Memórias de minha Mãe.pdf
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Dizem que de médico e de louco todos nós temos um pouco. Assim, eu,
com os meus setenta e quatro anos, tenho a mania de escrever sem a necessária
instrução. Vou escrevendo fazendo como os músicos que tocam de ouvido, sem
saberem música. Vou escrevendo sem saber regras gramaticais. Mania de
escrever lembrando o passado para esquecer o presente. Para gente velha, no fim
da longa caminhada, sem ideais para o futuro, o presente é vazio e triste. É
solidão e saudade. O velho empurra o presente recordando o passado sem
distinguir, sem olhar, se o que passou foi bom ou ruim, se foi alegre ou triste, de
vitórias ou de fracassos! Entrego tudo a Deus escrevendo para que passem as
horas, os dias e, finalmente, a vida...
Quando me levanto rezo, entrego-me a Deus e tudo quanto possuo:
marido, filhos, netos, noras e genro. Vejo algumas vezes uma manhã clara. O
despontar tão bonito do sol, as montanhas que circundam Belo Horizonte, se
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despedindo dos nevoeiros que vão correndo. Apreciando este panorama da
natureza, penso: se Deus misericordioso não houvesse me dado o marido zeloso,
filhos bons, dedicados, não tivesse guiado um médico competente como o Dr.
Ennio Coscarelli para me operar a vista, nada disto eu poderia apreciar e nem
continuar na minha mania de escrever. Que faço? Rezo por eles. Estive à beira da
cegueira, achava impossível a recuperação da minha visão, sofria com a
possibilidade de não poder contemplar a beleza do mundo. Eu me enganava
vendo pela imaginação o sol, as montanhas, os vales floridos, a serra sem
vegetação, regatos enfeitados de borboletas, areais, como eu, ainda menina, via
na fazenda do Mata-Cavalo. Rios, morros cheios de fendas, igrejinhas em altos de
graminhas verdes, casas envelhecidas, sobradões coloniais, tropas passando nas
ruas. Via na minha imaginação um mundo de coisas de todos os lugares onde vivi
e passei, apenas, momentos. Minhas moradas nas roças e cidades do interior,
viagens, enfim, tudo o que passou por mim nestes setenta e quatro anos vividos
ou vegetados em diversos cantos deste planeta.
Vida bem vivida é o que eu invejo neste mundo, valendo mais do que todas
as riquezas e honras. É um tesouro que nem todos alcançam. A beleza de uma
vida bem vivida não me cabe. Talvez vegetei mais do que vivi. Na velhice, olhando
o que passou, sem poder voltar atrás, é que enxergo um vazio imenso do que
poderia ter feito de bom, de valioso e não fiz.
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Meus pais trabalhavam sem esmorecimento, mas isto aprenderam desde
os primeiros anos de vida. Meu pai, quando moço, era ferreiro, batendo ferro na
bigorna para fazer ferraduras e cravos e minha mãe, filha de um riquíssimo
fazendeiro do tempo da escravidão, foi criada no trabalho. Desde mocinha era ela
quem, às tantas da madrugada, levantava-se para abrir as portas das senzalas
onde dormiam os escravos do rico português Bento Simões que, aqui no Brasil,
adotou o cativeiro e era considerado cruel com os escravos. Minha mãe lutou em
sua mocidade na fazenda do pai, Empoeira, e continuou a vida trabalhosa, no
Mata - Cavalo e assim foi até o fim da vida.
Nem se pode fazer uma mínima ideia de como foram criadas as gerações
antigas. Hoje, os médicos podem dizer que os seus colegas do fim do século XIX
e primeiras décadas do século XX eram prodígios. Sem os recursos modernos
salvavam vidas, debelavam moléstias que assolavam a humanidade. Naquele
tempo, quase que para todas as moléstias eram aplicados os infalíveis purgativos
salinos: de óleo, de folhas de sene, de pétalas de uma espécie de rosas, de
Rubinat e até de calomelano. Este último servia como purgativo e, também, como
antissifilítico. Para as parturientes era indispensável o purgante de quatro
espécies: maná, sene, sal amargo e rosas. Até 1920, em Serro, o humanitário
médico Dr. Tolentino exigia, para as suas clientes este milagroso purgativo. Nas
gripes e nas pneumonias tratava-se com antipirina e quinino e para a eliminação
do catarro pulmonar, aplicavam-se sinapismos de sementes de mostarda moída,
na parte externa do tórax e dava-se, como medicamento interno, um melado com
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poaia moída (que, por sinal, era muito gostoso). Uma certa vez, achamos tão
apetitoso que eu, e meus irmãos, tomamos demais e nos serviu de vomitório.
Quando mamãe viu, cada um vomitava num canto. Nunca vi meu pai comprar
outros remédios na farmácia. Para curar umbigo dos recém-nascidos usava azeite
de candeeiro ou azeite de mamona. Aplicava-se o pó de fumo, e como não havia
talco, a goma de mandioca o substituía e para isto minha mãe a transformava num
pó finíssimo.
Hermann Utsch, meu bisavô, foi o segundo mestre fundidor, de altos fornos
que dirigiu a fábrica do Morro do Pilar. Em 1820 o governo mandou contratar os
prussianos Utsch, na Europa, para as fundições no Brasil. Hermann Utsch e seu
filho João Henrique Utsch foram destinados ao Morro do Pilar. Em companhia do
mestre Utsch veio, também, outro filho, meu avô, com quinze anos: Daniel
Henrique Utsch. Em 1830 terminou o contrato. Meu avô casou-se com uma
mineira, Ana Salvador Correia, e fixou residência na localidade de Mata - Cavalo.
Ali ele criou a família, trabalhou numa tosca fábrica de ferro, ali faleceu e foi
sepultado no adro da Igreja Nossa Senhora do Pilar (porque ele era luterano).
Nessa igreja fiz a minha primeira comunhão em 1906 ou 1907, na ocasião das
missões, mas eu era tão ignorante que nem o terço eu sabia rezar. Quando eu ia
a Sabinópolis, onde reside minha filha Neli, eu passava nas ruas do Morro do
Pilar, hoje cidade, olhava a Matriz e vinha-me logo a lembrança daquele dia em
que, ali, ao lado dos irmãos Quinzinho e Marieta, recebi Nosso Senhor pela
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primeira vez. O vigário da Vila era um santo sacerdote, o cônego Matos, muito
amigo dos meus pais. Nessa mesma igreja foram batizados os meus irmãos:
Benedito, José, Bento, Cota, Rita, Aurélia.
Quantas vezes no silêncio de minha casa, em Belo Horizonte, no Bairro
Pompeia, quando filhos e netos saem, cada um no cumprimento de seus afazeres,
volvo o pensamento ao passado tão distante, no princípio do século XX. Época
sem rádio, televisão, cinema, gravadores, foguetes que levam os astronautas à
lua, ali pisando, passeando no espaço, aviões a jato, exploradores das mais
profundas camadas dos oceanos, transplante de coração, terrível bomba atômica.
Fico comparando com aquele tempo em que vivi a maior parte da minha
existência na maior obscuridade. Quando eu era menina, um aparelho como o
fonógrafo para muita gente era uma coisa do outro mundo. Lembro-me da
passagem do outro século. Eu estava com quatro anos e ouvia dizer que o
transpor do século para outro era muito perigoso, de modo que na minha casa no
Mata-Cavalo, minha família passou rezando na noite de trinta e um de dezembro
de 1899 para primeiro de janeiro de 1900, e no dia oito nasceu o meu quinto
irmão.
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Saudade do tempo em que passei ao lado de minha mãe querida. Quando
eu tinha sete anos, ela, a escrava dos afazeres domésticos, me chamava às
quatro horas da madrugada para eu tomar conta dos irmãozinhos mais novos a
fim de que ela pudesse desempenhar suas pesadas tarefas. Minha mãe criou uma
família de treze filhos sem ter nunca uma empregada. Levantava-se de
madrugada, preparava o café, arranjava o necessário para o desjejum de todo o
pessoal da casa, inclusive os trabalhadores da lavoura. Depois íamos juntas para
um galpão onde havia uma roda com ralo, tocada a água para ralar mandioca e,
também, um monjolo movimentado a água para quebrar o milho e preparar o fubá
para a gostosa farinha de beiju. Ali, muito cedinho, eu a ajudava a ralar mandioca,
lavar a massa, coar em grandes pipas para com a fécula fazer a goma e torrar a
massa para a farinha. Tenho tanta saudade dos gostosos beijus de farinha que
minha mãe fazia! No meu entender minha mãe era uma heroína do trabalho. Até
hoje fico a pensar onde ela achava tempo e força para tantos trabalhos. Cuidava
de todo o serviço da casa, ainda lavava roupa, fazia rapadura moendo as canas
na engenhoca, cuidava da horta, preparava muitos doces, bolos, suspiros,
biscoitos, bolachas, etc. Meu pai cuidava de grande criação de abelhas e minha
mãe era quem preparava arrobas de cera, bem clarinha, para fabricar velas e ela
ainda fazia velas de sebo de boi para o consumo da nossa casa. Fazia azeite de
mamona, tão puro que parecia óleo feito por meio de maquinismo moderno. No
entanto, o processo era o mais rudimentar. Socava em pilões de madeira, uma
quantidade de grãos de mamona, tudo manejado à mão. Deitava esta massa, bem
socada, em tachos de cobre com água e punha-se a ferver até o óleo subir à
superfície, apanhando-o com colheres ou conchas e colocando em outro tacho
para secar.
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O povo do meu tempo tinha coragem, esforço, dinamismo para resolver,
com poucos recursos, seus inúmeros problemas, em quase todos os setores da
vida. Como exemplo destas qualidades, meus pais, mesmo residindo numa
localidade carente de recursos técnicos, trabalhavam sem esmorecimento.
Eu conheci um médico quando tinha treze anos, o Dr. Cassimiro de Souza
(nosso parente); por sinal foi este médico que me examinou, receitou-me sete
garrafas de óleo de fígado de bacalhau e ainda disse aos meus pais que eu não
chegaria aos quinze anos! No entanto, em 1969, ainda estou vivendo com meu
espírito ainda lúcido, admirando as maravilhas do século XX as quais ele não viu,
não gozou, porque morreu com trinta e poucos anos. O Dr. Cassimiro angariou
auxílios em sua terra natal para estudar e formou-se na Faculdade de Medicina da
Bahia. Serviu, ainda, quando estudante, na guerra de Canudos. Foi ardoroso
político em Conceição do Mato Dentro, sua terra. Faleceu em consequência de um
desastre, quando em viagem, a cavalo, em meio de penhascos, caiu do animal e
bateu com o fígado numa pedra. Ia atender a um pobre enfermo. A medicina
antiga fazia do profissional um sacrificado.
Mesmo ignorando para onde o tempo leva o passado, vou alimentando
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minha saudade, seguindo minha mania de escrever. Até 1930, 1940 e ainda mais
além, no interior abandonado, não se ouvia falar em rodovias. As viagens, os
transportes eram feitos no lombo dos burros e para quem não os possuía e nem
tinha dinheiro para alugá-los tinha que ir a pé. Logo que chegamos ao Rio
Vermelho, em 1927, o meio mais rápido para o meu marido adquirir material para
o seu gabinete dentário era mandar um senhor que ia a pé, percorrendo trinta
léguas em três dias, ida e volta, a Diamantina. Era interessante ver atravessando
as estradas, vilas e cidades, os lotes de burros, a famosa tropa. Compunha-se de
doze animais: um cavalo de madrinha ia à frente, cavalgado pelo homem que era
o cozinheiro, de lenço na cabeça; atrás, um homem chamado tocador, porque com
um chicote a estalar no ar apressava os passos da tropa. Havia o arreeiro, o
encarregado da venda das mercadorias e da aquisição de novos artigos para a
volta da tropa. O tocador era sempre um homem forte, capaz de pegar seis
arrobas. Esses homens, caminhando atrás do lote de burros, faziam quinze
quilômetros todos os dias. Calçavam alpercatas de couro cru para suportar o chão
duro e os pedregulhos da estrada. Na marcha lenta e monótona, iam os tropeiros
levando as mercadorias necessárias ao sustento de milhares de criaturas por esse
Brasil afora. Quebrava o silêncio das estradas o tinir dos guizos do burro de guia
que levava sua cabeçada toda enfeitada. E chamava a atenção da criançada
quando entrava nos povoados, vilas e cidades. Pobres tropeiros, que trabalhavam
dias, meses, anos, conduzindo tropas, sempre alegres levando uma vida
desconfortável e até perigosa. Subiam escarpados, atravessavam chapadões
frios, gelados. Dormiam em cima de um couro de boi, enrolados nas cobertas,
chamadas de São Vicente. Viajando o dia todo esperavam a noite para comerem
nas rancharias o feijão tropeiro com torresmos e carne seca. Quem preparava
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este guisado era o tropeiro, de lenço na cabeça que fazia a viagem cavalgando o
cavalo “madrinha” da tropa. Ia à frente, chegava primeiro na rancharia, corria para
buscar água, botava feijão para cozinhar e preparar a refeição. Enquanto isso, o
tocador e o arreeiro descarregavam a tropa, lavavam os lombos dos burros,
davam-lhes milho no bornal de couro, repregavam as ferraduras se estas
soltassem no percurso da viagem. Certa vez, um grupo de tropeiros foi vítima do
frio intensíssimo no chapadão de Diamantina. Dois morreram e foram conduzidos
na mesma tropa que tocavam para o cemitério existente no povoado mais
próximo. Estes homens simples e pobres levavam tantas coisas necessárias a
inúmeras populações brasileiras. Ganhavam pouco por um trabalho tão
importante, ligando cidades do interior a outras cidades distantes. Os donos da
tropa, senhores ricos, tinham o capricho de enfeitarem de laços de fitas a
cabeçada do burro de guia, sempre o mais bonito. Se ocorresse luto nos familiares
dos ricos patrões, ao invés de fitas de cor, amarravam laços pretos, de maneira
que, ao se encontrar um lote de burros na estrada, sabia-se que havia morte na
família dos donos.
Meu pai, José Daniel Utsch, era filho do alemão prussiano Daniel Henrique
Utsch e da mineira Ana Salvador Correia. Seu pai veio de Berlim com a idade de
quinze anos em companhia de seu avô Hermann Utsch. Este foi contratado por
D.João VI, em 1820, como mestre de altos fornos para dirigir uma fábrica de ferro,
no morro do Gaspar Soares, hoje Morro do Pilar, numa localidade denominada
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Picão. Meu pai nasceu na fazenda do Mata-Cavalo, distante seis quilômetros. O
nome de Mata-Cavalo que deram à fazenda originou-se de um morro muito
íngreme, pouco distante da fazenda, na estrada que ia para Morro do Pilar e, ao
escalar esse morro, a cavalo, estes, muitas vezes, afrouxavam, ou até morriam.
Neste recanto da terra, onde seus pais e mais alguns membros da família Utsch
fixaram residência, meu pai nasceu e cresceu. Neste sítio cercado de grandes
serras que lhe davam um aspecto solitário e triste, ele foi criado com mais dois
irmãos, Daniel Henrique Utsch, Francisco Utsch e uma irmã, Anna Utsch (tia
Nhanhá). Ela, ainda pequena, foi para a companhia de uma tia alemã e um tio, em
Conceição do Mato Dentro. Ali ficou até se casar com um alagoano, Dr. Antônio
Serapião de Carvalho, naquela época promotor em Conceição. Este alagoano foi
juiz em diversas cidades mineiras e é pai do saudoso Daniel de Carvalho, nome
que honrou tradições históricas de Minas e do Brasil. Meu pai viveu nestas plagas
até à idade de trinta e oito anos trabalhando como ferreiro junto de seu pai e,
depois da morte deste, com seus irmãos Dani e Chico. Batia o ferro na bigorna,
fabricava cravos, ferraduras, foices e machados para o ganha-pão da família, mãe
e irmãos. Era apaixonado pelas serenatas. Depois de trabalhar o dia todo, ia, nas
noites de luar, com seu violão, executado com a mão esquerda, pois era canhoto,
com seu irmão Dani que tocava concertina, acordar as moças de Morro do Pilar,
onde ele era muito querido e admirado.
Casou-se em vinte e três de janeiro de 1892 na fazenda da Empoeira,
município de Serro. Conheceu aquela que foi sua esposa em Junho de 1891 na
tradicional festa do jubileu de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em
Conceição do Serro, na época em que estavam em evidência as filhas do
fazendeiro Bento Simões, há pouco falecido. Diziam que este rico português tinha
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deixado uma grande herança. Na antiga fazenda da Empoeira, morada do sogro,
meu pai se casou e fixou residência. Seis anos depois do casamento, ele se
mudou para o seu tristonho berço natal: Mata-Cavalo, por ter sido vítima de um
atentado contra a sua vida. Salvou-se por um milagre de Deus. O motivo era a
ambição dos cunhados por verem um simples ferreiro financeiramente bem,
aumentando com o seu trabalho a parte que lhe tocou na herança. Quem foi pobre
ferreiro não podia ser rico, era o que alegavam os malfeitores, que numa tocaia
tentaram matá-lo. Os autores do atentado foram os seus cunhados. Meu pai
soube perdoar, não se vingou. Sempre dizia: quem vive é que paga o mal que faz;
desejo para meus inimigos uma longa vida.
Logo após sua chegada a Mata-Cavalo, ganhou, como presente, um
velhinho, tio avô materno, tio Anastácio. Tão velhinho, que foi preciso meu pai tirá-
lo de cima do cavalo. Acolheu-o com toda a caridade, zelou por ele e, auxiliado
por minha mãe, o amparou até à morte.
Neste cantinho do mundo, berço dos Utsch, moramos dez anos. Depois de
lutar numa região agreste, sofrendo grandes prejuízos, mas sempre independente
e muito estimado por seus conterrâneos, foi convidado por seus antigos algozes a
regressar. Comprou as suas terras, suas propriedades e voltou para a mesma
fazenda onde fora cruelmente atacado. Nesta fazenda fixou sua residência, em
1909, e aí viveu os oito últimos anos da sua vida, lutando e trabalhando.
Meu pai faleceu no dia vinte e sete de janeiro de 1917 com 63 anos, depois
de suportar, durante dois anos, uma enfermidade que o privou da fala. Suportou
todos os sofrimentos como um verdadeiro cristão. Quando o sofrimento o feria,
repetia sempre: Deus me aumente o sofrimento e me aumente a paciência.
Mesmo residindo na roça recebeu todos os sacramentos ministrados pelo
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sacerdote padre Francisco Xavier. No longo espaço de sua mudez conversava
com a família, escrevendo numa pedra, fazendo recomendações e dando
conselhos aos filhos, pedindo-lhes união. Foi sepultado dentro da igreja do distrito
de Itapanhoacanga, hoje distrito da nova cidade Alvorada de Minas. Deixou aos
filhos o exemplo do trabalho, da honestidade, de um homem calmo, paciente, de
um coração generoso e confiante em Deus.
Recordando a minha infância, lembro-me do berço da família Utsch e,
sobretudo, o do meu pai: o Mata-Cavalo, lugar onde passei a minha meninice.
Vejo ainda aquela casinha, sem varanda, cercada de serras, onde, à noite, se
ouvia o uivo dos lobos e, de dia, o cantar triste das juritis e das rolinhas “fogo-
pagou”, no meio das laranjeiras e em cima dos cafezeiros, as quais eram os
encantos de meu pai. Foi e é o ponto de minhas nítidas e saudosas recordações.
Lembro-me, muito bem, como a visse hoje, aquela casa de construção tosca ao
fundo de um grande curral, muito íngreme. Tinha perto da porta da cozinha uma
parreira e uma roda movida a água, mas, naquela época, estava parada.
Antigamente, servia para fazer funcionar a tosca fábrica de ferro de meu avô
Utsch. Eu, menina ainda, e meus irmãos ficávamos assentados numa prancha de
taboa larga e grossa, colocada sobre a valeta por onde desciam as águas, que
nós chamávamos inferno da roda. Ali escutávamos a cantoria dos sapos que
moravam naquelas águas. Quando ia escurecendo ficávamos a gritar os
pirilampos que, de quando em quando, clareavam a escuridão da noite num
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recanto solitário do mundo, onde a vida para nós parecia tão boa. Recordo-me do
majestoso pé de jaca em cuja sombra brincávamos colhendo as folhas, fazendo
guisados de mentira e comendo os frutos. Subíamos nas porteiras, olhando
nossas vacas pintadas pastando lá por cima da serra, lá bem longe, à procura de
ervas verdes, pois o terreno era seco. Elas corriam o risco de rolarem e morrerem,
como acontecia com muitas delas. Vejo, como se fosse hoje, o areão alvo como a
neve, um pouco além da nossa casa, onde, juntamente com meus irmãos,
distraíamos fazendo castelinhos de areia. Apanhávamos flores cheirosas de
pequenos arbustos, corríamos atrás das borboletas de milhares de cores que
enfeitavam os regatos daquela região. Estes regatos corriam para o rio Mata-
Cavalo que ladeava o quintal da nossa casa. Nesse rio é que, de madrugadinha,
eu e minha irmã Marieta íamos tomar banho frio a mandado do médico Dr.
Cassimiro de Souza. No trecho que passava ao lado da nossa casa existiam
poços fundos e, também, belos panoramas correndo em plenas rochas, que
formavam caldeirões na pedra onde minha mãe lavava a roupa. No leito do
mesmo rio, no fundo do quintal, uma queda d’água servia para banhos à moda de
chuveiro que não era conhecido naquele tempo. Meu pai me contava um caso que
se deu nessa pequena cascata. O seu cunhado, o alagoano Dr. Antônio Serapião
de Carvalho foi ali tomar banho, escorregou no lodo das pedras, caiu e feriu a
testa. Fez um portador ir a galope a Conceição de Mato Dentro buscar curativos e
o cavalo correu tanto que foi chegando e morreu. Aquele juiz quando passava
suas férias, naquela região, andava de botas e carregava permanganato no bolso
por causa das cobras cascavéis que infestavam o lugar. Este magistrado tinha
medo de tudo, até dos ventos.
Que recordação do meu trapézio! Era improvisado por mim e meus irmãos,
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enquanto mamãe lavava roupas. Nas matas que ladeavam o rio havia cipós tão
fortes que nós os amarrávamos e fazíamos balanços sob as árvores. Naquele
tempo, embora ainda neste século (1900), quase nenhuma criança, principalmente
as que viviam em lugares isolados como nós, conhecia brinquedos comprados em
lojas. Na minha meninice, os brinquedos das meninas eram as bonecas de pano,
as casinhas feitas debaixo das árvores, os fogõezinhos de pedra onde
cozinhávamos os guisados. Não se falava na vinda do Papai Noel. Nem sei como
se passava o Natal. Falava-se muito na missa do galo. Minha mãe, que não ia,
pedia ao meu pai para ler para nós o livrinho O Missionário em Casa com as
histórias da vida de Jesus e da sua paixão, e eu, pequenina, de uns cinco anos,
ouvindo as leituras, chorava com pena de Jesus sofrendo tanto.
