MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças...

20
26 26 26 26 26 26 26 26 26 726 MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE KIAROSTAMI Alan Victor PIMENTA 1 Resumo: Partimos do sentimento de inquietação provocado pelo contato com imagens cujo aspecto inconcluso sobressai ao desejo de entendimento racionalmente organizado. Neste entremeio, tencionamos alguma reflexão sobre uma forma de interpretação que não se desenvolva exclusivamente com base na obra, mas que a considere como suporte para os sentidos de encontro entre seu criador e aqueles que a veem e possibilite uma experiência estética que se expresse como relação de alteridade e estado de contemplação. Este artigo se faz como proposta para um modo de ver as fotografias de Abbas Kiarostami (Teerã, 1940), que transite pela cultura visual das iluminuras iranianas do século XVI, destacando elementos de sua composição como traços das imagens e narrativas tradicionais dos persas, e se misture aos significados dados a elas no presente de nosso diretor fotógrafo, para compor uma visão imersa na memória visual do artista e na imaginação criadora do espectador. Palavras-chave: Fotografia. Abbas Kiarostami (1940). Educação visual. Imaginação criadora. Iluminura Persa. Introdução As imagens nos ensinam modos de ver. Cada uma, à sua maneira, figura gestos e registra o encontro de um corpo com o mundo. Aquelas produzidas por artistas do passado, quando reverberam na produção presente de outros, sem que se tenham conhecido, mesmo tendo vivido em épocas e lugares distintos, participam do mesmo corpo e do mesmo espaço/tempo. Mas também deste encontro participamos nós, que os vemos em nosso presente. Este texto buscará modos de ver algumas das fotografias do iraniano Abbas Kiarostami (Teerã, 1940), acompanhadas por conceitos sugeridos por seus próprios filmes e textos, e visitará nessas fotografias a memória histórica sobre a produção de imagens neste local, que foi a Pérsia no século XVI, por meio das iluminuras grafadas sobre os poemas de Nizami. A arte de Kiarostami encontra expressão em diversas linguagens. Graduado em Belas-Artes pela Universidade de Teerã, exercitou a pintura e a poesia, ganhou 1 UFSCar Universidade Federal de São Carlos. Centro de Educação e Ciências Humana - Departamento de Educação. São Carlos SP Brasil. 13565-905 - [email protected]

Transcript of MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças...

Page 1: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

26

7

26

7

26

7

26

7

26

7

26

7

26

7

26

7

26

726

MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE

KIAROSTAMI

Alan Victor PIMENTA1

Resumo: Partimos do sentimento de inquietação provocado pelo contato com imagens

cujo aspecto inconcluso sobressai ao desejo de entendimento racionalmente organizado.

Neste entremeio, tencionamos alguma reflexão sobre uma forma de interpretação que

não se desenvolva exclusivamente com base na obra, mas que a considere como suporte

para os sentidos de encontro entre seu criador e aqueles que a veem e possibilite uma

experiência estética que se expresse como relação de alteridade e estado de

contemplação. Este artigo se faz como proposta para um modo de ver as fotografias de

Abbas Kiarostami (Teerã, 1940), que transite pela cultura visual das iluminuras

iranianas do século XVI, destacando elementos de sua composição como traços das

imagens e narrativas tradicionais dos persas, e se misture aos significados dados a elas

no presente de nosso diretor fotógrafo, para compor uma visão imersa na memória

visual do artista e na imaginação criadora do espectador.

Palavras-chave: Fotografia. Abbas Kiarostami (1940). Educação visual. Imaginação

criadora. Iluminura Persa.

Introdução

As imagens nos ensinam modos de ver. Cada uma, à sua maneira, figura gestos e

registra o encontro de um corpo com o mundo. Aquelas produzidas por artistas do

passado, quando reverberam na produção presente de outros, sem que se tenham

conhecido, mesmo tendo vivido em épocas e lugares distintos, participam do mesmo

corpo e do mesmo espaço/tempo. Mas também deste encontro participamos nós, que os

vemos em nosso presente.

Este texto buscará modos de ver algumas das fotografias do iraniano Abbas

Kiarostami (Teerã, 1940), acompanhadas por conceitos sugeridos por seus próprios

filmes e textos, e visitará nessas fotografias a memória histórica sobre a produção de

imagens neste local, que foi a Pérsia no século XVI, por meio das iluminuras grafadas

sobre os poemas de Nizami.

A arte de Kiarostami encontra expressão em diversas linguagens. Graduado em

Belas-Artes pela Universidade de Teerã, exercitou a pintura e a poesia, ganhou

1 UFSCar – Universidade Federal de São Carlos. Centro de Educação e Ciências Humana - Departamento

de Educação. São Carlos – SP – Brasil. 13565-905 - [email protected]

Page 2: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

27

7

27

7

27

7

27

7

27

7

27

7

27

7

27

7

27

727

expressão internacional como cineasta e, desde algum tempo, tem atuado como

fotógrafo. Sua produção imagética tem forte traço autoral e a presença deste realizador é

marcante em todas as formas de expressão reunidas em seus filmes, de modo que é

possível trabalharmos sua produção fotográfica separadamente, mas também atentando

à visualidade de suas obras cinematográficas.

Algumas das características mais marcantes deste fotógrafo diretor são

relacionadas à maneira como possibilita ao espectador participar ativamente na

formação do sentido de suas imagens, construindo narrativas de forte apelo poético,

cujo entendimento permanece aberto, transitório, inconcluso. Em Caminhos de

Kiarostami, Jean-Claude Bernardet (2004) expõe estas marcas como modernas

estratégias cinematográficas, que integram à obra a sensibilidade de quem a vê. Há, no

entanto, possibilidades de interpretação deste modo de compor cenas e contar estórias,

fílmicas ou fotográficas, que abordem os processos históricos aí envolvidos e a

educação visual do autor como ser social de sua época, que remetam o espectador à

ação fluida da memória visual da Pérsia iraniana. Não supomos que o percurso entre o

objeto artístico e a interpretação deva acontecer por determinação do contexto histórico

da obra; mas que esta memória pode sugerir caminhos aos olhos que a percorrem e

reverberar sentidos novos no presente.

A imaginação criadora

“Imaginar é exercer uma sagrada liberdade cívica e política.”

(ALMEIDA, 1999, p.01).

