Memória, verdade e justica: as marcas das Ditaduras do Cone Sul

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    Memria, Verdade e Justia:

    As Marcas das Ditaduras do Cone Sul

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    MESA DIRETORA 2011Presidente: Dep. Ado Villaverde PT

    1 Vice-Presidente: Dep. Jos Sperotto PTB

    2 Vice-Presidente: Dep. Frederico Antunes PP

    1 Secretrio: Dep. Alexandre Postal PMDB

    2 Secretrio: Dep. Alceu Barbosa PDT

    3 Secretria: Dep. Zil Breitenbach PSDB

    4 Secretrio: Dep. Catarina Paladini PSB

    SUPLENTES:1 Suplente de Secretrio: Valdeci Oliveira PT

    2 Suplente de Secretrio: Luciano Azevedo PPS

    3 Suplente de Secretrio: Raul Carrion PCdoB

    4 Suplente de Secretrio: Paulo Borges DEM

    ESCOLA DO LEGISLATIVOPresidente: Dep. Jeerson Fernandes PT

    Diretora: Crmen Lcia da Silveira Nunes

    Coordenadora da Diviso de Publicaes: Vanessa Albertinence Lopez

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    Memria, Verdade e Justia:

    As Marcas das Ditaduras do Cone Sul

    OrganizadoresEnrique Serra Padrs

    Crmen Lcia da Silveira Nunes

    Vanessa Albertinence Lopez

    Ananda Simes Fernandes

    1 edio

    Porto Alegre

    2011

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    Copyright

    Arte da capa Dado NascimentoProjeto Grco Everton PortoDiagramao Everton Porto

    Reviso de Lngua Portuguesa

    Hilda PedrolloVanessa Albertinence Lopez

    SupervisoTcnica

    Snia Domingues Santos Brambilla CRB 10/1679Diviso de Biblioteca da Assembleia Legislativa RS

    Endereo para correspondncia

    Escola do Legislativo Deputado Romildo BolzanPraa Marechal Deodoro, n 101 Solar dos CmaraCEP 90010-900 Porto Alegre/RS Brasil

    Esta obra composta por um livro eletrnico e por um CD com as seguintes msicas: Faixa 1:O gacho, de Raul Ellwanger; Faixa 2: Te procuro l, de Raul Ellwanger/Ferreira Gullar; Faixa3: Pequeno Exilado, de Raul Ellwanger; Faixa 4: Pealo de Sangue, de Raul Ellwanger; Faixa 5:Cano do Desaparecido, de Raul Ellwanger (indita); Faixa 6: Maria vai, de Antonio Tarrag Ros,

    verso de Raul Ellwanger; Faixa 7: Caminho, Cano e Memria, de Raul Ellwanger (indita);Faixa 8: Eu s peo a Deus, de Len Gieco, verso de Raul Ellwanger.

    Os conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade dos autores. permitida a reproduo parcial ou total, desde que citada a onte e mantido o texto original.

    Distribuio gratuita. Venda proibida.

    Memria, verdade e justia [recurso eletrnico] : as marcas das ditaduras do ConeSul / organizadores Enrique Serra Padrs, Crmen Lcia da Silveira Nunes,Vanessa Albertinence Lopez, Ananda Simes Fernandes. Dados eletrnicos. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011.

    291 p. : il.

    Modo de acesso: Disponvel emhttp://www2.al.rs.gov.br/escola/Publicaes/tabid/2333/Deault.aspxObra composta por um livro eletrnico e por um CD com msicas.Textos elaborados a partir do seminrio Memria, Verdade e Justia: as marcas dasditaduras do Cone Sul, realizado em 30 e 31 de maro e 1 de abril, em parceria entreEscola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan/ALRS, Universidade Federal do RioGrande do SUL (UFRGS), Memorial do Rio Grande do Sul, Arquivo Histrico do RioGrande do Sul, Teatro de Arena e Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul.

    1. Ditadura Amrica do Sul. 2. Movimento Poltico. I. Padrs, Enrique Serra(org.). II. Crmen Lcia da Silveira Nunes (org.). III. Lopez, Vanessa Albertinence(org.). IV. Fernandes, Ananda Simes (org.). V. Ttulo.

