se concentraram na primeira frase, sem dar importância à segunda, na qual está, a meu ver, um termo-chave para a interpretação do Elogio: “sôma”7. Em função de tratar da analogia entre droga e discurso e suas atuações sobre corpo e alma, in-vestigar as ocorrências deste termo parece-me particularmente importan-te. Assim, tendo como fio condutor a palavra sôma, tratarei da argumenta-ção desenvolvida por Górgias em seu elogio e sua defesa de Helena e, também, do próprio logos.

É oportuno notar que no início do Elogio Górgias dispõe as palavras de tal modo que elas parecem ter vida própria; destaca-se na primeira frase

5 Todas as traduções, aqui, são de minha autoria. Para o texto integral, M. C. M. N. CoE-Lho, Górgias: Elogio de Helena e Tratado do não-ser.

6 Observemos que no final do Górgias, após falar, novamente, da cidade inflamada (hu-poulos, 518e), Sócrates aproxima o político, o sofista e o retor (518e-520b). Que as in-tenções e atividades do sofista sejam censuráveis, o diálogo Sofista deixa bem claro (especialmente 222a-232b).

7 Há uma interpretação de que a palavra corpo se refere, aqui, à língua (cf. M. untErStEi-nEr, Sofisti…: testimonianze e frammenti, Gorgia, Licofrone e Prodio, Firenze, La Nuova Italia, 1949, p. 98), o que é possível, mas ela nos parece inadequada, principalmente se observamos as outras ocasiões nas quais o termo é utilizado. Um primeiro exame da ocorrência do termo no Elogio foi feito oralmente na comunicação O uso da palavra sôma no Elogio de Górgias, no II Simpósio Interdisciplinar de Estudos Gregos, PUC–SP, em 1995, depois publicada no capítulo II de minha dissertação de mestrado, em feverei-ro de 1997. Em abril do mesmo ano, aparecia o artigo de Worman no qual são analisa-das, de uma perspectiva das “tecnologias de gênero” (seguindo Teresa de Lauretis), as representações do corpo de Helena em quatro textos: Ilíada, Frg. 16 L-P de Safo, Elogio a Helena e Troianas); no entanto, no caso de Górgias, a autora não faz em seu artigo uma análise exaustiva do termo sôma.

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do discurso a inexistência de verbo conectando os pares aos quais ele asso-cia a ordem (kosmos): cidade, corpo, alma, ato e palavra, de um lado; he-roísmo, beleza, sabedoria, excelência e verdade, de outro, respectivamen-te. A primeira vez em que a palavra sôma aparece (1) está associada à beleza. Poderíamos perguntar qual a relação entre ela, o logos e a alma, já que Górgias associa ao corpo a beleza (kallos), ao discurso a verdade (alêtheia), e à alma a sabedoria (sophia). A resposta parece começar a se esboçar a seguir, quando é estabelecida a semelhança entre o discurso (logos), que, por meio do corpo, executa obras divinas, ainda que este seja muito pequeno e invisível, e Helena, que, de beleza igual à divina (isotheon kallos, 4), teve o poder de conduzir tantos guerreiros com um só corpo. No-tamos assim que as distinções implícitas no primeiro parágrafo vão desa-parecendo ao longo do Elogio: os logoi seduzem por meio de um pequenís-simo corpo (8), pintores agradam e provocam desejos por meio dos corpos que produzem (18), o corpo de Helena conduziu/seduziu muitos corpos da mesma forma que ela, também, foi seduzida pelo corpo de Alexandre (19), e qualquer pessoa, ao saber dos êxitos e reveses que ela sofreu, estará su-jeita a sofrer uma “aflição particular” ao ouvir estas histórias (9) ou ao ver cenas terríveis como a apresentação de um corpo militar (16). Tendo em mente, agora, quão importante e polissêmico é o termo “corpo” no Elogio, examinemos a analogia entre logos e pharmakon, estabelecida por Górgias no parágrafo catorze: “A mesma proporção tem o poder do discurso peran-te a ordenação da alma e a ordenação das drogas perante a natureza dos corpos (ton auton de logon echei hê te tou logou dunamis pros tên tês psukhês taxin hê te tôn pharmakon taxis pros tên tôn somatôn phusin)”.

Observemos que, embora em um primeiro momento a analogia sepa-re discurso e corpo — já que a proporção (logon) é a seguinte: o discurso está para a alma assim como a droga está para o corpo —, ao final deste mesmo parágrafo Górgias afirmará que “os discursos, por meio de uma persuasão má, drogam e enfeitiçam a alma” (psukhên epharmakeusan kai exegoêteusan). Podemos, a princípio, pensar que o sentido, aqui, é mais metafórico, mas a leitura do parágrafo 16 (que está no âmbito da discussão sobre o amor como causa da partida de Helena) nos faz pensar, também, numa realidade quase que física dos processos discursivos que atuam so-bre a psukhê. Tanto os parágrafos 16 e 18 como o 19 tratam dos impactos, negativo e positivo — no sentido de aterrorizar e agradar a alma —, causados

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pelos objetos externos que afetam nossa visão, embora a visão e a audição estejam no mesmo grupo de fenômenos que não são físicos.

[…] no momento em que corpos inimigos armam sobre inimigos a ordem inimiga, de bronze e de ferro […] se a vista contempla, ela se agita e agita a alma (hotan polemia sômata [kai] polemion epi polemiois hoplisêi kosmon khalkou kai sidêrou…ei theasetai hê opsis, etarakhthê kai etaraxe tên psukhên) (16).

Mas os pintores, quando a partir de muitos corpos e cores produzem um corpo e uma figura com perfeição, agradam à vista. Muitas coisas em muitos produzem amor e desejo de muitas coisas e corpos (alla mên hoi grapheis hotan ek pollôn khrômatôn kai sômatôn hên sôma kai skhêma teleiôs apergasôntai, terpousi tên opsin. […] polla de pollois pol-lôn erôta kai pothon energazetai pragmatôn kai sômatôn) (18).

Se, então, pelo corpo de Alexandre, o olhar de Helena, tendo sentido prazer, desejo e combate de amor transmitiu à alma, o que há de admirá-vel? (ei oun tôi tou Alexandrou sômati to tês Helenês omma hesthen prothu-mian kai hamillan erôtos têi psukhêi paredôke, ti thaumaston) (19).

Em tais parágrafos constata-se que a arte da palavra e a da escultura são abarcadas pela mesma teoria da percepção, não só porque elas são fru-to da poiesis (conforme vemos nos parágrafos 9 e 18), mas também porque a persuasão (peithô) modela a alma (psukhên etuposato, 13), da mesma forma que os objetos físicos captados pela visão também o fazem (psukhê kan tois tropoisi tupoutai, 15). Essas afirmações são, aliás, compatíveis com a terceira parte do Tratado do não-ser8. Embora captados por órgãos dife-rentes, os objetos da visão e da audição têm o mesmo impacto sobre a alma, e o fato de se afirmar que a alma recebe essas impressões não confli-ta com a existência de critérios particulares para a percepção de cada uma delas — a alma poderia ser pensada como abrigando essas diferentes percepções.

8 Suponho aqui a coerência da obra gorgiana, que defendo de maneira detalhada em M. C. M. N. CoELho, Górgias: verdade e construção discursiva, dissertação (Mestrado), São Paulo, USP–FFLCH, 1997. Mais recentemente, vários autores têm também defendi-do esta coerência, com destaque, entre outros, para: E. SChiaPPa, The Beginnings of Rhetorical Theory in Classical Greece, North Haven, Yale, 1999; S. ConSiGny, Gorgias: Sophist and Artist, South Carolina, University of South Carolina Press, 2001; B. MCComiS-kEy, Gorgias and the New Sophistic Rhetoric, Carbondale, Southern Illinois University Press, 2002; B. CaSSin, L’ effect sophistique, Paris, Vrin, 1995.

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Se voltarmos ao parágrafo 9, veremos que ali já era indicada a eficácia física das palavras, pois elas são instrumentos (note-se, aliás, o uso do dati-vo, assim como no parágrafo 8) por meio dos quais a alma é afetada (epa-then) por sofrimentos alheios: “com os êxitos e reveses das ações e dos corpos dos outros, a alma sofre um sofrimento próprio, por meio das pala-vras (ep’ allotrion te pragmaton kai sômaton eutukhiais kai duspragiais idion ti pathêma dia tôn logon epathen hê psukhê)”.

É difícil lermos esse parágrafo e não pensarmos numa alusão aos es-petáculos teatrais, principalmente se lembrarmos que anteriormente (8) Górgias havia se referido aos sentimentos que o discurso produz, mais pre-cisamente à sua capacidade de cessar o medo phobos, afastar a tristeza, lupen, inspirar alegria, kharan, e aumentar a compaixão, eleos. O fato de medo e compaixão serem, posteriormente, utilizados por Aristóteles9 na própria definição de drama trágico (Poética 49b24 ss.) indica o escopo da discussão de Górgias sobre o poder da palavra (lembremos que o teatro grego é principalmente apoiado na palavra). Seria interessante ampliar esta conexão entre a Poética e o Elogio, mas neste momento o que mais nos in-teressa é ver o poder que o discurso tem de provocar sentimentos ligados a sensações físicas como choro (eleos poludrakrus), tremor (phrike peripho-bos) e dor (pothos philopenthês), o que nos é indicado, também, pelo uso do verbo (paskhô)10, que aparece já no parágrafo 7 para se referir ao sofri-mento de Helena causado pela violência do rapto do qual ela teria sido ví-tima (hê de epathe, 7), caso o motivo de sua ida para Troia tenha sido a coerção à força. Assim, vemos que as afecções produzidas por uma ação física e aquela produzida pela palavra estão bastante próximas (dia ton lo-gon epathen, 9). Desta afirmação, Górgias salta, no parágrafo 10, para ou-tra mais delicada e complexa: a que relaciona os cantos inspirados pelos deuses (entheoi), com sua força encantatória (hê dunamis tês epoidês), ao enfeitiçamento (goeteia) e à magia (mageia) e, mais paradoxalmente ainda, define estas práticas como duas técnicas (tekhnai). O que sejam exata-mente estas técnicas é discutível. Untersteiner diz serem metáforas para

9 ariStotE. Rhétorique, texto e trad. M. Dufour, A. Wartelle, Paris, Belles Lettres, 1932, t. I-II, 1973, t. III.

10 C. P. SEGaL, Gorgias and the Psychology of the Logos, Harvard Studies in Classical Philo-logy, 66 (1962) 104; neste artigo seminal para os estudos sobre Górgias, na tentativa de mostrar que o Elogio contém uma teoria estética com base psicológica, Segal chama a atenção para o sentido e a função desse verbo ao longo do texto.

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designar a poesia e a prosa11, mas o termo aqui parece remeter a algo mais complexo. Muito interessante, neste contexto, é chamar a atenção para o fato de que, segundo Fritz Graf12, Górgias foi o primeiro a reunir goeteia, termo ligado a rituais de cura, de lamentação e de adivinhação, e mesmo à intenção de persuadir os deuses (como aparece nas Leis 909 b), e mageia (palavra de origem persa, ligada também ao vocabulário religioso). Retor-naremos a esta questão mais adiante. Vejamos ainda, no Elogio, a relação entre amor e doença, ambas, podemos dizer, afecções do corpo e da alma.

Colocar no mesmo patamar o corpo de Alexandre (19) e suas palavras como o instrumento de persuasão de Helena13 (cujo corpo também atraiu Alexandre) sugere, a meu ver, que o poder do logos é tão real quanto a pre-sença física de um exército14, de uma escultura ou de uma droga. Que o desejo e o amor operam ao longo de todo o discurso, em vários níveis, é o que constatamos pela recorrência de termos como epithumia (4), éros (4, 5, 6, 15, 18, 19), prothumia (6,19), pothos (9, 18) e hamillas (13, 18). To-dos eles são termos utilizados para se falar do amor de Helena por Alexan-dre (19) e dos homens por ela (5), do amor dos guerreiros pela honra e pela vitória (4), dos desejos da divindade (6) e de Helena (19), ou ainda para indicar tanto os combates discursivos dos filósofos (13) como o com-bate de amor na alma de Helena (19)15.

No parágrafo 19, encontramos a afirmação de que o amor, não sendo um deus, é uma doença humana (anthrôpinon nosema, 19). Tal possibili-

11 M. untErStEinEr, Sofisti…, 101.12 F. Graf, Excluding the charming: the development of the Greek concept of Magic, in

M. mEyEr, P. mirECki, Ancient Magic and Ritual Power, Leiden, Brill, 1995, 29-42.13 Lembremos a semelhança entre esta e as passagens das Troianas sobre a rara beleza de

Páris (987-989) e sobre o alerta de Hécuba para que Menelau fugisse de Helena, “pois ela cativa a visão dos homens com o desejo” (891-892).

14 É oportuno lembrarmos uma passagem da Anábasis (I, 1, 12-19) de XEnofontE, na qual ele descreve o impacto, ao apresentar-se com todo o seu bronze e a sua luminosidade, que o exército de Ciro causou na rainha Epiaxa e em outros bárbaros, que, ao ouvir os soldados empunharem suas armas e gritarem, fugiram aturdidos, ainda que aquilo fosse apenas uma exibição a pedido da própria rainha.

15 Encontramos uma interpretação semelhante em G. CaSErtano, L’amour entre lógos et páthos. Quelques considerátions sur l’Hélène de Górgias, in B. CaSSin (ed.), Positions de la sophistique, Actes du Colloque de Cerisy, Paris, Vrin, 1986, 211-220 (embora seja feita num outro contexto, a saber, o do amor como chave para entender o comportamento humano): “Le discours de Gorgias est, justement, une invitation à apprécier avec réalis-me ce mélange et cette complication de l’œil et de la parole chez l’homme. […] La beauté, le désir, l’amour sont autant des forces objectives, réelles, dans le jeu desquel-les — par le truchement de l’œil et de la parole — l’homme ne peut pas ne pas être im-pliqué” (p. 61).

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dade aproxima, novamente, processos como a visão de corpos ou a audição de palavras atraentes e seu impacto sobre o corpo, na forma de uma doen-ça, que mesmo sendo da alma afeta o equilíbrio do corpo, como, aliás, já havia sido afirmado no parágrafo 17, quando se fala dos sofrimentos (po-nois), doenças (nosois) e loucuras (maniais) provocados pela visão de acon-tecimentos terríveis.

A discussão sobre o amor e sua caracterização como doença ou senti-mento fruto da intervenção divina não é uma novidade afirmada por Gór-gias. Pelo menos Eurípides já havia apresentado a questão de maneira muito próxima à do Elogio. Encontramo-la na tragédia Hipólito, encenada em 428 a.C., e que por ter tido versos parodiados por Aristófanes nos anos de 411 (Tesmoforias, v. 275) e 405 (As rãs, v. 101 e 1471) parece ter ficado na memória de muitos espectadores, ou seja, podemos supor que, além de ter ganhado o prêmio daquele ano, este drama teve impacto sobre o públi-co ateniense16.

Se lembrarmos do enredo da peça, notaremos que após Fedra infor-mar à sua ama (e a nós, espectadores) que tentou esconder sua enfermi-dade — a paixão por Hipólito —, não a revelando porque não confiava na língua, ela ouve da serviçal o comentário de que não há nada de extraor-dinário ou inexplicável nisso, pois Cípris é irresistível (erâs; ti toûto thaû-ma; sún polloîs brotôn, v. 440), e de que para esses casos há encantamen-tos e palavras mágicas e que alguma droga aparecerá para tal enfermidade (nosousa d` heu pos tên noson katastrephou eisin d´epoidai kai logoi the-lkterioi, v. 477-478). Ao explicar a Fedra que ela possuía em sua casa fil-tros que curariam a enfermidade de sua rainha sem prejudicar-lhe a mente (oikous philtra moi thelkteria erôtos, êlthe d´ arti moi gnômes eso ha s´out´ep´ aiskhrois out’ epi blabe phenon pausei nosou têsd´, v. 509-512), Fedra pergunta se é um unguento ou uma poção (potera de khriston poton to pharmakon, v. 516).

Embora tenhamos aqui, além desta concepção do amor como doen-ça, a descrição de comportamentos que pareciam ser comuns às mulheres

16 Segundo Aristóteles (Rh. 1416a28-34), Eurípides foi processado por Higino por impieda-de, com base no famoso verso 612 de Hipólito, no qual este diz ter jurado com a língua, mas não com o coração. O motivo de a frase ser tão familiar e de ter ficado tanto tempo na memória dos atenienses para ser objeto de riso tantos anos depois é notável. Quan-to às datas, lembremos que um ano após a estreia de Hipólito a embaixada de Górgias chegava a Atenas e certamente o tema do juramento no Hipólito ainda era discutido.

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(a lida com drogas e unguentos), é muito interessante fazer, digamos, uma digressão e analisar com mais cuidado o contexto desta cena. No texto de Eurípides, ela está inserida em uma problemática mais ampla, que é a capacidade de discernir o que é correto (no mundo moral) e de agir con-forme esse discernimento, bem como o fato de Eurípides relacionar tal problema ético ao debate sobre o próprio estatuto da linguagem17. Até que ponto podemos confiar na linguagem como meio de informação segu-ra? Vejamos que Fedra chama, indiretamente, a atenção para tal problema (v. 395), e também Teseu, de modo explícito (v. 925-931). Para esclarecer melhor este quadro, recordemos três momentos da peça: a) quando Fedra confia que sua ama irá ajudá-la guardando seu segredo (v. 520-521), o que não ocorre (v. 591-596); b) quando Hipólito faz um juramento que o leva-rá à impossibilidade de se defender das acusações do pai (v. 611-612, 656-660); e c) quando Teseu, confiando no texto da carta de Fedra e na presença de seu cadáver, recusa a alegação de inocência do filho, esclare-cida, mais tarde, por Ártemis (v. 855-1101; 1282-1312). Essas três situa-ções parecem mostrar não só as limitações do discurso humano para indi-car a verdade, mas também o poder que as palavras têm de produzir ações perniciosas, ainda que tais palavras sejam completamente discordantes dos fatos. A ama fala mais do que devia e Hipólito menos; ambos, sem nenhuma intenção má, veem-se presos às tramas de seus discursos (a si-tuação de Hipólito é, aliás, semelhante à de Palamedes, condenado, ape-sar de inocente)18.

Ao comentário de Teseu de que os homens, apesar de ensinarem to-dos os conhecimentos, não conseguem “ensinar a ser sensatos os que não têm razão” (phronein didaskein hoisin ouk enesti nous, v. 920), Hipólito res-ponde que, de fato, quem pudesse fazer isso seria um hábil sofista (deinon sophistên, v. 921). É interessante notar que o termo glôssa (v. 924) aparece

17 Quanto à mediação pela linguagem das atividades humanas, lembremos a afirmação de Aristóteles de que o uso do discurso é mais característico do homem do que o pró-prio corpo (Ret. 1355b), ao falar do modo de se defender de uma acusação pela força ou pela palavra.

18 As afirmações de Aristóteles de que os “homens têm uma capacidade natural para a verdade” (Ret. 1355a) e de que “naturalmente o que é verdadeiro e melhor é mais fácil de provar e mais provável de persuadir” vão ao encontro das situações de Palamedes e Hipólito. Da mesma forma que Hipólito, Palamedes apela para um sentido de justiça e questiona a prova material (em seu caso, um tesouro escondido, por vingança sórdida de Odisseu, em sua tenda; no caso de Hipólito, o corpo de Fedra). Sobre Palamedes, ver GórGiaS, Palamedes Apologia.

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várias vezes e de modo significativo. No discurso de Fedra, ela havia deci-dido, em primeiro lugar, calar-se e esconder seu mal, pois acreditava que não se podia “confiar na língua” (v. 395) — como sabemos, ela falhou nes-se propósito. No famoso verso (612) em que Hipólito diz que sua língua fez um juramento, mas não seu coração (phrên), notemos também que seu juramento era que o impedia de defender-se diante da acusação de Fedra.

Em resposta a Hipólito, Teseu manifesta (v. 925-931), de maneira comovente, o desejo utópico de um índice claro (tekmêrion saphês) e de um diagnóstico preciso do coração19, para saber quem é o verdadeiro ami-go. Ele clama, ainda, pela existência nos homens de duas vozes (dissas te phonas): uma justa e a outra, qualquer que fosse (hopos etunkhanen), de tal modo que a injusta pudesse sempre ser censurada ou refutada (exelen-xeto) pela justa, pois assim não seríamos enganados (epatometha). Mas isso é apenas um desejo; de fato, como podemos concluir pelo final da peça, isso não ocorre. Não temos critério para discernir o certo e o errado em termos categóricos.

Embora o coro tenha se convencido com a argumentação de Hipóli-to, Teseu não deixa sua alma ser persuadida pelas palavras que ele consi-dera as de um encantador e enfeitiçador (epoidos, goes)20, tampouco pela esperança de que o tempo revele a verdade21. Hipólito sai de cena, e no fim da peça, quando Ártemis aparece e revela a verdade a Teseu — tanto a tentativa de Fedra, por meio do juízo (gnômê, v.1304), de subjugar Cípris como seu medo de sofrer qualquer reproche (elenkhon, v.1310) por seu

19 Observemos como o termo phrên aparece três vezes em onze versos (v. 926, 935, 936) e outras muitas vezes ao longo da peça. Em geral é oposta a phrên a palavra sôma. Tradu-zi-lo por “coração” pode parecer impreciso, pois existe o termo kardia; no entanto, pa-receria muito intelectual usar o termo mente.

20 Lembremos que são os mesmos termos do Elogio a Helena (10), que Górgias usa para falar da persuasão da alma: epoidês, goeteia.

21 Outro caso interessante, semelhante à situação de Hipólito, aparece nas Troianas. A úni-ca personagem que tem conhecimento da realidade do plano divino é Cassandra — na verdade, ela não só compreende o porquê da queda de Troia, mas também sabe da destruição da casa de Agamêmnon —, mas, gorgianamente falando, ainda que ela pos-sa conhecer uma realidade além da aparente, que é só destruição e derrota, não pode transmitir tal realidade a outro; a própria divindade impediu-a de ser compreendida; ninguém lhe dá crédito. Se considerarmos a compreensão de Cassandra como a mais próxima da realidade, seremos levados a pensar que o quadro que seu discurso cria é mais real do que os próprios acontecimentos, ou seja, os fatos só têm sentido quando mediados pela linguagem, e a vitória na guerra só é gloriosa, por pior que possam pa-recer os danos causados, quando transformada em discurso convincente, que não ape-nas valoriza o passado, mas justifica as ações futuras.

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mal (noson) —, a deusa o acusa do mesmo equívoco de que Hipólito o havia acusado: não ter investigado, buscado provas, esperado algum tem-po etc. (v. 1321-23), embora seu erro (hamartia, v.1334) tenha o atenuan-te da ignorância22.

É interessante ver nesta tragédia de Eurípides como os termos deinòn sophistèn, hepatometha, epoidos e goes são aproximados na mesma esfera de atuação. Encontraremos no Banquete de Platão atributos se-melhantes para caracterizar o Amor, herdados do pai desse, Recurso (Po-ros): “terrível mago, feiticeiro e sofista” (Deinos goes, pharmakeus kai so-phistês, 203d). É ainda neste diálogo que encontramos a comparação de Sócrates a Mársias, feita por Alcibíades, por sua capacidade de levar os ouvintes a um êxtase semelhante ao provocado pela música do aulos e da sirinx do sileno, devendo-se fugir da conversa do filósofo como quem foge das sereias, tamanho seu poder de entorpecimento (Banquete 215c-d e 216b). Outra afirmação embaraçosa aparece no Mênon — a de Sócrates ser como um feiticeiro e um peixe elétrico —, seguida da adver-tência de que ele poderia ser preso, se estivesse em outra cidade, por suas atividades (dialógicas) encantatórias ([…] goeteueis me kai pharmatteis kai atechnôs katepadeis, hoste meston aporias gegonenai. […] ei gar xenos en allei polei toiauta poiois takh’ an hos goes apakhtheis, 80a-b). Se, por um lado, esta passagem mostra a condenação dessas atividades na sociedade grega, ela também associa Sócrates aos oradores e sofistas. Mas esta última asso-ciação, assim como aquela descrita acima, pode ser explicada por uma per-cepção confusa de jovens como Alcibíades e Mênon em relação à atividade de Sócrates, que apenas aparentemente se assemelharia à dos sofistas23. Voltaremos a este ataque a sofistas e magos quando analisarmos o modo como Platão se utilizou da analogia entre pharmakon e logos.

Retornando ao enredo da peça, vemos que, ao mesmo tempo em que Ártemis aparece para explicar a verdade e atender ao pedido de Hipólito, ela vem mostrar o hiato entre deuses e homens. A meu ver, embora não possa desenvolver todo o argumento aqui, quando Ártemis diz que Fedra

22 Que é a definição canônica de hamartia. Cf. Poética 1453a7-22.23 O testemunho de Aristófanes em As nuvens, ao chamar Sócrates de sofista, mostra não

apenas como o termo é ambíguo, mas como Platão terá de demarcar certos procedi-mentos para distinguir bem o sofista do filósofo. Sobre esses problemas e critérios de demarcação, ver A. nEhamaS, Eristic, Antilogic, Sophistic, Dialetic: Plato’s Demarcation of Philosophy from Sophistry, Harvard Philosophical Quarterly, 1 (1990) 3-16.

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persuadiu Teseu (peisai phrena) porque a morte destruiu a possibilidade de uma refutação pela palavra (logon elenkhous, v. 1137), isto significa alguma crença, ainda, na possibilidade de, por meio do debate entre Fedra e Hipó-lito, a verdade sobre eles ser descoberta. Com certeza isso não solucionaria todos os problemas que a peça apresenta, pois permaneceria a questão do hiato, no caso de Fedra um abismo, entre conhecimento e ação. No entan-to, a única solução, Eurípides parece indicar, por mais deficitária que seja, é confiar no lógos, mas sempre alertando para suas limitações.

Creio que é no âmbito desta mesma concepção do poder e da defi-ciência do discurso que Górgias se enquadra quando, por exemplo, no Elo-gio, afirma que é a falta de memória o que faz a maioria (hoi pleistoi, 11) se deixar enganar pelas palavras, por meio de uma persuasão má. Creio, tam-bém, poder encontrar implícito no Elogio um modo (agnóstico) de lidar com a esfera divina. Assim como em Eurípides há, ainda, a presença de divindades — mesmo que Ártemis não seja importante na esfera das deci-sões humanas (gorgianamente falando, ainda que exista, não pode ser co-nhecida por iniciativa humana), pois ela, de fato, aparece apenas como um deus ex machina, um epílogo —, também em Górgias temos a referência aos aspectos divinos e mágicos da persuasão, ainda que esta não seja mais uma divindade a inspirar o poeta, mas sim o resultado de uma técnica, apoiada no estudo da linguagem e da própria tradição poética. Acredito que esta interpretação é reforçada, no caso de Górgias, pela observação do parágrafo 13 do Elogio24. Aqui, a dunamis tês epoidês que opera por meio da doxei é substituída pela peithô dos logoi, analisados em seus diferentes contextos políticos e epistêmicos: os discursos dos meteorólogos, os dos oradores e os dos filósofos.

Além do diálogo com a tragédia Hipólito, de Eurípides, outro paralelo frutífero poderia ser feito entre o Elogio e a peça As troianas. No entanto, para o propósito deste artigo, interessa-me outra aproximação, qual seja, sugerir a presença de elementos da poesia épica homérica no Elogio a He-lena. Sobre este tema gostaria, brevemente, apenas de citar duas passa-gens da Odisseia nas quais aparece a manipulação do pharmakon — mes-mo correndo o risco de, ao descontextualizar tais cenas, desconsiderar

24 Naturalmente, a interpretação depende de uma análise de toda a obra de Górgias, que foi feita em minha dissertação de mestrado, em 1997, mas, claro, não pode ser apresen-tada aqui.

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outros sentidos que elas poderiam ter no âmbito da poesia épica25. Esque-maticamente, podemos dizer que, enquanto Circe prepara um pharmakon maléfico para os companheiros de Odisseu (Odisseia X, 317-344), Helena manipula um pharmakon trazido do Egito (quando ela passou por lá, na sua volta de Troia), cujo efeito é benéfico, ao afastar a dor (Odisseia IV, 220-234)26. No entanto, além de administrar uma droga que afasta a dor (nepenthês, IV, 221), Helena também faz um relato (muthoisin) de episó-dios em Troia, quando recebeu Odisseu, ou seja, suas palavras acompa-nham o pharmakon, podendo ser vistas, elas próprias, como um phar-makon, já que ela mesma associa os relatos ao prazer que estes proporcionam (muthoi terpesthe, v. 239). Se antes era a beleza de seu cor-po que encantava, a ponto de Príamo, na Ilíada, dizer aos anciãos que tal beleza justificava a guerra, agora na Odisseia Helena continua a encantar, mas por meio da manipulação de um pharmakon, associado ao próprio ato de proferir um relato. Observemos, aliás, sua complexa caracterização, pois, como informa Menelau, se em um primeiro momento Helena não havia delatado Odisseu quando este entrou em Troia, ela, em outro mo-mento, por três vezes rodeou o cavalo de madeira, chamando, com a voz das respectivas esposas, os melhores guerreiros gregos, ou seja, ela própria, qual pharmakon, podia ajudar ou prejudicar os gregos. Se não fosse o con-trole de Odisseu sobre os outros guerreiros, Helena, como se fosse uma sereia, teria levado, por meio de sua voz, seus conterrâneos à derrota27.

25 Agradeço ao Prof. Dr. Christian Werner por ter me alertado para este risco, observando que muitas vezes se toma Homero como uma autoridade única (cuja transparência do texto se assume) para os autores do século V. Ainda assim, creio ser pertinente fazer esta associação, considerando que Górgias pretende, como já disse antes, inocentar Helena, cuja “fama do nome” se deve à “crença dos que ouviram os poetas” (E.H., 2).

26 Como observou J. SCarBorouGh (The Pharmacology of Sacred Plants, Herbs, and Roots), em relação ao episódio de Circe, ao mesmo tempo em que há, ali, uma droga maléfica há também uma benéfica (na perspectiva de Odisseu, pelo menos): “However, the ‘ba-neful pharmaka’ (10.236) that Circe puts into their [dos companheiros de Odisseu] wine is ineffective against the ‘good pharmakon’ called moly (10.287, named at 10.305) — a plant known mainly to the gods-which Hermes gives to Odysseus to protect him from being ‘charmed’ (10.291). Although it is not clear whether Odysseus actually ingests the moly or uses it in some other way, nevertheless as a result of having it when he drinks Circe’s drugged wine, he says that he was in no way ‘charmed’ by it (10.318)”. Sobre as ocorrências do termo phármakon e sua análise no contexto da Odisseia, ver também Ch. WErnEr, Manobras poéticas entre a “Ilíada” e a “Odisseia”: o caso de Odisseu, Tese (Doutorado), São Paulo, USP, 2004, 84-85.

27 Em relação à ambiguidade das ações de Helena, WErnEr afirma: “O narrador deixa-nos no escuro deliberadamente. É seu e não de Menelau o jogo de esconde-esconde pre-

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À luz destas informações, podemos defender, em primeiro lugar, que no Elogio há uma confluência de várias narrativas referentes a Helena, a Afrodite (e Eros) e à manipulação das drogas e da palavra. Acredito que podemos dizer que Górgias está, nesta obra, tanto retomando as possibili-dades da persuasão por meio do corpo e da palavra (sôma-logos), associa-dos a Helena já em Homero, como, ainda, explorando o topos da atração erótica, que pode afetar qualquer pessoa. No entanto, ele faz isso numa perspectiva eminentemente humana, ligada à atividade discursiva, e no universo da prosa e não no da poesia. Quanto ao poder persuasivo das pa-lavras — tão forte quanto o de um objeto físico, seja um exército ou uma droga —, o inovador é que Górgias tenha associado ao poder encantatório e mágico, explorado na própria tradição cultural grega28, o conceito de téc-nica. Podemos entender o impacto de tal proposta por meio da reação que ela causou em um pensador como Platão29.

Se até aqui, a fim de compreender a analogia entre pharmakon e logos no Elogio de Górgias, fizemos, além da análise do texto de Górgias, um paralelo entre os textos que lhe são anteriores ou contemporâneos, como Odisseia e Hipólito, é interessante ver agora como esta analogia foi ressig-nificada por Platão. Como já foi mostrado por Schuhl, Platão dedica espe-cial atenção à arte médica, e mesmo que a medicina não tenha o rigor da ciência matemática ela dá ao que a pratica um lugar de destaque, ao lado

sente no discurso do herói, tanto mais que, no contexto do banquete em Esparta, o enfoque não é tanto a moralidade de Helena, mas o próprio estatuto da poesia” (Ma-nobras poéticas entre a ‘Ilíada’ e a ‘Odisseia’…, 134). Creio que o mesmo se aplica ao Elogio a Helena; o que se discute, precipuamente, é o estatuto do logos persuasivo (seja em prosa ou poesia), que pode ser tanto maléfico como benéfico. Werner também comenta que Philippe Rousseau, em texto ainda não publicado, defende que Helena, ao imitar as vozes, convence Deífobo de que não há ninguém dentro do cavalo, pois sabia que Odisseu não deixaria ninguém sair. Aceitando esta interpretação, temos de considerar que Helena é prejudicial aos troianos e benéfica aos gregos, embora a ou-tros gregos já tenha antes causado males.

28 Sobre o poder da palavra encantatória na cultura grega de um modo geral, ver o traba-lho basilar e ainda muito citado de P. Lain EntraLGo, La curación por la palabra em la Antigüedad clássica, Madrid, Anthropos, 2005. Pode-se encontrar nesse livro uma inte-ressante análise da importância da palavra tanto como instrumento de cura quanto como modo de convencer os pacientes, principalmente na escola hipocrática, a aceitar as drogas indicadas. Aliás, é famosa a relação entre Górgias e seu irmão Heródicos, médico que se servia da ajuda da palavra persuasiva de seu irmão para convencer os doentes a não deixar de tomar suas medicações (DK, 82 a 2).

29 Ver F. Graf, Excluding the charming: the development of the Greek concept of Magic; J. de romiLLy, Les grands sophistes dans l’Athènes de Périclès, Paris, 1999.

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do filósofo, do bom rei e do político (Fedro 248d). Para um autor que con-sidera a medicina uma arte racional, uma tekhnê — podemos encontrar esta concepção tanto no Górgias (464b, 500e ss.) como no Fedro (270e), ambos os textos dedicados à retórica —, deve ter soado muito estranha a identificação, feita por Górgias (Elogio, 10), da magia e da feitiçaria como tekhnai. Tanto Calogero30 como Segal31 já haviam comentado sobre o as-pecto aparentemente paradoxal na obra de Górgias — por um lado, a força emocional da poesia, por outro, a força persuasiva da razão, aliada a uma técnica no uso adequado da linguagem —, no entanto o tema foi mais bem desenvolvido por Jacqueline de Romilly32. Segundo a helenista, o que in-comodou Platão sobremaneira não foi Górgias falar da magia, como her-deiro de determinada tradição que valorizava os poderes irracionais da pa-lavra encantatória, mas sim ele ter transformado esta atividade, que apelava para a irracionalidade, as falsas crenças e a ignorância, em uma técnica, ou pelo menos proposto isso (talvez tenha sido Isócrates a implementar, ainda que de maneira mitigada, este projeto gorgiano, e a quem Platão estaria, indiretamente, atacando33). Como mostrou Romilly de maneira perspicaz, ainda que Platão tenha usado a analogia entre corpo e alma, ele o fez de modo bem diferente daquele de Górgias, na medida em que: a) atacou a inspiração poética no Íon, e b) substituiu, no Górgias, a proximidade entre retórica e medicina pela proximidade entre política e medicina (ligada, ago-ra, à ginástica), reduzindo a retórica à esfera enganosa da cosmética e da culinária, sem o status de verdadeiras tekhnai. No Fedro Platão retomará a crítica à retórica, mas não porque ela não seja uma arte, mas porque ela não é norteada pelo conhecimento verdadeiro, pois a retórica só pode vir a se tornar uma arte, assim como a medicina — aqui a analogia é retomada — , caso ela se apoie no conhecimento verdadeiro sobre o que seja a alma hu-

30 G. CaLoGEro, Gorgias and the socratic principle Nemo sua sponte peccat, Journal of Hellenic Studies, 77 (1957) 12-17.

31 C. P. SEGaL, Gorgias and the Psychology of the Logos, Harvard Studies in Classical Philo-logy, 66 (1962), 99-155 (117).

32 Ver J. romiLLy, Magic and Rethoric in Ancient Greece, Cambridge, Harvard UP, 1975; Id., Gorgias et le pouvoir de la poésie, Journal of Hellenic Studies, 93 (1973) 155-162.

33 Lembremos que, embora tenham disputado o mesmo espaço pedagógico-político na cidade de Atenas, as referências de Platão a Isócrates, aluno de Górgias, reduzem-se a uma citação no Fedro (278e) e outra na Carta XIII, 360c. SEGaL (Gorgias and the Psycho-logy of the Logos, 103) interpreta, porém, o ataque de Platão a Górgias no diálogo ho-mônimo como, de fato, um ataque a Isócrates e sua escola de retórica.

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mana, alcançado apenas por meio do método dialético (271d-274a)34. Um pouco antes (270d-e), Sócrates havia falado sobre Hipócrates, citando-o várias vezes, sendo importante lembrar que, aqui, também a medicina é afastada de um conhecimento empírico sobre as drogas e definida como uma análise racional sobre a natureza do corpo.

Para entendermos melhor a ressignificação operada por Platão, veja-mos brevemente sua posição relativa aos praticantes da magia e dos en-cantamentos. Anteriormente, ao tratar de Hipólito, eu havia citado a críti-ca de Platão aos magos, os quais ele agrupa com os sofistas, bem como comentado a aparente semelhança entre o enfeitiçamento provocado por Sócrates e aquele provocado pelos manipuladores da palavra mágica ou dos ensalmos. A fim de corroborar minha interpretação, sintetizo, aqui, uma longa análise sobre a história da feitiçaria apresentada por Collins35: no caso de Platão, este distinguiu dois tipos de feitiçaria (pharmakeia), uma ligada ao processo de afetar um corpo por meio de elementos físicos como alimentos, unguentos e poções (sômasi sômata kakourgousa esti kata phusin, Leis 933a), outra apoiada em processos, diríamos, psicológicos, pois a pessoa é afetada por estratégias persuasivas (epoidais kai legomenais peithen) que incutem medo e ansiedade, a partir do alegado poder que terceiros podem ter sobre ela por meio de sua suposta habilidade de enfei-tiçar (goeteuein). Vale lembrar como, em outros momentos, o ataque de Platão aos magos e feiticeiros é rigoroso (Leis 649a, 909a), sendo estes agrupados também com os tiranos, oradores e sofistas (Leis 908d), e o fi-lósofo ainda associa as práticas mágicas tanto aos imitadores (República 598d, 607d, 608a) como aos sofistas que fabricam falsas imagens (Sofista 234c; Mênon 235a).

Nesse aspecto, vemos então como o texto de Platão parece ser uma resposta crítica a Górgias e ao poder da palavra persuasiva, e a ênfase no aspecto negativo desta palavra encantatória tão poderosa e nos perigos que ela pode trazer para a cidade mostra, justamente, o impacto deste debate na sociedade grega naquele momento. Mais do que analisar esta crítica

34 R. G. A. BuXton (Persuasion in Greek Tragedy, Cambridge UP, 1982) chamou a atenção de maneira apropriada para este problema ao dizer: “Here is a measure of the differ-ence between Plato and Gorgias: for Plato, the rhetoric of the sophist-orator can without absurdity be said to be alogós, irrational; for Gorgias, the power of peithó is the power of lógos and neither is to be judged by any higher criterion of truth” (56).

35 D. CoLLinS, Nature, Cause and Agency in Greek Magic, TAPA, 133 (2003) 17-49.

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platônica, meu interesse aqui é indicá-la, a fim de tornar mais claro o sig-nificado do texto gorgiano para a história da filosofia e sua relação com a medicina. Esta foi uma das razões para eu ter escolhido como título deste artigo “As afecções do corpo e da alma a partir da analogia gorgiana entre pharmakon e logos”. É a partir de Górgias que temos um novo quadro. Seu pequeno e ainda tão discutido Elogio marca um momento importante na-quilo que Solmsen denominou experimentos intelectuais gregos36. A sin-gularidade de Górgias já foi destacada tanto por Parry37 como por Romilly38. Para o primeiro, o poder de ação do discurso já aparecia em Píndaro, mas foi a partir de Górgias que adquiriu um valor positivo, de mais realidade do que o próprio mundo das coisas, já que o próprio logos tem a potência (du-namis) de criar a realidade (ergon) — lembremos aqui da discussão sobre a autonomia da palavra, na terceira parte do Tratado do não-ser39. Já Romilly, ao ressaltar as especificidades da psukhagogia de Górgias, defendeu que “A tentativa do sofista para utilizar racionalmente estes poderes irracionais da palavra é, de fato, o termo de uma longa evolução, que permitiu e faci-litou esta tomada de posição espetacular”.

Não é fácil, sabemos, escapar à impressão causada pelo diálogo Gór-gias de que há um referente objetivo associado ao termo retórica e de que este referente seja algo mais do que um constructo40. Nós a encontramos, por exemplo, na visão de Kennedy, que traçou um quadro evolutivo dessa “disciplina”, distinguindo retórica técnica, retórica sofística e retórica filosó-fica41. Quanto ao conceito de retórica sofística, por exemplo, um de seus

36 “The Greek Enlightenment is not properly appreciated as long as its achievement is confined to the propagation of new studies and revolutionary theories and to the corre-sponding criticism of traditional habits, beliefs, and institutions. A just appraisal of it ought to include also the forms and uses of reason that had not been known previously, or if known had not brought into play so often, so ready, and with such delight in experi-mentation” (241). Nesse sentido, as discussões sobre o logos fazem parte de um modo de pensar, mais do que de uma técnica de persuasão.

37 M. Parry, Logos and ergon in Thucydides, Salem, Ayer, 1988 [1. ed. 1957].38 J. romiLLy, Gorgias et le pouvoir de la poésie, 159.39 P. Laín-EntraLGo, La curacion por la palabra en la Antigüedad Clásica, Madrid, Anthro-

pos, 1987 [1. ed. 1958]) nota que no corpus hippocraticum os termos logos e ergon apa-recem ora como complementares, ora em contraposição.

40 Essa ideia perpassa mesmo estudos muito bem feitos, como o de M. dEtiEnnE, Les maîtres de la vérité dans la grèce archaique, Paris, Maspero, 1967; para ele, “La fin de la sophistique comme celle de la rhétorique est la persuasion (peithô), la tromperie (apatê)” (119).

41 Cf. G. B. kEnnEdy, Classical Rhetoric, Chapel Hill, North Carolina UP, 1980.

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problemas é o da própria definição de sofística, pois a variedade de indiví-duos aos quais o termo era aplicado impede que se dê uma característica por meio da qual sejam identificados seus membros42. Monique Canto43 ressalta que, se desconsiderarmos caracterizações exteriores que são con-tingentes — como, por exemplo, defini-los em função de serem estrangei-ros com uma vida itinerante e que ensinavam em Atenas (o que os aproxi-ma dos magoi persas em solo grego) — e buscarmos caracterizá-los, por exemplo, pelo fato de ensinarem a virtude, Górgias é o primeiro a escapar desta classificação, pelo menos de acordo com o sentido de virtude ofere-cido por Platão no Mênon (95c).

É também uma questão pertinente discutir a origem e a significação do termo retórica. Mesmo que não tenha sido cunhado por Platão — se considerarmos que o texto de Alcidamas (Sobre os sofistas 2) seja anterior ao Górgias, cuja data é, aproximadamente, 385 a.C. —, sem dúvida a par-tir do Górgias a retórica ganha um sentido bastante particular44. Natural-mente, é muito comum associar os sofistas à investigação sobre a lingua-gem. No caso particular de Górgias, esta associação muitas vezes vem marcada por um juízo de valor negativo (de origem platônica, creio). Para Kennedy45, por exemplo, um importante e influente historiador da retóri-ca, não é claro que Górgias se importasse com as implicações filosóficas de suas técnicas de discurso: “O que é importante para ele, e que perma-nece como característica da sofística como ramo da retórica, é sua cons-ciência do poder do orador para realizar o que quer que ele queira”46. No entanto, não parece ser isso o que encontramos ao ler os textos de Górgias que nos restaram.

42 Cf. G. B. kErfErd, The Sophistic Movement, Cambridge, Cambridge UP, 1981, e M. Can-to na introdução de sua tradução do Górgias de Platão (PLaton, Górgias, Paris, GF-Flammarion, 1987).

43 In PLaton, Górgias, 27-28.44 Como já foi observado por SChiaPPa, se tomarmos, por exemplo, a comédia As nuvens,

de Aristófanes, os Dissói lógoi, de autor desconhecido, e os textos dos “velhos sofis-tas”, principalmente o Elogio a Helena, de Górgias — que seriam os lugares naturais onde poderíamos encontrar o conceito de retórica rhetorikê —, veremos que o termo retórica jamais foi usado.

45 G. B. kEnnEdy, Classical Rhetoric, 31.46 E. doddS, na introdução de sua edição crítica do Górgias de Platão, discordando da rea-

valiação do pensamento do sofista como sério e profundo — o que estava em voga na época —, fazia suas as palavras de Denniston a respeito do Elogio a Helena: “starting with the initial advantage of having nothing in particular to say, he was able to concen-trate all his energy upon saying it” (9).

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O Elogio é um bom exemplo de que encontramos muito mais do que o embelezamento da prosa por meio de instrumentos da poesia. Ainda que não tenhamos feito uma análise da tekhnê grapheis, podemos defen-der que o encantamento transmitido pela musicalidade proveniente das rimas, assonâncias, aliterações e de outros recursos criados por Górgias e a composição estruturada das palavras ao longo do texto não são apenas elo-cução ou estilo (o de uma estilística, um dos sentidos de lexis), pois a ma-neira como estes recursos são agenciados constrói certas relações semânti-cas, complementando a persuasão provocada pelo logismon, ou seja, pela argumentação47. Além disso, se Solmsen48 tem razão — e acreditamos que ele tem — ao dizer que os melhores exemplos de uso do logos a serviço da psukhagogia são encontrados em Eurípides, vemos que faz sentido aproxi-mar os textos do dramaturgo dos de Górgias, como fizemos aqui. Neste campo da psukhagogia resta, antes de concluirmos, fazer uma considera-ção. Embora Hipócrates fosse contemporâneo de Górgias e, se dermos crédito a certas informações, também seu discípulo49, há no corpus hippo-craticum, segundo os especialistas, um silêncio quase absoluto quanto à ação psicoterapêutica por meio da palavra (não estou traduzindo psukhago-gia como psicoterapia, mas aproximando as duas). Segundo Entralgo50, há duas razões para isso: a) mesmo sabendo da influência da alma sobre a saúde e a doença, há uma recusa da epoidê mágica em nome da medicina fisiológica; além disso, a crítica veemente aos que fazem ensalmos no Da doença sagrada mostraria que seu autor não dissociou a palavra encantató-ria e terapêutica do charlatanismo; b) a ênfase no estudo da natureza so-mática do homem, sendo a percepção do corpo através dos sentidos o câ-none da medicina hipocrática. Segundo Entralgo, esta direção dada por Hipócrates conduziu a medicina ao caminho da ciência e do rigor, mas ao mesmo tempo a uma incapacidade para a psicoterapia. Esta limitação já fora notada por Platão, que, mesmo invocando o exemplo do médico como

47 A. roStaGni (Un nuovo capitolo della retorica e della sofistica, Studi Italiani di Filologia Classica, Firenze, II [1928]148-201), ao tratar dos efeitos do discurso sobre a alma, desta-cou a influência de teorias musicais dos pitagóricos sobre Górgias. Na verdade, Aristó-teles (Rh. III, 1, 1404 a 24) já enfatizava esta intenção de Górgias de fazer uma prosa poética.