Durante o tempo que passei no sítio agreste do Mata-Cavalo, os nossos
passeios prediletos eram ir à chácara da Faúba, onde meu pai tinha plantações de
banana, cana e algum café; ir à fazenda de meu tio Dani, (fazenda do Cubas); ir a
pé para participarmos das festas da chegada das primas do Colégio Macaúbas,
dos aniversários, dos casamentos; ir, também, à casinha, pobre, de um preto
velho, compadre Pacífico. Gente muito trabalhadora e caprichosa. Aí passávamos
o domingo e nos era oferecido o almoço que constava de feijão preto bem feito, o
arroz limpo no pilão, frango refogado, a especial farinha de milho torrada em forno
de pedra e o molho de cebolinha verde, verdadeira comida mineira. Nosso passeio
principal era na Vila do Morro do Pilar. Para irmos lá, aos festejos religiosos,
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fazíamos um preparo mais esmerado. Meu pai comprava uma peça, ou mais, de
fazenda mariposa, chamava uma costureira em casa e preparava as toaletes
todas iguais, cada uma de nós ficava mais contente e ansiosa de chegar a hora de
marcharmos, a pé, para a Vila. A minha última toalete, desta fazenda Mariposa,
era coral, toda enfeitada de sianinha amarelo-escura e eu a achava linda!
Lá na Vila, meu pai era tão estimado e considerado que até a banda de
música local ia homenageá-lo, tocando na porta da casa onde nos hospedávamos.
Apreciávamos a tradicional festa dos catopés, feita pelos negros de uma fazenda,
também chamada Mata-Cavalo, mais uns seis quilômetros distantes da nossa.
Essa fazenda foi doada aos negros escravos pelos seus senhores. Coitados!
Ignorantes, analfabetos e sem a menor orientação. O único ideal deles era
plantação de milho e feijão. Vendiam nos meses de junho e julho e em agosto
começavam os preparativos: ornamentação e as indumentárias para os três dias
de festa em honra de São Benedito. No Morro do Pilar estes festejos eram por
conta dos negros. Dançavam, pulavam, batiam caixas, bebiam cachaça durante
três dias. Gastavam tudo o que produziam na lavoura. De setembro até a futura
colheita, comiam palmito sem gordura, peixes e carne de bichos do mato. Viviam
como as tribos da África. Durante os dez anos em que residi no Mata-Cavalo,
nunca ouvi casos de violência no meio deste povo.
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Lembro-me, ainda, como passávamos a Sexta-feira da Paixão, na nossa
casinha do Mata-Cavalo. Minha mãe preparava, na véspera, quase tudo para se
comer no dia seguinte. Naquele dia não se fazia quase nada. Ao amanhecer, já se
viam nas porteiras do curral muitos negros carregando suas cabaças para enchê –
las de leite, que meu pai repartia com eles. Passávamos o dia em silêncio. Lia-se
a narração da Paixão de Nosso Senhor, no livro O Missionário em Casa.
Terminada a primeira refeição, saíam meus pais com a meninada toda. Íamos até
ao cimo de uma grande serra a fim de colhermos plantas medicinais: raízes, folhas
e cascas de uma planta chamada quina, da qual se fazia um chá muito aplicado.
Mamãe punha esta casca no leite quente para se tomar, quando sofria dores no
estômago. Diziam que as plantas medicinais, colhidas na Sexta-feira Santa,
tinham uma virtude especial para curar. Era a fé dos antigos. Lá no alto do morro
havia uma cratera, uma fenda tão profunda que meu pai atirava uma pedra
pesada, passando algum tempo para se ouvir o estrondo, no fundo. Eu era tão
medrosa que não me aproximava do lugar de maneira alguma.
Durante nossa permanência no sítio do Mata-Cavalo minha mãe não nos
deixava sem sua companhia. Quando ia a pé ao Morro do Pilar para levar cada
filho para batizar, ia de manhã e voltava de tarde, mesmo assim eu achava ruim,
sentia tanta falta dela. Se minha mãe faltasse na minha vida, o mundo seria para
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mim uma escuridão, não saberia viver. Era a estrela que me guiava. Mas como as
coisas mudam, aos meus dezesseis anos fui para o colégio, deixando minha mãe
tão triste. E só voltei nove anos depois quando meu querido pai já havia morrido e
minha mãe sofria a dor de duas separações.
As terras do Mata-Cavalo não serviam para a lavoura. Era um terreno seco,
areento, cheio de formação de ferro. Então, meu pai, homem muito trabalhador,
plantava milho e feijão num lugar chamado Carvalho, distante uns dez quilômetros
da nossa casa. Quando as colheitas terminavam, minha mãe tinha o costume, a
mania de restolhar as roças, aproveitando os restos de milho e feijão que os
trabalhadores deixavam.
Certa vez, íamos todos, de madrugadinha, mamãe, os meninos e os
empregados. Passamos o dia no ranchinho. Ao cair da tarde, todos de balaio
cheio, na cabeça, regressamos a casa. Tínhamos de passar dentro de uma
grande mata. Em dado momento, eu, até hoje não sei porquê, comecei a pirraçar,
caminhando bem devagar, deixando todos irem bem adiante. Todos foram
tomando distância e eu ficando para trás, não obstante minha mãe me chamar
constantemente. Já escurecia, todos na maior ansiedade de saírem da mata, e eu
atrasando-os. Um barulho forte – como se animais ferozes chegassem quebrando
as árvores. Ai! Minhas pernas finas correram como veado acossado pelos
caçadores. Cada qual corria mais até a mata ficar para trás. Fiquei assombrada.
Julguei até que fosse o demônio, porque estava pirraçando. Afinal, meu pai por lá
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passou, não viu o menor vestígio de madeira quebrada, isto me convenceu de que
era coisa de outro mundo.
Tenho ainda saudades das viagens do Mata-Cavalo a Conceição do Mato
Dentro, onde me hospedava em casa da Dona Quinita Alves, no alto do Gambá.
Tinha duas filhas muito boazinhas, a Fabíola e a Almerinda. Elas costuravam para
mim, penteavam meus cabelos e me levavam a passeios.
O meu condutor nessas viagens era meu pai. Em cada pedacinho da
estrada, ele rememorava um fato acontecido. Mostrava-me os lugares onde ele,
ainda rapazola, passava com a irmã, a tia Nhanhá (Ana Utsch de Carvalho).
Contava-me as histórias e os perigos do Sumidouro no rio Santo Antônio. A
localidade tem o mesmo nome (Sumidouro) onde restavam velhas casinhas, que
foram residência de alguns membros da família Utsch. Sumidouro, porque debaixo
de uma ponte, o rio formava um enorme poço, entrava numa fenda da serra que o
circundava e ia cair depois de grande distância. Continuava a correr num corredor
de pedra. Eu tinha horror de atravessar essa ponte. Quando marcavam minha
viagem para Conceição, de noite eu não dormia com medo antecipado da
passagem da ponte. No dia seguinte, depois de atravessá-la, esquecia do medo e
apreciava a paisagem: o rio Santo Antônio correndo até Conceição em terras
planas, dividindo-se em braços, formando ilhas de areia branca onde vacas
pastavam. Pouco adiante do Sumidouro, uma casinha tosca e junto dela uma
enorme e majestosa gameleira. Era tão grande que os tropeiros faziam suas
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rancharias, armavam cozinha e acomodavam lotes de burro, debaixo dela. Parecia
uma árvore legendária.
Desde pequena era curiosa pelas coisas da natureza. Nas viagens, nos
passeios, era meu prazer apreciá-las.
Já muito velha, no fim da longa caminhada, ainda conservo o interesse, o
desejo de conhecer e apreciar as belezas da natureza, as obras primas do
Criador. Eu me distraio olhando as serras que circundam Belo Horizonte, minha
última residência se assim for desígnio de Deus.
No Mata-Cavalo, o horizonte era pequeno, abrangendo apenas as serras
que o circulavam. Fazia daquele sítio uma morada tristonha. Uma das distrações
prediletas de meu pai era a caçada de veados e codornas. Ele reunia um grupo de
amigos que gostavam, também, de caçar. Ficavam em nossa casa duas semanas.
Cada um levava uma matilha. Ao término das caçadas, minha mãe e eu
estávamos estafadas de tanto trabalho... As caçadas serviam para alegrar meu
pai, quebrar um pouco a monotonia daquele lugar isolado e melancólico. Esta
fazenda foi vendida por quatro contos ao senhor Teófilo Tomaz, muitos anos
depois da nossa mudança em 1909.
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As terras de Empoeira, meu berço natal, de onde sai com três anos e para
onde retornamos em 1909, quando eu já tinha treze anos. Fiquei ali até 1911, data
em que fui para o Colégio São Joaquim, fundado em 1910 pela Irmã Isabel da
Imaculada, que foi sua primeira superiora.
Quando fui para o colégio, tinha as primeiras letras. Fiz o curso primário
com um professor da roça que não sabia nem falar o português. Aprendi o ABC
depois li a Cartilha do BABA. Cobri o tal debuxo, isto é, encobrir com tinta o ABC.
Aprendi a ler nos pedacinhos de papel, enquanto olhava os meus irmãos
pequenos para mamãe trabalhar. Mesmo descuidando das minhas obrigações (o
que me custava uns puxões de orelhas), eu lia e relia os almanaques dos
remédios, folhinhas e o Soldadinho de Chumbo, meu livro predileto e único.
Chegando ao colégio, fiz pequena preparação em poucos dias. Prestei
exame, passei e matriculei-me no primeiro ano normal.
Não sei quem me pôs na cabeça a ideia de ir para o colégio. Até fiz
promessa para meu pai vender uma partida de queijo a fim de me levar. Minha
mãe ficou tão triste que até adoeceu. Nada deteve o desejo de estudar, nem o
pedido do pretendente ao casamento. Meu pai é que desejava que eu estudasse e
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fosse professora.
Cursei até o terceiro ano normal, faltando apenas seis meses para a
formatura. Decidi tornar-me freira. Assim, contrariando a vontade de meus pais,
segui, em junho de 1914, para o noviciado em Diamantina. Acompanhava-me a
minha mui querida Irmã Isabel. Naquela ocasião, com meus dezoito anos, pensei,
entendi que a minha vida feliz seria num convento longe, bem longe de um mundo
enganador, junto ao Deus vivo no Santíssimo Sacramento. No colégio estava feliz.
Como na vida tudo é mutável, transitório, a vontade humana também é mutável.
Após uma permanência de nove anos, sendo três, no Colégio São Joaquim, três
no noviciado em Diamantina e três no Colégio Santa Clara, em Itambacuri;
naquela altura, decidi voltar à casa dos meus pais.Cheguei no dia vinte e sete de
janeiro de 1920. Meu saudoso pai já tinha falecido. Encontrei um vazio imenso, um
lugar impreenchível daquela figura austera e boa de um pai que tinha por mim
grande predileção.
Durante nove anos que passei distante da família encontrei muita gente
bondosa, muitas almas santas, dentre elas a Irmã Isabel da Imaculada. Ela foi
quem me levou para o noviciado em Diamantina. A viagem foi feita a cavalo,
passando pelo Serro. Numa fazenda pertinho da minha casa (fazenda do senhor
Pedro Generoso) estava à minha espera meu pai. Recebi sua benção e seu último
abraço. Que encontro! Nunca mais desapareceu da minha memória a imagem de
meu pai, de cabelos e cavanhaque brancos, homem de estatura média, olhos
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azuis e fundos, gestos calmos, me abençoando, sem chorar, mas sentindo uma
imensa tristeza. Saímos de manhã, deixando-o ali no curral junto ao fazendeiro.
Meu bom e querido pai. E minha mãe como ficou lá na roça? Hoje que sou mãe
sei avaliar o que ela sofreu.
Minha companheira de viagem foi a Irmã Isabel. Aquela alma santa que
durante três anos e tanto foi para mim uma verdadeira mãe: carinhosa, uma
mestra na ciência e na virtude. Era uma alma heróica de quem conservo as mais
caras recordações e saudade.
Quero relembrar um pouco esta mestra amiga, que revi em 1953. Como já
mencionei, foi fundadora do Colégio São Joaquim, em Conceição do Mato Dentro,
época em que a cidade passava por uma crise horrível de decadência e por uma
politicagem assombrosa. A Irmã Isabel era austríaca, nasceu ainda no século XIX.
Seu nome verdadeiro era Tereza Bolli. Quando pequena, ficou órfã de pai e tinha
uma irmã chamada Josefina. Fez o curso primário com a mãe que era paupérrima.
Pôde fazer porque o governo fornecia todo material escolar, roupa, calçados para
as crianças pobres em idade escolar. Aos nove anos foi para o educandário de
uma senhora de costumes muito severos e de grande rigor com as educandas.
Ela sofreu muito e devido à má alimentação dada no estabelecimento, tornou-se
fraquinha e doente. Ficou no educandário até diplomar-se em pintura, trabalhos
manuais e corte e costura. Sua mãe era tão pobre, tão pobre que trabalhava em
casas de família fazendo bolos, macarrão e outras massas, e levava para casa as
mãos sujas de trigo e com água preparava mingau para as duas filhas.
Chegando à idade adulta foi dar aulas de pintura e francês. Sabia o italiano
e a língua de Trieste, um dialeto. Com muita facilidade aprendeu o português. Aos
vinte e cinco anos embarcou para Bertinária, cidade italiana, e ingressou na
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Congregação das Missionárias Clarissas Franciscanas. Deixou sua terra natal, a
mãe velhinha e veio para o Brasil. Em 1910 a Congregação designou a Irmã
Isabel para fundar um colégio em Conceição do Mato Dentro, atendendo a um
pedido de Dom Joaquim Silvério de Souza, de tão saudosa memória.
Cumprindo as ordens dos seus superiores, embarcaram em Trieste rumo
ao Brasil, deixando com pesar a irmã quase moribunda, precisando de assistência
e a mãe velhinha e pobre. Depois de vinte e um dias no mar, desembarcaram na
Baía de Guanabara com duas irmãs, Irmã Cristina e Irmã Escolástica. Do Rio de
Janeiro até Conceição não me recordo do trajeto percorrido. Recebeu um casarão
velho para fundar um colégio. Lutava com as maiores dificuldades num meio
pobre sem ajuda financeira. Com os poucos recursos obtidos, trabalhou, dirigiu as
obras, os consertos e as adaptações do casarão e instalou, finalmente, o colégio.
Depois de passar por vários educandários de Minas, voltou para o colégio
que fundara, aí morou muitos anos. Com a idade avançada e doente veio para
Belo Horizonte à Casa Madre. Está repousando em Deus desde nove de setembro
de 1957.
No noviciado em Diamantina passei três anos. Um ano e tanto no Hospital
da Saúde. Outro ano e tanto no Convento. Conheci algumas irmãs, como a Irmã
Laurentina, a superiora, a Irmã Barberina, a sacrificada cozinheira, e a Irmã
Virgínia, enfermeira, uma italianinha caridosa. Tratava os doentes com amor e
zelo.
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No Hospital, conheci também velho conterrâneo, muito amigo, que me
chamava: “um pedacinho de Conceição”. Era o culto sacerdote, cônego Severiano
de Campos Rocha. Ilustre escritor, poeta, amigo incondicional dos cães. Se
alguém prendesse um dos seus buldogues, ele não celebrava enquanto não o
visse solto. Quando ia fazer o relatório do Hospital, ele era o capelão e provedor,
chamava-me na farmácia para ver um cachorrinho, sentado na cadeira, comendo
biscoito. Se morria qualquer dos seus cachorros mandava tirar o retrato, punha
num quadro e colocava em sua sala. Às vezes passava semanas inteiras na
chácara do hospital. Aproveitava o silêncio e a quietude do lugar para estudar e
mimar seus cães.
Ele tanto apreciava os cachorros como odiava os galos. Na hora da missa,
parava e mandava o sacristão espantar os galos da vizinhança, os quais
abalavam os nervos do celebrante. Assisti a isso, muitas vezes, no Hospital da
Saúde, em Diamantina.
Sábios são os desígnios divinos. Envolvem em denso mistério os fatos que
com o desenrolar do tempo vão surgindo. Deus infinitamente sábio e bom.
Conhece nossa fraqueza, vai nos levando na escuridão do futuro e quando
permite a dor, a amargura invadir nossa alma, dá força, dá coragem para
continuarmos a vida.
Na viagem marítima de cinco dias em 1916, no navio costeiro Javari íamos
do Rio de Janeiro a Caravelas. Eu subia ao convés e via a beleza do mar, ora
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calmo, com seu manto azul escuro, ora com suas ondas brancas e encapeladas.
Ninguém poderia afirmar uma realidade tão dura: que alguns anos depois,
naquelas ondas tristonhas do mar, haveria de boiar o corpo do meu inesquecível
filho Mário. Aquele Mário não podia ter morrido e nem como foi. Deus mo tirou
com vinte anos e continuo com a vida até a Divina Providência achar que a minha
tarefa neste mundo está cumprida.
Voltando ao Colégio Santa Clara, onde lecionei três anos. Eu ficava até às
duas horas debruçada sobre os livros preparando as lições. Tive muitas alunas
indígenas das tribos pogichá, nak – nanuk e aranãs. Eram “domesticadas”. Mas,
certamente, sentiam falta do seu povo, dos seus costumes. Não gostavam das
freiras. Esconderam um porrete debaixo do colchão para, à noite, baterem na Irmã
que dormia perto delas.
Itambacuri foi fundada em 1873 pelos sacerdotes capuchinhos: Frei Serafim
de Gorizia, de estirpe nobre e de grande cultura e Frei Ângelo de Sassoferrato,
italiano. Estes dois europeus foram os desbravadores daquelas matas insalubres,
habitadas por diversas tribos de índios, que eram o terror dos habitantes daquela
região. Hoje é a cidade de Itambacuri.
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A fundação dessa cidade e da majestosa Igreja de Nossa Senhora dos
Anjos envolve fatos sobrenaturais. O Frei Serafim chamava-se João Batista. Era
um alto funcionário do Ministério, na Áustria, no tempo do Imperador Francisco
José. No dia do seu noivado com uma moça da nobre sociedade, ele sofreu um
acidente e se hospitalizou. Então, tomou a firme decisão de abandonar o mundo
com todas as honrarias. Foi para Roma e ordenou-se sacerdote franciscano. No
convento teve uma visão. Viu Nossa Senhora que disse para ele: quero que
construam um templo para mim, mas não na Europa. Tempos depois, foi mandado
como missionário para o Brasil, a fim de catequizar os índios nas selvas do
Mucuri, no Vale do Rio Doce.
Embrenhou-se nas matas incultas, enfrentou perigos terríveis, arriscando a
vida numa região habitada por índios ferozes. Mais tarde, juntou-se a ele Frei
Ângelo. Juntos realizaram um trabalho que até hoje existe em Itambacuri. Tudo
que ali se via de progresso era esforço, dinamismo daqueles humildes frades.
Antes de sair do Colégio Santa Clara, presenciei o falecimento desse santo
sacerdote. Morreu como verdadeiro discípulo de São Francisco de Assis. Sua
memória continua cultuada em Itambacuri. O mesmo acontecendo ao seu
companheiro Frei Ângelo que faleceu em 1926.
O médico baiano Dr. Pedro Autran, levado para ali, pelos freis, também foi
um grande auxiliar dos freis, no progresso da Vila de 1916 a 1926. Depois da
emancipação do distrito à cidade, foi esse médico o presidente da Câmara: iniciou
o hospital que, ao sair, deixou em condição de ser inaugurado.
Itambacuri, zona de terras fertilíssimas. Além das chácaras pertencentes ao
colégio das irmãs, os padres possuíam uma chácara, distante uns três quilômetros
da Vila. Nessa chácara, num recanto bucólico, era o ponto dos piqueniques e das
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farras das alunas. Elas levavam salgados, licores e lá, se entrouxavam com as
deliciosas frutas: laranja, ameixas, uvas, abacates e abios. Lá se divertiam à
vontade, passeavam de canoa, na grande lagoa existente dentro da chácara.
A vida já foi comparada a um comboio a passar. Enquanto o comboio passa
a correr, transformando, mudando e destruindo tudo, volto o pensamento ao
passado de setenta e tantos anos. A cada dia, compreendo essa verdade
indiscutível e, comigo mesma, digo: será que aquele lago existente na chácara
dos padres em Itambacuri servirá de distração para a mocidade atual? O comboio
da vida vai correndo e eu vou pensando, e continuando a escrever, alimentando a
mania de velha do outro século. Faço da lembrança do passado uma distração
para o presente. Penso ainda: será que o majestoso pé de jaca, lá no curral da
morada, ainda existe ou já foi destruído pelo tempo ou pelas criaturas? E a
casinha rústica da minha infância estará remodelada ou não existe mais? Aquele
pomar, tão bem cuidado por meu pai, aquela videira, cujos frutos eram colhidos
por mim e por meus irmãos para o preparo do vinho, já terão sido vítimas da
destruição? As frondosas limeiras, à beira do rego d’água, em cuja sombra
assentávamos para chuparmos os frutos, ainda existem? Os altos coqueiros entre
as laranjeiras, onde fazíamos nossas casinhas de brinquedo ainda existirão? E as
velhas árvores onde cantavam as belas juritis? Não creio, não tenho dúvida, não
existem mais.
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Saímos de Itambacuri em doze de janeiro de 1920, rumo à casa de minha
mãe, deixando para trás um ambiente de paz e felicidade de um colégio. Fiz uma
viagem de peripécias e perigos. Saída de Itambacuri às duas horas da
madrugada, quando toda a população dormia. Eu, a minha conterrânea dona Dita
Costa, uma empregada de Dona Dita e dois empregados, e o responsável pela
viagem José Maria Filgueiras Moreira. Eis os componentes da comitiva que
cavalgando animais quase frouxos, atravessaram a zona inóspita de Itambacuri a
Conceição do Mato Dentro.
Primeira etapa: Bananal dos Bugres, lugar que naquela época possuía
algumas casinhas que eram desprovidas de todo recurso. Nem sei o que ali
comemos. Sei que passei uma grande aflição. Dona Dita, a minha companheira, a
minha condutora, ficou passando mal e desmaiou, devido talvez ao excesso da
viagem. Só encontramos umas folhas de laranjeira para fazer um chá. No dia
seguinte rumamos para Malacacheta. Fomos hospedados em casa de gente boa,
a família de Pedro Abrantes. Prepararam camas com colchões cheios de palha de
milho, era o que se usava, tão cheios que o ocupante dos mesmos, ao deitar,
sumia dentro do colchão. A terceira estalagem foi num lugar chamado Grama,
uma localidade muito bonita, toda plana, mas muito atrasada. Arranjamos uma
casinha para passarmos a noite. A comida foi da nossa cozinha, aumentada com
ovos e queijos que compramos. Cama é que foi o problema. Na bagagem só tinha
uma caminha e essa ficou para mim e Dona Dita. O personagem, dono da viagem
(porque ele é que estava custeando as despesas), ficou na mão, sem cama.