    Dados Internacionais de Catalogao na Fonte (CIP Brasil)

    CDU: edio mdia em lngua portuguesaResponsabilidade: Biblioteca Borges de Medeiros Snia D. S. Brambilla CRB-10/1679

    CDU 980(093)

    M553

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    Ao companheiro Minhoca(Carlos Alberto Tejera De R),

    que lutou contra a ditadura,a tortura

    e o esquecimento,e nunca perdeu a ternura!

    Jamais!

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    Caminho, Cano e Memria1

    Raul Ellwanger

    No me peas que me caleNaquilo que mais eu cantoDas lembranas que me valemAlegrias e espantosTombei morto em meus amigosPendurei-me em duras traves

    Olateei o sangue vivoNas lajotas sujas, gradesNo me peas que me caleMeu caminho que me vale

    Flor do caet foresceNa imensido da restingaCicatriz, desejo, prece

    Na solido clandestinaAnseio de muitos braosQuerendo mudar a histriaTe revejo nestes versosCaminho, cano e memria

    Assim menino sentiA mo sinistra das castasA perda innita que mata

    O erro, a dor, a chibataBonita cano da vidaEntre amores, sonhos, guerrasNo orgulho das eridasQue ganhamos nesta terraNo me peas que me caleMeu caminho que me vale.

    Dedicada a Carlos Alberto Tejera De R, o Minhoca.

    1 Esta cano encontra-se no CD que compe esta obra.

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    Carlos Alberto Tejera De R. Foto: Marco Couto/Agncia ALRS

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    Um companheiro, de verdade

    Carlos Arajo1

    D para tirar as algemas?

    No d.

    Ao entardecer de um dia nublado, rio e com muito vento, no

    nal do ms de julho de 1972, aps uma angustiante travessia do Guaba

    em um pequeno barco do DOPS, algemado, cheguei Ilha do Presdio,transerido do Presdio Tiradentes de So Paulo.

    Como era de praxe em tais oportunidades, os companheiros

    esperavam no porto do prdio do presdio. Aps os cumprimentos

    habituais, todos queriam saber das novidades, de como se encontravam

    os demais companheiros presos, qual era a anlise da conjuntura, etc.

    Na longa troca de ideias que se seguiu, salientou-se um jovemimpetuoso, perguntador e opinitico. Tambm, irreverente. De uma

    irreverncia dierente, mesclada de aetuosidade. Foi assim que conheci Carlos

    De R nos seus 21 anos de idade. Naquele momento nasceu uma amizade

    que com o tempo iria se transormar em um verdadeiro companheirismo.

    No De R a postura poltica vinha sempre irmanada com orte

    dose emocional. Esta explosiva combinao, no entanto, nunca turvou sualucidez nem arreeceu sua dedicao luta. Inconormismo, lucidez, coragem,

    honradez e aeto integravam sua inconundvel bagagem ideolgica.

    De R oi, sobretudo, um combatente. Um combatente de

    reregas interminveis, de horizontes inatingveis e de amores eternos.

    Um militante das causas justas, um militante do mundo.

    1 Advogado, ex-deputado estadual, ex-dirigente poltico da Vanguarda Armada RevolucionriaPalmares (VAR-Palmares), preso e torturado no perodo da ditadura civil-militar.

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    Nos ltimos tempos, dizia-me sempre:

    Eles destruram a Constituio do Brasil! Ns deendemos a democracia.

    Ns omos condenados.

    Eles no oram julgados.

    Por certo, ainda h muito que trilhar pelas veredas da democracia.

