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Dizem que de médico e de louco todos nós temos um pouco. Assim, eu,

com os meus setenta e quatro anos, tenho a mania de escrever sem a necessária

instrução. Vou escrevendo fazendo como os músicos que tocam de ouvido, sem

saberem música. Vou escrevendo sem saber regras gramaticais. Mania de

escrever lembrando o passado para esquecer o presente. Para gente velha, no fim

da longa caminhada, sem ideais para o futuro, o presente é vazio e triste. É

solidão e saudade. O velho empurra o presente recordando o passado sem

distinguir, sem olhar, se o que passou foi bom ou ruim, se foi alegre ou triste, de

vitórias ou de fracassos! Entrego tudo a Deus escrevendo para que passem as

horas, os dias e, finalmente, a vida...

Quando me levanto rezo, entrego-me a Deus e tudo quanto possuo:

marido, filhos, netos, noras e genro. Vejo algumas vezes uma manhã clara. O

despontar tão bonito do sol, as montanhas que circundam Belo Horizonte, se

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despedindo dos nevoeiros que vão correndo. Apreciando este panorama da

natureza, penso: se Deus misericordioso não houvesse me dado o marido zeloso,

filhos bons, dedicados, não tivesse guiado um médico competente como o Dr.

Ennio Coscarelli para me operar a vista, nada disto eu poderia apreciar e nem

continuar na minha mania de escrever. Que faço? Rezo por eles. Estive à beira da

cegueira, achava impossível a recuperação da minha visão, sofria com a

possibilidade de não poder contemplar a beleza do mundo. Eu me enganava

vendo pela imaginação o sol, as montanhas, os vales floridos, a serra sem

vegetação, regatos enfeitados de borboletas, areais, como eu, ainda menina, via

na fazenda do Mata-Cavalo. Rios, morros cheios de fendas, igrejinhas em altos de

graminhas verdes, casas envelhecidas, sobradões coloniais, tropas passando nas

ruas. Via na minha imaginação um mundo de coisas de todos os lugares onde vivi

e passei, apenas, momentos. Minhas moradas nas roças e cidades do interior,

viagens, enfim, tudo o que passou por mim nestes setenta e quatro anos vividos

ou vegetados em diversos cantos deste planeta.

Vida bem vivida é o que eu invejo neste mundo, valendo mais do que todas

as riquezas e honras. É um tesouro que nem todos alcançam. A beleza de uma

vida bem vivida não me cabe. Talvez vegetei mais do que vivi. Na velhice, olhando

o que passou, sem poder voltar atrás, é que enxergo um vazio imenso do que

poderia ter feito de bom, de valioso e não fiz.

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Meus pais trabalhavam sem esmorecimento, mas isto aprenderam desde

os primeiros anos de vida. Meu pai, quando moço, era ferreiro, batendo ferro na

bigorna para fazer ferraduras e cravos e minha mãe, filha de um riquíssimo

fazendeiro do tempo da escravidão, foi criada no trabalho. Desde mocinha era ela

quem, às tantas da madrugada, levantava-se para abrir as portas das senzalas

onde dormiam os escravos do rico português Bento Simões que, aqui no Brasil,

adotou o cativeiro e era considerado cruel com os escravos. Minha mãe lutou em

sua mocidade na fazenda do pai, Empoeira, e continuou a vida trabalhosa, no

Mata - Cavalo e assim foi até o fim da vida.

Nem se pode fazer uma mínima ideia de como foram criadas as gerações

antigas. Hoje, os médicos podem dizer que os seus colegas do fim do século XIX

e primeiras décadas do século XX eram prodígios. Sem os recursos modernos

salvavam vidas, debelavam moléstias que assolavam a humanidade. Naquele

tempo, quase que para todas as moléstias eram aplicados os infalíveis purgativos

salinos: de óleo, de folhas de sene, de pétalas de uma espécie de rosas, de

Rubinat e até de calomelano. Este último servia como purgativo e, também, como

antissifilítico. Para as parturientes era indispensável o purgante de quatro

espécies: maná, sene, sal amargo e rosas. Até 1920, em Serro, o humanitário

médico Dr. Tolentino exigia, para as suas clientes este milagroso purgativo. Nas

gripes e nas pneumonias tratava-se com antipirina e quinino e para a eliminação

do catarro pulmonar, aplicavam-se sinapismos de sementes de mostarda moída,

na parte externa do tórax e dava-se, como medicamento interno, um melado com

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poaia moída (que, por sinal, era muito gostoso). Uma certa vez, achamos tão

apetitoso que eu, e meus irmãos, tomamos demais e nos serviu de vomitório.

Quando mamãe viu, cada um vomitava num canto. Nunca vi meu pai comprar

outros remédios na farmácia. Para curar umbigo dos recém-nascidos usava azeite

de candeeiro ou azeite de mamona. Aplicava-se o pó de fumo, e como não havia

talco, a goma de mandioca o substituía e para isto minha mãe a transformava num

pó finíssimo.

Hermann Utsch, meu bisavô, foi o segundo mestre fundidor, de altos fornos

que dirigiu a fábrica do Morro do Pilar. Em 1820 o governo mandou contratar os

prussianos Utsch, na Europa, para as fundições no Brasil. Hermann Utsch e seu

filho João Henrique Utsch foram destinados ao Morro do Pilar. Em companhia do

mestre Utsch veio, também, outro filho, meu avô, com quinze anos: Daniel

Henrique Utsch. Em 1830 terminou o contrato. Meu avô casou-se com uma

mineira, Ana Salvador Correia, e fixou residência na localidade de Mata - Cavalo.

Ali ele criou a família, trabalhou numa tosca fábrica de ferro, ali faleceu e foi

sepultado no adro da Igreja Nossa Senhora do Pilar (porque ele era luterano).

Nessa igreja fiz a minha primeira comunhão em 1906 ou 1907, na ocasião das

missões, mas eu era tão ignorante que nem o terço eu sabia rezar. Quando eu ia

a Sabinópolis, onde reside minha filha Neli, eu passava nas ruas do Morro do

Pilar, hoje cidade, olhava a Matriz e vinha-me logo a lembrança daquele dia em

que, ali, ao lado dos irmãos Quinzinho e Marieta, recebi Nosso Senhor pela

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primeira vez. O vigário da Vila era um santo sacerdote, o cônego Matos, muito

amigo dos meus pais. Nessa mesma igreja foram batizados os meus irmãos:

Benedito, José, Bento, Cota, Rita, Aurélia.

Quantas vezes no silêncio de minha casa, em Belo Horizonte, no Bairro

Pompeia, quando filhos e netos saem, cada um no cumprimento de seus afazeres,

volvo o pensamento ao passado tão distante, no princípio do século XX. Época

sem rádio, televisão, cinema, gravadores, foguetes que levam os astronautas à

lua, ali pisando, passeando no espaço, aviões a jato, exploradores das mais

profundas camadas dos oceanos, transplante de coração, terrível bomba atômica.

Fico comparando com aquele tempo em que vivi a maior parte da minha

existência na maior obscuridade. Quando eu era menina, um aparelho como o

fonógrafo para muita gente era uma coisa do outro mundo. Lembro-me da

passagem do outro século. Eu estava com quatro anos e ouvia dizer que o

transpor do século para outro era muito perigoso, de modo que na minha casa no

Mata-Cavalo, minha família passou rezando na noite de trinta e um de dezembro

de 1899 para primeiro de janeiro de 1900, e no dia oito nasceu o meu quinto

irmão.

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Saudade do tempo em que passei ao lado de minha mãe querida. Quando

eu tinha sete anos, ela, a escrava dos afazeres domésticos, me chamava às

quatro horas da madrugada para eu tomar conta dos irmãozinhos mais novos a

fim de que ela pudesse desempenhar suas pesadas tarefas. Minha mãe criou uma

família de treze filhos sem ter nunca uma empregada. Levantava-se de

madrugada, preparava o café, arranjava o necessário para o desjejum de todo o

pessoal da casa, inclusive os trabalhadores da lavoura. Depois íamos juntas para

um galpão onde havia uma roda com ralo, tocada a água para ralar mandioca e,

também, um monjolo movimentado a água para quebrar o milho e preparar o fubá

para a gostosa farinha de beiju. Ali, muito cedinho, eu a ajudava a ralar mandioca,

lavar a massa, coar em grandes pipas para com a fécula fazer a goma e torrar a

massa para a farinha. Tenho tanta saudade dos gostosos beijus de farinha que

minha mãe fazia! No meu entender minha mãe era uma heroína do trabalho. Até

hoje fico a pensar onde ela achava tempo e força para tantos trabalhos. Cuidava

de todo o serviço da casa, ainda lavava roupa, fazia rapadura moendo as canas

na engenhoca, cuidava da horta, preparava muitos doces, bolos, suspiros,

biscoitos, bolachas, etc. Meu pai cuidava de grande criação de abelhas e minha

mãe era quem preparava arrobas de cera, bem clarinha, para fabricar velas e ela

ainda fazia velas de sebo de boi para o consumo da nossa casa. Fazia azeite de

mamona, tão puro que parecia óleo feito por meio de maquinismo moderno. No

entanto, o processo era o mais rudimentar. Socava em pilões de madeira, uma

quantidade de grãos de mamona, tudo manejado à mão. Deitava esta massa, bem

socada, em tachos de cobre com água e punha-se a ferver até o óleo subir à

superfície, apanhando-o com colheres ou conchas e colocando em outro tacho

para secar.

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O povo do meu tempo tinha coragem, esforço, dinamismo para resolver,

com poucos recursos, seus inúmeros problemas, em quase todos os setores da

vida. Como exemplo destas qualidades, meus pais, mesmo residindo numa

localidade carente de recursos técnicos, trabalhavam sem esmorecimento.

Eu conheci um médico quando tinha treze anos, o Dr. Cassimiro de Souza

(nosso parente); por sinal foi este médico que me examinou, receitou-me sete

garrafas de óleo de fígado de bacalhau e ainda disse aos meus pais que eu não

chegaria aos quinze anos! No entanto, em 1969, ainda estou vivendo com meu

espírito ainda lúcido, admirando as maravilhas do século XX as quais ele não viu,

não gozou, porque morreu com trinta e poucos anos. O Dr. Cassimiro angariou

auxílios em sua terra natal para estudar e formou-se na Faculdade de Medicina da

Bahia. Serviu, ainda, quando estudante, na guerra de Canudos. Foi ardoroso

político em Conceição do Mato Dentro, sua terra. Faleceu em consequência de um

desastre, quando em viagem, a cavalo, em meio de penhascos, caiu do animal e

bateu com o fígado numa pedra. Ia atender a um pobre enfermo. A medicina

antiga fazia do profissional um sacrificado.

Mesmo ignorando para onde o tempo leva o passado, vou alimentando

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minha saudade, seguindo minha mania de escrever. Até 1930, 1940 e ainda mais

além, no interior abandonado, não se ouvia falar em rodovias. As viagens, os

transportes eram feitos no lombo dos burros e para quem não os possuía e nem

tinha dinheiro para alugá-los tinha que ir a pé. Logo que chegamos ao Rio

Vermelho, em 1927, o meio mais rápido para o meu marido adquirir material para

o seu gabinete dentário era mandar um senhor que ia a pé, percorrendo trinta

léguas em três dias, ida e volta, a Diamantina. Era interessante ver atravessando

as estradas, vilas e cidades, os lotes de burros, a famosa tropa. Compunha-se de

doze animais: um cavalo de madrinha ia à frente, cavalgado pelo homem que era

o cozinheiro, de lenço na cabeça; atrás, um homem chamado tocador, porque com

um chicote a estalar no ar apressava os passos da tropa. Havia o arreeiro, o

encarregado da venda das mercadorias e da aquisição de novos artigos para a

volta da tropa. O tocador era sempre um homem forte, capaz de pegar seis

arrobas. Esses homens, caminhando atrás do lote de burros, faziam quinze

quilômetros todos os dias. Calçavam alpercatas de couro cru para suportar o chão

duro e os pedregulhos da estrada. Na marcha lenta e monótona, iam os tropeiros

levando as mercadorias necessárias ao sustento de milhares de criaturas por esse

Brasil afora. Quebrava o silêncio das estradas o tinir dos guizos do burro de guia

que levava sua cabeçada toda enfeitada. E chamava a atenção da criançada

quando entrava nos povoados, vilas e cidades. Pobres tropeiros, que trabalhavam

dias, meses, anos, conduzindo tropas, sempre alegres levando uma vida

desconfortável e até perigosa. Subiam escarpados, atravessavam chapadões

frios, gelados. Dormiam em cima de um couro de boi, enrolados nas cobertas,

chamadas de São Vicente. Viajando o dia todo esperavam a noite para comerem

nas rancharias o feijão tropeiro com torresmos e carne seca. Quem preparava

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este guisado era o tropeiro, de lenço na cabeça que fazia a viagem cavalgando o

cavalo “madrinha” da tropa. Ia à frente, chegava primeiro na rancharia, corria para

buscar água, botava feijão para cozinhar e preparar a refeição. Enquanto isso, o

tocador e o arreeiro descarregavam a tropa, lavavam os lombos dos burros,

davam-lhes milho no bornal de couro, repregavam as ferraduras se estas

soltassem no percurso da viagem. Certa vez, um grupo de tropeiros foi vítima do

frio intensíssimo no chapadão de Diamantina. Dois morreram e foram conduzidos

na mesma tropa que tocavam para o cemitério existente no povoado mais

próximo. Estes homens simples e pobres levavam tantas coisas necessárias a

inúmeras populações brasileiras. Ganhavam pouco por um trabalho tão

importante, ligando cidades do interior a outras cidades distantes. Os donos da

tropa, senhores ricos, tinham o capricho de enfeitarem de laços de fitas a

cabeçada do burro de guia, sempre o mais bonito. Se ocorresse luto nos familiares

dos ricos patrões, ao invés de fitas de cor, amarravam laços pretos, de maneira

que, ao se encontrar um lote de burros na estrada, sabia-se que havia morte na

família dos donos.

Meu pai, José Daniel Utsch, era filho do alemão prussiano Daniel Henrique

Utsch e da mineira Ana Salvador Correia. Seu pai veio de Berlim com a idade de

quinze anos em companhia de seu avô Hermann Utsch. Este foi contratado por

D.João VI, em 1820, como mestre de altos fornos para dirigir uma fábrica de ferro,

no morro do Gaspar Soares, hoje Morro do Pilar, numa localidade denominada

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Picão. Meu pai nasceu na fazenda do Mata-Cavalo, distante seis quilômetros. O

nome de Mata-Cavalo que deram à fazenda originou-se de um morro muito

íngreme, pouco distante da fazenda, na estrada que ia para Morro do Pilar e, ao

escalar esse morro, a cavalo, estes, muitas vezes, afrouxavam, ou até morriam.

Neste recanto da terra, onde seus pais e mais alguns membros da família Utsch

fixaram residência, meu pai nasceu e cresceu. Neste sítio cercado de grandes

serras que lhe davam um aspecto solitário e triste, ele foi criado com mais dois

irmãos, Daniel Henrique Utsch, Francisco Utsch e uma irmã, Anna Utsch (tia

Nhanhá). Ela, ainda pequena, foi para a companhia de uma tia alemã e um tio, em

Conceição do Mato Dentro. Ali ficou até se casar com um alagoano, Dr. Antônio

Serapião de Carvalho, naquela época promotor em Conceição. Este alagoano foi

juiz em diversas cidades mineiras e é pai do saudoso Daniel de Carvalho, nome

que honrou tradições históricas de Minas e do Brasil. Meu pai viveu nestas plagas

até à idade de trinta e oito anos trabalhando como ferreiro junto de seu pai e,

depois da morte deste, com seus irmãos Dani e Chico. Batia o ferro na bigorna,

fabricava cravos, ferraduras, foices e machados para o ganha-pão da família, mãe

e irmãos. Era apaixonado pelas serenatas. Depois de trabalhar o dia todo, ia, nas

noites de luar, com seu violão, executado com a mão esquerda, pois era canhoto,

com seu irmão Dani que tocava concertina, acordar as moças de Morro do Pilar,

onde ele era muito querido e admirado.

Casou-se em vinte e três de janeiro de 1892 na fazenda da Empoeira,

município de Serro. Conheceu aquela que foi sua esposa em Junho de 1891 na

tradicional festa do jubileu de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em

Conceição do Serro, na época em que estavam em evidência as filhas do

fazendeiro Bento Simões, há pouco falecido. Diziam que este rico português tinha

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deixado uma grande herança. Na antiga fazenda da Empoeira, morada do sogro,

meu pai se casou e fixou residência. Seis anos depois do casamento, ele se

mudou para o seu tristonho berço natal: Mata-Cavalo, por ter sido vítima de um

atentado contra a sua vida. Salvou-se por um milagre de Deus. O motivo era a

ambição dos cunhados por verem um simples ferreiro financeiramente bem,

aumentando com o seu trabalho a parte que lhe tocou na herança. Quem foi pobre

ferreiro não podia ser rico, era o que alegavam os malfeitores, que numa tocaia

tentaram matá-lo. Os autores do atentado foram os seus cunhados. Meu pai

soube perdoar, não se vingou. Sempre dizia: quem vive é que paga o mal que faz;

desejo para meus inimigos uma longa vida.

Logo após sua chegada a Mata-Cavalo, ganhou, como presente, um

velhinho, tio avô materno, tio Anastácio. Tão velhinho, que foi preciso meu pai tirá-

lo de cima do cavalo. Acolheu-o com toda a caridade, zelou por ele e, auxiliado

por minha mãe, o amparou até à morte.

Neste cantinho do mundo, berço dos Utsch, moramos dez anos. Depois de

lutar numa região agreste, sofrendo grandes prejuízos, mas sempre independente

e muito estimado por seus conterrâneos, foi convidado por seus antigos algozes a

regressar. Comprou as suas terras, suas propriedades e voltou para a mesma

fazenda onde fora cruelmente atacado. Nesta fazenda fixou sua residência, em

1909, e aí viveu os oito últimos anos da sua vida, lutando e trabalhando.

Meu pai faleceu no dia vinte e sete de janeiro de 1917 com 63 anos, depois

de suportar, durante dois anos, uma enfermidade que o privou da fala. Suportou

todos os sofrimentos como um verdadeiro cristão. Quando o sofrimento o feria,

repetia sempre: Deus me aumente o sofrimento e me aumente a paciência.

Mesmo residindo na roça recebeu todos os sacramentos ministrados pelo

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sacerdote padre Francisco Xavier. No longo espaço de sua mudez conversava

com a família, escrevendo numa pedra, fazendo recomendações e dando

conselhos aos filhos, pedindo-lhes união. Foi sepultado dentro da igreja do distrito

de Itapanhoacanga, hoje distrito da nova cidade Alvorada de Minas. Deixou aos

filhos o exemplo do trabalho, da honestidade, de um homem calmo, paciente, de

um coração generoso e confiante em Deus.

Recordando a minha infância, lembro-me do berço da família Utsch e,

sobretudo, o do meu pai: o Mata-Cavalo, lugar onde passei a minha meninice.

Vejo ainda aquela casinha, sem varanda, cercada de serras, onde, à noite, se

ouvia o uivo dos lobos e, de dia, o cantar triste das juritis e das rolinhas “fogo-

pagou”, no meio das laranjeiras e em cima dos cafezeiros, as quais eram os

encantos de meu pai. Foi e é o ponto de minhas nítidas e saudosas recordações.

Lembro-me, muito bem, como a visse hoje, aquela casa de construção tosca ao

fundo de um grande curral, muito íngreme. Tinha perto da porta da cozinha uma

parreira e uma roda movida a água, mas, naquela época, estava parada.

Antigamente, servia para fazer funcionar a tosca fábrica de ferro de meu avô

Utsch. Eu, menina ainda, e meus irmãos ficávamos assentados numa prancha de

taboa larga e grossa, colocada sobre a valeta por onde desciam as águas, que

nós chamávamos inferno da roda. Ali escutávamos a cantoria dos sapos que

moravam naquelas águas. Quando ia escurecendo ficávamos a gritar os

pirilampos que, de quando em quando, clareavam a escuridão da noite num

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recanto solitário do mundo, onde a vida para nós parecia tão boa. Recordo-me do

majestoso pé de jaca em cuja sombra brincávamos colhendo as folhas, fazendo

guisados de mentira e comendo os frutos. Subíamos nas porteiras, olhando

nossas vacas pintadas pastando lá por cima da serra, lá bem longe, à procura de

ervas verdes, pois o terreno era seco. Elas corriam o risco de rolarem e morrerem,

como acontecia com muitas delas. Vejo, como se fosse hoje, o areão alvo como a

neve, um pouco além da nossa casa, onde, juntamente com meus irmãos,

distraíamos fazendo castelinhos de areia. Apanhávamos flores cheirosas de

pequenos arbustos, corríamos atrás das borboletas de milhares de cores que

enfeitavam os regatos daquela região. Estes regatos corriam para o rio Mata-

Cavalo que ladeava o quintal da nossa casa. Nesse rio é que, de madrugadinha,

eu e minha irmã Marieta íamos tomar banho frio a mandado do médico Dr.

Cassimiro de Souza. No trecho que passava ao lado da nossa casa existiam

poços fundos e, também, belos panoramas correndo em plenas rochas, que

formavam caldeirões na pedra onde minha mãe lavava a roupa. No leito do

mesmo rio, no fundo do quintal, uma queda d’água servia para banhos à moda de

chuveiro que não era conhecido naquele tempo. Meu pai me contava um caso que

se deu nessa pequena cascata. O seu cunhado, o alagoano Dr. Antônio Serapião

de Carvalho foi ali tomar banho, escorregou no lodo das pedras, caiu e feriu a

testa. Fez um portador ir a galope a Conceição de Mato Dentro buscar curativos e

o cavalo correu tanto que foi chegando e morreu. Aquele juiz quando passava

suas férias, naquela região, andava de botas e carregava permanganato no bolso

por causa das cobras cascavéis que infestavam o lugar. Este magistrado tinha

medo de tudo, até dos ventos.

Que recordação do meu trapézio! Era improvisado por mim e meus irmãos,

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enquanto mamãe lavava roupas. Nas matas que ladeavam o rio havia cipós tão

fortes que nós os amarrávamos e fazíamos balanços sob as árvores. Naquele

tempo, embora ainda neste século (1900), quase nenhuma criança, principalmente

as que viviam em lugares isolados como nós, conhecia brinquedos comprados em

lojas. Na minha meninice, os brinquedos das meninas eram as bonecas de pano,

as casinhas feitas debaixo das árvores, os fogõezinhos de pedra onde

cozinhávamos os guisados. Não se falava na vinda do Papai Noel. Nem sei como

se passava o Natal. Falava-se muito na missa do galo. Minha mãe, que não ia,

pedia ao meu pai para ler para nós o livrinho O Missionário em Casa com as

histórias da vida de Jesus e da sua paixão, e eu, pequenina, de uns cinco anos,

ouvindo as leituras, chorava com pena de Jesus sofrendo tanto.