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Arranjou-se um jirau de paus roliços, forrados com couro de boi. Ele não dormiu e
nem deixou ninguém dormir, berrando como boi a noite toda. Seguindo nossa
“aventura”, no dia seguinte, quatorze, pernoitamos numa rancharia de tropeiros,
numa localidade chamada Contrato. Para dormirmos, Dona Dita e eu
improvisamos um quartinho, com balaios, cangalhas e canastras, mas não fomos
capazes de dormir. Um dos tropeiros que ali se achava arranchado, acendeu um
fogo, junto ao esteio de madeira do rancho, e, lá pelas tantas da noite, o fogo
pegou no esteio e quase incendiou o rancho. Saíram correndo para buscar água
num córrego próximo. Depois de passado o perigo, o causador do incêndio entrou
em estado de choque, assombrado. Hoje, quando penso, quando pondero, admiro
a coragem que tive de enfrentar tantos perigos, tantos desconfortos, de uma
“peregrinação” em estradas desconhecidas e na pior estação do ano, estação
chuvosa, então digo a mim mesma: que estaria passando em minha cabeça nesta
louca caminhada? Há períodos na nossa vida durante os quais não se sabe
explicar os porquês dos acontecimentos! Eu, medrosa de tudo, de relâmpago, de
tempestade, de rios cheios, de bois bravos, tornei-me de, um dia para outro,
corajosa, sem pensar nos perigos, sem me lembrar dos obstáculos que nos
esperavam, em cada dia da “via-sacra”.
Do tal rancho do Contrato rumamos para Capelinha, dia quinze. Cidade
bem parecida com o Rio Vermelho. Estrada passando por morros íngremes,
ladeados por grandes buracos, muitos cupins semeados pelos morros. Chegamos
à noite. O povo e a banda de música estavam reunidos à porta da igreja,
esperando a novena de São Sebastião. Para aquela cidade Dona Dita levava uma
moça, a Nazareth, uma baita de setenta quilos. Bem distante da cidade, o animal
no qual ela viajava afrouxou, isto é, parou e não houve meio que o fizesse andar.
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Qual o recurso para levar a moça até sua terra natal? A solução do problema foi
montá-la na garupa do jovem Dr. Filgueiras. Para isto foi preciso que ela andasse
a pé campo afora, até encontrar um cupim, para de cimo deste, alcançar a garupa
do seu condutor, agarrou-lhe bem na cintura para não cair. Apeou quando entrou
na cidade. Pernoitamos e no dia seguinte compramos muitos marmelos, pois é
zona especial para o plantio destes frutos. De Capelinha seguiu nossa “romaria”
para a cidade de Itamarandiba, uma localidade muito bonita, mas sem movimento
e aspecto desolado. Até essa cidade, Dona Dita sabia mais ou menos guiar a
viagem, mas daí em diante a coisa complicou, ninguém conhecia os rumos das
estradas. Caminhávamos errando e muitas vezes voltando atrás para achar o
caminho certo. Às vezes íamos esbarrar na beira de terríveis atoleiros. Parece
uma proteção divina, pois quando ficávamos parados, indecisos, à beira de um
lamaçal, de um brejo, julgando impossível continuar a viagem, aparecia um filho
de Deus que nos guiava nessas travessias perigosas. Assim íamos, a trancos e
barrancos, continuando a caminhada. De Itamarandiba, fomos em direção a
Coluna, mas a viagem foi dividida e batemos a barraca numa casa velha, a pouca
distância da ponte sobre o rio Itamarandiba, num lugar chamado Tromba D’anta,
onde morava um velho, casado com uma senhora muito nova, e ele demonstrando
muito ciúme. De Tromba D’anta seguimos para Rio Vermelho. Na entrada da Vila
de Rio Vermelho, quando descíamos o morro da Barra, encontramos uma mulher
caindo de bêbada. A ela perguntamos: aqui é mesmo o Rio Vermelho?
Respondeu: é sim, o Rio Vermelho do diabo. Na Vila, pernoitamos numa casa
situada num beco que dava na praia, lugar à beira do rio Barreiras, onde tinha
uma grande bica d’água que abastecia a população. Um rapazinho, irmão do dono
da casa, nos trouxe, mui gentilmente, uma bandeja com café e biscoito e, ainda,
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arranjou um feixe de lenha para nós.
Seguindo de Rio Vermelho para Serro, reviramos para Mãe dos Homens,
hoje cidade de Materlândia. Assim, íamos dando voltas e voltas com velocidade
de caracol. Antes de chegar a Mãe dos Homens ainda pernoitamos numa
pequena fazenda, numa localidade chamada Córrego do Ouro ou Ribeirão das
Contendas. O dono da casa era um senhor Cunha. Gente boa, mas muito
ignorante. Trataram-nos muito bem, na hora da refeição, levaram-nos um frango
afogado, numa panela de pedra e um gostoso cafezinho. O problema foi na hora
do banho. Este era numa gamela de pau cheia de lodo. Ao entrar nela escorreguei
e a água derramou toda. Com a viagem dividida chegamos em Mãe dos Homens
no dia vinte e dois. Lá pernoitamos, quase sem sermos percebidos. No dia vinte e
três fomos rumo ao Serro, mas como a nossa viagem caracol era sempre de
poucos quilômetros por dia, ainda paramos numa fazenda do senhor João Rosa,
pessoa muito acolhedora. O mais interessante é que não conhecíamos ninguém
nessas paragens, mas aproximando-nos das portas das casas, pedíamos
hospedagem e éramos bem acolhidos. Na fazenda do Sr. Rosa, ofereceram-nos
jantar, prepararam-nos as tais camas de colchão de palha e com roupas muito
limpas. Antes de irmos deitar, enquanto batíamos um papo, ao redor de uma
mesa, tomando café, ouviu-se o barulho de uma goteira forte no quarto. Sabem o
que foi? Um enorme gambá, que morava no forro da casa, que era de esteira de
taquara, abriu a sua torneira e molhou a cama toda, tão limpinha, tão bem feita!
Dia vinte e cinco de janeiro, a comitiva chegou finalmente ao Serro. Depois
de viajarmos treze dias debaixo de chuva, quase ininterrupta. No Serro nos
alojamos numa casa, no Arraial de Baixo, fim da cidade.
Em vinte e seis, seguimos rumo a Conceição do Mato Dentro, minha terra
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natal de onde saí em 1914, julgando nunca mais voltar e nem rever mais a minha
família. Como é mutável o coração humano! Como foram volúveis os meus ideais!
Conceição era a meta final da minha viagem, ali residia a família de Dona Dita
Costa, minha condutora e ali eu esperava encontrar meus irmãos. Mas ainda a
jornada foi dividida. Paramos em Rio do Peixe, hoje Alvorada de Minas. Naquela
época residia minha tia Lulu, em cuja casa descansamos um pouco e tomamos
café com biscoito. À espera desse lanche, a tarde foi passando, seguimos viagem,
quase à noite, noite escura e chuvosa, animais frouxos de modo que a marcha foi
vagarosa. Antes de atravessarmos o Rio do Peixe, a noite tornou-se tão escura,
que ao chegarmos à beira do mesmo, não sabíamos se era a passagem ou se
estaríamos aproximando de um poço fundo. Amedrontados, naquela escuridão,
receando entrarmos num abismo, ficamos parados, esperando o quê, não sei!
Vimos uma luzinha lá no outro lado do rio. Nosso recurso foi gritar, gritar.
Reconheci a localidade chamada Rio das Pedras, onde morava um senhor
chamado Barão, casado com Dona Rosinha Simões. Atendendo aos nossos
gritos, mandaram um empregado que nos guiou até a fazenda. Lá pernoitamos e,
no dia seguinte, um filho de Dona Rosinha levou-nos até o retiro de minha mãe,
evitando para nós uma distância de dez léguas.
A minha viagem, sendo feita à moda ziguezague. Finalmente, dia vinte e
sete de janeiro de 1920 chegamos à minha antiga morada, Retiro São José, terras
que pertenceram à Fazenda da Empoeira, depois de nove anos de ausência.
Abracei minha mãe, já muito desfigurada pelas lutas, sofrimentos e doença.
Revi meus irmãos, encontrando com nove anos a caçulinha Maria que eu deixei
com apenas meses. Faltou a figura querida, calma, serena e bondosa do meu pai.
Aquele pai que, durante os nove anos de minha ausência, sonhava ansioso por
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rever-me. Sinto uma saudade imensa, um desejo inexplicável de ver, abraçar
aquelas figuras santas de meus pais.
Minha mãe chamava-se Maria Eufrásia da Silva. Nasceu na Fazenda da
Empoeira, distrito de Itapanhoacanga em novembro de 1873. Era filha do
português Bento José da Silva (Bento Simões), rico fazendeiro que possuía mais
de trezentos escravos. Minha avó materna era uma mocinha que vivia no seio da
família, gente pobre, mas trabalhadora e independente. Moravam numa gleba de
terra limítrofe da grande fazenda do rico português. Bento José da Silva morou
com uma mulher de cuja união teve sete filhos. Essa mulher morreu. Bento
Simões propôs logo se casar com a mocinha pobre chamada Rita Soares
Santana, sua vizinha. Ela e sua família temiam as maldades e perseguições do
ricaço. Não é somente na época atual que o rico, o poderoso abafa os direitos dos
pobres. Essa imposição já dominava o mundo desde sua criação. Assim, essa
mocinha, com seus quinze anos, teve que se casar com o abastado fazendeiro,
casamento feito pelo terror e não pelo amor. Os três primeiros anos foram suaves
porque a pobre submeteu-se ao regime e às exigências do marido. Porém, logo
após o nascimento do terceiro filho do casal, as coisas mudaram e mudaram para
o mal. Os filhos ilegítimos, embora bem aquinhoados com dinheiro, fazendas e
gado, foram enchendo de ambição e diziam entre si: se o velho aumentar muito a
família, futuramente nada mais ficará para nós. Cheios de maligna intenção,
tiveram o diabólico plano que foi executado pelo mais velho da turma, o João
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Batista (vulgo João Babão). Aproximou-se do pai e caluniou a madrasta,
acusando-a de infiel. Tinham o perverso intuito de obrigar o pai a assassiná-la e
assim, a família não aumentava. Não aconteceu como os maus planejaram, mas,
dessa data em diante, o português infligiu à mulher grandes e contínuos
sofrimentos. Tratava-a como a pior das escravas. Ela não deixava transparecer
nem para os filhos. O português dormia com garrucha e faca debaixo do
travesseiro, sempre planejando assassiná-la. Não o fez pelo poder das orações da
minha avó. A imitação de Santa Rita de Cássia.
Certa noite, ele deitado, ela ajoelhada diante de um oratório com uma vela
acesa, rezando. Ele, lá da cama, com seu espírito cheio de maldade, a olhá-la,
pensou e falou consigo mesmo: se ela estiver rezando hipocritamente e for uma
culpada, que aquela vela apague ou diminua a chama. Tamanho espanto ele teve!
A luz da vela aumentou tanto que pegou fogo nos papéis do oratório, sendo ele
obrigado a levantar-se e ajudar a apagá-lo.
Bento Simões tinha o costume de mandar o filho mais velho, João Babão,
açoitar os escravos todas as semanas. Aqueles negros que trabalhavam o ano
inteiro, ganhando apenas feijão com uma bola de angu, como alimento diário;
tinham dois ternos, duas camisas, duas calças de arranca-toco e uma coberta de
baeta.
Minha avó Rita era tão compassiva para com os escravos, que nos dias dos
tais açoites perversos, ela chorava e não se alimentava. Lamentava aquelas
barbaridades sem poder impedi-las.
Minha mãe sobreviveu ao marido dezessete anos. Faleceu no dia dezenove
de junho de 1934, confortada com todos os sacramentos. Rodeada pelos filhos
que a levaram até a última morada.
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Em 1953, fui conhecer a capital mineira, o que não se daria, se não fosse o
interesse e o esforço do meu bom filho Antônio, para que eu assistisse ao seu
casamento.
Falei dos meus antepassados, agora quero falar dos pais do meu marido,
embora quase nada saiba a respeito daquelas veneráveis criaturas. Meu sogro e
minha sogra. Alexandre Tibúrcio Moreira, o nome do meu sogro, que eu saiba ele
foi um cidadão baiano íntegro. Casou-se em 1874 com Maria Filgueiras Moreira.
Ele era funcionário da alfândega (diretoria de rendas). Faleceu aos oitenta e oito
anos. Sobreviveu à esposa quinze anos. Foi confortado, nos últimos dias de sua
existência, pela assistência diária dos frades franciscanos. Durante a viuvez,
morava em companhia de quatro filhas, quatro anjos que o cercaram de carinho e
amor.
Do consórcio com Dona Maria Filgueiras Moreira nasceram dez filhos,
criaram sete. Perderam, ainda, dois pequenos e um rapaz de vinte e quatro anos,
chamado Mário, que era noivo. Coincidência, meu filho, o meu Mário, neto de
Alexandre, com vinte e um anos, e também noivo. Não conheci a minha sogra,
mas, pelo que meu marido falava, passei a admirar aquela figura altiva, boa,
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enérgica e amorosa. Era filha de Mem de Amorim Filgueiras, neto do cônsul
português e de Dona Quitéria de Amorim Filgueiras. Faleceu dia vinte de junho de
1921. Deixou quatro filhas moças, um filho casado na capital baiana, uma filha e
um filho casados e residentes em Minas. Deixou aos filhos a herança da virtude,
que eles seguiram abraçando, com abnegação as cruzes de uma vida
verdadeiramente cristã.
Quem eu vi em vinte e seis de outubro de 1918, quando eu ainda rondava
os corredores de um colégio, nos três primeiros anos de minha vida monástica,
seria o meu futuro marido. Vou relembrar a criatura que, por desígnio de Deus,
conheci, há quase cinquenta anos passados, e como ele era. Personagem magra,
esbelta, de porte altivo, olhar marcante, meigo, cabelos castanhos, partidos ao
lado e bem penteados. Vestia, elegantemente, terno cinza, de colete, de relógio de
gôndola, trazendo na mesma o retrato da noiva. Sapato branco e preto de pelica,
chapéu branco de palhinha, com fita preta, usado meio de lado e gravata escura.
Andar de passos firmes e ligeiros, caminhando rumo ao alto onde existia um
templo de Nossa Senhora dos Anjos, em Itambacuri. Outras horas, seguindo, com
muita elegância e piedade, para a mesa da comunhão, numa capela de freiras,
onde os olhares de todos os habitantes do colégio o observavam com curiosidade,
para depois, reunidos em grupo, fazerem os comentários, analisando o que viram
e como acharam aquela figura elegante de homem da capital. Cada componente
do grupo dava sua opinião, seu palpite. Isto era a moda, o costume de gente do
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interior, de meninas internas de colégio quando vêem um rapaz gracioso que não
dá bola pra ninguém. Era noivo... Casou-se, tempo depois, não com a noiva
baiana! Esta ficou na Bahia e faleceu, oito anos após seu casamento em Minas.
Na vida de casados começaram as primeiras lutas mais sérias da vida, porém,
quase nada mudou o seu aspecto e em nada diminuiu sua energia, seu espírito
alegre e lutador.
Agora vou falar do meu marido, meu companheiro de quase cinquenta
anos. Não sei se aguentaremos chegar a este aniversário da vida conjugal.
Cinquenta anos! A esta pergunta quem pode responder é Deus, o destino da vida,
da morte está com Ele. E bom seria que depois de uma caminhada tão longa,
fôssemos juntos para o além. Mais dados sobre meu marido. Nasceu na capital da
Bahia em 1892, na rua dos Zuavos. Fez o curso na Faculdade de Medicina da
Bahia, formando-se em 1916. Exerceu a sua profissão depois de formado, um ano
e tanto, na sua terra natal, onde ficou noivo da senhorita Alice Cardoso de
Almeida. Antes de formar, trabalhou como assistente do doutor Mendonça. Em
1918 veio para Minas, para o distrito de Itambacuri (hoje uma florescente cidade),
deixando lá na boa terra, a mãe extremosa, o pai, irmãs e a noiva esperando a
hora do casamento. Naquele distrito residia uma irmã casada com um médico,
também baiano, Dr. Pedro Autran, que militava na política de Teófilo Otoni, sendo
que, naquela época, Itambacuri era distrito daquela cidade. Permaneceu em
companhia da irmã até 1920. Neste período de um ano e tanto, trabalhou no seu
gabinete dentário e exerceu a sua profissão no Colégio Santa Clara onde
conheceu, em 1918, aquela que hoje é sua esposa. Em 1920 saiu de Itambacuri
em companhia de uma distinta senhora Dona Dita Costa e eu. Ele e a comitiva
chegaram dia vinte e sete no Retiro São José, residência da família Utsch. Deste
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modo, internou-se pelo interior de Minas, casando-se em vinte e dois de fevereiro
de 1920 com aquela mineira que saiu do mundo procurando sossego, a paz num
convento e retornou à vida agitada e cheia de cruzes neste mesmo mundo, que há
nove anos atrás parecia insuportável. Depois do casamento permaneceu cinco
meses na residência da sogra e depois fixou sua residência na velha cidade do
Serro. Nessa cidade exerceu sua profissão em diversos setores: no seu gabinete,
em casa, no Patronato Agrícola Casa dos Otoni e no Colégio Nossa Senhora da
Conceição. Nos sete anos que ali residiu angariou um grande círculo de amizades
e fez muitos benefícios a muitos pobres. Na cidade serrana, de antigas tradições,
nasceram os quatro primeiros filhos do casal: José Alexandre, Mário Raimundo,
Antônio e Paulo Expedito. Passamos na velha cidade sete anos de paz e alegrias,
de vida tranquila mesmo cheia de lutas e dificuldades financeiras, sempre
vencidas com a proteção de Deus, mas o que é bom neste mundo tem pouca
duração, ninguém pode fugir da rota do sofrimento. Meu marido foi convidado para
ir trabalhar em Rio Vermelho que era distrito de Serro. Animado por amigos, que
começaram a surgir, resolveu aceitar o convite para trabalhar seis meses naquela
localidade. Deste modo a paz, a tranquilidade de nossa vida em Serro fugiram
como o vento.
Assim é a aventura humana. Tão frágil, tão passageira. Deixando amigos,
uma clientela boa e ganhos promissores. Em 1927 saiu do Serro com a esposa e
quatro filhos. Passamos por Dom Joaquim onde foi batizado o quarto filho. Dia
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nove de outubro de 1927 aportamos em Rio Vermelho, após uma viagem penosa,
entrando pelo povoado do Magalhães. O quarto filho, com um mês e vinte e cinco
dias, foi carregado num balaio de taquara coberto com a colcha e, logo na entrada
da Vila, encontramos com um grupo de roceiras, levadas pelo costume do lugar,
de carregarem em balaios as crianças mortas; uma delas disse às companheiras:
Coitadinho! É um anjinho! Do que seria que ele morreu? Chegando naquela Vila
atrasada, notei logo, que ali existia um ambiente familiar, de muita moral,
severidade nos costumes dos habitantes. Conheci, também, que a índole de muita
gente, ali, era a de bajuladores interesseiros, e que havia uma frieza geral, uma
grande indiferença para a religião. Uma ignorância alarmante no meio da
população rural. Um povo analfabeto, valentão e assassino. Vou dizer alguma
coisa sobre o lugar em que o cidadão baiano se estabeleceu em 1927, para ficar
seis meses e permaneceu trinta e um longos anos!
Naquele tempo, uma pobre gente, sem escola, sem transportes, que eram
feitos, somente, no lombo dos burros ou a pé. Gente sem orientação, sem nenhum
conhecimento religioso. Vila sem luz, sem telégrafo, sem serviço de correio, que
era feito de cinco em cinco dias. Muitas vezes o estafeta, viajava a pé, carregando
as malas, sem nenhuma proteção. Sem canalização d’água. A água era fornecida
às famílias, em latas carregadas na cabeça das empregadas. Era um martírio para
as donas de casa. Buscavam a água em um lugar chamado Praia, à beira do rio
Barreiras, onde havia uma grande bica. Ali, o ponto do ajuntamento das
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empregadas, no labor de buscar água. Sem se lembrarem que as suas patroas
aguardavam-nas, enquanto elas, na praia, sobre as latas, faziam dali ponto de
prosa e de assuntos da vida alheia. Quem quisesse saber o que se passava na
Vila, fosse fazer uma investigação na Praia. Só havia uma escola com três
professoras, na sede da Vila, e uma em Pedra Menina. A zona rural, a mais
populosa, vivia no completo analfabetismo.
As festas religiosas eram ajuntamento de povo que nem o sinal da cruz
sabia fazer. Dentro da igreja, que enchia sempre do povo sem instrução, porque
os senhores habitantes da Vila não frequentavam a Igreja. Homens barbudos,
cabelos despenteados e com garruchas polveiras no cinto, agachados em cima
dos calcanhares, e conversando como se fosse na rua ou nos botecos. Mulheres
amamentando crianças ou entupindo-lhes a boca com biscoito de fubá e brigando
dentro da igreja quando houvesse motivo para isso. Terminados os atos religiosos,
a Santa Missa, as procissões, os botecos enchiam. O povo tomando pinga,
comprando biscoito de goma. Daí a pouco, homens volvendo animais na rua,
entrando a cavalo nas vendas, dando tiros na saída da Vila e formando brigas nas
estradas e, muitas vezes, no ferver das contendas, deixavam defuntos atrás. O
mais assombroso era as populares e dramáticas fogueiras de Santo Antônio, São
João, São Pedro e, ainda, a de Sant’Anna Velha no mês de julho. Essas fogueiras
aconteciam na zona rural e, para o povo, fazer fogueira era quase obrigatório. Nos
lugares marcados, sempre zona da ignorância e da estupidez, juntava uma
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multidão de homens com suas chilenas (esporas), com as garruchas bem
carregadas - eram os parceiros das danças. Um grupo de moças e senhoras
preparavam os comes e bebes: frangos assados, tutu de feijão, tachos de arroz e
a famosa cachaça em garrafões, esta não podia faltar. Rezavam o terço diante de
um quadro enfeitado, do santo comemorado do dia. Tinha sempre um mais
instruído para tirar o terço. Terminada a parte religiosa, começava o tradicional
batuque, dança de dar umbigadas. Cada cavaleiro tinha uma dama para as
umbigadas, fazia parte da praxe trocarem esta com as damas dos outros e, nestas
trocas, costumava começar o sururu. Aí vinha a confusão, o rolo, as pauladas, os
tiros, as facadas. Resultado: ao amanhecer do outro dia, entravam na Vila um ou
dois defuntos enrolados numa coberta, amarrados num pau e ainda com os pés
sujos de cinza das fogueiras. Chegavam ao cemitério, um campo mal fechado,
onde até os animais pastavam. Os que carregavam os defuntos eram chamados
de defunteiros. Às vezes costumavam iniciar outra briga, numa luta em disputa
pelas cobertas que enrolavam os defuntos, pois estes eram jogados na cova sem
caixão, com a mesma roupa com as quais morriam, do mesmo modo que vinham
da roça. Na briga pela coberta, muitas vezes, ficava no cemitério mais um defunto.