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    Sumrio

    Apresentao daAssembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul ............................. 19Ado Villaverde

    Apresentao daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul ................................................. 23Temstocles Cezar e Enrique Serra Padrs

    Precio ........................................................................................................ 25Enrique Serra Padrs, Crmen Lcia da Silveira Nunes,Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simes Fernandes

    Introduo .................................................................................................... 33Enrique Serra Padrs, Crmen Lcia da Silveira Nunes,

    Vanessa Albertinence Lopez e Ananda Simes Fernandes

    Parte I O sequestro de crianas no Cone Sul

    Esta guerra no es contra los nios: o sequestro de crianasdurante as ditaduras de Segurana Nacional no Cone Sul ............................. 47

    Ananda Simes Fernandes

    O sequestro de crianas no Cone Sul Depoimento de Camilo Casariego Celiberti.................................................... 65

    O sequestro de crianas no Cone Sul Depoimento deEdson Teles ........................................................................... 71

    Os eeitos do terrorismo de Estado nas crianas:o documentrio 15 flhos ............................................................................... 89Caroline Silveira Bauer

    Parte II Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul

    Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul Apresentao Musical de Raul Ellwanger................................................... 105

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    Apresentao .............................................................................................. 117Jeerson Fernandes

    Histria, memria e indignao:31 de maro, Rio Grande do Sul ................................................................. 121Cesar Augusto Barcellos Guazzelli

    Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul Depoimento de Sereno Chaise..................................................................... 135

    Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul

    Depoimento deAntenor Ferrari .................................................................. 149

    Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sul Depoimento de Raul Pont.......................................................................... 163

    Parte III Memria, Verdade e Justia

    O i Nois, a memria e a justia ................................................................. 179

    Clarice Falco

    O resgate do passado recente eas dimenses da luta pela Verdade e Justia ................................................. 185

    Enrique Serra Padrs

    Memria, Verdade e Justia Depoimento deEstela de Carlotto ................................................................ 199

    Memria, Verdade e Justia Depoimento de Suzana Keniger Lisba ....................................................... 211

    Memria, Verdade e Justia Depoimento de Luis Puig........................................................................... 223

    Memria, Verdade e Justia Depoimento deNadine Borges .................................................................... 233

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    Parte IV Estado e polticas de memria

    Democracia e estado de exceo no Brasil ................................................... 245Edson Teles

    El sujeto-vctima en las polticas de reparacin y memria ........................... 253Ricard Vinyes

    Por que no esquecer? Memria, verdade, justiae suas implicaes para a democracia brasileira ........................................... 265Franciele Becher e Marla Barbosa Assumpo

    Por memria e justia: arquivos de verdade! ................................................ 273Clarissa de Lourdes Sommer Alves e Fernanda de Lannoy Strmer

    Escolas do Legislativo: agentes de preservao da memria ........................ 283Daniela Oliveira Comim e Vanessa Albertinence Lopez

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    Apresentao da Assembleia Legislativa

    do Estado do Rio Grande do Sul

    Ado Villaverde1

    Neste 2011, ano dos Grandes Debates na Assembleia

    Legislativa rio-grandense, buscamos colocar o Parlamento gacho no

    centro das questes vitais do nosso Estado e promovemos uma srie de

    discusses essenciais para o crescimento do Rio Grande do Sul, para o

    amadurecimento da democracia e para o ortalecimento do papel do

    Legislativo em nossa sociedade. Voltamos a ser protagonistas dos nossos

    destinos e agentes das nossas aes.

    Dentre os vrios temas que estiveram em pauta no primeiro ano da

    53 Legislatura desta Casa, podemos destacar o cinquentenrio da Legalidade,

    comemorado e relembrado para que as novas geraes conhecessem a histria

    e os eeitos reais daquela pica mobilizao poltico-social liderada pelo

    governador Leonel Brizola, que permitiu a posse do vice-presidente Joo

    Goulart na presidncia da Repblica, aps a renncia de Jnio Quadros, e

    que contou com orte apoio, ressonncia e sustentao social.

    E que, ao fm e ao cabo, deu dimenso e criou as condies

    para que ao menos osse protelado aquele indesejvel momento que,

    inelizmente, sucedeu em nosso pas, com a ditadura implantada aps o

    golpe civil-militar de 1964.

    Por meio de programao ofcial realizada em parceria com o

    Governo do Estado do Rio Grande do Sul, tivemos a oportunidade de

    registrar, de atualizar e de azer justia atuao do Parlamento gacho, que,

    poca, demonstrou apoio incondicional e de primeira hora quela resistncia.