Em determinados contextos, de natureza idolátrica, os objetos artísticos

poderiam ser entendidos como possuidores de valor por si mesmos, não necessitando

que se considerasse aí a relação com as pessoas – de modo semelhante ao que acontece

com as relíquias religiosas, cujo poder emanador independe da presença do fiel. Ainda

que aceitássemos esta possibilidade como real, tais objetos assim o seriam por estarem

investidos desse significado por aqueles que os olhassem, rodeassem, ou mesmo se

ausentassem, de modo que o “valor natural” da obra permaneceria constituído em

relação ao espectador – posicionado como receptor, nesse caso.

Quando a relação com as obras artísticas é partilhada como experiência estética,

torna-se possível que aquele que vê enxergue algo além das formas imediatas. É

possível ao observador receber da imagem que vê, imagens outras, que participam de

Page 3: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

28

7

28

7

28

7

28

7

28

7

28

7

28

7

28

7

28

728

sua composição como memória do passado do artista; mas também imagens de si,

daquele que olha, e cuja memória produz sentidos sobre o que vê. E então não se vê

somente a obra, ou a si mesmo, mas a si no mundo e ao mundo em si, na história da

obra e na história dos olhares já lançados sobre ela.

Se a arte, além de estar no objeto, está nos olhos de quem o vê, sua compreensão

é histórica e social, ao mesmo tempo em que é individual. Deste modo, não só a

interpretação de uma mesma obra pode variar conforme diferentes espectadores, como a

obra vista novamente após um intervalo de tempo recebe diferentes significados. Se o

sentido da obra estivesse unicamente nela, na própria obra, o mesmo significado

afloraria em todos os espectadores e não se alteraria no decorrer do tempo. Se assim

fosse, a obra se renderia ao conceito e a uma grande sorte de mensurações a valorações.

Interpretar a obra como se fosse ela a fonte emanadora do sentido, “[...] apenas

por sua mensagem explícita, visível ou dedutível pela história narrada, é também uma

interpretação incompleta, um naturalismo científico, mesmo que essa interpretação

venha fundamentada em teorias estéticas, sociológicas e políticas.” (ALMEIDA, 1999,

p.38). Ao explicar as obras como expressão de conceitos e categorias predeterminadas,

“e não como uma ideologia que se faz em forma de alegoria” artística, essas

interpretações submetem as obras a comprovar as teorias.

Utilizar teorias lógicas e claras para explicar um afresco [...], ou um

filme é acreditar que este tipo de obra tenha também uma origem

lógica e clara, mesmo que não a deixe transparecer. Como se o

construto mental que dá forma lógica à teoria explicativa fosse

preexistente ao objeto que ela deseja interpretar. A interpretação deve

partir do caos aparente da imagem, encarar o mistério dos intervalos

significantes e valer-se também do caos das teorias, não ter medo do

seu aparente conflito. (ALMEIDA, 1999, p.38-39).

É possível entender nossa relação com as diferentes linguagens artísticas não

apenas como conteúdos a serem decifrados, entendidos por completo e explicados de

maneira direta. Embora este seja um procedimento possível, são também alegorias cujas

origens históricas existem e podem ser consideradas, são mensagens que se deslocam no

tempo e aparecem no presente de quem as vê, integrando-se à memória em estado de

contemplação. Este fatal intervalo entre o objeto e os olhos é que tenciona a ideia de

uma interpretação inteiramente objetiva.

Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, primeira edição de

1936, Walter Benjamin (1983) associa a perda da possibilidade contemplativa frente à

Page 4: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

29

7

29

7

29

7

29

7

29

7

29

7

29

7

29

7

29

729

arte a diversos fatores, entre eles, às legendas explicativas adicionadas por certas

revistas, condicionadoras do sentido que o espectador atribui à imagem. Outro fator de

relevância seria o “apelo dirigido às massas pela obra de arte”, envolvendo aí certo

projeto político do século XIX que, ao mesmo tempo em que amplia o acesso às obras,

por meio da institucionalidade dos museus e casas de exposição, também difunde

modelos interpretativos de objetividade visual. Os adventos da fotografia e do cinema,

aliados ao seu entendimento como produtores de imagens reais, “sem a intervenção das

mãos do artista”, são expressões desta ideologia que não só naturaliza o fenômeno

visual, como consagra certo modelo de interpretação que desconsidera a ação do

espectador sobre o que é visto, contribuindo significativamente na construção do mito

da passividade visual – atributo das noções de objetividade.

Sobre este ponto, a obra de Kiarostami é expressão de seu profundo sentimento

de inadequação, ao propor enredos, ou mesmo imagens estáticas, de claro apelo a uma

“estética relacional” (BERNARDET, 2004, p.52, grifo do autor). Este modelo não

apenas privilegia, como toma por fundamental a participação do espectador. As imagens

e histórias contadas são de tal forma inacabadas que, aos espectadores, não resta outra

possibilidade a não ser completá-las com sua própria imaginação. Esta forma de ação

sobre a imagem pode ser mais bem compreendida à luz do conceito de mundo imaginal,

tal qual formulado pelo orientalista Henry Corbin (França, 1903-1978). Imaginal é

diferente de imaginário no sentido de que a este ultimo tendemos, no ocidente, a

atribuir qualificativos próximos aos de fantasioso e irreal, enquanto imaginal preserva a

ideia desenvolvida por pensadores como Suhrawardi (Irã, 1154-1191) (CORBIN, 2007)

e Ibn’Arabi (Múrcia – Espanha, 1165-1240) sobre a capacidade imaginativa como a

correspondente interna para o sentido da visão, sendo dotada de realidade tal qual sua

equivalente externa (CORBIN, 2006). Nesta perspectiva, o ato de ver não é algo que se

faça apenas “de fora para dentro”, mas ação também como atividade de quem vê.

Seguindo este princípio, a ideia de que as imagens, mesmo as histórias,

necessitam da atividade criadora do espectador para que se completem torna-se uma

constante, não apenas nas imagens de Kirostami, mas também na de outros artistas. Na

verdade, esta é uma disposição que, se iniciada no próprio espectador, pode ser

estendida a qualquer obra de arte. No caso de nosso fotógrafo iraniano, ajuda a tomar

como prazer o estranhamento inicial de que suas imagens e histórias se configurem

muito mais como perguntas do que respostas. Instigar o espectador às questões significa

um ato de profundo engajamento político, não por uma causa específica, mas por

Page 5: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

30

7

30

7

30

7

30

7

30

7

30

7

30

7

30

7

30

730

exercício da liberdade, imaginal, sem a qual a ação artística implicaria doutrinar o

público.