Durante o tempo que passei no sítio agreste do Mata-Cavalo, os nossos

passeios prediletos eram ir à chácara da Faúba, onde meu pai tinha plantações de

banana, cana e algum café; ir à fazenda de meu tio Dani, (fazenda do Cubas); ir a

pé para participarmos das festas da chegada das primas do Colégio Macaúbas,

dos aniversários, dos casamentos; ir, também, à casinha, pobre, de um preto

velho, compadre Pacífico. Gente muito trabalhadora e caprichosa. Aí passávamos

o domingo e nos era oferecido o almoço que constava de feijão preto bem feito, o

arroz limpo no pilão, frango refogado, a especial farinha de milho torrada em forno

de pedra e o molho de cebolinha verde, verdadeira comida mineira. Nosso passeio

principal era na Vila do Morro do Pilar. Para irmos lá, aos festejos religiosos,

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fazíamos um preparo mais esmerado. Meu pai comprava uma peça, ou mais, de

fazenda mariposa, chamava uma costureira em casa e preparava as toaletes

todas iguais, cada uma de nós ficava mais contente e ansiosa de chegar a hora de

marcharmos, a pé, para a Vila. A minha última toalete, desta fazenda Mariposa,

era coral, toda enfeitada de sianinha amarelo-escura e eu a achava linda!

Lá na Vila, meu pai era tão estimado e considerado que até a banda de

música local ia homenageá-lo, tocando na porta da casa onde nos hospedávamos.

Apreciávamos a tradicional festa dos catopés, feita pelos negros de uma fazenda,

também chamada Mata-Cavalo, mais uns seis quilômetros distantes da nossa.

Essa fazenda foi doada aos negros escravos pelos seus senhores. Coitados!

Ignorantes, analfabetos e sem a menor orientação. O único ideal deles era

plantação de milho e feijão. Vendiam nos meses de junho e julho e em agosto

começavam os preparativos: ornamentação e as indumentárias para os três dias

de festa em honra de São Benedito. No Morro do Pilar estes festejos eram por

conta dos negros. Dançavam, pulavam, batiam caixas, bebiam cachaça durante

três dias. Gastavam tudo o que produziam na lavoura. De setembro até a futura

colheita, comiam palmito sem gordura, peixes e carne de bichos do mato. Viviam

como as tribos da África. Durante os dez anos em que residi no Mata-Cavalo,

nunca ouvi casos de violência no meio deste povo.

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Lembro-me, ainda, como passávamos a Sexta-feira da Paixão, na nossa

casinha do Mata-Cavalo. Minha mãe preparava, na véspera, quase tudo para se

comer no dia seguinte. Naquele dia não se fazia quase nada. Ao amanhecer, já se

viam nas porteiras do curral muitos negros carregando suas cabaças para enchê –

las de leite, que meu pai repartia com eles. Passávamos o dia em silêncio. Lia-se

a narração da Paixão de Nosso Senhor, no livro O Missionário em Casa.

Terminada a primeira refeição, saíam meus pais com a meninada toda. Íamos até

ao cimo de uma grande serra a fim de colhermos plantas medicinais: raízes, folhas

e cascas de uma planta chamada quina, da qual se fazia um chá muito aplicado.

Mamãe punha esta casca no leite quente para se tomar, quando sofria dores no

estômago. Diziam que as plantas medicinais, colhidas na Sexta-feira Santa,

tinham uma virtude especial para curar. Era a fé dos antigos. Lá no alto do morro

havia uma cratera, uma fenda tão profunda que meu pai atirava uma pedra

pesada, passando algum tempo para se ouvir o estrondo, no fundo. Eu era tão

medrosa que não me aproximava do lugar de maneira alguma.

Durante nossa permanência no sítio do Mata-Cavalo minha mãe não nos

deixava sem sua companhia. Quando ia a pé ao Morro do Pilar para levar cada

filho para batizar, ia de manhã e voltava de tarde, mesmo assim eu achava ruim,

sentia tanta falta dela. Se minha mãe faltasse na minha vida, o mundo seria para

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mim uma escuridão, não saberia viver. Era a estrela que me guiava. Mas como as

coisas mudam, aos meus dezesseis anos fui para o colégio, deixando minha mãe

tão triste. E só voltei nove anos depois quando meu querido pai já havia morrido e

minha mãe sofria a dor de duas separações.

As terras do Mata-Cavalo não serviam para a lavoura. Era um terreno seco,

areento, cheio de formação de ferro. Então, meu pai, homem muito trabalhador,

plantava milho e feijão num lugar chamado Carvalho, distante uns dez quilômetros

da nossa casa. Quando as colheitas terminavam, minha mãe tinha o costume, a

mania de restolhar as roças, aproveitando os restos de milho e feijão que os

trabalhadores deixavam.

Certa vez, íamos todos, de madrugadinha, mamãe, os meninos e os

empregados. Passamos o dia no ranchinho. Ao cair da tarde, todos de balaio

cheio, na cabeça, regressamos a casa. Tínhamos de passar dentro de uma

grande mata. Em dado momento, eu, até hoje não sei porquê, comecei a pirraçar,

caminhando bem devagar, deixando todos irem bem adiante. Todos foram

tomando distância e eu ficando para trás, não obstante minha mãe me chamar

constantemente. Já escurecia, todos na maior ansiedade de saírem da mata, e eu

atrasando-os. Um barulho forte – como se animais ferozes chegassem quebrando

as árvores. Ai! Minhas pernas finas correram como veado acossado pelos

caçadores. Cada qual corria mais até a mata ficar para trás. Fiquei assombrada.

Julguei até que fosse o demônio, porque estava pirraçando. Afinal, meu pai por lá

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passou, não viu o menor vestígio de madeira quebrada, isto me convenceu de que

era coisa de outro mundo.

Tenho ainda saudades das viagens do Mata-Cavalo a Conceição do Mato

Dentro, onde me hospedava em casa da Dona Quinita Alves, no alto do Gambá.

Tinha duas filhas muito boazinhas, a Fabíola e a Almerinda. Elas costuravam para

mim, penteavam meus cabelos e me levavam a passeios.

O meu condutor nessas viagens era meu pai. Em cada pedacinho da

estrada, ele rememorava um fato acontecido. Mostrava-me os lugares onde ele,

ainda rapazola, passava com a irmã, a tia Nhanhá (Ana Utsch de Carvalho).

Contava-me as histórias e os perigos do Sumidouro no rio Santo Antônio. A

localidade tem o mesmo nome (Sumidouro) onde restavam velhas casinhas, que

foram residência de alguns membros da família Utsch. Sumidouro, porque debaixo

de uma ponte, o rio formava um enorme poço, entrava numa fenda da serra que o

circundava e ia cair depois de grande distância. Continuava a correr num corredor

de pedra. Eu tinha horror de atravessar essa ponte. Quando marcavam minha

viagem para Conceição, de noite eu não dormia com medo antecipado da

passagem da ponte. No dia seguinte, depois de atravessá-la, esquecia do medo e

apreciava a paisagem: o rio Santo Antônio correndo até Conceição em terras

planas, dividindo-se em braços, formando ilhas de areia branca onde vacas

pastavam. Pouco adiante do Sumidouro, uma casinha tosca e junto dela uma

enorme e majestosa gameleira. Era tão grande que os tropeiros faziam suas

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rancharias, armavam cozinha e acomodavam lotes de burro, debaixo dela. Parecia

uma árvore legendária.

Desde pequena era curiosa pelas coisas da natureza. Nas viagens, nos

passeios, era meu prazer apreciá-las.

Já muito velha, no fim da longa caminhada, ainda conservo o interesse, o

desejo de conhecer e apreciar as belezas da natureza, as obras primas do

Criador. Eu me distraio olhando as serras que circundam Belo Horizonte, minha

última residência se assim for desígnio de Deus.

No Mata-Cavalo, o horizonte era pequeno, abrangendo apenas as serras

que o circulavam. Fazia daquele sítio uma morada tristonha. Uma das distrações

prediletas de meu pai era a caçada de veados e codornas. Ele reunia um grupo de

amigos que gostavam, também, de caçar. Ficavam em nossa casa duas semanas.

Cada um levava uma matilha. Ao término das caçadas, minha mãe e eu

estávamos estafadas de tanto trabalho... As caçadas serviam para alegrar meu

pai, quebrar um pouco a monotonia daquele lugar isolado e melancólico. Esta

fazenda foi vendida por quatro contos ao senhor Teófilo Tomaz, muitos anos

depois da nossa mudança em 1909.

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As terras de Empoeira, meu berço natal, de onde sai com três anos e para

onde retornamos em 1909, quando eu já tinha treze anos. Fiquei ali até 1911, data

em que fui para o Colégio São Joaquim, fundado em 1910 pela Irmã Isabel da

Imaculada, que foi sua primeira superiora.

Quando fui para o colégio, tinha as primeiras letras. Fiz o curso primário

com um professor da roça que não sabia nem falar o português. Aprendi o ABC

depois li a Cartilha do BABA. Cobri o tal debuxo, isto é, encobrir com tinta o ABC.

Aprendi a ler nos pedacinhos de papel, enquanto olhava os meus irmãos

pequenos para mamãe trabalhar. Mesmo descuidando das minhas obrigações (o

que me custava uns puxões de orelhas), eu lia e relia os almanaques dos

remédios, folhinhas e o Soldadinho de Chumbo, meu livro predileto e único.

Chegando ao colégio, fiz pequena preparação em poucos dias. Prestei

exame, passei e matriculei-me no primeiro ano normal.

Não sei quem me pôs na cabeça a ideia de ir para o colégio. Até fiz

promessa para meu pai vender uma partida de queijo a fim de me levar. Minha

mãe ficou tão triste que até adoeceu. Nada deteve o desejo de estudar, nem o

pedido do pretendente ao casamento. Meu pai é que desejava que eu estudasse e

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fosse professora.

Cursei até o terceiro ano normal, faltando apenas seis meses para a

formatura. Decidi tornar-me freira. Assim, contrariando a vontade de meus pais,

segui, em junho de 1914, para o noviciado em Diamantina. Acompanhava-me a

minha mui querida Irmã Isabel. Naquela ocasião, com meus dezoito anos, pensei,

entendi que a minha vida feliz seria num convento longe, bem longe de um mundo

enganador, junto ao Deus vivo no Santíssimo Sacramento. No colégio estava feliz.

Como na vida tudo é mutável, transitório, a vontade humana também é mutável.

Após uma permanência de nove anos, sendo três, no Colégio São Joaquim, três

no noviciado em Diamantina e três no Colégio Santa Clara, em Itambacuri;

naquela altura, decidi voltar à casa dos meus pais.Cheguei no dia vinte e sete de

janeiro de 1920. Meu saudoso pai já tinha falecido. Encontrei um vazio imenso, um

lugar impreenchível daquela figura austera e boa de um pai que tinha por mim

grande predileção.

Durante nove anos que passei distante da família encontrei muita gente

bondosa, muitas almas santas, dentre elas a Irmã Isabel da Imaculada. Ela foi

quem me levou para o noviciado em Diamantina. A viagem foi feita a cavalo,

passando pelo Serro. Numa fazenda pertinho da minha casa (fazenda do senhor

Pedro Generoso) estava à minha espera meu pai. Recebi sua benção e seu último

abraço. Que encontro! Nunca mais desapareceu da minha memória a imagem de

meu pai, de cabelos e cavanhaque brancos, homem de estatura média, olhos

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azuis e fundos, gestos calmos, me abençoando, sem chorar, mas sentindo uma

imensa tristeza. Saímos de manhã, deixando-o ali no curral junto ao fazendeiro.

Meu bom e querido pai. E minha mãe como ficou lá na roça? Hoje que sou mãe

sei avaliar o que ela sofreu.

Minha companheira de viagem foi a Irmã Isabel. Aquela alma santa que

durante três anos e tanto foi para mim uma verdadeira mãe: carinhosa, uma

mestra na ciência e na virtude. Era uma alma heróica de quem conservo as mais

caras recordações e saudade.

Quero relembrar um pouco esta mestra amiga, que revi em 1953. Como já

mencionei, foi fundadora do Colégio São Joaquim, em Conceição do Mato Dentro,

época em que a cidade passava por uma crise horrível de decadência e por uma

politicagem assombrosa. A Irmã Isabel era austríaca, nasceu ainda no século XIX.

Seu nome verdadeiro era Tereza Bolli. Quando pequena, ficou órfã de pai e tinha

uma irmã chamada Josefina. Fez o curso primário com a mãe que era paupérrima.

Pôde fazer porque o governo fornecia todo material escolar, roupa, calçados para

as crianças pobres em idade escolar. Aos nove anos foi para o educandário de

uma senhora de costumes muito severos e de grande rigor com as educandas.

Ela sofreu muito e devido à má alimentação dada no estabelecimento, tornou-se

fraquinha e doente. Ficou no educandário até diplomar-se em pintura, trabalhos

manuais e corte e costura. Sua mãe era tão pobre, tão pobre que trabalhava em

casas de família fazendo bolos, macarrão e outras massas, e levava para casa as

mãos sujas de trigo e com água preparava mingau para as duas filhas.

Chegando à idade adulta foi dar aulas de pintura e francês. Sabia o italiano

e a língua de Trieste, um dialeto. Com muita facilidade aprendeu o português. Aos

vinte e cinco anos embarcou para Bertinária, cidade italiana, e ingressou na

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Congregação das Missionárias Clarissas Franciscanas. Deixou sua terra natal, a

mãe velhinha e veio para o Brasil. Em 1910 a Congregação designou a Irmã

Isabel para fundar um colégio em Conceição do Mato Dentro, atendendo a um

pedido de Dom Joaquim Silvério de Souza, de tão saudosa memória.

Cumprindo as ordens dos seus superiores, embarcaram em Trieste rumo

ao Brasil, deixando com pesar a irmã quase moribunda, precisando de assistência

e a mãe velhinha e pobre. Depois de vinte e um dias no mar, desembarcaram na

Baía de Guanabara com duas irmãs, Irmã Cristina e Irmã Escolástica. Do Rio de

Janeiro até Conceição não me recordo do trajeto percorrido. Recebeu um casarão

velho para fundar um colégio. Lutava com as maiores dificuldades num meio

pobre sem ajuda financeira. Com os poucos recursos obtidos, trabalhou, dirigiu as

obras, os consertos e as adaptações do casarão e instalou, finalmente, o colégio.

Depois de passar por vários educandários de Minas, voltou para o colégio

que fundara, aí morou muitos anos. Com a idade avançada e doente veio para

Belo Horizonte à Casa Madre. Está repousando em Deus desde nove de setembro

de 1957.

No noviciado em Diamantina passei três anos. Um ano e tanto no Hospital

da Saúde. Outro ano e tanto no Convento. Conheci algumas irmãs, como a Irmã

Laurentina, a superiora, a Irmã Barberina, a sacrificada cozinheira, e a Irmã

Virgínia, enfermeira, uma italianinha caridosa. Tratava os doentes com amor e

zelo.

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No Hospital, conheci também velho conterrâneo, muito amigo, que me

chamava: “um pedacinho de Conceição”. Era o culto sacerdote, cônego Severiano

de Campos Rocha. Ilustre escritor, poeta, amigo incondicional dos cães. Se

alguém prendesse um dos seus buldogues, ele não celebrava enquanto não o

visse solto. Quando ia fazer o relatório do Hospital, ele era o capelão e provedor,

chamava-me na farmácia para ver um cachorrinho, sentado na cadeira, comendo

biscoito. Se morria qualquer dos seus cachorros mandava tirar o retrato, punha

num quadro e colocava em sua sala. Às vezes passava semanas inteiras na

chácara do hospital. Aproveitava o silêncio e a quietude do lugar para estudar e

mimar seus cães.

Ele tanto apreciava os cachorros como odiava os galos. Na hora da missa,

parava e mandava o sacristão espantar os galos da vizinhança, os quais

abalavam os nervos do celebrante. Assisti a isso, muitas vezes, no Hospital da

Saúde, em Diamantina.

Sábios são os desígnios divinos. Envolvem em denso mistério os fatos que

com o desenrolar do tempo vão surgindo. Deus infinitamente sábio e bom.

Conhece nossa fraqueza, vai nos levando na escuridão do futuro e quando

permite a dor, a amargura invadir nossa alma, dá força, dá coragem para

continuarmos a vida.

Na viagem marítima de cinco dias em 1916, no navio costeiro Javari íamos

do Rio de Janeiro a Caravelas. Eu subia ao convés e via a beleza do mar, ora

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calmo, com seu manto azul escuro, ora com suas ondas brancas e encapeladas.

Ninguém poderia afirmar uma realidade tão dura: que alguns anos depois,

naquelas ondas tristonhas do mar, haveria de boiar o corpo do meu inesquecível

filho Mário. Aquele Mário não podia ter morrido e nem como foi. Deus mo tirou

com vinte anos e continuo com a vida até a Divina Providência achar que a minha

tarefa neste mundo está cumprida.

Voltando ao Colégio Santa Clara, onde lecionei três anos. Eu ficava até às

duas horas debruçada sobre os livros preparando as lições. Tive muitas alunas

indígenas das tribos pogichá, nak – nanuk e aranãs. Eram “domesticadas”. Mas,

certamente, sentiam falta do seu povo, dos seus costumes. Não gostavam das

freiras. Esconderam um porrete debaixo do colchão para, à noite, baterem na Irmã

que dormia perto delas.

Itambacuri foi fundada em 1873 pelos sacerdotes capuchinhos: Frei Serafim

de Gorizia, de estirpe nobre e de grande cultura e Frei Ângelo de Sassoferrato,

italiano. Estes dois europeus foram os desbravadores daquelas matas insalubres,

habitadas por diversas tribos de índios, que eram o terror dos habitantes daquela

região. Hoje é a cidade de Itambacuri.

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A fundação dessa cidade e da majestosa Igreja de Nossa Senhora dos

Anjos envolve fatos sobrenaturais. O Frei Serafim chamava-se João Batista. Era

um alto funcionário do Ministério, na Áustria, no tempo do Imperador Francisco

José. No dia do seu noivado com uma moça da nobre sociedade, ele sofreu um

acidente e se hospitalizou. Então, tomou a firme decisão de abandonar o mundo

com todas as honrarias. Foi para Roma e ordenou-se sacerdote franciscano. No

convento teve uma visão. Viu Nossa Senhora que disse para ele: quero que

construam um templo para mim, mas não na Europa. Tempos depois, foi mandado

como missionário para o Brasil, a fim de catequizar os índios nas selvas do

Mucuri, no Vale do Rio Doce.

Embrenhou-se nas matas incultas, enfrentou perigos terríveis, arriscando a

vida numa região habitada por índios ferozes. Mais tarde, juntou-se a ele Frei

Ângelo. Juntos realizaram um trabalho que até hoje existe em Itambacuri. Tudo

que ali se via de progresso era esforço, dinamismo daqueles humildes frades.

Antes de sair do Colégio Santa Clara, presenciei o falecimento desse santo

sacerdote. Morreu como verdadeiro discípulo de São Francisco de Assis. Sua

memória continua cultuada em Itambacuri. O mesmo acontecendo ao seu

companheiro Frei Ângelo que faleceu em 1926.

O médico baiano Dr. Pedro Autran, levado para ali, pelos freis, também foi

um grande auxiliar dos freis, no progresso da Vila de 1916 a 1926. Depois da

emancipação do distrito à cidade, foi esse médico o presidente da Câmara: iniciou

o hospital que, ao sair, deixou em condição de ser inaugurado.

Itambacuri, zona de terras fertilíssimas. Além das chácaras pertencentes ao

colégio das irmãs, os padres possuíam uma chácara, distante uns três quilômetros

da Vila. Nessa chácara, num recanto bucólico, era o ponto dos piqueniques e das

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farras das alunas. Elas levavam salgados, licores e lá, se entrouxavam com as

deliciosas frutas: laranja, ameixas, uvas, abacates e abios. Lá se divertiam à

vontade, passeavam de canoa, na grande lagoa existente dentro da chácara.

A vida já foi comparada a um comboio a passar. Enquanto o comboio passa

a correr, transformando, mudando e destruindo tudo, volto o pensamento ao

passado de setenta e tantos anos. A cada dia, compreendo essa verdade

indiscutível e, comigo mesma, digo: será que aquele lago existente na chácara

dos padres em Itambacuri servirá de distração para a mocidade atual? O comboio

da vida vai correndo e eu vou pensando, e continuando a escrever, alimentando a

mania de velha do outro século. Faço da lembrança do passado uma distração

para o presente. Penso ainda: será que o majestoso pé de jaca, lá no curral da

morada, ainda existe ou já foi destruído pelo tempo ou pelas criaturas? E a

casinha rústica da minha infância estará remodelada ou não existe mais? Aquele

pomar, tão bem cuidado por meu pai, aquela videira, cujos frutos eram colhidos

por mim e por meus irmãos para o preparo do vinho, já terão sido vítimas da

destruição? As frondosas limeiras, à beira do rego d’água, em cuja sombra

assentávamos para chuparmos os frutos, ainda existem? Os altos coqueiros entre

as laranjeiras, onde fazíamos nossas casinhas de brinquedo ainda existirão? E as

velhas árvores onde cantavam as belas juritis? Não creio, não tenho dúvida, não

existem mais.

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Saímos de Itambacuri em doze de janeiro de 1920, rumo à casa de minha

mãe, deixando para trás um ambiente de paz e felicidade de um colégio. Fiz uma

viagem de peripécias e perigos. Saída de Itambacuri às duas horas da

madrugada, quando toda a população dormia. Eu, a minha conterrânea dona Dita

Costa, uma empregada de Dona Dita e dois empregados, e o responsável pela

viagem José Maria Filgueiras Moreira. Eis os componentes da comitiva que

cavalgando animais quase frouxos, atravessaram a zona inóspita de Itambacuri a

Conceição do Mato Dentro.

Primeira etapa: Bananal dos Bugres, lugar que naquela época possuía

algumas casinhas que eram desprovidas de todo recurso. Nem sei o que ali

comemos. Sei que passei uma grande aflição. Dona Dita, a minha companheira, a

minha condutora, ficou passando mal e desmaiou, devido talvez ao excesso da

viagem. Só encontramos umas folhas de laranjeira para fazer um chá. No dia

seguinte rumamos para Malacacheta. Fomos hospedados em casa de gente boa,

a família de Pedro Abrantes. Prepararam camas com colchões cheios de palha de

milho, era o que se usava, tão cheios que o ocupante dos mesmos, ao deitar,

sumia dentro do colchão. A terceira estalagem foi num lugar chamado Grama,

uma localidade muito bonita, toda plana, mas muito atrasada. Arranjamos uma

casinha para passarmos a noite. A comida foi da nossa cozinha, aumentada com

ovos e queijos que compramos. Cama é que foi o problema. Na bagagem só tinha

uma caminha e essa ficou para mim e Dona Dita. O personagem, dono da viagem

(porque ele é que estava custeando as despesas), ficou na mão, sem cama.