    1 Presidente da Assembleia Legislativa do RS.

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    O livro O Movimento da Legalidade: Assembleia Legislativa e

    Mobilizao Poltica, elaborado pelo Memorial do Legislativo em parceria com

    o Instituto de Filosofa e Cincias Humanas (IFCH) da UFRGS e assinado

    pelos proessores Maria Izabel Noll, Claudia Wassermann, Carla Brandalise

    e Luiz Alberto Grij, aprounda a anlise das condies que concorreram

    para o posicionamento do Poder Legislativo, que fcou em sesso permanente

    por 18 dias e ajudou a consolidar um ambiente institucional avorvel deesa

    da Constituio, do estado de direito e da democracia.

    Da mesma orma, o seminrio Memria, Verdade e Justia: AsMarcas das Ditaduras do Cone Sul, realizado em 30 e 31 de maro e 1

    de abril, em parceria entre a Escola do Legislativo Deputado Romildo

    Bolzan, a UFRGS, o Memorial do Rio Grande do Sul, o Arquivo

    Histrico do Rio Grande do Sul, o Teatro de Arena e o Arquivo Pblico

    do Estado do Rio Grande do Sul e que d origem a este livro, trouxe

    tona histrias e lembranas no contempladas pelos relatos ofciais.O evento ampliou o lastro de debates sobre o triste legado das duas

    dcadas de ditadura civil-militar a que omos submetidos.

    O sequestro de crianas no Cone Sul, as memrias da resistncia

    no Rio Grande do Sul com depoimentos de polticos que lutaram pela

    volta da democracia, seja na ormalidade da Assembleia gacha ou na prpria

    clandestinidade e a temtica da memria, da verdade e da justia: os direitoshumanos e os deveres do Estado esto representados nesta publicao.

    A presente obra oerece, com muita coerncia, uma continuidade

    a um trabalho de resgate destas memrias iniciado em 2009, com a

    primeira edio da coletnea A Ditadura de Segurana Nacional no Rio

    Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria, elaborada tambm em

    parceria com a UFRGS e publicada no perodo em que tive a honra depresidir esta Escola do Legislativo.

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    Uma democracia saudvel precisa de parlamentos que, alm de

    se inserirem nas principais questes que permeiam a vida em sociedade,

    deixem um legado para os seus cidados. E oi isto que fzemos em

    2011: debatemos os grande temas de nossa poca e entregamos mais

    uma obra que registra nosso passado, resgatando uma histria ainda

    no totalmente contada. Precisamos conhecer esse passado para que as

    barbaridades j eitas em nome do Estado nunca mais se repitam.

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    Apresentao da Universidade

    Federal do Rio Grande do Sul

    Temstocles Cezar1

    Enrique Serra Padrs2

    A publicao Memria, Verdade e Justia: as marcas das ditaduras

    do Cone Sul uma nova produo resultante da parceria que a Escola do

    Legislativo da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e o Institutode Filosoa e Cincias Humanas (IFCH) da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul (UFRGS) iniciaram no ano de 2009. Trata-se de uma

    continuidade da pesquisa e resgate de depoimentos que constituram os

    quatro volumes da coletnea A Ditadura de Segurana Nacional no Rio

    Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria. Este novo livro amplia e

    diversica o olhar sobre as experincias autoritrias no Cone Sul, introduze repercute o debate sobre a ormao e o papel das comisses da verdade

    e abre espao para conhecer as experincias do Uruguai e da Argentina.

    A qualicada trajetria dos autores dos depoimentos e dos

    textos apresentados neste volume permite uma viso abrangente em que

    o undamental consiste na interao entre a atuao pblica, o relato

    testemunhal e a pesquisa e refexo acadmica. Nesse sentido, isto conrmado por meio do dilogo que se estabelece a partir da participao

    de protagonistas emblemticos, tanto do campo das organizaes de

    direitos humanos a abuela Estela de Carlotto, Suzana Lisba e Camilo

    Casariego Celiberti quanto da poltica partidria casos do ex-

    preeito Sereno Chaise, dos legisladores Luis Puig, uruguaio, Antenor

    1 Diretor do Instituto de Filosoa e Cincias Humanas/UFRGS.2 Proessor do Departamento e do Programa de Ps-Graduao em Histria do IFCH/UFRGS

    e Coordenador geral do presente projeto.