Kiarostami – caminhos que bifurcam

A obra cinematográfica de Abbas Kiarostami tem se tornado cada vez mais

conhecida e prestigiada no Brasil, tendo sido tema de Festivais de Cinema, modismos e

discussões acadêmicas. Sua linguagem cinematográfica abre novas possibilidades para

se pensar o cinema narrativo e tenciona os limites entre a ficção e o documentário. Em

atenção a este ponto, Jean-Claude Bernardet ressalta que é o princípio de incerteza que

rege a produção deste cineasta: o espectador não sabe de todo o que está vendo.

“Kiarostami transmite informações a conta-gotas e mantém seu espectador

subinformado: é uma de suas estratégias fundamentais.” (BERNARDET, 2004, p.51).

É possível contar uma série de exemplos em suas obras fílmicas. Em Vida e

nada mais, o diretor de Onde fica a casa do meu amigo? propõe-se ir até outra cidade

saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da

cidade não é revelado no filme logo de imediato, o que acompanhamos é a viagem já

em andamento e não temos a informação do destino. Ao passar pelo pedágio, o diretor

pergunta sobre a estrada. O cobrador responde que ele tinha feito a mesma pergunta na

véspera. O motorista explica que no dia anterior pretendia ir a Rudbar, mas que, como a

estrada estava interrompida em Manjil, precisou voltar. Como a passagem é liberada

apenas para veículos que levam mantimentos, o filho sugere mostrar a fotografia dos

garotos e dizer que levam mantimentos para as vítimas. Seguindo estrada, e após

indagar por diversas vezes, para diferentes pessoas, sobre o caminho a seguir, ele

pergunta a mulheres na estrada sobre como ir a Koker, e esta é a primeira vez que o

destino da viagem é mencionado, a vinte e seis minutos do início do filme, passado um

terço da projeção total.

Desconhecendo o destino, é o trajeto, o próprio movimento, que ganha evidência

e por meio dele a história é encenada. Uma observação importante sobre este fluxo é

que ele nunca se dá em linha reta nem por vias principais. As estradas de Kiarostami são

sempre sinuosas e repletas de contratempo.

A desinformação dilata o tempo. Longe do tempo vetorial das

narrativas tradicionais, nas quais conhecemos os objetivos dos

personagens, mas não o resultado de suas ações, o parco

reconhecimento da razão de ser das ações que vemos os personagens

Page 6: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

31

7

31

7

31

7

31

7

31

7

31

7

31

7

31

7

31

731

praticar gera como que um tempo sem finalidade, um tempo em

meandros, como o espaço da trajetória que não se dá em linha reta e se

espalha em pausas e desvios. (BERNARDET, 2004, p.54).

Este modo de narrativa incide de forma poderosa sobre o espectador. A

desinformação sobre as motivações dos personagens cria a necessidade de que se preste

muito mais atenção a tudo o que se vê, a tudo o que é dito, já que qualquer detalhe se

torna essencial na composição da história. O espectador também participa do processo

de busca evidenciado pelas indagações do personagem-diretor desde a primeira cena de

Vida e nada mais (1992). Algo semelhante acontece em diversos outros filmes de

Kiarostami, a parcimônia na administração da informação dá potência às imagens e ao

papel que cumprem na montagem do filme. Se, em O gosto de cereja (1997), por

exemplo, conhecêssemos já de antemão as intenções do senhor Badii ao passar tanto

tempo em seu automóvel à procura de alguém que realize um trabalho tão incomum,

informação que nos é dada após vinte e quatro minutos do início do filme, é bem

possível que a construção desta revelação não alcançasse uma proporção tão

intensamente perturbadora.

A incompletude é outro princípio fundamental na obra de Kiarostami: as ações

não chegam a um desenlace, ficam em aberto. O espectador não tem resposta às

indagações nem à resolução dos problemas, mas o não saber, a hipótese, a dúvida. O

importante, como traço fundamental desta obra artística, é o movimento que se

desenrola no tempo, não a finalidade.

Em O gosto de cereja (1997), não temos certeza se o senhor Badii foi bem-

sucedido em seu objetivo e assim por diante: o menino de Onde fica a casa do meu

amigo? não encontra o amigo; o diretor, em Vida e nada mais (1992), não encontra os

meninos, ele ouve dizer sobre o estado deles, mas esta incerteza não é resolvida; não

sabemos o destino do casal em Através das oliveiras; e quanto ao esperado ritual

fúnebre de O vento nos levará, não será visto e nem filmado. Os objetivos, que levamos

tanto tempo para entender, não são alcançados, ficam em suspenso.

O que fica não é a resposta a alguma indagação, a resolução de algum

problema, mas o não-saber, a hipótese, a possibilidade, a dúvida. A

certeza, nunca. O que fica é o movimento que se desenrola no tempo,

não a sua finalidade. O que importa na busca é o seu dinamismo, não

o seu objetivo. Entendemos, então, como nesse quadro uma rua sem

saída pode ser angustiante: ela fecha o espaço, interrompe o

movimento. Quando Puya [em Vida e nada mais] pergunta ao pai o

que é uma rua sem saída, este, que vinha dialogando com o filho sobre

Page 7: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

32

7

32

7

32

7

32

7

32

7

32

7

32

7

32

7

32

732

o caminho, não responde e, com o rosto tenso, continua guiando. A

pergunta de Puya encerra o diálogo. O mundo de Kiarostami não se

fecha sobre si mesmo. (BERNARDET, 2004, p.57).

Interessa-nos pensar a forma, assumida em imagem, para estas duas

características referenciais em Kiarostami, os princípios de incerteza e incompletude. A

necessidade de que o recorte do campo visual não simule um fechamento do espaço

sobre si mesmo é algo de recorrente nas imagens fotográficas e fílmicas deste artista.