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Arranjou-se um jirau de paus roliços, forrados com couro de boi. Ele não dormiu e

nem deixou ninguém dormir, berrando como boi a noite toda. Seguindo nossa

“aventura”, no dia seguinte, quatorze, pernoitamos numa rancharia de tropeiros,

numa localidade chamada Contrato. Para dormirmos, Dona Dita e eu

improvisamos um quartinho, com balaios, cangalhas e canastras, mas não fomos

capazes de dormir. Um dos tropeiros que ali se achava arranchado, acendeu um

fogo, junto ao esteio de madeira do rancho, e, lá pelas tantas da noite, o fogo

pegou no esteio e quase incendiou o rancho. Saíram correndo para buscar água

num córrego próximo. Depois de passado o perigo, o causador do incêndio entrou

em estado de choque, assombrado. Hoje, quando penso, quando pondero, admiro

a coragem que tive de enfrentar tantos perigos, tantos desconfortos, de uma

“peregrinação” em estradas desconhecidas e na pior estação do ano, estação

chuvosa, então digo a mim mesma: que estaria passando em minha cabeça nesta

louca caminhada? Há períodos na nossa vida durante os quais não se sabe

explicar os porquês dos acontecimentos! Eu, medrosa de tudo, de relâmpago, de

tempestade, de rios cheios, de bois bravos, tornei-me de, um dia para outro,

corajosa, sem pensar nos perigos, sem me lembrar dos obstáculos que nos

esperavam, em cada dia da “via-sacra”.

Do tal rancho do Contrato rumamos para Capelinha, dia quinze. Cidade

bem parecida com o Rio Vermelho. Estrada passando por morros íngremes,

ladeados por grandes buracos, muitos cupins semeados pelos morros. Chegamos

à noite. O povo e a banda de música estavam reunidos à porta da igreja,

esperando a novena de São Sebastião. Para aquela cidade Dona Dita levava uma

moça, a Nazareth, uma baita de setenta quilos. Bem distante da cidade, o animal

no qual ela viajava afrouxou, isto é, parou e não houve meio que o fizesse andar.

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Qual o recurso para levar a moça até sua terra natal? A solução do problema foi

montá-la na garupa do jovem Dr. Filgueiras. Para isto foi preciso que ela andasse

a pé campo afora, até encontrar um cupim, para de cimo deste, alcançar a garupa

do seu condutor, agarrou-lhe bem na cintura para não cair. Apeou quando entrou

na cidade. Pernoitamos e no dia seguinte compramos muitos marmelos, pois é

zona especial para o plantio destes frutos. De Capelinha seguiu nossa “romaria”

para a cidade de Itamarandiba, uma localidade muito bonita, mas sem movimento

e aspecto desolado. Até essa cidade, Dona Dita sabia mais ou menos guiar a

viagem, mas daí em diante a coisa complicou, ninguém conhecia os rumos das

estradas. Caminhávamos errando e muitas vezes voltando atrás para achar o

caminho certo. Às vezes íamos esbarrar na beira de terríveis atoleiros. Parece

uma proteção divina, pois quando ficávamos parados, indecisos, à beira de um

lamaçal, de um brejo, julgando impossível continuar a viagem, aparecia um filho

de Deus que nos guiava nessas travessias perigosas. Assim íamos, a trancos e

barrancos, continuando a caminhada. De Itamarandiba, fomos em direção a

Coluna, mas a viagem foi dividida e batemos a barraca numa casa velha, a pouca

distância da ponte sobre o rio Itamarandiba, num lugar chamado Tromba D’anta,

onde morava um velho, casado com uma senhora muito nova, e ele demonstrando

muito ciúme. De Tromba D’anta seguimos para Rio Vermelho. Na entrada da Vila

de Rio Vermelho, quando descíamos o morro da Barra, encontramos uma mulher

caindo de bêbada. A ela perguntamos: aqui é mesmo o Rio Vermelho?

Respondeu: é sim, o Rio Vermelho do diabo. Na Vila, pernoitamos numa casa

situada num beco que dava na praia, lugar à beira do rio Barreiras, onde tinha

uma grande bica d’água que abastecia a população. Um rapazinho, irmão do dono

da casa, nos trouxe, mui gentilmente, uma bandeja com café e biscoito e, ainda,

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arranjou um feixe de lenha para nós.

Seguindo de Rio Vermelho para Serro, reviramos para Mãe dos Homens,

hoje cidade de Materlândia. Assim, íamos dando voltas e voltas com velocidade

de caracol. Antes de chegar a Mãe dos Homens ainda pernoitamos numa

pequena fazenda, numa localidade chamada Córrego do Ouro ou Ribeirão das

Contendas. O dono da casa era um senhor Cunha. Gente boa, mas muito

ignorante. Trataram-nos muito bem, na hora da refeição, levaram-nos um frango

afogado, numa panela de pedra e um gostoso cafezinho. O problema foi na hora

do banho. Este era numa gamela de pau cheia de lodo. Ao entrar nela escorreguei

e a água derramou toda. Com a viagem dividida chegamos em Mãe dos Homens

no dia vinte e dois. Lá pernoitamos, quase sem sermos percebidos. No dia vinte e

três fomos rumo ao Serro, mas como a nossa viagem caracol era sempre de

poucos quilômetros por dia, ainda paramos numa fazenda do senhor João Rosa,

pessoa muito acolhedora. O mais interessante é que não conhecíamos ninguém

nessas paragens, mas aproximando-nos das portas das casas, pedíamos

hospedagem e éramos bem acolhidos. Na fazenda do Sr. Rosa, ofereceram-nos

jantar, prepararam-nos as tais camas de colchão de palha e com roupas muito

limpas. Antes de irmos deitar, enquanto batíamos um papo, ao redor de uma

mesa, tomando café, ouviu-se o barulho de uma goteira forte no quarto. Sabem o

que foi? Um enorme gambá, que morava no forro da casa, que era de esteira de

taquara, abriu a sua torneira e molhou a cama toda, tão limpinha, tão bem feita!

Dia vinte e cinco de janeiro, a comitiva chegou finalmente ao Serro. Depois

de viajarmos treze dias debaixo de chuva, quase ininterrupta. No Serro nos

alojamos numa casa, no Arraial de Baixo, fim da cidade.

Em vinte e seis, seguimos rumo a Conceição do Mato Dentro, minha terra

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natal de onde saí em 1914, julgando nunca mais voltar e nem rever mais a minha

família. Como é mutável o coração humano! Como foram volúveis os meus ideais!

Conceição era a meta final da minha viagem, ali residia a família de Dona Dita

Costa, minha condutora e ali eu esperava encontrar meus irmãos. Mas ainda a

jornada foi dividida. Paramos em Rio do Peixe, hoje Alvorada de Minas. Naquela

época residia minha tia Lulu, em cuja casa descansamos um pouco e tomamos

café com biscoito. À espera desse lanche, a tarde foi passando, seguimos viagem,

quase à noite, noite escura e chuvosa, animais frouxos de modo que a marcha foi

vagarosa. Antes de atravessarmos o Rio do Peixe, a noite tornou-se tão escura,

que ao chegarmos à beira do mesmo, não sabíamos se era a passagem ou se

estaríamos aproximando de um poço fundo. Amedrontados, naquela escuridão,

receando entrarmos num abismo, ficamos parados, esperando o quê, não sei!

Vimos uma luzinha lá no outro lado do rio. Nosso recurso foi gritar, gritar.

Reconheci a localidade chamada Rio das Pedras, onde morava um senhor

chamado Barão, casado com Dona Rosinha Simões. Atendendo aos nossos

gritos, mandaram um empregado que nos guiou até a fazenda. Lá pernoitamos e,

no dia seguinte, um filho de Dona Rosinha levou-nos até o retiro de minha mãe,

evitando para nós uma distância de dez léguas.

A minha viagem, sendo feita à moda ziguezague. Finalmente, dia vinte e

sete de janeiro de 1920 chegamos à minha antiga morada, Retiro São José, terras

que pertenceram à Fazenda da Empoeira, depois de nove anos de ausência.

Abracei minha mãe, já muito desfigurada pelas lutas, sofrimentos e doença.

Revi meus irmãos, encontrando com nove anos a caçulinha Maria que eu deixei

com apenas meses. Faltou a figura querida, calma, serena e bondosa do meu pai.

Aquele pai que, durante os nove anos de minha ausência, sonhava ansioso por

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rever-me. Sinto uma saudade imensa, um desejo inexplicável de ver, abraçar

aquelas figuras santas de meus pais.

Minha mãe chamava-se Maria Eufrásia da Silva. Nasceu na Fazenda da

Empoeira, distrito de Itapanhoacanga em novembro de 1873. Era filha do

português Bento José da Silva (Bento Simões), rico fazendeiro que possuía mais

de trezentos escravos. Minha avó materna era uma mocinha que vivia no seio da

família, gente pobre, mas trabalhadora e independente. Moravam numa gleba de

terra limítrofe da grande fazenda do rico português. Bento José da Silva morou

com uma mulher de cuja união teve sete filhos. Essa mulher morreu. Bento

Simões propôs logo se casar com a mocinha pobre chamada Rita Soares

Santana, sua vizinha. Ela e sua família temiam as maldades e perseguições do

ricaço. Não é somente na época atual que o rico, o poderoso abafa os direitos dos

pobres. Essa imposição já dominava o mundo desde sua criação. Assim, essa

mocinha, com seus quinze anos, teve que se casar com o abastado fazendeiro,

casamento feito pelo terror e não pelo amor. Os três primeiros anos foram suaves

porque a pobre submeteu-se ao regime e às exigências do marido. Porém, logo

após o nascimento do terceiro filho do casal, as coisas mudaram e mudaram para

o mal. Os filhos ilegítimos, embora bem aquinhoados com dinheiro, fazendas e

gado, foram enchendo de ambição e diziam entre si: se o velho aumentar muito a

família, futuramente nada mais ficará para nós. Cheios de maligna intenção,

tiveram o diabólico plano que foi executado pelo mais velho da turma, o João

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Batista (vulgo João Babão). Aproximou-se do pai e caluniou a madrasta,

acusando-a de infiel. Tinham o perverso intuito de obrigar o pai a assassiná-la e

assim, a família não aumentava. Não aconteceu como os maus planejaram, mas,

dessa data em diante, o português infligiu à mulher grandes e contínuos

sofrimentos. Tratava-a como a pior das escravas. Ela não deixava transparecer

nem para os filhos. O português dormia com garrucha e faca debaixo do

travesseiro, sempre planejando assassiná-la. Não o fez pelo poder das orações da

minha avó. A imitação de Santa Rita de Cássia.

Certa noite, ele deitado, ela ajoelhada diante de um oratório com uma vela

acesa, rezando. Ele, lá da cama, com seu espírito cheio de maldade, a olhá-la,

pensou e falou consigo mesmo: se ela estiver rezando hipocritamente e for uma

culpada, que aquela vela apague ou diminua a chama. Tamanho espanto ele teve!

A luz da vela aumentou tanto que pegou fogo nos papéis do oratório, sendo ele

obrigado a levantar-se e ajudar a apagá-lo.

Bento Simões tinha o costume de mandar o filho mais velho, João Babão,

açoitar os escravos todas as semanas. Aqueles negros que trabalhavam o ano

inteiro, ganhando apenas feijão com uma bola de angu, como alimento diário;

tinham dois ternos, duas camisas, duas calças de arranca-toco e uma coberta de

baeta.

Minha avó Rita era tão compassiva para com os escravos, que nos dias dos

tais açoites perversos, ela chorava e não se alimentava. Lamentava aquelas

barbaridades sem poder impedi-las.

Minha mãe sobreviveu ao marido dezessete anos. Faleceu no dia dezenove

de junho de 1934, confortada com todos os sacramentos. Rodeada pelos filhos

que a levaram até a última morada.

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Em 1953, fui conhecer a capital mineira, o que não se daria, se não fosse o

interesse e o esforço do meu bom filho Antônio, para que eu assistisse ao seu

casamento.

Falei dos meus antepassados, agora quero falar dos pais do meu marido,

embora quase nada saiba a respeito daquelas veneráveis criaturas. Meu sogro e

minha sogra. Alexandre Tibúrcio Moreira, o nome do meu sogro, que eu saiba ele

foi um cidadão baiano íntegro. Casou-se em 1874 com Maria Filgueiras Moreira.

Ele era funcionário da alfândega (diretoria de rendas). Faleceu aos oitenta e oito

anos. Sobreviveu à esposa quinze anos. Foi confortado, nos últimos dias de sua

existência, pela assistência diária dos frades franciscanos. Durante a viuvez,

morava em companhia de quatro filhas, quatro anjos que o cercaram de carinho e

amor.

Do consórcio com Dona Maria Filgueiras Moreira nasceram dez filhos,

criaram sete. Perderam, ainda, dois pequenos e um rapaz de vinte e quatro anos,

chamado Mário, que era noivo. Coincidência, meu filho, o meu Mário, neto de

Alexandre, com vinte e um anos, e também noivo. Não conheci a minha sogra,

mas, pelo que meu marido falava, passei a admirar aquela figura altiva, boa,

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enérgica e amorosa. Era filha de Mem de Amorim Filgueiras, neto do cônsul

português e de Dona Quitéria de Amorim Filgueiras. Faleceu dia vinte de junho de

1921. Deixou quatro filhas moças, um filho casado na capital baiana, uma filha e

um filho casados e residentes em Minas. Deixou aos filhos a herança da virtude,

que eles seguiram abraçando, com abnegação as cruzes de uma vida

verdadeiramente cristã.

Quem eu vi em vinte e seis de outubro de 1918, quando eu ainda rondava

os corredores de um colégio, nos três primeiros anos de minha vida monástica,

seria o meu futuro marido. Vou relembrar a criatura que, por desígnio de Deus,

conheci, há quase cinquenta anos passados, e como ele era. Personagem magra,

esbelta, de porte altivo, olhar marcante, meigo, cabelos castanhos, partidos ao

lado e bem penteados. Vestia, elegantemente, terno cinza, de colete, de relógio de

gôndola, trazendo na mesma o retrato da noiva. Sapato branco e preto de pelica,

chapéu branco de palhinha, com fita preta, usado meio de lado e gravata escura.

Andar de passos firmes e ligeiros, caminhando rumo ao alto onde existia um

templo de Nossa Senhora dos Anjos, em Itambacuri. Outras horas, seguindo, com

muita elegância e piedade, para a mesa da comunhão, numa capela de freiras,

onde os olhares de todos os habitantes do colégio o observavam com curiosidade,

para depois, reunidos em grupo, fazerem os comentários, analisando o que viram

e como acharam aquela figura elegante de homem da capital. Cada componente

do grupo dava sua opinião, seu palpite. Isto era a moda, o costume de gente do

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interior, de meninas internas de colégio quando vêem um rapaz gracioso que não

dá bola pra ninguém. Era noivo... Casou-se, tempo depois, não com a noiva

baiana! Esta ficou na Bahia e faleceu, oito anos após seu casamento em Minas.

Na vida de casados começaram as primeiras lutas mais sérias da vida, porém,

quase nada mudou o seu aspecto e em nada diminuiu sua energia, seu espírito

alegre e lutador.

Agora vou falar do meu marido, meu companheiro de quase cinquenta

anos. Não sei se aguentaremos chegar a este aniversário da vida conjugal.

Cinquenta anos! A esta pergunta quem pode responder é Deus, o destino da vida,

da morte está com Ele. E bom seria que depois de uma caminhada tão longa,

fôssemos juntos para o além. Mais dados sobre meu marido. Nasceu na capital da

Bahia em 1892, na rua dos Zuavos. Fez o curso na Faculdade de Medicina da

Bahia, formando-se em 1916. Exerceu a sua profissão depois de formado, um ano

e tanto, na sua terra natal, onde ficou noivo da senhorita Alice Cardoso de

Almeida. Antes de formar, trabalhou como assistente do doutor Mendonça. Em

1918 veio para Minas, para o distrito de Itambacuri (hoje uma florescente cidade),

deixando lá na boa terra, a mãe extremosa, o pai, irmãs e a noiva esperando a

hora do casamento. Naquele distrito residia uma irmã casada com um médico,

também baiano, Dr. Pedro Autran, que militava na política de Teófilo Otoni, sendo

que, naquela época, Itambacuri era distrito daquela cidade. Permaneceu em

companhia da irmã até 1920. Neste período de um ano e tanto, trabalhou no seu

gabinete dentário e exerceu a sua profissão no Colégio Santa Clara onde

conheceu, em 1918, aquela que hoje é sua esposa. Em 1920 saiu de Itambacuri

em companhia de uma distinta senhora Dona Dita Costa e eu. Ele e a comitiva

chegaram dia vinte e sete no Retiro São José, residência da família Utsch. Deste

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modo, internou-se pelo interior de Minas, casando-se em vinte e dois de fevereiro

de 1920 com aquela mineira que saiu do mundo procurando sossego, a paz num

convento e retornou à vida agitada e cheia de cruzes neste mesmo mundo, que há

nove anos atrás parecia insuportável. Depois do casamento permaneceu cinco

meses na residência da sogra e depois fixou sua residência na velha cidade do

Serro. Nessa cidade exerceu sua profissão em diversos setores: no seu gabinete,

em casa, no Patronato Agrícola Casa dos Otoni e no Colégio Nossa Senhora da

Conceição. Nos sete anos que ali residiu angariou um grande círculo de amizades

e fez muitos benefícios a muitos pobres. Na cidade serrana, de antigas tradições,

nasceram os quatro primeiros filhos do casal: José Alexandre, Mário Raimundo,

Antônio e Paulo Expedito. Passamos na velha cidade sete anos de paz e alegrias,

de vida tranquila mesmo cheia de lutas e dificuldades financeiras, sempre

vencidas com a proteção de Deus, mas o que é bom neste mundo tem pouca

duração, ninguém pode fugir da rota do sofrimento. Meu marido foi convidado para

ir trabalhar em Rio Vermelho que era distrito de Serro. Animado por amigos, que

começaram a surgir, resolveu aceitar o convite para trabalhar seis meses naquela

localidade. Deste modo a paz, a tranquilidade de nossa vida em Serro fugiram

como o vento.

Assim é a aventura humana. Tão frágil, tão passageira. Deixando amigos,

uma clientela boa e ganhos promissores. Em 1927 saiu do Serro com a esposa e

quatro filhos. Passamos por Dom Joaquim onde foi batizado o quarto filho. Dia

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nove de outubro de 1927 aportamos em Rio Vermelho, após uma viagem penosa,

entrando pelo povoado do Magalhães. O quarto filho, com um mês e vinte e cinco

dias, foi carregado num balaio de taquara coberto com a colcha e, logo na entrada

da Vila, encontramos com um grupo de roceiras, levadas pelo costume do lugar,

de carregarem em balaios as crianças mortas; uma delas disse às companheiras:

Coitadinho! É um anjinho! Do que seria que ele morreu? Chegando naquela Vila

atrasada, notei logo, que ali existia um ambiente familiar, de muita moral,

severidade nos costumes dos habitantes. Conheci, também, que a índole de muita

gente, ali, era a de bajuladores interesseiros, e que havia uma frieza geral, uma

grande indiferença para a religião. Uma ignorância alarmante no meio da

população rural. Um povo analfabeto, valentão e assassino. Vou dizer alguma

coisa sobre o lugar em que o cidadão baiano se estabeleceu em 1927, para ficar

seis meses e permaneceu trinta e um longos anos!

Naquele tempo, uma pobre gente, sem escola, sem transportes, que eram

feitos, somente, no lombo dos burros ou a pé. Gente sem orientação, sem nenhum

conhecimento religioso. Vila sem luz, sem telégrafo, sem serviço de correio, que

era feito de cinco em cinco dias. Muitas vezes o estafeta, viajava a pé, carregando

as malas, sem nenhuma proteção. Sem canalização d’água. A água era fornecida

às famílias, em latas carregadas na cabeça das empregadas. Era um martírio para

as donas de casa. Buscavam a água em um lugar chamado Praia, à beira do rio

Barreiras, onde havia uma grande bica. Ali, o ponto do ajuntamento das

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empregadas, no labor de buscar água. Sem se lembrarem que as suas patroas

aguardavam-nas, enquanto elas, na praia, sobre as latas, faziam dali ponto de

prosa e de assuntos da vida alheia. Quem quisesse saber o que se passava na

Vila, fosse fazer uma investigação na Praia. Só havia uma escola com três

professoras, na sede da Vila, e uma em Pedra Menina. A zona rural, a mais

populosa, vivia no completo analfabetismo.

As festas religiosas eram ajuntamento de povo que nem o sinal da cruz

sabia fazer. Dentro da igreja, que enchia sempre do povo sem instrução, porque

os senhores habitantes da Vila não frequentavam a Igreja. Homens barbudos,

cabelos despenteados e com garruchas polveiras no cinto, agachados em cima

dos calcanhares, e conversando como se fosse na rua ou nos botecos. Mulheres

amamentando crianças ou entupindo-lhes a boca com biscoito de fubá e brigando

dentro da igreja quando houvesse motivo para isso. Terminados os atos religiosos,

a Santa Missa, as procissões, os botecos enchiam. O povo tomando pinga,

comprando biscoito de goma. Daí a pouco, homens volvendo animais na rua,

entrando a cavalo nas vendas, dando tiros na saída da Vila e formando brigas nas

estradas e, muitas vezes, no ferver das contendas, deixavam defuntos atrás. O

mais assombroso era as populares e dramáticas fogueiras de Santo Antônio, São

João, São Pedro e, ainda, a de Sant’Anna Velha no mês de julho. Essas fogueiras

aconteciam na zona rural e, para o povo, fazer fogueira era quase obrigatório. Nos

lugares marcados, sempre zona da ignorância e da estupidez, juntava uma

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multidão de homens com suas chilenas (esporas), com as garruchas bem

carregadas - eram os parceiros das danças. Um grupo de moças e senhoras

preparavam os comes e bebes: frangos assados, tutu de feijão, tachos de arroz e

a famosa cachaça em garrafões, esta não podia faltar. Rezavam o terço diante de

um quadro enfeitado, do santo comemorado do dia. Tinha sempre um mais

instruído para tirar o terço. Terminada a parte religiosa, começava o tradicional

batuque, dança de dar umbigadas. Cada cavaleiro tinha uma dama para as

umbigadas, fazia parte da praxe trocarem esta com as damas dos outros e, nestas

trocas, costumava começar o sururu. Aí vinha a confusão, o rolo, as pauladas, os

tiros, as facadas. Resultado: ao amanhecer do outro dia, entravam na Vila um ou

dois defuntos enrolados numa coberta, amarrados num pau e ainda com os pés

sujos de cinza das fogueiras. Chegavam ao cemitério, um campo mal fechado,

onde até os animais pastavam. Os que carregavam os defuntos eram chamados

de defunteiros. Às vezes costumavam iniciar outra briga, numa luta em disputa

pelas cobertas que enrolavam os defuntos, pois estes eram jogados na cova sem

caixão, com a mesma roupa com as quais morriam, do mesmo modo que vinham

da roça. Na briga pela coberta, muitas vezes, ficava no cemitério mais um defunto.