48 F. SoLmSEn, Intellectual Experiments of the Greek Enlightenment, Princeton, Princeton UP, 1975, 49.

49 P. Lain EntraLGo, La curacion por la palabra en la Antigüedad Clásica, 187.50 Ibid., 187 ss.

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modelo para uma arte retórica, propôs que se devesse ir além de Hipócra-tes (270d-271d), embora a psukhagogia platônica, diferentemente da de Górgias (lembremos do final do parágrafo 14, em que a alma é atingida tanto pela droga como pelo ensalmo: psukhên epharmakeusan kai exegoe-teusan), pressuponha uma alma que, como a politeia, está divida em três partes, sendo a racional a parte superior e afastada das afecções emotivas (Fedro 246a-b, 253c-255b). Assim, já estamos bem distantes de uma psi-cologia como a gorgiana.

Concluindo, lembro que no início deste texto havia dito que preten-dia tanto tratar de alguns aspectos da analogia entre pharmakon e logos, mostrando a importância que ela toma a partir do texto de Górgias, como fazer um vínculo com autores que lhe são anteriores (Homero e Eurípides) e posteriores (Platão). Em particular, busquei indicar como a concepção de linguagem (não quero usar o termo retórica, já que ele parece ser ana-crônico e inadequado) de Górgias acarretou uma reação de Platão. Con-quanto tenha sido arriscado fazer comentários tão breves sobre um assunto de tamanha complexidade, algumas considerações feitas serviram, ao me-nos, para alertar-nos sobre problemas que surgem a partir da análise de uma analogia aparentemente tão simples. Um corolário desta análise é a lição metodológica de cuidarmos para não ver os textos do século V, em particular os de Górgias, de uma perspectiva do século IV (como a platôni-ca) que demarque tão categoricamente os domínios do que veio a ser con-siderado retórica e filosofia51. No mínimo, no caso da terminologia ligada ao pharmakon, estaremos mais atentos ao uso dos termos e aos conceitos a eles associados no discurso filosófico.

51 Uma das consequências desta perspectiva foi apontada de maneira instigante por S. jarrat, The first Sophists and the uses of history. Em seu livro, ela tenta mostrar uma tese — a identificação no Górgias das características associadas à retórica como aque-las mesmas associadas à mulher (63 ss.) — que, mesmo sendo passível de crítica, se apoia em algumas análises muito bem argumentadas. Estruturada na oposição entre retórica e filosofia, opinião e verdade, materialidade do corpo (em sua associação com a culinária e a cosmética) e da alma, conhecimento prático e teórico, conhecimento temporário e eterno, sua conclusão é que a imagem da retórica e do sofista coincide com o estereótipo cultural do “feminino”. A autora busca mostrar, ainda, como no Oci-dente, por vários séculos, irracionalidade, poder mágico ou hipnótico, subjetividade, sensibilidade emocional, “estilo” foram todos desvalorizados, em favor de seu oposto “masculino” ou contrário filosófico: racionalidade, objetividade, “conteúdo”. Não deixa de ser oportuno lembrar que, ao menos na literatura grega, são justamente as mulheres que lidam com o pharmakon (ver nota 3), e seu significado na perspectiva gorgiana pa-rece ser justamente aquele criticado pela perspectiva platônica.

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O Fedro é para mim o mais belo diálogo de Platão, não somente por-que carrega o subtítulo “Da Beleza”, mas sobretudo porque trata de uma forma que é característica de seu melhor estilo, e ao mesmo tempo única, questões que se pode considerar, sem medo, as mais caras à sua filosofia. Com efeito, no Fedro Platão parece superar a si mesmo em sua magistral habilidade de articular conteúdo filosófico e elemento dramático, uma vez que consegue reunir, de um modo inigualavelmente belo, temáticas que ocupam lugar central em muitos de seus diálogos, como o Amor, a Beleza e a Felicidade (O Banquete, Filebo), o Conhecimento como correlato ao autoconhecimento (Alcibíades, Teeteto), a Retórica (Górgias), a Poesia, a Educação, a Alma, a Verdade, a Linguagem (República, Mênon, Fédon, Protágoras e Crátilo), a Dialética como Filosofia por excelência (Parmêni-des, O sofista). Se quase todos os diálogos de Platão pressupõem de certo modo esse entrelaçamento de temas e contam com o requinte de uma di-mensão performática, no plano dramático, do próprio conteúdo filosófico abordado no interior deles mesmos, o Fedro destaca-se particularmente

1 Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Ceará.

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dos demais na medida em que aquilo que ilustra em sua feição dramática é justamente o tema para o qual convergem todas as questões ali reunidas, qual seja, a forma propriamente dita do filosofar tal como supomos ser concebida por Platão: um filosofar que consiste deliberadamente em evi-tar incorrer em um quadro doutrinário de conceitos previamente fixados em favor de uma atividade dialógica viva, cujo trajeto jamais pode ser dado de antemão, mas desenvolvido e guiado pelas peculiaridades de seus inter-locutores, bem como da própria relação que se estabelece entre eles.

Nesse sentido, Jay Farness2 parece ter razão em identificar no Fedro uma dose mais forte de tensão e ambiguidade no modo de apresentar essas questões no interior do diálogo; e, como bem esclarece Monique Dixsaut3, esses aspectos não representam nenhuma fragilidade sistemática ou preca-riedade conceitual que se refletiriam como suposta hesitação ou contradi-ção de Platão quanto ao modo de conceber tais questões. Antes, figurariam como traço inalienável de uma filosofia que se caracteriza pela “absoluta diferença que não é ainda certa nem de seu nome — filosofia —, nem de sua possibilidade, nem de sua história, ainda menos de sua transmissão; só e somente por isto de sua necessidade: filosofar é preciso (Euthyd, 288d). Em uma palavra, tensão e ambiguidade seriam próprias a uma filosofia que se investe a si mesma de um forte componente pragmático. Assim, não se-ria à toa que Platão teria “administrado” ao Fedro uma dose particularmen-te mais forte de tensão e ambiguidade presentificadas na conjugação das questões acima mencionadas. Essa tensão, por sua vez, emerge sob a for-ma de verdadeiras díades temáticas, como a que se impõe entre cidade e campo, erotismo e sedução no âmbito privado e público, divino e humano, humano e animal, vivos e mortos, corpo e alma, Egito e Grécia, conceito e símbolo, oralidade e escrita, Lísias e Sócrates, parte e todo, método e lou-cura, dialética e erística4; enfim, pares que supomos ser atravessados pela tensão existente no termo grego pharmakon, cuja ambiguidade do signifi-cado — remédio ou veneno — é ostensivamente explorada na parte dedi-cada à análise da escrita5, fazendo-se contudo presente desde o início do

2 J. farnESS, Missing Socrates: Problems of Plato’s Writing, Pennsylvania State University Press, 1991.

3 M. diXSaut, La natura filosófica: Saggio sui dialoghi di Platone, trad. Cesare Colletta, Napoli, Lofredo Editore, 2001.

4 Cf. J. farnESS, Missing Socrates….5 Essa dupla acepção do termo pharmakon — remédio e veneno — consta no mito narra-

do por Sócrates (274 d-e) segundo o qual o deus egípcio de nome Thoth teria inventa-

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diálogo em alusões indiretas, aparentemente destituídas de importância. Desse modo, tentaremos mostrar que todo o diálogo pode ser pensado como uma forma de apresentar não somente a escrita, mas a própria lin-guagem como pharmakon, cabendo ao seu usuário o emprego dela na con-dição de remédio ou de veneno. Nesse caso, o filósofo surge como o usuá-rio ideal da linguagem, fazendo a filosofia coincidir com uma análise da linguagem, o que vem a torná-la o verdadeiro remédio para a alma adoeci-da pelo envenenamento de uma retórica barata, nem mesmo merecedora de tal designação. Ao filósofo, portanto, opõe-se o logógrafo e, por exten-são, o sofista, produtores de discursos que usam a linguagem com uma aparente maestria, uma vez que, por não conhecerem aquilo sobre o que falam, são capazes de convocar o interlocutor ao conhecimento, vindo ape-nas a seduzi-lo com meras opiniões e argumentos falsos. No âmbito do Fedro, essa tensão aparece justamente na oposição entre os personagens de Sócrates e Lísias, através dos discursos produzidos por eles acerca do Amor e da relação ideal entre amante e amado. Nessa perspectiva, a divi-são do diálogo em duas partes — uma concernente ao discurso de Lísias e aos dois discursos de Sócrates, e a outra dedicada ao exame da retórica e da escrita —, comumente proposta pelos intérpretes, não deve, todavia, perder de vista a unidade do diálogo, de modo que a primeira parte possa ser pensada como uma espécie de ilustração performativa daquilo que é discutido na segunda. Desse modo, o diálogo viria cuidadosamente arqui-tetado, tal que a primeira parte, composta pelo discurso de Lísias e pelos dois discursos de Sócrates, constitua a dramatização mesma das duas pos-sibilidades de uso da linguagem como pharmakon abordada na segunda parte: aquela proposta no discurso de Lísias, bem como o primeiro discur-so de Sócrates, exemplificariam, por meio da tese de que os amantes são mais doentes de espírito do que os lúcidos6 (Fedro 231d-e) e o ideal é ser amigo e não amante, o uso da linguagem como veneno, pois ambos são compostos de uma série de opiniões falsas. Apesar de parecer um discurso

do, entre muitas artes, a grafia, apresentando-a ao rei Tamuz como remédio (phar-makon) para a memória. O rei, incrédulo em relação à invenção, alega que esta produziria o efeito oposto, constituindo-se como um veneno (pharmakon): tornaria os homens esquecidos, preguiçosos para o exercício da memória, confiantes apenas no que estivesse escrito.

6 PLato, Complete Works, ed. John M. Cooper, Indianapolis/Cambridge, Hacket, 1997. PLatonE, Opere Complete, ed. bilíngue grego–italiano em CD-ROM de G. Iannotta, D. Papitto, A. Manchi, Bari, Laterza, 2000.

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em favor da moderação (sôphrosune), Sócrates mostra que o discurso de Lísias vale-se de argumentos totalmente falsos, já que considera o amor uma doença, sugerindo inclusive que não se deve deixar-se sucumbir aos delírios do Amor. Desse modo, não visa senão à mera persuasão de seu in-terlocutor; já o segundo discurso de Sócrates, por este proferido como pa-linódia ou reparação aos insultos contra Eros contidos em seu discurso anterior, ilustra o emprego propriamente filosófico da linguagem e, por conseguinte, a ação terapêutica da filosofia identificada na segunda parte do diálogo à atividade dialética.

Em face desse entrelaçamento complexo de questões da maior im-portância abordadas no diálogo, todas as díades temáticas acima mencio-nadas comporiam aquilo que Sócrates (em Fedro 264c), ao criticar o dis-curso de Lísias, afirma acerca do discurso enquanto tal: “todo discurso deve ser formado como um ser vivo, ter o seu organismo próprio, de modo a que não lhe faltem nem a cabeça, nem os pés, e de modo a que tanto os órgãos internos como os externos se encontrem ajustados uns aos outros, em harmonia com o todo”. Nesse todo belo e harmonioso que constitui o próprio diálogo Fedro, parece haver desde o início uma preocupação com a doença vinculada à temática do discurso e seu respectivo remédio; ou seja, enquanto um ser vivo, o discurso estaria constantemente suscetível ao ris-co da doença, a persuasão do tipo erístico, de modo a se fazer mister pri-mar para que se produza o remédio adequado para garantir-lhe ou resti-tuir-lhe a saúde. Com efeito, já em 228c (portanto bem no início do diálogo), logo ao interpelar Fedro, há pouco saído da casa em que se hos-pedava Lísias, Sócrates, desconfiando que aquele trazia consigo o discurso recentemente escrito por este, e curioso para lê-lo, afirma ser sua pior doença o gostar de ouvir discursos. Doença que o coloca em condição se-melhante à que atribui a Fedro (Fedro 228e), que, ansioso para memorizar secretamente o discurso de Lísias para então exibir-se a Sócrates, é com-parado a um coribante em delírio. Logo adiante, em 230d, ao aceitar o convite de Fedro para acompanhá-lo em um passeio pelo campo somente ao preço de ter acesso ao ensejado discurso, Sócrates admite que Fedro teria encontrado o remédio para a sua doença, que o mantém preso à cida-de. Pois, se sua doença é gostar de ouvir discursos com o intuito de apren-der, “o campo e as árvores nada podem ensiná-lo, ao contrário dos homens da cidade”. E é seduzido pela possibilidade de ouvir a leitura do discurso de Lísias, tal como um animal é levado aonde se queira desde que se lhe

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agite adiante um ramo de folhas ou frutos, que Sócrates parte rumo ao campo, fora dos muros da cidade, lá onde se erigem os túmulos, ornados com estátuas de deuses e onde se inscrevem os epitáfios em honra e me-mória dos mortos. Ao escolherem o local para conversar, aludem a uma lenda segundo a qual, naquelas paragens, uma jovem, Orítia, teria sido ar-rebatada pelo deus Bóreas no momento em que brincava com pharmakeia, uma ninfa cujo nome é dado a uma fonte. E é justamente nas proximida-des de uma fonte, sob a aprazível sombra de uma árvore onde sopra um delicioso vento (filho de Bóreas), que ambos decidem recostar-se para ou-vir o discurso de Lísias.

Dessa alusão indireta ao termo pharmakon pode-se depreender sua dupla significação empregada dramaticamente no desenrolar do diálogo: por um lado, o discurso de Lísias e o cenário rural dos quais se vale propo-sitadamente Fedro parecem servir de remédio a Sócrates, levando-o a ad-mitir, mais adiante, ao examinar as características do discurso verdadeiro, que “todas as artes importantes devem basear-se na pesquisa e na medita-ção da Natureza, pois é daí que parece advir-lhes essa sublimidade de pen-samento que nelas se encontra, ao lado da perfeição” (Fedro 270a). À filo-sofia será assim consentida a tarefa de investigar a natureza daquilo que se põe sob seu exame. E é daí que decorre a necessidade de conhecer a natu-reza da alma (Fedro 270b), uma vez que, conforme Sócrates afirmará logo adiante (Fedro 270e), é do trabalho de persuadi-las que se ocupam os dis-cursos. Por outro lado, contudo, na medida em que o discurso de Lísias instiga Sócrates a proferir seu primeiro discurso inspirado naquele, vindo a produzir uma espécie de blasfêmia contra Eros, o pharmakon usado por Fedro acaba por conduzi-lo pelo caminho do que é falso, já que destituído do conhecimento verdadeiro sobre o amor, e, nesse sentido, parece dessa vez atuar como veneno. Mesmo ciente desse efeito pernicioso, já que Só-crates mais parece imbuído do afã de superar Lísias perante Fedro me-diante o proferimento de um discurso equivalente ao daquele, só que de puro improviso, cumpre-lhe de todo modo tentar remediar o insulto a Eros. É então que apela ao direito de fazer sua palinódia, que significa canto di-ferente, em outro tom; ou seja, uma espécie de retratação por meio do proferimento de um segundo discurso, desta vez elogioso à divindade, tal como cumpre a um mortal dirigir-se a um deus. Tem-se aí a exemplifica-ção da possibilidade de se melhorar um discurso, vindo a remediar um erro cometido por um discurso anterior equivocado. Em sua palinódia, portan-

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to, Sócrates empenha-se em retratar-se perante Eros, admitindo que os efeitos por ele causados nos enamorados — a loucura (mania) —, bem como os ardis de que é capaz um amante com o intuito de seduzir seu amado — a persuasão —, não são necessariamente perniciosos, mas de-penderão do modo como o amante irá utilizá-los, o que por sua vez depen-derá do tipo de amor que estará em jogo. É justamente a partir desse se-gundo discurso que são reintroduzidas questões já examinadas em outros diálogos, agora de uma perspectiva um tanto distinta da que figurava na-queles. Por exemplo, quando Sócrates admite que o delírio e a loucura — não como doença, mas como inspiração divina (Fedro 244c-e; 265b) — são, por sua beleza, superiores à sabedoria de que os homens são os autores (Fedro 244b); ou quando reconhece que o delírio profético atua como ver-dadeiro remédio contra as doenças e flagelos terríveis que atingem certos indivíduos herdeiros de antigos ressentimentos vindos não se sabe de onde; ou quando alude a outra espécie de loucura benfazeja, a saber, aquela ins-pirada pelas musas e a única capaz de conferir a quem a recebe a designa-ção de poeta (Fedro 245a).

Ora, todo esse elogio da loucura aparece também no Íon, quando Só-crates afirma que o poeta é um ser alado e sagrado, capaz de compor ape-nas quando saturado do deus (540b). Todavia, no Íon a loucura divina não é sequer capaz de fazer da poesia uma tekhnê, já que não é considerada um produto de uma atividade propriamente humana. Desse modo, situa-se bem distante do conhecimento humano advindo da atividade filosófica, caracterizada como epistêmê e, por conseguinte, como obra da razão. No Fedro, a loucura divina atinge o status de efeito produzido na alma pela contemplação da Beleza real, aquela concernente às ideias perfeitas que dizem respeito ao trabalho da razão. Portanto, somente a alma dos filóso-fos é dotada do dom da reminiscência, sendo a única capaz de lembrar de tal estágio no momento em que se depara com algo belo no mundo, seme-lhante à Beleza do plano superior. Nessa perspectiva, a loucura no Fedro, além de vir associada ao Amor, é plenamente assimilada à filosofia, deixan-do de ser exterior e irreconciliável com a atividade racional. Mais que isso, uma vida incondicionalmente consagrada ao amor é uma vida de todo em todo inspirada na filosofia (Fedro 257b).

Mas é no tratamento concedido à persuasão (Fedro 260d), e mais pre-cisamente à retórica, que se pode evidenciar a mudança mais significativa da perspectiva platônica de análise com relação a outros diálogos, como,

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A linguagem como phármakon no Fedro de Platão

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por exemplo, o Górgias. A esse respeito, a análise de Trabattoni7 mostra-se bastante perspicaz. Segundo o intérprete italiano, no Górgias, apesar de se entrever a possibilidade de uma retórica admirável (Górgias 503a), com-prometida com a condução das almas dos cidadãos rumo à aspiração pelo melhor possível e não pelo meramente prazeroso, tal possibilidade é ape-nas teórica, dado que não se é capaz de identificar nenhum orador imbuí-do desse ideal. Desse modo, essa retórica verdadeira acaba por se identifi-car à filosofia sem, contudo, transformar-se nela. Já no Fedro o percurso seria exatamente o oposto: em vez de mostrar a essência filosófica da retó-rica verdadeira, Platão aponta para a essência retórica da verdadeira filoso-fia. Com efeito, há no Fedro inúmeras passagens em que se pode entrever a referida mudança de perspectiva: em 260d, depara-se com a afirmação de Sócrates segundo a qual aquele que conhece a verdade sem fazer uso da persuasão jamais será capaz de atingir as outras almas a fim de que elas compartilhem essa verdade; em 273 c, tem-se a alusão de que persuasão e retórica constituem elementos imprescindíveis à atividade filosófica, de modo a se poder chamar de filósofos aqueles que dedicaram suas vidas à persuasão de almas na direção do Belo e do Bem (Fedro 278d). Cumpre notar, contudo, que essa assimilação da persuasão ao seio da atividade filo-sófica não anula a crítica de Sócrates àqueles que, como Trasímaco e Lí-sias (Fedro 266d), valem-se da persuasão tão-somente para conduzir as al-mas em direção ao atendimento de seus apetites. Tais oradores são comparados não a médicos, como os filósofos, mas a charlatães que se jul-gam capazes de administrar muitas coisas no organismo humano sem, contudo, saber a quem se deve aplicar tais tratamentos, nem tampouco em que ocasiões e por quanto tempo (Fedro 268b). Limitaram-se, por falta de discernimento, aos conhecimentos básicos sobre a arte da persuasão julgando ter aprendido a própria retórica (Fedro 269c), assim como o char-latão que, somente porque estudou por alguns livros e descobriu por mero acaso alguns remédios, se julga inadvertidamente médico. O verdadeiro médico será finalmente equiparado ao dialético, pois ambos ocupam-se em examinar a natureza mesma daquilo que estudam: o médico se dedica a estudar a natureza do corpo, enquanto o dialético ou filósofo debruça-se sobre a natureza da alma. É pela tekhnê e não pela empeiria que se deve

7 F. traBattoni, Scrivere Nell’Anima: Verità, dialettica e persuasione in Platone, Firenze, La Nuova Italia, 1994.

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Maria Aparecida Montenegro

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guiar para dar saúde e vigor ao corpo e à alma, ministrando alimentos e re-médios adequados a cada tipo específico de corpo, infundindo discursos e argumentações honestas, adequadas a cada tipo particular de alma.

Ora, não se poderia pensar toda essa retomada de questões no Fedro como uma espécie de palinódia do próprio Platão com relação à poesia e à retórica, veementemente criticadas em diálogos como a República e o Górgias? Nesse caso, não estaria Platão tentando remediar um discurso equivocado?

Temos assim, nessa perspectiva, a possibilidade de compreender todo o diálogo como um movimento de ilustração da duplicidade do termo phar-makon, de modo a não parecer insensato supor que não apenas a escrita pode ser pensada como veneno, mas a própria linguagem, desde que em-pregada de forma vazia, como fazem os logógrafos e sofistas. A filosofia adquire, à medida que é identificada à retórica e à dialética, uma dimen-são terapêutica, um trabalho de cura da alma mediante a produção de dis-cursos vivos e não de discursos destituídos de conhecimento, como os da-queles; nessa condição, a filosofia também não pode, por outro lado, equivaler-se a uma doutrina fixa, concernente a uma fundamentação últi-ma da verdade, exterior e, consequentemente, além da capacidade huma-na de conhecer. Como bem adverte Trabattoni8, Platão não pode nem ser confundido com um Protágoras, para quem se coloca o relativismo da lin-guagem e da realidade, nem tampouco com um Aristóteles, para quem o saber epistêmico se constitui de forma pura, sem o uso da persuasão.

8 Ibid.

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Sócrates, o corpo, a morte e a tarefa do pensamento:

um estudo do Fédon de Platãopnpnpn

Anastácio Borges de Araújo Jr.1

Introdução

Ao pensarmos no diálogo Fédon de Platão e no tratamento que é dis-pensado ao corpo (sôma) naquele diálogo, surge, rapidamente, a lembrança de uma concepção ascética do corpo, atribuída, geralmente, aos órficos-pitagóricos, na qual o corpo seria uma prisão para alma, fonte das pertur-bações, ou seja, o corpo visto como obstáculo (empodion, Fédon 65a10) à investigação filosófica. Entretanto, tal concepção não parece ser a única palavra de Platão sobre o corpo no contexto daquele diálogo. Nossa comu-nicação propõe-se a examinar outro momento do Fédon no qual encontra-mos sugerida outra perspectiva em relação ao corpo, isto é, encontramos Só-crates tendo que admitir que o corpo não se coloca numa relação de simples oposição à alma, mas é, também, meio pelo qual a alma pode fazer aquilo que faz.

Nesse trecho que analisaremos, localizado na primeira parte da inves-tigação acerca da causa da geração e da corrupção das coisas (Fédon 95d8–99d1), Sócrates, depois de narrar suas experiências sobre a “investigação

1 Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte — UFRN.

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da natureza”, mostra, de maneira intrigante, que o corpo não é real causa de suas ações, mas que se estivesse privado do corpo ele não seria capaz de nenhuma ação, isto é, sem o corpo a causa real de suas ações não seria nem mesmo causa. Desse modo, segundo nossa leitura dessa passagem, o corpo, que aparentemente parecia ser um impedimento ao pensamento, torna-se possibilidade do pensamento enquanto ação humana, isto é, ação de um corpo animado.

A partir dessa outra perspectiva que leva em consideração o corpo como realmente aquilo que constitui, junto com a alma, o homem (Fédon 79b1-b2), tentaremos retomar o Fédon, mostrando, a partir de algumas passagens, que o corpo em si mesmo não é nem obstáculo nem possibili-dade, mas que pode assumir as duas atribuições; o papel do corpo depen-de do modo com que a alma se relaciona com ele, ou seja, é a alma que interpreta o corpo, fonte das sensações, fornecendo ao corpo as significa-ções que podem fazê-lo tanto corpo-obstáculo quanto corpo-possibilida-de. Se esta interpretação for aceitável, poderemos, no final, afirmar que a conversação socrática no Fédon, nos últimos momentos de vida do filóso-fo, é uma tarefa do pensamento que encontra como desafio as afecções do corpo, e nessa tarefa Sócrates parece ter tido êxito, junto com seus discípulos, em transformar, através do pensamento, o corpo-obstáculo em corpo-possibilidade.

O corpo que constitui o homem

Diante da dúvida de Cebes no que se refere à imortalidade da alma, Sócrates, depois de um longo silêncio, retoma uma difícil investigação: “examinar profundamente a causa da geração e da corrupção das coisas (peri geneseôs kai phthoras tên aitian diapragmateusasthai)”2. Sócrates narra, então, suas experiências neste tipo de estudo que consiste em saber por

2 PLatão, Fédon, 95d10–96a1. Texto grego estabelecido por E. A. Duke e publicado em Platonis Opera. Recognoverunt Brevique Adnotatione Critica Instruxerunt , Oxonii e Ty-pographeo Clarendoniano, 1995, Tomus I (Oxford Classical Texts). Tomamos ainda como referência as seguintes versões: PLatão, Diálogos (O Banquete, Fédon, Sofista, Político), 4. ed., sel. de textos José Américo Motta Pessanha, trad. e notas José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat, João Cruz Costa, São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensado-res); PLatón, El Fedón, 4ª ed., trad., int. e notas Conrado Eggers Lan, Buenos Aires, Eu-deba, 1987; PLaton, Phédon, nova trad., introd. e notas Monique Dixsaut, Paris, Flam-

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que as coisas são geradas, perecem e são, aquilo que é chamado de “inves-tigação da natureza (phuseôs historian)” (Fédon 96a7)3. Sócrates afirma que quando jovem dedicou-se a tais investigações: Os seres vivos nascem de uma putrefação em que tomam parte o frio e o calor? O sangue é causa do nosso pensamento? Ou o ar? Ou o fogo? Ou ainda o cérebro? Sócrates diz ter se deparado com uma total inaptidão para esse tipo de investigação e confessa que segundo o método dessas pesquisas ele não consegue sequer compreender como é possível obter duplas realidades por processos opos-tos, quer dizer, pela adição de duas unidades e também pela divisão de uma unidade em duas metades (Fédon 97 a2-b7)4.

Em seguida, Sócrates conta que, certa vez, ouviu falar de uma obra de Anaxágoras que afirmava que a inteligência (nous) era causa ordenadora de todas as coisas. Alegrou-se, pois enfim parecia ter encontrado o que procu-rava. Entretanto, Sócrates diz ter, rapidamente, se decepcionado quando percebeu que, longe de utilizar-se do princípio da inteligência para determi-nar o melhor e o pior, Anaxágoras atribuía a ordenação do universo a causas mecânicas tais como o éter, o ar e a água. Desse modo, compara Sócrates:

Logo, eis no que ele [Anaxágoras] me fazia pensar: era como se um homem dissesse de antemão que tudo o que faz Sócrates, ele faz graças à sua inteligência; e que em seguida, começando a enume-rar as causas de cada uma de minhas ações, ele afirmasse primei-ramente que eu estou agora aí sentado porque meu corpo é consti-tuído de ossos e de músculos; que os ossos são sólidos, que eles são, por natureza, separados e articulados uns em relação aos ou-tros; que os músculos, eles, podem tensionar e distensionar e que junto com as carnes e a pele (que mantêm tudo isso junto) eles envolvem os ossos; que então, a partir do fato de que os ossos mo-vem-se nas suas articulações, é o relaxamento ou a contração dos músculos que, em suma, fazem que eu seja capaz nesse instante de flexionar meus membros; e que tal é a causa em virtude da qual, me sendo dobrado de tal maneira, eu me encontro sentado onde eu estou. Ou ainda como se tratando de nosso diálogo ele invocasse

marion, 1991. As citações do Fédon foram, exceto quando explicitado, traduções livres da versão francesa de Monique Dixsaut.

3 Aqui Dixsaut traduz por “ciência da natureza”; optamos pela sugestão de Eggers Lan em El Fédon, 175, nota 180.

4 Ver o detalhamento do exemplo irônico de Sócrates.

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outras causas de mesmo valor: a emissão dos sons, as vibrações do ar, os processos de audição e milhares de outros fenômenos desse tipo. Ele negligenciaria assim a enunciar as causas que, verdadei-ramente, são: os atenienses julgaram que o melhor era me conde-nar, eu, por minha vez, achei melhor, por essa razão, estar aqui mesmo sentado, e que o mais justo era ficar aí e me submeter à punição que eles decidiram me infligir (Fédon 98c2-e5).

Sócrates recusa-se, nas perspectivas cosmológica e antropológica, a conceder que os corpos e os processos corporais sejam as verdadeiras cau-sas da ordenação do universo ou do agir humano. Não é possível atribuir aos corpos, por sua própria natureza, o epíteto de causa. Não poderíamos compreender sequer a ação humana a partir da descrição dos fenômenos mecânicos que acompanham e possibilitam a ação. Sócrates parece con-vencido de que esse tipo de explicação não atinge seu objetivo, pois não consegue esclarecer aquilo que se propõe. Se a inteligência é ordenadora, todas as suas ações são determinadas pelo princípio do melhor, do mais apropriado, segundo uma certa adequação, e desse modo tais ações seriam compreensíveis para o homem, corpo animado por uma alma inteligente. Desse modo, prossegue Sócrates:

Pois, pelo Cão, eu vos prometo que há muito tempo que esses múscu-los e esses ossos se encontrariam perto de Mégara ou da Beócia, lá onde os teria transportado uma certa opinião sobre o melhor, se eu não tivesse julgado mais justo e mais belo preferir, à fuga e à deserção, a submissão à cidade, qualquer que seja a pena fixada por ela. Não, eu vos asseguro, dar a semelhantes coisas o nome de causa é verdadeira-mente muito absurdo! Certamente, se viesse me dizer que se eu estivesse privado de tudo isso, dos ossos, de músculos e do resto, que eu os tenho, eu, corretamente, não seria capaz de fazer isso que julgo bom fazer, desse modo, só diria a verdade (ei de tis legoi hoti aneu tou ta toiauta ekhein kai osta kai neura kai osa allá ekhô ouk a hoios t”ê poiein ta doxantamoi, alêthê na legoi). Porém, pretender que é por causa disso que eu faço o que faço e que realizo certas coisas pela inteligência, mas sem esco-lher o melhor, seria uma prova de total negligência em relação à lin-guagem. Isso seria se mostrar incapaz de ver que existem duas coisas distintas: isso que, realmente, é causa; e aquilo sem o que a causa jamais poderia ser causa (to gar me dielesthai hoion t’einai hoti allo men ti esti to aition tôi onti, allo de ekeino aneu hou to aition ouk na pot’eiê aition) (Fédon 98e5–99b4; itálicos nossos).

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Na antropologia platônica não é possível imputar ao corpo a respon-sabilidade pelas ações humanas, o corpo não age por si só, pois se fosse o caso o resultado da ação não seria sequer compreensível, no sentido de que não haveria inteligibilidade, seria uma espécie de puro movimento sem qualquer finalidade. O corpo de Sócrates não estaria ali na prisão, naquele momento, se sua inteligência tivesse outra concepção do que é melhor, se tivesse preferido fugir a enfrentar a punição que lhe foi decreta-da. É a alma que, através de sua inteligência, anima o corpo e lhe impõe o que julga melhor. Nesse sentido, podemos dizer que a inteligência, como atividade anímica, pode ser considerada a causa essencial do agir humano. Sem o corpo, consente Sócrates, a inteligência não poderia executar aquilo que julga melhor, seja ficar ali ou fugir para Mégara, porém, a partir daí, afirmar que o corpo é causa desse agir é, sem dúvida, falar sem precisão, ser negligente com a linguagem. Tal atitude, no extremo, revela, segundo Sócrates, uma incapacidade de discriminar entre o que é realmente causa e aquilo sem o qual a causa não poderia ser causa. O corpo é a condição sine qua non do agir humano, na medida em que o homem é união de um corpo e de uma alma (Fédon 79b1-b2).

É bem verdade que nos diálogos de sua última fase Platão irá desen-volver melhor a concepção de causa concomitante (sunaitia, Timeu, 46d1)5, que na perspectiva cosmológica seria o espaço ou receptáculo (khora e hupodokhê, Timeu 52a8; 49a6) no qual o cosmo como imagem do inteligível encontraria suporte. Tal princípio material que constituiria o próprio cosmo não é nem sensível, nem inteligível, mas admitido pela ne-cessidade com o auxílio de um raciocínio bastardo. De modo análogo, o corpo, conforme vimos, é necessário, como uma causa concomitante, ao agir humano. Se as coisas são dessa maneira, a própria filosofia, enquanto atividade do pensamento humano, se enraíza no corpo. A passagem anali-sada modifica radicalmente a primeira concepção do corpo como um sim-ples obstáculo ao pensamento. Enfim, Sócrates, ao recuperar a unidade corpo–alma que parecia ter sido quebrada, mostra que o corpo é consti-

5 PLatão, Timeu. Texto grego: Platonis Opera, Recognovit Breviqve Adnotatione Critica Instrvxit Ioannes Burnet, Oxonii e Typographeo Clarendoniano, 1902-1954, Tomus IV (Oxford Classical Texts); utilizamos também as seguintes traduções: PLatão, Diálogos — Timeu, Crítias, 2º. Alcebíades, Hípias Menor, trad. Carlos Alberto Nunes, Belém, Univer-sidade Federal do Pará, 1986, v. 11 (Coleção Amazônica. Série Farias Brito); PLaton, Ti-mèe et Critias, trad. inédit., introd. e notas Luc Brisson, Paris, Flammarion, 1999.

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tuinte absolutamente necessário, enquanto o homem é corpo animado. Poderíamos, então, retomar o Fédon e, por meio de algumas passagens, tentar mostrar que o corpo não é em si mesmo nem bom nem mau, mas é a alma, ao se relacionar com ele, que pode atribuir a ele o papel de prisão ou encará-lo como possibilidade para a atividade filosófica.

A relação corpo–alma

Nos momentos iniciais da narrativa de Fédon (Fédon 61b7–62b9), Sócrates, num recado intrigante e ao mesmo tempo ambivalente, aconse-lha Eveno a acompanhar seus passos em direção à morte. Símias estranha o pitoresco conselho, mas Sócrates adverte que é interditado aos homens fazer qualquer violência contra si mesmos. Cebes interfere no diálogo afir-mando que há uma contradição que parece absurda, pois como morrer é desejável e mesmo assim devemos nos manter longe de qualquer violência contra o corpo? Sócrates, então, diz o seguinte:

Formulada dessa maneira, concordou Sócrates, ela pode parecer absurda; no entanto, ela poderia ter um sentido, ao contrário, tal qual a fórmula que se diz nos Mistérios: “Nós, os humanos, somos como obrigados a uma morada (phrourai)6 de onde ninguém deve se desligar nem se evadir”, fórmula que, aos meus olhos, possui gran-deza, mas que não é fácil elucidar perfeitamente. Entretanto, Ce-bes, ela me parece exprimir que os deuses são nossos guardiões e que nós, os humanos, formamos uma parte dos bens que os deuses possuem (Fédon 62b1-b8).

As traduções, em geral, vertem o termo phrourai por prisão, porém o vocábulo é mais amplo e pode ser traduzido tanto por prisão como por lu-gar onde se deve manter a atenção, local onde se deve permanecer alerta, fronteira que se deve guardar, janela de que se deve cuidar, lugar de vigi-lância, velamento, enfim, um lugar no qual se deve estar atento e cauteloso na medida em que se está sendo também supervisionado. Seguindo essa interpretação, o corpo é o lugar a que somos destinados, do qual não deve-

6 Na versão francesa de Monique Dixsaut, a passagem é traduzida por “Nous humaines, sommes comme assignés à residence…”; a expressão tem origem no direito como uma espécie de morada vigiada.

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mos fugir e ao qual devemos estar atentos e vigilantes. O corpo é uma es-pécie de morada vigiada da qual não devemos fugir. Quer dizer: a relação corpo–alma é muito mais complexa do que a concepção ascética que geral-mente se atribui ao Fédon. Se o corpo fosse uma simples prisão, a alma não poderia sequer afastar-se dele para dedicar-se à atividade do pensamento. Prisão é o modo de dizer que a alma pode se aproximar tanto do corpo que ela acabe por perder a consciência de sua diferença em relação ao corpo. A alma pode identificar-se com o corpo até perder-se, acreditando-se, então, só corpo. Por outro lado, a alma pode também, utilizando o próprio corpo, conciliar-se com ele, silenciá-lo, o que resultaria, então, que o corpo, en-quanto morada da alma, tornar-se-ia um lugar propício à principal ativida-de da alma: o pensamento. Se esta interpretação for aceitável, poderemos dizer que o corpo não é mal em si mesmo, nem um bem em si mesmo, mas vai depender da maneira com que a alma se relaciona com ele.

Deste modo, encontraremos muitos trechos do Fédon nos quais o corpo é apresentado como uma espécie de entrave na investigação filosó-fica, porém encontraremos outros, em menor número, nos quais o corpo se revela possibilidade de rememoração, alimento da investigação filosófi-ca. Nesse caso, se há no diálogo — como realmente existe — uma pre-ponderância de passagens que se referem ao corpo enquanto obstáculo, isso se deve ao caráter exortativo do diálogo de Sócrates, que, próximo ao momento de sua morte, parece querer compartilhar com seus discípulos as dificuldades de enfrentar as afecções oriundas do corpo. Retomemos alguns trechos do Fédon para caracterizar os dois tipos de tratamento da-dos ao corpo.

Durante o tempo em que vivemos, a alma é unida ao corpo e o corpo, naturalmente, é fonte das sensações e afecções. Desta forma, a alma tem como tarefa certo afastamento do corpo para poder, introspectiva, pensar:

— É, pois, de início que em tais circunstâncias a evidência se impõe: o filósofo separa sua alma, tanto quanto ele possa, de toda associação com o corpo, de modo que isso o distingue de todos os outros homens?

— Sim [disse Símias]. […]

— Bom. E quando ele se põe a pensar? O corpo é ou não um obstáculo quando perseguindo uma investigação se associa com ele? Eu quero dizer mais ou menos o seguinte: a vista, ou ainda o ouvido, possuem eles para os homens uma verdade qualquer? […] Cada vez, com efeito,

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que ela [a alma] se serve do corpo para tentar examinar qualquer coisa, é evidente que ela é totalmente enganada por ele. […] E, eu suponho, a alma raciocina o mais perfeitamente possível quando não vem lhe perturbar nem audição, nem visão, nem dor, nem prazer algum; quan-do ao contrário ela se concentra, o mais possível, nela mesma e deixa polidamente o corpo passear; quando rompendo o tanto que ela é ca-paz toda associação e todo contato com ele, ela aspira a isso que é?

— Sim, é bem isso (Fédon 64e8–65c10; itálicos nossos).

O corpo, sem dúvida, é a fonte das sensações, que em si mesmas nada possuem de verdade ou exatidão. Quando a alma se aproxima do cor-po e crê nas sensações, ela se aliena dos raciocínios e se perde através dos efeitos das sensações. A alma está ligada ao corpo, entretanto tal ligação pode se encaminhar para uma identificação ou para uma discriminação. O filósofo é aquele que sabe que o corpo lhe constitui, porém acalma esse corpo e se separa, até onde é possível, dos estímulos corporais para realizar sua tarefa de pensamento. Os outros homens se aproximam em exagero do corpo e ao enfrentar a morte estão plenos de temor e de revolta. Assim, conclui Sócrates:

Tu tens lá, continuou Sócrates, um signo de reconhecimento (tekmê-rion): se tu vês um homem se revoltar no momento da morte, é que ele não é amigo do saber (philosophos), mas um qualquer amigo do corpo (philosômatos) (…) (Fédon 68b8–68c1).

Entretanto, as sensações não são exclusivamente empecilhos para alma, mas, ao contrário, podem também se transformar em suportes para os raciocínios da alma. Esse fato fica evidente na passagem em que Sócrates desenvolve o tema da rememoração do igual em si, a igualdade inteligível, para a qual as sensações são imprescindíveis:

É, então, necessário que nós tenhamos tido um saber do igual antes desse tempo em que pela primeira vez a partir da visão dos objetos iguais nós tenhamos refletido que eles aspiram em tudo serem pareci-dos ao igual, mas que eles permanecem deficientes. […] Por outro lado, nós concordamos também sobre o seguinte ponto: essa reflexão não possui outra origem, só é possível concebê-la a partir do ato de ver, tocar, resumindo, de uma percepção qualquer, quero dizer o mesmo a res-peito de todas. […] Então, em verdade, é a partir das sensações que se deve refletir sobre esse fato […] (Fédon 74e9–75b2; itálicos nossos).

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O raciocínio toma as sensações semelhantes para lembrar-se do igual em si; sem as sensações não haveria qualquer possibilidade de rememora-ção. Sintetizando, a alma está associada ao corpo e ela tem a capacidade, desde que é ela que fornece significados para o corpo enquanto fonte das sensações, tanto de acorrentar-se nesse corpo na medida em que seja inca-paz de contê-lo quanto de manter a devida distância dele, separando-se dele, fazendo do corpo seu aliado na busca filosófica. Na seguinte passa-gem do Fédon, Sócrates então explicita os dois modos de a alma interagir com o corpo:

— Mas aquele ponto, nós não já estabelecemos justamente há um bom momento, quando nós dizíamos: todas as vezes que a alma recor-reu ao corpo para examinar alguma coisa, utilizando seja a vista, seja o ouvido, seja qualquer outro sentido (por recorrer ao corpo, eu com-preendo: utilizar um sentido para examinar qualquer coisa) então ela é arrastada pelo corpo na direção disso que jamais se mantém o mes-mo que si, e atormentada pela errância, pela confusão, pela vertigem, como se ela estivesse embriagada, tudo isso porque é com esse gênero de coisas que ela está em contato?

— Sim, absolutamente.

— Quando, ao contrário, é a alma ela mesma, e somente por ela mes-ma, que conduz seu exame, ela se lança para lá, na direção do que é puro e que é sempre, que é imortal e sempre semelhante a si? E como ela é aparentada a essa maneira de ser, ela se mantém sempre em sua companhia, cada vez precisamente em que, se concentrando ela mes-ma nela mesma, isso se torna possível. Acaba sua errância: na proximi-dade desses seres, ela mesma fica sempre semelhante a ela mesma, pois que ela está em seu contato. Esse estado da alma é bem o que se chama o pensamento?

— É muito belo e verdadeiro o que tu dizes, ó Sócrates (Fédon 79c–d).

A alma pode se servir do corpo como critério de verdade, e assim é arrastada na errância própria do corpo, ou, ao contrário, depois de silenciar o corpo, dentro do possível, pode manter-se distanciada, introvertida, en-tregue ao pensamento. Assim, poderemos finalmente retomar, ainda que rapidamente, mais uma vez o Fédon a partir do ponto de vista de quem observa o que acontece no diálogo e examinar a atitude de Sócrates em sua primeira e em sua última fala, junto aos seus discípulos.

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A tarefa filosófica

A primeira intervenção de Sócrates no Fédon é particularmente signi-ficativa. Sócrates reposiciona seu corpo, senta-se na cama, dobra sua per-na e a esfrega; esfrega, longamente, com sua mão a perna agora dobrada. Sócrates experimenta, pelo que ele diz a seguir, uma sensação que sua alma denomina agradável, bem diferente da sensação de sofrimento que experimentava antes quando a perna estava presa à corrente. Em seguida, Sócrates diz:

Que coisa desconcertante, meus amigos, disse ele, parece ser isso que os homens chamam o agradável, e que relação surpreendente que há entre sua natureza e aquilo que julgam ser o seu contrário, o sofrível: no homem, nenhum dos dois consente coexistir com o outro, mas se procura um deles e se o captura é quase obrigado a capturar sempre também o outro, como se sendo dois eles estives-sem agarrados a uma única cabeça (Fédon 60 b1-c1).

Sócrates parece reconhecer, de saída, o hábito humano, demasiado humano, de categorizar as sensações advindas do corpo por seu aspecto agradável e penoso, e de agir, ou melhor, de reagir a essas sensações ape-gando-se ao que chamamos agradável e distanciando-se daquilo que cha-mamos sofrível. Ora, se Sócrates reagisse como a maioria dos homens diante de suas sensações nos momentos finais de sua vida, provavelmente Platão não teria nada de admirável a nos relatar. O grande esforço de Só-crates é realizar uma tarefa do pensamento a partir das sensações para movimentar sua alma na forma mais serena que é possível. Quando Sócra-tes disse que outra concepção de melhor teria lhe levado para Mégara ou para a Beócia, parece-nos, queria dizer que se seu critério de julgamento fosse se livrar daquilo que parece doloroso havia muito teria fugido da pena imposta pelos atenienses. O temor, o medo, a aflição são interpretações da alma diante das sensações. Sócrates, ao contrário, se mantém vigilante, atento, sereno. Sua aparência, diz Fédon, é de um homem feliz (eudaimôn gar moi ho anêr ephaineto, Fédon 58e2). Se nossa interpretação faz senti-do, Sócrates, durante toda a conversação do Fédon, realizou uma tarefa do pensamento, e é isso que pode fazer a filosofia, transformando o corpo que poderia ser um obstáculo à morte digna em um corpo possibilidade dessa mesma morte. Talvez aqui encontremos também um sentido para as últi-

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mas palavras de Sócrates: “Críton, nós devemos um galo a Asclépio. Pague essa dívida, não seja negligente” (Fédon 118a6-7).

Sócrates teria tido êxito, em companhia de seus discípulos, em trans-formar o mau hábito — Asclépio é uma divindade ligada às transformações e à cura — de sofrer diante das sensações que julgamos dolorosas, fazendo delas uma oportunidade de exercitar, pela última vez, o pensamento. Como disse Sócrates no início de sua investigação, para nós mortais que devemos fazer tal viagem convém “uma investigação aprofundada e narrar histórias” (diaskopein te kai muthologein, Fédon 61e1-2), porque “que outra coisa se poderia fazer nesse tempo que resta até o pôr do sol? (ti gar na tis kai poioi allo em tôi mekhri heliou dusmôn khronô)” (Fédon 61e3-4).

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A relação entre a teoria da tripartição da alma e a teoria ético-política platônica

pnpnpn

Maria Dulce Reis1

Introdução

Que relação haveria entre a vida ético-política e o conjunto corpo–al-ma humanos? Por que, em alguns diálogos platônicos, ao pensar sobre a cidade, Platão coloca em questão a alma humana? No presente texto, pre-tendemos expor nossa hipótese de que a teoria da tripartição da alma pos-tulada por Platão na República está na base da concepção platônica de virtude como condição de saúde da cidade, virtude que, de acordo com o Timeu, deve levar em consideração a unidade corpo–alma, sua inter-rela-ção e sua educação.