Esta materialidade da abertura do campo visual, seja pelo enquadramento, seja pela

sequência, prescinde de apelo ao recurso do campo-contracampo, que, mesmo quando

empregado, é coordenado no sentido de ampliar a participação do espectador e quase

nunca se fecha na bipolaridade do diálogo entre dois personagens. Esta configuração da

imagem, que libera os olhos do sentido fechado mesmo quando não enquadra a linha do

horizonte e foca apenas o chão, caracteriza sua obra artística e politicamente.

Fotografia

Conhecem a história do menino que pediu ao

pai para lhe mostrar uma floresta?

O pai concordou e, quando chegaram, o pai

perguntou se o menino avistava a floresta.

Admirado, o menino disse: ‘Vejo, mas são

tantas árvores na frente que quase não consigo ver a

floresta. (KIAROSTAMI, 2004, p.186).

Na série fotográfica “As estradas de Kirostami 1978-2003”2, a singularidade dos

elementos de cena, quase desprovidos de significantes internos à composição, não chega

a definir qualquer direção a ser percorrida pelos olhos de quem as vê, “a despeito de

deixarem claro que o destino está ali sempre em jogo” (LISSOVSKY, 2014, p.96).

Os primeiros anos da Revolução Islâmica refrearam nosso trabalho.

Certo dia em que não tinha o que fazer, comprei uma câmera Yashica

bem barata e tomei o caminho da natureza. Eu queria me confundir

com ela. Ela me conduzia. [...] Minhas fotografias não são o resultado

de meu amor à fotografia, mas do amor que dedico à natureza. [...]

Durante muitos anos, eu deixava a cidade e me sentia muito melhor.

[...] Para quem nasceu em um apartamento e está habituado aos

grandes edifícios, a natureza tem uma significação inteiramente

diversa. Em minha opinião, essa natureza é o oposto da natureza

humana e de suas necessidades. Nós tendemos, muitas vezes, a

esquecer essa realidade. (KIAROSTAMI, 2004, p.90).

2 Kiarostami (2004).

Page 8: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

33

7

33

7

33

7

33

7

33

7

33

7

33

7

33

7

33

733

Ishaghpour (2004, p.90) chama atenção para a ambiguidade da expressão

“natureza oposta à natureza humana”, utilizada pelo cineasta. Ela pode partir de uma

ideia geral sobre a “natureza” alienante da vida moderna citadina, estranha à verdadeira

natureza do homem. Ou então “significar o ‘inteiramente outro’ da natureza que partilha

do sagrado, oposta ao homem na medida em que este, mesmo exilado, não aspira mais a

ela, a reencontrar a unidade e a intimidade nessa contemplação-criação que revela sua

beleza”. A paisagem, disposta desta maneira nas fotografias e filmes de Kiarostami,

configura-se como alteridade, já que para dar visibilidade à beleza da natureza, é preciso

que se esteja em exílio.

Na natureza do exílio, o espectador vê sua própria ausência: “[...] a natureza,

com o indizível de seu mistério, tendo existido antes dele e lhe sobrevivendo, dispensa-

o perfeitamente [...]” (ISHAGHPOUR, 2004, p.90). Do lugar da contemplação, os olhos

percorrem a beleza estrangeira e partilham da experiência singular da própria

mortalidade. Do lugar de seu recolhimento, o olho exilado só vê graças a distância e ao

silêncio com que vai ao encontro da paisagem vista:

[...] por sua intimidade essencial com o numinoso e seu

distanciamento de toda condição humana determinada, de todos os

vínculos exteriores, por sua própria ausência para si mesmo e sua

solidão absoluta. Assim, o próprio efêmero, o ‘tempo’, torna-se

imagem da eternidade. (ISHAGHPOUR, 2004, p.90).

Se considerarmos, no entanto, a natureza de modo desnaturalizado,

entenderemos que ela é fruto da cultura, principalmente quando é o exílio em seus

domínios, o que possibilita ao viajante a redescoberta de suas próprias fontes. A própria

concepção de paisagem campestre, na pintura, foi invenção de citadinos, e não de

camponeses. Este aspecto nos sugere que uma paisagem aponta de modo mais incisivo

para a realidade daquele que a contempla. Kiarostami, ao abrir a angulação de seus

enquadramentos, aproxima da natureza os camponeses que filma/fotografa, em tal

intimidade de trabalho na terra que seria difícil imaginá-los separados deste contexto, de

tal modo que as linhas e tons que constituem seus corpos parecem a continuidade

daqueles que perfazem e, assim, os integram à paisagem. “A paisagem só se torna

visível por ser o longínquo.” (ISHAGHPOUR, 2004, p.91). É aquele que a vê em

recorte fotográfico e lança sobre ela seu olhar que recebe, em devolutiva, questões de

outra ordem, ideias trespassadas que o remetem ao ‘outro’. Na fotografia, tudo é forma

Page 9: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

34

7

34

7

34

7

34

7

34

7

34

7

34

7

34

7

34

734

e toda a forma é conteúdo, sendo inseparáveis essas definições quando se trata da visão

fotografada. Pois olhar a paisagem revelada sobre o papel fotográfico pede que os olhos

se modifiquem em outros olhos, no olho do outro, “outro saber, e ainda esse

apagamento de si para que o mistério da natureza se torne visível”. “Não se deve,

porém, esquecer que é difícil ascender a este estado privilegiado. É preciso saber olhar,

saber ver. Tudo se resume na maneira de ver. O segredo reside no conhecimento desse

modo de visão, de olhar.” (ISHAGHPOUR, 2004, p.92).

Em grande parte da obra fotográfica de Kiarostami, vemos um elemento que se

destaca com relação ao todo composto pela paisagem, uma árvore, uma pessoa ou uma

estrada vazia. Este direcionamento singular ressalta uma escolha estética do fotógrafo,

mas também uma escolha conceitual. Uma única árvore é mais dos que uma árvore em

conjunto com outras, porque o conjunto corresponderia a outro conceito, ao do coletivo

de árvores, e não carregaria mais a singularidade de uma árvore, para a qual deveria

estar retratada de forma solitária, suspensa na paisagem.

Fotografia 1 - As estradas de Kiarostami 1978-2003”...

Fonte: (KIAROSTAMI, 2004).