São fatos tais que talvez não se narrem nem nas tribos selvagens dos tempos

coloniais do Brasil. No entanto, é inacreditável que em 1927 até 1930 existissem

costumes semibárbaros numa região de uns vinte mil habitantes, com ótimas

fazendas, com proprietários ricos e que vivessem mergulhados em tanta

ignorância. Bem dizia um veterano da guerra do Paraguai, o grande pesquisador

do Serro Alferes Luiz Pinto: “Para o progresso de uma população são necessários

três pês bons: bom padre, bom professor e bom prefeito”.

Até 1942 era vigário em Rio Vermelho o Reverendíssimo Francisco de

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Paula Câmara, que ali fez suas bodas de ouro vicariato. Chefe político, assim

tinha pouco tempo para cuidar da grande freguesia que exigia um trabalho imenso

e contínuo para dar ao povo um pouco de educação religiosa. Além de tudo, a

política manejada pelo vigário é um motivo muito sério para afastar os

paroquianos da igreja e, a meu ver, foi a causa importante da frieza religiosa que

notei ao chegar a Rio Vermelho em 1927.

Fatos muito curiosos e interessantes na Vila eram os casamentos.

Casavam cem por cento. Na hora da Santa Missa, o vigário demorava uma hora

ou mais lendo os proclamas de casamento. Os assistentes da missa cochilavam e

outros sentados no chão, até dormiam, pois não havia bancos na igreja. Fiquei

muito impressionada na primeira missa que ali assisti. A missa começava às onze

horas e terminava às treze e o padre ainda dava, também, a benção do

Santíssimo, no fim, de maneira que à tarde a igreja já estava fechada.

Os casamentos eram assim: o noivo plantava uma roça de milho e feijão e

já podia casar. Muitas vezes iam com roupas emprestadas, compridas ou curtas,

sapatos emprestados, apertados ou largos, caminhando com dificuldade, com

gravata sem colarinho; naquele tempo, colarinho era separado e eles não

tomavam muito tempo em colocá-lo. Com estes preparativos, improvisados de

qualquer maneira, já podiam reunir os padrinhos, parentes, amigos e conhecidos,

na residência da noiva. A turma toda, noivos, homens, mulheres, todos a cavalo,

formavam o cortejo, indo à frente os noivos, com garridos lenços no pescoço. As

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damas iam montadas nos antigos seliões. O padre marcava seis, oito e até doze

casamentos no mesmo dia. Então, a Vila vivia um dia movimentado. Quase

ninguém trabalhava para apreciar o corre-corre dos cavaleiros e a saída dos

cortejos nupciais de cada canto da Vila. Terminadas as cerimônias dos casórios

na igreja, o pessoal se encaminhava para as suas rancharias. Arranjavam os

animais, compravam bebidas nos botecos, cada um guardava em seu alforje, até

o noivo tinha essa preocupação. Tudo arranjado, todos montavam em seus

cavalos, colocavam os noivos à frente do cortejo, chicote nos animais, seguiam as

turmas, cada noivado para sua residência. Ao saírem da Vila, começavam as

salvas de tiros, festejando os acontecimentos e essas continuavam em todo o

trajeto da viagem. Porém, a salva mais arrojada, mais entusiasmada, era na

chegada dos noivos às suas casas, onde era feita a festa. Numa dessas arrojadas

chegadas de noivados, numa salva de tiros, mataram o noivo ao chegar ao curral

de sua residência. Deixou a noiva viúva, com poucas horas de casada e os

convidados da festa serviram para levar ao cemitério o noivo morto.

As missões em Rio Vermelho eram pregadas pelos padres redentoristas,

de quatro em quatro anos. Tempo de missões as roças ficavam vazias. Vinha

gente de todos os lados, de todas as bibocas. Ricos fazendeiros, lavradores

pobres, tão pobres que não traziam quase nada de alimentos para se manterem

nos dias que permaneciam assistindo às missões. Queriam e faziam questão era

de ouvir a fala do missionário. O povo era tanto que os padres armavam o púlpito

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na porta da matriz, na praça que circunda a igreja, onde ficava o povo para

escutar os sermões. Numa noite de pregação, quando o missionário falava do

demônio, do espírito mau que espalha a desordem entre os homens, um grupo de

mulheres tagarelas estava conversando no meio da multidão. O missionário já

havia reclamado diversas vezes. Acontece que, no momento em que o padre

reclamava, mais uma vez, já muito agastado, um indivíduo, fugindo da polícia,

pulou no meio das mulheres tagarelas e, no mesmo instante, o missionário gritou:

Olha o demônio no meio daquelas mulheres, e apontou para elas. AH! O tempo

fechou. Acharam que o homem era mesmo o demônio em pessoa. A multidão deu

um estouro como boiada na arribada. Cada um corria sem saber para onde ia.

Como correr do espírito mau? Pisaram crianças e adultos, saíram derrubando o

que encontravam pela frente, perderam sapatos, chapéus, bolsas, terços e até

crianças. Os padres batiam sinetas, pediam calma, mas ninguém ouvia, estavam

correndo do diabo. Assim terminou a pregação daquela noite. Em outra ocasião,

numa visita pastoral, o Bispo descia os degraus da escada da igreja. Alvejaram

um pobre homem, na porta de um bar, na praça tão perto da igreja que o Bispo

presenciou a cena brutal. A vítima ficou gritando na rua diversas horas.

Finalmente, meu marido foi quem mandou levá-lo para um quartinho e, ali, sem o

menor recurso médico, o operou, retirando a bala. Com tamanho êxito que, oito

dias após, o homem estava no trabalho. Operações iguais a esta, e outras ainda

mais difíceis, ele fez inúmeras vezes para socorrer tanta gente pobre naquela Vila

atrasada, de população sem amparo.

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Quando ainda residia em Serro (1920-1926), meu marido ingressou no

antigo PR, levado pela amizade que o ligava ao meu distinto primo, Dr. Daniel de

Carvalho, quando este estava como Secretário da Agricultura. Neste partido ele

militou até 1959, data em que se transferiu para Belo Horizonte. Porém,

conservou-se fiel ao seu partido até o decreto de Castelo Branco que extinguiu os

partidos. Em Rio Vermelho, campo dos seus trabalhos e lutas, foi prefeito três

vezes, sempre acompanhando o seu partido PR. A primeira vez por nomeação, na

época da Interventoria em Minas, por indicação do Dr. Daniel de Carvalho. Na

segunda vez, foi eleito prefeito constitucional em 1947. Com imensos sacrifícios

fez os melhoramentos que os parcos recursos da prefeitura permitiram, numa

cidade em que não havia nada. Em 1955 foi eleito novamente. Conseguiu muitos

melhoramentos: canalização de enxurradas, que desmoronavam as ruas, fez

açougue e matadouro municipais, já havia terminado a estrada que liga Rio

Vermelho a Serro, Serra Azul e Itambé. Operou com grandes esforços para a

organização da primeira linha de transportes entre Serro e Rio Vermelho.

Reconstruiu o campo de aviação feito pelo segundo prefeito Dr. Paulo Penido. O

campo ficou abandonado pelos prefeitos que se seguiram. Iniciou serviços de

canalização de água e construiu diversas pontes dos rios Barreiras, Vermelho e

Brumado. Doou aos municípios três ótimas escolas rurais, com o prestígio que lhe

deu o seu ilustre amigo deputado Daniel de Carvalho. Criou muitas escolas

municipais nas zonas rurais e forneceu recursos para a alfabetização de adultos.

Iniciou a estrada de rodagem para o distrito de Mãe dos Homens, hoje

Materlândia, onde ele fez também grandes melhoramentos. Construiu prédios

para fórum e cadeia, jardim na praça, escadaria para o acesso à igreja e, ainda,

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mobiliou o Fórum, inaugurou a comarca e conseguiu a nomeação do primeiro juiz

de direito.

Na terra em que os livros eram raros, poucas flores, assim mesmo, ocultas,

no fundo dos quintais das casas, nem jardins públicos. O que não faltavam eram

armas de fogo suficientes para matar muita gente. Meu marido, no fim do

mandato, depois da votação dos vereadores, contratou um paisagista para

construir um jardim ao redor da matriz e do coreto e nomeou um jardineiro

permanente. Quando entregou a prefeitura, o jardim estava lindo. Pois não é que

os partidários do prefeito eleito acabaram com o jardim! Destruíram-no e puseram

animais a pastar na relva. Meu marido deixou flores para aquela gente.

Exploraram seu saber, seu trabalho, suas energias. Saiu de Rio Vermelho, após

tantas lutas e sacrifícios, depois de ser um médico, um dentista, cirurgião, e até

parteira. Serviços gratuitamente prestados até para os ricaços exploradores.

Levamos conosco as vozes da pobreza que após receber assistência, remédios,

alimentos, diziam: “Deus lhe pague”, “Deus lhe dê muito e aumente tudo para o

senhor”, “Deus acompanhe seus passos”. Foi o que nos restou depois de trinta e

um anos de vida em Rio Vermelho.

Apesar de morar numa terra de que não gostava, tinha, também, horas de

emoções alegres e felizes. Alegrias! O nascimento dos quatro filhos que vieram

completar a lista dos quatro filhos que nasceram na legendária cidade do Serro.

São recordações da infância e juventude dos meus filhos, emoções tão profundas

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que nestas obscuras anotações são difíceis de descrever. A época da meninice,

dos encantos inocentes dos filhos alegram o coração de uma mãe. No Rio

Vermelho, em 1930, foi inaugurado o grupo escolar Dr. Afonso Pena Júnior. Nesse

grupo sete filhos tiraram o diploma do curso primário, menos o último que só

cursou até o terceiro ano. Três filhos desejaram estudar e seguiram para

Diamantina onde cursaram o ginásio diamantinense. Saíam a cavalo, enfrentando

a Serra do Gavião, o chapadão, o frio, as chuvas, os rios cheios, dormindo ao

relento nas rancharias de tropa. Preocupava-me e me afligia com estas condições.

O meu consolo era subir ao alto do Rosário, onde tem a igrejinha de Nossa

Senhora. Ficava a olhar a água branquinha que corria da serra, lá muito longe.

Quando regressavam era uma festa recebê-los. Mais tarde, acompanhava com

prazer os casamentos de três filhos e recebia as auspiciosas notícias do

nascimento dos netos.

Dia seis de janeiro de 1944, depois de ter ouvido a Santa Missa,

encaminhei-me ao correio, a fim de postar uma carta para o meu filho Mário que

estava no Rio de Janeiro. Passei pela casa de sua noiva, Carolina Cunha

Barbosa. Ali recebi como um raio sobre a minha alma, a notícia do trágico

falecimento do meu filho Mário, tão cedo roubado da nossa convivência, causando

uma chaga incurável em meu coração. Naquele dia, postava uma carta, com trinta

cruzeiros velhos ou trinta mil réis, para chegar ao Rio antes do dia quinze, dia de

seu aniversário. Eu dizia para ele: é uma simples lembrança para comprar uma

gravata. Sua mãe é pobre, mas Deus lhe dará tudo o que você precisa. No

entanto, naquela data, ele não precisava de mais nada do mundo! Já o deixava

para sempre, deixando neste vale de lágrimas uma mãe desolada.

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Tudo passa e o tempo corre veloz e com ele a vida.

Coisa estranha, guardar tantas recordações de um lugar, uma região que,

ao conhecê-la, me causava pavor. Eu tinha receio até dos homens que, de

cabresto na mão e facão na cinta, perambulavam nas estradas perto da Vila.

Sobre essa pavorosa impressão tinha medo de passear nos subúrbios, com meus

filhos pequenos.

Em 1962, eu e meu marido voltamos a Rio Vermelho. Fomos visitar nossa

irmã, a boníssima Maria Cândida Moreira Autran, gravemente enferma. Ficamos

hospedados na casa do meu filho Paulo, no retiro da Laranjeira onde passei

dezessete dias com os meus netinhos filhos de Paulo. Na solidão da roça, num

cantinho silencioso da varanda, fiquei relembrando o dia trinta e um de janeiro de

1959 quando ali cheguei em companhia de Manuelzinho Vieira e o meu neto Tião.

Saindo da cidade, atravessamos, na escuridão da noite, o alto do Cruzeiro,

olhando a cidade, lá embaixo, no auge do regozijo numa folia infernal, festejando a

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posse do prefeito Milton Fróis. De longe, na escuridão dos morros, o espocar dos

fogos e as estrondosas festas, comemorando a posse de um novo mandatário

local. Calou-me bem profundo n’alma a ingratidão das criaturas. Como o mundo é

ruim! Todos aqueles que participavam daquela farra nem de longe se lembravam

que o antigo prefeito a quem se tornaram hostis não foi apenas uma autoridade,

mas o benfeitor daquela população. Um filantropo que deu metade de sua

existência para o bem de todos.

Na mesma varanda da casa da Laranjeira continuei a contemplar o rio

Barreiras, passando bem perto da casa, os morros cobertos de matos, a estrada lá

em cima, em frente ao retiro. De quando em quando, passava um jipe, um

caminhão, uns cavaleiros ou pessoas a pé. Outros atravessavam a ponte sobre o

rio Barreiras, ponte esta construída na época em que o meu marido era prefeito.

Tivesse eu competência e palavras para exprimir o que sentia, daria para escrever

uns livros. Nas minhas divagações eu vi o caminho da madragoa, da chacrinha, do

Magalhães, por cuja estrada chegamos a Rio Vermelho em 1927. O caminho do

alto da Barra, do Paiol, por onde passava Zezito indo para sua residência e eu

ficando de longe, a grande distância, até vê-lo sumir na curva do Jota, cavalgando

um cavalo alazão, com sua roupa cinza. E qual era, naquele momento, o meu

pensamento? Em que hora ele chegaria em sua casa? Na minha imaginação via a

ponte do rio Barreiras, no subúrbio da cidade onde morou minha filha Neli: vi meus

netinhos correndo para me encontrar, o que sempre acontecia quando ali eu ia

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passear. Assentávamos nas madeiras em frente da casa. Imaginei, e na mente, eu

vi a margem do Barreiras onde meus filhos nadavam, onde Mário passava horas

inteiras de anzol na mão, fumando o seu cachimbo para espantar os mosquitos.

De noite, ele chegava todo alegre quando trazia uns piaus ou traíras. Quantas

vezes ele mesmo ia prepará-los. Vi, lá distante, o cruzeiro colocado no morro todo

cheio de fendas (voçorocas). Nas noites escuras enxergavam-se as velinhas

acesas em cumprimento de promessa. Volvi meu pensamento ao alto do Rosário,

lá também existe outro cruzeiro, numa praça de graminhas verdes, nas

adjacências da igrejinha de Nossa Senhora. Vi o meu saudoso filho, com a gaiola

na mão, para apanhar pintassilgos. Era a sua distração predileta nas férias. Nas

tardes de verão o alto do Rosário era o ponto favorito dos casais de namorados.

Rapazes, moças e crianças brincavam até o sol sumir, com suas cores de ouro.

Revejo a Serra do Gavião que me faz pensar nos estudos dos nossos filhos em

Diamantina. Cada ano da existência humana é cheio de episódios tão imprevistos,

tão diferentes, sempre misturados de doçuras e amarguras. Gostaria de expressar

essas impressões, mas cursei apenas três anos numa escola normal, em início

quando era ainda tão deficiente o ensino, isso em 1911. Livre da catarata que me

tampava os olhos continuo na minha mania de escrever, fazendo disso uma

distração, um passatempo. Vou alegrando-me com as alegrias dos filhos e dos

netos, estas criaturinhas inocentes que desabrocham para a vida e amenizam com

seus sorrisos e encantos a vida dos mais velhos. Se não fora esta geraçãozinha

alegre, os avós morreriam de solidão.

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Tanto eu desejava que meu marido escrevesse suas memórias,

transportasse para o papel o que lhe ferisse a alma e procurar na recordação do

passado, ora bom, ora ruim, triste ou alegre, a distração, o alívio do viver de cada

dia. Os jovens vivem de esperança, os velhos de recordação.

Política de interior atrasado, que comecei a conhecer em 1931. Os três

primeiros anos que passamos no Rio Vermelho, sem manifestação de crédito

político, foram três anos de paz e harmonia, com toda a população. A nossa casa

era frequentada por gregos e troianos. No início da nossa vinda quem ficou meio

arredio foi o coronel Bernardino Carvalhais, chefe de uma das correntes locais,

que mais tarde, astuciosamente, conseguiu a adesão do dentista ao seu partido.

Antes da nossa chegada na Vila, existiam dois partidos de acirradas inimizades.

As denominações deles eram ridículas: Tanajura e Formigão. Formigão era o

partido do vigário Padre Francisco de Paula Câmara. Seus adeptos seguiam a

política do Dr. Coelho e Joaquim de Sales. O partido Tanajura, do coronel

Bernardino dos Santos Carvalhais e seus companheiros, que seguiam a

orientação do coronel Jacinto de Magalhães e Castro e Dr. Augusto Clementino,

do Serro. Era uma política de divisão tão grande que tudo em Rio Vermelho era na

base da separação. As festas eram separadas, bailes, casamentos, piqueniques,

e até as festas religiosas. Formigão não entrava onde reunisse Tanajura, embora

Tanajura seja da família do Formigão. O ideal de um partido era hostilizar o outro,

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debochar, perseguir e até insultar. Por isso não é de se admirar que tais

mentalidades ainda venham reinando até hoje nos partidos políticos.

A educação política errada e a orientação defeituosa dos primeiros tempos,

em Rio Vermelho, ainda existem numa população que, atualmente, já é de uma

comarca. Política de bagunça, de atritos pessoais, de ódios, de vinganças e

perseguições. Em 1930, quando governava Getúlio Vargas, em Rio Vermelho

formaram-se os partidos PSD e PR. Nessa data, o coronel Bernardino, homem

ativo, de maior cultura e visão, percebeu, reconheceu que o dentista baiano, com

apenas três anos de atividade naquele distrito, já reunia um grande prestígio

popular. Uma espécie de fanatismo daquela gente por ele. Manobreiro como era o

coronel, planejou logo um meio de laçar e prender o dentista. Tudo fez com a

maior diplomacia, sem deixar transparecer que, o que fez, não era e nem seria o

desgaste de seu prestígio e de sua popularidade. Quando, em julho de 1931,

regressávamos de Paulista onde passamos um ano, o coronel reuniu a população

e organizou uma recepção que parecia a chegada de um bispo no interior.

Mandou uma comissão até Paulista e, na estrada, a uma légua de distância da

Vila, já começamos a encontrar cavaleiros que formavam uma fila interminável,

tendo à frente o coronel, o seu irmão Santos Carvalhais, Dr. Bernardo Café, seu

sobrinho, e o médico baiano, Dr. Albano. A Vila encheu de gente como em dias de

festas locais que deslocavam toda a população rural. Mas o plano estava

realizado para a adesão do dentista ao partido do coronel e, desta forma, o

afastamento dele do outro elemento local; porque onde tivesse gente da

agremiação dos Carvalhais, o pessoal do Padre Câmara afastava-se. Ao

chegarmos à nossa residência na rua Direita, hoje Marechal Dutra, em meio de

uma palestra amistosa, foi logo apresentado um livro com a ata de uma reunião do

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partido PR, já colocando o homenageado como vice-presidente do partido e o

coronel como presidente. E, dessa hora em diante, Deus sabe as lutas, as

batalhas políticas, as inimizades; os aborrecimentos começaram. Foram um pouco

moderadas enquanto continuou a ditadura de Getúlio Vargas. Mas em 1933 ou

1934 houve uma eleição agitada, na qual meu marido deu, pela primeira vez, a

maioria ao Dr. Daniel de Carvalho. Com a elevação da Vila a Cidade, em 1938,

cada partido queria ter prestígio para a nomeação do primeiro prefeito. Na

nomeação do Sr. Serafin Balsamão, primeiro prefeito, embora não fosse por

influência do partido do coronel, este tomou a frente de tudo: recepções,

colocação de elementos seus na prefeitura e, finalmente, queria, com a mão do

prefeito (homem viciado no álcool) perseguir e oprimir os adversários. Porém, não

demorou a romper com este primeiro prefeito, sempre na ambição do mando.

Assim, foi continuando essa luta competitiva entre os dois partidos. Com a morte

do Balsamão, foi nomeado segundo prefeito Dr. Paulo Penido, médico. Pessoa

completamente desconhecida do pessoal de Rio Vermelho. Com o tempo, passou

a ser prestigiado pelos políticos contrários ao coronel e seus adeptos. No seu

discurso de posse enumerou os melhoramentos que pretendia realizar e afirmou

que iria construir um campo de aviação e que, em breves dias, os aviões

cruzariam os céus de Rio Vermelho! Um político velho, radicado há muitos anos

no município, um desses incrédulos, nos melhoramentos prometidos pelo prefeito,

disse assim: o prefeito falou muito bonito, mas numa parte cantou como um galo.

“Aviões cruzando os céus de Rio Vermelho” é uma promessa ridícula. No entanto,

o Dr. Paulo Penido botou mãos à obra e antes de três meses era um fato, uma

realidade. O povo reunido escalava o morro do Cruzeiro e ia se juntar a outras

pessoas, no grande campo, e assistiam à aterrissagem e à saída do primeiro

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avião que ali baixou. Até eu, aos quarenta e cinco anos, não tinha visto um avião,

pois só conheci a capital mineira em 1953, quando já era vovó. Este campo tem

proporcionado benefícios à população sem recursos médicos. Quantos doentes,

em estado grave, são transportados para Belo Horizonte, onde se recuperam. Os

dois prefeitos que o substituíram deixaram o campo de aviação em completo

abandono. Só foi reconstruído na gestão do meu marido. O prefeito Paulo Penido

ainda conseguiu organizar na sociedade local um grupo de acionistas para

inaugurar a luz elétrica na cidade. Não sendo um rio-vermelhense deixou sua

administração com dois grandes melhoramentos que marcaram sua passagem de

dois anos e tanto na prefeitura. Mas o coronel Bernardino Carvalhais, que não

diminuía o desejo de ser o mandachuva em sua terra natal, arranjou denúncias e

muitas ameaças ao prefeito. A instalação da luz não foi fácil, pois o prefeito teve

de travar uma batalha, para conseguir, da Dona Lia Carvalhais, a doação da

queda d’água para montar a usina. Depois dos grandes esforços deste prefeito

atuante, após trabalhar energicamente para organizar a companhia, ele foi

duramente decepcionado no dia da inauguração da luz. Toda cidade enfeitada,

povo reunido junto ao coreto, onde iam ser pronunciados os discursos. Um

farmacêutico foi o primeiro orador e na sua oração só falou na atuação do médico

Dr. França Júnior. Elogiou esse médico como o benfeitor de Rio Vermelho, como

doador daquele melhoramento. O Dr. Penido, sentindo-se moralmente ofendido e

injustiçado, guardou o discurso que ia pronunciar, silenciou-se e se retirou para

sua residência e, no dia seguinte, viajou para Belo Horizonte. Finalmente, a

prefeitura caiu em mãos do coronel Bernardino que fez um governo agitado, de

perseguições aos inimigos, de abandono às classes pobres, de desconsideração

aos amigos e companheiros, até aos mais dedicados e sacrificados, inclusive, o

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homenageado de 1931. Meu marido tudo sacrificava como amigo e companheiro.