1 Instituto de Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais — PUCMINAS.

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Maria Dulce Reis

República IV

No contexto da formulação da cidade boa e reta, subjacente à defini-ção de virtude e vício, encontra-se a teoria da “tripartição” da psukhê2. Defi-nidas as quatro virtudes cardeais na cidade, o Sócrates platônico aponta para a necessidade de investigar se a alma possui ou não os mesmos três gêneros/eide que a cidade (435c-d), tendo estabelecido a relação de semelhança en-tre cidade e indivíduo, pois as coisas (cidade e indivíduo) para as quais se pode atribuir um mesmo nome (como a justiça) podem ser ditas homólo-gas3. Assim, as afecções/pathê e as propriedades/hexeis que fazem uma cida-de ser virtuosa ou viciosa devem existir, antes, no indivíduo particular:

Porque eles (eide/ethe) não surgem nela (polis) a partir de outro lugar. Seria, na verdade, ridículo que alguém supusesse que a iras-cibilidade não provém (eggegonenai)4 dos particulares (idiotôn), os quais possuem também essa mesma causa (República 435e).

Tal relação originária justificaria a irascibilidade típica dos habitan-tes da Trácia e da Cítia, o gosto pelo saber que se destaca entre os gre-gos, o amor às riquezas dos fenícios e egípcios. A fim de fundamentar tal pressuposto de que a virtude e o vício na cidade provêm do homem interior, segue-se a investigação a respeito da psukhê humana.

Sócrates coloca o problema da estruturação da psukhê5, que não diz respeito propriamente a uma partição (pois a psukhê é incorpórea), mas à distinção de suas capacidades internas: deve-se perguntar se pra-ticamos as ações com/na6 alma inteira ou se aprendemos/manthanomen,

2 Cf. J. CooPEr, La théorie platonicienne de la motivation humaine, trad. M. Canto-Sper-ber, L. Brisson, Revue philosophique, Paris, 4, 517-543; M. Canto-SPErBEr, Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale, Paris, Presses Universitaires de France, 1996; T. M. roBinSon, Plato’s psychology, Phoenix (Toronto), Toronto University Press, 1970; A. var-GaS, Tres partes del alma en la República, Dianoia, 37 (1997) 37-47. Traduzimos psukhê por “alma” e gene por “gêneros”, no sentido amplo de “conformação”.

3 República 435a, dado a forma/eidos da justiça (435b). Em nossas citações da República, seguiremos a tradução de M. H. da Rocha Pereira em PLatão, República, 7. ed., Lisboa, Fundação Calouste Goubenkian, 1993, com modificações.

4 eggegonénai (ek: provêm de/vem de dentro de; nascem dentro de; têm origem em).5 Denominado “tripartição” da alma pelos intérpretes do texto platônico. No Fedro

(246a) a estrutura triádica da alma é apresentada como sua forma/peri de tês ideas au-tês, e não como sua natureza/phusis, que é a de ser automovente, princípio de movi-mento e vida.

6 República 436a-b. O texto grego permite essas duas formas de tradução, no sentido instrumental ou no locativo: com/na alma; com/em elementos distintos. No decorrer de

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irritamo-nos/thumoumetha e temos apetites/epithumoumen com/em elementos distintos (República 436a-b).

O debate leva à postulação da existência de três fontes de motiva-ção da alma para a ação, com distintas competências: o gênero apetitivo/to epithumetikon lança (República 439b) a alma como um todo para a busca de satisfação de suas disposições (comer, beber e inúmeras ou-tras); o irascível/to thumoeidês leva a alma ao combate, sendo auxiliar da razão (República 440a-b) quando a alma não foi corrompida por uma má criação (República 440e-441a); o racional/to logistikon é capaz de impe-dir a ação de apetites nocivos ao todo (República 439c), a ele compete harmonizar, governar e velar pela alma como um todo (República 441e).

Apetitivo e irascível não são dotados de logos, o que pode levar a alma ao conflito interno (stasis). Por isso é fundamental a educação do racional e do irascível, a partir da música e da ginástica, pelas leis e pelo aprendizado das ciências e, enfim, pela filosofia. Tal educação da alma promove a resistência, o seguimento à lei, o exercício da dialética, o domínio do apetitivo, a ação reta. A teoria da tripartição da alma evi-dencia que não apenas o desconhecimento a respeito do “bem em si” leva o homem ao erro, mas a má educação do apetitivo e do irascível7. Do mesmo modo, não apenas o saber conduz o homem à ação virtuosa, mas a reta educação de todos os gêneros da alma, responsáveis pela conduta do indivíduo.

Assim estabelecidas, as três fontes de motivação humana para a ação — apetitiva, irascível, racional — serão protagonistas da definição das quatro virtudes da alma, cuja posse é necessária ao governante (República) e aos cidadãos (Leis). É importante notarmos que as virtudes na alma se-rão definidas, então, não como um “saber”, mas como um modo de relação saudável entre os três gêneros da psukhê.

todo o seu texto (La théorie platonicienne de la motivation humaine), J. CooPEr ressalta os três gêneros da alma como três fontes de motivação para o agir moral. Ao fazer refe-rência aos gêneros da alma como princípios de ação e como três formas de desejo, M. Canto-SPErBEr (Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale, 1996, 1150) considera o elemento racional como “uma forma de desejo”, no sentido de uma potência de agir racionalmente.

7 Nossa exposição a respeito da educação dos três gêneros da alma na República e nas Leis encontra-se, respectivamente, em M. D. rEiS, Um olhar sobre a psukhê: o logistikón como condição para a ação justa nos livros IV e IX da República de Platão, dissertação (mestrado), Belo Horizonte, UFMG/FAFICH, 2000; e Id., Tripartição e unidade da psukhê no Timeu e nas Leis de Platão, tese (doutorado), Belo Horizonte, UFMG/FAFICH, 2007.

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A coragem não é apenas a virtude do gênero irascível, mas um modo saudável de relação que o irascível estabelece com o racional e o apetitivo: “Ora, nós denominamos um indivíduo corajoso, julgo eu, por essa parte irascível, quando essa parte preserva, em meio de penas e prazeres, o que é transmitido pela razão sobre o que é temível ou não” (República 442b-c).

A sabedoria leva em conta todos os gêneros da alma, pois diz respeito a uma ciência acerca do que é o melhor para cada parte e para o todo:

E denominamo-lo sábio em atenção àquela pequena parte pela qual governa o seu interior e fornece essas instruções, parte essa que pos-sui, por sua vez, a ciência (epistêmê) do que convém a cada um e a todo o conjunto, deles que são três (República 442c).

A temperança surge como uma virtude da alma como um todo (sinto-nia) e não propriamente como uma virtude do apetitivo: “E agora? Não lhe chamamos temperante devido à amizade e sintonia desses elementos, quando o governante e os dois governados concordam em que é o racional que deve governar e não se revoltam contra ele?” (República 442c-d).

Quanto à justiça, para além de uma certa imagem/eidôlon ti dela (o executar cada um aquilo que lhe é próprio por natureza), o debate leva Só-crates a enunciar o que diz respeito à sua verdade/to de ge alethês, isto é, o seu caráter de unidade entre elementos distintos:

O verdadeiro é que a justiça é qualquer coisa deste modo, ao que parece, exceto que não diz respeito à atividade externa do homem, mas à interna, verdadeiramente sobre ele mesmo e sobre as coisas dele mesmo, sem consentir que cada um nele faça coisas diferen-tes, nem que os gêneros na alma façam muitas coisas umas pelas outras, mas, essencialmente, estabelecendo bem as coisas familia-res, governando ele próprio a ele mesmo e se ordenando, se tornan-do amigo de si mesmo, tendo reunido harmoniosamente os que são três, exatamente como se fossem três termos numa proporção mu-sical, o mais baixo, o mais alto e o intermédio, e outros quaisquer que acaso existam no meio, todos ele ligando e fazendo, de muitos, um, temperante e harmonioso; e assim, enfim, agir […]8 (Repúbli-ca 443c-d; itálicos nossos).

8 Tradução de Jacyntho Lins Brandão, apud M. D. rEiS, Tripartição e unidade da psukhê no Timeu e nas Leis de Platão, 113.

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Portanto, a justiça é uma atividade interna que o homem exerce sobre ele mesmo/peri heauton e para ele mesmo/ta eautou, e que con-siste não apenas em impedir que cada elemento faça algo diferente da-quilo que lhe seja próprio por natureza, mas também em estabelecer bem o que possui de mais familiar (ou seja, sua própria alma), gover-nando a si próprio/arkanta auton autou, tornando-se amigo de si mes-mo, reunindo hierarquicamente os três gêneros da alma como em uma proporção musical, ligando-os, de modo a fazer, de diferentes gêneros, uma unidade temperante e harmoniosa. A sequência do texto fala-nos que tal práxis interna é a condição para que a alma escolha o melhor no sentido da ação ético-política. Assim, só após ter cuidado dessa posse/hexin, que o homem cuide das aquisições (do exterior à sua alma).

É a teoria da tripartição da alma que fundamenta a concepção de virtude como constituição política interna a ser conquistada por meio da educação de cada um dos três gêneros da psukhê. A virtude é com-parada a uma espécie de “saúde, beleza e bem-estar da alma”9 e, sua ausência à doença, “uma enfermidade, feiúra e debilidade” da alma. O homem particular/idiotes será virtuoso (ou vicioso) naquilo mesmo e da mesma maneira que ocorre à cidade10.

O oposto da posse da virtude/aretê, ou seja, a posse do vício/kakia, es-tado de injustiça interna, é igualmente compreendido como um modo de relação entre os três gêneros da alma. Trata-se de um estado de conflito interno, que pode chegar à sublevação de uma parte da alma contra o todo/stasis (República 444b), resultando em injustiça, libertinagem, covardia, ig-norância e, de um modo geral, toda a maldade.

As várias formas do vício, na alma e na cidade, são investigadas em República VIII-IX. No entanto, para que possamos passar à reflexão so-bre o Timeu, não vamos aqui discutir as almas do timocrata, do oligar-

9 República 444d-e. W. jaEGEr (Paideia, 2. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1989) destaca que Platão faz uma aplicação de conceitos de origem médica à sua filosofia, como os de kata phusin e para phusin e o de hexis, ou como os de plenitude e vazio (759, nota 202, 758, 968, respectivamente); assim também utilizaria termos médicos, tais como eíde psukhês e thumoeidês (757, nota 190), buscando compreender a natureza da alma. Ao ligar as raízes da virtude à natureza, Platão retira a justiça do terreno ambíguo da convenção.

10 República 441c-d. Assim como ocorreu em 435e, Platão trata do homem individual/idio-tês e não apenas daqueles que participavam diretamente da vida política na polis gre-ga; isto nos leva a interpretar que Platão nos fala do homem no sentido universal.

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ca, do democrata, do tirano11. Basta a compreensão de que tais almas e cidades são consideradas dotadas de desequilíbrio, de injustiça interna. Por exemplo, a alma do democrata, amante da igualdade, ao tratar to-dos os apetites como iguais e entregar-se a cada um deles “cultivando-os por igual” (República 561b), promove uma vida carente de ordem/taxis e de necessidade/anankê, isenta de liberdade (República 561d). A alma do tirano, amigo do ganho, encontra-se numa ausência de leis que con-duz a atos perversos: “eros vive à maneira de um tirano na sua alma” (República 575a; também 576b). Escravo de si mesmo, o tirano é capaz de escravizar a pátria (República 575d; também 577c). A teoria da tri-partição da alma permite-nos compreender que a liberdade no plano maior da cidade encontra sua condição de possibilidade na alma livre (virtuosa) do filósofo.

Timeu

Que relação o Timeu possui com a teoria ético-política platônica? Como a estrutura triádica da psukhê humana e a relação corpo–alma, apre-sentadas nesse texto, encontram-se ligadas à saúde (e à doença) do ho-mem e da cidade?

O que há de político no Timeu é mencionado no início do diálogo. Crítias propõe a Sócrates (Timeu 17c-19c3) que a constituição política debatida entre eles e outros amigos no dia anterior12 seja agora (no Timeu) “transferida à realidade”/epi talethês deuro (Timeu 26c-d), supondo ser tal cidade a Atenas antiga, vencedora da guerra contra Atlântida13. Para imple-mentar a cidade boa e reta deve-se buscar as melhores condições para sua

11 O que realizamos em M. D. rEiS, Um olhar sobre a psukhê…, 115-127.12 Sobre tal constituição, ver L. BriSSon em sua tradução do Timeu (1992, 10); J. CroPSEy,

The whole as setting for the man: on Plato’s Timaeus, Interpretation, N.Y., 17 (1989-90) 165-191; e J. M. riSt, Plato says that we have tripartite souls. If he is right, what can we do about it?, in Sophies Maietores (Chercheur de Sagesse), Mélanges J. Pépin, Paris, Institut d’Etudes Augustiniennes, 1992, 103-124. Em nossas citações do Timeu, seguire-mos a tradução de Brisson (Phédre, 1992), com modificações.

13 Como percebe L. Brisson (Phédre, 1992), “[…] Platão busca fundar aqui [no Timeu], ‘na natureza’, a constituição ideal descrita na República, mostrando como a Atenas antiga, mais conforme a este modelo que a Atenas atual, respondia melhor aos fins de um ser humano que encontra seu lugar em um universo organizado de maneira a lhe permitir realizar esses fins” (10).

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realização, investigando-se os fundamentos do kosmos e o lugar do homem nesse todo.

As formas inteligíveis, o demiurgo, a alma cósmica, o ser, o receptá-culo, a geração, as causas errante e inteligente são os princípios causais da existência do kosmos. Deixaremos de discuti-los, em virtude dos limites deste texto, para abordarmos apenas aqueles princípios que dizem respeito à relação entre a alma humana triádica e o corpo humano. Vejamos as se-guintes passagens que tratam desse ponto:

Tendo recebido o princípio imortal do vivente mortal (athanaton arkhên thnetou zôou) e imitando o demiurgo, eles [os “deuses jovens”] retira-ram do mundo porções de fogo e de terra, de água e de ar… Com to-das essas porções, eles fabricaram para cada [vivente mortal] um só corpo e nesse corpo submisso a um fluxo e a um refluxo perpétuo eles inseriram os períodos da alma imortal. […] Esse vivente movia-se, mas é sem nenhuma ordem que ele avançava ao acaso e sem razão” (Timeu 42e7-43b2; itálicos nossos).

[…] [os deuses] após terem recebido o princípio imortal da alma (arkhên psukhês athanaton), envolveram-no em um corpo mortal e de-ram a ele, por veículo, o corpo todo inteiro; além disso, eles construí-ram nesse corpo um outro gênero de alma, que é mortal (thneton) e que comporta, nele mesmo, afecções terríveis e inevitáveis […] (Timeu 69c5-d1; itálicos nossos).

[…] temendo poluir o divino, eles aproveitaram que o constrangimen-to exercido pela necessidade não era total, para estabelecer à parte, em uma outra morada, construída no corpo, o mortal, após tê-lo sepa-rado por um istmo e por uma fronteira edificadas entre a cabeça e o peito, colocando, entre os dois, o pescoço, à guisa de separação (Ti-meu 69d; itálicos nossos).

O que da alma participa da coragem e do ânimo, que é amigo da vitória, eles estabeleceram mais próximo da cabeça, entre o diafrag-ma14 e o pescoço, para que ouvisse a razão e pudesse estar em co-municação com ela a fim de conter, pela força, a espécie dos ape-tites, todas as vezes que estes últimos não desejassem, de modo

14 Apesar de o termo grego ser tôn phrenôn e não diaphragma (que possui uma única ocorrência em 70a2), seguimos a opção de traduzir aquele também por diafragma, para correlacionar com o trecho anterior, como também o fazem alguns tradutores, como Ri-vaud (1956) e Nunes (1986).

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algum, ser persuadidos consentidamente pela razão, a partir de sua acrópole. […] Por outro lado, tudo o que, na alma, tem apetite de comida e bebida e que se sustenta como necessidade através da natureza do corpo, eles estabeleceram na região do corpo que está entre o diafragma e o limite do umbigo. Em toda essa região, eles fabricaram uma espécie de nutridor para a alimentação do corpo; e o prenderam ali como uma cria selvagem que é necessário nutrir bem, se um dia devesse existir uma raça de mortais (thneton genos) […] (Timeu 70a2-7; 70d7-71a; itálicos nossos).

[…] ele fabricou a medula. Depois, ele implantou nela as diferen-tes espécies (gene) de almas. […] E o que da medula, como uma gleba, deveria receber, nela mesma, a semente divina, ele a fez como figura esférica e nomeou esta parte de encéfalo […] (Timeu 73c; itálicos nossos).

Consideramos que tais passagens do Timeu são decisivas para a com-preensão da relação corpo–alma na cosmologia platônica e de sua aretê, pois é dito que aquilo que há de mortal na psukhê humana é constituído “no” próprio corpo, e o que há de imortal e que independe do corpo para existir, o “princípio imortal”, este é “envolvido”, “inserido”, “recebido” “no” corpo. Portanto, os deuses estabelecem no corpo tanto o que há de divino na alma como o que há de mortal, já que a resistência oferecida pela ne-cessidade não é total. Disso decorre que a relação corpo–alma humana deve ser reconhecida como uma relação de unidade, pois no homem vivo não há encéfalo “sem” a “semente divina”, não há região torácica “sem” o irascível, não há baixo ventre “sem” o apetitivo. É importante também ob-servar que a raça humana é caracterizada como “mortal” (Timeu 41b-c; 42e-43b; 73a-c), o que indica uma diferença de estatuto entre os três gê-neros da alma humana (mortais, encarnados) e o “princípio imortal da alma humana” (imortal).

O Timeu reafirma a teoria da “tripartição” da alma, mas não utiliza a mesma terminologia da República para referir-se aos três princípios da alma humana encarnada (o apetitivo, o irascível, o racional). Por isso, há autores que identificam o que há de imortal na alma humana com o logistikon15, ou

15 Conforme R. W. haLL (Psukhê as differentiated unity in the philosophy of Plato, Phrone-sis, Assen, 8 [1963] 63-82), “o Timeu sustenta que somente a parte racional da alma (lo-gistikon) é imortal” (63); e parece ser a posição de H. kELSEn (A ilusão da justiça, trad. Sérgio Tellaroli, São Paulo, Martins Fontes, 1998): “está claro que apenas a alma da ca-

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seja, com a capacidade calculativa, reflexiva, deliberativa presente no ho-mem encarnado, postulada em República IV, o que colocaria em questão a referida hipótese de unidade. Ora, é o próprio texto platônico que nos per-mite perceber que: 1) a raça humana é encarnada e mortal; 2) o logistikon da República diz respeito à alma encarnada (alma do filósofo, do democra-ta, do tirano etc.); 3) na condição de “envolvido no encéfalo”, o princípio imortal da alma humana sofre limitações em suas potencialidades cogniti-vas (a inicial ausência de razão, o esquecimento das formas inteligíveis). Assim, podemos inferir que as operações racionais da alma encarnada (operações do logistikon) são distintas e débeis em relação às do princípio imortal da alma humana (constitutivamente dotado de virtude e da verda-deira epistêmê16) e que devemos compreender o logistikon como manifesta-ção (limitada) do princípio imortal da alma humana na psukhê encarnada.

Estamos defendendo, portanto, que no homem vivo não há racional, irascível e apetitivo senão “no” corpo, isto é, que há um composto corpo–alma tripartite17. Sendo assim, se a República enfatiza a virtude na alma triádica como condição de saúde da cidade (embora não desconsiderando a educação do corpo), o Timeu deixa claro que a saúde do homem e da ci-dade deve levar em conta a virtude da unidade triádica corpo–alma.

As passagens do Timeu que narram a fabricação de órgãos corpóreos (como o coração, os pulmões, o fígado, os intestinos, a medula, Timeu 70a-73d) em relação direta com os três gêneros da alma, bem como aque-las que tratam das doenças da psukhê reforçam a nossa hipótese de que há uma unidade corpo–alma triádica que deve ser reconhecida, como tal, como condição de saúde e virtude do homem e da cidade.

O entrelaçamento entre o funcionamento desses órgãos e os três gêneros da alma encontra-se implícito em tais passagens. Segundo a

beça é a alma propriamente dita, à qual Platão se refere como um ser imortal” (397); bem como a de J. M. riSt (Plato says that we have tripartite souls. If he is right, what can we do about it?): “nós temos as mesmas três partes […] mas somente a razão é imortal e semelhante a deus” (118); e a de T. roBinSon (Plato’s psychology, Phoenix, 1970): “a única parte da alma humana que é imortal é a razão” (160, itálico nosso), embora Robin-son chame o “princípio imortal” de “razão imortal” e de “inteligência pura” (106).

16 Timeu 41d s. Tais propriedades decorrem da composição dos dois círculos do princípio imortal da alma humana, o que não discutiremos neste texto.

17 Já no Fédon, e mesmo no Fedro, Platão fala do estado de união corpo–alma no homem vivo (Fédon 65c-d, 66e, 67a, 80a, 81c; Fedro 250c-d, o corpo como signo/sêma da alma encarnada).

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narrativa, o coração18 estaria capacitado a fazer a guarda das ordens da razão. Diante da ameaça de algum perigo externo ou interno, “quan-do a razão alerta que algo injusto/adikos ocorre nos membros, seja por ações externas ou por apetites internos” (Timeu 70b), o coração tem o furor da cólera despertado e “através de todos os estreitos vasos” (siste-ma circulatório) ele transmite ao corpo as ordens e ameaças da razão, de modo a conter o fator desencadeante do desequilíbrio19. Temos aqui a possibilidade de contenção do apetitivo pela ação de órgãos corpóreos que compõem a região do irascível.

O pulmão encontra-se também na região do irascível e agiria refrescan-do os batimentos do coração quando este se alterasse (Timeu 70d), apazi-guando-o. Por esse motivo, o pulmão foi feito esponjoso, mole e desprovido de sangue. Por suas cavidades, ele recebe o ar, além de líquidos, refrescando e amortecendo o coração que, assim, fatigando menos, estaria em condições de auxiliar os raciocínios, com ânimo (ibid.). Consideramos que o pulmão auxilia, portanto, o acordo entre irascível e racional e o governo deste últi-mo, colaborando para o reequilíbrio do coração e do todo corpo–alma.

O fígado é constituído na região de “nutrição” do corpo (Timeu 70e2-3), isto é, entre o diafragma e o limite do umbigo, a região do apetiti-

18 Sobre qual conhecimento Platão pôde ter da medicina não há certeza. A relação entre Platão e a medicina tem sido objeto de estudo desde a Antiguidade, como nos lembra Ivan friaS (A relação corpo–alma no Timeu em função do binômio saúde–doença, Ca-dernos de Atas da ANPOF, Rio de Janeiro, 1 [2001] 111-116), referindo-se a Galeno e seu Sobre as doutrinas de Hipócrates e Platão. No Timeu, Platão teria feito, segundo Frias, uma síntese das doutrinas médicas de Alcmeon de Crotona, Empédocles de Agri-gento e do autor do tratado hipocrático Do regime. Haveria relação também entre o tratado hipocrático Da natureza do homem (que descreve os humores produzidos pelo corpo humano: bile, sangue, fleuma, muco) e as funções que Platão atribui aos quatro elementos (água, terra, fogo e ar) no corpo humano, no Timeu. A justa proporção entre esses elementos relaciona-se à saúde e seu desequilíbrio à doença. A teoria humoral presente nesse tratado hipocrático combinaria as doutrinas de Alcmeon e de Empédo-cles. Para Laurent ayaChE (Est-il Vraiment Question d’Art Médical dans le Timée?, in In-terpreting the Timaeus-Critias. Proceedings of the IV Symposium Platonicum (congrès), Sankt Augustin, Verlag, 1997, 55-63), no Timeu “pode-se observar a influência de doutri-nas médicas de origens diversas”. A autora refere-se não apenas a Empédocles, Alcmeon e “certos autores da coleção hipocrática”, mas também a Filolau de Crotona, Filiston de Locres e Diógenes de Apolônia. Todas essas influências dizem respeito à fi-siologia contida no Timeu e às “doenças do corpo”.

19 Sobre os sistemas circulatório, respiratório, humoral, digestivo, indicamos os estudos de Catherine jouBaud, Le corps humain dans la philosophie platonicienne: étude à partir du Timée, pref. Luc Brisson, Paris, Vrin, 1991 (Bibl. d’histoire de la philosophie), e de Ivan friaS, Doença do corpo, doença da alma: medicina e filosofia na Grécia clássica, São Paulo, Loyola, 2005.

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vo. Relaciona-se ao sistema humoral, sendo capaz de produzir humores como a chamada fleuma, bem como a bile (a doce e a amarga), que esta-rão diretamente ligados à produção dos sentimentos de medo, alegria ou tristeza, de sintomas como náuseas e da adivinhação/manteiai. Por meio de imagens/eidôlon e simulacros/phantasmaton (Timeu 71a-b), essas afecções ou sentimentos serão despertados pela ação do nous sobre o apetitivo20, penalizando-o ou recompensando-o21.

Quanto aos intestinos, eles teriam sido “enrolados muitas vezes sobre si mesmos para que os alimentos não os atravessassem muito depressa” (Timeu 72e), o que leva o organismo a evitar a gula e o desaparecimento da raça mortal antes de sua completude/teleutôi (Timeu 73a). Evitando a intemperança, os deuses colocam certos limites aos órgãos digestivos, de modo que o apetitivo não conduza à destruição o todo corpo–alma mortal. Assim, fígado e intestinos, situados na região do apetitivo, colaboram com a contenção deste e com o equilíbrio do todo.

A interação e a comunicação corpo–alma são dotadas de finalidade, isto é, “para que o melhor/to beltiston possa ter hegemonia sobre o todo” (Timeu 70b9-c1). Essa colaboração não se encontra explicitada em outros diálogos. O corpo colabora com a alma como um todo, viabilizando o go-verno do melhor (o racional).

Deve-se perceber, portanto, ainda que não dito explicitamente por Ti-meu, que o coração e o pulmão relacionam-se aos fins do gênero irascível da alma, o fígado e os intestinos servem aos fins do gênero apetitivo, e o encéfalo aos fins do racional.

O corpo dotado de alma é justo e há uma sabedoria referente ao todo, que rege a unidade triádica corpo–alma. Há uma finalidade benéfica (te-leologia) dos elementos corpóreos22 e dos três gêneros da alma. O texto do

20 Daí as características do fígado: “Ele o fez espesso, liso e brilhante e contendo doçura e amargume, para que nele se produza, como em um espelho que recebe impressões e que dá a ver imagens, a potência dos pensamentos/dianoematon vindos do intelecto/nou” (71b1-5).

21 Para uma discussão mais detalhada a respeito, ver rEiS, Tripartição e unidade da psukhê…, 114-118. Sobre a importância da bile na psicofisiologia de Platão, ver friaS, Doença do corpo, doença da alma, 116.

22 Como percebe C. StEEL, The Moral Purpose of the Human Body. A Reading of Timaeus 69-72, Phronesis, Leiden, Koninklijke Brill N.V., XLVI, 2 (2001) 105-128; a finalidade de promover “uma vida de virtude e sabedoria”. Cf. também Thomas johanSEn, Body, Soul, and Tripartition in Plato’s Timaeus, Oxford Studies in Ancient Philosophy, 19 (2000) 87-111.

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Timeu evidencia uma relação saudável de colaboração entre os órgãos corpóreos entre si e entre esses órgãos e a alma.

Essa unidade dinâmica alma–corpo “triádica” recebe a ação da forma-ção e da educação, que pode ser boa, deficiente ou mesmo má e contribui de modo significativo para um futuro adulto virtuoso ou vicioso, saudável ou em desequilíbrio.

Que fatores levariam a alma humana ao desequilíbrio e como afeta-riam a unidade corpo–alma? As doenças da psukhê pressupõem a intensa ligação desta com o corpo: “As doenças da alma que acontecem através/dia de disposições do corpo surgem da seguinte maneira: é preciso admitir que a doença da alma é desrazão/anoian” (Timeu 86b1-3)23. Elas são definidas no Timeu como toda “afecção” que comporta uma destas duas espécies de desrazão: a loucura/mania e a ignorância/amathia (86b3), e prazeres e so-frimentos excessivos são considerados as mais graves doenças da alma24.

Contrariamente à leitura de alguns autores, entendemos que Platão não identifica o fator corpóreo como princípio das doenças da alma, pois apresenta os fatores “educação mal dirigida e alguma disposição viciosa do organismo” (Timeu 86d7-e3), bem como “maus discursos e maus regimes políticos a afetar os homens cujas constituições são más” (Timeu 87a7-b4) como as fontes de desequilíbrio e de desmedida25. A ênfase é dada, portan-to, à má educação da alma e à influência de um ambiente perverso.

O todo corpo–alma adoece conjuntamente. Excessos advindos da psukhê encarnada desencadeiam sintomas físicos e psíquicos e comporta-

23 “kai ta men peri to sôma nosemata tautei sumbainei gignomena, ta de peri psukhên dia sômatos hexin têide. Noson men de psukhês anoian sunkhoreteon…”

24 friaS (Doença do corpo, doença da alma, 83, 156) sugere que é Platão quem introduz o “conceito de doença da alma”, no Timeu. Sobre a relação entre essas doenças da alma e a teoria da tripartição da alma, ver nossa discussão em rEiS, Tripartição e unidade da psukhê…, 122-141. friaS (Doença do corpo, doença da alma, 130-137) não as associa à “tripartição” da alma. Isto também ocorre em outras obras de autores significativos, como roBinSon (Plato’s psychology, Phoenix, 1970, 107-110) e BriSSon em sua tradução do Timeu (415-457).

25 O fator somático é ressaltado como determinante nas doenças da alma expostas no Ti-meu em: CroPSEy, The whole as setting for the man: on Plato’s Timaeus, 189; e friaS, A relação corpo–alma no Timeu em função do binômio saúde–doença, 116. Contraria-mente, chamam a atenção para o fator educativo, para uma ação da alma sobre o cor-po, e para ambos, respectivamente: R. F. StaLLEy, Punishment and the physiology of the Timaeus, Classical Quarterly, Oxford, 46 (1996) 257-370; BriSSon, Le Même et l’Autre dans la structure ontologique du Timée de Platon, 454; e roBinSon, Plato’s psychology, 107-110.

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mentos significativos. O excesso de prazer ou de sofrimento, segundo Ti-meu 86b7-d7, pode conduzir o todo corpo–alma à produção de diferentes sintomas: o homem não é capaz de ver nem de ouvir corretamente; é pou-co capaz de recorrer ao raciocínio; torna-se louco; tem a alma doente e sem discernimento; pode levar à falta de controle sobre os apetites afrodi-síacos ou à busca excessiva de prazer; vivendo em meio a uma multidão de sofrimentos e prazeres extremos. Particularmente um excesso de sofrimen-to, conforme Timeu 86e3-87a7, pode resultar em vários outros sintomas, como esquecimento ou dificuldade de aprender, audácia ou covardia, hu-mor difícil ou tristeza, afecções que seriam produzidas pelos humores da pituitária, afetando uma ou outra das regiões da alma.

Em seguida a essa reflexão, Timeu considera (87c-88b) que a doença da alma ocorre quando há uma dissimetria entre alma e corpo, isto é, quan-do a alma é “mais forte” ou “mais fraca” que o corpo, gerando sintomas fí-sicos e psíquicos.

Quando o corpo é mais forte que a alma, o homem privilegia apetites corpóreos como os de nutrição, os sintomas afetam mais as capacidades do racional, que, pela falta da nutrição, do exercício, da educação adequa-dos, fica mais débil que o corpo26. Fica-se sujeito à doença mais grave, o acreditar saber o que não se sabe, a amathia. Quando a alma é mais forte que o corpo, os sintomas são ardor, disposição a disputas, além de sinto-mas corpóreos, e certos aprendizados (que Timeu não especifica) “consu-miriam” a própria alma.

Podemos sustentar, agora, uma série de hipóteses: 1) Tanto no ho-mem saudável como no homem em desequilíbrio, corpo e alma limitam-se e afetam-se mutuamente, por tratar-se de uma unidade dinâmica no ho-mem vivo; 2) não há apetitivo, irascível e racional (logistikon) sem os ór-gãos corpóreos a eles coligados; 3) no que diz respeito à estrutura da psukhê, não há “partes”, trata-se de uma unidade diferenciada, em que os três gêneros constituem-se, comunicam-se, adoecem, reequilibram-se conjuntamente; 4) não há logistikon sem que haja o apetitivo e o irascível;

26 A ausência de uma justa proporção entre alma e corpo é o que BriSSon (Le Même et l’Autre dans la structure ontologique du Timée de Platon, 449) caracteriza como mal positivo absoluto, fonte do erro e do mal moral. Mas parece-nos evidente que tal fonte diz respeito também à ausência de uma justa proporção (desequilíbrio) entre os três gêneros da alma, o que ocorre quando eles não são corretamente educados.

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5) virtude e vício são posses do todo alma–corpo; 6) não há uma atribuição das doenças da alma à própria natureza dos três gêneros da alma; 7) não há uma origem única que determine as doenças da alma; 8) não há um dua-lismo no sentido de uma oposição entre corpo e alma, e sim a presença de uma “unidade alma–corpo” e o finalismo de sua composição, que é a reali-zação do melhor.

Quanto ao desequilíbrio interno e à desproporção na relação alma–corpo, Timeu prescreve, respectivamente, prevenção e terapias.

O tratamento proposto para as dissimetrias (quando a alma é mais forte que o corpo e quando o corpo é mais forte que a alma) é “não mover a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma, a fim de que, cada um se preservando, fiquem equilibrados e saudáveis” (Timeu 88b5-c1). Todos aqueles que, como o matemático, trabalham com o pensamento/dianoia devem compensar esse esforço da alma com a ginástica para o corpo. Os que esforçam mais o corpo devem dar à alma “movimentos compensató-rios” através da música e da filosofia. Portanto, o tratamento é cuidar das partes/mere tendo em vista o bem, a beleza, a harmonia do todo (imitando a “nutridora e mãe do todo”, sempre em movimento)27, o que pressupõe a unidade corpo–alma. Para aquelas doenças da alma motivadas pelo exces-so de prazer ou de sofrimento, Platão não fala propriamente de “tratamen-to”, mas indica a necessidade de sua prevenção através da educação da alma, do buscar a virtude e fugir do vício: “na medida do possível, é preciso se esforçar, através da formação, dos exercícios e dos ensinamentos, a fugir do vício e conquistar o seu contrário” (Timeu 87b7-9). Daí a importância da educação para a virtude, de evitar os maus discursos e os maus gover-nos — no plano maior da cidade e no plano interno da alma.

Os princípios que regem a relação corpo–alma devem ser considera-dos para a saúde do homem e da cidade. Na conclusão do Timeu, é dito terem sido narrados os princípios a respeito daquilo que deve ser conduzi-do e daquilo que conduz — do ser vivo corpo e alma — a ser observados para se viver conforme a razão/kata logon (89d5). Havendo três gêneros de alma/tria trikhêi psukhês que receberam três moradas e movimentos pró-

27 Nas Leis (V, VII) Platão propõe a educação correta do corpo e da alma para a aquisição da virtude, as leis tendo função educativa e terapêutica, remédio para a alma em de-sequilíbrio (cf. rEiS, Tripartição e unidade da psukhê…, cap. 3 e 4). Não vamos discutir tal posição neste momento, pois sua extensão e sua profundidade exigem um artigo à parte.

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prios, “é preciso cuidar para que tenham movimentos simétricos uns aos outros” (Timeu 90a2). Cada um dos três gêneros da psukhê deve ser ali-mentado devidamente, evitando-se que um deles fique débil, a fim de que “o divino em nós” governe (Timeu 90a4), isto é, para a virtude do todo.

Conclusão

Tanto no Timeu como na República, Platão identifica a justiça à saúde, e a injustiça à doença. Uma situação de injustiça “na alma” signifi-ca doença da alma e ausência de virtude na cidade; a justiça na alma significa saúde, medida, equilíbrio dela e condição de saúde da cidade, de uma vida conforme ao logos.

A unidade corpo–alma humana é constituída de modo saudável, em dinâmicas inter-relação e colaboração, fornecendo as condições necessárias para a vida sensível da raça humana mortal. Mas a harmo-nia ou o desequilíbrio desse todo, a posse do vício ou da virtude, tanto na alma como na cidade, estão em permanente processo de constru-ção pelos homens — a formação de desejos, sentimentos e opiniões que guiarão o agir ético-político. O homem pode não se sentir respon-sabilizado por uma má disposição corpórea, mas não tem como fugir das consequências, para a cidade e para si próprio, de uma má educa-ção da alma.

A teoria da tripartição da alma postulada na República conduz a uma concepção original de virtude da alma como um modo de relação harmôni-ca entre seus três gêneros, posse essencial ao governante para a conquista da virtude no âmbito da cidade. No Timeu, a saúde do homem e da cidade deve pressupor a virtude da unidade triádica “corpo–alma”. Estes se in-fluenciam mutuamente, seja na saúde ou na doença, porque o racional, o irascível e o apetitivo são constituídos “no” corpo, porque tais gêneros pres-supõem encarnação. A alma (existente “no” corpo) deseja, combate, racio-cina, entra em conflito, delibera. Assim, alma–corpo têm apetites, comba-tem, ordenam, adoecem, reequilibram-se. Tal unidade do todo corpo–alma, sua inter-relação e sua educação para a virtude devem ser reconhecidas como parte significativa das condições de realização da melhor cidade.

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Introdução

No Timeu, Platão define a saúde como a justa medida do organismo consigo mesmo e com aquilo que lhe é externo. Além disso, distingue e descreve duas categorias de doenças que acometem o homem: as doenças corpóreas e as psíquicas2. Essa descrição parece sugerir que Platão susten-ta que as doenças que se originam a partir do corpo e se manifestam nele não afetam a alma, assim como as doenças psíquicas são exclusivamente mentais. Um pouco mais adiante, o filósofo assinala que a proporção e a desproporção existentes entre corpo e alma é que geram a saúde e o pior tipo de doença para o homem, respectivamente (Timeu 87c-d).

Apesar de Platão declarar que os piores estados doentios para o ho-mem decorrem da desproporção entre os dois elementos que o constituem,

1 Mestranda em Filosofia na UFMG. Este trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacio-nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPq; <[email protected]>.

2 Timeu 82a-87a. PLaton, Timée-Critias, trad. Luc Brisson, Paris, Flammarion, 2001. Para a leitura do diálogo usaremos essa tradução. Para as citações, salvo indicação contrária, usaremos a tradução brasileira de Carlos Alberto Nunes, com o intuito de ampliar e faci-litar o acesso ao texto.

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interessa-nos demonstrar que, segundo o filósofo, mesmo naquilo que concerne às doenças que se manifestam sobretudo no corpo a alma está implicada, assim como as doenças psíquicas implicam o acometimento do corpo. Nosso intuito consiste, primeiramente, em demonstrar em que me-dida as doenças descritas como corpóreas afetam a alma, assim como aquelas psíquicas afetam o corpo. Em segundo lugar, em evitar o risco de incorrer em leituras e interpretações equivocadas a respeito da compreen-são da relação entre o corpo e a alma que muitas vezes atribuem a Platão a defesa de uma posição dualista em face daquele problema nos âmbitos ético e antropológico.

Para levar a cabo nosso intuito, devemos inicialmente esclarecer, em-bora sucintamente, o significado do termo pathos nesse diálogo, a fim de compreendermos aquilo que é responsável por afetar o corpo, a alma e tam-bém identificarmos quando estes dois elementos se afetam mutuamente.

Os modos de afetar o corpo e a alma

Por pathos, que optamos por traduzir por afecção, por julgarmos que esse termo designa com mais propriedade o que há nele de ativo, entende-mos tudo aquilo que conduz à ação. No entanto, é necessário precisar o amplo leque de sentidos que pathos possui na filosofia platônica.

J.-F. Pradeau3, examinando as ocorrências do termo, sustenta que para Platão tudo aquilo que existe possui uma aptidão a produzir efeitos sobre si mesmo ou em outra coisa, e a padecer, a capacidade de ser afeta-do por outra coisa. Essa aptidão designa o modo de ser de algo4. B. Cen-trone5 sustenta que em Platão quase tudo o que pertence ao mundo da genesis está no âmbito por excelência do pathos e do padecer.

O exame do Timeu revelou que o termo pathos aí figura com os se-guintes sentidos: comoção, algo que produz um choque no corpo (Timeu 62b), algo que o toca, que se imprime sobre ele (Timeu 63d); conjunto de

3 J. P. PradEau, Platon, avant l’ érection de la passion, in B. BESniEr, P-F. morEau, L. rEnauLt, Les passions antiques et médiévales. Paris, Presses Universitaires de France, 2003, 15-28.

4 J. P. PradEau, Platon, avant l’ érection de la passion.5 B. CEntronE, Pathos e ousia nei primi dialoghi di Platone, Elenchos, ano XVI, fasc. I

(1995) 131-152.

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afecções correspondentes a partes específicas do corpo, tais como a língua (Timeu 66c), a visão (Timeu 77e), o processo de expiração (Timeu 78e); causa (Timeu 79a); envelhecimento, degradação do corpo (Timeu 81d); processo (Timeu 83d), mudança, modificação (Timeu 52d); impressões comuns a todo corpo, às quais Platão se refere também com o termo pa-thêmata (Timeu 65b); padecimento (Timeu 37b, 57a), dores e prazeres (Timeu 64e); e, finalmente, toda afecção que culmina na loucura e na ig-norância (Timeu 86b) ou na doença (Timeu 86b).

Assim, do exame das ocorrências acima evidenciadas depreende-se que tudo aquilo que tem a capacidade de mobilizar alma ou corpo, intro-duzindo neles uma alteração ou não, é uma forma de pathos6. Do nosso exame do Timeu e considerando o significado assumido pelo termo pathos, é possível distinguir as diferentes formas em que o corpo e a alma são afe-tados e os diferentes agentes que produzem as afecções psicofísicas.

O corpo pode ser afetado de dois modos: externamente, pela realida-de física que o circunda ou por outros membros que o constituem, ou in-ternamente, pela alma. Os agentes externos são dotados da capacidade de afetar o corpo e, conforme o tipo de ação que exercem, aparecem diferen-tes formas de afecções que se encontram associadas aos diferentes proces-sos mecânicos e fisiológicos envolvidos.

Todo objeto externo é constituído de partículas que, emitidas, se cho-cam com o corpo, gerando, com essa colisão, uma impressão/pathêma, uma espécie de impulso interno, um movimento, que no quadro do processo da percepção sensível pode ser transmitido ou não à alma. Aquelas partículas entram em contato com o corpo em seu conjunto ou com alguma parte es-pecífica dele, afetando mais facilmente alguns órgãos que outros, e, em virtude disto, alguns se prestam melhor a transmitir à alma as impressões/pathêmata, condição sine qua non para que ocorra a percepção/aisthêsis7.

Como encontramos também na tradição hipocrática8, as condições climáticas e as substâncias que entram no corpo por meio da alimenta-

6 Conforme CEntronE, em Platão, aquilo que é afetado não é necessariamente modifica-do: padecer não implica mudança ou transformação daquilo que é afetado. Logo, tanto a realidade sensível quanto o ser podem padecer sem ser alterados.

7 A teoria da percepção sensível a que nos referimos neste parágrafo se encontra siste-

matizada no Timeu na passagem 61c-69a.8 H. F. CairuS, W. a. riBEiro Jr., Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença, Rio de Janeiro,

Ed. Fiocruz, 2005, 169-171. Conforme os tratados Da natureza do homem e Ares, águas e lugares.

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ção podem também afetá-lo9, como se depreende do exame da seguinte passagem:

Como o corpo se aquece ou esfria por dentro com as substâncias que entram nele, ou se resseca ou umedece sob a influência do exterior, e sofre os efeitos desse duplo movimento, é vencido e perece, quando se entrega a tal agitação um corpo em estado de repouso (Timeu 88d).

O corpo pode ainda ser afetado pelo que sucede à alma: em Timeu 70a-b Platão descreve o processo pelo qual o coração se inflama de cólera em função do alerta que a razão emite de que algo injusto ocorre nos mem-bros. O coração e os demais órgãos dos sentidos aparecem, pois, como instrumentos da alma para a execução de um fim que lhe é específico: o governo do homem em seu todo. Mas neste mesmo caso Platão demonstra também que não só a alma afeta o corpo, mas os seus próprios membros podem afetar-se uns aos outros: o pulmão aplaca a ardência do coração, refrescando-o com ar e líquidos (Timeu 70c).

Mas o corpo pode também ser afetado sem que seja afetada a alma. A esse propósito, vale lembrar o caso dos órgãos estáveis — ossos, cabelos, unhas —, que se limitam a receber as impressões sem, contudo, transmiti-las. Nesse caso, as impressões se extinguem no corpo e, uma vez que não são transmitidas à alma, deixa de haver percepção (Timeu 64b-c).

A alma é afetada de dois modos: ou pelo corpo ou internamente, pela atuação de um de seus gêneros. Como já havíamos assinalado acima, o corpo, ao ser afetado pela realidade externa, produz estímulos/pathêmata, movimentos10 que serão transmitidos ou não à alma, por meio do sangue, aos seus diferentes gêneros. Ao final desse processo, tem-se a percepção sensível. Em Timeu 86e-87a, Platão descreve o processo pelo qual os hu-mores interferem nos movimentos da alma.

Os diferentes gêneros de alma podem se afetar: o gênero irascível é afetado pela razão quando acata os seus comandos (Timeu 70a), a razão é afetada pelo gênero apetitivo quando os seus pensamentos se tornam mortais (Timeu 90b).

9 Ver também Timeu 33a e 81a.10 BriSSon, em nota ao seu texto Perception Sensible et raison dans le Timée (In: Interpre-

ting the Timaeus–Critias. Proceedings of the IV Symposium Platonicum [congres], Sankt Augustin, Verlag, 1997, 307-316 [311]), afirma que esses movimentos podem ser de duas espécies: movimentos rotativos, que se transmitem por progressão, ou o movimento da circulação sanguínea. Ele privilegia a segunda forma.

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Doenças do corpo e da alma: a relação corpo–alma

Depois de termos examinado em que medida corpo e alma são afeta-dos, afetam e se afetam mutuamente, encontramo-nos, pois, em condição de examinar e verificar nossa tese de que as doenças descritas como cor-póreas e aquelas descritas como psíquicas afetam o homem em seu todo (corpo–alma). No entanto, é ainda necessário examinar outro argumento de Platão que contribui para explicitar o caráter da relação entre o corpo e a alma. O filósofo assim descreve a relação entre esses dois elementos:

Imitando-o [Demiurgo] nesse particular, depois de receberem o prin-cípio imortal da alma, aprestaram em torno dela uma sede mortal de forma globosa, a que deram como veículo todo o corpo, no qual cons-truíram outra espécie de alma, de natureza mortal, cheia de paixões terríveis e fatais […] (Timeu 69c-d).

A concepção de natureza humana que nos apresenta Platão no Timeu é a de um sunanphoteron, isto é, no homem corpo e alma estão estreitamen-te unidos: o corpo como veículo da alma está a seu serviço; além disso, a parte mortal da alma é construída no corpo. A preposição no evidencia bem o caráter de união entre os dois elementos. Cada um dos membros corpóreos desenvolve uma função específica tendo em vista as atividades próprias da alma. O fígado, por exemplo, é usado pela alma racional tendo em vista seu propósito de conter os excessos da alma apetitiva (Timeu 71a-c).

Alguns estudiosos reconheceram haver no Timeu uma estrita rela-ção entre o corpo e a alma, e afirmam que o corpo é dotado de um cará-ter colaboracionista. Entre eles identificamos C.Stul11, Cornford12 (1937) e C. Joubaud13 (1991), nos quais nos apoiamos.