A visão ativa, de imaginação, alcança na fotografia, em qualquer das fotografias

de Kiarostami, o ponto de encontro entre caminhos que bifurcam, apontando a árvore

Page 10: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

35

7

35

7

35

7

35

7

35

7

35

7

35

7

35

7

35

735

que, por mais que o seja, não pertence àquela paisagem de modo natural, à paisagem

fotográfica, sobreposta à paisagem fotografada. É uma árvore e uma outra árvore, um

outro espaço além do horizonte da visão e que a devolve à imagem que constitui na

orientação interna de quem a vê. É uma árvore e uma não árvore. Desta, a escuridão se

espalha em sombra e demarca o chão da terra, expandindo-se até se tornar uma marca

do céu, como em uma transfiguração. A chave: e como seria se não houvesse a árvore?

O importante é o enquadramento. De qualquer coisa. Quando tiro uma

fotografia, pergunto-me se irei revelá-la ou não. Normalmente hesito,

mas depois acabo por fazê-lo de qualquer maneira. No instante preciso

em que coloco o instantâneo em uma moldura com um passe-partout,

ele se torna subitamente mais atraente, e quando olho para ele através

do vidro da moldura, acho-o perfeitamente plausível. Portanto, creio

que a ideia de enquadrar um objeto numa imagem é tão importante

quanto o conteúdo. Ao escolher e enquadrar alguma coisa, nós lhe

damos a dimensão da importância que provém do fato de a termos

selecionado. No momento em que se seleciona algo, lhe conferimos

um valor adicional que o distingue de toda e qualquer outra coisa.

(KIAROSTAMI, 2004, p.178-179).

Grande parte da composição fotográfica de Kiarostami, e mesmo nos filmes, a

disposição entre os elementos da cena é paralela, com camadas dispostas de faixas de

terra, areia, água, árvores, estradas e mourões. São como faixas visuais entre quem vê e

o além da imagem. Esta disposição em paralelo é, em grande parte, o que constitui o

aspecto de frontalidade na composição das imagens, o que funciona como modo de

desnaturalização da organização tridimensional do espaço, se furtando à profundidade

de campo em perspectiva, que é própria à temporalidade da história e da ação. Temos

então um tempo em suspensão.

É também possível que a disposição paralela dos planos seja a autora da

atmosfera de tranquilidade que conduz ao silêncio. Mesmo nas imagens em que a

tempestade se arma, as nuances de tom, os claros e os escuros que se misturam em

contiguidade dificilmente favoreceriam um desdobramento sinfônico de contrastes

contrários.

Page 11: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

36

7

36

7

36

7

36

7

36

7

36

7

36

7

36

7

36

736

Fotografia 2 - As estradas de Kiarostami 1978-2003

Fonte: (KIAROSTAMI, 2004).

As iluminuras que veremos adiante atingem uma esfera harmônica sob outros

procedimentos. A pintura, diferentemente da fotografia, se realiza por obra da memória

e da técnica manual do pintor. Não que o ato fotográfico prescinda destes elementos de

intervenção, como da participação ativa do fotógrafo antes, durante e após a captura. No

resultado final obtido nas estradas de Kiarostami, no entanto, o caráter de

transcendência com o qual a natureza se apresenta se faz por modo de sua própria

presença, sendo este modo de presença, o sentimento – ou mesmo o sentido de

“desaparecimento” – do fotógrafo (ISHAGHPOUR, 2004, p.95). Este sentimento é

verificável nas imagens, rarefeitas, cuja linguagem se aproxima de um minimalismo

contido. Esta impressão, sem dúvida, existe, mas não deixamos de notar que existe aí

uma simplicidade essencial, mas de caráter marcadamente estético. Kiarostami e a

fotografia em geral são tão artificiais quanto qualquer outro artista, só que este modo de

composição rarefaz a densidade de seu artifício.

Walter Benjamin, por diversas vezes, chamou atenção para o processo destruidor

da “aura” por obra da reprodutibilidade técnica operada pela fotografia. A percepção de

que “as coisas são o que são”, e não aquilo que nossa visão “coisificadora” deseja que

Page 12: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

37

7

37

7

37

7

37

7

37

7

37

7

37

7

37

7

37

737

sejam, é parte da “experiência da aura” em Benjamin. Para o pensador, é implícita ao

olhar a expectativa de ser correspondido por aquilo que se oferece. “O que na

daguerreotipia devia ser sentido como desumano, diria mesmo mortal, era o olhar

dirigido (além do mais, longamente) ao aparelho, enquanto este acolhe a imagem do

homem sem lhe retribuir um olhar” (BENJAMIN, 1983, p.52). A satisfação de tal

expectativa alcançaria, pelo olhar, a experiência da aura.

Em “Sobre a linguagem geral e sobre a linguagem dos homens”, texto que

Benjamin escreve em 1916, Lissovsky (2014, p.30, grifo do autor) reconhece a tentativa

de delimitar um campo em que uma “outra” linguagem pudesse se contrapor à

“concepção burguesa da língua” – para a qual “a palavra é meio de comunicação, seu

objeto é uma coisa e seu destinatário é um homem”. Esta linguagem “outra” remeteria

às concepções da mística judaica sobre a palavra, cuja origem è remetida à palavra-

adâmica, a linguagem do bem-aventurado. Esta forma de linguagem não poderia ser,

evidentemente, legada exclusivamente ao seu aspecto de contrato social, por meio do

qual as palavras não guardam mais a potência das coisas. Benjamin aponta para uma

forma de linguagem por meio da qual “se irradia, sem som e na muda magia da

natureza, a palavra divina” (LISSOVSKY, 2014, p.31).

É no caráter de uso nomeador e instrumental que a linguagem se degrada. Ainda

segundo Benjamin, seria necessário ver as coisas como se elas nos vissem para se

atentar à sua linguagem. Esta postura de abertura à perceptibilidade caracteriza um

importante passo na experiência da aura.

O advento da fotografia ocasionou, para Benjamin, grande parte da

mecanicidade na linguagem visual, por conta de seu caráter de reprodutibilidade

técnica. A fotografia, nesta concepção, traria as coisas para a proximidade, colocando-as

à disposição de quem a vê. Neste caso, o espectador não mais se força a “levantar o

olhar”, a se recolher num átimo de tradução do intraduzível, de reinvenção da

linguagem – fatal intervalo de encontro com a poesia. Por este motivo, a

reprodutibilidade técnica seria impeditiva da fotografia como meio para a

contemplação, justamente por reduzir o objeto à mera singularidade visual de ser traço

de si mesmo. Há, no entanto, algo de específico em algumas obras fotográficas que nos

devolvem a esta discussão com fôlego renovado. A paisagem de Kiarostami está entre

as exceções, pois ao mesmo tempo em que suscita no homem “o sentimento de sua

própria finitude, a natureza, por seus retornos cíclicos, abole o tempo”. Nesta condição,

os elementos de cena que compõem as paisagens são algo além deles mesmos.