Arriscava perigos contra a sua vida no meio de uma política, nascida e criada no

rancor e no ódio. Foram correndo os anos e a prefeitura, de tempos a tempos,

mudava de prefeito. Tudo nas gestões de interventores em Minas.

Em 1945, o coronel foi substituído e perdeu todo o seu prestígio. A

prefeitura continuou de leilão em leilão, cada ano um prefeito. Em janeiro de 1947,

foi nomeado prefeito o meu marido. Em abril do mesmo ano renunciou, para se

desincompatibilizar. Concorreu nas eleições do mesmo ano, foi eleito primeiro

prefeito constitucional do município.

A máquina política de Rio Vermelho era, e ainda é, de tal forma que, o

demônio, se viesse em pessoa neste mundo, não quereria ser candidato, nem

suportaria o peso do eleitorado mal educado, mal acostumado e traidor. Muitos

anos antes da eleição, o candidato tornava-se o burro de carga dos eleitores,

como fazia o meu marido. Arrancava dentes de graça, tratava os doentes, rasgava

tumores, encanava pernas e braços quebrados, tirava bernes nas cabeças e nos

olhos das crianças, assistia às parturientes e fazia uma série de tratamentos, que

até uma turma de médicos do pronto socorro não aguentaria!

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Quando se aproximava a eleição, o candidato pagava professores

ambulantes, fornecia papel, tinta e lápis para ensinar eleitores da roça e, muitas

vezes, até da cidade. “Aprendiam” a rabiscar seus nomes e fazer com eles a

petição ao juiz eleitoral. E para receber os títulos? Se fosse em outra cidade, havia

de se organizar as viagens, pagar pensão para os novos eleitores e, ainda, cuidar

da situação financeira de suas famílias. Se fosse na comarca local, a obrigação de

dar comida, café para cada turma que vinha e voltava. O candidato ia aguentando

o peso das explorações até chegar o dia da eleição. Esse dia era de matar a

paciência de Job. Pagar o registro de todo o pessoal, alistando até os filhos deles.

Preparar o tal quartel (alojamento) dos eleitores, a comedoria que funcionava no

dia da eleição era um dos pesadelos e um fardo do candidato: um boi morto, uns

dois sacos de arroz, uma saca de feijão, um saco de macarrão, umas oito arrobas

de toucinho, um alqueire de café para torrar, uma carga de rapadura, um saco de

farinha, umas duas dúzias de queijo, sem falar no sal e tempero para este montão

de coisas. Depois, mais de quatro cozinheiros para prepararem toda essa

comilança. E, no fim da festa, tudo isso não era suficiente para encher a barriga

dos eleitores e, também, da massa que invadia a casa do candidato dia e noite,

pedindo comida. Quem quiser vingar-se de um inimigo mande que ele se

candidate a prefeito de Rio Vermelho. Se suportar esta tarefa, uma meia dúzia de

anos, se tiver algum crime, pagou tudo e Deus lhe dará a entrada no céu. Eu

posso afirmar isto porque senti em minha carne, as agruras dessa política de lutas

inglórias. Mas os que já nascem com o germe da política no sangue não

enxergam os trabalhos e nem os sacrifícios, tornam-se fanáticos pelas lutas.

Outro fato curioso é que o candidato vitorioso tinha, ainda, a obrigação de

saturar o povo de bebidas. Cada eleitor vinha pedir o vinho da vitória e os foguetes

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para festejarem a alegria do triunfo. A bola preta da política do Rio Vermelho era a

dramática covardia, as traições dos eleitores, que exigiam os maiores sacrifícios,

quase impossíveis, do candidato, e no dia da eleição votavam contra.

Apenas escrevo o que vi e assisti no Rio Vermelho. Deixo para trás

inúmeros pormenores que não valem a pena descrever e nem eu tenho

inspiração. Ainda um detalhe interessante das eleições em Rio Vermelho.

Deputados que eram candidatos, sustentados pelos votos do meu marido, e que

obtinham sempre maior votação no município, nunca o auxiliaram nas renhidas

campanhas financeiras. Não compreendiam o peso de uma eleição no interior.

Destes deputados, o que fez exceção foi o distinto amigo e parente, Dr. Daniel de

Carvalho. Mesmo não financiando despesas, era pronto, leal e esforçado, servindo

com presteza em todas as ocasiões que reclamassem sua intervenção, seu

prestígio, sua ação de companheiro leal e firme do PR. Nunca em situação difícil,

perante seus munícipes, deixava o prefeito sem apoio. Na maioria dos casos, o

chefe político fazia os maiores sacrifícios e lutas pelos candidatos - uma escada

para eles galgarem seus postos e aquele, sacrificado, ficava debaixo dos degraus da escada, carregando vinho e bebendo a água amarga das consequências

políticas.

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Com seu espírito humanitário, Zezinho (apelido do meu marido) socorreu

muitos pobres, promoveu melhorias de vida para muita gente, proporcionou meios

do ganha-pão para inúmeros trabalhadores, beneficiou gregos e troianos, salvou a

vida de muitas parturientes, sem olhar a cor política, levado unicamente pelo

espírito de humanidade. Tratava crianças mendigas, dando-lhes remédios e

alimentos, numa zona onde dominava a verminose. O caso de espantar é a ação

dos abastados fazendeiros, esses amontoadores de fortuna que eu chamo de

exploradores. A chamado deles, Zezinho viajava a cavalo cinco a seis léguas por

estradas péssimas, debaixo de chuva, quantas vezes, à noite, para atendê-los, às

suas famílias e aos seus empregados, sem lhe pagarem um tostão. Davam-lhe, às

vezes, um queijo de presente.

Quando, em 1927, chegamos à vila de Rio Vermelho, ali já residia, há

vários anos, um sapateiro serrano: Ulisses Carreiro, um ardoroso adepto do antigo

partido Tanajura. Era um carrapato, um pó de mico para seus adversários.

Tornou-se amigo inseparável de Zezinho. Depois de certo tempo, tornou-se o filho

mais velho de nossa família. Tinha a obrigação forçada de mandar minha

empregada, e até meus filhos, todos os dias, buscarem os pratos sujos e lavá-los

e levá-los prontos com o almoço. Mandar chás e mingaus quando ele adoecia,

comprar remédios, aplicar injeções e até levar roupas sujas à lavadeira. Essa

tarefa durou uns quinze anos. Em 1945, quando meu marido, por motivos justos,

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separou-se da política do coronel; o sapateiro do Serro, que era um amigo, e

companheiro do partido Tanajura, cujo chefe era Bernardino Carvalhais, preferiu

ficar ao lado do coronel e se esqueceu de que, durante quinze anos, foi o filho

mais velho da família Utsch Moreira. Como a palavra política em Rio Vermelho era

a causa das divisões, ele tornou-se até inimigo gratuito da nossa família.

Em Rio Vermelho, eram muito interessantes os costumes das amigas e

vizinhas e das suas incumbências. O meu filho Paulo era o mais perseguido e a

maior “vítima” destas obrigações extras. Em frente à nossa casa residia uma

senhora de muita intimidade conosco e não deixava o Paulo ter sossego com

tantas amolações. Quase todos os dias, chamava-o para levar tabuleiros com

pães e roscas para o armazém do marido. Como gratificação ou gorjeta dava ao

Paulo uma rosca que eles chamavam “pelota” e que naquele tempo custava

quinhentos réis. Na presença da proprietária dos tabuleiros, ele se prontificava

amavelmente, ainda que estivesse se roendo de raiva. Quando chegava a casa,

desabafava à vontade. Aconteceu que um dia, quando ele, em voz alta, fazia seus

desabafos e mandava uns tantos nomes feios, reclamando de tantas importunas

incumbências, a dona dos tabuleiros foi chegando e o apanhou em flagrante.

Paulo avermelhou, ficou todo embaraçado, desculpou-se como pôde. A vizinha riu

a valer, levou o assunto em brincadeira e não deixou Paulo em paz. Por muito

tempo ainda continuaram as viagens de tabuleiros.

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Lembrando acontecimentos ocorridos em Rio Vermelho, preciso recordar,

também, uma companheira de meus trabalhos cotidianos, da auxiliar que, com

muito carinho, me ajudou na criação de quatro filhos menores, a bondosa Luíza

Ramos que conosco morou sete anos. Era a amiga querida do meu filho Paulo,

que a chamava de Nuiza. Ele estava com oito meses quando a mesma foi para

nossa companhia. Sempre carinhosa e paciente com meus filhos, era quem os

velava quando eu adoecia. Eu, vivendo numa terra estranha, tão longe dos meus

familiares, que seria de mim, se não fora uma alma boa como essa que Deus me

mandou? Na ocasião das festas, jogos, recepções às personagens ilustres, que

chegavam de fora, piqueniques, etc, quando toda a população da cidade se

aglomerava nos pontos das reuniões; eu e Luíza ficávamos na solidão da nossa

casa, trabalhando e cuidando das crianças. Assim passaram sete anos. Luíza

continuava bondosa, dedicada, como se fora uma pessoa de nossa família.

Depois se mudou para Diamantina para a companhia de seu padrinho Serafim

Vieira e, naquela cidade, ela se casou. Atualmente, já com a família criada, reside

em Belo Horizonte e quando nos encontramos, é só recordação do tempo que

passamos juntas.

A nossa casa em Rio Vermelho era o abrigo de quem, em circunstâncias

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difíceis, precisasse de um apoio, de uma garantia. Assim aconteceu com uma

distinta senhora, nossa grande amiga, Luci de Campos Carvalhais. Abandonada

por um cruel marido, depois de se abrigar um mês em casa de um primo, resolveu

pedir para mandarmos buscá-la para nossa companhia. Foi Zezito (o meu filho

mais velho) que, cavalgando seu cavalinho alazão, chegou com ela, à noitinha, em

nossa casa. Ela acomodou-se e permaneceu seis meses conosco como se fora

uma boa irmã. Ajudava a cuidar de meus filhos, costurava o dia todo para ganhar

algum dinheiro e, à noite, costurava para minha família. Quantas noites passamos

ao redor de uma mesa, ela costurando e eu arrematando costuras, aproveitando

as horas silenciosas da noite, quando todos dormiam. Narrava um rosário de

amarguras e crueldades do marido. No fim, tanto chorava ela como eu... Assim, a

sua grande mágoa era ser privada dos dois filhinhos que ele, por perversidade,

afastou dela. Durante os seis meses em que ela permaneceu conosco, fez

economia e, numa madrugada, despediu-se chorando. A cavalo, seguiu para a

casa de sua mãe em Sabinópolis. Lá em casa, no dia de sua partida, reinou uma

tristeza geral. Ela sempre falava comigo: seus filhos me consolam na ausência

dos meus, principalmente, Neli e Lourdinha que dormiam junto a ela e a

chamavam Titi. Mas quem sofre com Deus, vence e recebe a palma da vitória.

Assim, essa amiga teve a força necessária de passar chorando pelos altos morros

que circundavam sua morada, onde estavam os dois filhinhos. Seguiu, caminho

fora, idealizando alcançar recursos para readquirir os filhos. De Sabinópolis seguiu

para Ponte Nova, onde morava um irmão e, dali, para Belo Horizonte. Trabalhou

até como empregada doméstica e, tempos depois, pela lei, obteve os filhos, criou-

os, educou-os. De longe nos comunicávamos, mas só a vi, uma vez, em 1953. Em

1970, faleceu e eu soube muito tempo depois.

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Nas minhas anotações dos acontecimentos em Rio Vermelho, falei diversas

vezes na estrada do Magalhães. O que é o Magalhães? É um povoado quase

ligado à sede da cidade e, antigamente, possuía mais de cem casas. O nome

Magalhães foi dado em homenagem, em memória do rico português, chamado

Magalhães, o doador da grande fazenda, de ótimos terrenos, destinados aos sem

terra. Aí se instalou o povoado. Os terrenos desta fazenda foram doados à

Paróquia de Nossa Senhora da Pena, de Rio Vermelho, para uso e fruto da

pobreza. Então, para ali convergiram diversas famílias, na totalidade pobres. Cada

um edificava uma casinha de telha ou de esteira de taquara, conforme suas

posses, seus recursos financeiros. Fechavam de arame, de madeira e até de

bambu, uma área de terras junto às suas casinhas, ali formavam a lavoura de

cana, café, banana, mandioca, frutas, cereais e tudo mais para sua manutenção.

Dessas inúmeras lavouras, o pessoal do povoado abastecia a cidade de verduras

com muita abundância. Para povoar os terrenos da fazenda, várias famílias do

norte de Minas e da Bahia vieram. No meio dessas famílias veio um nortista

mineiro, lá nos limites com a Bahia, Marcolino Machado, um verdadeiro tipo

sertanejo. Analfabeto, mas muito inteligente, narrador de histórias antigas,

trabalhador e, sobretudo, franco, sincero, leal. Na pequena área de terra que ele

conseguiu, criou três famílias, pois foi casado três vezes. Residia numa chacrinha,

onde possuía uma casinha de telha, boa plantação de café, cana que moía na

engenhoca, terras ótimas para a plantação de arroz e, também, para manter umas

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vaquinhas leiteiras. Íamos sempre em sua residência, onde todos os anos

comemoravam a festa de Santo Antônio, com uma fogueira e levantamento do

mastro, com a bandeira do santo. E uma fogueira também. Ao término da festa,

ofereciam um cafezinho com as gostosas roscas da rainha. Esse sertanejo tornou-

se um grande e leal amigo do meu marido. No povoado ele era um chefão político,

controlava tanto o eleitorado, que ali era núcleo coeso ao partido do PR. Ele era

de fato um amigo incondicional. Lembro-me muito bem de uma eleição

agitadíssima, em 1934, em que meu marido foi mesário. A Vila encheu-se de

boatos alarmantes, de ameaças, porque o partido sempre dominante e sempre

majoritário estava receoso de perder. Diziam que se perdessem, apelariam para

arbitrariedades e para a violência. Os trabalhos eleitorais prolongaram-se até alta

noite. Num recinto da seção estava o meu marido organizando as atas da eleição.

Os seus correligionários, cada um, cuidando de defender a sua pele, foram-se

retirando. Deixaram sozinho o meu marido. No entanto, sem ninguém saber, sem

alarme, lá estava o amigo rústico a vigiar atentamente qualquer movimento de

arruaça ou violência que pudesse atingir o seu amigo baiano. Só deixou aquele

recinto depois de tudo terminado, às duas da madrugada, quando conduziu o meu

marido à nossa morada. Amigos dessa lealdade, no mundo atual, contam-se

poucos.

Certa vez, o velho sertanejo trabalhando em sua lavoura feriu o dedo do pé

com um espinho de cobra morta. O dedo infeccionou e gangrenou, chegando à

urgente necessidade de amputar o pé. Quem foi seu médico assistente, que

ajudou a operá-lo e o assistiu a noite inteira? Foi o amigo cuja vida ele protegeu

no dia da eleição perigosa em 1934. O bom sertanejo salvou-se da operação,

viveu até os oitenta dois ou oitenta e quatro anos, sempre amigo e amigo dos

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meus filhos.

Atualmente, este povoado, Magalhães, que era o celeiro abastecedor da

Vila, está quase transformado em retiro de fazendeiros pecuaristas. Chácaras bem

cuidadas, bem cultivadas, hoje são pastagem de gado. Os moradores antigos,

quase todos já faleceram e as gerações novas saíram à procura dos progressos

de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Paraná. Assim, as terras que

seriam para uso e fruto da pobreza perderam a população que cuidava da lavoura

e cresceram os retiros de gado, com poucos habitantes.

Ao relembrar pessoas e fatos de Rio Vermelho, não poderei esquecer a

figura de uma distinta senhora que ali residia há muitos anos, antes da nossa

chegada. Essa senhora era a dona Enedina Café Carvalhais, esposa do coronel

Bernardino. Senhora de muitas virtudes, filha de uma destacada família de

Guanhães. Foi viver em Rio Vermelho porque se casou com um rio-vermelhense.

No início de sua vida ali, estranhou tanto o ambiente que, conforme teve ocasião

de me falar, chorava continuamente. O seu marido, coronel, homem de certa

instrução, da geração dos ex-alunos do Caraça, era rico, filho e herdeiro de

Bernardino dos Santos. Pôde assim proporcionar, à sua esposa, conforto, que

naquela região não existia. Construiu uma confortável fazenda, de modo que, essa

bem organizada propriedade era o ponto chique, o lugar adequado para festas,

hospedagens e recepções às pessoas ilustres que raramente chegavam àquelas

plagas. O primeiro médico que apareceu em Rio Vermelho foi em 1929, um

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médico baiano, Dr. Serra, trazendo em sua companhia uma senhora alemã. O

motivo da vinda deste médico não se sabe, talvez para se esconder de alguma

coisa errada, naquele interior, sem o menor conforto. Para chegar a Rio Vermelho,

em 1929, havia de enfrentar muitas léguas em lombo de burro e por estradas que

pareciam caminhos de bicho. A família Café Carvalhais recebeu-os com toda a

hospitalidade e conforto da fazenda. Ofereciam-lhes altos banquetes. Forneciam

leite, frutas e verduras. Faziam da casa do médico o ponto de prosa e distrações

do coronel e de seus familiares e companheiros. Porém, como amizade de

aparência e ostentação dura pouco, no fim de um ano, estavam brigados e o

coronel convidou outro médico baiano, Dr. Albano para competir com seu

conterrâneo. Assim, Dr. Serra arranjou as malas e pirou-se.

Minhas relações com dona Enedina eram cerimoniosas e apesar dos

convites que me fazia para visitar sua casa, eu sempre recusava. Até que um dia,

com muita insistência, ela me convidou para ir ao jantar de gala em homenagem

ao médico que tratou da doença do coronel. Organizaram um banquete

cerimonioso. Ela traçou o programa da festa e com muitas auxiliares, executou-o

brilhantemente, fez convite quase geral, mas de um modo particular, aos políticos

de mais destaque que eram os baluartes do seu marido. Assim, lá em casa, além

do convite, houve uma ordem da presença do Zezinho que iria ocupar um lugar de

honra, sentando-se à cabeceira de uma mesa. Dona Enedina foi pessoalmente me

convidar para a festa de arromba à noite. Eu e minha vizinha Helena fomos

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recebidas e colocadas no corredor, à espera de que ela nos levasse para o jantar.

A sala de jantar, com cinco mesas, estava ricamente ornamentada. No centro da

sala, a mesa do médico aniversariante. Nas outras mesas, cada convidado tinha o

seu lugar marcado por um cartão com seu nome, dentro de um copo, com um

guardanapo e uma flor. Serviam o jantar à moda dos clubes granfinos, os garçons

eram os filhos do coronel, com os trajes próprios. Bernardo e Wellington.

O meu marido foi um dos primeiros a chegar. Eu, que vivia sempre

atarefada, com os afazeres da casa, só pude comparecer mais tarde. Quando

cheguei a casa já estava super lotada. Entreguei os filhos a uma babá da

confiança de Dona Enedina, pois não pude deixá-los em minha casa, por não ter

pessoa de confiança que os vigiasse. Os convidados na sala de jantar já se

acomodavam, tomando cada um o seu lugar; meu marido já ocupando o seu posto

de honra, na cabeceira de uma mesa. Eu e minha amiga ficamos sem lugar na

mesa do banquete e nos acomodamos no corredor, adjacente à sala. Ali ficamos

como figura de papelão, escutando os discursos e o espocar do champagne e

engolindo a língua. Dado momento, veio a dona da festa, talvez para dar uma

desculpa esfarrapada e nos disse: eu faço questão de vocês jantarem comigo.

Permanecemos no dito corredor até por volta das vinte e três horas, quando, ao

bater de palmas, entrou o aniversariante na sala do baile e dançou a primeira

valsa com uma senhorita, que saiu sorteada para essa incumbência e assim

iniciou o baile. Que é que eu fiz? Procurei meus filhos e, sem dar a menor

satisfação, retirei-me para minha casa, nem sei se deram pela minha falta. Lá

ficou o meu marido. Esse episódio serviu de lição para que nunca mais

comparecesse nas reuniões da dona Enedina. Até hoje, com os meus setenta e

quatro anos, eu lembro-me deste acontecimento. Sinto que a falta, a desatenção

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não foi somente dos organizadores da festa. A culpa cai também numa outra

pessoa, mas para quê dizer o seu nome! Naquele dia esta pessoa estava

empolgada, talvez, até anestesiada pelas bajulações que cegam os espíritos

pouco penetrantes e pouco observadores.

Passados muitos anos, eu assisti a fatos dolorosos na vida dessa senhora

Café, que, no meu modo de pensar, foi a criatura que mais sofreu e mais chorou

em Rio Vermelho! Depois de inúmeras tragédias em sua família, em 1949, todos

se afastaram de Rio Vermelho, inclusive ela que veio para Belo Horizonte, com o

esposo gravemente enfermo. O coronel faleceu depois de dois anos de terríveis

sofrimentos. Sua rica propriedade, aquela vivenda encantadora, outrora centro de

alegrias, foi desmoronando, se acabando e desapareceu por completo. Se o

antigo frequentador das selecionadas festas da Granja São Vicente, como era o

seu nome, ali voltasse, com espanto diria: “aqui passou um dilúvio, um furacão ou,

então, era um palácio encantado que as bruxas destruíram!”. Quão passageiras

são as glórias do mundo, acabam como uma bolha de sabão, como uma fumaça

tocada pelos ventos.

Aos acontecimentos de Rio Vermelho está ligado o nome de um

personagem respeitável que ali residiu cinquenta e tantos anos. Foi um dos

políticos mais radicais e atuantes naquela localidade. Esse personagem é o padre

Francisco de Paula Câmara, sacerdote de severas atitudes, de rígidos costumes,

o que era peculiar aos sacerdotes do outro século, não permitindo intimidades

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femininas em suas residências. Quase nada sei narrar da figura desse ministro de

Deus que batizou quase a totalidade daquela população: pais, filhos e netos,

muitos dos quais, no futuro, se transformaram em seus adversários políticos e até

em seus inimigos pessoais. Era, em Rio Vermelho, um político de firmes atitudes.