São fatos tais que talvez não se narrem nem nas tribos selvagens dos tempos
coloniais do Brasil. No entanto, é inacreditável que em 1927 até 1930 existissem
costumes semibárbaros numa região de uns vinte mil habitantes, com ótimas
fazendas, com proprietários ricos e que vivessem mergulhados em tanta
ignorância. Bem dizia um veterano da guerra do Paraguai, o grande pesquisador
do Serro Alferes Luiz Pinto: “Para o progresso de uma população são necessários
três pês bons: bom padre, bom professor e bom prefeito”.
Até 1942 era vigário em Rio Vermelho o Reverendíssimo Francisco de
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Paula Câmara, que ali fez suas bodas de ouro vicariato. Chefe político, assim
tinha pouco tempo para cuidar da grande freguesia que exigia um trabalho imenso
e contínuo para dar ao povo um pouco de educação religiosa. Além de tudo, a
política manejada pelo vigário é um motivo muito sério para afastar os
paroquianos da igreja e, a meu ver, foi a causa importante da frieza religiosa que
notei ao chegar a Rio Vermelho em 1927.
Fatos muito curiosos e interessantes na Vila eram os casamentos.
Casavam cem por cento. Na hora da Santa Missa, o vigário demorava uma hora
ou mais lendo os proclamas de casamento. Os assistentes da missa cochilavam e
outros sentados no chão, até dormiam, pois não havia bancos na igreja. Fiquei
muito impressionada na primeira missa que ali assisti. A missa começava às onze
horas e terminava às treze e o padre ainda dava, também, a benção do
Santíssimo, no fim, de maneira que à tarde a igreja já estava fechada.
Os casamentos eram assim: o noivo plantava uma roça de milho e feijão e
já podia casar. Muitas vezes iam com roupas emprestadas, compridas ou curtas,
sapatos emprestados, apertados ou largos, caminhando com dificuldade, com
gravata sem colarinho; naquele tempo, colarinho era separado e eles não
tomavam muito tempo em colocá-lo. Com estes preparativos, improvisados de
qualquer maneira, já podiam reunir os padrinhos, parentes, amigos e conhecidos,
na residência da noiva. A turma toda, noivos, homens, mulheres, todos a cavalo,
formavam o cortejo, indo à frente os noivos, com garridos lenços no pescoço. As
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damas iam montadas nos antigos seliões. O padre marcava seis, oito e até doze
casamentos no mesmo dia. Então, a Vila vivia um dia movimentado. Quase
ninguém trabalhava para apreciar o corre-corre dos cavaleiros e a saída dos
cortejos nupciais de cada canto da Vila. Terminadas as cerimônias dos casórios
na igreja, o pessoal se encaminhava para as suas rancharias. Arranjavam os
animais, compravam bebidas nos botecos, cada um guardava em seu alforje, até
o noivo tinha essa preocupação. Tudo arranjado, todos montavam em seus
cavalos, colocavam os noivos à frente do cortejo, chicote nos animais, seguiam as
turmas, cada noivado para sua residência. Ao saírem da Vila, começavam as
salvas de tiros, festejando os acontecimentos e essas continuavam em todo o
trajeto da viagem. Porém, a salva mais arrojada, mais entusiasmada, era na
chegada dos noivos às suas casas, onde era feita a festa. Numa dessas arrojadas
chegadas de noivados, numa salva de tiros, mataram o noivo ao chegar ao curral
de sua residência. Deixou a noiva viúva, com poucas horas de casada e os
convidados da festa serviram para levar ao cemitério o noivo morto.
As missões em Rio Vermelho eram pregadas pelos padres redentoristas,
de quatro em quatro anos. Tempo de missões as roças ficavam vazias. Vinha
gente de todos os lados, de todas as bibocas. Ricos fazendeiros, lavradores
pobres, tão pobres que não traziam quase nada de alimentos para se manterem
nos dias que permaneciam assistindo às missões. Queriam e faziam questão era
de ouvir a fala do missionário. O povo era tanto que os padres armavam o púlpito
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na porta da matriz, na praça que circunda a igreja, onde ficava o povo para
escutar os sermões. Numa noite de pregação, quando o missionário falava do
demônio, do espírito mau que espalha a desordem entre os homens, um grupo de
mulheres tagarelas estava conversando no meio da multidão. O missionário já
havia reclamado diversas vezes. Acontece que, no momento em que o padre
reclamava, mais uma vez, já muito agastado, um indivíduo, fugindo da polícia,
pulou no meio das mulheres tagarelas e, no mesmo instante, o missionário gritou:
Olha o demônio no meio daquelas mulheres, e apontou para elas. AH! O tempo
fechou. Acharam que o homem era mesmo o demônio em pessoa. A multidão deu
um estouro como boiada na arribada. Cada um corria sem saber para onde ia.
Como correr do espírito mau? Pisaram crianças e adultos, saíram derrubando o
que encontravam pela frente, perderam sapatos, chapéus, bolsas, terços e até
crianças. Os padres batiam sinetas, pediam calma, mas ninguém ouvia, estavam
correndo do diabo. Assim terminou a pregação daquela noite. Em outra ocasião,
numa visita pastoral, o Bispo descia os degraus da escada da igreja. Alvejaram
um pobre homem, na porta de um bar, na praça tão perto da igreja que o Bispo
presenciou a cena brutal. A vítima ficou gritando na rua diversas horas.
Finalmente, meu marido foi quem mandou levá-lo para um quartinho e, ali, sem o
menor recurso médico, o operou, retirando a bala. Com tamanho êxito que, oito
dias após, o homem estava no trabalho. Operações iguais a esta, e outras ainda
mais difíceis, ele fez inúmeras vezes para socorrer tanta gente pobre naquela Vila
atrasada, de população sem amparo.
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Quando ainda residia em Serro (1920-1926), meu marido ingressou no
antigo PR, levado pela amizade que o ligava ao meu distinto primo, Dr. Daniel de
Carvalho, quando este estava como Secretário da Agricultura. Neste partido ele
militou até 1959, data em que se transferiu para Belo Horizonte. Porém,
conservou-se fiel ao seu partido até o decreto de Castelo Branco que extinguiu os
partidos. Em Rio Vermelho, campo dos seus trabalhos e lutas, foi prefeito três
vezes, sempre acompanhando o seu partido PR. A primeira vez por nomeação, na
época da Interventoria em Minas, por indicação do Dr. Daniel de Carvalho. Na
segunda vez, foi eleito prefeito constitucional em 1947. Com imensos sacrifícios
fez os melhoramentos que os parcos recursos da prefeitura permitiram, numa
cidade em que não havia nada. Em 1955 foi eleito novamente. Conseguiu muitos
melhoramentos: canalização de enxurradas, que desmoronavam as ruas, fez
açougue e matadouro municipais, já havia terminado a estrada que liga Rio
Vermelho a Serro, Serra Azul e Itambé. Operou com grandes esforços para a
organização da primeira linha de transportes entre Serro e Rio Vermelho.
Reconstruiu o campo de aviação feito pelo segundo prefeito Dr. Paulo Penido. O
campo ficou abandonado pelos prefeitos que se seguiram. Iniciou serviços de
canalização de água e construiu diversas pontes dos rios Barreiras, Vermelho e
Brumado. Doou aos municípios três ótimas escolas rurais, com o prestígio que lhe
deu o seu ilustre amigo deputado Daniel de Carvalho. Criou muitas escolas
municipais nas zonas rurais e forneceu recursos para a alfabetização de adultos.
Iniciou a estrada de rodagem para o distrito de Mãe dos Homens, hoje
Materlândia, onde ele fez também grandes melhoramentos. Construiu prédios
para fórum e cadeia, jardim na praça, escadaria para o acesso à igreja e, ainda,
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mobiliou o Fórum, inaugurou a comarca e conseguiu a nomeação do primeiro juiz
de direito.
Na terra em que os livros eram raros, poucas flores, assim mesmo, ocultas,
no fundo dos quintais das casas, nem jardins públicos. O que não faltavam eram
armas de fogo suficientes para matar muita gente. Meu marido, no fim do
mandato, depois da votação dos vereadores, contratou um paisagista para
construir um jardim ao redor da matriz e do coreto e nomeou um jardineiro
permanente. Quando entregou a prefeitura, o jardim estava lindo. Pois não é que
os partidários do prefeito eleito acabaram com o jardim! Destruíram-no e puseram
animais a pastar na relva. Meu marido deixou flores para aquela gente.
Exploraram seu saber, seu trabalho, suas energias. Saiu de Rio Vermelho, após
tantas lutas e sacrifícios, depois de ser um médico, um dentista, cirurgião, e até
parteira. Serviços gratuitamente prestados até para os ricaços exploradores.
Levamos conosco as vozes da pobreza que após receber assistência, remédios,
alimentos, diziam: “Deus lhe pague”, “Deus lhe dê muito e aumente tudo para o
senhor”, “Deus acompanhe seus passos”. Foi o que nos restou depois de trinta e
um anos de vida em Rio Vermelho.
Apesar de morar numa terra de que não gostava, tinha, também, horas de
emoções alegres e felizes. Alegrias! O nascimento dos quatro filhos que vieram
completar a lista dos quatro filhos que nasceram na legendária cidade do Serro.
São recordações da infância e juventude dos meus filhos, emoções tão profundas
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que nestas obscuras anotações são difíceis de descrever. A época da meninice,
dos encantos inocentes dos filhos alegram o coração de uma mãe. No Rio
Vermelho, em 1930, foi inaugurado o grupo escolar Dr. Afonso Pena Júnior. Nesse
grupo sete filhos tiraram o diploma do curso primário, menos o último que só
cursou até o terceiro ano. Três filhos desejaram estudar e seguiram para
Diamantina onde cursaram o ginásio diamantinense. Saíam a cavalo, enfrentando
a Serra do Gavião, o chapadão, o frio, as chuvas, os rios cheios, dormindo ao
relento nas rancharias de tropa. Preocupava-me e me afligia com estas condições.
O meu consolo era subir ao alto do Rosário, onde tem a igrejinha de Nossa
Senhora. Ficava a olhar a água branquinha que corria da serra, lá muito longe.
Quando regressavam era uma festa recebê-los. Mais tarde, acompanhava com
prazer os casamentos de três filhos e recebia as auspiciosas notícias do
nascimento dos netos.
Dia seis de janeiro de 1944, depois de ter ouvido a Santa Missa,
encaminhei-me ao correio, a fim de postar uma carta para o meu filho Mário que
estava no Rio de Janeiro. Passei pela casa de sua noiva, Carolina Cunha
Barbosa. Ali recebi como um raio sobre a minha alma, a notícia do trágico
falecimento do meu filho Mário, tão cedo roubado da nossa convivência, causando
uma chaga incurável em meu coração. Naquele dia, postava uma carta, com trinta
cruzeiros velhos ou trinta mil réis, para chegar ao Rio antes do dia quinze, dia de
seu aniversário. Eu dizia para ele: é uma simples lembrança para comprar uma
gravata. Sua mãe é pobre, mas Deus lhe dará tudo o que você precisa. No
entanto, naquela data, ele não precisava de mais nada do mundo! Já o deixava
para sempre, deixando neste vale de lágrimas uma mãe desolada.
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Tudo passa e o tempo corre veloz e com ele a vida.
Coisa estranha, guardar tantas recordações de um lugar, uma região que,
ao conhecê-la, me causava pavor. Eu tinha receio até dos homens que, de
cabresto na mão e facão na cinta, perambulavam nas estradas perto da Vila.
Sobre essa pavorosa impressão tinha medo de passear nos subúrbios, com meus
filhos pequenos.
Em 1962, eu e meu marido voltamos a Rio Vermelho. Fomos visitar nossa
irmã, a boníssima Maria Cândida Moreira Autran, gravemente enferma. Ficamos
hospedados na casa do meu filho Paulo, no retiro da Laranjeira onde passei
dezessete dias com os meus netinhos filhos de Paulo. Na solidão da roça, num
cantinho silencioso da varanda, fiquei relembrando o dia trinta e um de janeiro de
1959 quando ali cheguei em companhia de Manuelzinho Vieira e o meu neto Tião.
Saindo da cidade, atravessamos, na escuridão da noite, o alto do Cruzeiro,
olhando a cidade, lá embaixo, no auge do regozijo numa folia infernal, festejando a
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posse do prefeito Milton Fróis. De longe, na escuridão dos morros, o espocar dos
fogos e as estrondosas festas, comemorando a posse de um novo mandatário
local. Calou-me bem profundo n’alma a ingratidão das criaturas. Como o mundo é
ruim! Todos aqueles que participavam daquela farra nem de longe se lembravam
que o antigo prefeito a quem se tornaram hostis não foi apenas uma autoridade,
mas o benfeitor daquela população. Um filantropo que deu metade de sua
existência para o bem de todos.
Na mesma varanda da casa da Laranjeira continuei a contemplar o rio
Barreiras, passando bem perto da casa, os morros cobertos de matos, a estrada lá
em cima, em frente ao retiro. De quando em quando, passava um jipe, um
caminhão, uns cavaleiros ou pessoas a pé. Outros atravessavam a ponte sobre o
rio Barreiras, ponte esta construída na época em que o meu marido era prefeito.
Tivesse eu competência e palavras para exprimir o que sentia, daria para escrever
uns livros. Nas minhas divagações eu vi o caminho da madragoa, da chacrinha, do
Magalhães, por cuja estrada chegamos a Rio Vermelho em 1927. O caminho do
alto da Barra, do Paiol, por onde passava Zezito indo para sua residência e eu
ficando de longe, a grande distância, até vê-lo sumir na curva do Jota, cavalgando
um cavalo alazão, com sua roupa cinza. E qual era, naquele momento, o meu
pensamento? Em que hora ele chegaria em sua casa? Na minha imaginação via a
ponte do rio Barreiras, no subúrbio da cidade onde morou minha filha Neli: vi meus
netinhos correndo para me encontrar, o que sempre acontecia quando ali eu ia
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passear. Assentávamos nas madeiras em frente da casa. Imaginei, e na mente, eu
vi a margem do Barreiras onde meus filhos nadavam, onde Mário passava horas
inteiras de anzol na mão, fumando o seu cachimbo para espantar os mosquitos.
De noite, ele chegava todo alegre quando trazia uns piaus ou traíras. Quantas
vezes ele mesmo ia prepará-los. Vi, lá distante, o cruzeiro colocado no morro todo
cheio de fendas (voçorocas). Nas noites escuras enxergavam-se as velinhas
acesas em cumprimento de promessa. Volvi meu pensamento ao alto do Rosário,
lá também existe outro cruzeiro, numa praça de graminhas verdes, nas
adjacências da igrejinha de Nossa Senhora. Vi o meu saudoso filho, com a gaiola
na mão, para apanhar pintassilgos. Era a sua distração predileta nas férias. Nas
tardes de verão o alto do Rosário era o ponto favorito dos casais de namorados.
Rapazes, moças e crianças brincavam até o sol sumir, com suas cores de ouro.
Revejo a Serra do Gavião que me faz pensar nos estudos dos nossos filhos em
Diamantina. Cada ano da existência humana é cheio de episódios tão imprevistos,
tão diferentes, sempre misturados de doçuras e amarguras. Gostaria de expressar
essas impressões, mas cursei apenas três anos numa escola normal, em início
quando era ainda tão deficiente o ensino, isso em 1911. Livre da catarata que me
tampava os olhos continuo na minha mania de escrever, fazendo disso uma
distração, um passatempo. Vou alegrando-me com as alegrias dos filhos e dos
netos, estas criaturinhas inocentes que desabrocham para a vida e amenizam com
seus sorrisos e encantos a vida dos mais velhos. Se não fora esta geraçãozinha
alegre, os avós morreriam de solidão.
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Tanto eu desejava que meu marido escrevesse suas memórias,
transportasse para o papel o que lhe ferisse a alma e procurar na recordação do
passado, ora bom, ora ruim, triste ou alegre, a distração, o alívio do viver de cada
dia. Os jovens vivem de esperança, os velhos de recordação.
Política de interior atrasado, que comecei a conhecer em 1931. Os três
primeiros anos que passamos no Rio Vermelho, sem manifestação de crédito
político, foram três anos de paz e harmonia, com toda a população. A nossa casa
era frequentada por gregos e troianos. No início da nossa vinda quem ficou meio
arredio foi o coronel Bernardino Carvalhais, chefe de uma das correntes locais,
que mais tarde, astuciosamente, conseguiu a adesão do dentista ao seu partido.
Antes da nossa chegada na Vila, existiam dois partidos de acirradas inimizades.
As denominações deles eram ridículas: Tanajura e Formigão. Formigão era o
partido do vigário Padre Francisco de Paula Câmara. Seus adeptos seguiam a
política do Dr. Coelho e Joaquim de Sales. O partido Tanajura, do coronel
Bernardino dos Santos Carvalhais e seus companheiros, que seguiam a
orientação do coronel Jacinto de Magalhães e Castro e Dr. Augusto Clementino,
do Serro. Era uma política de divisão tão grande que tudo em Rio Vermelho era na
base da separação. As festas eram separadas, bailes, casamentos, piqueniques,
e até as festas religiosas. Formigão não entrava onde reunisse Tanajura, embora
Tanajura seja da família do Formigão. O ideal de um partido era hostilizar o outro,
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debochar, perseguir e até insultar. Por isso não é de se admirar que tais
mentalidades ainda venham reinando até hoje nos partidos políticos.
A educação política errada e a orientação defeituosa dos primeiros tempos,
em Rio Vermelho, ainda existem numa população que, atualmente, já é de uma
comarca. Política de bagunça, de atritos pessoais, de ódios, de vinganças e
perseguições. Em 1930, quando governava Getúlio Vargas, em Rio Vermelho
formaram-se os partidos PSD e PR. Nessa data, o coronel Bernardino, homem
ativo, de maior cultura e visão, percebeu, reconheceu que o dentista baiano, com
apenas três anos de atividade naquele distrito, já reunia um grande prestígio
popular. Uma espécie de fanatismo daquela gente por ele. Manobreiro como era o
coronel, planejou logo um meio de laçar e prender o dentista. Tudo fez com a
maior diplomacia, sem deixar transparecer que, o que fez, não era e nem seria o
desgaste de seu prestígio e de sua popularidade. Quando, em julho de 1931,
regressávamos de Paulista onde passamos um ano, o coronel reuniu a população
e organizou uma recepção que parecia a chegada de um bispo no interior.
Mandou uma comissão até Paulista e, na estrada, a uma légua de distância da
Vila, já começamos a encontrar cavaleiros que formavam uma fila interminável,
tendo à frente o coronel, o seu irmão Santos Carvalhais, Dr. Bernardo Café, seu
sobrinho, e o médico baiano, Dr. Albano. A Vila encheu de gente como em dias de
festas locais que deslocavam toda a população rural. Mas o plano estava
realizado para a adesão do dentista ao partido do coronel e, desta forma, o
afastamento dele do outro elemento local; porque onde tivesse gente da
agremiação dos Carvalhais, o pessoal do Padre Câmara afastava-se. Ao
chegarmos à nossa residência na rua Direita, hoje Marechal Dutra, em meio de
uma palestra amistosa, foi logo apresentado um livro com a ata de uma reunião do
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partido PR, já colocando o homenageado como vice-presidente do partido e o
coronel como presidente. E, dessa hora em diante, Deus sabe as lutas, as
batalhas políticas, as inimizades; os aborrecimentos começaram. Foram um pouco
moderadas enquanto continuou a ditadura de Getúlio Vargas. Mas em 1933 ou
1934 houve uma eleição agitada, na qual meu marido deu, pela primeira vez, a
maioria ao Dr. Daniel de Carvalho. Com a elevação da Vila a Cidade, em 1938,
cada partido queria ter prestígio para a nomeação do primeiro prefeito. Na
nomeação do Sr. Serafin Balsamão, primeiro prefeito, embora não fosse por
influência do partido do coronel, este tomou a frente de tudo: recepções,
colocação de elementos seus na prefeitura e, finalmente, queria, com a mão do
prefeito (homem viciado no álcool) perseguir e oprimir os adversários. Porém, não
demorou a romper com este primeiro prefeito, sempre na ambição do mando.
Assim, foi continuando essa luta competitiva entre os dois partidos. Com a morte
do Balsamão, foi nomeado segundo prefeito Dr. Paulo Penido, médico. Pessoa
completamente desconhecida do pessoal de Rio Vermelho. Com o tempo, passou
a ser prestigiado pelos políticos contrários ao coronel e seus adeptos. No seu
discurso de posse enumerou os melhoramentos que pretendia realizar e afirmou
que iria construir um campo de aviação e que, em breves dias, os aviões
cruzariam os céus de Rio Vermelho! Um político velho, radicado há muitos anos
no município, um desses incrédulos, nos melhoramentos prometidos pelo prefeito,
disse assim: o prefeito falou muito bonito, mas numa parte cantou como um galo.
“Aviões cruzando os céus de Rio Vermelho” é uma promessa ridícula. No entanto,
o Dr. Paulo Penido botou mãos à obra e antes de três meses era um fato, uma
realidade. O povo reunido escalava o morro do Cruzeiro e ia se juntar a outras
pessoas, no grande campo, e assistiam à aterrissagem e à saída do primeiro
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avião que ali baixou. Até eu, aos quarenta e cinco anos, não tinha visto um avião,
pois só conheci a capital mineira em 1953, quando já era vovó. Este campo tem
proporcionado benefícios à população sem recursos médicos. Quantos doentes,
em estado grave, são transportados para Belo Horizonte, onde se recuperam. Os
dois prefeitos que o substituíram deixaram o campo de aviação em completo
abandono. Só foi reconstruído na gestão do meu marido. O prefeito Paulo Penido
ainda conseguiu organizar na sociedade local um grupo de acionistas para
inaugurar a luz elétrica na cidade. Não sendo um rio-vermelhense deixou sua
administração com dois grandes melhoramentos que marcaram sua passagem de
dois anos e tanto na prefeitura. Mas o coronel Bernardino Carvalhais, que não
diminuía o desejo de ser o mandachuva em sua terra natal, arranjou denúncias e
muitas ameaças ao prefeito. A instalação da luz não foi fácil, pois o prefeito teve
de travar uma batalha, para conseguir, da Dona Lia Carvalhais, a doação da
queda d’água para montar a usina. Depois dos grandes esforços deste prefeito
atuante, após trabalhar energicamente para organizar a companhia, ele foi
duramente decepcionado no dia da inauguração da luz. Toda cidade enfeitada,
povo reunido junto ao coreto, onde iam ser pronunciados os discursos. Um
farmacêutico foi o primeiro orador e na sua oração só falou na atuação do médico
Dr. França Júnior. Elogiou esse médico como o benfeitor de Rio Vermelho, como
doador daquele melhoramento. O Dr. Penido, sentindo-se moralmente ofendido e
injustiçado, guardou o discurso que ia pronunciar, silenciou-se e se retirou para
sua residência e, no dia seguinte, viajou para Belo Horizonte. Finalmente, a
prefeitura caiu em mãos do coronel Bernardino que fez um governo agitado, de
perseguições aos inimigos, de abandono às classes pobres, de desconsideração
aos amigos e companheiros, até aos mais dedicados e sacrificados, inclusive, o
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homenageado de 1931. Meu marido tudo sacrificava como amigo e companheiro.