Em seu artigo, C. Steel assinala a colaboração que existe entre o corpo e a alma. Segundo ele, o corpo no Timeu é dotado de um objetivo moral. Em que consistiria esse objetivo? Para Steel, a descrição fisioló-gica do corpo visa evidenciar que ele e seus órgãos são necessários para

11 C. StEEL, The Moral Purpose of the Human Body. A Reading of Timaeus 69-72, Phrone-sis, Leiden, Koninklijke Brill N.V., XLVI, 2 (2001) 105-128.

12 F. M. Cornford, Plato’s cosmology: the Timaeus of Plato, London, Routledge & Kegan Paul, 1937.

13 C. jouBaud, Le corps humain dans la philosophie platonicienne. Étude à partir du Ti-mée, Paris, Vrin, 1991.

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que a alma realize suas funções específicas: sem a boca, sistema bioló-gico pelo qual ingerimos alimentos, seria impossível expressar o discurso concebido pela razão. A descrição do mecanismo fisiológico visa evi-denciar a finalidade ética do corpo, com o intuito de responder ao por-quê de a nossa constituição física ser como é14. Posição semelhante pa-rece ser a de Cornford, que sustenta que as estruturas e funções do corpo não são descritas em razão de uma abordagem fisiológica, mas sim em função de representar a conduta moral do corpo, haja vista que muito pouco foi dito a respeito do comportamento necessário para a manutenção da vida física15. C. Joubaud reconhece também que no Ti-meu há uma compreensão do corpo como instrumento da alma16. As posições desses autores nos parecem pertinentes na medida em que se apoiam numa interpretação monista do homem.

Outros estudiosos, por sua vez, parecem sustentar uma posição di-vergente: eles afirmam que no Timeu Platão teria nuançado sua tese dualista em face de sua concepção de natureza humana. Esse parece ser o caso de G. Reale, que demonstra que os membros e órgãos do corpo foram criados pelos deuses da maneira mais perfeita possível, de modo a servirem à alma17. Embora o autor identifique no diálogo a exis-tência da relação entre o corpo e a alma, ele sugere que essa é uma das novidades do Timeu. Discordamos de G. Reale, pois julgamos que no Fédon já encontramos postulada a positividade da relação corpo–alma, isto é, ali, em 80a, Platão não só afirma que cabe à alma governar o cor-po, mas sugere também que cabe a ela geri-lo bem.

Uma vez que esclarecemos a tese de que o corpo é instrumento da alma, encontramo-nos em condição de examinar como as doenças acome-tem corpo e alma. São três os tipos de doenças que acometem o corpo quando sua ordem natural é destruída: 1) as causadas pelo desequilíbrio dos quatro elementos constituintes do corpo: fogo, terra, ar e água (Timeu 82a); 2) as associadas à corrupção ou à má formação dos tecidos do corpo, tais como a medula, a carne, os ossos, os nervos (Timeu 82 c-d); 3) as liga-das ao ar, à fleuma e a bile (Timeu 84d).

14 C. StEEL, The Moral Purpose of the Human Body. A Reading of Timaeus 69-72.15 F. M. Cornford, Plato’s cosmology: the Timaeus of Plato, 282.16 C. jouBaud, Le corps humain dans la philosophie platonicienne, 19.17 G. rEaLE, Corpo, alma e saúde: o conceito de homem de Homero a Platão, trad. Marce-

lo Perine, São Paulo, Paulus, 2002, 181.

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Apesar de Platão distinguir três tipos específicos de doença, é o dese-quilíbrio entre os quatro elementos que se encontra na base de todos esses tipos de moléstias de origem corporal. Assim, procuraremos demonstrar em que medida o excesso ou a carência dos quatro elementos concorrem para corrupção das demais partes do corpo.

Em relação ao primeiro grupo de doenças corpóreas, é o excesso ou a carência dos quatro elementos constitutivos do corpo que se encontram na origem das doenças. O excesso, por exemplo, produz as febres, como esclarece a esse propósito Platão:

Sempre que a causa das perturbações somáticas é o excesso de fogo, este produz inflamações e febres contínuas. O excesso de ar provoca febres cotidianas, e o de água, febres terçãs por ser mais morosa a água do que o ar e o fogo. O excesso de terra, o mais lento dos quatro elementos, exige um período mais longo para purificar-se, e produz febres quartãs, difíceis de combater (Timeu 86b).

A carência daqueles elementos, como esclarece Brisson, apresenta uma complexidade maior, pois afeta o bom desempenho dos aparelhos funcionais do corpo humano, a saber: a carência de fogo afeta o sistema nutritivo; a de ar, o sistema respiratório; a de água, o sistema humoral; a de terra, o sistema histológico. Visto que devemos respeitar os limites que nos impõe este ensaio, naquilo que concerne às doenças que se manifestam principalmente no corpo, analisaremos especificamente os prejuízos que oferecem para a saúde do homem a carência de fogo e a terceira espécie de doença.

Antes de demonstrarmos como se efetua o estado de morbidez do corpo devido à falta de fogo, faz-se necessário perguntar: o que institui a carência e o excesso desses elementos? H. W. Miller esclarece, a esse pro-pósito, que o constante ataque dos elementos externos gera sobre o corpo um contínuo estado de kenôsis, isto é, de evacuação, e de apokhôrosis, afas-tamento dos elementos de seu lugar natural. Ele mostra também que esse esvaziamento do corpo deve ser compensado pelo processo contrário, a saber, a repleção que se realiza através da nutrição18. Que agentes externos seriam esses? Aqueles que mencionamos anteriormente: as condições cli-

18 H. W. miLLEr, The aetiology of disease in Plato’s Timaeus, Transactions and Proceedings of the Americam Philological Association, 93 (1962) 175-187 (177).

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máticas e as substâncias provenientes da própria alimentação, entre ou-tros, todos que têm o poder de afetar o corpo.

A carência de fogo afeta o sistema nutritivo, cujo funcionamento de-pende do sangue que, dotado de uma função distributiva, circula por todo o corpo. O sangue comporta os quatro elementos que constituem o corpo e toda a realidade física. Quando os triângulos dos elementos constitutivos do corpo são jovens, eles estão unidos, sendo os triângulos do fogo dotados da capacidade de controlar e cortar os triângulos das substâncias com as quais o indivíduo se nutre. Quando esses triângulos não dividem os triân-gulos das substâncias advindas de fora, mas pelo contrário são divididos por eles, há duas consequências: o envelhecimento, quando a inversão desse processo acontece segundo a natureza, ou a doença, quando esse processo advém contra a natureza (Timeu 81b-e).

As doenças que decorrem da falta de algum dos elementos consti-tuintes do corpo parecem se enquadrar na perspectiva das doenças que acometem exclusivamente o corpo; mas quando consideramos a terceira espécie de doença, de tríplice origem, associada ao ar, à fleuma e à bile, constatamos que nos encontramos no quadro das doenças corpóreas que acometem a alma. Como isso acontece?

A obstrução do pulmão por afluxo de mucosidade acarreta danos para o corpo, a saber: com o pulmão obstruído não há passagem de ar; se o ar não circula, as partes do corpo que não são arejadas apodrecem, e aque-las que recebem ar em excesso, devido à violência do ar que penetra nas veias, levam à dissolução. É daí que surgem doenças como o tétano e o epistótono (Timeu 84d-85a). No entanto, as consequências danosas da obstrução do pulmão não se aplicam somente ao corpo, mas também ao bom funcionamento da alma. Como já havíamos esclarecido, o corpo no Timeu é um instrumento a serviço da alma; além disso, em nosso exame daquilo que afeta o corpo e a alma, constatamos que o corpo sofre os efei-tos da ação da alma sobre ele. Em Timeu 70c-d Platão afirma que o pul-mão tem, entre outras funções, a de refrescar o coração todas as vezes que os seus batimentos se elevam em demasia devido à exacerbação da cólera, afecção da alma irascível. Assim, se alguma doença afeta o pulmão, ele fica impedido de assistir à alma.

A fleuma misturada à bile negra gera a doença denominada mal sa-grado (Timeu 85a). A mistura dos dois humores penetra nas revoluções divinas da cabeça, promovendo perturbações de vulto. Brisson, em uma

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nota de sua tradução do Timeu, esclarece que a imagem das revoluções representa uma clara alusão aos círculos da alma humana: “[…] e compu-seram com esses elementos um corpo único para cada indivíduo, confi-nando os circuitos da alma imortal no fluxo e refluxo da maré do corpo”. Disto podemos depreender que, apesar do mal sagrado decorrer da indevi-da mistura de dois humores presentes no corpo, tal moléstia não afeta so-mente o corpo, mas também a alma.

Em relação à bile tem-se que esse humor gera muitas doenças inflama-tórias. Quando a bile se mistura com o sangue e retira dele a ordem natural das fibras, ocorrem graves doenças. A esse propósito, esclarece Platão:

Estas [as fibras] estão espalhadas no sangue, para conservar na devida proporção a tenuidade e espessura muito própria, e evitar que pela ação do calor se escoe através dos poros do corpo ou se torne pesado e pouco móvel por excesso de densidade, o que dificultaria sua circu-lação nas veias. Esse equilíbrio é alcançado pela composição natural das fibras. Até mesmo depois da morte, quando o sangue esfria, basta juntar as fibras para que o resto do sangue se escoe; mas, se as fibras continuam esparsas, em pouco tempo coagulam o sangue, por efeito do frio das imediações. Sendo essa a ação das fibras no sangue, a bile, que vai buscar sua origem no sangue velho, passa, agora, liquefeita, da carne para o sangue, quando, de início, quente e úmida, penetra nele em pequena quantidade, para logo congelar-se sob a influência das fibras, e assim privada, com violência, de seu fogo, causa arrepios e calafrio interior. Quando corre no sangue em maior quantidade, domi-na as fibras com seu próprio calor, e com a efervescência natural, ba-ralha de todo a disposição das fibras (Timeu 85c-e).

Nesse caso, se a bile mantém até o fim sua superioridade, ela penetra na medula e queima e dissolve os laços que unem corpo e alma, pois foi na medula que se fixaram esses laços (Timeu 73b). Novamente, estamos diante de uma situação em que uma alteração que teve lugar no corpo tem implicações que vão além dele, uma vez que acomete também a alma: en-contramo-nos, portanto, no âmbito de uma concepção monista do homem, que integra corpo e alma.

A esse propósito, a posição de M. Vegetti parece concorrer com a nossa. O autor afirma que no Timeu tem-se uma acentuada integração psicofísica: de um lado, a alma é somatizada, isto é, há uma distribuição territorial de seus gêneros nas diversas partes do corpo; por outro lado, o

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corpo é psicologizado, ele não é mais uma matéria opaca e hostil no qual a alma se encontra enterrada, mas uma estrutura dinâmica que se encontra a serviço dela19.

T. Robinson, por sua vez, sustenta que, ainda que possamos encon-trar um pequeno ensaio sobre as doenças somatopsíquicas no Timeu, isto é, doenças que se originam em virtude de condições corpóreas, e doenças psicossomáticas, Platão considera corpo e alma como entidades paralelas, cada uma com seus estados de doença, saúde e cura minimamente defini-dos. O autor ainda acrescenta que, se Platão supunha contato entre o cor-po e a alma na época da elaboração do Timeu, ele nada declarou a esse respeito20. Discordamos de T. Robinson, pois julgamos que na filosofia pla-tônica, tanto no Fédon, diálogo que se tornou paradigmático para a com-preensão do problema corpo–alma, como no Timeu, não há uma defesa da tese dualista, conforme a concepção que se depreende da leitura desse último diálogo em relação ao papel instrumentalista que o corpo exerce.

Quanto às doenças da alma, Platão afirma que elas se desenvolvem a partir de certas condições do corpo, sendo elas de duas espécies: a lou-cura/manía e a ignorância/amathía, derivadas ambas da desrazão (Timeu 86b). No entanto, pretendemos mostrar que é necessário estar atento às palavras de Platão: quando o filósofo afirma que certas doenças decorrem de certa condição corpórea, o filósofo não está responsabilizando o corpo pela desordem que é causada na alma, mas está afirmando que essas doen-ças surgem na relação do corpo com a alma, isto é, quando a alma encar-na, já que é necessário que ela encarne para que o homem venha a existir (Timeu 48a). Assim, concordamos com F. M. Cornford21, que, analisando as doenças psíquicas, observa que a desrazão equivale ao estado no qual a razão divina (nous) não está exercitando o devido controle sobre os demais gêneros da alma. Esse estado deriva não de uma condição corpórea, mas sim de uma desordem causada pela encarnação no círculo do mesmo e do outro: quando a alma, inserida no devir, se encontra sujeita às afecções que surgem de sua união com o corpo, seus círculos ficam perturbados

19 M. vEGEtti, Anima e corpo, in Id., Introduzione alle culture antiche II — Il sapere degli antichi, Torino, Bollati Boringhieri, 1992, 229-245 (231).

20 T. M. roBinSon, As características definidoras do dualismo alma–corpo nos escritos de Platão, trad. Roberto Bolzani Filho, Humanitas, São Paulo, Publicações/USP, n. 2 (1998) 335-356 (350).

21 F. M. Cornford, Plato’s cosmology: the Timaeus of Plato, 346-347.

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porque ela não consegue controlá-los, sendo possível retomar o controle deles somente muito tempo depois, quando diminui a corrente do cresci-mento e tem lugar uma correta educação.

As doenças causadas por uma má alimentação, por sua vez, parecem decorrer de uma intemperança da alma. Em Timeu 70d-e Platão atribui à parte apetitiva da alma a função nutritiva e a responsabilidade de preservar a natureza do corpo. Em seguida, ele acrescenta que os deuses previram que seríamos intemperantes no comer e no beber, ultrapassando a medida do necessário, e que, por consequência dessa desmedida, seríamos acome-tidos por doenças (Timeu 72e).

A intemperança se caracteriza pela falta da medida, porém a quem deve ser atribuída essa desmedida: ao corpo ou a alma? O exame atento das passagens que tratam da questão demonstra que, se é à alma apetitiva que cabe preservar o corpo e se muitas vezes comemos para além da ne-cessidade, é a ela que devem ser atribuídos os males decorridos de uma alimentação inadequada.

Prazeres e dores excessivos, assim como preguiça mental e desânimo são doenças psíquicas que parecem decorrer de certa condição do corpo.

Platão reconhece que prazeres e dores excessivos constituem as mais graves doenças da alma, sendo a intemperança sexual uma espécie desse tipo de doença. O indivíduo acometido pelo excesso dessas afecções corre um grande risco: cegar-se por elas, já que ele “não ouve nem vê direito”. Platão compara esse estado de cegueira à condição do indivíduo tomado pela fúria, dominado pela alma irascível: ele não pensa direito, visto o con-trole que o thumos exerce sobre ele. Platão reconhece que a origem da in-temperança sexual se encontra no excesso de semente acumulado na me-dula, mas, em seguida, ele adverte que esse estado patológico não deve ser tomado por uma disposição voluntariamente viciosa. Segundo o filósofo, o vício decorre da concorrência simultânea de dois fatores, a saber, a má disposição do organismo e a má educação (Timeu 86b-e).

As dores fortes, outra indisposição da alma, surgem por intermédio do corpo quando a bile e a fleuma, percorrendo-o, misturam seus vapores com os movimentos da alma, e dependendo da região da alma afetada produz-se morosidade, desalento, audácia, timidez, esquecimento ou pre-guiça mental.

As doenças psíquicas decorrem, pois, em alguns casos, de uma dispo-sição do corpo. Estabeleçamos agora algumas considerações a seu respei-

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to. O Timeu é o diálogo no qual Platão descreve suas especulações de ca-ráter físico e mecânico e atribui um papel determinante à necessidade. Devemos ser cautelosos quanto à sua afirmação de que as doenças psíqui-cas têm o corpo por origem. Não se trata de uma atribuição negativa àqui-lo que é corpóreo, mas parece-nos que Platão pretende evidenciar o por-quê de as coisas serem como são: o texto grego demonstra que o corpo é um instrumento por onde bile e fleuma circulam e que ele próprio não é o princípio que leva a alma a adoecer. Existe uma necessidade de as coisas serem assim, e é essa mesma necessidade que o filósofo evoca em tantos momentos do diálogo:

Tudo isso, assim constituído primitivamente segundo a necessidade, o Demiurgo tirou da mais bela e melhor das coisas que nascem, quando criou a divindade mais perfeita e que se basta a si mesma. Servia-se de causas dessa ordem como de auxiliares, enquanto ele próprio deixava bem organizadas as coisas sujeitas ao nascimento. Daí precisarmos distinguir duas espécies de causas: a necessária e a divina (Timeu 68e-69a).

Nossos esforços têm se concentrado na tentativa de explicitar em que medida Platão demonstra que algumas doenças corpóreas afetam a alma, assim como algumas das moléstias psíquicas implicam o corpo. As pala-vras finais do diálogo corroboram essa interpretação. Platão torna explícita a posição que nos parece pertinente sustentar: “[…] no que diz respeito à saúde e às doenças, à virtude e aos vícios, não há proporção nem despro-porção de maior importância do que a existente entre a alma e o corpo” (Timeu 87d).

Platão observa que uma alma forte demais e agitada por paixões vio-lentas abala o corpo e o enche de doenças, recomendando que, neste caso, o homem se dedique à ginástica. Da mesma maneira, uma alma dotada de pouca inteligência e avessa aos estudos, num corpo forte, gera a ignorân-cia, a pior das doenças psíquicas (Timeu 87e-88b). Neste caso, essa alma deve dedicar-se ao estudo da música ou da filosofia.

Compreendemos assim a descrição de Platão: “[…] só há um recur-so: não acionar a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma, para que, defendendo-se um do outro, consigam equilibrar-se e conservar a saúde” (Timeu 88b).

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O propósito deste texto será mostrar como Aristóteles, ao elaborar uma complexa rede de metáforas médicas, visa esclarecer suas reflexões éticas e políticas — dando prosseguimento, assim, a uma tradição inaugu-rada por Platão —, procurando desta forma tornar mais compreensível aos seus ouvintes e leitores uma realidade não imediatamente evidente. Ora, é um fato já atestado pela pesquisa desde o século XIX, e reconfirmado no século passado, que Aristóteles possuía um amplo conhecimento do cor-pus hippocraticum, conhecimento que pode ser comprovado pelo estudo do paralelismo conceitual e léxico de diversas passagens de sua obra com passagens análogas de vários dos opúsculos que compõem essa célebre compilação de tratados médicos2. Jean Lombard, em sua recente obra que trata da relação de Aristóteles com a medicina, chega mesmo a afirmar que “o aristotelismo estabelece o primeiro sistema organizado de metáfo-

1 Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG.2 Cf. Franz PoSChEnriEdEr, Die naturwissenschaftlichen Schriften des Aristoteles in ihrem

Verhältnis zu den Büchern der hippokratischen Sammlung, Bamberg, 1887, e Simon ByL, Recherches sur les grandes traités biologiques d’Aristote: sources écrites et préjuges, Louvain, 1975.

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ras médicas do Ocidente”3. Evidentemente, o uso de metáforas médicas para elucidar questões éticas e políticas já havia sido amplamente empre-gado por Platão em vários de seus diálogos, mas somente com Aristóteles, segundo Lombard, essas metáforas organizam-se de modo a formar uma verdadeira rede de explicações fundadas em analogias bem estabelecidas entre as realidades menos evidentes da alma, em sua busca por felicidade individual ou por justiça social, e o domínio mais conhecido e mais bem mapeado do campo de atuação do médico, isto é, sua relação com a saúde e a doença, com os modos de tratamento e prevenção, enfim, com o corpo mesmo do paciente enfermo.

Nunca é demais relembrar ao leitor que a familiaridade de Aristóteles com a medicina estava alicerçada não apenas em sua extensa e fecunda curiosidade intelectual, mas também em sua própria vida. Se a medicina desempenhou um papel tão central no pensamento de Aristóteles como a pesquisa especializada atesta e a leitura atenta de seus textos facilmente comprova, seguramente isso se deveu ao fato de que a medicina constituía um componente fundamental de seu universo mental desde a sua mais tenra infância, pois seu pai, Nicômaco, era o médico pessoal do rei da Macedônia. Mais significativo ainda nesse sentido é o fato de que o ramo paterno de sua família era de linhagem asclepíada, ou seja, de acordo com a tradição, eram descendentes diretos de Asclépio, filho de Apolo e deus da medicina. Por conseguinte, antes mesmo de o jovem macedônio viajar para Atenas a fim de ingressar na Academia para estudar filosofia, lá per-manecendo por quase vinte anos, muitos dos quais em companhia de Pla-tão, ele já havia tido um significativo contato pessoal com o saber médico de seu tempo e seguramente ouvido muitos relatos sobre doenças, prog-nósticos e curas.

O saber médico no mundo grego atravessou várias etapas, e o reco-nhecimento gradual da medicina até chegar a estabelecer-se como ciência está refletido de algum modo nas obras do Estagirita, como se pode com-provar especialmente graças a uma passagem da Política na qual ele se re-fere explicitamente a três figuras que o profissional de saúde pode assumir: “médico pode ser o perito, o mestre e, em terceiro lugar, o autodidata na arte [médica] (iatros d’ ho te demiourgos kai ho arkhitektonikos kai tritos ho

3 J. LomBard, Aristote et la médicine. Le fait et la cause, Paris, L’Harmattan, 2004, 89.

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pepaideumenos peri tên tekhnen)” (Política III 11, 1282a3-4)4. Demiourgos é

um termo que aparece nos textos do corpus hippocraticum para diferenciar o praticante da medicina, reconhecido socialmente como tal, do mero idio-tês, o leigo que desconhece a arte médica. Ora, há um reconhecimento político e social do médico, assim como existe um reconhecimento análo-go de um artesão competente em qualquer outra arte. Parece, contudo, que Aristóteles não aceitava o fato de que qualquer praticante da medici-na, mesmo um perito, fosse capaz de compreender os arcanos mesmos de sua arte. Para isso, seria preciso que ele fosse capaz de dominá-la e de en-siná-la. Isso porque o verdadeiro médico seria apenas aquele que fosse ca-paz de encontrar a razão mesma de uma doença, isto é, ele deveria poder identificar o porquê, ou seja, a causa de uma enfermidade, e isso não pode ser realizado por mero acaso, do contrário este perito não poderia realmen-te apresentar-se como um mestre em sua arte. Isso já era afirmado com clareza pelo breve mas importante tratado hipocrático Perì téchnes (cf. § 6), um tratado seguramente conhecido por Aristóteles. O termo que o Estagi-rita utiliza nessa passagem da Política para distinguir esse profissional que possui não só uma competência de ordem prática, mas também um co-nhecimento teórico é o adjetivo substantivado arkhitektonikos, termo que não aparece nos textos médicos, mas cujo sentido não é de modo algum estranho a certos tratados da coleção que, como se sabe, tinham a finalida-de de difundir para o grande público o saber médico, buscando assim asse-gurar ao profissional da medicina um reconhecimento social na sociedade grega. Aristóteles usa o adjetivo arkhitektonikos em sua obra sempre que quer diferenciar um domínio em que algo ou alguém possui a maestria so-bre outras coisas ou pessoas. Deste modo, por exemplo, ele pode dizer que uma arte, ciência ou capacidade é arkhitektonikê em relação a outra subal-terna (cf. Metafísicaa V 1, 1013a14 e Ética a Nicômaco I 1, 1094a14,27)

5. Na Física, há uma passagem bastante eloquente (cf. Física II 1, 194b2)

6 que corrobora ainda mais o princípio dessa distinção ao contrapor uma arte

4 ariStótELES, Política, Vega, trad. e notas António Campelo Amaral, Carlos de Carvalho Gomes, Lisboa, 1998 (edição bilíngue); ariStotELiS, Opera edidit Academia Regia Borus-sica, Berlim, Reimer, 1831-1870, 5 v.

5 ariStotELE, Etica Nicomachea. Trad., introd. e notas de Carlo Natali. Roma/Bari: Laterza (con testo a fronte), 1999; ariStotELiS, Opera edidit Academia Regia Borussica.

6 ariStotLE, Physics. A Revised Text with Introduction and Commentary, ed. W. D. Ross, Oxford, Clarendon Press, 1936.

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dita chroméne, isto é, utilitária, a outra denominada arkhitektonikê, isto é, diretiva. Obviamente, essa prevalência de uma sobre a outra se baseia no conhecimento dos arkhai, isto é, dos princípios ou fundamentos universais nos quais se alicerçam uma verdadeira arte ou ciência e que são desconhe-cidos de um perito, mesmo que este possua ampla experiência. Por fim, Aristóteles alude ainda nessa passagem da Política ao pepaideumenos, ou seja, ao homem instruído, culto, o autodidata que possui um saber teórico geral sobre a medicina. Ora, basta recordarmo-nos da importância que a medicina de então tinha para a cultura geral, a egkúklios paidéia, tão pres-tigiada na Grécia clássica, para compreendermos melhor essa referência7.

Em outras passagens das obras de Aristóteles, encontra-se às vezes uma superposição entre o papel do médico e o do físico, isto é, o do estu-dioso da natureza, bem como entre suas respectivas competências. Há duas ocorrências que, embora sucintas, demonstram sua importância por aparecerem precisamente no começo do primeiro estudo e nas linhas fi-nais do último tratado que compõem juntamente com outros pequenos textos os assim denominados Parva naturalia. No início do De sensu — que abre os pequenos estudos conhecidos pela denominação latina Parva naturalia e que dá prosseguimento ao De anima — o Estagirita afirma:

[…] conceber os princípios primeiros tanto da saúde quanto da doença é <próprio> do estudioso da natureza, pois nem a saúde nem a doença surgem nos animais privados de vida. Por isso, quase todos os estudiosos da natureza e entre os médicos os que mais fi-losoficamente se dedicam à sua arte terminam os primeiros por chegar à medicina e os segundos por começar seu estudo médico a partir da natureza8 (De sensu 1, 436a17–437b2)

9.

Nas últimas linhas do derradeiro tratado desse compêndio (cf. De vit. 5, 480b21-30), lemos uma passagem quase idêntica a essa que acabamos de citar, na qual, após constatar que estudiosos da natureza também podem

7 Sobre a importância da medicina para a cultura da época, cf. o ensaio de W. jaEGEr, A medicina grega considerada como paideia, reproduzido em sua clássica obra Paideia.

8 “phusikou de kai peri hugieias kai nosou tas protas idein arkhas, oute gar hugieian oute noson hoion te gignesthai tois esteremenois zoês. Dio skhedon tôn peri phuseos hoi pleistoi kai tôn iatrôn hoi philosophoteros tên tekhnen metiontes, hoi mên teleutôsin eis ta peri iatrikês, hoi d’ek tôn phuseos arkhontai [peri tês iatrikês].”

9 ariStotELE, L’anima e il corpo. Parva naturalia. Introd., trad. e notas Andrea L. Carbone. Milano, Bompiani, 2002 (testi a fronte).

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falar sobre a saúde e a doença, Aristóteles nos adverte de que apesar de os médicos argutos e escrupulosos acabarem por investigar a natureza e de os es-tudiosos da natureza terminarem por estudar os princípios da medicina, “é preciso não ignorar em que diferem e em que sua capacidade de observa-ção é diferente (hê de diapherousi kai hê diapheronta theorousin, ou dei lan-thanei)” (De vit. 5, 480b24-25). Atentar para essa diferença, como veremos a seguir, significa não apenas diferenciar o médico do estudioso da natureza, mas principalmente repensar a relação entre o saber prático e o teórico le-vando em consideração o duplo critério do que é mais conhecido em si e do que é mais conhecido para nós, critério que Aristóteles elabora a fim de melhor proceder a essa difícil anatomia não das vísceras de um corpo orgâ-nico, atividade que ele e seus sequazes realizaram exaustivamente em rela-ção aos animais, mas sim dos saberes intestinos que presidem quer a vida moral do indivíduo, quer o corpo social e político de uma cidade10.

Para Aristóteles, pensar a especificidade do médico em sua diferença com o do estudioso da natureza significou, portanto, de um ponto de vista filosófico, ter de refletir sobre a relação entre diversos tipos de saber. Com o objetivo de vislumbrar a particularidade de cada ente, nada mais impor-tante, segundo o Estagirita, do que se perguntar pelo telos inerente a cada um deles. Em um passo do De caelo no qual critica as explicações dadas por seus predecessores às mudanças dos elementos últimos da natureza, encontramos de modo sintético e incisivo uma resposta ao problema aci-ma mencionado da diferença entre o médico e o estudioso da natureza: “O fim da ciência produtiva é a obra, o do estudioso da natureza, aquilo que aparece sempre e de modo decisivo para a sensação (telos de tês men poie-tikês epistêmês to ergon, tês de phusikês to phainomenon aei kurios kata tên aisthêsin)” (De caelo III 7, 306a16-17)

11. Mas deveria a medicina ser pensada então como uma mera ciência produtiva? O médico produziria a saúde no doente tal como o construtor fabrica uma casa? Antes de tentar responder a esta pergunta, detenhamo-nos, ainda que muito brevemente, na classifi-cação das ciências proposta por Aristóteles.

10 Sobre a importância da dissecação na obra de Aristóteles como um todo, e não apenas nas obras biológicas, consultar o excelente livro de Mario vEGEtti, Il coltello e lo stilo. Le origini della scienza occidentale. Milano, Il Saggiatore, 1996.

11 ariStotE, Traité du ciel. Trad. Catherine Dalimier, Pierre Pellegrin. Paris, Flammarion, 2004 (bilíngue).

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Segundo as passagens mais célebres da Metafísica, contidas nos livros Eta e Kapa (cf. Metafísica VI 1, 1025b18-28 e XI 7, 1063b36–1064a19), nas quais propõe e analisa uma classificação das ciências, Aristóteles distin-gue, como se sabe, três grandes grupos de ciências: as ciências teoréticas, as produtivas e as práticas. No grupo das primeiras, aparece a física, que se diferencia da matemática e da filosofia, ambas igualmente teoréticas pelo fato de que essas se ocupam do que é imóvel por abstração, caso das matemáticas, ou do que é imóvel em si mesmo, caso da filosofia primeira. Em outras palavras: os números e figuras que podem, mentalmente, ser separados da matéria ou os motores imóveis que existem efetivamente se-parados da matéria. A classificação dessas ciências não é de modo algum simples e supomos que a medicina, embora não apareça oficialmente como um item dessa classificação, tenha desempenhado um importante papel no estabelecimento mesmo desse critério de classificação — mas não nos será possível neste texto investigar essa hipótese mais a fundo. Imaginemos apenas onde se inseriria a medicina nessa classificação e como ela se diferenciaria, de acordo com essa classificação, da física. Para isso, precisamos saber primeiramente qual exatamente o lugar ocupado pela física nessa classificação. A física, nos ensina Aristóteles, é uma ciên-cia que trata de um gênero particular de entes, a saber, dos que possuem em si mesmos o princípio de movimento e repouso, e por essa razão ela não pode ser, em sentido estrito, nem uma ciência produtiva, que por defi-nição possui seu princípio (intelecto, arte ou uma capacidade) em um ou-tro — mais precisamente naquele que produz a obra —, nem uma ciência prática, pois o princípio desta reside igualmente no agente da ação, em outras palavras, naquele que delibera e decide sobre a ação a ser executa-da. Exemplificando: o médico não pode produzir a saúde como se esta fosse algo extrínseco ao corpo do doente do qual ela está ausente. Prova disso é que às vezes um paciente consegue se curar sozinho, isto é, sem o auxílio da arte médica, porque a saúde já reside potencialmente nele, como ainda teremos oportunidade de compreender melhor. Além de se ocupar dos entes que possuem princípio de movimento em si mesmo, diferente-mente portanto dos outros dois tipos de ciência, a física estuda a forma naturalmente presente em uma dada matéria, ela estuda os logoi enuloi, na feliz expressão do De anima, ou seja, as razões inseridas naturalmente na matéria. Mas e a medicina? Ela não se ocuparia igualmente dessas razões ínsitas à matéria? Afinal de contas, a medicina não se aplica ao seu logos,

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isto é, à saúde, e esta não é necessariamente a saúde de um dado corpo vivo (cf. Metafísica XII 3, 1070a22 e Ética a Eudemo VIII 3, 1249b5)?

Quando confrontamos diversos passos de diferentes obras, percebe-mos claramente que o estatuto da medicina para Aristóteles não é tão ób-vio quanto talvez possa parecer em uma leitura menos atenta. Essa ambi-guidade seria um reflexo então da própria polissemia de sentidos que ele reconhece nos termos “saúde” e “medicina”? Esta pluralidade de significa-dos está claramente atestada no fato de Aristóteles postular a polissemia do ser ou do bem, doutrina central de sua filosofia, a partir da analogia com a polissemia presente nos termos “saúde” e “medicina” (cf. Metafísica IV 2, 1003a33–1003b19; XI 3, 1060b36–1061a8; Ética a Eudemo I 8, 1217b25–1218a1

12; Ética a Nicômaco I 4, 1096a29-34). Será então que pode-mos ingenuamente crer que sempre que nosso pensador se refere por meio de um exemplo ao médico, e esses exemplos são inúmeros ao longo de sua obra, ele esteja concebendo esse profissional em um sentido unívoco? Ora, a julgar pelas considerações expostas nas duas passagens da Metafísica que tratam da classificação das ciências, acima mencionadas, fica claro que a medicina não pode se confundir pura e simplesmente com a física. Deve-mos pensá-la então como uma ciência produtiva ou, antes, como uma ciência prática? Em outras palavras: a saúde é produzida pelo médico as-sim como uma casa é construída pelo construtor ou, antes, ela é um telos já inscrito no corpo de um ser humano e que o médico apenas auxilia a deixar uma condição potencial para uma atual?

Em seu célebre glossário filosófico, o livro Delta da Metafísica, Aristó-teles define a causa final por meio de um exemplo retirado igualmente do campo médico. A saúde é o fim, que aqui ele chama de ergon, e ela é dife-rente de seus instrumentos (organa), como o peso adequado, a purificação ou os remédios (cf. Metafísica V 2, 1013a32–1013b3), ou seja, ela é diferen-te de tudo aquilo que a ela conduz. Na Ética a Eudemo encontramos uma reflexão paralela quando Aristóteles estabelece dois sentidos de prakton: o em vista de que agimos e o por meio do que agimos. Ele explica ambos os conceitos com exemplos extraídos da esfera médica, a saber, a saúde e o remédio (Ética a Eudemo I 7, 1217a35-40). Ainda na Ética a Eudemo encon-tramos diversas passagens que corroboram essa posição. Em especial, cabe

12 ariStotELE, Ética Eudemia. Trad., introd. e notas de Carlo Natali. Roma/Bari, Laterza, 1999.

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mencionar uma passagem ao final do livro primeiro onde o Estagirita afir-ma que “as coisas sãs são a causa da saúde como o que conduz a ela, e, portanto, causa de que haja saúde, mas não de que ela seja um bem (to d’hugieinon tês hugieias aition hôs kinêsan, kai tote tou einai all’ou tou aga-thon einai tên hugieian)” (Ética a Eudemo I 8, 1218b19-22). Mais eloquente ainda é outro passo do segundo livro da Ética a Eudemo no qual, ao dife-renciar para algumas coisas o uso (khresis) da obra (ergon), Aristóteles, como de costume, utiliza-se de um exemplo retirado do campo médico ao asseverar que “da medicina <a obra> é a saúde e não a cura, nem o remé-dio (iatrikês hugieia all’oukh hugiansis oud’iatreusis)” (Ética a Eudemo II 1, 1219a15-16). Ora, parece então que a medicina deve ser compreendida como uma ciência prática. Na verdade, ela oferece o próprio paradigma para as ciências práticas, como veremos mais adiante. Mas seria ela real-mente apenas uma ciência prática?

Saber se a medicina deve ser considerada uma ciência produtiva ou, antes, uma ciência prática talvez encontre resposta no início do capítulo nono do sétimo livro da Metafísica. Aristóteles constata nessa passagem a dificuldade mencionada e tenta resolvê-la por meio dos conceitos de po-tência e ato. A aporia que ele apresenta nesse passo é a seguinte: por que algumas coisas, como a saúde, parecem ser geradas quer pela arte, quer espontaneamente, e outras, como uma casa, necessariamente apenas pela arte? A razão disso, responde ele, é que a matéria sobre a qual opera a téc-nica em um caso — no da saúde — já possui em si mesma a potência de gerar saúde sem a intervenção de um perito ou de um mestre, e no outro — a saber, no caso da casa — ela depende totalmente de manipulação e comando por parte de um perito ou de um mestre. Assim, se por um lado uma casa obviamente não pode se construir sozinha a partir dos materiais de construção espalhados no chão, um organismo vivo, ao contrário, pode sim recuperar sua saúde mesmo sem a intervenção direta de um médico, e isso é possível porque a saúde já estava naturalmente inscrita, ao menos enquanto possibilidade, no corpo enfermo (cf. Metafísica VII 9, 1034a9-14). Talvez seja igualmente nesse sentido que devamos entender um passo do De caelo que trata a saúde e a doença como qualidades opostas que podem inerir em uma mesma matéria, a saber, em um organismo vivo, mas o ser de cada uma delas é obviamente diverso (cf. De caelo 312a15-21). Sendo as-sim, é possível pensar em um movimento que parta da saúde para a doen-ça e um outro que parta da doença para a saúde como sendo o mesmo

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movimento, ainda que as modificações resultantes de ambos os movimen-tos não sejam as mesmas, pois é obviamente diverso adoecer e curar-se (cf. Física V 5, 229a15-20).

No âmbito desta discussão, cabe mencionar o célebre capítulo um do livro Alfa da Metafísica, no qual Aristóteles discute a origem do conheci-mento na sensação e seu fim na posse plena da razão por meio da arte e da ciência. Ora, o que nos interessa particularmente nessa conhecida scala cognitionis é a distinção que o Estagirita estabelece entre a empeiria e a tekhnê. Como diferenciar a experiência da arte e consequentemente o pe-rito do mestre? Poderíamos aplicar essa distinção ao médico? Poderia ele ser pensado duplamente como o que tem a experiência e o que possui a maestria na arte? Ou ainda: como se distingue aquele que conhece apenas o hóti, o quê das coisas, daquele que sabe o seu dióti, o seu porquê?

Seria a diferença exposta nessa passagem a solução para compreen-der a distinção entre um médico considerado mero demiourgos e outro re-conhecido como arkhitektonikos, de acordo com o passo da Política dis-cutido mais acima? Seria o perito aquele que possui a experiência mas não a maestria na arte? Vejamos o exemplo, não por acaso mais uma vez do domínio médico, que o Estagirita emprega para diferenciá-los. O empirikos é aquele que, de acordo com a célebre passagem do livro Alfa da Metafísi-ca, é capaz de relacionar que um dado remédio que curou Kalias, acometi-do de uma determinada doença, também curou Socrátes e outros, mas ele não é capaz de inferir que certo remédio é adequado para curar um deter-minado grupo de indivíduos, como por exemplo, o dos fleumáticos ou o dos coléricos, pois para isso ele precisaria estar de plena posse da razão que lhe possibilitaria raciocinar sobre universais, um tipo de saber presen-te, por definição, tanto na arte como na ciência médica. Detenhamo-nos, pois, na diferença entre o que possui excelência na experiência e o que possui a maestria na arte.

Aristóteles se utiliza de dois critérios para pensar a hierarquia entre esses dois profissionais. Do ponto de vista do conhecimento teórico, o mestre na arte é superior ao praticante experiente, pois só ele é capaz de ensinar. O outro tem apenas um pseudossaber, do ponto de vista teórico, pois não é capaz de ensinar, dado que apenas conseguiu reunir casos sin-gulares sem alcançar ainda uma compreensão universal que os unificasse significativa e definitivamente em um saber teórico universal. Ou seja: ele não pode ensinar porque desconhece a causa, desconhece o porquê de um

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dado remédio possuir uma virtude curativa em alguns casos e em outros não. Só quando for capaz de compreender plenamente a razão pela qual uma droga administrada a um fleumático é inoperante, mas prescrita a um colérico produz efeitos notáveis, ele estará de plena posse da arte médica. Só então ele poderá ensiná-la, pois o ensino somente existe quando aquele que ensina conhece o dioti e o que aprende não.

Por outro lado, ao considerar as coisas não de uma perspectiva teóri-ca, mas sim de um ponto de vista prático, o que Aristóteles conclui é justa-mente o oposto. Assim, como ele nos explica, de nada adianta ter um co-nhecimento teórico — pensemos aqui no médico autodidata, o pepaideumenos mencionado na Política — se o médico não possui expe-riência prática, pois a cura na medicina não opera sobre universais abstra-tos, isto é, não se cura o homem ou uma classe de homens, mas sim um determinado homem, tal como Kalias ou Sócrates. Dado que as ações atuam sobre particulares e não sobre universais, é muito mais importante para um médico ser um homem de experiência, um perito, do que um au-todidata, ainda que o ideal médico seja o de um profissional que tenha maestria em sua arte, o arkhitektonikos da Política, associando assim, de algum modo, tanto o conhecimento prático, a perícia oriunda de uma vas-ta experiência, quanto o saber teórico que lhe permitiria compreender as razões e os porquês das curas efetuadas, facultando-o assim a ensinar sua arte àqueles que ainda são apenas aprendizes e que, portanto, não a pos-suem plenamente. Ora, veremos a seguir como é precisamente esse profis-sional e o saber que ele corporifica — um saber que unifica experiência e discernimento práticos com um saber teórico — que Aristóteles usa como modelo analógico para ilustrar e assim tornar mais compreensíveis suas reflexões sobre a dimensão ética e política dos homens.

Ao aplicar o exposto nos parágrafos acima à nossa investigação acerca do uso cognitivo das metáforas médicas a fim de iluminar a esfera ético-política, podemos constatar que a aparente ambiguidade do médico em relação à saúde — ele a produz ou apenas visa a ela? — deve ser com-preendida como a expressão de uma duplicidade de modos de se analisar a própria saúde. Ela pode ser considerada, por um lado, como um ideal que reside no espírito do médico, e nesse sentido a medicina é, por definição, uma arte (cf. Retórica I 1 1355b e Ética a Nicômaco VI 13, 1145a5-10). Por outro lado, ela é entendida como o resultado do restabelecimento do equi-líbrio dos humores em um organismo desequilibrado, e nessa perspectiva a

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medicina pode ser pensada como uma ciência (cf. Tópicos 110b15-20; 141a19-21 e Metafísica 1025b3-4), pois ela é compreendida então como um saber teó-rico que postula o equilíbrio humoral como condição geral para a saúde, independentemente de uma intervenção prática que visasse ao restabele-cimento desse equilíbrio em um ser vivo determinado. Evidentemente, apenas possuir um saber teórico da medicina, tal como o de que dispõe o autodidata citado no passo da Política, não faz de ninguém um médico, razão pela qual, como vimos acima, é fundamental para o médico possuir experiência. Em outros termos, não basta para esse profissional saber teo-ricamente e, consequentemente, ser capaz de ensinar, sob a forma de um silogismo em um manual, que diante de um determinado desequilíbrio humoral que afeta um organismo é preciso revertê-lo por meio da adminis-tração de certos fármacos e da prescrição de uma dieta específica, caso esse profissional seja incapaz de perceber por meio de sua observação que precisamente o doente X que se encontra diante dele está acometido de um determinado tipo de desequilíbrio e não de um outro qualquer. Ainda no caso de um exitoso diagnóstico, como explicaremos melhor em breve, esse conhecimento médico não poderia ser exato, pois o médico não pode saber a priori como um determinado indivíduo reagirá aos fármacos ou à dieta recomendados.

Segundo Aristóteles, assim como esse saber meramente teórico é in-suficiente para formar o médico, igualmente insuficiente seria ter apenas um saber teórico no domínio da ação. Como ele nos explica: do mesmo modo que ninguém se torna médico ao ler manuais, mesmo que estes se-jam detalhados em suas descrições das doenças e das curas e contenham até mesmo a explicação do modo como estas devem ser conduzidas, assim também ninguém se torna justo apenas e tão-somente por ler as leis e as constituições de uma cidade, por mais explícitas e bem formuladas que elas sejam. Esse tipo de leitura, em ambos os casos, portanto, só é real-mente útil para aqueles que já possuem uma experiência prévia, seja no domínio médico, seja no campo moral e político (cf. Ética a Nicômaco X 10, 1142b2-12). Como Aristóteles o diz de modo formular em uma passa-gem da Política que trata da realeza: “Em qualquer arte é insensato guiar-se pelas regras escritas (en hopoiaoun tekhnê to kata grammat’ arkhein eli-thion)” (Política III 15, 1286a11-12). Ele exemplifica a correta atitude a ado-tar um pouco mais adiante nesse mesmo capítulo por meio de um exemplo médico: “É um erro curar-se pelos manuais, é preferível servir-se dos que

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possuem a arte (to kata grammata iatreuesthai phaulon, alla hairetoteron khrêsthai tois ekhousi tas tekhnas)” (Política III 15, 1287a34-35). Por isso, como veremos logo mais, é o médico ele mesmo que se constitui no verda-deiro metron da saúde, não as regras escritas contidas nos manuais de me-dicina. Do mesmo modo, por analogia, é o próprio phronimos que se cons-titui no metron da vida moral, não um conjunto de preceitos morais codificados nas leis da cidade.

Na Ética a Eudemo o Estagirita deixa clara a relação entre os campos do médico e do legislador ao afirmar explicitamente que o homem sadio é análogo ao homem justo (cf. 1242a30-35). Essa analogia se deixa entrever também em um passo da Ética a Nicômaco que compara a dificuldade de agir com justiça com a dificuldade de curar, caso alguém suponha que es-sas capacidades análogas pudessem ser adquiridas apenas e tão-somente pela leitura das leis que regem a cidade ou pelo estudo dos manuais médi-cos. Aristóteles, apesar da semelhança entre ambas essas atividades, não deixa de assinalar a diferença entre elas ao declarar que é muito mais difí-cil tornar-se justo do que se tornar médico. Não que se tornar médico seja fácil, pois esta dificuldade, como o Estagirita nos esclarece, reside não apenas em ser capaz de identificar alguns procedimentos (tais como a cau-terização e a incisão) ou alimentos (tais como o mel e o vinho) como favo-ráveis à obtenção da saúde, uma capacidade que pode facilmente ser obti-da por meio da leitura atenta dos manuais, mas sim em saber de que modo (pôs), em relação a quem (tini) e quando (pote) essas medidas devem ser utilizadas tendo em vista a produção da saúde (cf. Ética a Nicômaco V 13, 1137a5-17). Percebe-se, evidentemente, que essa dificuldade é análoga às dos homens que devem agir virtuosamente, e que para isso devem ser ca-pazes de, por assim dizer, “conjugar” o bem nas várias categorias, tal como somos advertidos desde o primeiro livro da Ética a Nicômaco. Em outros termos, não se trata de basear-se no conhecimento de uma ideia universal de bem, pois esta, caso existisse, não seria útil nem para a obtenção da fe-licidade, nem para a ação virtuosa. Além disso, ela tampouco seria algo prático ou praticável. Isso se torna manifesto, para Aristóteles, ao conside-rarmos o que ocorre com a medicina, pois ela justamente não se ocupa do bem em si, mas sim de um bem prático, qual seja, o de restituir a saúde aos enfermos (cf. Ética a Eudemo I 8, 1218a33-b4).