Amigo de seus amigos e correligionários, intransigente para seus adversários, dos

quais ele procurava evitar as presenças, pois adversário político significava

inimigo. O lema era esse: quem não é comigo, é contra mim. Até o vigário, padre

Câmara, rezava nesta cartilha.

Em Rio Vermelho, logo após nossa chegada, ele foi contratar serviço

dentário com Zezinho, exigindo um horário especial, de modo a não se encontrar

com ninguém. Ele também sofreu em sua carne as consequências da baixa e

maligna política, nascida e criada no ódio, rancor e vingança. Em 1930, data das

primeiras manifestações políticas de meu marido, trabalhando contra o candidato

do vigário, deu-se o seu esfriamento, o seu afastamento da nossa família. Tudo se

transformou, no futuro, em inimizades pessoais com ele e seus familiares. Já

depois do falecimento do padre Câmara, os elementos que se batiam em renhida

oposição se uniram por algum tempo. União dos elementos do padre Câmara à

corrente do dentista baiano. Daí aconteceu a perda do prestígio do coronel

Bernardino.

Da aproximação dos eleitores do padre Câmara, começaram as relações

amistosas, as intimidades das duas famílias: Câmara e Moreira. Resultado das

relações amistosas, deu-se o entrelaçamento das duas famílias e hoje, 1968, já

temos dez queridos netinhos Câmara Moreira.

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Não posso deixar em esquecimento uma pessoa que foi minha amiga do

peito e, em muitas circunstâncias, fez para mim o que faria uma boa mãe. Essa

criatura, cuja memória conservo e prezo, é a dona Carlota Vieira, madrinha do

meu filho Afrânio. Conheci essa senhora quando ainda residíamos em Serro. Foi

ali minha vizinha e pude reconhecer, de perto, as suas boas qualidades. Católica

fervorosa, praticante dos ensinamentos de Jesus, dispensando sua caridade aos

conhecidos, aos amigos e até aos desconhecidos. Bastava saber que havia algum

doente desamparado para ir prestar-lhe seu serviço, dar-lhe remédios e assisti-lo.

Quando nasceu o meu primeiro filho, esta amiga prestimosa foi quem substituiu

minha mãe. Tomou conta da criança e me zelou como uma dedicada enfermeira,

passando as noites comigo e cuidando de minha casa. Quando, em 1927, cheguei

em Rio Vermelho, lá encontrei essa velha amiga residindo numa fazenda perto da

Vila. Tempos depois, transferiu-se para a Vila com o esposo e dois filhos e

continuou nossa amizade sincera. A Lília, sua filha, seu irmão Levi, reunidos em

nossa casa, tocavam cavaquinho e violino, cantavam O Jeca, sua canção

predileta, e eu apreciava muito essa orquestra improvisada. Mas de acordo com o

meu julgamento, sendo o Rio Vermelho um pedacinho do purgatório para as

mães, essa bondosa senhora sofreu também um pouco dessas penas expiatórias.

Viu o seu filho preso, chicoteado pela polícia em Rio Vermelho, numa época em

que não se sabia quem mandava ali. Quem figurava como chefe era o padre

Câmara. Após vários incidentes dolorosos em sua família, mudou-se para

Diamantina, onde faleceu. Atualmente, 1968, residem na capital mineira seus dois

filhos e conservam para conosco a herança da amizade de sua boníssima mãe.

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Amizades sinceras permanecem através dos tempos, de família em família. Nem o

passar de longos anos destrói a amizade. Amiga, é uma palavra muito

pronunciada, muito usada socialmente, coisa difícil de se encontrar neste mundo.

Nessa longa caminhada de setenta e cinco anos vividos em diferentes lugares, em

cantos solitários de roças, em cidades, em colégios e convento, posso dizer,

convivi com muita gente, ouvi muitos cantos de sereias, mas, realmente amigas,

encontrei poucas.

Amigas também, ainda do tempo do Serro, foram dona Henriqueta Lessa

Ferreira Pinto e sua filha Custódia Ferreira Pinto. Dona Henriqueta foi a madrinha

do meu filho Mário. Esta senhora era parente do grande pesquisador, o veterano

da Guerra do Paraguai, o Alferes Luiz Pinto. Consideravam-nos como parte da

sua família. Adoravam meus filhos e a eles davam todo o carinho e afeição.

A minha cunhada, dona Cândida, era uma alma santa. Veio morar em Rio

Vermelho junto de nós. Fomos felizes com este convívio. Dona Cândida, apesar

das “travessuras” do marido, perdoou-lhe as faltas cometidas e suportou-o até o

fim da vida. A minha cunhada veio dividir comigo o desconforto e o desprazer de

morar em Rio Vermelho. Para mim era um exemplo de espiritualidade, fortaleza e

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confiança em Deus. Ninguém mais do que ela detestava o tipo de vida do povo

rio-vermelhense. No entanto, suportava tudo, alegre, sem ninguém perceber seus

sentimentos. Dona Cândida, como eu a chamava, filha de uma grande capital,

Salvador, criada com conforto, soube suportar as agruras da vida, as dificuldades

financeiras, a perda da filha querida. Certa vez, conversando com uma filha de

Dona Cândida, missionária da Imaculada Conceição, ela me disse: não tem

sofrimento neste mundo que minha mãe não tenha experimentado! Como viveu,

morreu, pois nos seus últimos momentos, não aceitava remédios que aliviassem

suas dores. Dona Cândida, alma santa, lá da celeste ventura, lembre-se de mim!

Frágil criatura ajuda-me até o fim...

O filho mais velho arretou uma chácara, distante uns três quilômetros da

cidade, era este o meu passeio obrigatório. Eu, com meus filhos pequenos,

fazíamos este passeio semanal. Íamos a pé, muitas vezes com o sol escaldante,

mas achávamos aprazível. Era uma casinha, coberta de esteira de taquara, de

quatro cômodos, de janelas e portas pequenas, sem assoalho, tendo ao lado uma

frondosa gameleira, que servia de poleiro para as galinhas. Uma biquinha de água

clara e fresca, rodeada de taioba. Ali passávamos o dia, corríamos todo o quintal

e, ainda, íamos à casinha de um casal de velhinhos pobres que moravam pertinho

e eram muito amigos do meu filho. O senhor Taporôco, um velhinho de uns oitenta

anos, tecia rédeas de cabelo e fazia cabrestos e laços de couro de boi. Era o seu

ganha-pão. A velhinha, dona Efigênia, preparava um cafezinho, trazia-o nas

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tigelinhas muito antigas. Obsequiava os meninos com as caninhas para chupar.

Enquanto fazíamos essa visita aos velhinhos amigos, a cozinheira Virgínia

preparava o jantar: feijão, arroz, frango afogado, ovos fritos, salada de alface,

daquela bem fresquinha e um molho de cebolinha verde, daquele que, até hoje,

1968, percebo ainda o cheiro; e a gostosa farinha de fubá de milho torrado na

panela. À tarde, depois do sol se esconder, aquela vivenda tão pobre, era para

nós um encanto. Assentávamos num cocho de dar sal às vacas e achávamos uma

delícia aquele ar puro, fresquinho e o sussurro das águas do rio Barreiras, que

passava perto da casinha. Certa vez, eu permaneci na chacrinha até anoitecer. No

curral, onde assentados, conversávamos, comecei a pensar. A noite escura, triste,

silenciosa, só se ouvia a música dos sapos, das rãs num brejo perto e o luzeiro

dos pirilampos que, de tão numerosos, clareavam a noite. Então, veio ao meu

espírito o seguinte: um filho aqui nessa solidão, o outro tão distante, tão longe dos

meus olhares, dos meus cuidados, morando numa cidade de luzes, a cidade

maravilhosa... numa casa de conforto. Na hora, não sei de quem eu estaria com

pena!

Foi na chácara de Zezito, nesse recanto isolado, que nasceram as minhas

duas primeiras netas, Maria do Carmo e Maria da Conceição. De tardinha,

deixávamos aquela casinha, com os passarinhos cantando, na gameleira próxima,

saíamos com saudade.

Certa vez, numa das minhas idas à chacrinha, inventamos prolongar nosso

passeio até à casa da futura sogra do meu filho. Uma fazendinha a uns três

quilômetros dali. Fomos a pé, levando também a cozinheira Virgínia, medrosa, tão

apavorada, que espalhava medo em todo mundo. A viagem de ida foi muito bem,

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mesmo olhando de lado a lado e para trás, para ver se aproximava-se alguma

vaca. No regresso, já à noite, vínhamos receosas de tudo: de cobras, de vacas

bravas e de bêbados na estrada. Assim ia caminhando este bando de apavoradas,

ora parávamos ora corríamos. Em certo momento, surge atrás de nós um touro

correndo. Ai meu Deus! A coisa ficou preta! Cada um corria mais do que o outro e

sem olhar quem ficava para trás. O lema era salve-se quem puder! Eu, medrosa

número um, corria segurando a mão dos meus filhos pequenos. Encontramos pelo

caminho uma árvore de espinho à beira da estrada. Subimos por ela acima sem

vermos a hora e nem se a Virgínia conseguiu fazer o mesmo. Aflitos,

procurávamos por ela, eis a Virgínia acima das nossas cabeças bem no alto da

árvore a gritar: morro sem ver Dedé, eu não posso morrer sem ver Dedé! Dedé

era um filho dela que estava em São Paulo. O nosso medo era tanto, já começava

a escurecer e onde acharíamos coragem para descer da árvore? O touro, com seu

aspecto de causar pavor, permaneceu um pouco adiante de nós. Ficamos

agarrados na árvore, até que apareceu um homem a cavalo e espantou o touro,

ajudou a tirar Virgínia do topo da árvore e nos acompanhou até a chacrinha. A

Virgínia, a cozinheira apavorada, ficava sozinha na chacrinha durante o tempo de

trabalho. Meu filho era solteiro e não parava em casa. Tinha como companheira

sua inseparável cachorrinha chamada Rolinha, com quem ela conversava como

se fora gente. Pobre Virgínia! Vivia só, abandonada do marido e dos filhos e hoje,

1968, está quase cega.

Esta tarefa de idas semanais ao rancho do meu filho, só terminou quando

ele casou-se em 1943. Porque não precisava da minha presença para zelar sua

casinha.

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Durante os trinta e um anos vividos em Rio Vermelho, permaneci vinte e

cinco anos sem sair dos limites do município. Fui uma única vez ver minha mãe, já

muito doente, em Conceição do Mato Dentro, e batizar, em Dom Joaquim, a

primeira filha nascida em Rio Vermelho. Tudo naquela época era difícil. Viagens a

cavalo, por estradas horríveis, atravessando rios sem ponte, pernoitando em

casas de fazendeiros, ora encontrando-se ótimas acolhidas e ora suportando as

caras de má vontade dos moradores da beira da estrada.

Passados os anos, quando os primeiros filhos casaram e organizaram suas

residências, os meus passeios prediletos eram em casa deles. Ali, reunidos, era

uma alegria, um bate-papo amistoso, uma distração. Ia olhar suas plantações,

suas criações, o progresso de seus trabalhos, de suas construções. Para mim,

nada é melhor do que as horas passadas com os filhos e os netos. Muitas vezes,

à beira de um foguinho aquecedor e com a luz e a claridade de uma lamparina de

querosene. Assim passei várias vezes em casa de Zezito e no rancho de Paulo,

onde ele começou a sua vida e formou uma linda morada, um ótimo retiro. O

Retiro das Laranjeiras, pertinho da cidade. O tempo das férias, curto espaço de

tempo que minha filha Maria de Lourdes passava em casa conosco, pois desde os

treze anos sempre ausente, estudando ou lecionando. Eu e ela, aproveitando os

curtos momentos da tarde, íamos para uma chapadinha, toda de grama, à beira

da estrada do povoado do Magalhães. Ali, assentadas, mirávamos o rio Barreiras

lá em baixo. Líamos revistas, comentávamos, também, tantos fatos de Rio

Vermelho, sua gente e sua política! Dali, apreciávamos a passagem de tantos

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cavaleiros, o pessoal da roça indo embora para suas casas, subindo o alto da

Barra, caminho que vai para Coluna. Ao esconder do sol, regressávamos à nossa

casa. Sempre naquelas horas encontrávamos o Zezinho, entre seus

companheiros, que em todas as tardes faziam-lhe visitas. Todas as noites havia lá

em casa a “mesa redonda” para discussão dos problemas mais atuais e

interessantes da política na época. Estas reuniões se prolongavam até alta noite,

intercaladas com os cafezinhos de hora em hora que eram “obrigatórios”. Não

podia faltar, mesmo que a dona da casa e a empregada, já cansadas com os

afazeres cotidianos, estivessem cochilando, tinham que atender as inoportunas

visitas.

Dos acontecimentos passados em Rio Vermelho, apenas tenho saudades

dos relacionados com a minha família. Infância dos meus filhos. Do começo de

suas vidas escolares, lembrança das caixinhas em que eles levavam os objetos

para o grupo escolar, pois nunca possuíram uma pasta. O meu filho Antônio

ganhou um caixotinho que foi comprado com passas. Neste, ele carregava seus

cadernos e lápis, conservou-o até o quarto ano e ainda o passou para os outros

irmãos. Lembro-me, com saudades, dos brinquedos nos quintais das casas onde

moramos, das jabuticabeiras, onde iam saborear seus frutos, até de noite, quando

chegavam de Diamantina. Das suas viagens a cavalo, indo para o ginásio,

voltando em férias, passeando nas fazendas, apanhando lindos pintassilgos,

peito-roxo e canarinhos com os quais eles enchiam a casa de gaiolas. Quando

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eles iam para Diamantina para estudar a tarefa de tratar os prisioneiros era minha

e de minhas filhas, as duas companheiras que Deus me deu e eram as minhas

dedicadas auxiliares. Vejo meu filho Mário em cima das árvores frutíferas, tirando

as ervas de passarinho. Vejo-o gordo, bonito, sadio, debaixo das mangueiras,

lendo, horas inteiras, era a sua distração predileta. Vejo-o, ainda, à noite, ouvindo

pelo rádio, junto comigo, com dona Chiquinha e dona Henriqueta Carvalhais a

novela Três Irmãs. Vejo-o com o rádio na cabeceira, deitado, ouvindo as canções

apaixonadas de Vicente Celestino. Partiu com sua calça cáqui, com seu blusão de

brim listrado, todo risonho e dizendo: não chore mamãe, porque em novembro

estarei de volta. Fui eu, Neli, Lourdinha, Afrânio e Carlito que assistimos à sua

despedida para Belo Horizonte. Eu o acompanhei com o olhar, até que ele saísse

da casa da noiva e subisse o morro no caminho do Magalhães rumo ao Paulista e

São João Evangelista, onde ele tomaria um caminhão e seguiria para Belo

Horizonte. Se o coração materno tivesse a faculdade de adivinhar, de prever o

futuro, será que eu deixaria meu filho querido partir? Minha filha Lourdinha foi ao

correio procurar correspondências e, ao chegar perto da nossa casa, veio

correndo com um telegrama dizendo: mamãe vai ficar satisfeita, Mário não volta

mais, foi para o Rio a chamado do Dr. Daniel. O pensamento dela era bom,

julgando a felicidade do irmão sob a valiosa proteção de um parente e amigo

sincero. Nem de longe poderíamos imaginar, traduzir o sentido daquela frase:

Mário não volta mais. Na verdade, não voltou mais.

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Os numerosos acontecimentos que eu vi e assisti ficam como um

amontoado de ideias daquele Rio Vermelho de 1927. Ruas escuras e

esburacadas onde as vacas dormiam. Até hoje eu penso o que Zezinho viu de

encanto naquele pedaço do mundo com o qual ele se apegou. Esqueceu sua

Bahia querida, onde deixou, em 1918, os pais, as irmãs dedicadas e a noiva!

Escolheu aquela zona sem progresso para criar seus filhos, lutando com sérias

dificuldades, distribuindo benefícios a toda gente.

Em Rio Vermelho o que eu apreciava muito era assistir aos auditórios e aos

teatros executados pelas alunas do grupo escolar Afonso Pena Júnior, nos quais

minhas filhas tomavam parte. Naquela época as professoras eram dedicadíssimas

e esforçadas. Procuravam elevar o nível cultural das crianças. Preparavam, com

sacrifícios, palcos, cenários, vestuários e tudo mais que fosse preciso. Exibiam

peças, até dramas, humorismo e danças. Eram inocentes distrações que muito

alegravam a vida. As professoras organizavam, também, as coroações de Nossa

Senhora, no mês de maio e, por motivos políticos, muitas vezes estas coroações

eram em casa das famílias e tudo com muita ordem e com muita pompa. A política

de Rio Vermelho conservava o sentimento de ódio, de separação ou divisão das

pessoas. Essa atitude entrava também na igreja.

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Certo dia, aqui em Belo Horizonte, Zezinho me chamou para apreciar o

despontar da lua cheia, lá atrás das serras que circundam a capital. Ao contemplar

aquela beleza, lembrei-me do que pensava e sentia quando contemplava o luar

em Rio Vermelho. Antes da luz elétrica, o luar era a alegria da moçada. Davam

voltas na praça, formavam reuniões em casas de família, onde brincavam de

prenda e faziam serenatas. As crianças brincavam de roda, na rua, até alta noite,

cantando e pulando. Aproveitavam o benefício da lua cheia porque as noites

escuras eram amedrontadoras. Noite de luar, quando eu me achava sozinha,

debruçada na janela da casa grande na rua Direita, lembrava-me dos meus filhos

em Diamantina. Eu tinha inveja da lua porque ela estava vendo os meus filhos e

eu não. Outras noites de luar, na varanda da minha casa na rua Teófilo Otoni,

quase só, com filhos criados e cada um num canto do mundo, cumprindo suas

tarefas. Via-os no pensamento, cada um de maneira diferente. O Zezito lá no

Paiol, sua casa de roça, cercada de cafezeiros, sentado num banquinho na

cozinha, aquecendo-se, devido à friagem da noite. Antônio em Curvelo, depois em

Belo Horizonte, chegando a casa, cansado, depois de um dia de trabalhos,

recebido alegremente pela mulher e filhinhos. Paulo no seu retiro da Laranjeira, na

varandinha, cercado pelos filhos e pela mulher, ou então, na cozinha aquecendo-

se ao fogo e esperando a ceia. Neli, nem podia imaginar, o que estaria

acontecendo com ela, mas eu compreendo todo o seu drama. Afrânio em Juiz de

Fora, depois em Brumadinho, trabalhando na agência ou, talvez, naquela hora

dando os seus passeios, olhando as namoradas. Lourdinha, a filha sempre

ausente, quem sabe estaria se lembrando da sua mãe sozinha. E o Carlito?

Talvez, naquela hora, estivesse jogando bola lá no alto do Rosário. Desejando eu

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que também estivesse distante, mas seguindo a vida, cumprindo seus deveres

como os outros. Também a recordação, a saudade mais pungente, daquele que

não existe no mundo, repousando, sozinho, no Rio de Janeiro, no Cemitério São

João Batista. Mas existe vivo no meu coração.

Faço dos meus escritos um trabalho para minha velhice e escolhi o que

mais gosto – escrever. Escrevendo estou me distraindo, passando a vida, sem ver

as horas correrem até que chegue o dia determinado por Deus para o término da

minha caminhada, da filmagem da novela iniciada há setenta e seis anos.

Médicos que passaram por Rio Vermelho de 1935 a 1959. Antes da

separação da política do coronel Bernardino, Dr. Almerindo Alves de Brito saiu de

Rio Vermelho em 1935. Depois de sua saída passaram por ali inúmeros médicos:

Dr. Israel Jacob, que apenas demorou meses. Dr. Adriano Valadares, médico

maníaco e que mostrou sua incapacidade quando o delegado local foi baleado. O

curativo que ele fez foi vedar o orifício produzido pela bala com esparadrapo.

Resultado: a vítima, um amigo do peito do padre Câmara, durou poucas horas.

Depois, em 1937, guiado não sei por algum anjo bom ou mau, ou pelo seu próprio

destino, chegou a Rio Vermelho o misterioso médico, Dr. Galeno Americano do

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Brasil. Veio do Rio de Janeiro, trazendo uma bagagem muito importante, uma

companheira instruída, dizendo ser estudante do quarto ano de Direito e um

interessante enfermeiro, o Manuel, além de enfermeiro, como o médico dizia, era,

também, um servente que atendia aos afazeres da casa e servia, a dona granfina,

como garçom. Levava-a para passear à rua, puxando o animal pelo cabresto.

Assim ela cavalgava. Ainda tinha a obrigação forçada de dar banho no médico,

fazendo o papel de chuveiro, derramando água sobre ele, porque, naquela época,

nem se falava em chuveiro. Para receber a bagagem do médico, as professoras

Josefina Santos, Donana Santos e Maria de Lourdes Mota, foram organizar os

preparativos da casa, improvisar alguma coisa que pudesse oferecer um pouco de

conforto àquele pessoal do Rio de Janeiro. Arranjaram mobílias, prepararam

muitas iguarias, doces, bebidas, etc. Tudo ficou pronto ao alcance do lugar, com

pouco recurso. No dia da chegada da “ilustre comitiva”, um grupo de senhores, a

cavalo, foi ao encontro dos hóspedes. À noite, reuniram-se as famílias e foram

prestar-lhes uma homenagem e, nesta onda, eu também fui ao lado de dona

Enedina Café. Qual a nossa impressão ao chegarmos em frente à casa, vendo

juntos à porta o casal carioca? As impressões foram idênticas. Dona Enedina falou

em meu ouvido: estamos diante de um casal de atores muito modernos! Nessa

homenagem notava-se a presença do Dr. Guilherme Machado, advogado,

exercendo sua profissão na cidade do Serro e passando alguns dias em Rio

Vermelho. Foi ele quem discursou brilhantemente, saudando o casal. Será que ele

se lembra desse acontecimento, dessa festa, agora que ele é uma figura tão

importante na política, como deputado federal e presidente da Arena? Quem

agradeceu as saudações, a homenagem foi a companheira do médico, fazendo

um bonito improviso, enalteceu as ótimas qualidades da mulher mineira.

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Depois de algum tempo, a companheira do médico foi novamente para o

Rio de Janeiro. O médico ainda demorou algum tempo. Instalou uma “clínica

cirúrgica”. Fez diversas operações, até extração de bócio, mas o cliente durou

pouco, morreu em consequência da operação. Era um médico de esmerada

educação, porém, passados alguns meses, o pessoal descobriu que ele era um

viciado em cocaína. Antes da saída definitiva do Dr. Galeno, chegou a Rio

Vermelho o médico Dr. Jorge Safe, filho da cidade de Conceição do Mato Dentro.