Arriscava perigos contra a sua vida no meio de uma política, nascida e criada no
rancor e no ódio. Foram correndo os anos e a prefeitura, de tempos a tempos,
mudava de prefeito. Tudo nas gestões de interventores em Minas.
Em 1945, o coronel foi substituído e perdeu todo o seu prestígio. A
prefeitura continuou de leilão em leilão, cada ano um prefeito. Em janeiro de 1947,
foi nomeado prefeito o meu marido. Em abril do mesmo ano renunciou, para se
desincompatibilizar. Concorreu nas eleições do mesmo ano, foi eleito primeiro
prefeito constitucional do município.
A máquina política de Rio Vermelho era, e ainda é, de tal forma que, o
demônio, se viesse em pessoa neste mundo, não quereria ser candidato, nem
suportaria o peso do eleitorado mal educado, mal acostumado e traidor. Muitos
anos antes da eleição, o candidato tornava-se o burro de carga dos eleitores,
como fazia o meu marido. Arrancava dentes de graça, tratava os doentes, rasgava
tumores, encanava pernas e braços quebrados, tirava bernes nas cabeças e nos
olhos das crianças, assistia às parturientes e fazia uma série de tratamentos, que
até uma turma de médicos do pronto socorro não aguentaria!
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Quando se aproximava a eleição, o candidato pagava professores
ambulantes, fornecia papel, tinta e lápis para ensinar eleitores da roça e, muitas
vezes, até da cidade. “Aprendiam” a rabiscar seus nomes e fazer com eles a
petição ao juiz eleitoral. E para receber os títulos? Se fosse em outra cidade, havia
de se organizar as viagens, pagar pensão para os novos eleitores e, ainda, cuidar
da situação financeira de suas famílias. Se fosse na comarca local, a obrigação de
dar comida, café para cada turma que vinha e voltava. O candidato ia aguentando
o peso das explorações até chegar o dia da eleição. Esse dia era de matar a
paciência de Job. Pagar o registro de todo o pessoal, alistando até os filhos deles.
Preparar o tal quartel (alojamento) dos eleitores, a comedoria que funcionava no
dia da eleição era um dos pesadelos e um fardo do candidato: um boi morto, uns
dois sacos de arroz, uma saca de feijão, um saco de macarrão, umas oito arrobas
de toucinho, um alqueire de café para torrar, uma carga de rapadura, um saco de
farinha, umas duas dúzias de queijo, sem falar no sal e tempero para este montão
de coisas. Depois, mais de quatro cozinheiros para prepararem toda essa
comilança. E, no fim da festa, tudo isso não era suficiente para encher a barriga
dos eleitores e, também, da massa que invadia a casa do candidato dia e noite,
pedindo comida. Quem quiser vingar-se de um inimigo mande que ele se
candidate a prefeito de Rio Vermelho. Se suportar esta tarefa, uma meia dúzia de
anos, se tiver algum crime, pagou tudo e Deus lhe dará a entrada no céu. Eu
posso afirmar isto porque senti em minha carne, as agruras dessa política de lutas
inglórias. Mas os que já nascem com o germe da política no sangue não
enxergam os trabalhos e nem os sacrifícios, tornam-se fanáticos pelas lutas.
Outro fato curioso é que o candidato vitorioso tinha, ainda, a obrigação de
saturar o povo de bebidas. Cada eleitor vinha pedir o vinho da vitória e os foguetes
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para festejarem a alegria do triunfo. A bola preta da política do Rio Vermelho era a
dramática covardia, as traições dos eleitores, que exigiam os maiores sacrifícios,
quase impossíveis, do candidato, e no dia da eleição votavam contra.
Apenas escrevo o que vi e assisti no Rio Vermelho. Deixo para trás
inúmeros pormenores que não valem a pena descrever e nem eu tenho
inspiração. Ainda um detalhe interessante das eleições em Rio Vermelho.
Deputados que eram candidatos, sustentados pelos votos do meu marido, e que
obtinham sempre maior votação no município, nunca o auxiliaram nas renhidas
campanhas financeiras. Não compreendiam o peso de uma eleição no interior.
Destes deputados, o que fez exceção foi o distinto amigo e parente, Dr. Daniel de
Carvalho. Mesmo não financiando despesas, era pronto, leal e esforçado, servindo
com presteza em todas as ocasiões que reclamassem sua intervenção, seu
prestígio, sua ação de companheiro leal e firme do PR. Nunca em situação difícil,
perante seus munícipes, deixava o prefeito sem apoio. Na maioria dos casos, o
chefe político fazia os maiores sacrifícios e lutas pelos candidatos - uma escada
para eles galgarem seus postos e aquele, sacrificado, ficava debaixo dos degraus da escada, carregando vinho e bebendo a água amarga das consequências
políticas.
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Com seu espírito humanitário, Zezinho (apelido do meu marido) socorreu
muitos pobres, promoveu melhorias de vida para muita gente, proporcionou meios
do ganha-pão para inúmeros trabalhadores, beneficiou gregos e troianos, salvou a
vida de muitas parturientes, sem olhar a cor política, levado unicamente pelo
espírito de humanidade. Tratava crianças mendigas, dando-lhes remédios e
alimentos, numa zona onde dominava a verminose. O caso de espantar é a ação
dos abastados fazendeiros, esses amontoadores de fortuna que eu chamo de
exploradores. A chamado deles, Zezinho viajava a cavalo cinco a seis léguas por
estradas péssimas, debaixo de chuva, quantas vezes, à noite, para atendê-los, às
suas famílias e aos seus empregados, sem lhe pagarem um tostão. Davam-lhe, às
vezes, um queijo de presente.
Quando, em 1927, chegamos à vila de Rio Vermelho, ali já residia, há
vários anos, um sapateiro serrano: Ulisses Carreiro, um ardoroso adepto do antigo
partido Tanajura. Era um carrapato, um pó de mico para seus adversários.
Tornou-se amigo inseparável de Zezinho. Depois de certo tempo, tornou-se o filho
mais velho de nossa família. Tinha a obrigação forçada de mandar minha
empregada, e até meus filhos, todos os dias, buscarem os pratos sujos e lavá-los
e levá-los prontos com o almoço. Mandar chás e mingaus quando ele adoecia,
comprar remédios, aplicar injeções e até levar roupas sujas à lavadeira. Essa
tarefa durou uns quinze anos. Em 1945, quando meu marido, por motivos justos,
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separou-se da política do coronel; o sapateiro do Serro, que era um amigo, e
companheiro do partido Tanajura, cujo chefe era Bernardino Carvalhais, preferiu
ficar ao lado do coronel e se esqueceu de que, durante quinze anos, foi o filho
mais velho da família Utsch Moreira. Como a palavra política em Rio Vermelho era
a causa das divisões, ele tornou-se até inimigo gratuito da nossa família.
Em Rio Vermelho, eram muito interessantes os costumes das amigas e
vizinhas e das suas incumbências. O meu filho Paulo era o mais perseguido e a
maior “vítima” destas obrigações extras. Em frente à nossa casa residia uma
senhora de muita intimidade conosco e não deixava o Paulo ter sossego com
tantas amolações. Quase todos os dias, chamava-o para levar tabuleiros com
pães e roscas para o armazém do marido. Como gratificação ou gorjeta dava ao
Paulo uma rosca que eles chamavam “pelota” e que naquele tempo custava
quinhentos réis. Na presença da proprietária dos tabuleiros, ele se prontificava
amavelmente, ainda que estivesse se roendo de raiva. Quando chegava a casa,
desabafava à vontade. Aconteceu que um dia, quando ele, em voz alta, fazia seus
desabafos e mandava uns tantos nomes feios, reclamando de tantas importunas
incumbências, a dona dos tabuleiros foi chegando e o apanhou em flagrante.
Paulo avermelhou, ficou todo embaraçado, desculpou-se como pôde. A vizinha riu
a valer, levou o assunto em brincadeira e não deixou Paulo em paz. Por muito
tempo ainda continuaram as viagens de tabuleiros.
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Lembrando acontecimentos ocorridos em Rio Vermelho, preciso recordar,
também, uma companheira de meus trabalhos cotidianos, da auxiliar que, com
muito carinho, me ajudou na criação de quatro filhos menores, a bondosa Luíza
Ramos que conosco morou sete anos. Era a amiga querida do meu filho Paulo,
que a chamava de Nuiza. Ele estava com oito meses quando a mesma foi para
nossa companhia. Sempre carinhosa e paciente com meus filhos, era quem os
velava quando eu adoecia. Eu, vivendo numa terra estranha, tão longe dos meus
familiares, que seria de mim, se não fora uma alma boa como essa que Deus me
mandou? Na ocasião das festas, jogos, recepções às personagens ilustres, que
chegavam de fora, piqueniques, etc, quando toda a população da cidade se
aglomerava nos pontos das reuniões; eu e Luíza ficávamos na solidão da nossa
casa, trabalhando e cuidando das crianças. Assim passaram sete anos. Luíza
continuava bondosa, dedicada, como se fora uma pessoa de nossa família.
Depois se mudou para Diamantina para a companhia de seu padrinho Serafim
Vieira e, naquela cidade, ela se casou. Atualmente, já com a família criada, reside
em Belo Horizonte e quando nos encontramos, é só recordação do tempo que
passamos juntas.
A nossa casa em Rio Vermelho era o abrigo de quem, em circunstâncias
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difíceis, precisasse de um apoio, de uma garantia. Assim aconteceu com uma
distinta senhora, nossa grande amiga, Luci de Campos Carvalhais. Abandonada
por um cruel marido, depois de se abrigar um mês em casa de um primo, resolveu
pedir para mandarmos buscá-la para nossa companhia. Foi Zezito (o meu filho
mais velho) que, cavalgando seu cavalinho alazão, chegou com ela, à noitinha, em
nossa casa. Ela acomodou-se e permaneceu seis meses conosco como se fora
uma boa irmã. Ajudava a cuidar de meus filhos, costurava o dia todo para ganhar
algum dinheiro e, à noite, costurava para minha família. Quantas noites passamos
ao redor de uma mesa, ela costurando e eu arrematando costuras, aproveitando
as horas silenciosas da noite, quando todos dormiam. Narrava um rosário de
amarguras e crueldades do marido. No fim, tanto chorava ela como eu... Assim, a
sua grande mágoa era ser privada dos dois filhinhos que ele, por perversidade,
afastou dela. Durante os seis meses em que ela permaneceu conosco, fez
economia e, numa madrugada, despediu-se chorando. A cavalo, seguiu para a
casa de sua mãe em Sabinópolis. Lá em casa, no dia de sua partida, reinou uma
tristeza geral. Ela sempre falava comigo: seus filhos me consolam na ausência
dos meus, principalmente, Neli e Lourdinha que dormiam junto a ela e a
chamavam Titi. Mas quem sofre com Deus, vence e recebe a palma da vitória.
Assim, essa amiga teve a força necessária de passar chorando pelos altos morros
que circundavam sua morada, onde estavam os dois filhinhos. Seguiu, caminho
fora, idealizando alcançar recursos para readquirir os filhos. De Sabinópolis seguiu
para Ponte Nova, onde morava um irmão e, dali, para Belo Horizonte. Trabalhou
até como empregada doméstica e, tempos depois, pela lei, obteve os filhos, criou-
os, educou-os. De longe nos comunicávamos, mas só a vi, uma vez, em 1953. Em
1970, faleceu e eu soube muito tempo depois.
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Nas minhas anotações dos acontecimentos em Rio Vermelho, falei diversas
vezes na estrada do Magalhães. O que é o Magalhães? É um povoado quase
ligado à sede da cidade e, antigamente, possuía mais de cem casas. O nome
Magalhães foi dado em homenagem, em memória do rico português, chamado
Magalhães, o doador da grande fazenda, de ótimos terrenos, destinados aos sem
terra. Aí se instalou o povoado. Os terrenos desta fazenda foram doados à
Paróquia de Nossa Senhora da Pena, de Rio Vermelho, para uso e fruto da
pobreza. Então, para ali convergiram diversas famílias, na totalidade pobres. Cada
um edificava uma casinha de telha ou de esteira de taquara, conforme suas
posses, seus recursos financeiros. Fechavam de arame, de madeira e até de
bambu, uma área de terras junto às suas casinhas, ali formavam a lavoura de
cana, café, banana, mandioca, frutas, cereais e tudo mais para sua manutenção.
Dessas inúmeras lavouras, o pessoal do povoado abastecia a cidade de verduras
com muita abundância. Para povoar os terrenos da fazenda, várias famílias do
norte de Minas e da Bahia vieram. No meio dessas famílias veio um nortista
mineiro, lá nos limites com a Bahia, Marcolino Machado, um verdadeiro tipo
sertanejo. Analfabeto, mas muito inteligente, narrador de histórias antigas,
trabalhador e, sobretudo, franco, sincero, leal. Na pequena área de terra que ele
conseguiu, criou três famílias, pois foi casado três vezes. Residia numa chacrinha,
onde possuía uma casinha de telha, boa plantação de café, cana que moía na
engenhoca, terras ótimas para a plantação de arroz e, também, para manter umas
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vaquinhas leiteiras. Íamos sempre em sua residência, onde todos os anos
comemoravam a festa de Santo Antônio, com uma fogueira e levantamento do
mastro, com a bandeira do santo. E uma fogueira também. Ao término da festa,
ofereciam um cafezinho com as gostosas roscas da rainha. Esse sertanejo tornou-
se um grande e leal amigo do meu marido. No povoado ele era um chefão político,
controlava tanto o eleitorado, que ali era núcleo coeso ao partido do PR. Ele era
de fato um amigo incondicional. Lembro-me muito bem de uma eleição
agitadíssima, em 1934, em que meu marido foi mesário. A Vila encheu-se de
boatos alarmantes, de ameaças, porque o partido sempre dominante e sempre
majoritário estava receoso de perder. Diziam que se perdessem, apelariam para
arbitrariedades e para a violência. Os trabalhos eleitorais prolongaram-se até alta
noite. Num recinto da seção estava o meu marido organizando as atas da eleição.
Os seus correligionários, cada um, cuidando de defender a sua pele, foram-se
retirando. Deixaram sozinho o meu marido. No entanto, sem ninguém saber, sem
alarme, lá estava o amigo rústico a vigiar atentamente qualquer movimento de
arruaça ou violência que pudesse atingir o seu amigo baiano. Só deixou aquele
recinto depois de tudo terminado, às duas da madrugada, quando conduziu o meu
marido à nossa morada. Amigos dessa lealdade, no mundo atual, contam-se
poucos.
Certa vez, o velho sertanejo trabalhando em sua lavoura feriu o dedo do pé
com um espinho de cobra morta. O dedo infeccionou e gangrenou, chegando à
urgente necessidade de amputar o pé. Quem foi seu médico assistente, que
ajudou a operá-lo e o assistiu a noite inteira? Foi o amigo cuja vida ele protegeu
no dia da eleição perigosa em 1934. O bom sertanejo salvou-se da operação,
viveu até os oitenta dois ou oitenta e quatro anos, sempre amigo e amigo dos
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meus filhos.
Atualmente, este povoado, Magalhães, que era o celeiro abastecedor da
Vila, está quase transformado em retiro de fazendeiros pecuaristas. Chácaras bem
cuidadas, bem cultivadas, hoje são pastagem de gado. Os moradores antigos,
quase todos já faleceram e as gerações novas saíram à procura dos progressos
de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Paraná. Assim, as terras que
seriam para uso e fruto da pobreza perderam a população que cuidava da lavoura
e cresceram os retiros de gado, com poucos habitantes.
Ao relembrar pessoas e fatos de Rio Vermelho, não poderei esquecer a
figura de uma distinta senhora que ali residia há muitos anos, antes da nossa
chegada. Essa senhora era a dona Enedina Café Carvalhais, esposa do coronel
Bernardino. Senhora de muitas virtudes, filha de uma destacada família de
Guanhães. Foi viver em Rio Vermelho porque se casou com um rio-vermelhense.
No início de sua vida ali, estranhou tanto o ambiente que, conforme teve ocasião
de me falar, chorava continuamente. O seu marido, coronel, homem de certa
instrução, da geração dos ex-alunos do Caraça, era rico, filho e herdeiro de
Bernardino dos Santos. Pôde assim proporcionar, à sua esposa, conforto, que
naquela região não existia. Construiu uma confortável fazenda, de modo que, essa
bem organizada propriedade era o ponto chique, o lugar adequado para festas,
hospedagens e recepções às pessoas ilustres que raramente chegavam àquelas
plagas. O primeiro médico que apareceu em Rio Vermelho foi em 1929, um
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médico baiano, Dr. Serra, trazendo em sua companhia uma senhora alemã. O
motivo da vinda deste médico não se sabe, talvez para se esconder de alguma
coisa errada, naquele interior, sem o menor conforto. Para chegar a Rio Vermelho,
em 1929, havia de enfrentar muitas léguas em lombo de burro e por estradas que
pareciam caminhos de bicho. A família Café Carvalhais recebeu-os com toda a
hospitalidade e conforto da fazenda. Ofereciam-lhes altos banquetes. Forneciam
leite, frutas e verduras. Faziam da casa do médico o ponto de prosa e distrações
do coronel e de seus familiares e companheiros. Porém, como amizade de
aparência e ostentação dura pouco, no fim de um ano, estavam brigados e o
coronel convidou outro médico baiano, Dr. Albano para competir com seu
conterrâneo. Assim, Dr. Serra arranjou as malas e pirou-se.
Minhas relações com dona Enedina eram cerimoniosas e apesar dos
convites que me fazia para visitar sua casa, eu sempre recusava. Até que um dia,
com muita insistência, ela me convidou para ir ao jantar de gala em homenagem
ao médico que tratou da doença do coronel. Organizaram um banquete
cerimonioso. Ela traçou o programa da festa e com muitas auxiliares, executou-o
brilhantemente, fez convite quase geral, mas de um modo particular, aos políticos
de mais destaque que eram os baluartes do seu marido. Assim, lá em casa, além
do convite, houve uma ordem da presença do Zezinho que iria ocupar um lugar de
honra, sentando-se à cabeceira de uma mesa. Dona Enedina foi pessoalmente me
convidar para a festa de arromba à noite. Eu e minha vizinha Helena fomos
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recebidas e colocadas no corredor, à espera de que ela nos levasse para o jantar.
A sala de jantar, com cinco mesas, estava ricamente ornamentada. No centro da
sala, a mesa do médico aniversariante. Nas outras mesas, cada convidado tinha o
seu lugar marcado por um cartão com seu nome, dentro de um copo, com um
guardanapo e uma flor. Serviam o jantar à moda dos clubes granfinos, os garçons
eram os filhos do coronel, com os trajes próprios. Bernardo e Wellington.
O meu marido foi um dos primeiros a chegar. Eu, que vivia sempre
atarefada, com os afazeres da casa, só pude comparecer mais tarde. Quando
cheguei a casa já estava super lotada. Entreguei os filhos a uma babá da
confiança de Dona Enedina, pois não pude deixá-los em minha casa, por não ter
pessoa de confiança que os vigiasse. Os convidados na sala de jantar já se
acomodavam, tomando cada um o seu lugar; meu marido já ocupando o seu posto
de honra, na cabeceira de uma mesa. Eu e minha amiga ficamos sem lugar na
mesa do banquete e nos acomodamos no corredor, adjacente à sala. Ali ficamos
como figura de papelão, escutando os discursos e o espocar do champagne e
engolindo a língua. Dado momento, veio a dona da festa, talvez para dar uma
desculpa esfarrapada e nos disse: eu faço questão de vocês jantarem comigo.
Permanecemos no dito corredor até por volta das vinte e três horas, quando, ao
bater de palmas, entrou o aniversariante na sala do baile e dançou a primeira
valsa com uma senhorita, que saiu sorteada para essa incumbência e assim
iniciou o baile. Que é que eu fiz? Procurei meus filhos e, sem dar a menor
satisfação, retirei-me para minha casa, nem sei se deram pela minha falta. Lá
ficou o meu marido. Esse episódio serviu de lição para que nunca mais
comparecesse nas reuniões da dona Enedina. Até hoje, com os meus setenta e
quatro anos, eu lembro-me deste acontecimento. Sinto que a falta, a desatenção
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não foi somente dos organizadores da festa. A culpa cai também numa outra
pessoa, mas para quê dizer o seu nome! Naquele dia esta pessoa estava
empolgada, talvez, até anestesiada pelas bajulações que cegam os espíritos
pouco penetrantes e pouco observadores.
Passados muitos anos, eu assisti a fatos dolorosos na vida dessa senhora
Café, que, no meu modo de pensar, foi a criatura que mais sofreu e mais chorou
em Rio Vermelho! Depois de inúmeras tragédias em sua família, em 1949, todos
se afastaram de Rio Vermelho, inclusive ela que veio para Belo Horizonte, com o
esposo gravemente enfermo. O coronel faleceu depois de dois anos de terríveis
sofrimentos. Sua rica propriedade, aquela vivenda encantadora, outrora centro de
alegrias, foi desmoronando, se acabando e desapareceu por completo. Se o
antigo frequentador das selecionadas festas da Granja São Vicente, como era o
seu nome, ali voltasse, com espanto diria: “aqui passou um dilúvio, um furacão ou,
então, era um palácio encantado que as bruxas destruíram!”. Quão passageiras
são as glórias do mundo, acabam como uma bolha de sabão, como uma fumaça
tocada pelos ventos.
Aos acontecimentos de Rio Vermelho está ligado o nome de um
personagem respeitável que ali residiu cinquenta e tantos anos. Foi um dos
políticos mais radicais e atuantes naquela localidade. Esse personagem é o padre
Francisco de Paula Câmara, sacerdote de severas atitudes, de rígidos costumes,
o que era peculiar aos sacerdotes do outro século, não permitindo intimidades
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femininas em suas residências. Quase nada sei narrar da figura desse ministro de
Deus que batizou quase a totalidade daquela população: pais, filhos e netos,
muitos dos quais, no futuro, se transformaram em seus adversários políticos e até
em seus inimigos pessoais. Era, em Rio Vermelho, um político de firmes atitudes.