Page 13: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

38

7

38

7

38

7

38

7

38

7

38

7

38

7

38

7

38

738

O sentimento da contemplação, então, se torna possível pela relação de

“restituição” que o espectador estabelece com a paisagem e que “[...] não consiste

apenas em devolver à natureza o que se recebe dela, mas ainda em permitir que a

própria recepção seja uma ocasião para que a natureza se torne presente no recuo

mesmo de sua aparição. Que a arte queira ser o espelho em que o mundo se olha.”

(ISHAGHPOUR, 2004, p.96).

A iluminação persa - quando o tempo é feito espaço

Neste esforço reflexivo sobre a memória histórica legada à fotografia de

Kiarostami como educação visual, levamos em conta as iluminuras persas produzidas

no século XVI sobre alguns poemas escritos por Nizami no século XII3. Estas imagens

não foram pensadas como formas a acompanhar os textos escritos por Nizami, como as

ilustrações modernas. Elas são dispostas na página seguindo uma dinâmica de relação

com o texto, como se ambos pudessem ser vistos ao mesmo tempo, dispostos um sobre

o outro. Desta maneira, o sentido sugerido pelas iluminuras não é subordinado àquele

dado pelo texto e vice-versa.

3 Nizami ou NezamiGanjavi (1141 – 1209), foi poeta e escritor persa amplamente apreciado por todo o

mundo árabe. Sua poesia demonstra grande familiaridade do autor com a literatura persa e árabe de

tradição popular oral e escrita, mas seu prestígio adveio principalmente de sua habilidade em fundir esta

tradição a elementos dos mais variados campos, como matemática, astronomia, astrologia, alquimia,

medicina, botânica e filosofia, constituindo uma exegese do Corão. Seus poemas são fonte de estudos de

história, ética, filosofia, música e artes visuais, além do sufismo xiita.

Page 14: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

39

7

39

7

39

7

39

7

39

7

39

7

39

7

39

7

39

739

Fotografia 3 - Nushirvan Ouve as Corujas no Palácio em Ruínas

Fonte: AqaMirak 4

Nesta imagem, o rei Nushirvan passeia com seu vizir por antigas ruínas. Ao

passar, ele houve o piado das corujas sobre o muro do palácio e pergunta: “Que

segredos elas dizem uma à outra?”. “Perdoe-me, ó rei, por repetir suas observações [das

corujas]”, respondeu o vizir. “Uma delas está dando sua filha em casamento à outra e

exige um dote adequado. ‘Dê a ela’, ela diz, ‘esta vila em ruínas, e uma ou duas outras

que ficaram à mercê.’ ‘De qualquer modo’, responde a outra. ‘se nosso nobre regente

continuar no curso atual, deixando seu povo perecer na miséria e negligência, terei

prazer em dar não duas ou três, mas cem mil casas em ruínas!’”.

As imagens agregam motivos ao diálogo, levantando questões sobre a glória do

rei Nushirvan, como guerreiro e/ou caçador (a supor pela espada e arco presos à sua

cintura), e a relação estabelecida com seu povo. Não é necessário que imagens e textos

4 (WELCH, 1976).

Page 15: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

40

7

40

7

40

7

40

7

40

7

40

7

40

7

40

7

40

740

completem este entendimento de maneira ilustrativa, nem que os escritos evidenciem

esta relação, já caracterizada pelo aspecto da vila e pela fala final de uma das corujas.

Esta prancha é atribuída a AqaMirak (Qazvin, Irã, 1520 - 1576) e representa o

momento clássico na história da arte Safávida (Irã, 1501 – 1722). Tecnicamente

equilibrada, esta iluminura combina elementos de entendimento racional às expressões

emocionais profundamente cativantes, constituindo um exemplar do romantismo desta

fase.

Na parede interna da ruína, há uma inscrição: “Erguido de um coração deserto,

daqueles privados de felicidade, não há lar melhor que este. Escrito por Mi.... Musavvir,

946 A.H. (1538-1539 d.C.).” A assinatura, em parte danificada por descamação, é

aparentemente a de Mir Musavvir (1510 – 1555)5, cujo filho Mir Sayyid’Ali

provavelmente trabalhou nesta iluminura, que foi projetada e executada em grande parte

por AqaMirak, um mestre mais velho, que teve todo o crédito por ela.

A imagem é configurada segundo uma ordem de perspectiva paralela que sugere

aos olhos uma movimentação em espiral. Diferentemente da perspectiva europeia

clássica, este direcionamento não subordina os olhos a um único caminho, a um ponto

de fuga único. A dimensão espacial não se configura tridimensionalmente e, por

conseguinte, não determina quadrantes temporais no interior da obra, denotando a

origem dos movimentos e subordinando a cena a uma dinâmica expressiva de causa e

consequência. Se os olhos percorrem a imagem sem que sejam direcionados a um ponto

final, a finalidade das ações dos personagens e dos elementos de cena também deverá

ser construída pelo caminho que os olhos percorrerem. Por esta dimensão espacial, o

tempo está em suspensão.

A disposição paralela dos planos forma um conjunto de expressão, cujo

referencial simbólico remete à nostalgia expressa pelas ruínas. No entanto, também é

possível que os olhos percorram outros rumos e passeiem pela imagem, retornando aos

mesmos pontos por diversas vezes. É possível que transitem em espiral, tomando um

assunto como ponto central e descrevendo trajetórias do centro às bordas, ou delas ao

centro, percorrendo a imagem de modo quase total. Este modo de ver em espiral retoma

a memória das narrativas pré-corânicas: o assunto central da cena, ou seu motivo

imagético, marca o ponto inicial da espiral, que se desenvolverá em correspondência

5Um dos três artistas seniores a ilustrar o Shah-nama (O “Livro dos Reis” da Pérsia, escrito durante o

século X e ilustrado entre 1522 e 1530). Foi reconhecido por seus traços, que fluem suavemente,

caracterizações agradáveis, arabescas generosamente arredondadas e cores harmoniosamente inventivas.