No domínio ético e político, por conseguinte, não há medidas exatas e não devemos esperar rigor e exatidão nessas áreas tal como devemos es-

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perar na matemática. Ora, é precisamente a medicina que mais uma vez serve de modelo para Aristóteles pensar essa dimensão ético-política, pois, como ele nos diz, “é necessário que aquele que aja considere sempre o momento oportuno, tal como ocorre também com aquele que possui a arte da medicina e da pilotagem (dei d’autous aei tous prattontas ta pros ton kai-ron skopein, hosper kai epi tês iatrikês ekhei kai tês kubernitikês)” (Ética a Nicômaco II 2, 1104a6-9). Em suma, como o Estagirita afirma nesse passo, “todo discurso sobre a práxis deve ser dito em esboço e sem precisão (pas ho peri tôn praktôn logos tupo kai ouk’ akribôs opheilei legesthai)” (Ética a Nicômaco II 2, 1104a1-2). Ora, a medicina tampouco pode ter um rigor matemático. Ela procede igualmente por linhas gerais e sem um detalha-mento minucioso. Encontramos essa posição expressa claramente em di-versas passagens de alguns dos tratados do corpus hippocraticum, tais como, por exemplo, o De sterelitate (cf. 230), no qual é dito que “em medi-cina não existe medida exata”, ou o De victu (cf. III 67), no qual é afirma-do que “é impossível aplicar um tratamento com exatidão” por causa das diferenças individuais entre os homens, diferenças que os fazem reagir de modo diverso ante as mesmas dietas prescritas ou ante os mesmos fárma-cos administrados13.

A deliberação é outro traço comum entre a atividade do médico e ou-tras de cunho ético e político, pois, como nos elucida um passo da Ética a Nicômaco: “Nem o médico delibera se curará, nem um orador se persuadi-rá, nem um político se criará boas leis, nem nenhum dos demais delibera-rá sobre os fins, mas, estabelecido o fim, consideram o modo e os meios para realizá-lo (oute gar iatros bouleuetai ei hugiasei, oute rhetor ei peisei, oute politikos ei eunomian poiesei, oude tôn loipôn oudeis peri tou telous. Alla themenoi to telos, to pôs kai dia tinon estai skopousin)” (Ética a Nicô-maco III 3, 1112 b13-16). Deliberar para o Estagirita significa investigar e calcular (cf. Ética a Nicômaco VI 10, 1142b15). Também o autor do tratado Prognosticum (cf. § 25) emprega esse mesmo verbo “calcular” (logízomai) para se referir à deliberação que o médico deve fazer em um diagnóstico. Assim como uma boa deliberação deve levar em conta o como (hôs) e o

13 Todas as aproximações entre o texto aristotélico e os tratados médicos que se encon-tram neste artigo se apoiam no excelente e amplamente documentado artigo de Mer-cedes LóPEZ SaLva, De la índole común… de la ética y la política de Aristóteles y la medi-cina, Cuadernos de Filologia Clásica (Estúdios griegos e indoeuropeos), 3 (1993) 141-169.

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quando (hote) da ação (cf. Ética a Nicômaco VI 10, 1142b28), o bom diag-nóstico médico deve igualmente levar em conta essas e outras variáveis categoriais, como muitos dos tratados do corpus hippocraticum o compro-vam (cf., por exemplo, Epidemias I 11).

A eleição prévia, a proairesis, deve então seguir-se à deliberação. Esta escolha é relativa aos meios que teremos de empregar para alcançar a meta deliberada e não evidentemente ao fim desejado, pois, como declara uma passagem da Ética a Nicômaco, “o querer é sobretudo relacionado ao fim, a escolha prévia, ao contrário, às coisas que levam ao fim (he mên boulesis tou telous esìi mallon, he de proairesis tôn pros to telos)” (Ética a Nicômaco III 4, 1111b25-27). Não por acaso, o exemplo mencionado por Aristóteles a fim de esclarecer essa ideia é novamente do campo médico: é lícito dizer que queremos ser sãos ou ser felizes, mas não que escolhemos ser sãos ou felizes, apenas escolhemos o que devemos fazer para alcançar esse objeti-vo, isso porque a escolha só pode ser realizada em relação ao que depende de nós, e o fim último, a saúde ou a felicidade, por exemplo, não depen-dem de nós, mas os meios para chegarmos a obtê-las, estes sim dependem de nós e, por conseguinte, podem e devem ser por nós escolhidos (cf. as linhas 27 a 30 do passo da Ética a Nicômaco que acabamos de citar). Se é verdade que o doente não pode escolher a saúde, ele pode e deve, contu-do, escolher os meios que o levarão a ela. Isso significa que o comporta-mento do paciente é essencial para a cura, pois de nada adiantará o médi-co realizar um bom diagnóstico se o paciente não escolher adotar a cada momento esses meios. Por exemplo: se o paciente não seguir a dieta reco-mendada ou se não tomar os medicamentos na quantidade e na frequên-cia prescritas, coisas que evidentemente estão ao seu alcance, então ele efetivamente não conseguirá recuperar a saúde.

A mesma falta de equilíbrio que pode acometer alguém que se exte-nua em exercícios físicos ou que se alimenta excessiva ou inadequadamen-te pode também acometer aquele que vive de modo sedentário e que não se alimenta o suficiente ou corretamente. Esse excesso para mais ou para menos pode igualmente verificar-se no plano ético. A virtude, ao contrário reside no meio-termo (mesotes), mas este não pode ser determinado com precisão matemática pelas razões expostas; antes, ele tem de ser pensado em relação a nós. Os exemplos que Aristóteles utiliza para esclarecer essa ideia do pros hêmas são, mais uma vez, do campo médico, dessa vez princi-palmente exemplos extraídos da dietética aplicada à prática dos esportes:

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assim, não podemos supor que seja possível simplesmente encontrar o meio-termo ideal da quantidade de alimento a ser ingerida em uma refei-ção ao se proceder a uma simples média aritmética entre uma quantidade demasiadamente pequena, digamos 200 gramas, e uma muito grande, por exemplo 1.000 gramas de alimento. Isso porque 600 gramas, a média arit-mética entre elas, pode ser uma quantidade ínfima para um atleta com in-tensa atividade física, mas excessiva para um iniciante. Vê-se, pois, que a consideração das variáveis individuais é essencial para entender a noção de mediania aplicada a nós, tal como esse exemplo da dietética ilustra tão bem. De modo análogo, devemos compreender que os excessos e defeitos no âmbito da ação também obedecem a variáveis individuais (cf. Ética a Nicômaco II 5, 1106a33–1106b7). Essa ideia aparece claramente expressa no tratado Aforismos (cf. I 3-5), que adverte contra dietas muito rígidas. Tanto as dietas como as atividades físicas devem ser apropriadas a cada in-divíduo em particular. Na verdade, a própria noção de saúde está direta-mente relacionada a essa noção de mediania, pois muitos dos tratados mé-dicos a entendem como um justo meio entre um excesso e um defeito, seja esse meio-termo pensado, de um modo mais particular, como a pro-porção adequada entre o calor e o frio (cf. De morbis 1 § 2) ou, de modo mais genérico, como a correta proporção entre o excesso e o defeito de qualquer dos elementos constitutivos de um organismo (cf. De victu I 3).

Obviamente, se a saúde e a virtude consistem em adquirir o meio-termo entre um excesso e um defeito, então não podemos mesmo esperar encontrá-lo por meio da simples leitura de um manual médico ou de um código legal. É essencial para o tratamento médico, portanto, que o profis-sional seja capaz de discernir a relação de cada procedimento com um in-divíduo em particular. Como nos adverte o tratado De vetera medicina, é preciso conhecer as consequências de um banho ou um esforço realizados em um momento inadequado, bem como os efeitos deste ou daquele ali-mento em um dado organismo, pois quem ignorar isso não saberá o que es-sas coisas produzem e tampouco saberá utilizá-las de modo correto (cf. De vetera medicina § 21)14.

O saber médico e ético que não pode ser obtido pela simples leitura de manuais nem pode ser exato como a matemática precisa então aparecer

14 hiPoCratES, De la medicina antigua. Introd., texto crítico, trad. e notas de Conrado Eggers Lan. México, Universidad Nacional Autonoma de México, DF, 1987.

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corporificado nas figuras do médico e do prudente, isso porque somente um saber encarnado que atua de acordo com uma razão correta (orthos lo-gos) pode ter a capacidade de, levando em conta as diferenças dos indiví-duos e/ou das situações, prescrever uma terapia correta ou agir de modo virtuoso. Não por acaso, portanto, algumas das prerrogativas dos médicos, segundo o De decenti habitu (cf. IX), são paralelas àquelas que Aristóteles atribui ao phronimos, a saber, desprendimento, modéstia, pudor, dignida-de, discernimento, integridade e conhecimento do que é útil e necessário para a vida. Sem esse conhecimento do que é útil para a vida não se pode ser prudente, embora seja possível ser um sábio, tal como Tales e Anxágo-ras o foram. Mas é apenas o discernimento das circunstâncias particulares que pode fazer que alguém seja um exemplo de prudência, tal como Péri-cles o foi para Aristóteles. Um conhecimento desta natureza só pode ser um conhecimento obtido por experiência. Esse conhecimento é algo assim como uma tentativa de acerto, algo que aparece figurado no verbo grego stokhazesthai. A semelhança léxica entre os tratados médicos e a Ética a Nicômaco é aqui evidente: tanto um tratado como o De vetera medicina (cf. § 9) emprega o verbo stokhazesthai ao falar que o médico, ao não pos-suir a priori um saber exato sobre a terapia a ser prescrita a um determina-do paciente, “deve apontar para certa medida (dei gar metrou tinos stokha-zesthai)”, quanto Aristóteles ao referir-se à virtude ética afirma que esta “deveria apontar para certa mediania (tou mesou an eie stokhastikê)” (Ética a Nicômaco II 5, 1106b15-16). Assim, em sua célebre definição do phronimos no livro VI da Ética a Nicômaco, Aristóteles diz que “aquele que delibera bem em sentido absoluto é aquele que, por cálculo, aponta para o mais excelente bem humano prático (ho d’haplôs euboulos ho tou aristou anthrô-po tôn prakton stokhastikos kata ton logismon)” (Ética a Nicômaco VI 8, 1141b13-14). Igualmente no âmbito político Aristóteles faz uso desse verbo e de sua carga semântica — um conhecimento tentativo característico das disciplinas científicas que não possuem exatidão matemática — para refe-rir-se ao regime democrático quando afirma que toda democracia aponta (stokhazesthai) para a partilha da liberdade (cf. Política VI 2, 1371b1).

Outra característica desse conhecimento estocástico é a aisthêsis, pensada nesse contexto como a sensibilidade do médico ou do prudente ante uma circunstância para saber se é nela que se deve curar ou que se deve agir. Uma controversa passagem do tratado De vetera medicina, que continua o passo que acabamos de citar acima sobre o apontar para certa

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medida, esclarece que a única medida que poderemos encontrar é “a da sensibilidade do corpo (he tou sômatos tên aisthêsin)”. A controvérsia reside em saber se a sensibilidade aludida é a do corpo do paciente ou a do médi-co diante do enfermo. Sigo a exegese de López Salvá, que, por sua vez, se-gue a de Laín Entralgo e propõe entender essa referência à sensibilidade como um atributo do médico: sua reação perceptiva diante do corpo do enfermo e obviamente dos sintomas que este manifesta, mas também sua confiança na avaliação de seus sentidos quando diante de um doente15. Encontramos igualmente essa ideia em Aristóteles quando ele se indaga até onde o desvio do justo meio é censurável e afirma que “não é fácil esta-belecer isso pela razão, pois nas coisas particulares a decisão reside na sensação (ou rhadion tô logo apodounai. en gar tois hath’ hekasta kai tê ais-thêsei hê krisis)” (Ética a Nicômaco IV 11, 1126b3-4). Claro está que o Esta-girita não se refere aqui a uma mera apreensão perceptiva dos sensíveis próprios ou comuns, mas sim a uma sensibilidade especial que temos para as determinações éticas ou morais, em suma, a uma espécie de sensibili-dade moral.

Acreditamos ter podido mostrar em nosso texto até que ponto a compreensão da esfera médica por Aristóteles lhe capacita a propor uma complexa rede de metáforas capaz de tornar mais evidente suas reflexões sobre o domínio ético e político, bem como os conceitos a ele relacionados.

15 Sobre essa controvérsia exegética, conferir LóPEZ SaLva, De la índole común…, espec. 168-170.

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“O clamor da carne diz: não sentir fome, não sentir sede, não sentir frio. Aquele que possui esses bens ou espera possuí-los pode, no que concerne à felicidade, rivalizar mesmo com Zeus.”2

Introdução

O corpo humano (sarkos)3 é um componente importante para a com-preensão do pensamento epicúrio como um todo, não obstante o fato de os textos remanescentes do autor não oferecerem material suficiente para uma análise mais detalhada da questão. Na verdade, apenas alguns poucos parágrafos da Carta a Heródoto e outras pequenas máximas, na maioria

1 Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.2 EPiCuro, Sentenças vaticanas, 33. Cf. M. ConChE, Épicure, lettres et maximes, Paris, PUF,

2005, 254.3 Sarx ou sarkós tem para os gregos o sentido de carne humana e animal, em geral. E

também carne, corpo e vianda, segundo A. BaiLLy, Dictionnaire grec–français, Paris, Ha-chette, 1950, 1734, e I. PErEira, Dicionário greco–português, Porto, Apostolado da Im-prensa, 1957, 513, respectivamente.

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destinadas à exposição do prazer, encetam o sentido do que seria a com-preensão do corpo-carne em Epicuro. Ainda assim, podemos afirmar que este corpo é pensado como um receptáculo das influências sensíveis que o meio exerce sobre o indivíduo. Ele é, por assim dizer, o ponto de partida da percepção humana, já que a partir dele tem lugar a aisthêsis, que é o con-junto das sensações, e de onde serão possíveis as prolepseis, ou as impres-sões sensíveis, que serão operadas pelo pensamento (dianoia). Mas o que é este corpo para Epicuro? E de que maneira o equilíbrio do corpo é um dos objetivos aos quais visa a filosofia enquanto um saber para a vida?

A compreensão epicúria de corpo humano (sarkos)

O saber acerca do corpo humano se faz através do contato corpo/mundo; e chamamos mundo ao conjunto de coisas que são fenômenos manifestos no mundo-realidade. Segundo Epicuro, conhecemos as coisas quando sentimos sua expressão em nós. E, neste sentido, buscamos natu-ralmente afecções que produzam sensações constitutivas e agradáveis. De certa maneira, o corpo se comunica com as coisas do mundo, provando-as, e tendo como critério de escolha e rejeição das afecções possíveis o prazer e a dor. O corpo é um modo do conhecimento. Epicuro pensa neste mes-mo corpo, a alma, que é também corpo, mas distingue-se da carne por suas propriedades físicas e por sua função racional e imaginativa, que arti-cula as impressões sensíveis e projeta-as enquanto pensamento (phantasti-kê epibolê tês dianoias). A perfeita interação entre carne e alma transforma as sensações em sentimentos, ou ainda o que afeta a carne em compreen-são ou pensamento. Neste contexto, carne e alma não podem ser pensadas separadamente, pois são apenas um, e as afecções (pathê) só se expressam como prazer ou dor na interação carne/alma. Por outro lado, a alma possui a propriedade de graduar o poder que as impressões sensíveis têm de in-fluenciá-la, isto quando a alma exerce plenamente sua função natural no homem, que é favorecer o domínio de si (autarkeia).

É sobre este ponto que incide a possibilidade do equilíbrio do corpo (sarkos), já que as necessidades da carne são registradas e operadas pela alma, tanto quanto os desejos e a vontade: a alma, no exercício da reflexão, constrói um saber sobre o corpo, que enseja a sua boa dispo-sição (eustatheia). Esse saber é conhecimento de si, da medida de rea-

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lização da vida, que aqui pode ser entendida como repleção, ou seja, nutrição e saúde (hugieia).

O sarkos como athroisma

Na phusiologia o corpo é pensado como um agregado (athroisma) cons-tituído de átomos e vazio, ou seja, como um ente físico (sôma). Num segun-do sentido, o corpo é pensado como uma estrutura orgânica viva, o que também quer dizer phusis. A natureza própria de cada corpo encontra na relação que estabelece com as coisas do mundo-natureza uma medida de ser que o mantém, acrescentando-lhe o que é vital, ou subtraindo-lhe subs-tâncias que podem enfraquecê-lo. Assim, Epicuro parece assinalar que a vida resolve-se nas relações de afecções que este corpo mantém com outros corpos (substâncias) na natureza, ou seja, com as coisas que o afetam. De-ve-se sobretudo ao impulso que a alma gera neste corpo a sua condução no mundo, ou ainda o seu movimento de ser. O sentido de realização deste movimento tende, segundo a natureza específica deste corpo, a uma condi-ção de vida equilibrada, isto é, à sua boa disposição (eustatheia) no mundo. Entretanto, torna-se necessário que se busque realizar as condições básicas para torná-lo equilibrado, de acordo com a compreensão que se possa ter da situação deste corpo e de suas possibilidades de ser bem-disposto. Para Epicuro, não ter fome, não ter sede e não ter frio constituem o estado satis-fatório da vida deste corpo, e as respectivas privações geram consequências que caracterizam todas as enfermidades que ele possa apresentar.

O equilíbrio da carne

Na compreensão epicúria de sarkós, duas possibilidades de equilíbrio podem ser aferidas. A primeira nos remete aos cuidados que é preciso ter com o corpo-carne, tanto no sentido de evitar as carências e os excessos, que provocam as doenças, quanto no de curá-las. Neste ponto, faz-se ne-cessária a alusão a certa proximidade entre Epicuro e a medicina (tekhnê iatrikê), de notável influência hipocrática, praticada em sua época4.

4 Deve-se levar em consideração o fato de que tanto a filosofia quanto a medicina pres-supõem o estudo da natureza das coisas (phusiologia).

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Embora não existam indícios textuais desta aproximação, sabemos o quão importante é o pensamento médico para a filosofia, pensamento que na Grécia teve início no século V a.C.5 Haja vista que diversos pensadores estoicos contemporâneos de Epicuro se ocuparam bastante da medicina6.

A segunda possibilidade revela que o equilíbrio resulta da ação do pensamento sobre o corpo-carne (sarkos) e que pode ser descrito como uma espécie de therapeia em que o logos atua diretamente no corpo, possi-bilitando o estabelecimento de uma medida-limite (peras) para os desejos eminentemente carnais, desejos que nem sempre se acalmam com a sim-ples repleção, isto é, desejos que são naturais ao corpo mesmo quando este se encontra em estado satisfatório em relação às suas necessidades básicas. Neste estado, o corpo encontra-se já em equilíbrio e expressa o bem-estar ou prazer. A satisfação dos desejos naturais mas não necessários poderá, no máximo, fazer variar o prazer que ele já sente.

Os desejos da carne (sarkos)

Pensar o corpo-carne requer, em primeiro lugar, um estudo de seus limites e de suas possibilidades em relação às coisas (fenômenos) da natu-reza. Os desejos são, pois, fenômenos do corpo. Neste sentido, Epicuro os classifica em três categorias que definem o que importa à aquisição do bem-estar e à manutenção de um corpo bem-disposto (eustathes) e o que pode ser nocivo ou causa o seu desequilíbrio:

Dos desejos naturais e necessários

É preciso também considerar que, entre os desejos, uns são natu-rais, os outros vãos, e que, entre os desejos naturais, uns são ne-

5 Para um estudo pormenorizado, cf. B. vitraC, Médicine et philosophie au temps d’Hippocrate, Saint Denis, P.U.V., 1989.

6 Galeno, em seu livro Contra Juliano, relata que Zenão, Crisipo e outros estoicos escre-veram muitos textos sobre as doenças — que uma escola de médicos, a escola metódi-ca, reclamava de Zenão —, que suas teorias médicas, bastante análogas às de Platão e Aristóteles, admitiam quatro humores, relativos às quatro qualidades fundamentais, o quente e o frio, o seco e o úmido, dos quais a feliz mistura constitui a saúde. Cf. E. BréhiEr, Études de philosophie antique, Paris, PUF, 1955.

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cessários, os outros naturais somente. Entre os desejos necessá-rios, uns o são para a felicidade, os outros para a ausência de sofrimentos no corpo, os outros para a própria vida […] (Diógenes Laércio7, X, 127).

Os desejos considerados naturais e necessários são aqueles que impe-lem o corpo na direção das coisas que bastam à sua satisfação, ou seja, o corpo necessita basicamente de alimentos, de água e de proteger-se do frio e das intempéries. O mundo natural, fonte de vida para o homem, quando este se encontra num lugar organicamente bem composto, oferece-lhe possibilidades, sem que para isso ele precise esforçar-se além dos limites de sua própria natureza. Portanto, Epicuro preconiza que “viver de acordo com a natureza” significa dar vazão aos desejos naturais e necessários, en-tendendo que a medida de satisfação desses desejos está na relação esta-belecida entre o corpo e os fenômenos de repleção, satisfação e proteção oferecidos pelo mundo natural. Acontece que encontramos na natureza mais do que necessitamos para viver de modo aprazível e satisfatório, e o problema passa a ser o do “domínio de si próprio”.

A phronesis e a autarkeia são, no contexto deste pensamento, as noções que circunscrevem a ação do homem nos limites de sua realiza-ção natural e necessária. Por isso, a reflexão acerca do corpo leva neces-sariamente em consideração a “medida própria”, ou o limite do que é necessário à manutenção, ou repleção, da natureza própria deste corpo. Estas noções se fundamentam na clara compreensão da natureza pró-pria de cada indivíduo. Assim, a ação do homem dotado de phronesis expressa uma “vontade esclarecida”8 que lhe faculta o acesso às coisas absolutamente necessárias à sua manutenção e que se encontram dis-postas no mundo natural e, por outro lado, o alerta para os perigos dos excessos e das carências, tanto no sentido qualitativo como no quanti-tativo, que se geram por desconhecimento de sua própria natureza, ideias que podem ser traduzidas por esta: “Tudo o que é natural pode ser facilmente satisfeito, ao passo que tudo o que é vão é difícil de sa-tisfazer […]” (Diógenes Laércio, X,130).

7 Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Aqui citado a partir da edição de M. ConChE, Épicure, lettres et maximes. Paris, PUF, 2005.

8 Segundo E. BréhiEr, Histoire de la Philosophie, v. 2, 361, phrónesis é traduzido por “von-tade esclarecida”.

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Mantendo-se fiel à ideia de que tudo aquilo de que precisamos está na natureza, Epicuro parece indicar que o melhor pharmakon para o restabelecimento ou manutenção da saúde do corpo está na alimen-tação equilibrada e na administração de cuidados necessários à preven-ção contra todo excesso e toda carência. Encontramos aqui mais um ponto comum à filosofia e à medicina, cujas práticas dietéticas tendem ao equilíbrio alimentar natural. Epicuro elege a vida junto à natureza como a mais propícia à obtenção dos recursos alimentares para o sus-tento do homem. Parte do homem e, portanto, de sua capacidade de escolha, a eleição de seu “hábitat natural”, que lhe possa oferecer con-dições climáticas favoráveis e fonte segura de alimento. A vida requer um saber, que é domínio da natureza humana ao mesmo tempo em que é exercício do domínio de si. Isto está inteiramente de acordo com as prescrições da medicina antiga, conforme podemos ver nesta passagem: “Um entendimento correto dessa teoria permitir-nos-á dirigir toda es-colha e rejeição com vistas à saúde do corpo e à imperturbabilidade da alma, pois isto é a realização suprema de uma vida feliz […]” (Diógenes Laércio, X, 128).

O equilíbrio do corpo possibilita a saúde tanto física quanto mental e, assim sendo, há um duplo caminho que conduz tanto do corpo para a alma — que, neste caso específico, resulta na ausência de preocupação com o corpo, que experimenta a aponia (ausência de dor) — quanto da alma para o corpo, quando este corresponde à medida que lhe dá o pensamento, ou sua autocompreensão. Neste sentido, o equilíbrio é mútuo e satisfaz o todo do homem, que é corpo e alma, sendo, entretanto, um só.

Do excesso e da carência ou dos desejos naturais e desnecessários

A realidade múltipla e abundante das coisas naturais oferece ao ho-mem a possibilidade de desejar mais do que ele realmente precisa. Ora, tais desejos são também naturais, na medida em que é facultado ao ho-mem comum o acesso a essa realidade.

Porém, dirá Epicuro, quando se deseja além do que é necessário, corre-se o risco de sofrer as consequências da imoderação. O corpo pode rejeitar “de pronto” o excesso de alimentos, ou aceitá-lo e sentir-se doente no momento seguinte. A ingestão demasiada de um tipo ou outro de ali-

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mento pode provocar uma disfunção orgânica, também caracterizada como uma doença pela medicina; o mesmo vale para a ingestão de deter-minados elementos que causam reações de mal-estar ao organismo, pois destoam da natureza de um determinado indivíduo. Por outro lado, a ca-rência de alimentos pode levar à debilidade do corpo, acarretando com isso outros tipos de doença, caracterizadas como doenças causadas pela desnutrição. Convém lembrar também que as condições climáticas dos ventos, das águas e dos ares (muita ou pouca umidade) contribuem tanto para a saúde de determinados corpos quanto para a doença de outros. En-fim, cada corpo tem uma natureza tal que deve ser conhecida e atendida naquilo que for possível para que não sofra as consequências de qualquer espécie de carência:

Convém então discriminar todas essas coisas com o cálculo daquilo que é conveniente e a ponderação daquilo que é prejudicial, porque em certas circunstâncias o que parece bem é um mal para nós e o que parece mal é um bem para nós […] (Diógenes Laércio, X, 130).

O limite necessário dos desejos é, portanto, da ordem da natureza, e o cálculo (logismos) desse limite é, para Epicuro, o exercício do domínio que um indivíduo sensato tem sobre si mesmo e expressa sua compreensão acerca do bem-estar (eustatheia) ou equilíbrio de seu corpo em relação às coisas do mundo físico, bem como dos sentimentos e opiniões que tais re-lações causam à alma. Ainda segundo Epicuro, há coisas que parecem ser ruins, pois às vezes não sabem bem, mas as escolhemos tendo em vista o efeito que podem causar; em outros casos dá-se o contrário, ou seja, coisas que experimentamos a contragosto, mas que nos trazem alívio. Naturais e desnecessários são os desejos que simplesmente fazem variar o prazer, sem remover o sofrimento, como os alimentos suntuosamente preparados.

A frugalidade que caracteriza o modo de vida do sophos deve ser compreendida por seu caráter moderador dos desejos. Epicuro reflete, primeiramente, sobre o princípio de nutrição mantenedor da vida do corpo, e quer com esta reflexão demonstrar a possibilidade da autossu-ficiência (autarkeia) daquele que age segundo esta moderação (equilí-brio). Depois disso, ele põe sob foco os desejos que ultrapassam as ne-cessidades naturais e tendem à realização de “valores” projetados por opiniões que fogem aos critérios que determinam o que é natural e ne-cessário. Estes desejos correspondem, na maioria das vezes, às exigên-

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cias da imaginação (phantasia) e, por isso, são de outra ordem diferente daquela denominada desejos naturais e necessários (phusikai kai anankaiai). Estes desejos encontram repercussão nos indivíduos insen-satos, que agem segundo opiniões vazias (keénon doxai), pois despre-zam ou desconhecem o sentido de ser segundo a phronesis e o logismos. “[…] Nem naturais nem necessários são os desejos por coros e ereção de estátuas em honra da própria pessoa […]” (Diógenes Laércio, X, 149).

Tais desejos qualificam aqueles que se movem a partir das opiniões vazias, imponderados, que nada acrescentam à realização da vida sábia.

Resta-nos ainda falar dos desejos não-naturais e desnecessários, que podem ser caracterizados sob a forma de uma vã aparência que, do ponto de vista orgânico, nada acrescenta à natureza do homem. Por esta razão, não será preciso nos deter em seus pormenores para que se complemente a análise do corpo-carne. A época em que Epicuro viveu caracterizou-se por alguns tipos de perturbações absolutamente desnecessárias, do ponto de vista da natureza (ou da vida natural). As causas dessas perturbações poderiam ser facilmente eliminadas, pois não passavam de crenças sobre o mundo e sobre os valores, que geravam desejos vãos, que, por sua vez, se tornavam, na maioria das vezes, tormentos e angústias.

Cuidar da saúde é uma necessidade básica de qualquer indivíduo, já as “ambições sociais” são antropologicamente definidas no interior de um determinado grupo social e relativas ao ethos predominante neste grupo.

A noção de eustatheia

O termo grego eustatheia significa, literalmente, “boa disposição”, e foi definido por J. Brun como “equilíbrio das diversas partes do corpo vivo”9. Esse termo não foi encontrado entre as proposições das Cartas, tampouco nas Máximas. Encontramo-lo citado por H. Usener no fragmen-to de número 68 da sua Epicúria. Nela, o autor dá-nos a sua fonte; trata-se de Plutarco, que atribuiu a Epicuro a seguinte proposição:

O gozo mais alto e mais sólido resulta da condição de equilíbrio (boa disposição) da carne, e a esperança fundada de conservá-la,

9 J. Brun, Épicure et les épicuriens, Paris, PUF, 1961, 168.

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para quem saiba considerá-la, proporciona (contém) a mais alta e segura alegria” (Usener10, 68, p. 185).

G. Arrighetti traduz o termo em questão por benessere, que facilmente pode ser traduzido por bem-estar. Contudo, vimos na expressão “boa dis-posição” a melhor tradução para o termo eustatheia, tendo em vista o fato de que, se tomado literalmente, encontramos imediatamente a ideia de um estado equilibrado, no sentido físico do posicionamento deste corpo em relação ao meio em que se encontra. Queremos com isso chamar a atenção para as constantes relações estabelecidas entre o corpo que age e sofre e as coisas sobre as quais age e das quais sofre afecções. A boa pro-porção, a harmonia e a estabilidade física do corpo são definições análogas do termo equilíbrio. Esse termo, entretanto, é pensado pela física — parti-cularmente pela mecânica — como o estado de um corpo em repouso, em que as forças que o solicitam se contrabalançam exatamente. Podemos então pensar tais forças como expressões da natureza que podem ou não afetar o corpo, e, neste sentido, é igualmente possível pensarmos que este equilíbrio não é absoluto, mas oscilatório, uma vez que afetos e desafetos ocorrem casualmente na natureza, ainda que nossa conduta disponha-se ao exercício da phronesis e da autarkeia. É preciso esclarecer que, na natu-reza, o movimento de constituição dos corpos é constante e inevitável, mas temos sempre a possibilidade de escolher as situações em que a inevitabi-lidade pode também ser administrada, não absolutamente, mas pelo me-nos naquilo que depende de nossa vontade ou deliberação.

De tudo o que dissemos até aqui podemos concluir que o termo eus-tatheia pode ser entendido como sinônimo ou por analogia ao termo apo-nia, que significa ausência de perturbações na carne, e serve tanto à filoso-fia quanto à medicina, no que diz respeito à tekhnê tis peri ton bion (saber para a vida) e à tekhnê hê iatrikê (saber médico).

A autarkeia do corpo

Parece-nos clara, pelo que acabamos de expor, a pertinência do saber médico antigo para os propósitos da filosofia epicúria, no que diz respeito

10 H. uSEnEr, Epicurea. Leipzig, 1887 (reimpresso por M. GiGantE e W. SChmid), Roma, 1977.

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ao equilíbrio como finalidade inerente ao exercício da vida feliz (makarios zên). A dialética, a ginástica, enfim, o modo de vida segundo a natureza própria de cada um demandam um saber comum tanto à medicina quanto à filosofia, que tem em vista o bem-estar ou a boa disposição (eustatheia) do indivíduo. Este saber é fundamental e determinante na escolha que o sábio epicúrio faz em relação ao meio em que passará a viver, tanto quanto ao regime alimentar que adotará e aos cuidados que tomará em relação a seu corpo. Ele dá ao sábio a medida do agir necessário à manutenção de sua saúde, livrando-o do excesso e da carência, dos alimentos que lhe são prejudiciais e, sobretudo, do hábito, ou modo de vida, no qual não lhe seja possível a escolha ou a recusa. Tais ensinamentos constituem uma parte do que consideramos ser a ética epicúria, na medida em que proporcio-nam ao corpo o equilíbrio físico, que por sua vez livra a alma dos efeitos danosos das doenças e das preocupações que um estado enfermo venha a causar. O equilíbrio do corpo pode ser aferido pelo fato de ele não precisar reagir às afecções (pathê) que provocam as mais diversas disfunções orgâ-nicas e os efeitos psíquicos suscitados por essas disfunções.

Se for plausível a tese que diz ser o sábio autárquico e, portanto, de-tentor do domínio de si, então está sob seu domínio cuidar de seu corpo a ponto de evitar tudo o que venha a lhe causar reações estranhas e desne-cessárias à sua realização natural. Em certo sentido, percebemos nesta con-duta traços evidentes de um vitalismo, ou de um pensamento que tem na vida, e no modo de realizá-la, a sua questão fundamental. No que concerne às influências negativas que ocorrem por casualidade, e que são do domínio da natureza, o sábio não deve temê-las, nem ignorá-las, apenas fazer o que está ao seu alcance, certo de que, se essas influências por natureza esca-pam ao seu domínio, de sua parte não haverá mais o que fazer. Em qual-quer sentido, o princípio da autarkeia regerá a sua conduta, pois nenhuma reação supera o modo de ser da própria natureza, que uma vez conhecido engendra paz e tranquilidade àquele que experimenta este conhecimento, e angústia e desespero àquele que se põe em desacordo com ele, seja sob a forma de ignorância, seja por alimentar crenças vãs provenientes da imagi-nação. Em suma, não reagir aqui tem o sentido explícito de não aceitar nem procurar o que não condiz com a plena realização física do corpo, ou ainda de manter-se alheio aos desejos vãos e aos valores que se mostram em desa-cordo com o que realmente importa à saúde e ao equilíbrio ou à boa dispo-sição (eustatheia) do corpo-carne e à sua inseparabilidade da alma.

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Tradição e atualidade da parrêsia (“fala franca”) como terapia

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Edrisi Fernandes1

Introdução

Em Sobre a fala franca (Peri parrêsias/De libertate dicendi; P. Herc. 1471)2, uma coleção de reflexões (“obra sobre a prática ética”) sobre notas das lições de Zenão de Sidon3, organizada num tratado nos anos 40 a.C. como parte de um conjunto mais vasto4, Filodemo de Gádara (110-40/35 a.C.) — um intérprete fiel e coerente5 dos ensinamentos de Epicuro e provavel-mente o mais importante epicurista depois do mestre — emprega o con-ceito de parrêsia, de raízes políticas rastreadas por Giuseppe Scarpat6,

1 Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte — UFRN; <[email protected]>.

2 PhiLodEmuS, On Frank Criticism, ed. e trad. D. Konstan et al., Atlanta (Georgia), Scholar’s Press, 1998.

3 Chefe da escola epicurista entre 110 e 75 a.C.4 Sobre os modos de vida (Peri êthôn kai biôn), conjunto cuja composição ainda é objeto

de discussão.5 Cf. M. GiGantE, La Bibliothèque de Philodème et l’Épicurisme Romain, trad. e Pref. Pier-

re Grimal, Paris, Les Belles Lettres, 1987, 41.6 G. SCarPat, Parrhesia: Storia del termine e delle sue traduzone in latino, Brescia, Paideia,

1964.

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revisadas por Arnaldo Momigliano7 e mais amplamente divulgadas por Mi-chel Foucault em seus cursos de 1982 a 19848, numa conotação ético-filo-sófica relacionada com a instrução dos discípulos e com a atividade do filóso-fo-fisiólogo, articulada com a preocupação maior epicurista com a pre venção da infelicidade, a promoção da felicidade e a cura da dor.

Na época helenística, o sentido de parrêsia deslocou-se do campo po-lítico, onde traduzia o direito e a liberdade do cidadão para declarar suas opiniões, para o campo privado, onde passou a denotar a lisura, a sinceri-dade e a franqueza apreciada entre verdadeiros amigos9. No Perì parrêsias, a fala franca é discutida no contexto da prática filosófica como arte médi-ca, por meio do emprego de palavras, expressões e exemplos extraídos da conjuntura médica, o que nos incentiva a analisar a parrêsia enquanto con-ceito que pode ser incorporado a um conjunto de práticas que envolvem ou enfatizam uma psicologia constitutiva de uma relação terapêutica ami-gável e simétrica10 entre duas ou mais pessoas, pautada pela reciprocida-de11 e pela franqueza (parrêsia), balanceada com a amabilidade (prao9tês) e orientada conforme o plano de uma “estética existencial”12 respeitadora da individualidade ética.

7 A. momiGLiano, Freedom of speech in antiquity, in Philip P. WiEnEr (ed.), The Dictionary of the History of Ideas: Studies of Selected Pivotal Ideas, New York, Charles Scribner’s Sons, 1974, v. 2, 252-263.

8 M. fouCauLt, L’Éthique du souci de soi comme pratique de liberté: Cours au Collège de France, 1984 (printemps), in D. dEfErt, f. EWaLd (org.), Dits et écrits par Michel Foucault, IV, Paris, Gallimard, 1994; M. fouCauLt, Fearless Speech, ed. Joseph Pearson, Los Ange-les, Semiotext(e)/Foreign Agents, 2001 (seis palestras ministradas na Universidade da Califórnia em Berkeley, out.-nov. de 1983).

9 PhiLodEmuS, On Frank Criticism, 3-5.10 Compreendendo uma relação vertical entre mestre e discípulos, ou entre terapeuta e

pacientes, balanceada com relações horizontais de amizade “intensas, densas, fortes” entre todos (M. fouCauLt, A hermenêutica do sujeito: curso no Collège de France, 1981-1982, ed. estabel. F. Ewald, A. Fontana, F. Gros, trad. M. Alves da Fonseca, S. T. Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 2004).

11 A parrêsia é o falar verdadeiro numa situação em que o locutor fala francamente, mas o ouvinte também é livre para se convencer ou não (P. Allen miLLEr, Truth-Telling in Foucault’s “Le gouvernnement de soi et des autres” and Persius 1: The Subject, Rheto-ric, and Power”, Parrhesia, 1 [2006] 27-61 [33]).

12 Cf. J. frank, Philosophical parrhesia as aesthetics of existence, Continental Philosophy Review, 39 (2006) 113-134.

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Tradição e atualidade da parrêsia (“fala franca”) como terapia

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A interação “parresiástica”: entendimento e prática. Didática e terapêutica da parrêsia

Nem Epicuro nem Zenão parecem ter empregado extensamente a pa-lavra parrêsia13. Em uma Sentença vaticana, cujo texto grego inicia com esse vocábulo, Epicuro proclamou: “De minha parte, usando a fala franca de quem estuda a natureza, ainda que ninguém possa compreender-me preferirei vaticinar coisas úteis a todos os homens a, dando meu assenti-mento às opiniões, recolher o abundante aplauso vindo de muitos” (Sen-tenças Vaticanas, 29; trad. nossa)14. Nessa sentença, o que nos parece mais importante é a estreita associação entre a parrêsia e a phusiologia e a apre-sentação do conhecimento da phusis (natureza) como requisito para prever a utilidade do que se tem a dizer, que é algo diferente das opiniões. A auto-ridade da parrêsia apoia-se na natureza e é isso que a torna útil à totalidade dos homens. A parrêsia é o único veículo apropriado para o conhecimento verdadeiro, aquele que é fiel à natureza.

Na obra de Filodemo, fora do tratado Sobre a fala franca, a ideia de que verdadeiros amigos devem interagir em parrêsia é também exposta nas Memórias epicúrias (Pragmateı̃ai/De Epicuro et alii), onde Filodemo cita uma passagem que registra uma ocasião na qual Epicuro teria criticado o fato de que Mitre não falou a si com franqueza: “[…] não há sentido em não falar com franqueza com um amigo, comigo que lhe tenho sido útil para outros afazeres […]” (P. Herc. 1418, col. XXV, 15-17)15. Em seu trata-do Sobre a piedade (Peri eusebeias/De pietate)16, 75, 2175-2177, Filodemo afirma que “um filósofo deveria falar francamente” (P. Herc. 229, fr. 5, col. LXXV, 25-27)17. Mais uma evidência de que os epicuristas deveriam se empenhar na parrêsia aparece na Antologia palatina (IX.570 = epig. 3)18,

13 A. momiGLiano, Freedom of speech in antiquity, 261.14 Cf. a discussão sobre esta sentença em fouCauLt, A hermenêutica do sujeito, 295-297.15 fiLodEmo, Memorie Epicuree (PHerc. 1418 e 310), 134 [grego], 183 [ital.], 260 [nota].16 P. Herc. 229, 242, 243 (?), 247, 248 (?), 433 (?), 437, 452 (?), 1077, 1088 (?), 1098, 1428, 1602

(?), 1609 (?), 1610, 1648 (?), 1815 (?). Na reconstituição de Dirk Obbink, P. Herc. 229, 242, 247, 437, 1077, 1098 e 1610 formam a parte I do De Pietate (cf. PhiLodEmuS, 1996: 254-255), e P. Herc. 1428, a parte II (ainda por publicar).

17 PhiLodEmuS, On Piety. Part 1 (Tmêma próteron), ed. e trad. Dirk Obbink, Oxford, Claren-don Press, 1996, 254 [grego], 255 [ingl.].

18 D. SidEr, The Epigrams of Philodemos: Introduction, Text, and Commentary, New York/Oxford, Oxford University Press, 1997.

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onde o “amigo” criticado é o próprio Filodemo, repreendido por ser um epicurista imperfeito19.

Filodemo teve a cautela de apontar no Peri parrêsias (doravante, P) que seu tratamento do problema da fala franca, por ser sua obra um epíto-me, não poderia ter a pretensão de ser mais direto: “é necessário, de fato, apenas adaptar a maior parte das coisas ditas à tal fala franca. É difícil que aqueles que fazem compêndios (epitomikôs) exponham com pontualidade todos os aspectos [de uma questão] como aqueles que tratam cada argu-mento de um modo exaustivo” (P, col. VIIb, 3-11). No Peri parrêsias, Filo-demo apresenta o filósofo-educador, mestre da sabedoria, atuando no au-xílio (boêtheia), na preparação ([pro]kataskeue3%) e no tratamento (therapeia) de um grupo de estudantes (kataskenazômenoi) segundo o modelo do bom médico. Conforme Foucault, parrêsia não é essencialmente franqueza, mas uma técnica utilizada na relação entre o curador e o enfermo “que permite ao mestre utilizar como convém, nas coisas verdadeiras que ele conhece, o que é útil, o que é eficaz para o trabalho de transformação de seu discípulo”20. O filósofo-educador é também um fisiólogo21 que prepara e provê (paraskeuázei) com boas coisas (P, fr. 39, 6-7) o sujeito para alcan-çar o melhor de sua natureza pessoal e adaptar-se do melhor modo à natu-reza como um todo. Atuar sobre o ser do sujeito de modo a torná-lo capaz de vivenciar com serenidade saudável e traduzir em sabedoria ética o co-nhecimento de si e da natureza nem sempre é um processo fácil. Con-forme Clarence E. Glad,

Filodemo usa imagens médicas para jogar luz sobre o processo de exortação moral e para enfatizar [1] a necessidade de perseverança em casos difíceis, [2] o cuidado do paciente por parte do médico e [3] o uso legítimo da aspereza no caso de estudantes recalcitrantes. Esse modelo médico é conjetural, do mesmo modo que a arte de um médi-co, de um retórico ou de um piloto — nomeadamente, não pode ser gerada nenhuma regra geral válida para todas as instâncias. […]

19 Cf. Id., How to Commit Philosophy Obliquely: Philodemus’ Epigrams in Light of his Perì Parrhêsías, in John T. fitZGEraLd, Dirk oBBink, Glenn S. hoLLand (ed.), Philodemus and the New Testament World, Leiden, E. J. Brill, 2004, 85-101 (Supplements to Novum Tes-tamentum, 111).

20 fouCauLt, A hermenêutica do sujeito, 295.21 Ibid., 293-297

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O modelo médico não é usado para destacar as relações sociais assimétricas entre o médico e o paciente, nem para dizer nada so-bre a condição do “médico”. Ele é empregado para caracterizar o estado dos alunos [como pacientes] e os meios, métodos e proce-dimentos do médico e para chamar a atenção sobre a natureza con-jetural da psicagogia, sobre a necessidade de adaptação e sobre o uso legítimo da aspereza22.

Conforme Francis Wolff, “a filosofia é, com efeito, definida pelos epi-curistas como medicina: ela cura os homens da situação inicial e necessá-ria de dor e de infelicidade na qual se acham ordinariamente”23. Dor e in-felicidade acompanham quatro doenças principais: o temor dos deuses24, da morte, da não-permanência do prazer, da dor25.

Etimologicamente, parrêsiazesthai ou parrêsiazomai significa “dizer tudo”, e Foucault26 sugere que etimologicamente parrêsia é “o fato de tudo dizer (franqueza, abertura de coração, abertura de palavra, abertura de lin-guagem, liberdade de palavra). […] É uma técnica e uma ética, é uma arte e uma moral”. Clarence Glad explica que “parrêsia ou fala franca é um tipo de homilia e um sine qua non da amizade27 […]; é um comportamento ou um modo de vida. Logo, do mesmo modo que a concordância, o falar para agradar, elogiar e outras técnicas aduladoras são características da adula-ção, a fala franca é característica da amizade”28.

Em sua dimensão política, parrêsia significa palavras enunciadas aberta e corajosamente por homens livres da pólis (fora do Jardim epi-curista, estrangeiros, metecos, escravos e mulheres não podiam praticá-la). Conforme Foucault29, “o ‘jogo parresiástico’ pressupõe que o parrêsiaste 3 %s

22 C. E. GLad, Paul and Philodemus: Adaptability in early Christian psychagogy, Leiden, E. J. Brill, 1995, 133-134, 155.

23 F. WoLff, Três figuras do discípulo na filosofia antiga, tradução Franklin de Matos, Dis-curso, 22 (1993) 123-152 (138).

24 Temor oriundo da fraqueza (traduzida em perturbação) em considerar-se afetado por movimentos de ira ou de gratidão; cf. Kyríai dóxai [Ratæ sententiæ], I (= Prosphônêsis [Gnom. vat.], 1).

25 Ad Menœceum, 133; Ratæ Sententiæ, I (= Gnom. Vat., 1), II (Gnom. Vat., 2), III, e IV (Gnom. Vat., 3); frag. Usener 148.

26 M. fouCauLt, Fearless Speech, 440 e 442.27 Cf. também PhiLodEmuS, On Frank Criticism, 6.28 C. E. GLad, Frank speech, flattery and friendship in Philodemus, in J. T. fitZGEraLd (ed.),

Friendship, Flattery, & Frankenness of Speech. Studies on Friendship in the New Testa-ment, Leiden, E. J. Brill, 1996, 21-59 (29) (Supplements to Novum Testamentum, 82).

29 M. fouCauLt, Fearless Speech, 15.

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é alguém com as qualidades morais requeridas primeiramente para conhe-cer a verdade, e em segundo lugar para comunicar essa verdade a outros”. Ademais, dizer a verdade é sempre uma atitude arriscada30, embora aten-da sempre a um dever interior31. Em dimensões privadas, a parrêsia é elo-giada como amizade verdadeira, enquanto a adulação (kolakeia) é conde-nada como amizade fingida. Filodemo escreveu um tratado Sobre a adulação (Perì kolakeías/De adulatione) (Livros I e II32 de Peri kakiôn kaì tôn antikeimenôn aretôn [De vitiis]: P. Herc. 222, 223, 1082, 1089, 1457, 1675), e outro Sobre a fala franca. Plutarco (66-120 d.C.) escreveu o trata-do Como distinguir um adulador de um amigo (Quomodo adulator ab amico internoscatur [Moralia, I.4 Stephanus]), com extensas seções sobre adula-ção (cap. 1–25; 48e–59a) e parrêsia (cap. 26–37; 59a–74e), chegando a afirmar que “é preciso exercitar-se na franqueza enquanto o maior e mais eficaz pharmakon na arte da amizade, [aquele] que necessita sempre de uma oportunidade adequada e uma constituição moderada” (74d). Esto-beu (segunda metade do século V) discute a parrêsia (Eclogæ, 3.13) antes de discutir a adulação.