Amigo de seus amigos e correligionários, intransigente para seus adversários, dos
quais ele procurava evitar as presenças, pois adversário político significava
inimigo. O lema era esse: quem não é comigo, é contra mim. Até o vigário, padre
Câmara, rezava nesta cartilha.
Em Rio Vermelho, logo após nossa chegada, ele foi contratar serviço
dentário com Zezinho, exigindo um horário especial, de modo a não se encontrar
com ninguém. Ele também sofreu em sua carne as consequências da baixa e
maligna política, nascida e criada no ódio, rancor e vingança. Em 1930, data das
primeiras manifestações políticas de meu marido, trabalhando contra o candidato
do vigário, deu-se o seu esfriamento, o seu afastamento da nossa família. Tudo se
transformou, no futuro, em inimizades pessoais com ele e seus familiares. Já
depois do falecimento do padre Câmara, os elementos que se batiam em renhida
oposição se uniram por algum tempo. União dos elementos do padre Câmara à
corrente do dentista baiano. Daí aconteceu a perda do prestígio do coronel
Bernardino.
Da aproximação dos eleitores do padre Câmara, começaram as relações
amistosas, as intimidades das duas famílias: Câmara e Moreira. Resultado das
relações amistosas, deu-se o entrelaçamento das duas famílias e hoje, 1968, já
temos dez queridos netinhos Câmara Moreira.
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Não posso deixar em esquecimento uma pessoa que foi minha amiga do
peito e, em muitas circunstâncias, fez para mim o que faria uma boa mãe. Essa
criatura, cuja memória conservo e prezo, é a dona Carlota Vieira, madrinha do
meu filho Afrânio. Conheci essa senhora quando ainda residíamos em Serro. Foi
ali minha vizinha e pude reconhecer, de perto, as suas boas qualidades. Católica
fervorosa, praticante dos ensinamentos de Jesus, dispensando sua caridade aos
conhecidos, aos amigos e até aos desconhecidos. Bastava saber que havia algum
doente desamparado para ir prestar-lhe seu serviço, dar-lhe remédios e assisti-lo.
Quando nasceu o meu primeiro filho, esta amiga prestimosa foi quem substituiu
minha mãe. Tomou conta da criança e me zelou como uma dedicada enfermeira,
passando as noites comigo e cuidando de minha casa. Quando, em 1927, cheguei
em Rio Vermelho, lá encontrei essa velha amiga residindo numa fazenda perto da
Vila. Tempos depois, transferiu-se para a Vila com o esposo e dois filhos e
continuou nossa amizade sincera. A Lília, sua filha, seu irmão Levi, reunidos em
nossa casa, tocavam cavaquinho e violino, cantavam O Jeca, sua canção
predileta, e eu apreciava muito essa orquestra improvisada. Mas de acordo com o
meu julgamento, sendo o Rio Vermelho um pedacinho do purgatório para as
mães, essa bondosa senhora sofreu também um pouco dessas penas expiatórias.
Viu o seu filho preso, chicoteado pela polícia em Rio Vermelho, numa época em
que não se sabia quem mandava ali. Quem figurava como chefe era o padre
Câmara. Após vários incidentes dolorosos em sua família, mudou-se para
Diamantina, onde faleceu. Atualmente, 1968, residem na capital mineira seus dois
filhos e conservam para conosco a herança da amizade de sua boníssima mãe.
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Amizades sinceras permanecem através dos tempos, de família em família. Nem o
passar de longos anos destrói a amizade. Amiga, é uma palavra muito
pronunciada, muito usada socialmente, coisa difícil de se encontrar neste mundo.
Nessa longa caminhada de setenta e cinco anos vividos em diferentes lugares, em
cantos solitários de roças, em cidades, em colégios e convento, posso dizer,
convivi com muita gente, ouvi muitos cantos de sereias, mas, realmente amigas,
encontrei poucas.
Amigas também, ainda do tempo do Serro, foram dona Henriqueta Lessa
Ferreira Pinto e sua filha Custódia Ferreira Pinto. Dona Henriqueta foi a madrinha
do meu filho Mário. Esta senhora era parente do grande pesquisador, o veterano
da Guerra do Paraguai, o Alferes Luiz Pinto. Consideravam-nos como parte da
sua família. Adoravam meus filhos e a eles davam todo o carinho e afeição.
A minha cunhada, dona Cândida, era uma alma santa. Veio morar em Rio
Vermelho junto de nós. Fomos felizes com este convívio. Dona Cândida, apesar
das “travessuras” do marido, perdoou-lhe as faltas cometidas e suportou-o até o
fim da vida. A minha cunhada veio dividir comigo o desconforto e o desprazer de
morar em Rio Vermelho. Para mim era um exemplo de espiritualidade, fortaleza e
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confiança em Deus. Ninguém mais do que ela detestava o tipo de vida do povo
rio-vermelhense. No entanto, suportava tudo, alegre, sem ninguém perceber seus
sentimentos. Dona Cândida, como eu a chamava, filha de uma grande capital,
Salvador, criada com conforto, soube suportar as agruras da vida, as dificuldades
financeiras, a perda da filha querida. Certa vez, conversando com uma filha de
Dona Cândida, missionária da Imaculada Conceição, ela me disse: não tem
sofrimento neste mundo que minha mãe não tenha experimentado! Como viveu,
morreu, pois nos seus últimos momentos, não aceitava remédios que aliviassem
suas dores. Dona Cândida, alma santa, lá da celeste ventura, lembre-se de mim!
Frágil criatura ajuda-me até o fim...
O filho mais velho arretou uma chácara, distante uns três quilômetros da
cidade, era este o meu passeio obrigatório. Eu, com meus filhos pequenos,
fazíamos este passeio semanal. Íamos a pé, muitas vezes com o sol escaldante,
mas achávamos aprazível. Era uma casinha, coberta de esteira de taquara, de
quatro cômodos, de janelas e portas pequenas, sem assoalho, tendo ao lado uma
frondosa gameleira, que servia de poleiro para as galinhas. Uma biquinha de água
clara e fresca, rodeada de taioba. Ali passávamos o dia, corríamos todo o quintal
e, ainda, íamos à casinha de um casal de velhinhos pobres que moravam pertinho
e eram muito amigos do meu filho. O senhor Taporôco, um velhinho de uns oitenta
anos, tecia rédeas de cabelo e fazia cabrestos e laços de couro de boi. Era o seu
ganha-pão. A velhinha, dona Efigênia, preparava um cafezinho, trazia-o nas
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tigelinhas muito antigas. Obsequiava os meninos com as caninhas para chupar.
Enquanto fazíamos essa visita aos velhinhos amigos, a cozinheira Virgínia
preparava o jantar: feijão, arroz, frango afogado, ovos fritos, salada de alface,
daquela bem fresquinha e um molho de cebolinha verde, daquele que, até hoje,
1968, percebo ainda o cheiro; e a gostosa farinha de fubá de milho torrado na
panela. À tarde, depois do sol se esconder, aquela vivenda tão pobre, era para
nós um encanto. Assentávamos num cocho de dar sal às vacas e achávamos uma
delícia aquele ar puro, fresquinho e o sussurro das águas do rio Barreiras, que
passava perto da casinha. Certa vez, eu permaneci na chacrinha até anoitecer. No
curral, onde assentados, conversávamos, comecei a pensar. A noite escura, triste,
silenciosa, só se ouvia a música dos sapos, das rãs num brejo perto e o luzeiro
dos pirilampos que, de tão numerosos, clareavam a noite. Então, veio ao meu
espírito o seguinte: um filho aqui nessa solidão, o outro tão distante, tão longe dos
meus olhares, dos meus cuidados, morando numa cidade de luzes, a cidade
maravilhosa... numa casa de conforto. Na hora, não sei de quem eu estaria com
pena!
Foi na chácara de Zezito, nesse recanto isolado, que nasceram as minhas
duas primeiras netas, Maria do Carmo e Maria da Conceição. De tardinha,
deixávamos aquela casinha, com os passarinhos cantando, na gameleira próxima,
saíamos com saudade.
Certa vez, numa das minhas idas à chacrinha, inventamos prolongar nosso
passeio até à casa da futura sogra do meu filho. Uma fazendinha a uns três
quilômetros dali. Fomos a pé, levando também a cozinheira Virgínia, medrosa, tão
apavorada, que espalhava medo em todo mundo. A viagem de ida foi muito bem,
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mesmo olhando de lado a lado e para trás, para ver se aproximava-se alguma
vaca. No regresso, já à noite, vínhamos receosas de tudo: de cobras, de vacas
bravas e de bêbados na estrada. Assim ia caminhando este bando de apavoradas,
ora parávamos ora corríamos. Em certo momento, surge atrás de nós um touro
correndo. Ai meu Deus! A coisa ficou preta! Cada um corria mais do que o outro e
sem olhar quem ficava para trás. O lema era salve-se quem puder! Eu, medrosa
número um, corria segurando a mão dos meus filhos pequenos. Encontramos pelo
caminho uma árvore de espinho à beira da estrada. Subimos por ela acima sem
vermos a hora e nem se a Virgínia conseguiu fazer o mesmo. Aflitos,
procurávamos por ela, eis a Virgínia acima das nossas cabeças bem no alto da
árvore a gritar: morro sem ver Dedé, eu não posso morrer sem ver Dedé! Dedé
era um filho dela que estava em São Paulo. O nosso medo era tanto, já começava
a escurecer e onde acharíamos coragem para descer da árvore? O touro, com seu
aspecto de causar pavor, permaneceu um pouco adiante de nós. Ficamos
agarrados na árvore, até que apareceu um homem a cavalo e espantou o touro,
ajudou a tirar Virgínia do topo da árvore e nos acompanhou até a chacrinha. A
Virgínia, a cozinheira apavorada, ficava sozinha na chacrinha durante o tempo de
trabalho. Meu filho era solteiro e não parava em casa. Tinha como companheira
sua inseparável cachorrinha chamada Rolinha, com quem ela conversava como
se fora gente. Pobre Virgínia! Vivia só, abandonada do marido e dos filhos e hoje,
1968, está quase cega.
Esta tarefa de idas semanais ao rancho do meu filho, só terminou quando
ele casou-se em 1943. Porque não precisava da minha presença para zelar sua
casinha.
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Durante os trinta e um anos vividos em Rio Vermelho, permaneci vinte e
cinco anos sem sair dos limites do município. Fui uma única vez ver minha mãe, já
muito doente, em Conceição do Mato Dentro, e batizar, em Dom Joaquim, a
primeira filha nascida em Rio Vermelho. Tudo naquela época era difícil. Viagens a
cavalo, por estradas horríveis, atravessando rios sem ponte, pernoitando em
casas de fazendeiros, ora encontrando-se ótimas acolhidas e ora suportando as
caras de má vontade dos moradores da beira da estrada.
Passados os anos, quando os primeiros filhos casaram e organizaram suas
residências, os meus passeios prediletos eram em casa deles. Ali, reunidos, era
uma alegria, um bate-papo amistoso, uma distração. Ia olhar suas plantações,
suas criações, o progresso de seus trabalhos, de suas construções. Para mim,
nada é melhor do que as horas passadas com os filhos e os netos. Muitas vezes,
à beira de um foguinho aquecedor e com a luz e a claridade de uma lamparina de
querosene. Assim passei várias vezes em casa de Zezito e no rancho de Paulo,
onde ele começou a sua vida e formou uma linda morada, um ótimo retiro. O
Retiro das Laranjeiras, pertinho da cidade. O tempo das férias, curto espaço de
tempo que minha filha Maria de Lourdes passava em casa conosco, pois desde os
treze anos sempre ausente, estudando ou lecionando. Eu e ela, aproveitando os
curtos momentos da tarde, íamos para uma chapadinha, toda de grama, à beira
da estrada do povoado do Magalhães. Ali, assentadas, mirávamos o rio Barreiras
lá em baixo. Líamos revistas, comentávamos, também, tantos fatos de Rio
Vermelho, sua gente e sua política! Dali, apreciávamos a passagem de tantos
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cavaleiros, o pessoal da roça indo embora para suas casas, subindo o alto da
Barra, caminho que vai para Coluna. Ao esconder do sol, regressávamos à nossa
casa. Sempre naquelas horas encontrávamos o Zezinho, entre seus
companheiros, que em todas as tardes faziam-lhe visitas. Todas as noites havia lá
em casa a “mesa redonda” para discussão dos problemas mais atuais e
interessantes da política na época. Estas reuniões se prolongavam até alta noite,
intercaladas com os cafezinhos de hora em hora que eram “obrigatórios”. Não
podia faltar, mesmo que a dona da casa e a empregada, já cansadas com os
afazeres cotidianos, estivessem cochilando, tinham que atender as inoportunas
visitas.
Dos acontecimentos passados em Rio Vermelho, apenas tenho saudades
dos relacionados com a minha família. Infância dos meus filhos. Do começo de
suas vidas escolares, lembrança das caixinhas em que eles levavam os objetos
para o grupo escolar, pois nunca possuíram uma pasta. O meu filho Antônio
ganhou um caixotinho que foi comprado com passas. Neste, ele carregava seus
cadernos e lápis, conservou-o até o quarto ano e ainda o passou para os outros
irmãos. Lembro-me, com saudades, dos brinquedos nos quintais das casas onde
moramos, das jabuticabeiras, onde iam saborear seus frutos, até de noite, quando
chegavam de Diamantina. Das suas viagens a cavalo, indo para o ginásio,
voltando em férias, passeando nas fazendas, apanhando lindos pintassilgos,
peito-roxo e canarinhos com os quais eles enchiam a casa de gaiolas. Quando
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eles iam para Diamantina para estudar a tarefa de tratar os prisioneiros era minha
e de minhas filhas, as duas companheiras que Deus me deu e eram as minhas
dedicadas auxiliares. Vejo meu filho Mário em cima das árvores frutíferas, tirando
as ervas de passarinho. Vejo-o gordo, bonito, sadio, debaixo das mangueiras,
lendo, horas inteiras, era a sua distração predileta. Vejo-o, ainda, à noite, ouvindo
pelo rádio, junto comigo, com dona Chiquinha e dona Henriqueta Carvalhais a
novela Três Irmãs. Vejo-o com o rádio na cabeceira, deitado, ouvindo as canções
apaixonadas de Vicente Celestino. Partiu com sua calça cáqui, com seu blusão de
brim listrado, todo risonho e dizendo: não chore mamãe, porque em novembro
estarei de volta. Fui eu, Neli, Lourdinha, Afrânio e Carlito que assistimos à sua
despedida para Belo Horizonte. Eu o acompanhei com o olhar, até que ele saísse
da casa da noiva e subisse o morro no caminho do Magalhães rumo ao Paulista e
São João Evangelista, onde ele tomaria um caminhão e seguiria para Belo
Horizonte. Se o coração materno tivesse a faculdade de adivinhar, de prever o
futuro, será que eu deixaria meu filho querido partir? Minha filha Lourdinha foi ao
correio procurar correspondências e, ao chegar perto da nossa casa, veio
correndo com um telegrama dizendo: mamãe vai ficar satisfeita, Mário não volta
mais, foi para o Rio a chamado do Dr. Daniel. O pensamento dela era bom,
julgando a felicidade do irmão sob a valiosa proteção de um parente e amigo
sincero. Nem de longe poderíamos imaginar, traduzir o sentido daquela frase:
Mário não volta mais. Na verdade, não voltou mais.
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Os numerosos acontecimentos que eu vi e assisti ficam como um
amontoado de ideias daquele Rio Vermelho de 1927. Ruas escuras e
esburacadas onde as vacas dormiam. Até hoje eu penso o que Zezinho viu de
encanto naquele pedaço do mundo com o qual ele se apegou. Esqueceu sua
Bahia querida, onde deixou, em 1918, os pais, as irmãs dedicadas e a noiva!
Escolheu aquela zona sem progresso para criar seus filhos, lutando com sérias
dificuldades, distribuindo benefícios a toda gente.
Em Rio Vermelho o que eu apreciava muito era assistir aos auditórios e aos
teatros executados pelas alunas do grupo escolar Afonso Pena Júnior, nos quais
minhas filhas tomavam parte. Naquela época as professoras eram dedicadíssimas
e esforçadas. Procuravam elevar o nível cultural das crianças. Preparavam, com
sacrifícios, palcos, cenários, vestuários e tudo mais que fosse preciso. Exibiam
peças, até dramas, humorismo e danças. Eram inocentes distrações que muito
alegravam a vida. As professoras organizavam, também, as coroações de Nossa
Senhora, no mês de maio e, por motivos políticos, muitas vezes estas coroações
eram em casa das famílias e tudo com muita ordem e com muita pompa. A política
de Rio Vermelho conservava o sentimento de ódio, de separação ou divisão das
pessoas. Essa atitude entrava também na igreja.
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Certo dia, aqui em Belo Horizonte, Zezinho me chamou para apreciar o
despontar da lua cheia, lá atrás das serras que circundam a capital. Ao contemplar
aquela beleza, lembrei-me do que pensava e sentia quando contemplava o luar
em Rio Vermelho. Antes da luz elétrica, o luar era a alegria da moçada. Davam
voltas na praça, formavam reuniões em casas de família, onde brincavam de
prenda e faziam serenatas. As crianças brincavam de roda, na rua, até alta noite,
cantando e pulando. Aproveitavam o benefício da lua cheia porque as noites
escuras eram amedrontadoras. Noite de luar, quando eu me achava sozinha,
debruçada na janela da casa grande na rua Direita, lembrava-me dos meus filhos
em Diamantina. Eu tinha inveja da lua porque ela estava vendo os meus filhos e
eu não. Outras noites de luar, na varanda da minha casa na rua Teófilo Otoni,
quase só, com filhos criados e cada um num canto do mundo, cumprindo suas
tarefas. Via-os no pensamento, cada um de maneira diferente. O Zezito lá no
Paiol, sua casa de roça, cercada de cafezeiros, sentado num banquinho na
cozinha, aquecendo-se, devido à friagem da noite. Antônio em Curvelo, depois em
Belo Horizonte, chegando a casa, cansado, depois de um dia de trabalhos,
recebido alegremente pela mulher e filhinhos. Paulo no seu retiro da Laranjeira, na
varandinha, cercado pelos filhos e pela mulher, ou então, na cozinha aquecendo-
se ao fogo e esperando a ceia. Neli, nem podia imaginar, o que estaria
acontecendo com ela, mas eu compreendo todo o seu drama. Afrânio em Juiz de
Fora, depois em Brumadinho, trabalhando na agência ou, talvez, naquela hora
dando os seus passeios, olhando as namoradas. Lourdinha, a filha sempre
ausente, quem sabe estaria se lembrando da sua mãe sozinha. E o Carlito?
Talvez, naquela hora, estivesse jogando bola lá no alto do Rosário. Desejando eu
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que também estivesse distante, mas seguindo a vida, cumprindo seus deveres
como os outros. Também a recordação, a saudade mais pungente, daquele que
não existe no mundo, repousando, sozinho, no Rio de Janeiro, no Cemitério São
João Batista. Mas existe vivo no meu coração.
Faço dos meus escritos um trabalho para minha velhice e escolhi o que
mais gosto – escrever. Escrevendo estou me distraindo, passando a vida, sem ver
as horas correrem até que chegue o dia determinado por Deus para o término da
minha caminhada, da filmagem da novela iniciada há setenta e seis anos.
Médicos que passaram por Rio Vermelho de 1935 a 1959. Antes da
separação da política do coronel Bernardino, Dr. Almerindo Alves de Brito saiu de
Rio Vermelho em 1935. Depois de sua saída passaram por ali inúmeros médicos:
Dr. Israel Jacob, que apenas demorou meses. Dr. Adriano Valadares, médico
maníaco e que mostrou sua incapacidade quando o delegado local foi baleado. O
curativo que ele fez foi vedar o orifício produzido pela bala com esparadrapo.
Resultado: a vítima, um amigo do peito do padre Câmara, durou poucas horas.
Depois, em 1937, guiado não sei por algum anjo bom ou mau, ou pelo seu próprio
destino, chegou a Rio Vermelho o misterioso médico, Dr. Galeno Americano do
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Brasil. Veio do Rio de Janeiro, trazendo uma bagagem muito importante, uma
companheira instruída, dizendo ser estudante do quarto ano de Direito e um
interessante enfermeiro, o Manuel, além de enfermeiro, como o médico dizia, era,
também, um servente que atendia aos afazeres da casa e servia, a dona granfina,
como garçom. Levava-a para passear à rua, puxando o animal pelo cabresto.
Assim ela cavalgava. Ainda tinha a obrigação forçada de dar banho no médico,
fazendo o papel de chuveiro, derramando água sobre ele, porque, naquela época,
nem se falava em chuveiro. Para receber a bagagem do médico, as professoras
Josefina Santos, Donana Santos e Maria de Lourdes Mota, foram organizar os
preparativos da casa, improvisar alguma coisa que pudesse oferecer um pouco de
conforto àquele pessoal do Rio de Janeiro. Arranjaram mobílias, prepararam
muitas iguarias, doces, bebidas, etc. Tudo ficou pronto ao alcance do lugar, com
pouco recurso. No dia da chegada da “ilustre comitiva”, um grupo de senhores, a
cavalo, foi ao encontro dos hóspedes. À noite, reuniram-se as famílias e foram
prestar-lhes uma homenagem e, nesta onda, eu também fui ao lado de dona
Enedina Café. Qual a nossa impressão ao chegarmos em frente à casa, vendo
juntos à porta o casal carioca? As impressões foram idênticas. Dona Enedina falou
em meu ouvido: estamos diante de um casal de atores muito modernos! Nessa
homenagem notava-se a presença do Dr. Guilherme Machado, advogado,
exercendo sua profissão na cidade do Serro e passando alguns dias em Rio
Vermelho. Foi ele quem discursou brilhantemente, saudando o casal. Será que ele
se lembra desse acontecimento, dessa festa, agora que ele é uma figura tão
importante na política, como deputado federal e presidente da Arena? Quem
agradeceu as saudações, a homenagem foi a companheira do médico, fazendo
um bonito improviso, enalteceu as ótimas qualidades da mulher mineira.
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Depois de algum tempo, a companheira do médico foi novamente para o
Rio de Janeiro. O médico ainda demorou algum tempo. Instalou uma “clínica
cirúrgica”. Fez diversas operações, até extração de bócio, mas o cliente durou
pouco, morreu em consequência da operação. Era um médico de esmerada
educação, porém, passados alguns meses, o pessoal descobriu que ele era um
viciado em cocaína. Antes da saída definitiva do Dr. Galeno, chegou a Rio
Vermelho o médico Dr. Jorge Safe, filho da cidade de Conceição do Mato Dentro.