Bom profissional, mas gênio completamente oposto ao do Dr. Galeno, franco e

grosseiro. Na ausência do Dr. Galeno, quem tomava conta de sua clientela era o

colega Safe, pois aquele viajava sempre ao Rio. Numa dessas viagens, deu-se um

caso irrisório. Não sei compreender porque um homem formado teria intenção de

parecer um vigarista! Talvez porque conheceu aquele povo e o considerou

ingênuo ou imbecil, para acreditar em contos de vigário. Alvorou-se em ser um

grande amigo de Rio Vermelho e fez com que os seus admiradores acreditassem

na sua invenção: disse para o povo que ia ao Rio para adquirir todo o material

para dotar Rio Vermelho com boa luz elétrica. Chegando ao Rio, telegrafou:

material quase todo adquirido. O pessoal entusiasmou-se cada vez mais, vibrando

de animação, planejaram organizar uma festa para recepcionar o médico e sua

volta. Um dos organizadores da festa foi um preto, chamado Pedro Toureiro.

Marcado o dia da chegada, a praça foi toda enfeitada, embandeirada. Fizeram

balões de papel de seda com velas dentro (ideia e fabricação do Pedro Toureiro).

Grandes faixas com as inscrições: viva a luz, morram as trevas. Mas o Rio

Vermelho continuou na escuridão até 1942, quando ali apareceu a luz elétrica, na

gestão do prefeito Paulo Penido. Com este conto do vigário, impingido àquela

gente, o médico, incentivador do fantástico progresso da Vila voltou para o Rio e

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sumiu.

O Dr. Jorge Safe demorou, ainda, um ano e depois transferiu-se para

Conceição do Mato Dentro, sua terra natal. Em 1938 foi para Rio Vermelho um

médico mineiro, Francisco França Júnior, e ali permaneceu até 1943. Conseguiu

formar uma boa clientela e foi apoiado por toda a turma da política do padre

Câmara. Saiu em 1943 quando já residia na terra o médico baiano Dr. Pedro

Autran, que permaneceu até 1961, quando faleceu. Está repousando no cemitério

local. O substituto do Dr. Pedro Autran foi o médico Marcos Pimenta. O Dr. Marcos

casou-se com uma senhorita rio-vermelhense. Candidatou-se a prefeito, tendo

sido derrotado, transferiu-se, imediatamente, para Virginópolis. O povo não sabe

escolher e a população perdeu um bom médico.

Quando Dr. França residia em Rio Vermelho, ele era completamente

afastado da nossa família. Havia até hostilidade mútua, mas em novembro de

1948, quando Zezinho adoeceu gravemente com septicemia, ele residia no Serro

e, a chamado de nossos filhos, veio e deu toda a assistência com toda a

dedicação. Dessa forma, tornou-se nosso amigo e o médico de confiança da

nossa família. Como no mundo, os discos viram-se na vida real!

Além dos médicos que, temporariamente, residiram no Rio Vermelho,

apareciam outros de cidades vizinhas, atendendo a chamados e, muitas vezes,

procurando ganhar a vida. Destes, apenas me lembro do Dr. José Aires da Mata

Machado, Dr. Rubens Mortimer, Dr. Alcides Meira, Dr. João Antunes, Dr. Carneiro,

Dr. Ovídio Ribeiro, Dr. Rui Pimenta, Dr. José Monteiro, Dr. Antônio Tolentino Filho,

Dr. Eros Couto, Dr. Joaquim de Pinho, Dr. Plínio Rocha. Atualmente, 1968, o Rio

Vermelho, já possuindo rodovias para diversas cidades, campo de aviação,

hospital bem montado, ainda luta com dificuldade de recursos médicos.

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Já narrei muita coisa de Rio Vermelho, mas escaparam muitos

acontecimentos, dentre estes, um de devoção e entusiasmo daquela gente. As

duas principais festas religiosas eram: a festa de São Sebastião, protetor dos

fazendeiros, santo de suas devoções, por ser o protetor contra a peste, a fome e a

guerra; e a festa tradicional do Divino Espírito Santo. Destes festejos, havia, e

ainda há, o “luxuoso império”. A imperatriz era sempre filha ou parente dos

festeiros. Ia ricamente vestida, levando um cetro nas mãos, tendo a seu lado o

imperador, ladeado pelos cavalheiros e damas de honra. Todo este cortejo era

conduzido dentro de um quadro, levado por senhoritas lindamente vestidas com

toaletes iguais. O cortejo era precedido de novenas animadas, desde o primeiro

dia. A cidade tomava outro aspecto, pois todos os habitantes pintavam suas

casas, limpavam as ruas e os encarregados das festividades reformavam a

ornamentação da igreja. As novenas eram anunciadas em cada dia, com um

formidável tiro de ronqueira às quatro da madrugada, feita e executada pelo preto

velho João Vieira, mestre no assunto. Às dezenove horas a reza da novena, na

igreja e, ainda, havia a cerimônia da banda de música, buscando o imperador em

sua casa. Após os términos das orações, o imperador, carregando a bandeira,

permanecia no coreto enquanto procedia a arrematação dos leilões, tantos, tão

numerosos que se prolongavam até à meia noite. O povo era demasiadamente

generoso para oferecer bolos, doces, dúzias de ovos, queijos, frutas, ceias com

leitão assado, tutu de feijão, arroz, macarronada, frangos assados, bebidas, etc.

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Os roceiros levavam o produto de suas lavouras: abóboras, batatas, e até feixes

de cana. Rematavam a ceia por uma ninharia e levavam para casa de uma

família. Comiam a ceia, improvisavam um baile, até quase o sol nascer. De modo

que era uma novena, de reza, de música, foguetório, leilões e bailes. Às vezes,

contratavam banda de música de outras cidades. Até a banda do segundo

batalhão de Diamantina se abalava para abrilhantar as glórias do Divino. Os

leilões de bezerro, poltros, suínos e outros animais eram tão numerosos que, para

reuni-los, eram precisos três homens, a fim de guardá-los em determinado lugar,

até o dia de irem a leilão. Muitas vezes, era necessário fazer uma espécie de

curral, um cercado na praça para o dia em que fossem leiloados. Nesse dia

reuniam-se muitos fazendeiros, pois a eles interessavam as prendas do último dia,

os animais. Terminadas as comemorações: missa, o império e a procissão, era

praxe chamar o povo para comer o doce do Divino Espírito Santo. O domingo era

para o pessoal da roça, doce de rapadura (feito uns quinze dias antes) e guardado

em latas de querosene e tambores. O pessoal avançava e, além de comer à

vontade, levava também para suas casas. Os roceiros escolhiam até doces em

calda. Como chegavam em casa estes doces? Outra particularidade nos festejos

do Divino: o levantamento do mastro, na véspera. Ficava a cargo do mordomo e

de mais dois auxiliares; toque de sino ao meio dia, foguetório e os leilões da tarde.

De madrugada, às quatro horas, o povo se levantava ao estrondo da ronqueira

soberana do velho João Vieira. Todos rumavam para a casa do mordomo,

inclusive a banda de música. Em casa do mordomo era servido o gostoso bolo de

arroz e muito café. Terminada a comilança, saía a banda acompanhada dos

comedores de bolo, executando várias peças de seu repertório, percorrendo as

ruas e terminando na praça da matriz, com alegres toques de sino e foguetório.

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Terminadas as tarefas dos festeiros, sorteavam o novo imperador e novos

mordomos, havendo, ainda, a obrigação de organizar o acompanhamento pelo

povo e pela banda de música para levar o novo imperador em sua residência,

onde se improvisava, ainda, um baile. Assim terminavam os festejos de uns dez

dias, deixando os organizadores estafados de tanto trabalho. Os fazendeiros, os

lavradores e o pessoal de outras localidades retiravam-se da Vila. Esta caía na

maior quietude. Os negociantes iam contar os cobres que ganharam nos dias da

novena do Divino. Também as costureiras, os fabricantes de pães e doces. Essas

cerimônias, ligadas à religião, agitam os lugares que seriam parados, sem

negócios, sem movimento. Eu apenas distraía as minhas horas com trabalho e as

travessuras de meus filhos. Não participava, só me divertia olhando da minha

janela, apreciando o movimento do povo, com diferentes modelos de roupa, as

moças da roça com o rosto pintado de papel vermelho, soltando os sapatos na

rua, quando estes as incomodavam, usando laços de fitas verdes e amarelas na

cabeça, bebendo cachaça na porta dos botecos.

Que engraçado, também, eram as Folias de Reis. Saía pelas ruas um

grupo de homens e rapazes tocando violas e sanfonas, todas enfeitadas de fitas,

trazendo cada um lenços no pescoço, cantando e pedindo esmolas. Cantavam,

saudando o dono da casa onde entravam, depois pediam a esmola, agradeciam o

que recebiam do dono da casa. Tinha-se que oferecer ao pessoal cantante a

pinga, o que eles mais apreciavam. Em tempo de Natal, ou melhor, no dia de Reis,

organizava-se um grupo de pastorinha, e um rapaz (que hoje é padre redentorista)

as guiava. Iam de casa em casa, com bandeiras e um carneirinho nas mãos. A

criançada corria atrás, fazendo grande folia.

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Nas obscuras e desorganizadas narrativas sobre acontecimentos em Rio

Vermelho, acho horrível descrever fatos que constituem uma página negra, de

uma Vila fundada em tempos melhores, sendo, atualmente, uma cidade, uma

comarca. Seus habitantes, hoje, mais instruídos olhando os tempos idos, terão

vergonha, e até horror, em relembrá-los. Mas, como tudo faz parte do que ali

assisti e vi nos trinta e um anos vividos naquele pedaço do mundo, vou relembrar

também aquilo que tanto horror me causava. A cada dia nascia em mim o desejo

de sair com a minha família daquele lugar. Nasci e convivi até aos dezesseis anos

num ambiente calmo e de pais pacatos. Passei nove anos em colégios e

convento, numa vida de paz e sossego. Iniciei minha vida conjugal numa

tradicional cidade de sociedade pacífica, o Serro. Como poderia me adaptar num

lugar onde bárbaros assassinatos eram coisas banais, costumeiras?

A minha primeira e triste impressão foi em 1927, uns dois meses após

nossa chegada na Vila, quando ainda nada conhecia. Chegaram pessoas em

nossa casa chamando-nos para atender um homem gravemente ferido a tiros. Lá

foi meu marido, correndo, com uma pasta nas mãos, e chegando onde estava a

vítima, no fim da cidade, já encontrou o pobre homem morrendo, deitado em um

banco de madeira, sem a menor assistência. O homem havia sido vítima de uma

tocaia, dentro de uma casa, onde o assassino apoiou a arma na janela para tirar a

vida de quem ia levando um carro de boi, lutando pelo pão de cada dia!

Nas zonas rurais, nos lugares denominados Mundo Velho, Fortaleza, Mata-

- Porco, Cocais, Gavião, Lajes, Rabiô, Raposos e Bragança, eram tantos os

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crimes que somente o serviço estatístico, bem feito, poderia enumerá-los.

Alguém já teria ouvido falar em um homem comedor de fígado humano?

Pois esse homem, que matou, friamente, um indivíduo, abriu-o, tirou-lhe o fígado e

preparou-o para comer. Este canibal é de Rio Vermelho.

Lembro com horror, do assassinato de uma senhora de uns cinquenta

anos, muito trabalhadora. Morava numa chácara muito bem cuidada e lá íamos

sempre passear, pois tornou-se nossa amiga. Em sua casa ela nos oferecia um

gostoso lanche, uma saborosa geleia e um bom vinho. Essa senhora, a dona

Chiquinha, como a chamavam, foi assassinada pelo seu cunhado, Domingos de

Souza, um velho de sessenta anos. Matou-a dentro de sua cozinha, onde ela

preparava o café da manhã. O velho, tomado de uma fúria diabólica, entrou casa

adentro até onde ela estava e ali deu-lhe uma facada certeira no coração. A pobre

senhora, sem encontrar socorro algum, saiu sangrando e morreu na beira da

estrada, quadro tétrico! Quando, na Vila, entrava numa rua o cortejo fúnebre, o

velho assassino, todo maltrapilho, entrava por outra rua, paralela, levado pela

polícia para a cadeia. É horripilante contar tantas coisas trágicas, tantos fatos que

mancham a tradição de um povo. Quando Rio Vermelho pertencia à comarca do

Serro, a cadeia serrana era quase ocupada por criminosos rio-vermelhenses. Em

certa ocasião, um promotor servindo, numa sessão de júri, onde era julgado um

criminoso de Rio Vermelho, da tribuna fez a seguinte afirmação: Rio Vermelho

deve ser chamado Rio de Sangue.

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Em 1934, quando eu estava de luto de dois meses de minha mãe, a dona

Enedina Café deu uma festa no dia de seu aniversário. Eu lá não fui, mas, no

entanto, passei um dos maiores sustos da minha vida. Lá na casa, o povo estava

em delirante alegria (meu marido estava lá). Dançavam, cantavam, quando

chegou um portador me avisando que um senhor chamado Joãozinho Ferreira

tinha sido baleado na estrada do Magalhães. Eu, sem saber a causa do crime,

fiquei na maior aflição, julgando que convidassem meu marido para a tarefa de

conduzir o homem ferido. Numa noite escura, saí com dois filhos, levando vela e

fósforo para atravessar a escuridão e fui até a porta da aniversariante pedir, rogar

ao Zezinho que não fosse ao encontro da vítima, temerosa de que surgissem mais

confusões, mais conflitos.Em todas as festas, nas quais abusavam das bebidas,

tudo terminava em briga e confusão. A palavra festa, ao invés de me alegrar, me

enchia de preocupação e pavor. No dia seguinte, o homem ferido já estava

agonizando em casa de uma professora, sua parenta, que residia na mesma rua

onde morávamos. A causa do assassinato não foi política, mas foi cachaça.

Política, cachaça e ignorância eram os fatores principais dos crimes. Misturando,

também, nessa panela do demônio, a avareza, a imprudência, a desonestidade e

mulheres.

Desejaria, gostaria tanto de distrair minhas horas vazias, escrevendo sobre

coisas belas: campos, rios caudalosos, cascatas maravilhosas, montanhas, lagos,

mares, flores, aves e crianças, o encanto da vida e não relembrar tanta miséria

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humana. Tantas vilezas da criatura alheia ao seu fim, transformada num irracional

feroz. Narro o que, infelizmente, vi e vivi durante longos anos, num meio ignorante,

onde a valentia, a covardia, a vingança pareciam ser um predicado, uma

“qualidade” que não podia faltar ao homem. Pobre gente, que nascia, crescia e

morria sem conhecer o maior dos mandamentos de Deus: amar o próximo,

caridade... Talvez não soubessem o que era a palavra próximo! Eu vivia debaixo

de constantes e más impressões que, ao chegar à noite, quando a escuridão

dominava a Vila, eu sentia um pavor, uma insegurança, como se eu morasse num

deserto habitado por feras e sem ter quem me defendesse. Até certa hora, via-se

uma luzinha, numa ou noutra taverna de bebidas, onde os assíduos

frequentadores da cachacinha faziam seus pontos prediletos de reunião. Quantas

vezes, antes das famílias se acomodarem, criminosos e pistoleiros percorriam as

ruas, dando descargas de tiros. A Vila não tinha policiamento. O meu pavor era

tanto que, nas viagens do meu marido, eu escorava as portas com bancos.

Assassinatos de mulheres mundanas eram frequentes naquela época. Um desses

foi impressionante. Em 1931, os missionários redentoristas estavam ali pregando

as Santas Missões. No início das mesmas, os padres fizeram um suplicante apelo

às mundanas, dizendo que, se elas não quisessem se aproximar de Deus, ao

menos respeitassem o santo dia das missões, não promovendo orgias e

desordens. Mas uma infeliz, em ato público de deboche, disse: não atendo nem

que o padre chore sangue. Má foi a hora em que ela falou. Não creio num Deus

injusto e vingativo. Terminadas as santas missões, um dia depois, a desventurada

criatura foi assassinada por um de seus admiradores com requintes da maior

perversidade e covardia. Foi encontrada morta, sobre sua cama, com duas

lágrimas de sangue a correr de seus olhos. Tamanha coincidência... O tiro que ela

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tomou atingiu os sacos lacrimais e ela morreu chorando sangue. O criminoso

atravessou a Vila com a arma na mão, ameaçando quem encontrasse na rua. Este

fato, da infeliz morrendo a chorar sangue, foi muito comentado e causou geral

impressão. Todos julgavam ser um castigo, devido à falta de respeito aos

missionários.

Numa localidade perto do rio Barreiras, um degenerado estrangulou a

mulher e dois filhos e os jogou no rio. Preso, confessou, friamente, o crime.

Num lugar chamado Mata-Quatro, um povoado do Magalhães, houve na

estrada um conflito entre defunteiros (homens que carregam um defunto).

Levavam um morto que já tinha sido assassinado; na briga entre eles, mataram

mais um. Depois desse fato, o lugar passou a ser chamado Mata - Quatro.

Certa ocasião, em que meu marido estava em excursão do trabalho,

ocorreu, na Vila, um crime que me causou pavor. Isto foi em 1932. Meu marido foi

rapidamente nos visitar e logo na primeira noite de sua chegada, quando íamos

deitar, ouviu-se um tiroteio na praça. Ficamos todos sobressaltados, ignorando do

que se tratava. Espreitávamos pelas frestas da janela a fim de observar o

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movimento. Vimos três cavaleiros subindo a nossa rua e gemendo. Noite escura,

não nos permitiu reconhecê-lo. Logo, logo, uma empregada da casa de um

compadre veio bater à nossa porta, chamando meu marido para acudir o homem

ofendido. Eu, tomada de pavor, não o deixei ir sozinho. Noite fria, neblinosa e

escura. Fui acompanhando-o e ainda levei um filho de doze anos. Encontramos a

vítima, varada por uma bala de carabina, já sentindo que ia morrer. Mesmo assim,

na ânsia da morte, só pedia que o deixasse vingar o seu agressor, o delegado de

polícia, amigo do padre Câmara e inimigo do coronel Bernardino - o patrão da

vítima. Enquanto Zezinho assistia o homem ferido (José Luiz), eu e uma outra

senhora, dona Cecília Carvalhais, na sala, rezávamos por aquele infeliz que

morria com o coração cheio de ódio e desejo de vingança! Não sei se devido ao

meu estado nervoso, passava momentos sem refletir. Hoje é que penso como

deixei um filho de doze anos assistir a cenas dramáticas como essa, que

causavam mal até a mim! Hoje, fico a julgar que essas tragédias muito prejudicam

o espírito infantil de um filho. Logo após este triste acontecimento, meu marido

viajou novamente. Imaginem como fiquei e qual o estado do meu espírito?

Após vários anos, este delegado homicida foi, também, assassinado à

traição por pistoleiros, quase na mesma praça da Vila. A história fatídica dos

crimes que enegrecem o passado de Rio Vermelho é interminável. Apenas cito

aqueles que produziram traumas e até revolta no espírito de quem, na vida, só

matou baratas, formigas, carrapatos e pulgas. Estes quadros dantescos ficam

gravados na mente de quem, sem querer, como eu, residia nessa terra há tão

longo tempo.

Um assassinato ocorrido no município causou revolta, não só em mim,

mas, também, no espírito de muita gente boa, pelo modo desumano como foi

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praticado. A vítima era um ladrão simplório, dizem que assassino, mas era uma

criatura humana que precisava ser punida pela lei e não ser assassinada com

requintes de maldade e covardia! Ricos e usurários fazendeiros, medrosos e

covardes, temiam que suas fazendas fossem atacadas pelo bandido,

denunciaram-no à polícia, mas com a intenção de matá-lo, não de prendê-lo. Os

policiais foram ao encalço do degenerado, igual a muitos que perambulam pelo

mundo. No fim da diligência, trouxeram o homem gravemente ferido, dizendo que

o mesmo havia resistido e fora baleado por um soldado. No entanto, a suspeita é

de que o autor dos disparos foi o fazendeiro denunciante. Um bobo, desarmado

que tinha horror de polícia, iria resistir? Trouxeram o infeliz, carregado dentro de

um couro de boi. Jogaram-no ao chão da prisão no mesmo couro, servindo-lhe de

cama, ali o jogaram, como se fora um bicho. Na ânsia da morte, sem a menor

assistência corporal e espiritual, ainda recebia ameaças de maiores castigos. Não

posso imaginar seres humanos, batizados, que se dizem filhos de Deus, que

pertencem a uma sociedade e que tenham coragem de praticar atos de tanto

barbarismo! Isso eu assisti. Hoje, quando me lembro de tais acontecimentos sinto

imenso pesar de não ter tido a devida coragem de romper o cerco dos poderosos,

covardes e proporcionar ao miserável ao menos assistência espiritual. Negaram a

ele toda a assistência, inclusive a do médico local. Depois de algumas horas de

sofrimento, morreu aquela criatura, deitada no chão, tendo como colchão o couro

de boi. Como um irracional, como um bicho. Foi levado no mesmo couro e jogado

numa sepultura, assim como morreu, todo sujo, esfarrapado, cheio de sangue. Na

vida foi um bandido, um degenerado, mas tão martirizado que Deus, infinitamente

misericordioso, deve ter perdoado a alma daquele ignorante, criado num ambiente

de gente que talvez não soubesse nem porque estava vivendo. Este infeliz era um

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tipo andarilho, sem procedência conhecida e era chamado Joaquim Curé!

Tive de assistir a tantos quadros dolorosos, como foi o do dia vinte e cinco

de abril de 1943! Neste dia vi e assisti uma mãe de família morrer, varada por uma

bala de fuzil, de um soldado, dentro de sua própria casa. Cena impressionante

que abalou a população de outras cidades. Este acontecimento foi motivado por

baixa perseguição política e vinganças pessoais. Um filho do coronel foi o mentor

do crime que causou a morte da mãe de família. Este, foi assassinado por um dos

filhos da vítima, em plena praça, quando o médico baiano, Dr. Pedro Autran, que

procurava por seu filho foi, também, barbaramente esfaqueado.

Tudo consequência de uma política diabólica, inspirada no ódio e na

vingança. Mais uma cena dramática de covardia: quando um cidadão pacato, um

ótimo pai de família, um grande amigo nosso, Sr. Cícero Mota, morreu,

inocentemente, na sua casa, com o coração traçado por uma faca assassina.

Desejando fechar esta corrente vergonhosa de tantos crimes, ainda tive a

infelicidade de assistir à tragédia de julho de 1958, em frente à casa de minha filha

Neli, onde ficaram mortos um soldado e um cabo e, gravemente ferido, um

cunhado dela. Conflito provocado por pessoas de outra cidade: Sabinópolis.

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Assim, como este acontecimento macabro, outros se deram em Rio Vermelho,

praticados por gente de outros municípios. Parece um capricho para que a

mancha negra do crime aumentasse naquele lugar. Milagre, proteção poderosa de

Deus, livrou meu marido e minha filha de serem vítimas desse crime. Minha filha e

meu marido estiveram ali como pacificadores e se viram envolvidos no tiroteio

infernal de paisanos e polícia. Desta triste ocorrência em frente à casa de minha

filha Neli, ela sofreu horrivelmente. Padeceu durante três a quatro anos as

consequências das imprudências e arbitrariedades dos familiares do seu marido.