Page 16: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

41

7

41

7

41

7

41

7

41

7

41

7

41

7

41

7

41

741

com outros elementos de cena por seu posicionamento e intenção de movimento. Nesta

forma, o desenvolvimento do enredo atualiza constantemente o significado de cada

lugar e de cada cena vista anteriormente, dando a ela um sentido novo.

A forma espiralada está presente na memória do Islã como caminho percorrido

pelo profeta Mohammad no Mi’raj Namah, que deixa a entender a possibilidade de

atravessamento do mesmo ponto por diversas vezes, sendo que a cada retorno há uma

miragem diversa, acrescida da experiência anterior. Mas este movimento, que não é

original do Corão, diz muito do modo de narrar as histórias persas pré-islâmicas: os

finais tendem a se confundir com o começo, distendendo a noção de causalidade e

dilatando o tempo, pela marcação cíclica que o depõe de toda e qualquer ideia de

finalidade; conhecemos as ações dos personagens, mas temos apenas indícios de suas

motivações, ou mesmo dos resultados de suas investidas; este tempo, como também em

Kirostami, é um tempo em meandros, inconcluso, composto por sentidos espiralados e

ritualizados do olhar.

As iluminuras islâmicas materializam bem o sentido pretendido por Henry

Corbin quando explana sobre o mundo imaginal, essa forma de entendimento que

unifica no mesmo plano as dimensões sensível e inteligível, que integram os aspectos da

Visão como sentido externo à Imaginação e dá confluência a esses dois oceanos em uma

condição intermediária de existência. Este mundo imaginal, agente e inconcluso,

expresso como memória da oralidade tribal da pérsia, configura-se em linhas paralelas

nas iluminuras e constitui a memória visual apreendida nas imagens cinematográficas e

fotográficas de Abbas Kiarostami da atualidade.

É o que o Islã chama alam al-mithâl, o mundo de malakût, que não é o

mundo dos sentidos, mas também não é o mundo do puro

entendimento abstrato. É povoado por realidades alheias à matéria

sensível, mas possuidoras de forma e dimensão. É, segundo a fórmula

sufi, o mundo em que se espiritualizam os corpos e se corporificam os

espíritos. (PIMENTA, 2014, p.98, grifo do autor).

Desta arte é possível que se veja livremente a expressão iluminada como algo

além daquilo que ela mostra, neste contexto, no qual uma árvore é uma árvore e, ao

mesmo tempo, outra coisa, um sentido a mais, construído em inconclusa espiral. Ao

percorrer a cena por diversas vezes, o olho apreende sua forma quase que em totalidade,

internalizando naquele que vê uma visão total da cena, se aproximando do princípio de

Page 17: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

42

7

42

7

42

7

42

7

42

7

42

7

42

7

42

7

42

742

onividência dos planos divinos da observação. E se nos referimos à divindade, não

podemos deixar de supor uma forma de divindade em que o homem figure como deus.

Esta sensação traduz o significado espacial do Barzah, o intermundo da

espiritualidade persa, no qual diferentes camadas de tempo e espaço são experimentadas

no mesmo ponto, como que dinamizando uma visão total que se configura como

experiência. A visão total do Barzah na iluminura coordena a visão do espaço sem que

suas camadas precisem ser subordinadas umas às outras.

Plano divino e humano sob o mesmo ponto, no qual o ente que observa, quando

observa, vê também a si, é devolvido aos planos de sua própria existenciação, de seu ato

de existir em potência criadora. O sentido é composto, no intermundo da imagem, com

os olhos de um pelo outro em reciprocidade com a imagem que se dá a conhecer a ao

olhar que se deixa conhecer nela. O intermundo é o limiar do além entre o sentido dos

olhos e a superfície da forma, espaço no qual aquele que vê se locomove, não por meio

dos membros externos do corpo, mas pela profundidade das sensações que experimenta.

Esta forma de experiência imaginal se manifesta no encontro com a imagem,

com a palavra, com a presença transmutante de uma imagem interior. O percurso da

imagem pelos dois polos, figura/palavra-olho, é o resultado de uma pedagogia visual

que se traduz interiormente pelo encontro com a imagem interior. A possibilidade de

uma presença total da imagem, sob esta ótica, significaria uma transfiguração de todos

os sentidos pelos olhos e ouvidos interiores, estendendo uma espacialidade relacional:

este é o mundo do filme, este é o espaço/sentimento no qual a fotografia poderia operar

seus deslumbres de contemplação.

A imaginação ativa de Sohravardî se forma neste entre-dois do conhecimento

com a fantasia, perdendo potência quando literalizada. Neste caso, a imaginação

operaria por encaixes, colagens tais que o homem seria assombrado por pesadelos

espantosos, seres de muitas cabeças ou imagens delirantes. Mas quando opera como

mediadora, sem cismas, torna-se cogitativa e permite ao observador, até então isolado

em seu canto, a experiência da contemplação.

Ao franquear esse limite, se faz como um tipo de inversão de tempo e espaço: o

que estava oculto se abre e envelopa o exterior. Agora é o sentido sutil que contém a

matéria e a forma. Neste ponto de relação, o que se vê não é mais situado em um local,

mas situativo. É o espaço privilegiado do observador que se revela a si mesmo, que, ao

ver, mostra sua própria paisagem (Xvarnah), transfigurando em dados simbólicos, as

Page 18: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

43

7

43

7

43

7

43

7

43

7

43

7

43

7

43

7

43

743

figuras vistas, a reproduzir as realidades próprias da visão. Penetrar aí é, pois, um

êxtase, um deslocamento furtivo e uma mudança de estado.

Considerações

Em Através das Oliveiras, Kiarostami mostra o peregrino que, por muitas vezes,

percebe como um maravilhamento a inquietude comunicada por um gosto estranho de

desorientação, expatriamento. Esta sensação do Barzah, nas imagens das iluminuras,

das histórias, desperta o espectador ativo como estrangeiro em seu próprio mundo e

suscita a conjunção da bi-unidade da sua imagem interior com seu alter-ego exterior.