Bom profissional, mas gênio completamente oposto ao do Dr. Galeno, franco e
grosseiro. Na ausência do Dr. Galeno, quem tomava conta de sua clientela era o
colega Safe, pois aquele viajava sempre ao Rio. Numa dessas viagens, deu-se um
caso irrisório. Não sei compreender porque um homem formado teria intenção de
parecer um vigarista! Talvez porque conheceu aquele povo e o considerou
ingênuo ou imbecil, para acreditar em contos de vigário. Alvorou-se em ser um
grande amigo de Rio Vermelho e fez com que os seus admiradores acreditassem
na sua invenção: disse para o povo que ia ao Rio para adquirir todo o material
para dotar Rio Vermelho com boa luz elétrica. Chegando ao Rio, telegrafou:
material quase todo adquirido. O pessoal entusiasmou-se cada vez mais, vibrando
de animação, planejaram organizar uma festa para recepcionar o médico e sua
volta. Um dos organizadores da festa foi um preto, chamado Pedro Toureiro.
Marcado o dia da chegada, a praça foi toda enfeitada, embandeirada. Fizeram
balões de papel de seda com velas dentro (ideia e fabricação do Pedro Toureiro).
Grandes faixas com as inscrições: viva a luz, morram as trevas. Mas o Rio
Vermelho continuou na escuridão até 1942, quando ali apareceu a luz elétrica, na
gestão do prefeito Paulo Penido. Com este conto do vigário, impingido àquela
gente, o médico, incentivador do fantástico progresso da Vila voltou para o Rio e
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sumiu.
O Dr. Jorge Safe demorou, ainda, um ano e depois transferiu-se para
Conceição do Mato Dentro, sua terra natal. Em 1938 foi para Rio Vermelho um
médico mineiro, Francisco França Júnior, e ali permaneceu até 1943. Conseguiu
formar uma boa clientela e foi apoiado por toda a turma da política do padre
Câmara. Saiu em 1943 quando já residia na terra o médico baiano Dr. Pedro
Autran, que permaneceu até 1961, quando faleceu. Está repousando no cemitério
local. O substituto do Dr. Pedro Autran foi o médico Marcos Pimenta. O Dr. Marcos
casou-se com uma senhorita rio-vermelhense. Candidatou-se a prefeito, tendo
sido derrotado, transferiu-se, imediatamente, para Virginópolis. O povo não sabe
escolher e a população perdeu um bom médico.
Quando Dr. França residia em Rio Vermelho, ele era completamente
afastado da nossa família. Havia até hostilidade mútua, mas em novembro de
1948, quando Zezinho adoeceu gravemente com septicemia, ele residia no Serro
e, a chamado de nossos filhos, veio e deu toda a assistência com toda a
dedicação. Dessa forma, tornou-se nosso amigo e o médico de confiança da
nossa família. Como no mundo, os discos viram-se na vida real!
Além dos médicos que, temporariamente, residiram no Rio Vermelho,
apareciam outros de cidades vizinhas, atendendo a chamados e, muitas vezes,
procurando ganhar a vida. Destes, apenas me lembro do Dr. José Aires da Mata
Machado, Dr. Rubens Mortimer, Dr. Alcides Meira, Dr. João Antunes, Dr. Carneiro,
Dr. Ovídio Ribeiro, Dr. Rui Pimenta, Dr. José Monteiro, Dr. Antônio Tolentino Filho,
Dr. Eros Couto, Dr. Joaquim de Pinho, Dr. Plínio Rocha. Atualmente, 1968, o Rio
Vermelho, já possuindo rodovias para diversas cidades, campo de aviação,
hospital bem montado, ainda luta com dificuldade de recursos médicos.
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Já narrei muita coisa de Rio Vermelho, mas escaparam muitos
acontecimentos, dentre estes, um de devoção e entusiasmo daquela gente. As
duas principais festas religiosas eram: a festa de São Sebastião, protetor dos
fazendeiros, santo de suas devoções, por ser o protetor contra a peste, a fome e a
guerra; e a festa tradicional do Divino Espírito Santo. Destes festejos, havia, e
ainda há, o “luxuoso império”. A imperatriz era sempre filha ou parente dos
festeiros. Ia ricamente vestida, levando um cetro nas mãos, tendo a seu lado o
imperador, ladeado pelos cavalheiros e damas de honra. Todo este cortejo era
conduzido dentro de um quadro, levado por senhoritas lindamente vestidas com
toaletes iguais. O cortejo era precedido de novenas animadas, desde o primeiro
dia. A cidade tomava outro aspecto, pois todos os habitantes pintavam suas
casas, limpavam as ruas e os encarregados das festividades reformavam a
ornamentação da igreja. As novenas eram anunciadas em cada dia, com um
formidável tiro de ronqueira às quatro da madrugada, feita e executada pelo preto
velho João Vieira, mestre no assunto. Às dezenove horas a reza da novena, na
igreja e, ainda, havia a cerimônia da banda de música, buscando o imperador em
sua casa. Após os términos das orações, o imperador, carregando a bandeira,
permanecia no coreto enquanto procedia a arrematação dos leilões, tantos, tão
numerosos que se prolongavam até à meia noite. O povo era demasiadamente
generoso para oferecer bolos, doces, dúzias de ovos, queijos, frutas, ceias com
leitão assado, tutu de feijão, arroz, macarronada, frangos assados, bebidas, etc.
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Os roceiros levavam o produto de suas lavouras: abóboras, batatas, e até feixes
de cana. Rematavam a ceia por uma ninharia e levavam para casa de uma
família. Comiam a ceia, improvisavam um baile, até quase o sol nascer. De modo
que era uma novena, de reza, de música, foguetório, leilões e bailes. Às vezes,
contratavam banda de música de outras cidades. Até a banda do segundo
batalhão de Diamantina se abalava para abrilhantar as glórias do Divino. Os
leilões de bezerro, poltros, suínos e outros animais eram tão numerosos que, para
reuni-los, eram precisos três homens, a fim de guardá-los em determinado lugar,
até o dia de irem a leilão. Muitas vezes, era necessário fazer uma espécie de
curral, um cercado na praça para o dia em que fossem leiloados. Nesse dia
reuniam-se muitos fazendeiros, pois a eles interessavam as prendas do último dia,
os animais. Terminadas as comemorações: missa, o império e a procissão, era
praxe chamar o povo para comer o doce do Divino Espírito Santo. O domingo era
para o pessoal da roça, doce de rapadura (feito uns quinze dias antes) e guardado
em latas de querosene e tambores. O pessoal avançava e, além de comer à
vontade, levava também para suas casas. Os roceiros escolhiam até doces em
calda. Como chegavam em casa estes doces? Outra particularidade nos festejos
do Divino: o levantamento do mastro, na véspera. Ficava a cargo do mordomo e
de mais dois auxiliares; toque de sino ao meio dia, foguetório e os leilões da tarde.
De madrugada, às quatro horas, o povo se levantava ao estrondo da ronqueira
soberana do velho João Vieira. Todos rumavam para a casa do mordomo,
inclusive a banda de música. Em casa do mordomo era servido o gostoso bolo de
arroz e muito café. Terminada a comilança, saía a banda acompanhada dos
comedores de bolo, executando várias peças de seu repertório, percorrendo as
ruas e terminando na praça da matriz, com alegres toques de sino e foguetório.
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Terminadas as tarefas dos festeiros, sorteavam o novo imperador e novos
mordomos, havendo, ainda, a obrigação de organizar o acompanhamento pelo
povo e pela banda de música para levar o novo imperador em sua residência,
onde se improvisava, ainda, um baile. Assim terminavam os festejos de uns dez
dias, deixando os organizadores estafados de tanto trabalho. Os fazendeiros, os
lavradores e o pessoal de outras localidades retiravam-se da Vila. Esta caía na
maior quietude. Os negociantes iam contar os cobres que ganharam nos dias da
novena do Divino. Também as costureiras, os fabricantes de pães e doces. Essas
cerimônias, ligadas à religião, agitam os lugares que seriam parados, sem
negócios, sem movimento. Eu apenas distraía as minhas horas com trabalho e as
travessuras de meus filhos. Não participava, só me divertia olhando da minha
janela, apreciando o movimento do povo, com diferentes modelos de roupa, as
moças da roça com o rosto pintado de papel vermelho, soltando os sapatos na
rua, quando estes as incomodavam, usando laços de fitas verdes e amarelas na
cabeça, bebendo cachaça na porta dos botecos.
Que engraçado, também, eram as Folias de Reis. Saía pelas ruas um
grupo de homens e rapazes tocando violas e sanfonas, todas enfeitadas de fitas,
trazendo cada um lenços no pescoço, cantando e pedindo esmolas. Cantavam,
saudando o dono da casa onde entravam, depois pediam a esmola, agradeciam o
que recebiam do dono da casa. Tinha-se que oferecer ao pessoal cantante a
pinga, o que eles mais apreciavam. Em tempo de Natal, ou melhor, no dia de Reis,
organizava-se um grupo de pastorinha, e um rapaz (que hoje é padre redentorista)
as guiava. Iam de casa em casa, com bandeiras e um carneirinho nas mãos. A
criançada corria atrás, fazendo grande folia.
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Nas obscuras e desorganizadas narrativas sobre acontecimentos em Rio
Vermelho, acho horrível descrever fatos que constituem uma página negra, de
uma Vila fundada em tempos melhores, sendo, atualmente, uma cidade, uma
comarca. Seus habitantes, hoje, mais instruídos olhando os tempos idos, terão
vergonha, e até horror, em relembrá-los. Mas, como tudo faz parte do que ali
assisti e vi nos trinta e um anos vividos naquele pedaço do mundo, vou relembrar
também aquilo que tanto horror me causava. A cada dia nascia em mim o desejo
de sair com a minha família daquele lugar. Nasci e convivi até aos dezesseis anos
num ambiente calmo e de pais pacatos. Passei nove anos em colégios e
convento, numa vida de paz e sossego. Iniciei minha vida conjugal numa
tradicional cidade de sociedade pacífica, o Serro. Como poderia me adaptar num
lugar onde bárbaros assassinatos eram coisas banais, costumeiras?
A minha primeira e triste impressão foi em 1927, uns dois meses após
nossa chegada na Vila, quando ainda nada conhecia. Chegaram pessoas em
nossa casa chamando-nos para atender um homem gravemente ferido a tiros. Lá
foi meu marido, correndo, com uma pasta nas mãos, e chegando onde estava a
vítima, no fim da cidade, já encontrou o pobre homem morrendo, deitado em um
banco de madeira, sem a menor assistência. O homem havia sido vítima de uma
tocaia, dentro de uma casa, onde o assassino apoiou a arma na janela para tirar a
vida de quem ia levando um carro de boi, lutando pelo pão de cada dia!
Nas zonas rurais, nos lugares denominados Mundo Velho, Fortaleza, Mata-
- Porco, Cocais, Gavião, Lajes, Rabiô, Raposos e Bragança, eram tantos os
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crimes que somente o serviço estatístico, bem feito, poderia enumerá-los.
Alguém já teria ouvido falar em um homem comedor de fígado humano?
Pois esse homem, que matou, friamente, um indivíduo, abriu-o, tirou-lhe o fígado e
preparou-o para comer. Este canibal é de Rio Vermelho.
Lembro com horror, do assassinato de uma senhora de uns cinquenta
anos, muito trabalhadora. Morava numa chácara muito bem cuidada e lá íamos
sempre passear, pois tornou-se nossa amiga. Em sua casa ela nos oferecia um
gostoso lanche, uma saborosa geleia e um bom vinho. Essa senhora, a dona
Chiquinha, como a chamavam, foi assassinada pelo seu cunhado, Domingos de
Souza, um velho de sessenta anos. Matou-a dentro de sua cozinha, onde ela
preparava o café da manhã. O velho, tomado de uma fúria diabólica, entrou casa
adentro até onde ela estava e ali deu-lhe uma facada certeira no coração. A pobre
senhora, sem encontrar socorro algum, saiu sangrando e morreu na beira da
estrada, quadro tétrico! Quando, na Vila, entrava numa rua o cortejo fúnebre, o
velho assassino, todo maltrapilho, entrava por outra rua, paralela, levado pela
polícia para a cadeia. É horripilante contar tantas coisas trágicas, tantos fatos que
mancham a tradição de um povo. Quando Rio Vermelho pertencia à comarca do
Serro, a cadeia serrana era quase ocupada por criminosos rio-vermelhenses. Em
certa ocasião, um promotor servindo, numa sessão de júri, onde era julgado um
criminoso de Rio Vermelho, da tribuna fez a seguinte afirmação: Rio Vermelho
deve ser chamado Rio de Sangue.
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Em 1934, quando eu estava de luto de dois meses de minha mãe, a dona
Enedina Café deu uma festa no dia de seu aniversário. Eu lá não fui, mas, no
entanto, passei um dos maiores sustos da minha vida. Lá na casa, o povo estava
em delirante alegria (meu marido estava lá). Dançavam, cantavam, quando
chegou um portador me avisando que um senhor chamado Joãozinho Ferreira
tinha sido baleado na estrada do Magalhães. Eu, sem saber a causa do crime,
fiquei na maior aflição, julgando que convidassem meu marido para a tarefa de
conduzir o homem ferido. Numa noite escura, saí com dois filhos, levando vela e
fósforo para atravessar a escuridão e fui até a porta da aniversariante pedir, rogar
ao Zezinho que não fosse ao encontro da vítima, temerosa de que surgissem mais
confusões, mais conflitos.Em todas as festas, nas quais abusavam das bebidas,
tudo terminava em briga e confusão. A palavra festa, ao invés de me alegrar, me
enchia de preocupação e pavor. No dia seguinte, o homem ferido já estava
agonizando em casa de uma professora, sua parenta, que residia na mesma rua
onde morávamos. A causa do assassinato não foi política, mas foi cachaça.
Política, cachaça e ignorância eram os fatores principais dos crimes. Misturando,
também, nessa panela do demônio, a avareza, a imprudência, a desonestidade e
mulheres.
Desejaria, gostaria tanto de distrair minhas horas vazias, escrevendo sobre
coisas belas: campos, rios caudalosos, cascatas maravilhosas, montanhas, lagos,
mares, flores, aves e crianças, o encanto da vida e não relembrar tanta miséria
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humana. Tantas vilezas da criatura alheia ao seu fim, transformada num irracional
feroz. Narro o que, infelizmente, vi e vivi durante longos anos, num meio ignorante,
onde a valentia, a covardia, a vingança pareciam ser um predicado, uma
“qualidade” que não podia faltar ao homem. Pobre gente, que nascia, crescia e
morria sem conhecer o maior dos mandamentos de Deus: amar o próximo,
caridade... Talvez não soubessem o que era a palavra próximo! Eu vivia debaixo
de constantes e más impressões que, ao chegar à noite, quando a escuridão
dominava a Vila, eu sentia um pavor, uma insegurança, como se eu morasse num
deserto habitado por feras e sem ter quem me defendesse. Até certa hora, via-se
uma luzinha, numa ou noutra taverna de bebidas, onde os assíduos
frequentadores da cachacinha faziam seus pontos prediletos de reunião. Quantas
vezes, antes das famílias se acomodarem, criminosos e pistoleiros percorriam as
ruas, dando descargas de tiros. A Vila não tinha policiamento. O meu pavor era
tanto que, nas viagens do meu marido, eu escorava as portas com bancos.
Assassinatos de mulheres mundanas eram frequentes naquela época. Um desses
foi impressionante. Em 1931, os missionários redentoristas estavam ali pregando
as Santas Missões. No início das mesmas, os padres fizeram um suplicante apelo
às mundanas, dizendo que, se elas não quisessem se aproximar de Deus, ao
menos respeitassem o santo dia das missões, não promovendo orgias e
desordens. Mas uma infeliz, em ato público de deboche, disse: não atendo nem
que o padre chore sangue. Má foi a hora em que ela falou. Não creio num Deus
injusto e vingativo. Terminadas as santas missões, um dia depois, a desventurada
criatura foi assassinada por um de seus admiradores com requintes da maior
perversidade e covardia. Foi encontrada morta, sobre sua cama, com duas
lágrimas de sangue a correr de seus olhos. Tamanha coincidência... O tiro que ela
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tomou atingiu os sacos lacrimais e ela morreu chorando sangue. O criminoso
atravessou a Vila com a arma na mão, ameaçando quem encontrasse na rua. Este
fato, da infeliz morrendo a chorar sangue, foi muito comentado e causou geral
impressão. Todos julgavam ser um castigo, devido à falta de respeito aos
missionários.
Numa localidade perto do rio Barreiras, um degenerado estrangulou a
mulher e dois filhos e os jogou no rio. Preso, confessou, friamente, o crime.
Num lugar chamado Mata-Quatro, um povoado do Magalhães, houve na
estrada um conflito entre defunteiros (homens que carregam um defunto).
Levavam um morto que já tinha sido assassinado; na briga entre eles, mataram
mais um. Depois desse fato, o lugar passou a ser chamado Mata - Quatro.
Certa ocasião, em que meu marido estava em excursão do trabalho,
ocorreu, na Vila, um crime que me causou pavor. Isto foi em 1932. Meu marido foi
rapidamente nos visitar e logo na primeira noite de sua chegada, quando íamos
deitar, ouviu-se um tiroteio na praça. Ficamos todos sobressaltados, ignorando do
que se tratava. Espreitávamos pelas frestas da janela a fim de observar o
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movimento. Vimos três cavaleiros subindo a nossa rua e gemendo. Noite escura,
não nos permitiu reconhecê-lo. Logo, logo, uma empregada da casa de um
compadre veio bater à nossa porta, chamando meu marido para acudir o homem
ofendido. Eu, tomada de pavor, não o deixei ir sozinho. Noite fria, neblinosa e
escura. Fui acompanhando-o e ainda levei um filho de doze anos. Encontramos a
vítima, varada por uma bala de carabina, já sentindo que ia morrer. Mesmo assim,
na ânsia da morte, só pedia que o deixasse vingar o seu agressor, o delegado de
polícia, amigo do padre Câmara e inimigo do coronel Bernardino - o patrão da
vítima. Enquanto Zezinho assistia o homem ferido (José Luiz), eu e uma outra
senhora, dona Cecília Carvalhais, na sala, rezávamos por aquele infeliz que
morria com o coração cheio de ódio e desejo de vingança! Não sei se devido ao
meu estado nervoso, passava momentos sem refletir. Hoje é que penso como
deixei um filho de doze anos assistir a cenas dramáticas como essa, que
causavam mal até a mim! Hoje, fico a julgar que essas tragédias muito prejudicam
o espírito infantil de um filho. Logo após este triste acontecimento, meu marido
viajou novamente. Imaginem como fiquei e qual o estado do meu espírito?
Após vários anos, este delegado homicida foi, também, assassinado à
traição por pistoleiros, quase na mesma praça da Vila. A história fatídica dos
crimes que enegrecem o passado de Rio Vermelho é interminável. Apenas cito
aqueles que produziram traumas e até revolta no espírito de quem, na vida, só
matou baratas, formigas, carrapatos e pulgas. Estes quadros dantescos ficam
gravados na mente de quem, sem querer, como eu, residia nessa terra há tão
longo tempo.
Um assassinato ocorrido no município causou revolta, não só em mim,
mas, também, no espírito de muita gente boa, pelo modo desumano como foi
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praticado. A vítima era um ladrão simplório, dizem que assassino, mas era uma
criatura humana que precisava ser punida pela lei e não ser assassinada com
requintes de maldade e covardia! Ricos e usurários fazendeiros, medrosos e
covardes, temiam que suas fazendas fossem atacadas pelo bandido,
denunciaram-no à polícia, mas com a intenção de matá-lo, não de prendê-lo. Os
policiais foram ao encalço do degenerado, igual a muitos que perambulam pelo
mundo. No fim da diligência, trouxeram o homem gravemente ferido, dizendo que
o mesmo havia resistido e fora baleado por um soldado. No entanto, a suspeita é
de que o autor dos disparos foi o fazendeiro denunciante. Um bobo, desarmado
que tinha horror de polícia, iria resistir? Trouxeram o infeliz, carregado dentro de
um couro de boi. Jogaram-no ao chão da prisão no mesmo couro, servindo-lhe de
cama, ali o jogaram, como se fora um bicho. Na ânsia da morte, sem a menor
assistência corporal e espiritual, ainda recebia ameaças de maiores castigos. Não
posso imaginar seres humanos, batizados, que se dizem filhos de Deus, que
pertencem a uma sociedade e que tenham coragem de praticar atos de tanto
barbarismo! Isso eu assisti. Hoje, quando me lembro de tais acontecimentos sinto
imenso pesar de não ter tido a devida coragem de romper o cerco dos poderosos,
covardes e proporcionar ao miserável ao menos assistência espiritual. Negaram a
ele toda a assistência, inclusive a do médico local. Depois de algumas horas de
sofrimento, morreu aquela criatura, deitada no chão, tendo como colchão o couro
de boi. Como um irracional, como um bicho. Foi levado no mesmo couro e jogado
numa sepultura, assim como morreu, todo sujo, esfarrapado, cheio de sangue. Na
vida foi um bandido, um degenerado, mas tão martirizado que Deus, infinitamente
misericordioso, deve ter perdoado a alma daquele ignorante, criado num ambiente
de gente que talvez não soubesse nem porque estava vivendo. Este infeliz era um
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tipo andarilho, sem procedência conhecida e era chamado Joaquim Curé!
Tive de assistir a tantos quadros dolorosos, como foi o do dia vinte e cinco
de abril de 1943! Neste dia vi e assisti uma mãe de família morrer, varada por uma
bala de fuzil, de um soldado, dentro de sua própria casa. Cena impressionante
que abalou a população de outras cidades. Este acontecimento foi motivado por
baixa perseguição política e vinganças pessoais. Um filho do coronel foi o mentor
do crime que causou a morte da mãe de família. Este, foi assassinado por um dos
filhos da vítima, em plena praça, quando o médico baiano, Dr. Pedro Autran, que
procurava por seu filho foi, também, barbaramente esfaqueado.
Tudo consequência de uma política diabólica, inspirada no ódio e na
vingança. Mais uma cena dramática de covardia: quando um cidadão pacato, um
ótimo pai de família, um grande amigo nosso, Sr. Cícero Mota, morreu,
inocentemente, na sua casa, com o coração traçado por uma faca assassina.
Desejando fechar esta corrente vergonhosa de tantos crimes, ainda tive a
infelicidade de assistir à tragédia de julho de 1958, em frente à casa de minha filha
Neli, onde ficaram mortos um soldado e um cabo e, gravemente ferido, um
cunhado dela. Conflito provocado por pessoas de outra cidade: Sabinópolis.
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Assim, como este acontecimento macabro, outros se deram em Rio Vermelho,
praticados por gente de outros municípios. Parece um capricho para que a
mancha negra do crime aumentasse naquele lugar. Milagre, proteção poderosa de
Deus, livrou meu marido e minha filha de serem vítimas desse crime. Minha filha e
meu marido estiveram ali como pacificadores e se viram envolvidos no tiroteio
infernal de paisanos e polícia. Desta triste ocorrência em frente à casa de minha
filha Neli, ela sofreu horrivelmente. Padeceu durante três a quatro anos as
consequências das imprudências e arbitrariedades dos familiares do seu marido.