Quando, em 1959, deixamos o Rio Vermelho ainda estávamos sob o impacto

dessa situação aflitiva de nossa filha. Porém, ela, sempre cheia de confiança em

Deus, em quem ela confiou plenamente, tem conseguido vitória em todas as suas

lutas.

Nem mais uma linha desejava escrever sobre acontecimentos negros em

Rio Vermelho, mas, infelizmente, terei ainda de me prolongar. O lugar, o Rio

Vermelho, não tem culpa; o mundo, com sua gente, em toda parte é o mesmo.

Nas minhas erradas ou certas opiniões, não sei se Rio Vermelho é o culpado da

minha Via Crucis começada há quarenta e um anos, em 1927...

Sem a menor precisão, sem nenhum ideal útil, contra a nossa vontade,

seguiu o filho mais novo rumo a Rio Vermelho. Este filho-preocupação, foi levado

pela obsessão humana. Passaram-se vinte e cinco dias sem dar notícias. O meu

coração de mãe não se enganou. Chegou aqui gravemente ferido a bala. Nessas

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tristes narrações, sou obrigada a mencionar este doloroso acontecimento que,

dessa vez, veio ferir duramente a nossa família. Sabem quem foi o autor? Foi uma

criatura beneficiada, desde o nascimento, com os favores e a proteção da família

Utsch Moreira, que amparou com desvelo a sua família toda: mãe, tios e o próprio

criminoso e sua mulher, dando-lhes os meios de terem o ganha-pão. Por uma

misericórdia Divina, por um milagre de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a

quem o entregava todos os dias, o nosso filho não morreu.

Parece que o meu espírito previa o futuro tão longe, tão distante e tão cruel

reservado para a nossa velhice. Diante de um acontecimento tão cruciante não me

revoltei, antes agradeci ao meu Deus tanta misericórdia. Outras mães, boas,

dignas, que militavam na mesma lide política passaram golpes ainda mais

dolorosos. Dona Enedina Café Carvalhais viu o filho primogênito, pai de cinco

filhos, ser assassinado em plena praça de Rio Vermelho, onde os cães beberam

seu sangue.

Nem em sonhos poderia imaginar que completaríamos meio século da vida

em comum. Bodas de Ouro. Cinquenta anos passados ao lado do meu marido,

graça que Deus nos concedeu. De 1911 a 1920, nove anos, esperei sem saber,

pois o futuro a Deus pertence; que viesse um filho de outro estado (Bahia), aquele

que seria o meu companheiro e, juntos, completássemos cinquenta anos de vida,

de lutas, de sofrimento e, também, de alegria por criarmos oito filhos e podermos

receber deles o carinho, o desvelo e o amor.

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Não queria e me opus a toda e qualquer comemoração externa nesta data.

Mas a bondade, a dedicação dos filhos presentes: Antônio, Lourdinha, Paulo e

Neli não deixaram passar desapercebida a data. Houve a Santa Missa às oito

horas por nossa intenção, assistida pelos filhos e dezessete netos. Comungamos

e recebemos a benção especial. Contou-se, também, com a presença de velhos

amigos que, após a Santa Missa, vieram à nossa casa trazer-nos os abraços

sinceros de uma amizade de muitos anos. Às quinze horas fomos, novamente, à

igreja para batizarmos o quadragésimo oitavo neto, agora batizando a filha do filho

caçula. O que mais posso desejar na vida, já tão prolongada? Resta-nos pedirmos

a Deus que na última viagem, a viagem sem volta, leve os dois para, juntos,

glorificarmos a esse Deus que nos uniu nessa morada passageira.

Saudade e que saudade! Cruel e imensa, tão grande e profunda que não

tem medida e nem explicação. Saudade, não de um ente querido que foi fazer

uma turnê ao redor do mundo, deixando sempre a esperança do dia da chegada.

Mas escrevo saudade, uma saudade que permanecerá comigo enquanto eu

residir nessa terra de provações. Saudades cruciantes do companheiro bom e

querido de cinquenta e dois anos, que voando para o além, aqui me deixou na

solidão de sua ausência, curtindo a tristeza de sua falta. Mas Deus, que nos uniu,

permitiu que ele partisse e me deixasse sozinha na vida.

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Rezei o terço, assisti à Santa Missa, vendo-o, em espírito, ao meu lado. Fiz

todos os pedidos que ele faria se eu pudesse ouvir a sua voz. Eu sabia de seus

desejos, dos seus anseios profundos em favor dos filhos, principalmente, aos mais

precisados. Rezei muito por ele e pedi-lhe que de lá olhasse a velha e triste

companheira que, sem consolo, chora sua falta.

Antônio trazia sempre a turma dos netinhos que eram a alegria do vovô. Ele

considerava uma glória contar que possuía grande número de netos e não se

cansava de contar um por um, acrescentando sempre que desejava viver para ver

crescidos os que ainda eram pequenos. Tinha uma predileção especial pela

netinha Godoia, a sua companheirinha de todas as horas. Enquanto pôde

caminhar, ia buscá-la todos os dias para a nossa casa, depois incumbiu-me dessa

tarefa. Assim, continuo, aqui na terra, cumprindo seus desejos, julgando estar

satisfazendo sua vontade. Passávamos juntos as datas festivas do calendário

cristão. Na data gloriosa do Santo Natal nos reuníamos com a família e as

lembranças são muitas. Como correram tão rápidos os bons momentos! Porque

não passei esses anos, esses dias só ao lado dele? Foram tão curtos,

desapareceram velozes como um vento que passou sem ser percebido. Agora,

me resta a saudade daquele que nesse mundo foi meu anjo tutelar. Animava-me

sempre com as suas confiantes palavras, quando dizia: Deus ajuda, Nininha,

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vamos ter confiança em Deus. Com essas expressões, com a fé na bondade e no

poder de Deus, ele vencia todas as suas dificuldades, que não foram poucas. Ele

sofria, embora tudo suportasse em silêncio e sempre otimista. Falta-me, hoje, sua

palavra, sempre de otimismo, sua dedicação, seus cuidados, seu olhar

compassivo, seu carinho. Creio que seu amor, seu desvelo por nós (eu e meus

filhos) continuarão no além.

Dando por terminado o que vi, o que assisti, como passei os meus setenta

e seis anos nesse planeta Terra, vou, agora, apenas, cultuar na minha memória a

lembrança daquele que, entre as lágrimas da mulher e filhos, netos, noras e

genro, partiu dia doze de dezembro de 1971 para uma pátria melhor.

Por que ele não deixou escrita alguma coisa sentimental para eu ler e reler?

Ele era diferente de mim, procurava não ver, não falar o que lhe feria a alma e o

coração. Sofria em silêncio, chorava escondendo o que o magoava.

Ele foi e eu fiquei... Porquê? Porquê ele mereceu sair primeiro desse

mundo de decepções e desenganos que eu vou encontrando a cada dia?

No barracão pobre de meu filho, passo horas cerzindo meias, juntando

pedaços de pano para fazer fronhas... Procuro nos afazeres simples quebrar a

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monotonia de cada dia, uma vez que o maior castigo para o velho é o tempo

vazio. Deste castigo sempre se queixava o meu marido. Tanto que eu desejava

que ele fizesse como eu, transportasse para o papel o que lhe ferisse a alma e

procurasse na recordação do passado, bom ou ruim, triste ou alegre, a distração e

o alívio de viver. E assim fico, no silêncio e na solidão do barracão do meu filho,

distraindo os minutos com o chorinho de uma neta, alegrando-me com as

gracinhas e meiguices da Godoia e da Nininha.

Ao passar pela rua Pacífico Faria, esquina com Amazonita... OH! Que dor

cruciante! Vejo-o já tão alquebrado pela enfermidade, pelos sofrimentos, entrando,

junto comigo (nas inúmeras vezes em que lá íamos), no barracão muito pobre do

filho caçula. Ora para dar banho na netinha, enquanto tinha umbigo sem cair, ora

para tomar conta dela, enquanto os pais iam à cidade. Tantas e quantas vezes ele

abriu aquele portãozinho e bateu na porta da sala. Entrava e reclamava do cheiro

de querosene do fogãozinho de uma trempe só. Ao passar todos os dias na rua

Hortênsia, vejo tão nítida a figura do meu velho, andando muito devagar,

carregando um embrulhito para a netinha do seu coração. Ou, então, vendo-o

dando-lhe a mão e trazendo-a para nossa casa.

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No dia vinte e um de julho de 1972, quando cheguei à casa dos setenta e

sete, dois números símbolos da mentira, foi o aniversário da saudade. Não ficaria

sem ele, sem aquele que ao despertar desta data, era o primeiro a me

parabenizar, o meu Zezinho. Pedi com insistência a todos da família que

deixassem passar a data como um dia qualquer. Porém, contrariando meus

pedidos, mas, movidos pela dedicação, reuniram-se com os netinhos e filhos:

Antônio, Paulo, Eleonora e Lourdinha. Pela manhã, Carlito e as filhinhas vieram

me abraçar. Recebi, de Antônio e Paulo, os presentes com antecedência. E, na

intimidade, foi o motivo para eu desabafar a minha saudade e chorar bastante,

porque tudo leva meu espírito para a lembrança de quem vivia ao meu lado.

Durante toda a minha vida sempre fui uma criatura emotiva e sentimental,

apreciando, unicamente, o silêncio e a paz da natureza solitária. Sentimentos

esses adquiridos ou cultivados nos anos que passei em colégios e convento.

Agora, na monotonia da minha viuvez, é difícil, quase impossível, disfarçar o vazio

imenso que sinto. Passei esse meu aniversário no aconchego dos filhos e netos,

entes queridos, herança preciosa que meu esposo me legou. Resta-me o

pensamento de sempre. Passarei os setenta e oito aqui junto à minha família

querida ou terei ido ao encontro de quem foi e me deixou?

Numa tarde ensolarada de abril eu me achava sem nenhum afazer, apenas

com a Godoia, a criança-distração para mim, vendo nela sempre a lembrança do

vovô querido que muito a amava. Comecei a olhar os numerosos postais de

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Lourdinha, cada qual mais lindo! No meio dessa coleção, logo encontrei o da

Praça Castro Alves, o do Elevador Lacerda e Cidade Baixa, na maravilhosa capital

baiana, terra do meu inesquecível Zezinho. Boa terra, sobre a qual ele

constantemente falava, porém, lá nunca mais voltou, desde a sua partida em

setembro de 1918. Curtiu saudades imensas nestes anos todos vividos em Minas,

onde se misturou com os mineiros e, desde doze de dezembro de 1971, repousa

na solidão e tranquilidade do Parque da Colina.

Quem poderia pensar que esse baiano de Salvador (como ele gostava de

falar) poderia gostar de uma mineira pobre, feia, sem atrativos, de um interior

atrasado de Minas Gerais? Coisa verídica que até parece lenda.

No dia de meu aniversário, em julho de 1973, sábado, me foi dado pela

bondade Divina somar mais um ano na caminhada, já bem longa, neste planeta.

Cada ano uma incerteza, cada ano mais um passo para a pátria do além. Embora

seja eu uma velha saudosista, que ama as melancólicas recordações de um

passado tão distante, passei o meu septuagésimo oitavo ano com a casa cheia de

alegres brotos, os encantadores netinhos que adoçam o amargor dos corações

dos velhos avós. À noite a casa encheu: filhos, noras, netos, futuros netos, noivos,

namorados das netas. Em roda da mesa, formou-se um lindo quadro de netinhos,

de dois, três, cinco e seis anos. Cada um querendo cantar os parabéns mais altos

para a vovó.

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Amélia, a empregada de muitos anos. Dia primeiro de agosto de 1973, ao

despontar deste dia, mais uma surpresa veio abalar meu espírito. E dessa vez,

uma surpresa triste, muito triste. Amélia, a companheira humilde, de tantos anos,

de lutas, das horas difíceis da família Utsch Moreira, estava agonizando, foi o

aviso do telefone, logo pela manhã. Agonizava no Hospital Mário Pena em BH.

Para ali correram os meus filhos Paulo, Antônio, Neli, Lourdinha e Eleonora, minha

nora, que tudo fizeram por ela. Foi para nossa família uma figura importante, pela

sua dedicação, amizade sincera e bons serviços que nos prestou. Seu carinho,

sua bondade, se estendeu até aos nossos netos.

Quantas vezes, em Rio Vermelho, Amélia era de fato a mulher de verdade.

Era o Simão Cirineu ajudando no afã trabalhoso da política do interior, executando

trabalhos até alta noite. Na tarefa extra, de criar netos, filhos do primeiro filho, era

a babá paciente que os zelava e ainda cuidava dos afazeres da casa. Era

doméstica, assídua e dedicada nas enfermidades da família.

Boa filha, do seu constante trabalho tirava o sustento para sua mãe velha,

irmãos e sobrinhos; pensava mais neles do que em si. Praticou na vida, o

mandamento do amor, embora fosse uma pobre ignorante e analfabeta. Deus dê a

ela a recompensa da vida de amor e de trabalho, vivida na obscuridade desse

mundo que só exalta os aquinhoados da sorte. Teve o carinho e o desvelo da

nossa família. Ampararam-na, assistiram-na na sua longa enfermidade e

acompanharam-na até a sua última morada, no Cemitério da Saudade, em Belo

Horizonte.

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Quando me vem o desejo de chorar, e chorar muito, eu vou logo lembrando

de levar para o papel o meu desabafo. Sei que não posso chorar, porque o olho

operado dói e inflama, assim, em vez de chorar, escrevo.

Vem a tarde, terminadas minhas tarefas, a minha distração é assistir

novelas na TV Tupi. Umas cheias de emoções, outras cheias de fracassos e sem

graça. Fico a pensar: cada vida é uma novela com diferentes aspectos.

Julgava não suportar a vida neste mundo se eu ficasse sem o meu Zezinho.

No entanto, ele foi, partiu e eu vou continuando a vida, aumentando em cada dia a

cruel saudade, com a recordação de tudo que foi a vida para nós, nos quase

cinquenta e dois anos de união.

Vi num folheto organizado pelo IBGE, oferecido pelo meu filho Antônio,

Delegado do IBGE em Minas, a cidade de Itambacuri. Localidade mineira onde

residi três anos, onde conheci a criatura inesquecível que conquistou meu

coração, o meu marido, o meu companheiro de mais de meio século de existência

juntos. O Colégio Santa Clara está todo restaurado. Olhei aquela casa saudosa,

onde passei três anos lecionando e no convívio de irmãs, minhas colegas, alunas

e órfãs indígenas. Observei, com tanta saudade, a entrada do colégio com sua

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escadaria, que dava para um pequeno jardim (antigamente), onde havia roseiras,

nas quais eu colocava algodões, que motivaram o diálogo que serviu para eu ficar

sabendo do amor, quase impossível, que nascia no coração do dentista baiano e

que, finalmente, virou realidade. Relembrei a sala de espera, onde eu e a boa Irmã

Isabel íamos tomar injeções aplicadas pelo dentista de Salvador. Vi, na

imaginação, aquele corredor comprido, dando acesso à capela em que, com tanta

elegância e piedade, ia comungar, quase diariamente, a pessoa tão querida que,

em 1920, tornou-se o meu esposo. Voltando a olhar para a vista parcial da cidade,

localizei a casa onde morou Dona Cândida Moreira Autran. Consegui descobrir,

também, aquela rua comprida que ia até à Matriz de Nossa Senhora dos Anjos,

por onde subia, constantemente, aquele personagem tão importante para mim, a

quem entreguei meu coração em 1918. Itambacuri não é minha terra natal, mas

ficou como um pedacinho de terra cheio de imensas e profundas recordações para

o meu coração, pois foi ali que encontrei aquele que Deus guiou e determinou que

fosse, durante meio século, o meu companheiro.

No dia vinte e um de julho de 1968, passaram comigo Antônio e sua família,

Carlito e Lourdinha. Reuniram os netinhos, tão meigos, tão amorosos para com a

velha vovó. Quem me deu os presentes, em nome da turma, foi o gracioso e

meigo Antônio Filho, sendo acompanhado pelo Guilherme e Cândida, as florinhas

da casa. Cantaram parabéns para a vovó e ficaram até às vinte e duas horas,

enchendo de alegria a casa da velha triste e chorona.

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Natureza dificílima, incompreensível de se explicar, para quem não é

psicólogo. Nesta altura da vida ainda não sei e nem posso explicar as causas de

meu temperamento emotivo, triste, derrotista, ansioso, medroso. Não sei se foi

herança ou se isto tudo é o efeito de uma meninice e juventude vividas na solidão

de uma morada isolada e sombria no Mata-Cavalo; juntando, também, o drama da

agressão a meu pai na fazenda Empoeira, quando eu tinha apenas quatro anos.

Nasci e casei entre o fim do século dezenove e as duas primeiras décadas do

século XX. As poucas novidades que surgiam no mundo, eu as ignorava todas. Os

meus pais viviam para o trabalho, numa vida rural. Na minha mocidade nunca li

jornal, nem revistas, a não ser os almanaques de propagandas de remédios. Não

sabia o que era cinema e teatro, vivia num mundo fora do mundo. Olhava as

estrelas, contemplava a lua e chamava São Jorge que, conforme diziam,

cavalgava num cavalinho dentro da lua e era chamado para mandar chuva.

Quando fui para o colégio, aos dezesseis anos, aí o mundo terminou

completamente para mim. A minha vida consistia em estudar, rezar, meditar,

ouvindo exclusivamente leituras da vida de santos. De 1911 a 1920 eu só convivia

no ambiente de irmãs, alunas e padres. O meu mundo era o colégio, as chácaras

onde passeávamos, as igrejas, os cemitérios (lá íamos de vez em quando). E mais

nada. Como era a educação nos colégios antigamente!

Comecei a minha vida no mundo desconhecido para mim. Dois meses após

deixar a vida oculta e solitária do colégio, casei-me. Tudo eu ignorava, até a

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Grande Guerra de 1918 eu ignorava. Não sei como alguém podia instruir-se...

educar-se. Que mancada, que erro de palmatória ir abraçar a vida conjugal sem

saber como instruir, guiar e encaminhar na vida a prole que Deus me daria um dia!

Mas a sorte também me foi madrasta, levando-me, depois de casada, sem minha

vontade para um recanto do mundo onde educar filhos era tarefa difícil e quase

impossível. Assim, posso dizer, acertadamente, o antigo provérbio: atrás dos

apedrejados correm as pedras. Hoje, depois de velha, volvo o pensamento ao

passado e vejo tantas falhas, tantos erros... Mas, alenta-me a confiança em Deus.

Ele fará o que não fiz em benefício dos meus. Deus será o juiz das minhas falhas

e erros.

Na rua Campinas, 680, numa segunda-feira, dia do meu aniversário. Passei

a semana anterior muito triste, com meu sistema nervoso abalado, achava os dias

enormes e as noites intermináveis. Ao amanhecer, me levantei e antes, na cama,

havia feito as minhas orações. O meu primeiro serviço foi percorrer o quintal, olhar

as plantinhas e procurar buracos de formigas, as inimigas do jardim. Encontrei um

grande buraco, donde saíam e voltavam filas intermináveis de formigas

carregando as provisões para os seus celeiros. Seguindo essas filas, fui matando

uma por uma, muitas carregando pesos maiores do que elas. E, neste labor, de

aniquilar as formiguinhas, fiquei a pensar: será que elas mereciam mesmo os

castigos que eu estava lhes aplicando? De fato, são más, são terríveis

destruidoras das hortas, jardins, pomares, atacando com perversidade as plantas

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de maior estimação. Mas, fazem o mal beneficiando a si, destruindo o que é bom,

o que é dos outros para proveito de uma espécie, porém, dão ao mundo o

exemplo do trabalho, da coragem, da persistência, resistindo ao combate dos

homens em diversas formas. Trabalham como egoístas, não se importando com o

prejuízo dos outros. Neste pensar, pensar, voltei meu pensamento ao mundo,

onde existem muitas formigas humanas, conscientes de seus atos. E quando as

formigas não trabalham para seu próprio bem e ainda destroem os seus

semelhantes? Pensando estas coisas, julguei ser covarde, aniquilando estes

bichinhos laboriosos que carregam até folhas secas!

Não me entrego à melancolia, gosto muito de escutar boas músicas, ouvir

noticiários, o Jaime Gomide, assistir bons programas de televisão, principalmente,

novelas, conhecer e elogiar os bons apresentadores de programas, como J.

Silvestre, Flávio Cavalcanti e outros. E tem mais. Depois de velha, talvez pela falta

de trabalho, tornei-me torcedora número um do futebol e fã do Cruzeiro. Tudo

serve para encher o tempo e tornar menos insípida a velhice. Vou marcando os

dias de jogos e, com ansiedade, espero a hora em que começam as pelejas.

Nessa hora, fico pertinho do rádio, aguardando as emoções de um gol do time da

minha preferência e, para nossa alegria, o Cruzeiro não decepciona seus

torcedores.

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Em fins de agosto de 1969 fui surpreendida, acometida de mais uma

complicação do meu velho e doente organismo. Nesse dia, nessa hora, então,

pensei sério e quase pude afirmar, na minha firme compreensão, enxerguei como

iluminada por uma luz de Deus, que dificilmente completarei aqui na terra os

setenta e cinco. Senti grande abalo, grande nervosismo, e quem não sente?Quem

é humano é fraco; qual criatura não se abalará ao pensar na mudança eterna para

o mundo desconhecido?

Desde três de julho de 1969 estava muito triste, com meu espírito muito

abatido, muito decepcionada da vida, mas chegando a madrugada do dia dez, dia

em que, em 1925, nasceu meu terceiro filho, às seis e quinze da manhã. Fui

relembrando a dedicação, o amor, o desvelo que este filho sempre teve comigo

desde a sua infância, e tudo serviu para alentar meu coração. Hoje é ótimo pai de

dez filhos. Pedi a Deus que lhe recompensasse em quíntuplo a sua dedicação, o

seu amor e o abençoasse muito. Em 1937, no dia em que nasceu o seu último

irmão, todos os outros seis saíram com a empregada a mandado do meu marido,

dando um passeio, deixando a casa mais quieta. O meu filho Antônio, com doze

anos, não quis acompanhar a turma. Ficou na cozinha com a empregada, talvez

preocupado com a sua mãe. Quando, em dado momento, Zezinho, chegando ali,

pediu à empregada um pouco de água quente, disse-lhe: você já tem mais um

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irmão. Ele, notando a emoção do pai, pensou que eu tivesse morrido e para se

acalmar e verificar a verdade, teve que ir ao meu quarto para me ver. Não fui eu

quem lhe ensinou esse nobre sentimento.

Se, lá do além, eu puder, os acompanharei com desvelo, como fazia aqui

junto deles. Partindo, entrego todos a Deus que infinitamente bom e poderoso

zelará por eles até o dia em que, se for permitido, nos encontraremos para nunca

mais haver separação, embora, tudo lá no mundo do além seja um grande

mistério para as criaturas!