Para Foulcault, “à época dos epicuristas, a afinidade da parrêsia com o cuidado de si havia se desenvolvido até o ponto em que a própria parrêsia era primariamente vista como uma tekhnê de orientação espiritual para a ‘educação da alma’”33. No Peri parrêsias o método educativo é comparado à alimentação: do mesmo modo que o alimento ajuda o enfermo, a educação é importante para o homem sadio; comida e ensinamentos de gosto duvido-so devem ser descartados (P, fr. 18). Segundo Filodemo, o filósofo cuida da alma do discípulo do mesmo modo que o médico trata do corpo (P, fr. 39); a única tarefa apropriada do argumento filosófico34 é o tratamento terapêu-tico da alma humana para assegurar uma vida feliz. É de Epicuro a afirma-ção de que “é vã a palavra do filósofo que não remedeia (therapeuetai) ne-nhuma afecção do ser humano. Pois, assim como é inútil a arte médica que não lança a enfermidade fora dos corpos, também é inútil a filosofia que não remove a afecção da alma” (Porfírio, Ad Marcellam 31; Usener 221).

30 Ibid., 16-17. Cf. Carlos GarCía GuaL, Epicuro, Madrid, Alianza, 1981, 213, 216.31 M. fouCauLt, Fearless Speech, 19.32 Clarence E. Glad (PhiLodEmuS, On Frank Criticism, 2) menciona “provavelmente três

livros”.33 M. fouCauLt, Fearless Speech, 24.34 Usener 219: logoi kai dialogismoi.

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Conforme Marcello Gigante35, “a terapia representada em Filodemo é dupla: é médica [purgativa] ou cirúrgica [ablativa]. Ela efetiva a norma hi-pocrática: a arte do médico consiste em eliminar (estromettere) o elemento que causa dor, em sanar de novo o homem tolhendo aquilo pelo que sofre”36. O verbo tolher, no contexto epicúrio, tem uma importância funda-mental: o remédio epicurista é descrito como 1) a “delimitação” física (con-trole racional possível porquanto perfeitamente ancorado à estrutura das sensações) da intensidade do prazer ou da dor; 2) a identificação do ponto limite que comporta o tolhimento do medo daquilo que, enquanto inevitá-vel (a morte) e inapreensível (os deuses), não seria definível e cognoscível, não devendo, portanto, causar temor ou perturbação. Para tolher aquilo pelo qual se sofre, ao mestre ou médico muitas vezes só resta a opção de enveredar pelo modo doloroso de devolver a saúde (P, col. XVIa-XVIIa). A parrêsia do mestre e o bisturi do médico (P, col. XVIIa) servem como a te-soura de poda do agricultor para eliminar as ervas daninhas37. Diógenes de Enoanda (século II) também evocou a supressão de aflições por meio da metáfora da extirpação ou ablação (Diógenes de Oenoanda, 3, VI).

Para Filodemo (P, fr. 46), a depuração (katharsis) do erro/do remediá-vel passa pela purificação (correção/cura) tanto dos erros do jovem discípu-lo (caso de Pitoclés [P, fr. 6], repreendido com moderação) quanto do mes-tre, devendo este último estar tão disposto a contornar erros involuntários do discípulo como a — além de autocriticar-se (P, fr. 51, 3-5) — receber críticas de outros mestres, a quem, por sua vez, pode criticar. No Peri par-rêsias, o modelo do mestre que pode se beneficiar da crítica alheia aponta para a função da fala franca como pharmakon tônico ou profilático que, à diferença do tetrapharmakos — “tratamento polivalente suscetível de res-ponder com urgência à maioria dos sintomas do doente, mas que ainda não ataca as causas da doença”38 —, se adequa melhor a um modelo da saúde como processo dinâmico que precisa de atenção, reiteração e estimulação constante, para um enfrentamento eficaz de todas as causas de doenças.

Na comunidade pedagógico-terapêutica epicurista, aberta a todas as classes sociais, a interação entre os membros favorece uma situação na

35 M. GiGantE, Philosophia medicans in Filodemo, Cronache Ercolanesi, 5 (1975) 53-61 (57).36 Cf. PhiLodEmuS, On Frank Criticism, 22.37 M. GiGantE, Philosophia medicans in Filodemo, 59.38 F. WoLff, Três figuras do discípulo na filosofia antiga, 138.

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qual alunos apontam aos mestres os erros dos outros alunos, ou então nos admoestam ou nos castigam eles mesmos (P, fr. 8, 9-11; fr. 49; fr. 51-2; fr. 61), num procedimento de correção fraterna (P, fr. 13, 7-8; fr. 22; col. XIVb, 9-11)39 que começa com o conhecimento dos próprios erros e com a auto-correção40 (P, XVb-XVIa), e que foi evocado por Schelling em sua Profissão de fé epicurista de Heinz Widerpost41 (outono de 1799): aquele que admo-esta ou castiga deve dizer ou dar de si conforme aquilo que sente ou porta em si42; são maus conselheiros aqueles que não se baseiam em conheci-mento próprio43 e apreendido por inteiro — “corpo e alma juntos”44 —; a palavra de uma pessoa vale o mesmo que a dos colegas45. A benevolência (eunoia)46 recíproca e a gratidão (charis)47 são as respostas epicuristas apro-priadas para a franqueza e a amizade48, estimulando a liberdade da palavra na comunidade.

39 Cf. ainda T. M. riLEy, The Epicurean Criticism of Socrates, Phoenix, 34 (1980) 55-68 (66-67).40 Cf. D. LaérCio, Vita Epicuri cum testamento, 121b6: “E [ele] se alegrará quando alguém

se corrige”.41 Epikurisch Glaubensbekenntnis Heinz Widerporstens, in Gustav Leopold PLitt (ed.), Aus

Schellings Leben. In Briefen, Leipzig, Hirzel, 1869-70, v. 1 (1775-1803), 3 v., texto alemão consultado a partir de Heidi-Melanie maiEr e Thomas nEumann (eds.), Quellen zur Ge-schichte Thüringens. Literarisches Leben um 1800, Erfurt, Landeszentrale für politische Bildung Thüringen, 2004, 210-220. F. W. J. SChELLinG, Profissão de fé epicurista de Heinz Widerporst, in Rubens R. T. fiLho, Ensaios de filosofia ilustrada, 2. ed. ampl., São Paulo, Iluminuras, 2004 [1ª ed.: 1987), 173-181 (poema), 185-185 (notas).

42 Versos 60-61: “Könnens nicht anders von sich geben noch sagen,/Als wie sies in sich fühlen und tragen” (“Nada podem dizer ou dar de si,/A não ser como o sentem ou por-tam em si”) (SChELLinG, 2004: 174)].

43 Versos 281-282: “Wissen sich doch nur schlecht zu raten/ Reden so mehr von andrer Ta-ten” [“São, porém, para si, maus conselheiros,/discursam sobre feitos de terceiros” (SChELLinG, 2004: 180)].

44 Verso 51: “Leib und Seel zusammen”. Cf. os versos 54-55: “Wie sie sprechen vom innern Licht,/ Reden viel und beweisen nicht” [“Quando falam de luz interior/Conversam muito e nada tem valor” (SChELLinG, 2004: 174)].

45 Verso 65: “Mein Wort so viel wie anderes gilt” [“Minha palavra vale o mesmo que as alheias” (SChELLinG, 2004: 174)].

46 Cf. o Peri Parrêsias, fr. 25, 6; 31, 12; 36, 3; 52, 8-9; 74, 6-7; Ib, 2; fouCauLt, L’Éthique du souci de soi comme pratique de liberté, 469, 471.

47 Cf. o Perì Parrêsias, fr. VIIIb, 13; Xb, 11; XVIB, 10; C. GarCia GuaL, Epicuro, 213-14.48 Para Marcello GiGantE (La Bibliothèque de Philodème et l’Épicurisme Romain, 46), “a

grande mensagem da civilização epicurista consiste na síntese de parrêsia, philia, charis e eunoia, e apresenta de modo exemplar a comunidade epicurista”.

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A parrêsia, fármaco profilático e ingrediente terapêutico

O modelo do médico que arrisca experimentar um modo de purificar o corpo do paciente equivale ao modelo do filósofo-educador que não abre mão de experimentar a parrêsia de forma vívida (pro ommatôn, “ante olhos”, P, fr. 26, 4-5; fr. 42, 1; fr. 77, 3; col. XVIIa, 9; ex holês psukhês, “com a alma inteira”, fr. XVIb) até que obtenha a purificação da alma do discípulo (P, fr, 57; fr. 65, 8). No Perì eusebeías, Filodemo apresenta Epicuro como um tera-peuta de tipo particular, praticando uma medicina caracterizada como de tipo preventivo/“precaucionário”49 ou “preservativo (phulaktikón)”50 (phu-lakê, Peri eusebeias/De pietate 54, l539). O médico “parresiasta” interpreta os sinais de uma enfermidade e pode supor que o enfermo se beneficiará com uma purgação (kenôma, P, fr. 63, 3-11) ou com a repetição desta (P, fr. 63-4). A purgação pode ser necessária (P, col. IIb, 2-7); o emprego dela e da cirurgia confirmam a legitimidade do uso pedagógico/terapêutico da dureza.

O método purgativo se justifica no contexto filosófico-psicológico porque tratar de sentimentos ou do mundo interior não é fácil, e uma se-miologia baseada em sintomas não muito claros não pode levar a um diag-nóstico seguro. O mestre/médico, por outro lado, pode empregar, naqueles mais necessitados de tratamento e que mudam escassamente mesmo se gritados, uma modalidade rígida51 de fala franca, chamada por Filodemo de sklêrôi khre3%setai tês parrêsias (P, fr. 7, 9-10), na qual, pensamos, o falan-te dá a entender que já experimentou os mesmos tipos de infortúnio que o ouvinte52. Essa franqueza áspera é apropriada para usar-se com pessoas mais fortes/resistentes (iskurous, P, fr. 7, 2-3 e 6; 10, 8-11; col. XXIIb, 5-6)53, podendo ser usada do mesmo modo que um médico administra re-petidas doses de um purgativo forte até obter o efeito almejado. Conforme David Armstrong,

49 Nota de D. Obbink a PhiLodEmuS, On Piety, 531.50 Lee PEarCy, Epicurus and the Cure of Souls: Observations on Philodemus, De

Pietate. Comunicação apresentada ao encontro anual da American Philological Association (Washington, D.C., 27-30/12/1998), resumo disponível em: <www.apaclassics.org/AnnualMeeting/98mtg/abstracts/pearcy.html>.

51 Distinta da modalidade moderada, qualificada por Filodemo de metrios (P, fr. 6, 8; fr. 20, 1; fr. 71, 4; fr. 93 N, 8) ou praos (fr. 74, 2-3; col. XVIa, 8 [praeôs]).

52 Cf. PLutarCo, Como distinguir o adulador do amigo, 72a.53 Cf. M. GiGantE, Motivi paideutici nell’opera filodemea “Sulla libertà di parola”, Crona-

che Ercolanesi, 4 (1974) 37-42; C. E. GLad, Paul and Philodemus: Adaptability in early Christian psychagogy, Leiden, E. J. Brill, 1995, 137-152, espec. 143-146.

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[…] o antigo “terapeuta” filosófico, que adorava usar analogias mé-dicas para suas práticas, tinha tanto a adulação (kolakeia) quanto a reprovação (noutheteia) violenta em sua farmacopeia de diatribes, em conformidade com conceber que estaria falando a uma alma delicada ou a alguém másculo o suficiente para aguentar a fala sem reservas — e o segundo tipo é um cumprimento explícito, e não um insulto54.

Na arte terapêutica de curar almas, falar com sinceridade e franqueza é comparável a pilotar uma embarcação ou curar o corpo55: nem sempre a cura da alma, a navegação ou a cura física produzem resultados inteira-mente benéficos.

Filodemo certamente considera a distinção dos elementos da mistura (summeikton) terapêutica uma condição indispensável para quem se pro-põe a conhecer como empregá-los, e no Perì kolakeías distingue a adulação (kolakeia) da parrêsia: o adulador (kolax) não se importa em simular parrêsia e sinceridade quando busca vantagens pessoais. Seguindo a analogia aristo-télica, a amizade é a virtude que se encontra no meio de dois vícios, a adu-lação e a inimizade56, mas na livre comunidade do Jardim (kêpos) a amizade tinha um valor excepcional, como aprendemos da obra de Filodemo (?) So-bre as escolhas e as recusas (Peri Airesei kai Phugai/De electionibus et fugis, P. Herc. 1251) — “É impossível para alguém viver prazerosamente […] sem [ter as virtudes de] fazer amigos ou sem ser filantropo” (col. XIV, 1-5)57 — ou em uma das “Máximas escolhidas” — “De todos os bens que a sabedo-ria procura para a completa felicidade da vida (ou: para a felicidade de uma vida inteira), o maior de todos é a aquisição da amizade”. Conforme Ma-rkus Figueira58, “é do ‘retorno’ ao mundo natural, onde se compreende a pluralidade das manifestações da phusis, que fluirão novos “agregados so-ciais”, novas composições nas quais a autarkeia e a ôpheleia (convivência

54 D. armStronG, resenha de Susan Morton Braund e Cristopher GiLL (ed.), The Passions in Roman Thought and Literature, 1997, Bryn Mawr Classical Review, 98.5.10, disponível em: <http://ccat.sas.upenn.edu/bmcr/1998/98.5.10.html>.

55 A comparação do corpo com um navio é clássica; cf. por exemplo LuCréCio, De rerum natura, IV, 897; IV, 901-904.

56 Cf. E. aCoSta mEndEZ, PHerc. 1089: Filodemo “Sobre la adulación”, C.Erc., 13 (1983) 121-138; e F. Longo auriCChio, Sulla concezione filodemea dell’adulazione, C. Erc., 16 (1986) 79-91.

57 PhiLodEmuS (?). On Choices and Avoidances (P. Herc. 1251; título suposto), 93-94 [grego], 106 [ingl.], 236 [ital.].

58 M. F. da SiLva, Sabedoria e jardim, Princípios, Natal (RN), 1 (1994) 101-107 (104).

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mútua) produzirão a amizade (philia)”. Ainda para Figueira, Epicuro mobi-lizou-se para o cumprimento do êthos (práticas de conduta e convivência) e buscou recompor suas relações trocando a polis pelo Jardim, um lugar onde diferentes pessoas tinham a philia como princípio de convivência e onde “torna-se puríssima (sem mistura) a segurança que nasce da quietude (hesu-chia) e do afastar-se das massas” (Ratæ sententiæ, XIV). Ademais, continua o autor, “a tentativa de redimensionar as relações entre os homens a partir de um princípio de harmonia e busca de sabedoria faz dele um pensador que liga a compreensão da phusis ao exercício da vida”59.

Percebendo uma conexão entre método curativo e método instrutivo, entre terapia e pedagogia, o bom mestre/médico, determinando a natureza do remédio a aplicar segundo a condição do doente/aluno e agindo apro-priadamente (P, fr. 2, 9), discretamente (P, fr. 61, 2-4), descontinuada-mente (P, fr. 79, 4) e no momento oportuno (P, fr. 22; fr. 25; fr. 65; col. XVIIa-b; Peri orgês/De ira, XLIV)60, deve saber a hora de empregar o ânimo e o estímulo — por exemplo, com apertos de mão (P, fr. 44, 9-10) e alegre-mente (P, fr. 61, 4) —, uma “admoestação carinhosa” (kêdemonike3' nouthe-thêsis; P, fr. 26, 6-7), uma terapia com palavras moderadas (phônaîs me-triais; P, fr. 20, 1-2) ou de elogio (epainois; P, fr. 68, 4-5), à parte de ou junto com argumentos dolorosos (P, fr. 63-69), estando apto a livrar a alma das afecções (P, fr. 66). A avaliação do momento oportuno de empregar a parrêsia já havia sido apontada por Demócrito (fr. 226 Diels-Kranz) — “A parrêsia é própria da liberdade, o perigo é distinguir a ocasião apropriada” —, e é reiterada por Filodemo, que advoga a fala franca “no momento certo e em boa vontade (kata kairon kai ap’eunoias)” (P, col. XVIIb). Na composi-ção da mistura terapêutica veiculada pelo logos, a recordação de um ensi-namento epicúrio devia ser essencial: “é necessário curar os males do pre-sente com a grata recordação dos bens passados e com a consciência de que não é possível desfazer aquilo que ocorreu” (Sentenças Vaticanas, 55).

Filodemo compara a correção de faltas morais do aluno recalcitrante, que não obedece à crítica construtiva de seu mestre, aos procedimentos dos médicos (P, fr. 64). Do mesmo modo que, conhecendo uma enfermi-dade e não tendo êxito em aplacá-la com certo remédio, um médico apela para outro mais forte, o mestre deve conhecer o erro para poder corrigi-lo,

59 Ibid., 105.60 Cf. ainda fouCauLt, A hermenêutica do sujeito, 468-469.

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e por vezes terá de aplicar a parrêsia com aspereza a fim de alcançar seu objetivo. Por outro lado, o aluno é estimulado a seguir o exemplo do pa-ciente em relação ao médico — o vínculo que institui o discurso filosófico entre mestre e discípulo é igual àquele do médico com o paciente61 —, devendo “abandonar-se nas mãos dos dirigentes e depender somente de-les” (P, fr. 39, 2-4); deve entregar-se ao seu “guia do falar e do agir correto” para se tratar (P, fr. 40, 6-8)62. O filósofo-educador é reconhecido pelos alunos como um salvador (sôter), e eles se sentem seguros sob sua direção e sua proteção (P, fr. 40, 8-10). De fato, Filodemo fala de sua prática como “o salvar-se por um outro”63 (P, fr. 36, 1-2), e ainda conforme o gadarense Epicuro afirmou no livro 35 do tratado Peri phuseôs/De natura (Sobre a na-tureza) que “alguns (…), [sal]vando a si mesmos, também tornam-se [sal-vadores] de outros”64 — cabe recordar, com Foucault, que na tradição epi-curista “salvar-se” significa “ganhar acesso a uma vida boa, bela e feliz”. A garantia de segurança do aluno-paciente sob o cuidado do filósofo-tera-peuta obedece ao modelo do mestre maior, Epicuro, evocado por Filode-mo no Peri eusebeias/De pietate, 1536-1545: “[…] grande era a força da [sua] precaução [ou prevenção] efetiva [ou completa] (ep[it]e[l]e<'s phulake<') contra todas as coisas que poderiam possivelmente perturbar a qualquer um em ato ou palavra, ou mesmo dar a impressão de intentar [ou desejar] infligir dano […]” (P. Herc. 1098, fr. 2, col. LIV, 4-13)65.

Em uma filosofia que tanto valoriza a autarkeia e a equanimidade da philia, pode surpreender a menção à autoentrega ou autoabandono do alu-no nas mãos do dirigente, mas a natureza desse aluno que necessita se deixar dirigir ou ser dirigido é explicitada no “Sumário” (na parte final) do livro 25 do tratado Sobre a natureza66, onde aprendemos que as pessoas podem ser divididas em três grupos: aqueles que, dotados de autoimpulsão

61 Cf. F. WoLff, Três figuras do discípulo na filosofia antiga, 138.62 Cf. o Perì Orgês/De Ira, IV.63 to d[i’al]le3%lôn so<'<i>zesthai. Cf. M. fouCauLt, Histoire de la sexualité, 3: le souci de soi,

Paris, Gallimard, 1984, 67.64 (…) ti[nas]… [so<%i]zon[tes autous] kai tôn allô[n sôtêres] g[inont]a[1]. Reconstituição: R.

PhiLiPPSon, Zu Philodems Schrift Über die Frömmigkeit, Hermes, 56 (1921) 364-410 (383), de uma passagem do fr. 106 [124, 12 Gomperz; 91 Usener] do Peri Eusebeias/De pietate (reconstituição refutada por Obbink), reproduzida em EPiCuro, Opere, ed. e trad. Gra-ziano Arrighetti, Torino, Einaudi, 1960, 317.

65 PhiLodEmuS. On Piety. Part 1 (Tmêma proteron), 212 [grego] e 213 [ingl.].66 Cf. S. LaurSEn, The Summary of Epicurus On Nature Book 25, Papyrologia Lupiensia,

Lecce, 1 (1991) 142-154.

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(através de sua própria ação, ex hêmôn autôn, na linguagem do livro 34 do Sobre a natureza), são capazes de comandar sua própria progressão (“parte por mecanicidade, parte por escolha consciente”67, cf. linhas 38-40); aque-les que precisam de ajuda na sua progressão, embora a natureza desta não destoe da condição (aidios) e das sementes (spe[rm]a) naturais (linha 15), e, finalmente aqueles que precisam ter sua natureza reestruturada (cf. linhas 18-19), e que só progridem à custa de compulsão externa68.

Laursen69 sugere que os tipos emblemáticos de cada grupo apresenta-do no “Sumário” do livro 25 do tratado Sobre a natureza seriam Epicuro, Metrodoro e Hermarco, respectivamente, e pensamos que o uso da parrê-sia com aspereza pode ser justificado nos dois grupos de pessoas que pre-cisam se entregar ou abandonar nas mãos do dirigente para que este os ajude a progredir ou necessite empurrá-los; para estes, a parrêsia funciona como princípio e como comando; no segundo grupo, como método even-tual; no terceiro grupo, como método mandatório. Esses dois grupos que precisam ser conduzidos por um guia (hodêgos; kathêgête3%s; kathêgêsamenos; hêgemôn) são os mesmos que Sêneca menciona numa epístola a Lucílio (livro V, carta 52, 3-4; Usener 192), distinguindo-os do grupo das pessoas dotadas de autoimpulsão (tradução da sua autarkeia).

No livro 25 do tratado Sobre a natureza, Epicuro (que teria então no máximo 46 anos, segundo Simon Laursen) advertia (linhas 10-14) que “se não apreendemos qual é a regra (kano < 'n) e o meio (epikrînon) de de-terminar <o que é certo naquilo> tudo que é proporcionado pelas opi-niões, mas irracionalmente (alogôs) seguimos os impulsos dos muitos, to-das as nossas regras de investigação desaparecerão, e por causa disso teremos de lutar contra algo sobrepujante”70. A finalidade do dirigente, no caso da purgação do aluno pela parrêsia áspera, seria depurar este dos “impulsos dos muitos”, substituindo-os por um impulso comum regrado (f kano < 'n), determinado (f epikrinein), racional (f logos) — um impul-so capaz de levá-lo à eilikrineia71 (não-mistura; pureza) que acompanha a condição de autarkeia.

67 Ibid., 153; cf. linhas 38-40.68 Cf. o fr. 20 C (10) de SEdLEy, LonG, The Hellenistic Philosophers.69 S. LaurSEn, The Summary of Epicurus On Nature Book 25.70 Ibid., 145 [grego], 147 [ingl.].71 Cf. Ratae sententiae, XIV.

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A parrêsia como ponte entre a filosofia e as artes da terapia

A filosofia epicurista responde essencialmente à preocupação de en-contrar uma resposta para o problema da dor. Para Gilbert Romeyer-Dherbey,

Não basta dizer que o epicurismo é um hedonismo; deve-se com-preender que se o bem soberano é prazer e a dor é mal radical, isso se dá porque a individualidade restringida a si se dobra sobre sua afecção (pathos), a qual é dor ou prazer […]. A esperança de alcan-çar o bem-estar se justifica, sob essa óptica, pela crença na possi-bilidade de dominar a afecção, quer dizer, de manter o prazer e a dor sob limites estreitos, fáceis de circunscrever72.

Não seriam necessárias mais palavras para apontar para uma enorme área de convergência de interesses da filosofia epicúria com a medicina (promoção do bem-estar, domínio da dor). De fato, a prática epicurista da parrêsia conforme retratada por Filodemo permite ensaiar uma aproxima-ção com o modelo de relação terapeuta–paciente tipo “de colegas” (colle-gial) de Robert M. Veatch. Nesse modelo, o terapeuta e o paciente são vistos como

colegas buscando a meta comum de eliminar a moléstia e preservar a saúde do paciente. O médico é visto como o “parceiro (pal)” do paciente. É no modelo colegial que os temas da crença (trust) e da confiança (confidence) desempenham o papel mais crucial. Quan-do dois indivíduos ou grupos estão verdadeiramente empenhados em relação a metas comuns, então a crença e a confiança se justi-ficam e o modelo colegial é apropriado. Trata-se de uma maneira muito prazerosa e harmoniosa de interagir com outros companhei-ros humanos (with one’s fellow human beings). Existe uma igualda-de de dignidade e respeito, uma igualdade de contribuições de valor73.

72 G. romEyEr-dhErBEy, Le philosophe qui vivait dans un jardin, in L’Encyclopédie de L’Agora (Quebec), 1998-2007, Document Associé ao verbete “Épicure”; última revisão em 20/05/2006. Disponível em: <http://agora.qc.ca/reftext.nsf/Documents/Epicure--Le_philosophe_qui_vivait_dans_un_jardin_par_Gilbert_Romeyer_Dherbey>.

73 R. M. vEatCh, Models for ethical medicine in a revolutionary age. What physician-patient roles foster the most ethical relationship?, The Hastings Center Report, 2 (3) (1972) 5-7; republ. em T. A. maPPES, j. S. ZEmBaty (ed.), Biomedical Ethics, 3. ed., New York, McGraw Hill, 1991, 55-58.

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Essa igualdade ancorada na philia tem uma característica importante no contexto epicurista: “o sábio só é compreendido pelo sábio”, como apontou Figueira74. Numa relação de philia, ser sábio implica conhecer e dar-se a conhecer numa relação franca de iguais — pelo menos em inten-ções. Conforme Foucault75, parrêsia é “a abertura do coração, é a necessi-dade, entre os pares, de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar francamente. Noção […] que foi para os epicuristas, junto com a amizade, uma das condições, um dos princípios éticos da direção” dos in-divíduos. A abertura do coração deve ser entendida não apenas no que concerne ao falar, mas também em relação ao ouvir (P, 28).

Adaptando e simplificando o modelo colegial de Veatch, Gustavo Fi-gueroa Cave76 aponta tratar-se de uma relação caracterizada por 1) con-fiança e igualdade, 2) comunidade de interesses e metas, 3) comprometi-mento do terapeuta com a igualdade e o respeito, e 4) discurso verdadeiro. Ao mesmo tempo, a interação discursiva de tipo colegial consiste, como todos os atos de fala, em atos subordinados distribuídos em três planos: 1) ato locucionário (o que falamos); 2) ato ilocucionário (a força dessa fala); 3) ato perlocucionário (o que provocamos ao falar). Foucault77 apontou a lisonja e a retórica como adversárias naturais da parrêsia, a primeira na es-fera moral e a segunda na esfera técnica. O discurso verdadeiro “deve dis-pensar a lisonja78 e dela livrar-se”; o “parresiasta” deve inclusive combater seu efeito, a jactância (hyperêphania)79. Da retórica (entendida como fala que não tem a finalidade de estabelecer a verdade, e empregada sem visar à transformação, à modificação ou à melhoria do sujeito), “deve servir-se nos limites muito estreitos e sempre taticamente definidos em que ela é verdadeiramente necessária”80.

74 M. F. da SiLva, Sabedoria e jardim, 106.75 M. fouCauLt, A hermenêutica do sujeito, 169.76 G. fiGuEroa C[avE], Bioética y psicoterapia. ¿Cuáles supuestos morales actúan cuando

ejecutamos un acto psicoterapéutico?, Revista Médica del Chile, 132 (2004) 243-252 (246).

77 M. fouCauLt, A hermenêutica do sujeito, 451.78 Outro nome da adulação (kolakeia); cf. ibid., 452-460.79 Tema de outro tratado de Filodemo (o livro X do Peri Kakiôn/De vitiis), Peri tou Kouphi-

zein Huperêphanias/De superbia (P. Herc. 1008).80 Cf. fouCauLt, A hermenêutica do sujeito, 460-466, 451.

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Edrisi Fernandes

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À guisa de conclusão

Pelas evidências que nos foram legadas pela tradição clássica e por sua interpretação acadêmica — na qual se destacam a contribuição de Marcello Gigante e a de Michel Foucault —, a parrhêsia epicurista consti-tui um “ato ético”81 que é simultaneamente um “ato psicoterapêutico” (in-formal, que seja)82, cabendo usar a palavra “psicoterapêutico” apenas por aproximação, dado o fato de que no pensamento epicúrio — transcenden-do a afirmação de Górgias de que “a potência da fala tem a mesma relação com a organização da alma que o fármaco com a natureza do corpo” (Elo-gio a Helena, 14) — alma e corpo formam uma unidade orgânica indisso-ciável, como já recordara Schelling. Tal fato se reveste de uma importância particular em virtude de que, entre as circunstâncias que proporcionaram a despersonalização da relação terapeuta–paciente desde a Antiguidade, se destacam o advento e o estabelecimento da dualidade mente–corpo e a diminuição da importância atribuída aos sentimentos associada a um au-mento da importância atribuída exclusivamente às sensações vistas como afecções corporais83.

O emprego epicúrio da parrêsia é um método terapêutico na medida em que, sendo “mais que um conhecer” (no caso, aprender ou ensinar através da fala), é uma prática que pode ser entendida como modo de pen-sar e atuar a um só tempo, proporcionando “a chave da inteligibilidade para modificação, liberação e nova constituição do enfermo”84. Pensar o universal (o todo) e atuar sobre o individual (a pessoa), numa mesma oca-sião terapêutica, de uma maneira não-divorciada, é o que caracteriza a atuação do médico-filósofo.

Conforme nossa caracterização, o modelo da interação entre mestre e discípulo, no Peri parrêsias, como “processo dinâmico que precisa de aten-ção, reiteração e estimulação constante”, é protótipo daquele “trabalho

81 “O conduzir-se medicamente (tecnicamente) leva implícita uma inteligência não-técnica (ética) que guia o trabalhar. […] Toda prática médica, ademais de técnica, é invariavel-mente um ato ético; necessita justificar-se e supõe responsabilidade moral” (G. fiGuE-roa C., Bioética y psicoterapia, 248).

82 Cf. ibid., 243-244.83 E. fErnandES, Relação terapeuta–paciente: o quanto avançamos desde os gregos?, in

M. GuErra, A. B. N. T. de mEnEZES (org.), Bioética, um sentido para a vida? Natal, Coope-rativa Cultural, 2001, 41-60 (49).

84 Cf. G. fiGuEroa C., Bioética y psicoterapia, 244.

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Tradição e atualidade da parrêsia (“fala franca”) como terapia

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conjunto de busca e de transfiguração estendido no curso do tempo” que Gustavo Figueroa Cave85 encontra delineado em Le souci de soi, de Fou-cault86, e que cresceu a partir das reflexões deste acerca da parrêsia em seus cursos de 1982 a 1984 no Collège de France e em Berkeley87, com importante resgate da contribuição de Epicuro e Filodemo. Figueroa Ca-ve88 caracteriza esse trabalho terapêutico como “realizações de ‘atos’ e pro-dução de ‘efeitos’”, ou orientações para as ações ou indicações para as prá-ticas do ouvinte/paciente, orientações que “adquirem uma força moral que depende das circunstâncias em que se usam”. Ora, admite-se que o Jar-dim epicúrio oferecia, como apontou Figueira89, “a possibilidade de recria-ção de um e<%thos no qual as diferenças se harmonizariam”. O “equilíbrio entre os homens amigos”, verdadeiro exercício de um modo de ser sábio90 expressando “o equilíbrio físico das coisas da natureza” e seguindo a ordem ditada pela realidade “fisiológica” ou material, possibilitaria alcançar o bem de todos por meio do exercício de uma “ética natural”91, da qual a parrêsia seria indubitavelmente parte essencial. Estamos certos de que não se deve esperar menos dos educadores e terapeutas de hoje.

85 Ibid.86 M. fouCauLt, Histoire de la sexualité, 3: le souci de soi.87 Cf. também M. Tavares CavaLCanti, Sobre o “dizer verdadeiro” no espaço analítico,

Ágora, Rio de Janeiro, 7(1) (2004) 55-72.88 Cf. G. fiGuEroa C., Bioética y psicoterapia, 248.89 F. M. da SiLva, Sabedoria e jardim, 105.90 É oportuno remeter aqui à leitura de uma Sentença vaticana (Gnom. vat., 78) por Bollack,

que entende que sophia e philia compõem ali uma unidade formando a verdadeira phi-losophia (J. BoLLaCk, La pensée du plaisir. Épicure. Textes moraux, commentaires, Paris, Minuit, 1975, 556-557, 580-582).

91 “Moral natural”, em G. fiGuEroa C., Bioética y psicoterapia, 249.

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O riso como sintoma: pontos de vista antigos

(medicina, fisiognomonia, filosofia)1

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Marie Humeau2

Vemos aflorar por todo lado na literatura latina, à deriva de uma frase ou de um verso, a ideia de que o riso seria o sintoma de uma “doença”. Nós a encontramos3 em Sêneca, que afirma no De clementia:

Existem olhos fracos, saiba-o bem, que vendo outros olhos impoten-tes se põem eles próprios a lacrimejar. E se trata de uma doença, e não de uma marca de alegria, sempre rir quando se vê rir os outros, e, diante de todos os bocejos, abrir sua própria boca bem aberta4.

Aqui, a ideia é posta em relação com o contágio emocional, mas de-preendemos da expressão um paradoxo intrigante, na medida em que o

1 Tradução do francês de Miriam Campolina Diniz Peixoto.2 Maître de Conference em Paris X, Nanterre.3 Nós a encontramos também em um poema de Catulo que descreve o riso permanente

e estúpido de certo Egnacio: “O que quer que aconteça, onde quer que ele esteja, o que quer que ele faça, ei-lo a rir com todos os seus dentes: é uma verdadeira doença, a qual, penso eu, nada tem de sedutor nem de elegante […]” (“Quidquid est, ubicumque est/Quodcumque agit, renidet; hunc habet morbum/Neque elegantem, ut arbitror, ne-que urbanum”) (CatuLo, Poesias, 39, 16).

4 SênECa, De Clem. II, 6, 4: “inbecillos oculos esse scias, qui ad alienam lippitudinem et ipsi suffuduntur, tam mehercules quam morbum esse, non hilaritatem, semper adridere ridentibus et ad omnium oscitationem ipsum quoque os diducere”.

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riso está mais correntemente associado à alegria de viver, ao bem-estar, a um estado físico e psíquico que seria o inverso da dor. Não é ele justamen-te o sinal da alegria? De fato, Sêneca contesta esta ideia, que ele apresenta como falsa, e afirma com força ao contrário que:

A verdadeira alegria é austera […]; os outros gêneros de alegria não preenchem o coração […] Eles fazem mover o rosto, eles são su-perficiais — a menos que, por acaso, não tenha que se figurar que aquele que ri experimenta alegria?5

Donde provém a ideia de que o riso, ainda que metaforicamente, po-deria ser sintoma de uma doença? Esta questão demanda uma enquete sobre a concepção das causas e da natureza do riso na Antiguidade greco-romana. A bem dizer, à questão “Qual é a causa do riso?” muitos poucos pensadores e estudiosos antigos se arriscaram a responder. De fato, esta abordagem de tipo bergsoniana não parece funcionar na Antiguidade. No De oratore, Cícero alude maliciosamente à questão para remetê-la a De-mócrito e aos gregos6. Platão, Aristóteles e, em seguida, Cícero e Quinti-liano produziram discursos sobre o riso; mas seu objetivo não é, em si, de-finir e explicar o riso. Eles se concentram o mais das vezes nos usos do riso: seu propósito é, com efeito, delimitar, na vida cotidiana, na comédia ou na arte oratória, os limites entre o riso e o sarcasmo “aceitáveis” e aqueles que são “exagerados” e comportam o risco de ferir — trata-se, pois, de outro debate, o do controle ético da produção do riso.

Nesses textos, a questão do riso espontâneo “normal” e do que o de-sencadeia em quem ri não é tratada enquanto tal, pois o riso não é visado como objeto teorético — ou o é somente de modo marginal. Em vez disso, acontece que o riso se encontre associado à descrição de estados físicos ou psíquicos, ou citado entre os sinais exteriores de um estado interior. Embo-ra nesse domínio a questão das causas do riso pareçam mais se formular para os antigos sob a forma “Que revela o riso?”. E daí, se retomamos o fio das alusões ao riso nos textos antigos, a evidência associando o riso à boa saúde e à alegria aparece muito mais problemática: as alusões de Sêneca

5 SEnECa, Epist. 23: “ceterae hilaritates non implent pectus; frontem remittunt, leues sunt, nisi forte tu iudicas eum gaudere qui ridet”; e se surpreende adiante: “Mihi crede, uerum gaudium res seuera est. An tu existimas quemquam soluto uultu et, ut isti delicati loquuntur, hilariculo mortem contemnere?”.

6 De Oratore II, 235.

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O riso como sintoma: pontos de vista antigos (medicina, fisiognomonia, filosofia)

ao riso como sintoma de uma doença poderiam, pois, ser menos fortuitas do que parecem.

Para esta enquete sobre a associação antiga do riso à doença, nós nos propomos, pois, a explorar três campos do pensamento antigo nos quais a noção de sinal ou de sintoma é particularmente rica em possibilidades, a fim de determinar se o riso tem aí seu lugar. Considerando que a noção de doença e a ideia de sintoma remetem diretamente ao campo da medicina, partiremos de observações sobre o riso como semeion7. Apoiados nesta base de trabalho, nós nos interrogaremos sobre o lugar do riso na fisiogno-monia, ciência que transpõe a interpretação dos sinais ao plano moral, a fim de diagnosticar as características morais de uma pessoa a partir das características físicas e dos comportamentos8. O riso é aí notado como um sintoma de uma patologia moral?

Esta pista nos conduzirá, finalmente, à literatura filosófica — em par-ticular aquela que se inspira no estoicismo, pois esta filosofia levou muito longe a descrição dos fenômenos psíquicos como corpos e das paixões como doenças da alma. De fato, se os primeiros textos estoicos gregos não fazem referência ao riso nem mesmo, globalmente, à fenomenologia das paixões, eles legitimam uma abordagem fisiognomônica das paixões. Ora, os autores romanos recorrem por vezes a esta abordagem a serviço de sua pedagogia do estoicismo, como observaremos nas Tusculanas de Cícero e de Sêneca. Nesta perspectiva, podemos dizer que o riso possui um valor sintomático com relação à saúde da alma?

O riso como semeion patológico na medicina antiga

O riso aparece de várias maneiras nos tratados de fisiologia e de me-dicina. Citemos, em primeiro lugar, o riso que poderíamos caracterizar

7 Ver principalmente as conclusões de J-L. LaBarriErE, Comment et pourquoi la célèbre formule d’Aristote: “Le rire est le propre de l’homme” se trouve-t-elle dans un traité de physiologie?, e J. hankinSon, La pathologie du rire: réflexions sur le rôle du rire chez les médecins grecs, in M.-L. dESCLoS (dir.), Le rire des Grecs (Anthropologie du rire en Grèce Ancienne), Grenoble, 2000, 181-199; 191-200, respectivamente.

8 Os textos fisiognômicos, apesar dos problemas de edição que suscitam, testemunham a respeito de uma etapa importante do pensamento científico antigo. Ver T. S. Barton, Power and Knowledge. Astrology, Physiognomics and Medicine under the Roman Em-pire, Michigan, University of Michigan Press, 1994, 5 (Col. The Body, in Theory Histories of Cultural Materialism).

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como puramente fisiológico — pois causado diretamente por uma ação mecânica. O riso é bem identificado como sintoma pela medicina antiga, mas de modo marginal: a saber, enquanto fenômeno puramente fisiológi-co e independente da vontade, quando o corpo se encontra submetido a certas ações. É neste contexto que Aristóteles, no tratado Das partes dos animais, é levado a enunciar a fórmula segundo a qual “o homem é o úni-co animal que ri”, o riso sendo visto como consequência das cócegas9. Aristóteles cita também o risus sardonius provocado por uma ferida no dia-fragma10. Esses elementos são apresentados no quadro de um estudo fisio-lógico do sistema das vísceras e, mais particularmente, do papel desempe-nhado pelo diafragma.

Na demonstração de Aristóteles, o riso constitui justamente um sinal, um semeion “que mostra que estas partes, desde que são aquecidas, desen-cadeiam uma reação imediata da sensação e do pensamento”11. E o argu-mento vale igualmente para demonstrar que “movimentos independentes da vontade podem ser impressos no pensamento e na sensação”12. Essas explicações se completam com elementos de ordem psicológica. Com efei-to, Aristóteles nota também que o riso é “uma espécie de mal-estar e de surpresa”, a fim de explicar por que as cócegas não desencadeiam o riso quando é praticado por outra pessoa que não aquela que ri13. Ele associa imediatamente esta surpresa ao fenômeno do riso provocado por um golpe brutal no diafragma. O riso “funciona, pois, como semeion em Aristóteles, sem constituir por isso um sintoma diagnóstico ligado a uma patologia”14, mas ele é antes uma prova do liame de continuidade que une o corpo e a alma.

Estas observações podem se completar pela leitura de outros textos que dizem respeito a outros contextos médicos. O riso é assim menciona-do como fenômeno concomitante das patologias mentais. Nos textos hipo-cráticos, ele parece, assim, por duas vezes associado a certo número de

9 Cf. ariStótELES, Das partes dos animais, III, 10, 673a3-10. 10 Cf. ibid., III, 10, 673a10-12; ver também o PSEudo-ariStótELES, Problemas XXXV, 6,

965a11-17.11 J.-L. LaBarriErE, Comment et pourquoi la célèbre formule d’Aristote “Le rire est le pro-

pre de l’homme”…, 184.12 Ibid.13 Problemas XXXV, 6.14 J.-L. LaBarriErE, Comment et pourquoi la célèbre formule d’Aristote “Le rire est le pro-

pre de l’homme”…, 189.

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outros sintomas do delírio: insônia, fala incessante, canto intempestivo ou silêncio prostrado, palpitação e arranhões, arrancar de cabelos, agitação, alternância de prantos e de risos15; em outros momentos, nota-se que o doente é “incapaz de se conter” no falar, no chorar ou no rir16. O médico latino Celso, no século I d.C., também cita diversas vezes o rio na lista das perturbações do comportamento em relação com uma doença mental. O riso aparece por duas vezes em Celso: por um lado, em suas descrições da frenite (alguns doentes são hilários, outros são tristes) e, por outro lado, nas da mania, a qual comporta alucinações (imagines) que são, também elas, ora tristes, ora hilárias17.

Nestes dois corpus de textos médicos, tudo concorre, entretanto, para indicar que as formas hilárias são menos graves e se curam mais facilmen-te. É mencionado, nos textos hipocráticos, que “chorar sem motivo é um sinal pior que rir sem causa”18; que “o delírio acompanhado de riso é me-nos grave que o delírio sério”19. Celso também nota que os afetados pela frenite hilária “são mais facilmente refreados e é apenas em palavras que eles divagam (facilius continentur, et intra uerba desipiunt)”; é preciso, pois, tratá-los por meio de fricções, mas “com menos frequência (parcius)” que aqueles que são tristes. Para os maníacos, que riem por causa de alucina-ções, a doença é “mais leve quando acompanhada de riso que quando as pessoas deliram com seriedade (leuiorem esse morbum cum risu, quam se-rio insanientium)”; “a loucura hilária (demens hilaritas) se trata melhor (me-lius curatur)”20. O riso não aparece, pois, senão muito raramente, como sintoma em si mesmo de uma patologia precisa. Como assinala J. Hankin-son21 a propósito de Hipócrates, ele “funciona raramente como sinal diag-nóstico particular”, a não ser para indicar uma forma menos grave ou uma recaída da doença.

Notaremos, no entanto, que a distinção entre loucura com a alegria por sintoma e loucura com a tristeza por sintoma existe claramente. A hilari-dade não é marcada como o sinal da saúde em uma relação de oposição

15 hiPóCratES, Epidemias III, doença n. 15.16 Ver ibid., I, doença n. 2.17 CELSo, Da medicina III, 18.18 Epidemias I, 23.19 Aforismos VI, 53.20 CELSo, Da medicina III, 18.21 Ver J. hankinSon, La pathologie du rire…, 196.

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com a tristeza que seria o sintoma da doença. Existem, pois, dois tipos de sintomas, hierarquizados entre eles. Esta distinção é notada por Celso como importante (ante omnia uidendum est; interest etiam…) e ela deter-mina o recurso a tratamentos distintos22. Sobretudo, o elemento determi-nante para caracterizar o riso como sintoma de uma doença mental é o que envolve o riso e as condições de sua emissão, as quais aparecem como inadequadas — principalmente para o médico latino. O riso dos doentes é caracterizado por seu excesso (nimis hilares), por sua inadequação às cir-cunstâncias (risus intempestiuus) e, enfim, por sua aparente ausência de razão (sine causa).

Observamos que, uma vez que as explicações ou o estabelecimento de relações entre os fenômenos provêm da interpretação química (excesso de bile negra) ou mecânica (ação violenta exercida sobre um órgão), os cri-térios de avaliação do sintoma são os da “normalidade”. O riso possui, pois, aos olhos dos médicos (de maneira de resto talvez mais acentuada no mé-dico latino que nos autores gregos, para os quais o elemento dominante parece ser a ausência de controle sobre a hilaridade), uma norma de quan-tidade, de apropriação, de motivação, que se basta a ela mesma e parece marcada pela evidência. O riso parece intervir não como sintoma de uma patologia particular, mas como um desvio do comportamento que revela um problema mental — um sinal patológico, pois, neste sentido.

A fisiognomonia, ou o riso como indicador moral

Paralelamente à medicina dos corpos, que concerne também à saúde da alma sem solução de continuidade, a fisiognomonia explora o grande campo dos sinais, e as relações que eles revelam entre o corpo e a alma. Se o objetivo da fisiognomonia não é terapêutico, tampouco ela é terapêutica. A fisiognomonia reclama para si uma perspectiva de observação e de cate-gorização de ordem científica. Ela não se interessa diretamente pelas doen-ças nem pelos meios de combatê-las; mas, por causa de sua continuidade

22 Celso descreve estes diferentes tratamentos, que são químicos: eléboro branco (uera-trum album, que causa vômito) para as doenças hilárias, eléboro negro para as tristes. Eles podem ser também mecânicos: fricções mais ou menos apoiadas, até mesmo gol-pes para os doentes tristes; e, enfim, relacionais: discussões, injunções, ameaças desti-nadas a conduzir o doente à razão.

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com a medicina, ela é de algum modo uma ciência que revela os desvios potenciais de comportamento, os quais, em certos casos, se aproximam das doenças mentais — psicopatia inclusive. A este título, a fisiognomonia dá conta do que é considerado patológico nos comportamentos humanos.

Ao termo de um estudo sistemático das menções ao riso nos textos fisiognomônicos que nos chegaram, constatamos — mesmo se isso só faz confirmar um lugar-comum — que, na fisiognomonia como na medicina, o estatuto do riso como sinal é ambivalente, e representa um sinal por vezes positivo, por vezes negativo. Assinalamos que ele não é, a não ser raramen-te, estudado por si mesmo: nos textos reunidos por Foerster23, alguns capí-tulos são intitulados “De risu”, mas geralmente consideram mais os olhos, parte eminentemente expressiva da fisionomia, e sua relação com o riso.