Quando, em 1959, deixamos o Rio Vermelho ainda estávamos sob o impacto
dessa situação aflitiva de nossa filha. Porém, ela, sempre cheia de confiança em
Deus, em quem ela confiou plenamente, tem conseguido vitória em todas as suas
lutas.
Nem mais uma linha desejava escrever sobre acontecimentos negros em
Rio Vermelho, mas, infelizmente, terei ainda de me prolongar. O lugar, o Rio
Vermelho, não tem culpa; o mundo, com sua gente, em toda parte é o mesmo.
Nas minhas erradas ou certas opiniões, não sei se Rio Vermelho é o culpado da
minha Via Crucis começada há quarenta e um anos, em 1927...
Sem a menor precisão, sem nenhum ideal útil, contra a nossa vontade,
seguiu o filho mais novo rumo a Rio Vermelho. Este filho-preocupação, foi levado
pela obsessão humana. Passaram-se vinte e cinco dias sem dar notícias. O meu
coração de mãe não se enganou. Chegou aqui gravemente ferido a bala. Nessas
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tristes narrações, sou obrigada a mencionar este doloroso acontecimento que,
dessa vez, veio ferir duramente a nossa família. Sabem quem foi o autor? Foi uma
criatura beneficiada, desde o nascimento, com os favores e a proteção da família
Utsch Moreira, que amparou com desvelo a sua família toda: mãe, tios e o próprio
criminoso e sua mulher, dando-lhes os meios de terem o ganha-pão. Por uma
misericórdia Divina, por um milagre de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a
quem o entregava todos os dias, o nosso filho não morreu.
Parece que o meu espírito previa o futuro tão longe, tão distante e tão cruel
reservado para a nossa velhice. Diante de um acontecimento tão cruciante não me
revoltei, antes agradeci ao meu Deus tanta misericórdia. Outras mães, boas,
dignas, que militavam na mesma lide política passaram golpes ainda mais
dolorosos. Dona Enedina Café Carvalhais viu o filho primogênito, pai de cinco
filhos, ser assassinado em plena praça de Rio Vermelho, onde os cães beberam
seu sangue.
Nem em sonhos poderia imaginar que completaríamos meio século da vida
em comum. Bodas de Ouro. Cinquenta anos passados ao lado do meu marido,
graça que Deus nos concedeu. De 1911 a 1920, nove anos, esperei sem saber,
pois o futuro a Deus pertence; que viesse um filho de outro estado (Bahia), aquele
que seria o meu companheiro e, juntos, completássemos cinquenta anos de vida,
de lutas, de sofrimento e, também, de alegria por criarmos oito filhos e podermos
receber deles o carinho, o desvelo e o amor.
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Não queria e me opus a toda e qualquer comemoração externa nesta data.
Mas a bondade, a dedicação dos filhos presentes: Antônio, Lourdinha, Paulo e
Neli não deixaram passar desapercebida a data. Houve a Santa Missa às oito
horas por nossa intenção, assistida pelos filhos e dezessete netos. Comungamos
e recebemos a benção especial. Contou-se, também, com a presença de velhos
amigos que, após a Santa Missa, vieram à nossa casa trazer-nos os abraços
sinceros de uma amizade de muitos anos. Às quinze horas fomos, novamente, à
igreja para batizarmos o quadragésimo oitavo neto, agora batizando a filha do filho
caçula. O que mais posso desejar na vida, já tão prolongada? Resta-nos pedirmos
a Deus que na última viagem, a viagem sem volta, leve os dois para, juntos,
glorificarmos a esse Deus que nos uniu nessa morada passageira.
Saudade e que saudade! Cruel e imensa, tão grande e profunda que não
tem medida e nem explicação. Saudade, não de um ente querido que foi fazer
uma turnê ao redor do mundo, deixando sempre a esperança do dia da chegada.
Mas escrevo saudade, uma saudade que permanecerá comigo enquanto eu
residir nessa terra de provações. Saudades cruciantes do companheiro bom e
querido de cinquenta e dois anos, que voando para o além, aqui me deixou na
solidão de sua ausência, curtindo a tristeza de sua falta. Mas Deus, que nos uniu,
permitiu que ele partisse e me deixasse sozinha na vida.
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Rezei o terço, assisti à Santa Missa, vendo-o, em espírito, ao meu lado. Fiz
todos os pedidos que ele faria se eu pudesse ouvir a sua voz. Eu sabia de seus
desejos, dos seus anseios profundos em favor dos filhos, principalmente, aos mais
precisados. Rezei muito por ele e pedi-lhe que de lá olhasse a velha e triste
companheira que, sem consolo, chora sua falta.
Antônio trazia sempre a turma dos netinhos que eram a alegria do vovô. Ele
considerava uma glória contar que possuía grande número de netos e não se
cansava de contar um por um, acrescentando sempre que desejava viver para ver
crescidos os que ainda eram pequenos. Tinha uma predileção especial pela
netinha Godoia, a sua companheirinha de todas as horas. Enquanto pôde
caminhar, ia buscá-la todos os dias para a nossa casa, depois incumbiu-me dessa
tarefa. Assim, continuo, aqui na terra, cumprindo seus desejos, julgando estar
satisfazendo sua vontade. Passávamos juntos as datas festivas do calendário
cristão. Na data gloriosa do Santo Natal nos reuníamos com a família e as
lembranças são muitas. Como correram tão rápidos os bons momentos! Porque
não passei esses anos, esses dias só ao lado dele? Foram tão curtos,
desapareceram velozes como um vento que passou sem ser percebido. Agora,
me resta a saudade daquele que nesse mundo foi meu anjo tutelar. Animava-me
sempre com as suas confiantes palavras, quando dizia: Deus ajuda, Nininha,
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vamos ter confiança em Deus. Com essas expressões, com a fé na bondade e no
poder de Deus, ele vencia todas as suas dificuldades, que não foram poucas. Ele
sofria, embora tudo suportasse em silêncio e sempre otimista. Falta-me, hoje, sua
palavra, sempre de otimismo, sua dedicação, seus cuidados, seu olhar
compassivo, seu carinho. Creio que seu amor, seu desvelo por nós (eu e meus
filhos) continuarão no além.
Dando por terminado o que vi, o que assisti, como passei os meus setenta
e seis anos nesse planeta Terra, vou, agora, apenas, cultuar na minha memória a
lembrança daquele que, entre as lágrimas da mulher e filhos, netos, noras e
genro, partiu dia doze de dezembro de 1971 para uma pátria melhor.
Por que ele não deixou escrita alguma coisa sentimental para eu ler e reler?
Ele era diferente de mim, procurava não ver, não falar o que lhe feria a alma e o
coração. Sofria em silêncio, chorava escondendo o que o magoava.
Ele foi e eu fiquei... Porquê? Porquê ele mereceu sair primeiro desse
mundo de decepções e desenganos que eu vou encontrando a cada dia?
No barracão pobre de meu filho, passo horas cerzindo meias, juntando
pedaços de pano para fazer fronhas... Procuro nos afazeres simples quebrar a
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monotonia de cada dia, uma vez que o maior castigo para o velho é o tempo
vazio. Deste castigo sempre se queixava o meu marido. Tanto que eu desejava
que ele fizesse como eu, transportasse para o papel o que lhe ferisse a alma e
procurasse na recordação do passado, bom ou ruim, triste ou alegre, a distração e
o alívio de viver. E assim fico, no silêncio e na solidão do barracão do meu filho,
distraindo os minutos com o chorinho de uma neta, alegrando-me com as
gracinhas e meiguices da Godoia e da Nininha.
Ao passar pela rua Pacífico Faria, esquina com Amazonita... OH! Que dor
cruciante! Vejo-o já tão alquebrado pela enfermidade, pelos sofrimentos, entrando,
junto comigo (nas inúmeras vezes em que lá íamos), no barracão muito pobre do
filho caçula. Ora para dar banho na netinha, enquanto tinha umbigo sem cair, ora
para tomar conta dela, enquanto os pais iam à cidade. Tantas e quantas vezes ele
abriu aquele portãozinho e bateu na porta da sala. Entrava e reclamava do cheiro
de querosene do fogãozinho de uma trempe só. Ao passar todos os dias na rua
Hortênsia, vejo tão nítida a figura do meu velho, andando muito devagar,
carregando um embrulhito para a netinha do seu coração. Ou, então, vendo-o
dando-lhe a mão e trazendo-a para nossa casa.
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No dia vinte e um de julho de 1972, quando cheguei à casa dos setenta e
sete, dois números símbolos da mentira, foi o aniversário da saudade. Não ficaria
sem ele, sem aquele que ao despertar desta data, era o primeiro a me
parabenizar, o meu Zezinho. Pedi com insistência a todos da família que
deixassem passar a data como um dia qualquer. Porém, contrariando meus
pedidos, mas, movidos pela dedicação, reuniram-se com os netinhos e filhos:
Antônio, Paulo, Eleonora e Lourdinha. Pela manhã, Carlito e as filhinhas vieram
me abraçar. Recebi, de Antônio e Paulo, os presentes com antecedência. E, na
intimidade, foi o motivo para eu desabafar a minha saudade e chorar bastante,
porque tudo leva meu espírito para a lembrança de quem vivia ao meu lado.
Durante toda a minha vida sempre fui uma criatura emotiva e sentimental,
apreciando, unicamente, o silêncio e a paz da natureza solitária. Sentimentos
esses adquiridos ou cultivados nos anos que passei em colégios e convento.
Agora, na monotonia da minha viuvez, é difícil, quase impossível, disfarçar o vazio
imenso que sinto. Passei esse meu aniversário no aconchego dos filhos e netos,
entes queridos, herança preciosa que meu esposo me legou. Resta-me o
pensamento de sempre. Passarei os setenta e oito aqui junto à minha família
querida ou terei ido ao encontro de quem foi e me deixou?
Numa tarde ensolarada de abril eu me achava sem nenhum afazer, apenas
com a Godoia, a criança-distração para mim, vendo nela sempre a lembrança do
vovô querido que muito a amava. Comecei a olhar os numerosos postais de
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Lourdinha, cada qual mais lindo! No meio dessa coleção, logo encontrei o da
Praça Castro Alves, o do Elevador Lacerda e Cidade Baixa, na maravilhosa capital
baiana, terra do meu inesquecível Zezinho. Boa terra, sobre a qual ele
constantemente falava, porém, lá nunca mais voltou, desde a sua partida em
setembro de 1918. Curtiu saudades imensas nestes anos todos vividos em Minas,
onde se misturou com os mineiros e, desde doze de dezembro de 1971, repousa
na solidão e tranquilidade do Parque da Colina.
Quem poderia pensar que esse baiano de Salvador (como ele gostava de
falar) poderia gostar de uma mineira pobre, feia, sem atrativos, de um interior
atrasado de Minas Gerais? Coisa verídica que até parece lenda.
No dia de meu aniversário, em julho de 1973, sábado, me foi dado pela
bondade Divina somar mais um ano na caminhada, já bem longa, neste planeta.
Cada ano uma incerteza, cada ano mais um passo para a pátria do além. Embora
seja eu uma velha saudosista, que ama as melancólicas recordações de um
passado tão distante, passei o meu septuagésimo oitavo ano com a casa cheia de
alegres brotos, os encantadores netinhos que adoçam o amargor dos corações
dos velhos avós. À noite a casa encheu: filhos, noras, netos, futuros netos, noivos,
namorados das netas. Em roda da mesa, formou-se um lindo quadro de netinhos,
de dois, três, cinco e seis anos. Cada um querendo cantar os parabéns mais altos
para a vovó.
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Amélia, a empregada de muitos anos. Dia primeiro de agosto de 1973, ao
despontar deste dia, mais uma surpresa veio abalar meu espírito. E dessa vez,
uma surpresa triste, muito triste. Amélia, a companheira humilde, de tantos anos,
de lutas, das horas difíceis da família Utsch Moreira, estava agonizando, foi o
aviso do telefone, logo pela manhã. Agonizava no Hospital Mário Pena em BH.
Para ali correram os meus filhos Paulo, Antônio, Neli, Lourdinha e Eleonora, minha
nora, que tudo fizeram por ela. Foi para nossa família uma figura importante, pela
sua dedicação, amizade sincera e bons serviços que nos prestou. Seu carinho,
sua bondade, se estendeu até aos nossos netos.
Quantas vezes, em Rio Vermelho, Amélia era de fato a mulher de verdade.
Era o Simão Cirineu ajudando no afã trabalhoso da política do interior, executando
trabalhos até alta noite. Na tarefa extra, de criar netos, filhos do primeiro filho, era
a babá paciente que os zelava e ainda cuidava dos afazeres da casa. Era
doméstica, assídua e dedicada nas enfermidades da família.
Boa filha, do seu constante trabalho tirava o sustento para sua mãe velha,
irmãos e sobrinhos; pensava mais neles do que em si. Praticou na vida, o
mandamento do amor, embora fosse uma pobre ignorante e analfabeta. Deus dê a
ela a recompensa da vida de amor e de trabalho, vivida na obscuridade desse
mundo que só exalta os aquinhoados da sorte. Teve o carinho e o desvelo da
nossa família. Ampararam-na, assistiram-na na sua longa enfermidade e
acompanharam-na até a sua última morada, no Cemitério da Saudade, em Belo
Horizonte.
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Quando me vem o desejo de chorar, e chorar muito, eu vou logo lembrando
de levar para o papel o meu desabafo. Sei que não posso chorar, porque o olho
operado dói e inflama, assim, em vez de chorar, escrevo.
Vem a tarde, terminadas minhas tarefas, a minha distração é assistir
novelas na TV Tupi. Umas cheias de emoções, outras cheias de fracassos e sem
graça. Fico a pensar: cada vida é uma novela com diferentes aspectos.
Julgava não suportar a vida neste mundo se eu ficasse sem o meu Zezinho.
No entanto, ele foi, partiu e eu vou continuando a vida, aumentando em cada dia a
cruel saudade, com a recordação de tudo que foi a vida para nós, nos quase
cinquenta e dois anos de união.
Vi num folheto organizado pelo IBGE, oferecido pelo meu filho Antônio,
Delegado do IBGE em Minas, a cidade de Itambacuri. Localidade mineira onde
residi três anos, onde conheci a criatura inesquecível que conquistou meu
coração, o meu marido, o meu companheiro de mais de meio século de existência
juntos. O Colégio Santa Clara está todo restaurado. Olhei aquela casa saudosa,
onde passei três anos lecionando e no convívio de irmãs, minhas colegas, alunas
e órfãs indígenas. Observei, com tanta saudade, a entrada do colégio com sua
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escadaria, que dava para um pequeno jardim (antigamente), onde havia roseiras,
nas quais eu colocava algodões, que motivaram o diálogo que serviu para eu ficar
sabendo do amor, quase impossível, que nascia no coração do dentista baiano e
que, finalmente, virou realidade. Relembrei a sala de espera, onde eu e a boa Irmã
Isabel íamos tomar injeções aplicadas pelo dentista de Salvador. Vi, na
imaginação, aquele corredor comprido, dando acesso à capela em que, com tanta
elegância e piedade, ia comungar, quase diariamente, a pessoa tão querida que,
em 1920, tornou-se o meu esposo. Voltando a olhar para a vista parcial da cidade,
localizei a casa onde morou Dona Cândida Moreira Autran. Consegui descobrir,
também, aquela rua comprida que ia até à Matriz de Nossa Senhora dos Anjos,
por onde subia, constantemente, aquele personagem tão importante para mim, a
quem entreguei meu coração em 1918. Itambacuri não é minha terra natal, mas
ficou como um pedacinho de terra cheio de imensas e profundas recordações para
o meu coração, pois foi ali que encontrei aquele que Deus guiou e determinou que
fosse, durante meio século, o meu companheiro.
No dia vinte e um de julho de 1968, passaram comigo Antônio e sua família,
Carlito e Lourdinha. Reuniram os netinhos, tão meigos, tão amorosos para com a
velha vovó. Quem me deu os presentes, em nome da turma, foi o gracioso e
meigo Antônio Filho, sendo acompanhado pelo Guilherme e Cândida, as florinhas
da casa. Cantaram parabéns para a vovó e ficaram até às vinte e duas horas,
enchendo de alegria a casa da velha triste e chorona.
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Natureza dificílima, incompreensível de se explicar, para quem não é
psicólogo. Nesta altura da vida ainda não sei e nem posso explicar as causas de
meu temperamento emotivo, triste, derrotista, ansioso, medroso. Não sei se foi
herança ou se isto tudo é o efeito de uma meninice e juventude vividas na solidão
de uma morada isolada e sombria no Mata-Cavalo; juntando, também, o drama da
agressão a meu pai na fazenda Empoeira, quando eu tinha apenas quatro anos.
Nasci e casei entre o fim do século dezenove e as duas primeiras décadas do
século XX. As poucas novidades que surgiam no mundo, eu as ignorava todas. Os
meus pais viviam para o trabalho, numa vida rural. Na minha mocidade nunca li
jornal, nem revistas, a não ser os almanaques de propagandas de remédios. Não
sabia o que era cinema e teatro, vivia num mundo fora do mundo. Olhava as
estrelas, contemplava a lua e chamava São Jorge que, conforme diziam,
cavalgava num cavalinho dentro da lua e era chamado para mandar chuva.
Quando fui para o colégio, aos dezesseis anos, aí o mundo terminou
completamente para mim. A minha vida consistia em estudar, rezar, meditar,
ouvindo exclusivamente leituras da vida de santos. De 1911 a 1920 eu só convivia
no ambiente de irmãs, alunas e padres. O meu mundo era o colégio, as chácaras
onde passeávamos, as igrejas, os cemitérios (lá íamos de vez em quando). E mais
nada. Como era a educação nos colégios antigamente!
Comecei a minha vida no mundo desconhecido para mim. Dois meses após
deixar a vida oculta e solitária do colégio, casei-me. Tudo eu ignorava, até a
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Grande Guerra de 1918 eu ignorava. Não sei como alguém podia instruir-se...
educar-se. Que mancada, que erro de palmatória ir abraçar a vida conjugal sem
saber como instruir, guiar e encaminhar na vida a prole que Deus me daria um dia!
Mas a sorte também me foi madrasta, levando-me, depois de casada, sem minha
vontade para um recanto do mundo onde educar filhos era tarefa difícil e quase
impossível. Assim, posso dizer, acertadamente, o antigo provérbio: atrás dos
apedrejados correm as pedras. Hoje, depois de velha, volvo o pensamento ao
passado e vejo tantas falhas, tantos erros... Mas, alenta-me a confiança em Deus.
Ele fará o que não fiz em benefício dos meus. Deus será o juiz das minhas falhas
e erros.
Na rua Campinas, 680, numa segunda-feira, dia do meu aniversário. Passei
a semana anterior muito triste, com meu sistema nervoso abalado, achava os dias
enormes e as noites intermináveis. Ao amanhecer, me levantei e antes, na cama,
havia feito as minhas orações. O meu primeiro serviço foi percorrer o quintal, olhar
as plantinhas e procurar buracos de formigas, as inimigas do jardim. Encontrei um
grande buraco, donde saíam e voltavam filas intermináveis de formigas
carregando as provisões para os seus celeiros. Seguindo essas filas, fui matando
uma por uma, muitas carregando pesos maiores do que elas. E, neste labor, de
aniquilar as formiguinhas, fiquei a pensar: será que elas mereciam mesmo os
castigos que eu estava lhes aplicando? De fato, são más, são terríveis
destruidoras das hortas, jardins, pomares, atacando com perversidade as plantas
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de maior estimação. Mas, fazem o mal beneficiando a si, destruindo o que é bom,
o que é dos outros para proveito de uma espécie, porém, dão ao mundo o
exemplo do trabalho, da coragem, da persistência, resistindo ao combate dos
homens em diversas formas. Trabalham como egoístas, não se importando com o
prejuízo dos outros. Neste pensar, pensar, voltei meu pensamento ao mundo,
onde existem muitas formigas humanas, conscientes de seus atos. E quando as
formigas não trabalham para seu próprio bem e ainda destroem os seus
semelhantes? Pensando estas coisas, julguei ser covarde, aniquilando estes
bichinhos laboriosos que carregam até folhas secas!
Não me entrego à melancolia, gosto muito de escutar boas músicas, ouvir
noticiários, o Jaime Gomide, assistir bons programas de televisão, principalmente,
novelas, conhecer e elogiar os bons apresentadores de programas, como J.
Silvestre, Flávio Cavalcanti e outros. E tem mais. Depois de velha, talvez pela falta
de trabalho, tornei-me torcedora número um do futebol e fã do Cruzeiro. Tudo
serve para encher o tempo e tornar menos insípida a velhice. Vou marcando os
dias de jogos e, com ansiedade, espero a hora em que começam as pelejas.
Nessa hora, fico pertinho do rádio, aguardando as emoções de um gol do time da
minha preferência e, para nossa alegria, o Cruzeiro não decepciona seus
torcedores.
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Em fins de agosto de 1969 fui surpreendida, acometida de mais uma
complicação do meu velho e doente organismo. Nesse dia, nessa hora, então,
pensei sério e quase pude afirmar, na minha firme compreensão, enxerguei como
iluminada por uma luz de Deus, que dificilmente completarei aqui na terra os
setenta e cinco. Senti grande abalo, grande nervosismo, e quem não sente?Quem
é humano é fraco; qual criatura não se abalará ao pensar na mudança eterna para
o mundo desconhecido?
Desde três de julho de 1969 estava muito triste, com meu espírito muito
abatido, muito decepcionada da vida, mas chegando a madrugada do dia dez, dia
em que, em 1925, nasceu meu terceiro filho, às seis e quinze da manhã. Fui
relembrando a dedicação, o amor, o desvelo que este filho sempre teve comigo
desde a sua infância, e tudo serviu para alentar meu coração. Hoje é ótimo pai de
dez filhos. Pedi a Deus que lhe recompensasse em quíntuplo a sua dedicação, o
seu amor e o abençoasse muito. Em 1937, no dia em que nasceu o seu último
irmão, todos os outros seis saíram com a empregada a mandado do meu marido,
dando um passeio, deixando a casa mais quieta. O meu filho Antônio, com doze
anos, não quis acompanhar a turma. Ficou na cozinha com a empregada, talvez
preocupado com a sua mãe. Quando, em dado momento, Zezinho, chegando ali,
pediu à empregada um pouco de água quente, disse-lhe: você já tem mais um
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irmão. Ele, notando a emoção do pai, pensou que eu tivesse morrido e para se
acalmar e verificar a verdade, teve que ir ao meu quarto para me ver. Não fui eu
quem lhe ensinou esse nobre sentimento.
Se, lá do além, eu puder, os acompanharei com desvelo, como fazia aqui
junto deles. Partindo, entrego todos a Deus que infinitamente bom e poderoso
zelará por eles até o dia em que, se for permitido, nos encontraremos para nunca
mais haver separação, embora, tudo lá no mundo do além seja um grande
mistério para as criaturas!