Este processo relacional de alteridade diante da imagem/história, do outro, cria as

condições de individuação, eclodindo a condição anteriormente polarizada. A

contrapartida visual do espectador, o sentimento profundo de relação com o que é visto

manifestam sua própria singularidade. O ser vidente torna-se estrangeiro em sua própria

terra.

Este exercício reflexivo buscou integrar as fotografias de Kiarostami ao discurso

que este diretor cria com sua própria produção artística, em termos de interpretá-las no

contexto da cultura visual da qual emergem. Determinados sentimentos foram agitados

para isso, reverberando possibilidades de inteiração entre a imagem e seu interlocutor

visual. Há que se considerar o interlocutor para que o exercício de interpretação se

alongue em significado. Este alongamento não tem um final determinado, talvez o

sentimento da inconclusão pareça um incômodo em uma cultura habituada a exercícios

intelectuais, cujo propósito esteja estabelecido prioritariamente. A necessidade de

conhecer os enredos antes de iniciar os filmes, a necessidade de certeza quanto ao

sentido atribuído às histórias, cujo final é claro e manifesto, são atributos de uma cultura

visual moderna e ocidentalizada, melhor dizendo, partilham de um reino, cuja utilidade

de emprego do tempo se faz forma e medida para “dispêndio de energia”.

Não suportamos a condição de estrangeiridade posta pelo sentido transitório,

aberto. Em geral, tendemos a preferir as estradas retas, os caminhos definidos e

conhecidos de nossos percursos racionais e emocionais. Talvez a ausência de

informações definidas nos assuste pelo medo da própria solidão, de sentar sozinho

consigo e criar para si um rosto, ou um sentido. A perda desta capacidade ocasiona a

perda da possibilidade de contemplação, esmaece a aura das coisas, tornando-a

inacessível para nós.

Page 19: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

44

7

44

7

44

7

44

7

44

7

44

7

44

7

44

7

44

744

Por este e diversos outros motivos, o uso pedagógico das imagens tem se

restringido ao potencial ilustrativo, a dar visibilidade a conceitos externos àqueles que

surgem na singularidade da relação, inconclusa, entre quem vê e o que é visto. O

importante, como traço fundamental da obra de Kiarostami, e de outros artistas, é o

movimento que se desenrola no tempo, não a finalidade.

O movimento dos olhos sobre a imagem, em geral, traça o plano de visualidade

ao qual correspondem os processos educativos sob os quais foram historicamente

constituídos nossos hábitos e modos de olhar. Se, habitualmente, nossa cultura visual se

constituiu pelo regramento, foi fomentada por regras e cânones de uma escola

específica, aderimos.

Os olhos habituados à profundidade buscam no espaço o referencial de

proporcionalidade nas dimensões e tamanhos dos elementos de cena para ordená-los na

tridimensionalidade. Quando é necessário aos olhos, não só que os olhos refaçam seu

padrão de ver, mas que busquem, na superfície da imagem, uma forma outra de dar

sentido ao que veem, a tencionar a naturalidade objetiva do sentido da visão, algo de

diferente se inicia aí. Criar sentido para a imagem fotográfica, expressa feito iluminura

oriental, significa também alongar possibilidades para a incerteza e a inconclusão.

VISUAL MEMORY AND CREATIVE IMAGINATION IN KIAROSTAMI ROADS

Abstract: From the unrest feeling proportionated by the contact with images in which

unfinished aspect stands the desire of rational organized understanding. This means

that we start from a understanding that the interpretation is not exclusively based in the

considered work, but in the formation of its creator and in the viewer. This article

originated from the concern in propose ways to see the photography of Abbas

Kiarostami (Teerã, 1940), that took into account the process of visual education

produced by the Iranian Persian miniatures. We pass by the cinematographic and

photographic images of this director and photographer, recognizing in the elements of

its composition the distinctive attributes of the Persian miniatures and traditional

narratives, resulting ways to see that they come from in the immersion of the visual

memory of the artist and viewer.

Key words: Photography. Abbas Kiarostami (1940). Visual education. Creative

imagination. Persian miniature.

Page 20: MEMÓRIA VISUAL E IMAGINAÇÃO CRIADORA NAS ESTRADAS DE … · 2018-06-21 · saber se as crianças que atuaram no filme sobreviveram ao terremoto, mas o nome da cidade não é revelado

7

45

7

45

7

45

7

45

7

45

7

45

7

45

7

45

7

45

745

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M. J. Cinema: arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999.

ARABÎ, I. Alquimia da felicidade perfeita. Tradução de Roberto Ahmad Cattani. São

Paulo: Landy, 2002.

BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). São Paulo: 34, 2011.

BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In:

BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos

escolhidos. Tradução de José Lino Grünnewald. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

p.5-34.

BERNARDET, J. C. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

CORBIN, H. Cuerpo espiritual y tierra celeste: del Irán Mazdeísta al Irán Chiíta. 2.

ed. Madrid: Ediciones Siruela, 2007.

CORBIN, H. L’Imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn’ Arabi. Paris: Entre

Lacs, 2006.

GOSTO de cereja = T’am’e ghilass. Direção de Abbas Kiarostami. Irã: [s.n.], 1997. 1

videocassete (99 min.), color., 35mm.

ISHAGHPOUR, Y. O real, cara e coroa. In: ISHAGHPOUR, Y. Abbas Kiarostami.

São Paulo: Cosac Naify, 2004. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. p. 85-

171.

KIAROSTAMI, A. As estradas de Kiarostami 1978-2003 e Duas ou três coisas que sei

sobre mim. In: KIAROSTAMI, A. Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. p. 02-71.

LISSOVSKY, M. Pausa do destino: teoria, arte e história da fotografia. Rio de Janeiro:

Mauad, 2014.

PIMENTA, A. V. A poética do olhar e o intermundo persa: imagens e palavras:

homenagem a Milton José de Almeida. Campinas: Autores Associados, 2014.

O VENTO nos levará = Bad ma ra khahad bord. Direção de Abbas Kiarostami. Irã:

[s.n.], 1999. 1 videocassete (118 min.), color., 35mm.

VIDA e nada mais, e a vida continua = Zendegi va Digar Hich. Direção de Abbas

Kiarostami. Irã: [s.n.], 1992. 1 videocassete (91 min.), color., 35mm.

WELCH, S. C. Persian painting: five royal safavid manuscripts of the sixteenth

century. New York: George Braziller, 1976.