Em alguns casos, o riso é percebido como um sinal de inclinação ao bem, de caráter fácil e tolerante, e se faz promessa de vida longa. Assim, nos textos de Polemon, encontramos a seguinte indicação:

Quando você vê alguém que apresenta uma umidade nos olhos sor-ridentes, e observa que o espaço entre os olhos é leve e que a pál-pebra está relaxada, então aquele que os possui tende mais ao bem que ao mal. É por isso que você constatará que os costumes destas pessoas são belos e doces, e que existe nelas o sentido da justiça, da doçura, da compaixão e da benevolência com os pobres […]24.

O mesmo aparece nos textos de um Pseudo-Polemon, no capítulo V (“De signis oculi”): “Aquele cujo rosto se assemelha ao de uma criança e no rosto do qual, sobre toda sua figura, se expressa o riso e a jovialidade goza de uma vida longa”25. E mais adiante, no capítulo IX (“De signis ri-sus”): “Aquele que ri muito é de boa composição, desenvolto e pouco in-quieto a respeito das coisas”; “aquele que não ri muito é agressivo, contra-diz as pessoas, nunca está satisfeito quanto ao que fazem as pessoas”26.

23 Scriptores physiognomonici graeci et latini, ed. R. Foerster, 1893.24 PoLEmon, Sobre os olhos XXII, foErStEr v. I, 154: “Ubi uides conspici in adridentis oculis umi-

ditatem… et obseruas quod inter oculos est molle et oculi palpebram laxam, iam eorum possessor magis ad monum quam ad malum tendit. Itaque eius mores pulchros benignos inuenies, et in eodem iustitiam lenitatem misericordiam et erga pauperes adfabilitatem”.

25 PSEudo-PoLEmon, foErStEr v. II, 150: “cuius uultus uultui puerorum similis est et in cuius uultu totaque facie risus et laetitia est, longae uitae est”.

26 Ibid.: “Qui multum ridet, est facilis, contemptor, non multum sollicitus de rebus. Qui non multum ridet, est aduersator, oblocutor, non contentus actionibus hominum”.

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Esses elementos reforçam o teor do sintoma. Mas os elementos posi-tivos citados acima só intervêm quando enquadrados por outros tipos de riso e de sorriso, muito menos simpáticos. O texto de Polemon é acompanha-do, assim, de suas observações concernentes aos olhos sorridentes e úmidos, e por advertências fundamentadas contra os “olhos sorridentes e secos”, os quais devem ser assimilados aos “piores olhos”. Ele indica igualmente os sinais complementares e agravantes, como o fato de ter os olhos “móveis”, de ter “o olhar voltado para baixo”, o fato de que o riso seja “muito acen-tuado”, sobretudo nos olhos “profundos”, o fato de que “a testa, as boche-chas e os lábios sejam agitados pelo riso”27. Um pouco mais adiante preci-sa, também, que, “se vemos alguém rir muito forte, é preciso lhe atribuir a perfídia e o gosto pelos agenciamentos”28.

Os olhos sorridentes são, pois, no texto atribuído a Polemon, a maior parte do tempo ambivalentes e dissimulados — o que encontramos tam-bém no texto de Adamâncio: “Os olhos que abrigam o riso e o prazer não são todos muito louváveis, pois eles revelam pessoas enganadoras, que es-condem suas intenções, que são insidiosas e malévolas”29.

Reciprocamente, o fato de que os olhos sejam sorridentes constitui um fator agravante que se ajunta a outro sinal: assim, para Polemon, “a cor do negro de antimônio” (stibii coloris) de certos olhos é sintoma de um pendor característico para o mal (ei uehemens mali studium iudica) — o fato de que se acrescente o riso é um fator agravante (multo risu ad illa adiecto malignitatem multumque malum ei tribuas)30.

Os textos atribuídos ao Pseudo-Polemon assinalam, logo depois de terem indicado os elementos positivos citados mais acima, que se o riso é “amplo” (magnum) e se faz acompanhar de “tosse e de dificuldades para respirar” (tussire et anhelare) ele assinala um homem “impudente” (impu-dens), que “brinca com as palavras” (cauillator), e, se ele apresenta os últi-

27 PoLEmon, v. I, 154: “Si quem uides in terram despicientem cum ridet, et eius oculum in-ter ridendum siccum, eum oculis pessimis iunge. Neque enim quidquam boni habet multus risus in oculo ceteroquin malo, praesertim si oculus quasi e cauerna sua insidia-tur. Sin accedit etiam quod frontem eius et genas et labra uides commota dum ipse ri-det, nil boni hac in re est”. Reencontramos esses elementos no anônimo latino De Phy-siognomonia Liber 37, ed. foErStEr v. II, 54.

28 Ibid.: “Si quem uides uehementer ridentem… ei perfidiam et malam artem adiudica”.29 Ver adamânCio, Fisiognomônica 17, foErStEr v. I, 334.30 PoLEmon, foErStEr v. I, 148. Ver também o anônimo latino De physiognomonia liber 35,

foErStEr v. II, 52.

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mos sintomas, um homem “agitado”31. Enfim, o secretário ideal descrito pelos três textos do Secretum secretorum, transcritos por Foerster, é primei-ramente caracterizado pelo fato de que ele não ri “muito”, ou somente ri se isso é necessário, e pelo fato de ser “comedido nas brincadeiras e no relato de histórias”32.

De fato, a esmagadora maioria das alusões ao riso vai na direção dos sintomas negativos. O riso aparece ligado principalmente ao caráter “efeminado”, se confiamos no que diz o autor anônimo do Tratado de fisiognomonia:

Os homens efeminados, aqueles que os gregos chamam os “inver-tidos”, são assim: a cabeça pendida para o lado, as omoplatas que se tocam […]; eles sorriem com frequência ao falar; eles têm a voz como que quebrada, as sobrancelhas separadas […]; eles se me-xem como mulheres, têm os braços atravessados, apertam suas tú-nicas sobre os rins, têm o riso barulhento e apertam com frequên-cia as mãos das outras pessoas33.

O anônimo Bizantino, por sua vez, o associa à irreflexão: “Um homem que ri sem cessar, com gargalhadas, é sem reflexão”34.

Se Polemon, como vimos, menciona uma vez brevemente o sorriso (ligeiramente distinto do riso) como um sinal positivo, quando se trata, em vez disso, de marcá-lo como sintoma de desvio moral, ele lhe consagra pas-sagens consequentes. Ele recorre, nesta ocasião, a duas técnicas distintas da fisiognomonia: por um lado, o repertório dos sinais e o que eles indi-cam; por outro, as descrições iconográficas de personagens portadores de um caráter preciso — às quais ele mistura, esporadicamente, a terceira técnica fisiognomônica, que procede por comparações animais.

Duas descrições assinalam, em bom lugar, o riso entre as marcas de uma anomalia comportamental próxima à loucura psicopática: a de um Lídio e a de um Fenício, os quais o autor diz ter encontrado e que serão descritos como comportamentos típicos. Todos os dois compartilham a ca-racterística de ostentar um riso incessante, mesmo em face dos mais fortes

31 Esses elementos se desdobram, em termos semelhantes, no Tratado de medecina de Aboubacar Rasis, foErStEr v. II, 164 ss.

32 PSEudo-ariStótELES, foErStEr v. II, 218-220.33 De Physiognomonia Liber 115, foErStEr v. II, 134.34 De Physiognomonica 25, foErStEr v. II, 231.

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de seus malfeitos. O Lídio “[…] era sacudido pelo riso cada vez que causa-va um dissabor a alguém”, “alegre” (laetum, repetido por duas vezes), “o rosto contente” (uultu contento)35. O Fenício “[…] estava sempre rindo quando o encontravam, não se dirigia nunca a alguém a não ser rindo, e o riso não tinha para ele nenhum limite, nem mesmo para anunciar catástro-fes, o que fazia rindo”36.

Os dois apresentam sinais de efeminação (o rosto para o Lídio, ore effeminato; a castração para o Fenício, ablatum membrum quod feminae concupiscunt), e os dois são comparados a animais marcados pela infâmia (o Lídio ao cachorro, o Fenício à serpente).

Nos dois casos, pelo espaço consagrado aos perfis e por sua dramati-zação, a caracterização do riso é nitidamente posta em valor. Os dois casos funcionam também no modo superlativo: os personagens descritos repre-sentam o extremo do crime, e o estado de corrupção extrema de sua alma é sublinhado diversas vezes, até os limites da psicopatia (o Lídio chegaria ao ponto de matar seus próprios pais, o Fenício perpetuaria crimes tais “que é vergonhoso narrar”).

Em todos esses textos fisiognomônicos, o valor que assume o riso está claramente apresentado por meio de fórmulas que associam verbos de vi-são (uideo, obseruo) a verbos de juízo (iudico, cognosco) ou a verbos de de-monstração e de testemunho (testari, pateo). Os textos fisiognomônicos, por sua insistência no valor do riso como sintoma reconhecível da corrup-ção moral, tenderiam, pois, a confirmar que a expressão do riso representa antes um signo negativo e testemunho de uma anomalia da personalidade — em todo caso, de perturbações do comportamento social. Nisso, o riso fisiognomônico é bem o sinal revelador de uma forma de patologia moral.

Mas ainda aqui é preciso notar que o que constitui o caráter realmen-te sintomático do riso são as modalidades de sua expressão: para além do riso em si mesmo (cuja expressão aparece em si mesma exagerada, a forma não-patológica parecendo ser o sorriso, adrisus/adridere), é sua anormalida-de que denota uma anomalia da personalidade: é muito frequente, muito forte (o Lídio ri alta uoce), sem causa aparente ou incompreensível (o Lí-

35 PoLEmon, foErStEr v. I, 128 ss.: “Quotienscumque alicui malum intulerat, eum laetum obseruabam, risu correptum, uultu contento, quaeque non intelligerentur uerba fa-cientem. Si iniuria ei successerat, eum laetum uidebam, ut canem latrentem”.

36 Ibid., 148: “Nec nisi ridens inveniebatur neque alloquebatur quemquam nisi ridens neque arcebat eum risus, quominus calamitates cum risu nuntiaret”.

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dio “murmura palavras incompreensíveis”, quaeque non intelligerentur uer-ba facientem). Ele indica um distanciamento em relação ao comportamen-to social normal — e é de imediato nisso que ele dá sinal.

É de resto chocante constatar que “o ar sorridente” aparece como o sinal por excelência da duplicidade: um paradoxal sinal da dissimulação, como se a alegria sincera e franca não pudesse ser marcada diretamente nela mesma — a menos, seguramente, que essa, não sendo patológica e falando por ela mesma, não seja mencionada na medida em que não ne-cessita de nenhuma decodificação.

O riso como sintoma passional na literatura filosófica romana de inspiração estoica

Se a fisiognomonia transpõe o princípio médico de interpretação dos sintomas à esfera moral, uma imagem bem conhecida pretende que a filo-sofia moral seja uma “medicina da alma”. De fato, a filosofia antiga toma de empréstimo numerosas imagens da medicina; além disso, muitos filó-sofos tomam para si e praticam a fisiognomonia, em particular Aristóteles (que parece ter sido seu precursor37) e os filósofos estoicos38. Mas se o riso é citado como um sintoma nos textos filosóficos, e se for este o caso, a pretexto de que isso se faz? Podemos, a partir de eventuais ocorrências do riso sintomático, estabelecer relações entre os três domínios?

A concepção das paixões como doenças ou pelo menos mal-estares da alma — tema recorrente nas filosofias helenísticas39 — favorece ao cer-

37 Ver, por exemplo, o PSEudo-ariStótELES, Fisiognomônica 806 a 4-8.38 Estobeu declara, por exemplo, que “os estoicos dizem que o sábio percebera uma re-

presentação que pode ser captada a partir da aparência, com valor de prova (tekmerio-dôs)”. Ver EStoBEu, Flor. I, 50, 34, legitimando a prática da fisiognomonia e a anedota mostrando Cleantes entregue ao exercício, citado por dióGEnES LaérCio, Vidas e doutri-nas dos filósofos ilustres VII, e díon CriSóStomo, Discursos XXXIII, 54.

39 Ver M. PohLEnZ, Die Stoa. Geschichte einer geistigen Bewegung, Göttingen, 1959, 82; e J.-M. riSt, Stoic Philosophy, Cambridge, Cambridge University Press, 1990 [1. ed. 1969], 26. A recíproca desta ideia, a saber, que a filosofia é uma “medicina da alma”, faz parte do mesmo sistema tópico; ver C. GiLL, The emotions in Greco-Roman philosophy, in S. morton, C. GiLL (ed.), The Passions in Roman Thought and Literature, Cambridge, Cam-bridge University Press, 1997, 11. Ver também J. PiGEaud, La maladie de l’âme. Etude sur la relation de l’âme et du corps dans la tradition médico-philosophique antique, Paris, Les Belles Lettres,1989, 15 ss. Para as imagens da medicina em Sêneca e o papel da metáfora na criação de uma língua filosófica, ver M. armiSEn-marChEtti, Sapientiae fá-

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to uma apresentação médica da doutrina. Principalmente o fato de as pai-xões serem, aos olhos dos estoicos, verdadeiras doenças da alma apoiando-se no mesmo princípio que as doenças do corpo:

Do mesmo modo que se fala de debilidades para o corpo, como a gota ou a artrite, para alma existe o amor pela glória, o amor do prazer e as paixões semelhantes. Pois a debilidade é uma doença acompanhada de fraqueza, e a doença é uma opinião a propósito do que parece fortemente desejável. E, do mesmo modo que para o corpo se fala de certas propensões à doença, como os resfriados e as diarreias, para a alma existem más propensões, como a inveja, a piedade, as querelas e as coisas similares40.

Mas, de fato, a evocação do riso permanece extremamente marginal nos textos estoicos gregos. Se o problema das manifestações passionais é evocado, a fenomenologia das paixões é reduzida ao mínimo. Somente uma passagem em Galeno, que pretende citar Crisipo no livro II de seu tratado Das paixões, evoca o riso. Galeno explica nessa passagem como o estado afetivo de frustração pode decrescer e se apagar progressivamente na alma enquanto o “julgamento falso” que está na origem da paixão per-siste (por exemplo, a ideia de que a perda de um ente querido é um mal com o qual é preciso se afligir); ou, inversamente, pode persistir, enquanto o julgamento é corrigido:

Talvez também a impulsão persista, mas ela não terá as consequên-cias correspondentes, porque uma disposição suplementar, de uma qualidade diferente, que não raciocina a partir destes acontecimen-tos, intervém. Assim, vemos pessoas que cessam de chorar e outras que choram quando não querem chorar, quando impressões dife-rentes são produzidas por objetos exteriores, e seja porque algo lhes faz obstáculo ou por nada. Pois a maneira como a tristeza e as lágri-mas cessam é provavelmente a mesma como acontece também nes-tes outros casos: no início, as coisas causam um movimento maior, como ocorre com as causas do riso e com as demais causas […]41.

cies. Étude sur les images de Sénèque, Paris, Les Belles Lettres, 1989, 132 ss., 136 ss., 206 ss., 211 ss.

40 dióGEnES LaérCio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres VII, 115; ver também Stoicorum veterum fragmenta (doravante SVF), (Zenão) I, 37, 3; I, 206; (Crisipo) III, 68; III, 121; III, 471.

41 GaLEno, Sobre as doutrinas de Hipócrates e de Platão IV, 7, 12-17 (SVF, III, 466, extrato parcial).

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Como em Aristóteles, o recurso ao riso intervém aqui para apoiar a ideia de que fenômenos psíquicos se produzem independentemente da vontade — mas tão pouco disso nos é dito que é difícil retirar mais ele-mentos no que concerne ao riso. Entretanto, esta passagem permite dis-tinguir melhor a noção de sintoma (fenômeno que assinala uma afecção e ligado a ela por vínculos de causa e efeito) e o sistema de analogias estabe-lecido pelos testemunhos do estoicismo entre as doenças da alma e as do corpo. É preciso, com efeito, para toda evocação de elementos fisiológicos postos em relação com o sistema das paixões, considerar atentamente seu contexto, pois a apresentação fisiológica não passa, com efeito, o mais das vezes, de um instrumento metodológico. Da descrição de sintomas físicos, por analogia, se espera que ajude a compreender o fenômeno passional, mas isso não implica que exista uma correlação entre as duas esferas42.

Esses sinais fisiológicos, não sendo eles próprios parte interessada da emoção (eles podem se produzir sob efeito de diversas causas, inclusive dos estados afetivos indiferentes e das doenças puramente fisiológicas), não são objeto de uma ação eficaz no que tange à condição moral do indivíduo (é o julgamento que é preciso reformar), e apresentam apenas um interesse mar-ginal em relação à fenomenologia das paixões. Não podemos, pois, concluir que a doutrina estoica faz realmente entrar em seu sistema de explicação das paixões as manifestações emotivas. Com muita frequência, em defini-tivo, as alusões ao corpo relevam de um recurso pedagógico de representa-ções populares43: certo número de fenômenos fisiológicos, tais como o riso ou as lágrimas, que resultam de algum modo do contato entre os elemen-tos psicológicos e fisiológicos, não parecem demandar explicação.

Mas na época romana encontraremos a ideia de que as paixões se ex-pressam, e que esta expressão pode, pois, ser decodificada. Ao longo do tempo e das interpretações sucessivas da doutrina, vemos aparecer a men-ção dos fenômenos emotivos e fisiológicos que acompanham as paixões. A este respeito, parece que os testemunhos romanos do estoicismo, preo-cupados em demasia com a pedagogia — ao que se ajuntam as necessida-des da tradução em latim dos conceitos gregos —, tenham sido levados a

42 Ver A. C. LLoyd, Emotion and decision in Stoic Psychology, in J.-M. riSt (ed.), The Stoics, University of California Press, 1978, 233-246 (240); ver também T. BrEnnan, The old stoic theory of emotions, in J. SihvoLa, t. EnGBErG-PEdErSEn (ed.), The Emotions in Hellenistic Philosophy, Dordrecht/Boston/London, 1998, 33.

43 Ver por exemplo GaLEno, III, 5, 1-5, p. 201, 21–202, 3 (SVF, II, 891).

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considerar mais a fenomenologia cotidiana das emoções44 e a evocar mais facilmente as manifestações emotivas como o riso e as lágrimas.

É, em todo caso, o que leva a pensar a apresentação da doutrina estoi-ca das paixões fornecida pelas Tusculanas de Cícero. O fato de que as pai-xões sejam definidas pelo estoicismo como movimentos da alma leva a descrever cada uma delas com a ajuda de termos físicos, e Cícero segue esta tendência. Assim, o correspondente fisiológico da intumescência (eparsis) ligada ao prazer e ao desejo parece ser uma leveza, quase uma le-vitação. Os testemunhos gregos insistem pouco sobre essa última, mas Cí-cero a evoca em diversos momentos, por exemplo pela utilização do parti-cípio gestiens, que está quase onipresente ao lado dos termos laetitia e uoluptas, reservados ao prazer passional. A adjunção desse particípio faz que apareça o movimento do prazer como uma espécie de transbordamen-to da alma e com que se interesse pelo processo segundo o qual o indiví-duo, sob o império do prazer, encontra-se não somente levado para o alto, mas até mesmo levado para fora de si mesmo. Encontramos, com efeito, a menção frequente de transportes e de “gestos desordenados” que acompa-nhariam o prazer, por meio dos verbos recorrentes ecferri45 e gestire46. Esses dois verbos47 parecem carregar o essencial da carga passional, identifican-do um estado anormal. Constatamos que esses termos que remetem à ale-gria e ao contentamento, tirados do vocabulário corrente, necessitam ser caracterizados para aparecerem verdadeiramente como perturbações aos olhos do público.

Cícero detalha e completa sua exposição sobre os efeitos das paixões fazendo que apareça um dos elementos mais característicos desta gesticu-lação do prazer:

44 É, com efeito, esta dimensão fenomenológica que interessa a Cícero, por exemplo, na filosofia estoica: para seu projeto de análise das paixões das Tusculanas, ele toma de empréstimo ao estoicismo suas categorias e seus modos de descrição da paixão e os integra a um sistema geral de explicação diferente, que é o do platonismo. Ver C. LEvy, Chrysippe dans les Tusculanes, in B. BESniEr, P.-f. morEau, L. rEnauLt (ed.), Les Passions antiques et medievales, Paris, PUF, 2003, 131-143 (137).

45 Tusculanas IV, 14: “Laetitia opinio recens boni praesentis, in quo ecferri rectum esse uideatur”.

46 Tusculanas IV, 12: “Laetitia autem et libido in bonorum opinione uersantur, cum libido ad id, quod uidetur bonum, inlecta et inflammata rapiatur, laetitia ut adepta iam aliquid concupitum ecferatur et gestiat”. Ver também Tusculanas IV, 20: “Iactatio est uoluptas gestiens et se efferens insolentius”.

47 Eles estão onipresentes nos capítulos consagrados às “paixões alegres”. Ver ainda Tus-culanas IV, IV, 13; IV, 39; IV, 66; IV, 68; V, 16; V, 17; V, 42.

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Eles dizem ainda que estes julgamentos e opiniões não contêm neles somente as paixões, mas também os efeitos das paixões: a pena tem como efeito a ferida da dor; o temor, o recuo e a fuga diante da dor; a alegria produz um contentamento expansivo, e o desejo, um apetite insaciável48.

Essas manifestações agem, então, como sintomas, próximos dos da loucura:

Mas do mesmo modo que estas perturbações que minam a alma, a saber, a tristeza e o temor, aquelas que são mais alegres, isto é, o desejo sempre em busca e o contentamento vão, isto é, a alegria transbordante, não mais diferem muito da loucura49.

Manifestação exterior de um estado interior, este “contentamento ex-pansivo” que se manifesta, que se torna visível ao olho do outro, constitui de certo modo o ponto de chegada da intumescência, a exteriorização do transbordamento causada pelo prazer. É tentador imaginar o riso entre as formas possíveis desta expansão.

Ele será efetivamente citado em uma passagem destinada a precisar, ou mesmo a corrigir, a passagem acima concernente à apreciação dos efei-tos das paixões. A correção intervém sob forma de uma adaptação da no-ção estoica à linguagem corrente, em oposição ao registro técnico. Cícero indica, assim, para o riso como para outras manifestações psicofisiológi-cas, a modalidade bem particular de expressão que assinalaria a paixão em uma situação familiar:

Mas falemos agora conforme o uso comum: suponhamos que as honras, as riquezas, os prazeres, tudo que tomamos por bens sejam realmente bens; é, portanto, vergonhoso ser tomado pela alegria transbordante e exuberante quando os possuímos; se bem que, se é permitido rir, reprovamos quem explode de rir50.

48 Tusculanas IV, 15: “Sed quae iudicia quasque opiniones perturbationum esse dixi, non in eis perturbationes solum positas esse dicunt, uerum illa etiam quae efficiuntur perturba-tionibus, ut aegritudo quasi morsum aliquem doloris efficiat, metus recessum quendam animi et fugam, laetitia profusam hilaritatem, libido effrenatam adpetentiam”.

49 Tusculanas IV, 36.50 Tusculanas IV, 66: “Sed loquimur nunc more communi. Sint sane ista bona, quae putan-

tur, honores diuitiae uoluptates cetera, tamen in eis ipsis potiundis exultans gestiensque laetitia turpis est, ut, si ridere concessum sit, uituperetur tamen cachinnatio”.

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A passagem se situa no contexto de uma distinção estabelecida por Cícero entre a alegria do sábio estoico e “a alegria transbordante” (laeti-tia gestiens). Um riso moderado corresponderia, pois, à alegria razoável do sábio (uma vez que este riso é “permitido”) ou pelo menos a um in-diferente não polarizado no plano ético. Ao contrário, a cachinnatio, pa-lavra forte que designa verdadeiramente a explosão de riso, diria respei-to ao transbordamento, ao excesso do prazer. Chegamos, em todo caso — e é o que reterá aqui nossa atenção —, a uma distinção entre duas formas significativas de riso: o riso normal, indiferente, e o riso passio-nal, excessivo, pois proveniente de uma falta de controle sobre si mes-mo. Haveria, ao certo, entre essas duas formas de rir a mesma distância que há entre a noção de normalidade e a de patologia — ou pelo menos de inconveniência.

É interessante que Cícero formule esta precisão more communi, isto é, apoiando-se no que ele apresenta como a experiência corrente e coti-diana. Encontramos, com efeito, a linha de demarcação perceptível en-tre um riso percebido como normal e um riso inoportuno. Vimos acima que o riso não funcionava, senão muito pouco, como sinal sintomático da doença mental na medicina antiga. Ao invés, a experiência médica vem ao encontro da experiência social cotidiana: ambas concordam ao constatar que o riso, expresso de maneira não pertinente com relação às circunstâncias, revela uma falência psicológica na apreciação de uma si-tuação. Seja esta falência o fruto de uma desordem mental, de uma defi-ciência educativa ou de uma recusa deliberada de se conformar às nor-mas sociais, ela é de todo modo percebida como anormal e, logo, mais ou menos confusamente assimilada à patologia: uma espécie de “pré-sinto-ma”, em definitivo.

A imagem dos dois risos utilizada, more communi, por Cícero é, pois, hábil: ela explora este fundo cultural e alcança, assim, o sistema de analogia entre doença da alma e doença psicofisiológica cara ao estoicis-mo, ao mesmo tempo em que lança mão das referências facilmente per-ceptíveis pelo público. Esta convergência dos pontos de vista, no caso do riso, é particularmente bem-vinda, na medida em que ela não obriga a situar diretamente o prazer passional como patologia incontestável, mas o mantém em uma zona menos definida que é a da anormalidade ou da inconveniência. Em definitivo, como vemos diversas vezes nas Tuscula-nas, a assimilação entre paixão e doença põe de modo manifesto o pro-

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blema51 — e de modo particularmente crucial para o que concerne ao prazer. Quando ele é evocado através do riso, é uma oposição entre suas diferentes formas perceptíveis (a forma normal e a forma inconveniente) que Cícero escolhe para fazer compreender a diferença entre prazer in-diferente e prazer passional. Seu valor ilustrativo é, pois, importante.

Encontramos este valor ilustrativo do riso em Sêneca. Depois deste percurso pela medicina e pela fisiognomonia, poderíamos mais facilmente avaliar o riso neste autor? A posição de Sêneca em relação ao estoicismo é diferente da de Cícero, uma vez que ela se apoia em uma adesão plena e integral, em uma grande coerência doutrinal. Vimos que os estoicos gregos antigos legitimavam a fisiognomonia, mas sem fornecer mais elementos quanto a uma eventual significação do riso. Por sua vez, encontramos em Sêneca a ideia, regularmente reafirmada, de que as paixões são corpos e que, por conseguinte, se manifestam por sinais:

Se examinássemos bem, veríamos que toda coisa se descobre por todo tipo de sinais exteriores, e que podemos, a partir dos mais ínfimos detalhes, tirar conclusões quanto à moralidade de alguém52.

Eu não ignoro que as outras paixões são difíceis de se esconder: que o desejo, o medo, a audácia se manifestam por sintomas e podem ser pressentidos; pois nenhuma excitação, por pouco inten-sa que seja, não entra em nós sem suscitar um pouco de emoção em nosso rosto53.

Você não terá nenhuma dúvida, eu penso, quanto ao fato de que as paixões são corpos (para intercalar aqui um ponto que você não aborda): por exemplo, a cólera, o amor, a tristeza. Se você tem dúvidas, é porque você duvida também que elas mudam a expressão do rosto, que elas contraem a testa, que elas tornam irradiante a face, que elas provocam o enrubescimento, que elas fervem o sangue. Como, pois? Sintomas físicos tão manifestos

51 Ver principalmente CíCEro, Tusculanas, III, 7 e IV, 27. B. inWood estima que Cícero supe-rinterpreta o termo pathos, associando-o em demasia à doença com relação à doutrina estoica (pathos não é, com efeito, equivalente, em grego, a nosos, o termo corrente para “doença”). Cícero confundiria a “disposição” com “o ato que a cria”. Ver B. inWood, Ethics and Human Action in Early Stoicism. Oxford, Oxford University Press, 1985, p. 128.

52 Epist. 52, 12; Epist. 106, 5.53 De ira I, 1, 7.

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poderiam, você acredita, ter recebido sua marca de outra coisa que não seja um corpo?54

Uma passagem em particular, de ordem muito claramente fisiogno-mônica, faz alusão ao riso como sinal de dissimulação:

O homem dissoluto é denunciado por sua postura, por um movi-mento da mão, algumas vezes um simples gesto, o fato de levar um dedo à sua testa ou um olhar enviesado; o falso é traído por seu riso; o louco, pela expressão de seu rosto e seu jeito. Essas taras se revelam à luz do dia através dos indícios visíveis55.

Certo, parece ilusório se apoiar em um “código do riso” fisiognomôni-co preciso, o que seria mais coerente com a doutrina estoica das paixões. Mas não se deve tampouco subestimar estas passagens que confirmam a ideia do riso como sintoma moral, pois ela não é certamente estranha às alusões de Sêneca. É preciso, de fato, considerar que a fisiognomonia ti-nha pouco a pouco se inscrito profundamente nas mentalidades: impreg-nando o teatro helenístico56 e romano57, ela entrou também na literatura romana58. Essa impregnação se fez principalmente pelo viés das teorias e das práticas da retórica59, uma vez que a caracterologia fazia desde muito tempo parte dos exercícios recomendados nas escolas de retórica60. Alguns elementos fisiognomônicos se tornaram assim lugares-comuns da eloquên-

54 Epist. 106, 5 ss.55 Epist. 52, 12 (cf. foErStEr, Scriptores Physiognomonici II, 326).56 O catálogo das máscaras de teatro estabelecido por Pollux mostra claramente a influên-

cia da fisiognomonia na aparência dos personagens: ver L. BErnaBo-BrEa, Le maschere ellenistiche della tragedia greca, Napoli, 1998, 16 ss. (Cahiers du Centre Jean BErard, 19).

57 Ver J.-P. CEBE, La caricature et la parodie dans le monde romain antique des origines à Juvenal, Paris, 1966, 43 ss.

58 Ver E. C. EvanS, Roman description of Personal Appearance in Roman History and Biog-raphy, Harvard Studies in Classical Philology, 46 (1935) 43-84; Id., Physiognomonics in the Roman Empire, Classical Journal, 45 (1950) 277-282; ver também: J. CouiSSin, Suéto-ne physiognomoniste dans les Vies des douze Césars, Revue des Etudes Latines, 31 (1953) 234-256, e J.-P. CEBE, Catulle et la physiognomonie, Annales de la Faculté des Lettres d’Aix, 43 (1967) 174-178.

59 Ver os exemplos de descrições oratórias que repousam na fisiognomonia em CEBE, J.-P., La Caricature et la parodie…, 43 ss.

60 Sêneca, por exemplo, na Carta 95, 65-69, analisa assim certos conceitos retóricos como o characterismos e o eikonismos nos termos que evocam seu emprego na fisiognomo-nia. Ver Tamsyn S. Barton, Power and Knowledge. Astrology, Physiognomis, and Medi-cine under the Roman Empire. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1994, 110-111.

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cia, assim como da escritura literária61. A “consciência fisiognomônica” está, pois, amplamente difundida na época em que Sêneca escreve, e o princípio de interpretação é familiar aos seus leitores62.

Assim, a passagem fisiognomônica que menciona o riso, em Sêneca, enumera menos paixões provenientes do esquema estoico que comporta-mentos desviantes com relação ao consenso social. É, de fato, mais nesse registro que se situa Sêneca para formular sua tese sobre os “sinais revela-dores” na Carta 52. Essa passagem intervém em uma lista descritiva dos diferentes tipos de temperamentos63, no artigo do “debochado”, ao lado dos “engenhosos”, dos “tímidos”, dos “impudentes”, dos “preguiçosos” etc. A categorização parece efetivamente se fazer menos em relação a um sis-tema ético preciso do que seguindo caracteres tradicionalmente admitidos (e que encontram mais sua teorização do lado das teses aristotélicas). Nós os encontraremos, aliás, no teatro, particularmente no começo da néa, as-sim como na comédia romana. Em definitivo, Sêneca não recorre a ela de modo sistemático, pois estas alusões não intervêm nunca em um contexto estoico “técnico”.

Ao contrário, a menção ao riso acompanha, por vezes, a representa-ção de certas paixões ou reações passionais, correspondendo às diferentes categorias do prazer e, eventualmente, do desejo. Nós nos limitaremos aqui a citar um exemplo: os glutões Apicius e Nomentanus, na loucura de sua delectatio (gulodice) “sofrem de uma loucura muito alegre, e é rindo que eles deliram”64. Aqui, Sêneca retoma uma terminologia próxima à de Celso e de Hipócrates65 — a “loucura alegre” é efetivamente atestada e corresponde, nos médicos gregos e latinos, a um conjunto de sintomas bem caracterizados. Entretanto, não se trata de se inscrever em uma cor-respondência estrita entre medicina e filosofia: os termos não têm aqui, em definitivo, eficácia a não ser no plano da representação, a fim de ani-

61 Cf. T. S. Barton,1994, 115 ss.62 Sobre a importância dos elementos fisiognomônicos (principalmente da fisiognomonia

animal) na vida cotidiana romana e na arte, ver J.-P., CEBE, La Caricature et la parodie…, 155-156, 359.

63 A fisiognomonia procede, de fato, seguindo três pontos de vista: dos “perfis-tipos” cor-respondendo a um ou outro temperamento; das aproximações com os animais, aos quais são atribuídas algumas características “morais”: o homem semelhante a tal animal será dotado das mesmas características; enfim, uma descrição metódica de cada órgão, indicando a qual traço de caráter corresponde uma ou outra particularidade.

64 De Vita Beata, XI, 4-XII, 1 (“hilarem insaniam insanire ac per risum furere”).65 Ver também Epist. 59, 15, a expressão hilaris insania.

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mar o perfil arquetípico dos comilões passionais que Sêneca quer tornar vivos em seu texto.

Mas essa reflexão cruzada oferece alguns recursos de interpretação interessantes com relação ao lugar do riso em sua escrita filosófica. En-contramos, com efeito, em Sêneca diversos retratos de tipo iconográficos, em que o riso funciona como o sintoma patológico da paixão. A grande habilidade do autor latino reside no fato de que esta técnica de escrita, re-correndo ao principio médico de interpretação dos sintomas, popularizada e transposta ao plano moral pela fisiognomonia, não é contraditória com os fundamentos estoicos de seu pensamento. No entanto, não se trata de uma grade fixa em que o riso teria seu lugar como sintoma do prazer, mas bem mais da ilustração surpreendente (como encontrávamos nos textos fisiognomônicos) de uma anomalia comportamental particularmente mar-cada. É isso que a menção ao riso “assinala”, nele como em outros: a pato-logia passional.

Conclusão

Este estudo nos possibilitou identificar as diferentes concepções do riso como revelador de um estado interior: semeion na fisiologia e na me-dicina antiga; sintoma verdadeiro de um desvio do comportamento, como verificado na fisiognomonia; sinal, poderíamos dizer, na literatura filosó-fica romana, e retemos, sobretudo, a utilização do princípio de interpreta-ção. Mesmo se, como vimos, o riso não faz parte do sistema de explicação da paixão, isso não impede que a menção ao riso, em si mesma, seja sig-nificante, em particular em Sêneca, no sentido de uma “dinâmica per-suasiva” do texto.

Se quiséssemos finalmente responder à questão “De que é sintoma o riso?”, que constituía nosso ponto de partida, poderíamos caracterizá-lo nos textos que percorremos como o sintoma de uma anomalia mais que de uma patologia particular. A presunção de “doença” é formulada diante do não-respeito da norma, uma incapacidade voluntária ou involuntária a se conformar às convenções sociais — nós o pudemos constatar tanto nos campos médico e fisiognômico como no filosófico.

É, de resto, sobre este aspecto do riso que versam as célebres Cartas sobre o riso e a loucura, que dão maliciosamente por autor Hipócrates, em-

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O riso como sintoma: pontos de vista antigos (medicina, fisiognomonia, filosofia)

bora tenham sido escritas provavelmente por volta do século I a.C. Não se trata de um texto médico, mas de um romance que questiona os critérios usados pelos médicos na definição da loucura através de uma aventura que reúne o médico Hipócrates e o filósofo Demócrito. O riso “patológico” deste último, com o qual os habitantes de Abdera se inquietavam, acabará por aparecer como a marca de uma sabedoria superior. Demócrito, que à primeira vista parece rir sem causa e logo parece estar louco, tem, no en-tanto, uma boa razão para rir, uma vez que ele põe em questão as crenças e os valores da cidade.

O riso, sintoma ambivalente, é, pois, interpretável, mas somente gra-ças a outros critérios que não ele próprio: pelos sinais que o acompanham, por sua adaptação ou seu descabimento com relação às circunstâncias, por sua maior ou menor coerência com as normas sociais. Ele marca, assim, o indivíduo e testemunha acerca de sua saúde moral (mais que sobre sua saúde física ou psíquica) tal como é definida pelos códigos sociais. En-quanto modo de comunicação social e “técnica do corpo”66, a expressão do riso possui, pois, suas regras — geralmente não escritas —, estreitamente ligadas ao sistema de valores e de conveniências em vigor. O riso aparece finalmente como um fenômeno inapreensível e, portanto, imediatamente interpretável por uma espécie de evidência cultural. É sem dúvida nisso que ele constitui verdadeiramente “o próprio do homem”.

66 A fórmula é aquela que propõe M. mauSS em seu artigo “Les techniques du corps”, in Sociologie et Anthropologie (recueil d’articles), Paris, P. U. F. coll. Quadrige, 1955 (1ère édition 1950), 365-386.

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Mistura das qualidades e determinação da saúde em Galeno:

aspectos químicos e cósmicospnpnpn

Anne-France Morand1

Introdução

No tratado Sobre a melhor constituição do corpo (kataskeuê), Galeno es-creve que a boa constituição do corpo equivale à perfeita saúde. A boa cons-tituição, quanto a ela, se encontra no corpo bem construído. A melhor constituição do corpo depende de dois fatores: o bom temperamento (eu-krasia) — ou, para falar mais prosaicamente, a boa mistura — e a boa pro-porção (summetria) das partes orgânicas. Ainda no mesmo tratado, Galeno afirma que “a mistura equilibrada de quente, de frio, de seco e de úmido equivale à saúde das partes homeômeras de nosso corpo” (Kühn iv 737). A mistura das qualidades é, pois, incontestavelmente um aspecto importante da saúde. O médico de Pérgamo escreve:

A melhor constituição do corpo seria, pois, aquela na qual todas as partes homeômeras — são, bem entendido, chamadas assim aque-las que se mostram simples à nossa percepção — têm seu próprio temperamento e na qual a composição das partes orgânicas a partir

1 University of Victoria, Canada/Institut Romand d’Histoire de la Médecine et de la Santé Publique, Lausanne, Suíça.

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Anne-France Morand

destas últimas é realizada de modo perfeitamente harmonioso quanto a sua grandeza, seu número, sua conformação e seu agen-ciamento mútuo2.

Os dois aspectos de um corpo perfeitamente construído são, pois, uma boa mistura das partes homeômeras e um agenciamento harmonioso do corpo. Existem dois aspectos nesta definição: de uma parte, a boa mis-tura e, de outra, a simetria do corpo com a referência ao cânon de Policle-to, o homem perfeito, de proporções perfeitas. À noção de mistura se so-brepões uma referência estética.

A simetria, contendo o termo metron, evoca para nós a quantidade. Ora, em Galeno a noção é mais complexa. Ele explica, com efeito, que a boa mistura é harmoniosa: ela não é somente quantitativa, mas também qualitativa. Cada espécie, cachorro, vespa ou homem, tem sua mistura própria; cada parte tem sua mistura própria. A boa saúde está, pois, no cruzamento de noções quantitativas e qualitativas. Em outras palavras, a boa saúde se encontra naquele cujas partes são bem construídas em si mesmas e relativamente ao todo.

Gostaria de discutir aqui um aspecto particular da saúde: a química do corpo ou, para falar como Galeno, a mistura, em grego krasis, que cons-titui uma parte somente da saúde.

Para o historiador da medicina, a noção de mistura evoca imediata-mente a teoria dos humores, das misturas de sangue, de fleuma e de bile amarela e bile negra. De fato, a Galeno interessam diversas misturas:

As misturas de elementos (• stoicheion/stoicheia), o fogo, a terra, a água, o ar.As misturas de qualidades (• poiotês/poiotêtes), o quente, o frio, o seco, o úmido.As misturas de humores (• khumôs/khumoi), o sangue, a fleuma, as biles amarela e negra.

Proponho a discussão dessas diferentes noções e de suas relações mútuas, principalmente a questão da importância adquirida progressiva-mente pela teoria dos humores, a ponto de quase fazer esquecer as outras misturas. Em um segundo momento, gostaria de colocar em questão o lu-gar do homem e as implicações cósmicas desses sistemas.

2 GaLEno, De optima corporis nostri constitutione [Helmreich], cf. Kuhn iv 741, trad. V. Barras, T. Birchler, A.-F. Morand.

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Mistura das qualidades e determinação da saúde em Galeno: aspectos químicos e cósmicos

Antes de entrar no seio do problema, tenho a dizer duas palavras so-bre a perspectiva que me proponho a seguir. Tenho uma formação em his-tória das religiões. Meu professor, Jean Rudhardt, inspirando-se em uma abordagem fenomenológica, tentava se colocar no lugar da subjetividade antiga. A ideia de apreender o mundo antigo por meio dos textos, das no-ções e dos termos antigos. É precisamente isso que tento fazer em minhas pesquisas sobre Galeno. Isso implica que não me interesso em primeira mão pelo que é verdadeiro do ponto de vista da medicina moderna. Não procuro tampouco escrever uma longa história dos humores, pois isto já foi feito, pelo menos em parte. A longa história de uma noção conduz por ve-zes a vislumbrar as coisas de maneira teleológica. A título de exemplo, Hi-pócrates é lido de maneira retrospectiva. A frase do tratado da tradição hi-pocrática Da natureza do homem, “o corpo do homem tem nele sangue, fleuma, bile amarela e negra”, é lida não em virtude de sua importância na obra de Hipócrates, mas na perspectiva da importância que esta noção terá na história dos humores. Galeno, leitor de Hipócrates, faz, aliás, exa-tamente a mesma coisa quando se refere à frase do tratado Da natureza do homem, deixando de lado os aspectos contraditórios da teoria dos humores nos escritos hipocráticos.

Eu tentarei abordar Galeno partindo do que ele próprio vê ou, para ser mais precisa, do que ele nos diz ver. Gostaria igualmente de recolocar as noções na lógica dos raciocínios em que elas aparecem e na lógica dos tratados em que elas se apresentam.

Elementos, qualidades e humores: importância para a determinação da saúde do homem

Como dizia acima, gostaria de partir do que percebe Galeno quando ele vê um corpo. No tratado Do uso das partes, Galeno quer primeiramen-te colocar em luz a semelhança entre a terra e o interior do corpo. Ele sublinha o desígnio divino para além da aparência de lamaçal: se olhamos o interior do corpo, vemos, de imediato, lama (ou um lamaçal, em grego borboros).

Na argila e no aluvião, na lama, nos pântanos, nos frutos e nos ani-mais que apodrecem, seres vivos, dotados de inteligência, são en-gendrados. Uma inteligência superior pode nascer nesse lamaçal,

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[…] pois como poderíamos designar de outro modo esta justaposi-ção de carnes, de sangue, de fleuma, e de bile amarela e negra3.

Quando examinamos o corpo, vemos uma mistura lamacenta de coi-sas ou, para citar Galeno — o termo grego é sunkeimenon —, coisas com-binadas, juntas. Para além do lamaçal, existe uma ordem extraordinária, talvez divina, que do ponto de vista da mistura se ordena em elementos, qualidades e humores.

Essas noções se encontram em questão em diversos tratados, mas três extensas obras são consagradas às noções de “elementos” e de “quali-dades”: os tratados Sobre os elementos segundo Hipócrates, Sobre os tempe-ramentos e Das faculdades naturais. Esses três tratados são obras maiores que se sucedem logicamente no pensamento de Galeno. Em uma passa-gem do tratado A arte médica, em que discorre sobre suas próprias obras, Galeno afirma a continuidade entre esses três tratados (Art Médical 37,8 [Boudon]; cf. Kühn I 408).

O tratado Sobre os temperamentos retoma o raciocínio no ponto em que ele tinha sido deixado no tratado Sobre os elementos segundo Hipócra-tes. A relação entre Sobre os elementos e Sobre os temperamentos, por um lado, e Sobre as faculdades naturais, por outro, é um pouco menos estreita, mas existe, não obstante, um projeto que lhes atravessa. A estrutura do So-bre os elementos é clara: Galeno fala dos elementos, depois das qualidades e, enfim, dos humores. O Sobre os temperamentos trata da mistura de quali-dades nos outros seres vivos, nos dois primeiros livros, e dos remédios, no terceiro livro. O Sobre as faculdades naturais, como o título indica, ocupa-se, entre outras coisas, da assimilação de alimentos e da moção. Podería-mos esperar encontrar, na sequência do Sobre os temperamentos, um grande tratado teórico sobre os humores. Entretanto, nada há dessa natureza.

Como explica Galeno, os tratados Sobre os elementos e Sobre os tempe-ramentos ocupam-se da composição dos corpos. Da substância (e da com-posição), Galeno passa à consideração da função das partes ou órgãos (ór-gãos devem ser aqui entendidos no sentido antigo de instrumentos). Ele se pergunta qual é a composição de uma parte e, em seguida, qual é sua fun-ção. Por várias vezes, Galeno passa da composição à função (cf., por exem-plo, Sobre os temperamentos 1 K. 565-566; outros exemplos em De usu etc.).

3 GaLEno, De usu part. 17,1 [Helmreich], cf. Kühn iv 359, trad. Daremberg.

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Mistura das qualidades e determinação da saúde em Galeno: aspectos químicos e cósmicos

Esta passagem articula-se em torno da ideia de que existe um desígnio divi-no nos seres vivos: a natureza é um artista consumado. A função das partes na constituição do todo será determinante na química. É o que explica o programa, os elementos, os temperamentos e as faculdades naturais.

Os três tratados figuram, no mais, nesta ordem no que chamamos de “cânon alexandrino” (que relata o que era estudado em Alexandria em ter-mos de medicina). Nossos três tratados encontram-se, além disso, com muita frequência apresentados nesta ordem na tradição manuscrita.

Para as obras de Galeno, em matéria de mistura, existem outras lógi-cas de leitura possíveis, as quais são enunciadas pelo próprio médico de Pérgamo nos tratados em que discorre sobre suas próprias obras. Ele reco-menda, por exemplo, que se relacione, na leitura dos tratados, o Da me-lhor constituição do corpo e o Das irregularidades do temperamento mal temperado com o Dos temperamentos. Entretanto, a articulação dos trata-dos Sobre os elementos, Sobre os temperamentos e Sobre as faculdades natu-rais é muito clara.

Neste texto me restringirei ao nível da química, seguindo a ordem dada por Galeno no tratado Sobre os elementos segundo Hipócrates, a saber: os elementos, depois as qualidades e, enfim, os humores, mas deixando de lado a função.

Os elementos

Os elementos são o assunto do texto Sobre os elementos segundo Hipó-crates. O elemento, em grego stoicheion, é a coisa última, mas que não coincide com o que é percebido pelos sentidos (Sobre os elementos, cap. 1). Os elementos são últimos e eles não podem ser dissolvidos em outra coisa. Eles não são um, mas quatro. O corpo é formado de elementos que podem sofrer mudanças, se transformar. Como se sabe, os elementos são o fogo, a terra, a água e o ar. Não basta misturar os elementos para obter um corpo: “Se molhas terra com água, não terás nada mais que lama”4.

Existem, com efeito, também fogo e ar que entram na mistura, e os elementos são transformados pela ação do quente, do frio, do seco e do

4 GaLEno, De elementis, 5,27 [De Lacy], cf. Kühn i 455: kai ên eis ên hudati euseias, ouden estai soi pleon pêlou.

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úmido. A isso se acrescenta que os elementos estão nos extremos das qua-lidades (quente, frio, seco, úmido), mas que eles não são simplesmente as qualidades nos corpos, e que os elementos em estado puro não se encon-tram sobre a terra e dificilmente no cosmo.

Como é frequente em Galeno, a fonte da confusão que reina em ou-tros médicos é, segundo ele, de dois tipos: 1) ou eles utilizam diversos ter-mos para designar uma única e mesma coisa ou, no extremo oposto, 2) eles recorrem a um único termo para designar coisas diferentes — o pro-blema da homonímia. Como Galeno não cessa de repeti-lo, o que conta em definitivo para o médico é a “realidade”, não a linguagem. Ele insiste em dizer que utiliza a língua comum e que não inventa palavras especiali-zadas. A consequência disso é que a palavra elemento apresenta significa-ções diversas. Vejamos algumas delas:

designa os elementos puros que escapam aos sentidos; –designa os elementos segundo o que predomina na mistura (que –escapam aos sentidos).enfim, refere-se às partes homeômeras como os primeiros elemen- –tos perceptíveis do corpo. Os elementos aparentes (phainomena) são diferentes dos elementos verdadeiros (ontôs) (Sobre os elemen-tos 6.28 [De Lacy]; cf. Kühn 465).

É preciso, pois, prestar atenção ao sentido atribuído por Galeno ao termo “elemento” no contexto em que se apresenta. No corpo, não encon-tramos elementos puros, mas uma mistura de elementos pelas qualidades.

As qualidades

As qualidades são introduzidas no tratado Sobre os elementos segundo Hipócrates, mas a mistura das qualidades é realmente desenvolvida no tratado Sobre os temperamentos. Com as qualidades, chegamos a algo de fundamental na teoria galênica da mistura. Com efeito, a mistura das qualidades, a mistura dos opostos, quente–frio/seco–úmido, determina as características das diferentes partes homeômeras.

Como os elementos, as qualidades são entendidas de maneiras diver-sas. É preciso, pois, de imediato, colocarmo-nos de acordo sobre a termi-nologia. A forma extrema e não misturada das qualidades coincide com os elementos, mas eles não se encontram como tais no corpo. As qualidades

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são entendidas ainda em outro sentido: o quente, o frio, o seco e o úmido designam também uma predominância; por exemplo, se dizemos que al-guém é úmido, referimo-nos à predominância do úmido nele. É nesse sen-tido que precisamos considerá-las. Em Galeno, as qualidades não são os elementos no corpo, mas são ao mesmo tempo substâncias e forças atuan-tes. (Nesse último sentido, as qualidades não são simplesmente os ele-mentos no corpo.)

Para Galeno, existem misturas simples e misturas complexas. As mis-turas simples implicam um único desequilíbrio, por exemplo o quente pre-domina sobre o frio, mas o úmido e o seco estão equilibrados (ou simétri-cos para utilizar as palavras de Galeno). Das nove misturas possíveis, apenas uma é equilibrada. No extremo oposto, as misturas totalmente de-sequilibradas, em número de quatro, podem provocar todo tipo de condi-ções espantosas. Galeno consagra um tratado específico a esta questão: Das irregularidades do temperamento mal equilibrado.

No início deste artigo, anunciei que me perguntaria se os sistemas são vislumbrados e expressos como tais por Galeno. No que concerne às qualidades, o esquema tal como é apresentado bem se encontra em Gale-no, por exemplo, no início do livro 2 do tratado Sobre os temperamentos. Em lugar de transcrever o texto de Galeno, apresento a matéria de manei-ra sucinta. É também o que encontramos em um resumo do livro 1 do Dos temperamentos:

Resumo do primeiro livro dos temperamentos de Galeno:

Os diferentes temperamentos são em número de nove e não qua-tro, como pensam alguns5.

O frio, o quente, o úmido e o seco encontram-se efetivamente nas mis-turas, mas é igualmente fundamental compreender que as qualidades po-dem também se encontrar potencialmente nas substâncias. Isso é impor-tante para a compreensão dos remédios, assunto do livro 3 do tratado Dos temperamentos. Com efeito, algo que aquece não é necessariamente quen-te, mas potencialmente quente no sentido em que esquentará o corpo ao qual é administrado. Galeno explica esta nuança recorrendo a um exemplo:

5 Manuscrito de Paris que datamos como do início do século IV. Parisinus gr. 2267, f. 71v: “…Galênou peri kraseôn kephalaia tou prôtou logou. Oti tôn kraseôn ennea eisin ai diaphorai kai; oukh hôs enioi nomiazousi tessares”.

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Assim, os medicamentos que esquentam de modo manifesto nosso corpo são também aqueles que adquirem rapidamente fogo. Por-que, pois, diremos, não aparecem mais ao tato. Se nós tivéssemos dito que cada um dos medicamentos mencionados era ativamente quente, e, logo, já quente, seria com efeito admirável que ele não aparecesse quente ao tato. Mas, por enquanto, nós os qualificamos como quentes em potência pelo fato de poderem se tornar facilmen-te quentes. [651] Não há, pois, nada de admirável no fato de que não esquentem ainda aqueles que os tocam: do mesmo modo que a ma-deira não aumenta o fogo antes de ter sido vencida e, depois, trans-formada por ele — e isso leva certamente algum tempo —, assim os medicamentos não aumentam o calor nos animais se não forem antes transformados por eles. Ora, é de certo modo que somos aquecidos ao nos mantermos perto do fogo ou sob o sol, e de outro modo que somos aquecidos pelos medicamentos mencionados: os primeiros são ativamente quentes, enquanto nenhum dos medica-mentos o é. Eles não podem, por conseguinte, nos aquecer antes de se tornarem ativamente quentes, e é de nós próprios que eles recebem esta atividade, como é pelo fogo que os galhos secos a recebem. Assim, toda madeira é fria por sua própria natureza, mas aquela que é mais seca e mais fina se transforma facilmente em fogo, enquanto aquela que é mais úmida e grossa precisa de mais tempo6.

O que é potencialmente quente não o é ao tato. Opera-se uma trans-formação que permite, a seguir, o aquecimento. O remédio age somente quando em contato com o corpo. Do mesmo modo para as substâncias frias: a papoula ou o alface, que aliviam o desejo de união amorosa, agem de maneira similar.

É o que resume um esquema em diérese que se encontra no mesmo manuscrito7 (com uma escritura diferente):

os corpossômata

seja em potência seja ativamenteê9dunamei ê9nergeiai

6 Dos temperamentos, livro 3, K. 650-651, trad. V. Barras, T. Birchler.7 Parisinus gr. 2267, f. 149r.

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As qualidades são fundamentais, no pensamento de Galeno, para compreender a composição das partes do corpo e a composição dos remé-dios. As qualidades determinam a essência própria das partes (De usu par-tium). As qualidades se confundem com os elementos do corpo: elas afe-tam a substância mudando os elementos. Nesse sentido elas são forças agentes.

Cada espécie tem sua mistura própria: a melhor mistura é a do homem.

Nós mostramos antes que o homem é o mais misturado, não so-mente mais que os animais e as plantas, mas, também, mais que todos os outros seres. Pelo fato de ser composto de numerosas par-tes diferentes, a parte cuja mistura é média em relação a todas as outras é também, evidentemente, simplesmente bem misturada. De fato, a parte média do animal de mistura média será, em senti-do simples, a melhor misturada de todos os seres. Nós mostramos que no homem trata-se da pele, e antes de tudo aquela que consti-tui o interior da mão, quando ela é conservada tal como a natureza a confeccionou8.

No homem, a parte que comporta a mistura mais perfeita é a palma da mão, como Galeno o diz no final do livro dois do Sobre os temperamen-tos (K. 575-576):

E nós mostramos também que não é a pele de qualquer homem que é média, em sentido simples, em relação a toda substância, mas aquela do homem muito bem misturado; pois mesmo entre os homens a diferença é grande entre um indivíduo e outro. [576] Ora, é muito bem misturado aquele cujo corpo é de modo manifes-to o meio exato entre todos os extremos, entre a rarefação e a den-sidade, a moleza e a dureza, o quente e o frio. Sobre cada corpo humano, podemos, pelo tato, constatar um calor benfeitor e vapo-roso, ou ardente e áspero, ou então nem um nem outro, mas ao contrário a predominância de um resfriamento. É preciso entender este resfriamento como presente no corpo de um animal, e mais precisamente de um animal provido de sangue úmido. Tal é, quan-to ao seu corpo, o homem muito bem misturado. Quanto à sua alma também, ele é o meio exato entre temeridade e covardia, in-

8 GaLEno, De temp. 2,1 [Helmreich], cf. Kühn i 575, trad. V. Barras, T. Birchler.

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decisão e precipitação, compaixão e malevolência. Esse homem será alguém de bom ânimo, afetuoso, caridoso, sábio9.

De maneira pouco surpreendente, a boa mistura se situa no nível do corpo e da alma.

Quando lemos essa passagem, compreendemos que Galeno não en-controu muitos homens realmente bem equilibrados. Ao contrário, a mis-tura equilibrada é muito rara, quase mítica.

No sistema das misturas de qualidades, o lugar do homem está muito nitidamente no centro, pois o homem tem nele a melhor mistura.

Na química do vivente, entra também a noção aristotélica de partes homeômeras que são constituintes do corpo simples e homogêneas como a gordura, o osso, a carne ou a cartilagem. Essas partes homeômeras são, a seu turno, as constituintes das partes não-homeômeras ou órgãos, como a mão, por exemplo. Passemos agora aos humores.

Os humores

No que diz respeito aos humores encontramo-nos diante de uma difi-culdade: não temos um tratado sistemático que verse sobre este tema e so-mos obrigados a buscar informações em diversas fontes. Eu mencionei antes como se explicam os tratados Sobre os elementos, Sobre os temperamentos e Das faculdades. A passagem às faculdades deixou de lado os humores, que, no entanto, são abordados no tratado Sobre os elementos. Os humores são co-muns a todos os seres vivos providos de sangue (Sobre os elementos 9. K. 492), são elementos de nascença de todos os animais portadores de sangue. Os humores são transmitidos pelo sangue da mãe. Em uma passagem do tratado Sobre os elementos, Galeno nos diz a que ponto o sangue pode variar10:

Ele pode ser muito escuro e, então, a aparência do corpo é lívida. O sangue pode, também, ser amarelo; a presença de um humor amarelo será observável na cor dos cabelos, na cor do corpo, no vômito e nas fezes (cf. Kühn 498).

9 De tem. 2,1 [Helmreich], cf. Kühn i 575-576, trad. V. Barras, T. Birchler.10 O sangue é veículo dos humores. Notamos, na passagem em questão, que é possível

substituí-lo no sentido em que o percebe Galeno.

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Os quatro humores são naturais e se encontram no corpo são. O ex-cesso de um humor acarretará doenças. O excesso de um humor poderá ser provocado pela absorção de alimento. Por exemplo, o vinho negro, a carne do touro e do bode, sobretudo se salgadas, as lentilhas e os escargots vão igualmente provocar o aumento da bile negra (De atra bile ex libris Ga-leni, Ruphi, Aëtii Sicamii excerpta, IV,2).

A idade e o ambiente também exercem uma influência.No tratado sobre as causas da pulsação Galeno imagina o seguinte

sobre a influência que podem exercer sobre a pulsação as atividades e o lugar em que se habita. A pulsação do homem é naturalmente potente: Galeno compara um homem bastante fleumático com uma mulher biliosa e imagina um caso extremo:

Se ele habita no Ponto e se ela habita no Egito; se o homem fica na sombra, se ele vive na ociosidade e na moleza no que diz respei-to ao modo de vida; se a mulher vive no exterior, faz muito exercí-cio e vive um gênero de vida comedido, então a pulsação da mu-lher será mais forte que a do homem (De causis pulsuum, III, 2, Kühn, IX, 109).

O modo de vida, o lugar em que se reside podem ter uma influência sobre a pulsação, mas, evidentemente, também sobre os humores.

E difícil falar dos humores sem extrair algo aqui e acolá na obra de Galeno. Ele fala de melancolia e das afecções provocadas pela fleuma, mas não consagra um tratado aos humores em geral. O tratado da bile ne-gra, por exemplo, fala apenas desse humor. Um tratado circulou com o nome de Galeno sob o título Dos humores, mas trata-se de um Pseudo-Galeno composto na Renascença. Parece, pois, que alguém sentiu falta de algo sobre os humores na obra de Galeno. Os humores encontram-se em questão no final do tratado sobre os Elementos, mas não existe um tratado de peso sobre esta questão. Uma coisa é certa, como o constata Helmutt Flashar, em seu livro Melancholie und Melancholiker (Berlim, 1966): não somos informados sobre a melancolia lendo o tratado Da bile negra, nem nos referindo ao tratado Sobre os temperamentos. Podemos ir mais longe: não encontramos em Galeno uma teoria geral dos humores. No mais, para a bile negra, o que se encontra no tratado Das partes afetadas não se encon-tra em harmonia completa com o que encontramos em outros lugares. No quadro da bile negra, é dificil chegar a uma teoria verdadeiramente com-

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pleta e coerente das substâncias negras, dos resíduos melancólicos, do hu-mor melancólico e da bile negra.

Passo agora ao exame da relação entre elementos, qualidades e humo-res e à questão da possibilidade de construir um sistema geral.

Sistema

Erich Schöner, em um estudo muito interessante, segue a evolução dessas noções11. Ele oferece um esquema para Galeno no qual temos, por exemplo, que a bile negra corresponde às qualidades frias e secas, ao ele-mento terra, ao órgão do baço, à estação do outono, à idade madura e à febre quartã. Entretanto, eu me pergunto se é possível apresentar o siste-ma dessa maneira. Em seguida, colocarei a questão acerca do lugar do ho-mem nesse sistema e dos aspectos cósmicos da concepção.

A explanação sobre as qualidades que põem em relação, por exem-plo, o elemento terra com as qualidades do frio e do seco não dá conta dos aspectos dinâmicos das qualidades: as qualidades agem sobre os ele-mentos. As qualidades, o quente ou o frio, podem ser efetivas ou poten-ciais. Por exemplo, a alface ou o ópio são muito refrescantes em potência. Existem objeções mais fundamentais. No tratado Sobre os temperamentos, Galeno diz que não é possível pôr em relação as estações e as qualidades, mas em outro tratado ele acredita ser possível. No Sobre os temperamentos ele hesita, também, quando considera a umidade da juventude. Não te-mos, pois, um sistema completamente coerente em Galeno. De outra par-te, se Galeno vislumbra o sistema das qualidades como um todo que ele pode resumir, ele não o faz de maneira mais, incluindo elementos e hu-mores. É importante permanecer na lógica dos diferentes tratados, como foi dito antes.

Incontestavelmente, existem paralelos entre humores, qualidades e elementos. A ideia de que existe uma mistura e de que essa mistura deve estar equilibrada reaparece. Galeno nos dá a indicação de pontes entre elementos, qualidades e humores, mas não em um belo sistema global.

Isso não quer dizer que o esquema de E. Schöner esteja completa-mente errado. Podemos encontrar os diferentes pontos em uma parte e em

11 E. SChönEr, Das Viererschema in der antiken Humoralpathologie, Wiesbaden, 1964, 92.

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outra da obra de Galeno: por exemplo a equação entre o sangue e a prima-vera. Mas com esse esquema nos encontramos, pois, em presença de uma leitura posterior e de uma interpretação igualmente posterior de Galeno, mais que diante da obra do próprio Galeno. Ou seja, nos encontramos em face de uma leitura humoral de Galeno.

Consideremos, enfim, o lugar do homem. Como vimos no Sobre os temperamentos, o lugar do homem se encontra no centro do sistema: o homem possui, com efeito, o melhor temperamento. O lugar do homem não se encontra, no entanto, explicitamente no centro do mundo. No ex-tremo oposto, o ambiente influencia o homem, como constatamos na pas-sagem sobre a pulsação. A mistura comporta, pois, aspectos cósmicos. Entretanto, a coisa não é de modo algum tão sistemática quanto ela o será na Idade Média, como bem mostraram Klibanksy, Panowsky e Saxl em Saturne et la mélancolie.

Em conclusão, direi que a mistura de qualidades é um componente de-terminante da saúde. A boa mistura se encontra muito raramente — ela é quase mítica! —, e Galeno se encontra em boa posição para o afirmar, pois ele tateou muitíssimas pessoas: bebês, crianças e velhos. Um bom equilíbrio dos humores é, também, indispensável. Um modo de vida adequado, uma alimentação apropriada, exercício físico sem excesso, hábitos excelentes que permitem evitar a doença. Se olhamos o interior do corpo, temos uma im-pressão de contemplar um caos, mas, ao contrário, tudo se encontra aí magni-ficamente ordenado. Do mesmo modo, se olharmos o sangue veremos dife-rentes líquidos de cores diversas. Novamente, reina uma certa ordem. Em meu texto, tentei compreender a lógica de Galeno que o conduziu da mistura à função. A composição é determinada pela função do órgão ou da parte. O criador não fez o homem em vão; cada parte tem uma função e não poderia haver partes inúteis ou dois órgãos com a mesma função. Os humores não entram a tal ponto nesse raciocínio. De resto, Galeno parte da importância dos humores em diversos contextos. Ele censura amargamente os seus adver-sários por deixá-los de lado ou por não se darem suficientemente conta deles. O leitor moderno, como o da Renascença, gostaria de ler um tratado téorico de peso sobre a questão dos humores, mas ele infelizmente não existe.

Uma evolução tem lugar depois de Galeno. Um enorme trabalho de sistematização se fez. Os humores ganharam importância. Um texto de medicina siríaca fala, por exemplo, de bile vermelha, amarela, negra e fleumática. Galeno não teria nunca se exprimido dessa maneira.

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Anne-France Morand

Na obra de Galeno, as qualidades são fundamentais para compreen-der a química do ser vivo. O quente, o frio, o seco e o úmido organizam-se em sistema. Todavia, temos apenas fragmentos de um sistema verdadeira-mente global.

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A ideia de que a saúde dos habitantes de um lugar depende das qua-lidades ambientais dessa localidade, já presente na mentalidade arcaica2, apresenta-se pela primeira vez, no âmbito da literatura médica supérstite, e já amplamente desenvolvida, no tratado hipocrático De aeribus aquis locisque, datado como do fim do século V a.C. Essa mesma relação se apresenta, de forma mais sucinta, também em outros autores, como Platão, Aristóteles e Heródoto, e é retomada posteriormente em textos de medici-na, de filosofia e de história. Junto aos médicos, tal concepção torna-se um patrimônio comum, desde Diocles de Caristos (século IV a.C.) até Galeno (século II d.C.), talvez seu defensor mais convicto. O desenvolvimento dessa noção pode ser seguido através da obra de filósofos, de geógrafos e etnógrafos, da Antiguidade aos tempos modernos, o que comprova a fe-cundidade sempre renovada dessa intuição, entre cujos defensores pode-se recordar ainda Panécio (Cic. De divinatione, 2.46.96-97), que nega o influxo dos astros, defendido pelas teorias astrológicas, e assegura a in-fluência dos lugares e das condições ambientais.

1 Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG.2 Por exemplo, Ilíada 22.31.

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Do ponto de vista propriamente científico, a constatação empírica da relação entre saúde e ambiente exigia da especulação racional, tanto mé-dica como filosófica, uma explicação para um fenômeno que transcende os limites do particular, uma razão universal para os distúrbios ocorridos no corpo em virtude de condições ambientais adversas, as quais podem causar enfermidades não simplesmente em indivíduos isolados, mas tam-bém em grande parte da população. Estabelecer as bases científicas insti-tuídas para tal relação exige uma leitura atenta e focalizada dos textos re-manescentes, mas é possível dizer, antecipadamente, que predomina no pensamento médico antigo a concepção do organismo humano submetido às mesmas leis naturais que regem todo o universo, ideia diversamente desenvolvida conforme as orientações filosóficas de cada autor ou escola em particular.

Como consequência de um debate de tão amplo interesse, que envol-ve questionamentos profundos que se colocam a todos os homens, a trans-posição dos aspectos médicos dessa questão para o plano arquitetônico e urbanístico parece uma decorrência perfeitamente natural. Torna-se ne-cessário, entretanto, estabelecer a abrangência e as modalidades dos con-tatos entre as teorias (e práticas) urbanísticas e o saber médico da época.

A partir da convicção da extrema importância conferida pelos antigos às questões ambientais no debate em torno das práticas urbanísticas, este trabalho pretende, principalmente, verificar a natureza do uso de elemen-tos do saber médico aplicados às reflexões sobre a cidade e às práticas ur-banísticas, a partir da obra de Vitrúvio conhecida como De architectura, um tratado precioso que reúne, ecleticamente, elementos da tradição ar-quitetônica grega, clássica e helenística, bem como da prática etrusca e, sobretudo, romana, muitos dos quais referentes a teorias urbanísticas. Tais passos de Vitrúvio, dispersos ao longo de boa parte da obra, são geralmente considerados o único testemunho literário da teoria urbanística antiga3.

No tratado de Vitrúvio, a matéria é organizada, principalmente, se-gundo as tipologias arquitetônicas (templos, edifícios civis, edifícios priva-dos). A exposição urbanística propriamente dita concerne às escolhas eco-lógicas e aos princípios distributivos da cidade, mas o que se percebe é que a normativa tipológico-formal constitui, na verdade, uma série de ex-

3 L. homo, Rome impériale et l’urbanisme dans l’Antiquité, Paris, Albin Michel, 1951.

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posições subordinadas aos critérios distributivos. Levando-se em conside-ração o fato, quase unanimemente aceito, de Vitrúvio partir de paradigmas gregos e helenísticos aos quais procura contrapor alternativas latinas, os esforços do autor têm valor meritório também por indicar que, na tradição antiga dos manuais de arquitetura e nas orientações culturais que aí se re-fletem, a relação cidade–saúde estava presente na mentalidade do escritor antigo como uma associação de caráter obrigatório4. Em todo caso, ainda que em Vitrúvio o tratamento dedicado às questões propriamente urbanís-ticas seja menos detalhado que a normativa relacionada às diversas tipolo-gias, o que pode ser notado no De architectura é que a discussão em torno de cada novo tipo apresentado (o fórum, as termas, o teatro, a casa) geral-mente se abre com as considerações ambientais, de qualquer modo sem-pre presentes, dando lugar a detalhadas digressões nas quais o autor pro-cura explicar, com base em hipóteses de natureza científica, os efeitos nocivos à saúde de agentes ambientais como os ventos e o calor do sol.

Os argumentos utilizados demonstram o recurso a princípios muitas vezes contraditórios, por exemplo certa adesão à teoria demócrito-epicuris-ta dos átomos ao mesmo tempo em que se recorre aos quatro elementos da tradição pitagórica para explicar a composição da matéria ou a causa da doença. Nesse ponto, torna-se necessário situar a posição do autor e das ideias que expõe no quadro do debate científico de seu tempo (século I a.C.), em uma Roma então já totalmente aberta à especulação e às práticas mé-dicas gregas5.

Encontram-se no De architectura6 duas rápidas resenhas das teorias filosóficas sobre o princípio do mundo e a composição da matéria, com a apresentação das hipóteses de Tales, Heráclito, Demócrito e Eurípides, entre outros, além da tese dos quatro elementos, da tradição pitagórica, sustentada praticamente por quase todos os filósofos da Antiguidade. A re-ferência vitruviana aos átomos sugere uma certa adesão ao epicurismo, em voga no círculo cultural reunido em torno de Mecenas e Otávio na primei-

4 G. A. manSuELLi, Forme e significati dell’architettura in Roma nell’etá del principato. In Aufstieg und Niedergang der römischen Welt (ANRW), Vol. II.12.1 (1982). H. tEmPorini, W. haaSE (eds.). Walter de Gruyter, 1972.

5 A situação é diferente em épocas anteriores; basta recordar a proibição de Catão, o Velho, dirigida ao filho Marco: Interdixi tibi de medicis (PLinio, Naturalis historiae, 29.7.14).

6 II, 2, 1 e VIII, praefatio, 1.

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ra fase de seu principado. Tal adesão deve, porém, ser circunscrita à utili-zação dos termos analíticos da física epicurista, já que a concepção geral do mundo e dos deuses de Epicuro não é absolutamente compartilhada por Vitrúvio. A posição assumida pelo autor apresenta-se, portanto, sob a forma de uma conciliação eclética das teses pitagórica e demócrito-epi-curista, em que a teoria atomista se oferece tão-somente como um suporte conceitual, prevalecendo sempre, em suas análises, a teoria dos quatro elementos primários.

Aos quatro elementos, cuja combinação está na origem de toda a ma-téria e de todos os seres vivos, corresponde ainda, para cada um deles, uma função vital. A respiração é associada ao elemento ar, o que é bastan-te comum, uma vez que o tema da importância vital da respiração foi am-plamente tratado na Antiguidade, tanto entre médicos como entre filóso-fos, por exemplo por Platão, Aristóteles, Erasístrato, Cícero, sendo central no tratado hipocrático De flatibus e no De causis respirationis de Galeno. A associação de cada elemento a determinados princípios vitais, oriunda tal-vez da medicina empírica, apresenta-se como convicção básica na medici-na hipocrática e tem reflexos importantes na obra de Vitrúvio, tanto na re-flexão arquitetônica propriamente dita como na teoria urbanística.

O autor associa o calor aos princípios do spiritus animalis, da erectio firma e da digestão. O princípio do spiritus animalis, ou seja, do sopro vital, corresponde ao pneûma ou ao spiritus vitalis dos estoicos, uma espécie de espírito divino materializado, composto de ar e fogo, que penetra em todas as partes do universo; o princípio da erectio firma é relacionado à capacida-de de se manter em pé, e não, como pensam alguns intérpretes, à posição ereta do homem, já que Vitrúvio refere-se também aos animais em geral; enfim, o princípio da digestão constitui uma alusão à teoria muito dissemi-nada, que remonta a Empédocles (mas Celso a atribui a Hipócrates), que considera ser a digestão um efeito do calor interno do corpo. À terra se as-socia a nutrição, a alimentação que fornece ao organismo a justa proporção do elemento terra em sua composição, uma associação radicada na menta-lidade arcaica e sempre bastante disseminada. Finalmente, à água se asso-ciam as substâncias líquidas do corpo, como o sangue e, implicitamente, a circulação (VIII. praef.2).

A presença do elemento líquido no corpo é acenada ainda em VIII.3.26, em que Vitrúvio apresenta os diversos tipos de humores nele presentes, como o sangue, o leite, o suor, a urina e a lágrima, mas difi-

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cilmente seria possível, como propõem alguns intérpretes7, relacionar dire-tamente o passo mencionado à fisiologia humoral, que pressupõe a saúde como um equilíbrio de líquidos e da qual deriva o esquema quaternário da tradição médica: sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma. O umor de que fala Vitrúvio é, certamente, uma referência ao originário elemento da água (principium liquor) presente no corpo, que se manifesta principal-mente em seus componentes líquidos, cuja ausência determinaria um completo ressecamento do organismo8. Quanto à natureza em geral, en-tendida como macroestrutura, em oposição à microestrutura correspon-dente à composição da matéria, Vitrúvio trata do tema servindo-se, outra vez, de uma eclética mistura de ideias filosóficas. A natureza é apresenta-da como o resultado de uma inteligência divina que regula o universo. O conceito de diuina mens pertence propriamente ao ambiente estoico, mas na época de Vitrúvio já estava muito vulgarizado, sobretudo após as nume-rosas atestações em Cícero, que atualiza formulações medioestoicas, prin-cipalmente de Possidônio. Em anos mais próximos ao De architectura é possível identificar ideias análogas no poema de Manílio, dominado pela ideia de uma razão que governa todas as coisas9. A diuina mens é caracteri-zada por Vitrúvio como uma força superior que colocou à disposição do homem, ao alcance da mão, tudo o que é verdadeiramente necessário, e nesse ponto (VIII. praefatio.3) o autor introduz uma distinção, de matriz epicurista, entre bens necessários, constituídos pelas fontes que nos for-necem os quatro elementos indispensáveis à vida, e os bens supérfluos e de luxo, como as pérolas, o ouro e a prata. Segundo o texto, o ar que existe na natureza foi predisposto para prover às necessidades desse elemento no corpo; o calor do sol e o fogo, descoberto pelo homem, tornam a vida mais segura; os frutos da terra, em quantidade que supera nossas necessidades e nossos desejos, nutrem continuamente o homem e todos os animais; en-fim, a água, que serve não apenas para saciar a sede, mas também para infinitos usos, porque, gratuita, se presta a agradáveis utilidades.

A relação entre arquitetura e natureza que se estabelece na obra tem duas coordenadas principais. A primeira, e mais importante, é constituída

7 Por exemplo, E. romano, in P. GroS (a cura di), Vitruvio, De architectura, trad. e coment. A. Corso, E. Romano, Torino, Einaudi, 1997.

8 L. CaLLEBat, Vitruve, De l’architecture, livre VIII. Texte établi, traduit et commenté (Col-lection des Universités de France). Paris, Les Belles Lettres, 1973, p. 46.

9 E. romano, loc. cit.

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pelo critério da salubritas, que tem uma importância particular no âmbito específico do urbanismo vitruviano, mas que deve também ser observado na construção de edifícios. Em segundo lugar, aparecem os aspectos rela-cionados à escolha dos materiais. O objetivo fundamental é a busca da utilitas, ou seja, a disposição correta dos espaços, sem obstáculos à sua utilização, e uma adequada distribuição, segundo a exposição ao sol que cada espaço requer (I.2.2). Em resposta ao imperativo da utilitas, estão envolvidas a dispositio e a distributio, mas, enquanto a dispositio está rela-cionada mais com a sequência espacial do edifício, a distributio, explicita-mente relacionada com os aspectos astronômicos da implantação, deve levar em conta a salubridade associada ao uso. No âmbito da solidez da construção, sintetizada no conceito vitruviano de firmitas, deve-se observar que a escolha acurada dos materiais de construção pode ser útil à seguran-ça do homem, pois com uma escolha diligente o arquiteto pode prevenir os riscos de desabamentos e de incêndios (II.9.6). O cuidado com a saúde em relação à localização e à orientação da cidade ou do edifício é associa-do também, e de forma ainda mais consistente, à conveniência ou decoro (decor), ou seja, a um resultado final visivelmente conveniente à obra e, mais especificamente, ao decor naturalis, um perfeito acordo entre a natu-reza do lugar e a destinação de um edifício, no todo e em cada uma de suas partes (I.2.7).

A exposição vitruviana relacionada à natureza não se apresenta con-centrada em um único bloco, mas dispersa nas diversas partes da obra, organizando-se, porém, em torno dos quatro princípios elementares cor-respondentes aos quatro elementos da tradição pitagórica. No âmbito da literatura técnico-científica, a apresentação de questões relativas à nature-za a partir dos quatro princípios elementares pode ser considerada uma prática comum, com longa atestação na literatura antiga, representada, por exemplo, pelas Naturales quaestiones de Sêneca e, em âmbito arquitetôni-co, pelo tratado de urbanismo de Julião de Ascalona, obras organizadas em seções dedicadas ao fogo, ao ar, à terra e à água. Em Vitrúvio, cada um desses elementos é associado a um aspecto natural da área da edificação: o fogo encontra-se ligado à ideia de zona climática, o ar aos ventos, a terra às características do terreno e a água às disponibilidades e variedades aquí-feras de uma determinada região.

A noção da salubritas tem um papel fundamental na teoria da arquite-tura de Vitrúvio. A busca da salubridade está relacionada principalmente à

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escolha do lugar e à orientação do edifício em relação ao sol. O primeiro conceito apresentado por Vitrúvio como importante para a arquitetura, na consideração da salubridade do lugar, é o de klíma10. O autor se apoia nes-sa noção para discorrer sobre as particularidades dos edifícios determina-das pela situação geográfica e climática (VI.1.2) e, com um raciocínio aná-logo, porém de caráter etnográfico, passa às diferenças na constituição do corpo, na mentalidade, na índole e na voz dos diferentes povos, conforme a zona climática que ocupam (VI.1.3-12)11. A conclusão do excursus é que, assim como as regiões da Terra se distinguem umas das outras pela dife-rente inclinação do céu e, do mesmo modo, a natureza dos povos se diver-sifica em aspectos e caracteres diversos, também as dispositiones dos edifí-cios devem ser adequadas às características dos povos e das estirpes, conforme as indicações da própria natureza, o que é exemplificado com a observação da diferença dos critérios empregados na construção do teatro grego e do teatro romano e com as características próprias do foro itálico.

Além das características climáticas, que em Vitrúvio são aquelas deri-vadas da inclinação do sol, ou seja, da quantidade de calor, devem ser ob-servadas ainda as propriedades do ar, dos lugares e das águas, se são salu-bres ou não. O autor reporta então, explicitamente, os três elementos contidos no título do tratado hipocrático De aeribus aquis locisque, o qual analisa sobretudo a relação entre a saúde e os ventos, a água e os lugares. Já Aristóteles (Política 1330b.8-14 Ross) afirmava existir uma dependência da saúde dos habitantes de uma cidade em relação à salubridade do lugar, do ar e das águas.

Critérios semelhantes estão presentes nos tratados latinos de agricul-tura. Columela apresenta os pontos a serem observados na escolha da loca-lização de uma propriedade rural reportando uma observação de Catão (Columelo, De re rustica, 1.3.1-4), segundo o qual devem ser observados dois fatores principais na inspeção do campo: a salubridade do céu e a fer-tilidade do lugar, enquanto a questão da boa qualidade da água seria óbvia,

10 A palavra klíma, que constitui em Vitrúvio um dos pontos de contato entre arquitetura e medicina (I.1.10). Na verdade, mais que à medicina, o conceito pertence propriamente à teoria astronômica de Hiparco (exposta em EStraBão, Geographica, 2.5.34 e em PLínio., Naturalis historiae, 6.39.), que dividiu a superfície da Terra em sete zonas climáticas, sete faixas horizontais denominadas klímata, das quais descreveu os principais dados astronômicos.

11 A antropologia vitruviana se apoia em critérios análogos aos expostos na segunda parte do tratado hipocrático De aëribus aquis locisque.

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não sendo necessários grandes argumentos para a sua recomendação. Palá-dio, em seu Opus agriculturae (1.1.2), menciona três dos quatro elementos em seu discurso em torno das quatro componentes da agricultura: “Em primeiro lugar, o raciocínio para escolher e cultivar bem o campo consta de quatro coisas: ar, água, terra e trabalho. Desses, três são naturais, um de-pende da disposição e da vontade. É necessário, antes de tudo, observar o que é da natureza, de modo que naqueles lugares destinados ao cultivo o ar seja salutar e clemente, a água salubre e fácil, seja de nascente, canalizada ou colhida da chuva, a terra deve ser fecunda e cômoda para o lugar”12.

Retornando à questão da ideia vitruviana da salubridade dos lugares, é necessário, antes de tudo, estabelecer quais são, na consideração de Vi-trúvio, as características dos terrenos que influem em sua salubridade e que se mantêm independentes das considerações climáticas já menciona-das. A posição ideal parece ser a parte alta de uma encosta13. Esta coloca-ção em lugares altos e ventilados é também insistentemente recomendada por Catão, Varrão e Columela na implantação das uillae rusticae, para evi-tar a proximidade dos pântanos e, de qualquer modo, para maior proteção em relação aos insetos que abundam nos paludes. Trata-se de uma consta-tação interpretada por alguns como uma consciência empírica do ciclo da malária; deve-se aqui lembrar que a prática da drenagem dos terrenos pan-tanosos é antiquíssima e a sua difusão remonta, pelo menos, aos etruscos, com larga aplicação em época republicana14.

Tanto Columela (1.5.6) como Paládio (1.7.4) falam sobre os insetos que abundam nos pântanos como causa de pestilência, mas o perigo re-presentado pelos paludes é explicado em termos absolutamente surpreen-dentes, em uma época que não conhecia os agentes patogênicos, por Var-rão, em um passo no qual, discorrendo sobre a localização da uilla rustica, pode-se intuir um pré-anúncio da microbiologia, pela referência a animais minúsculos (animalia minuta) que, difundindo-se pelo ar, entram no corpo

12 O critério da fertilidade do solo se apresenta também em Vitrúvio, na célebre anedota sobre o encontro de Alexandre e Dinócrates (II. praefatio 3; cf. também I.5.1).

13 A ideia que o autor manifesta sobre o lugar mais salubre para a construção de uma ci-dade é a seguinte: “is autem erit excelsus et non nebulosus non pruinosus regionesque caeli spectans neque aestuosas neque frigidas sed temperatas, deinde si vitabitur pa-lustris vicinitas” (I.1.4).

14 A malária é atestada só a partir do século I a.C., mas certamente era endêmica nos sé-culos precedentes. Cf. M. vEGEtti, P. manuLi, La medicina e l’igiene, in A. SChiavonE (dir.), Storia di Roma, Torino, Einaudi, 1989, v. 4, 389-429.

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pela boca e pelo nariz, causando doenças (Varrão, Rerum rusticarum libri tres 1.12.1). Sabe-se que os Rerum rusticarum libri tres de Varrão foram publicados no ano 37 a.C., data muito próxima à da redação do De archi-tectura. Vitrúvio, porém, ao contrário de Varrão, não busca nenhuma expli-cação para o fenômeno da pestilência dos pântanos além das teorias médi-cas correntes. Ele faz referências aos animais palustres, mas, segundo o autor, não seriam exatamente esses animais a causa das doenças, mas sim suas exalações (os spiritus bestiarum palustrium uenenati), resultantes de um processo de putrefação que liberaria vapores pestilentos15. Atribuindo ao ar contaminado um poder nocivo particular, Vitrúvio não faz nada além de exprimir um conceito comum encontrado nos tratados de medicina, de agricultura e, inclusive, em Lucrécio (6.1096-1102).

Para Vitrúvio, uma idêntica formação, a partir dos mesmos elementos naturais, é comum não só a homens e animais, mas a toda a matéria. A doença é resultado do desequilíbrio produzido na justa e natural composi-ção dos elementos no corpo (I.4.8). O excesso do elemento calor é causa-do pelo clima tórrido de certas zonas, quando o calor penetra no corpo pe-los poros dilatados mais do que se pode suportar segundo a sua composição natural. Em tais casos, o calor, queimando, anula e destrói os outros ele-mentos. Do mesmo modo, se o elemento líquido ocupa os poros (uenae), eles se dilatam, e os outros princípios, alterados pelo líquido, são diluídos, dissolvendo-se assim sua qualidade na composição. Danos semelhantes são causados também pela umidade dos ventos e das neblinas matutinas, que causam um resfriamento que se transmite ao corpo. Também as com-posições naturais de terra e de ar no corpo, se alteradas, enfraquecem os outros elementos: o aumento ou a diminuição do elemento terra é causado pelo excesso ou pela falta de alimento; as alterações na proporção do ele-mento ar, pela condensação ou rarefação do ar circundante (I.4.6). Entre todos os elementos, o calor é considerado o mais prejudicial16. Ao contrá-rio, o ar sadio, isto é, o ar manso e denso, é o elemento mais favorável à

15 Os argumentos usados para a confirmação dessa teoria são obtidos da experiência de alguns casos de paludes não-insalubres encontrados ao longo da costa adriática; se-gundo o autor, no caso em que esses pântanos se encontram próximos ao mar e em posição ligeiramente mais elevada, expostos a norte ou a nordeste, tal posição pode ser considerada aceitável, pois a água do mar misturada à água dos pântanos impediria que ali nascessem os típicos animais palustres.

16 “Nam semper calor cum excoquit e rebus firmitatem et uaporibus feruidis eripit exsu-gendo naturales uirtutes, dissoluit eas et feruore mollescentes efficit inbecillas” (I. 4. 3).

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saúde humana, graças ao seu poder de absorver os humores presentes no corpo, particularmente aqueles que prejudicam a vista (V.9.5).

Consideram-se as causas de desequilíbrio na composição corpórea li-gadas aos fatores climáticos naturais. A atenta observação, in situ, da ação de tais fatores e a precavida aplicação do princípio de exclusão dos fatores nocivos na construção da cidade ou de um edifício são as bases estabeleci-das pelo autor para a criação de um ambiente quase absolutamente inó-cuo17. Não se trata, obviamente, de excluir a importância da medicina, mas à arquitetura é atribuída uma importância fundamental na conservação da saúde pública. Um exemplo da diligência necessária ao arquiteto no trato das questões sanitárias é oferecido pela exposição dos critérios a ser obser-vados na construção do teatro (V.3.1-2): durante os espetáculos, os corpos imóveis têm seus póroi (uenae) abertos ao sopro das brisas, que, se prove-nientes de paludes ou outras regiões malsãs, infundem no corpo sopros nocivos; ou se forem muito expostos ao sol, o ar, fechado na sua curvatura e demasiadamente aquecido, retira os humores do corpo, alterando a justa composição. Deve-se observar a insistência com a qual Vitrúvio, tratando dos efeitos dos fatores naturais sobre a saúde, refere-se às uenae. Não se trata, obviamente, das veias do corpo, entendidas como canais do sistema circulatório, mas sim de póroi, ou seja, os espaços vazios invisíveis que se encontram entre os ónkoi, as partículas que constituem o corpo.

Tal fato conduz à aceitação da existência no De architectura de um reflexo direto da teoria atomística sobre a composição dos corpos, teoria cuja aplicação em medicina é geralmente atribuída a Asclepíades de Pru-sa, mas que na verdade pode remontar ao próprio Epicuro18. Asclepíades, que viveu em Roma na primeira metade do século I a.C., foi contemporâ-neo de Vitrúvio, provavelmente um pouco mais velho. Como se sabe, as terapias de Asclepíades foram muito bem acolhidas pela aristocracia roma-na, por causa da simplicidade e do caráter agradável dos procedimentos prescritos. Para ele, a doença e a dor eram causadas pela alteração do esta-

17 As três condições de salubridade são enunciadas por Vitrúvio em I.4.1: a) colocação em lugares altos para evitar as brumas; b) a orientação correta em relação ao curso do sol; c) o distanciamento de zonas pantanosas; cf. Ph. fLEury, Vitruve. De l’architecture, liv. I, Paris, Les Belles Lettres, 1990, 156.

18 De qualquer modo, a interpretação atomista do corpo já está presente na escola ale-xandrina, por exemplo em Herófilo (século III a.C.). Cf. vEGEtti, manuLi, La medicina e l’igiene, 389-429.

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do dos póroi e suas terapias procuravam, portanto, restituí-los à sua condi-ção normal, com uma movimentação moderada do corpo, por exemplo o vaivém de um balanço ou os passeios de liteira.

Vitrúvio, entretanto, se separa claramente do pensamento de Asclepía-des, pois para ele a causa das doenças é o desequilíbrio na proporção dos elementos presentes no corpo. Nesse ponto, o autor se aproxima da posi-ção de Temisão de Laodiceia, discípulo de Asclepíades, que retoma apenas parcialmente a teoria atomística do mestre e considera ser a doença causa-da pela alteração do estado normal dos póroi, impedindo o correto inter-câmbio de matéria entre interior e exterior do corpo19.

Vitrúvio parece construir sua teoria médica a partir da tradição da es-cola de Empédocles, sobretudo a partir da concepção da ação do ar sobre os poros, segundo a qual os póroi deixam passar o ar, mas não o sangue, por causa das dimensões restritas. Nessa teoria, o sangue, quando retorna em direção à parte mais interna do corpo, o faz de modo que o ar seja aspi-rado para dentro dos vasos sanguíneos e, quando o sangue retorna à super-fície do corpo, o ar é expulso. Essa teoria pode explicar a absorção de ou-tros elementos, como a umidade presente no ar. O calor, considerado por Empédocles (e por Vitrúvio) o principal agente de modificação da matéria, diminui a adesão entre as partículas do corpo, dilatando os espaços vazios existentes entre elas e permitindo a absorção de doses extras de elementos que destemperam a composição original desses elementos, causando a doença. Mas essa teoria, na atualização vitruviana, é integrada com a im-portância dada por Asclepíades e por Temisão à mudança da disposição das partículas no corpo.

O cuidado em relação aos ventos é o ponto mais importante em sua teoria relativa ao traçado da cidade, de natureza ortogonal, cujas vias não devem estar alinhadas com os pontos cardeais e colaterais. Sua atenção é condicionada pela relação dos ventos com a saúde do homem, ignorando outras perspectivas, como, por exemplo, a de Lucrécio,20 que se concentra em sua potência destrutiva. Para Vitrúvio, o ambiente protegido dos ven-tos, dotado de uma atmosfera calma e densa, não apenas é salubre para os

19 Cf. verbete “Medicina (Scuole di)”, in F. fErrari et al., Dizionario della civiltà classica, Milano, Rizzoli, 1993.

20 Cf. LuCréCio, De rerum natura, 1. 270-297; idêntica perspectiva em hiPoCratES, De flati-bus, 3.2.

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Júlio César Vitorino

organismos em boa saúde, mas também torna mais fácil o tratamento de algumas enfermidades. Tanto doenças que se tratam com medicinae con-trariae, como a traqueíte, a tosse, a pleurite, a tísica, quanto as que só com muita dificuldade se curam com adiectiones, e não com detractiones, em ambientes protegidos dos ventos são vencidas mais facilmente, pois são causadas pelo frio e, se o ar é movimentado, a agitação do vento debilita ainda mais o corpo doente. Ao contrário, o ambiente onde não há corren-tes de ar revigora os membros e restitui a saúde a quem padece de tais enfermidades (I.6.3).

Nesse ponto, Vitrúvio exibe um conhecimento de princípios médicos que extrapola o âmbito dos conceitos médicos de natureza prática aplicá-veis à arquitetura, demonstrando possuir um bom domínio tanto do voca-bulário técnico da medicina como das diferenças entre as diversas escolas médicas de seu tempo. A expressão habent curationes medicinae contrariae é uma referência à medicina hipocrática, baseada no princípio contraria contrariis curantur, segundo o qual, assim como o alimento é o remédio para a fome, o exercício é o remédio para o repouso e o repouso é o remé-dio para o exercício, ou seja, a medicina é subtração (aphairesis) do que está em excesso no corpo e adição (prostesis) do que está em falta21. Os dois termos vitruvianos, adiectio e detractio, constituem, precisamente, a tradução das duas palavras gregas.

Para as enfermidades citadas por Vitrúvio, portanto, uma vez que são causadas pelo frio, ou seja, não são causadas pelo excesso de algum ele-mento, mas principalmente pela falta de calor, são utilizadas como remé-dios alopáticos substâncias consideradas quentes, capazes de acrescentar calor ao corpo. O autor se mostra bastante desinteressado em relação ao uso de terapias baseadas em medicamentos ou ervas, o que pode ser pre-sumido pela quase total ausência de referências a esses expedientes em seu tratado. Aos remédios alopáticos, Vitrúvio antepõe o controle dos ven-tos. A medicina que propõe, como uma verdadeira panaceia contra os ma-les causados pelo frio, é a cidade protegida dos ventos.

21 Cf. hiPoCratES, De flatibus, 1.4-5.

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