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    Ferrari e Raul Pont, gachos, bem como da assessora da Secretaria dos

    Direitos Humanos da Presidncia da Repblica Nadine Borges e do

    espao acadmico situao do lsoo e integrante da Comisso de

    Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos Edson Teles, de Cesar

    Guazzelli e Ricard Vinyes, entre outros.

    Para a UFRGS e para o IFCH, motivo de orgulho ver a

    participao de antigos alunos que, agora ocupando espaos prossionais

    de destaque em arquivos pblicos, instituies culturais e de ensino,

    persistem, de maneira consequente, como pesquisadores, docentes ecidados, acompanhando estes temas da histria recente que h um bom

    tempo vm sendo acolhidos na dinmica de trabalho e de produo de

    conhecimento do IFCH.

    Participando de projetos como este, o IFCH, em particular, e a

    UFRGS, de orma geral, cumprem a sua trplice uno: ensino, pesquisa

    e extenso. Apesquisa est presente na produo de conhecimento sobreos mais diversos aspectos vinculados histria recente, o que pode ser

    medido pela produo de seus docentes e dos discentes egressos dos cursos

    de Mestrado e Doutorado; o ensino est contemplado na proposio de

    atividades multiplicadoras que procuram chegar aos proessores da rede

    estadual de ensino; nalmente, a extenso permite que o conhecimento

    produzido no mbito da universidade chegue sociedade por meio devariadas ormas de atuao, como cursos, ciclos de cinema, seminrios e

    exposies, entre tantas outras possibilidades, como o caso da atividade

    que est na origem desta obra ora entregue ao pblico.

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    Prefcio

    Enrique Serra PadrsCrmen Lcia da Silveira Nunes

    Vanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes

    I. O seminrio

    Cantamos porque llueve sobre el surcoy somos militantes de la vida

    y porque no podemos ni queremosdejar que la cancin se haga ceniza.

    Por qu cantamos, Mario Benedetti y Alberto Favero

    Este livro ruto de um acmulo de oras de pessoas e

    instituies que se empenharam em realizar o seminrio internacional

    Memria, Verdade e Justia: as Marcas das Ditaduras do Cone Sul. Tambm

    resultado de parcerias antigas que produziram diversos eventos

    relacionados temtica das ditaduras de Segurana Nacional.

    Desse modo, o Departamento e Programa de Ps-Graduao

    em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

    juntamente com o Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul,

    desde o ano de 2006 promove seminrios que envolvem a discusso e o

    debate desse perodo da nossa histria.

    J em 2009, o Departamento de Histria da UFRGS e a

    Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da

    Escola do Legislativo Deputado Romildo Bolzan, realizaram, no dia 31

    de maro, o seminrio 45 Anos do Golpe de 1964 a Noite que Durou 21

    Anos, que contou com a participao de diversos pesquisadores da rea.

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    O xito deste seminrio oi to grande que ambas as instituies

    propuseram o lanamento de uma coletnea de livros que tratasse sobre

    a ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul, pois, at o momento,no havia obras que abordassem especicamente e de maneira mais

    abrangente diversos aspectos da ditadura no mbito estadual. Foram

    convidados para participar da coletnea pesquisadores e depoentes, visto

    que a inteno era abordarmos a histria e a memria desse momento.

    Assim, em pouqussimos meses de trabalho, oi lanada no Frum Social

    Mundial de 2010, em Porto Alegre, a coleo A Ditadura de SeguranaNacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria. Essa

    coleo oi constituda pelos volumes: 1) Da Campanha da Legalidade

    ao Golpe de 1964; 2) Represso e Resistncia nos Anos de Chumbo;

    3) Conexo Repressiva e Operao Condor; 4) O Fim da Ditadura e o

    Processo de Redemocratizao.

    Foram impressos mil exemplares da coletnea para seremdistribudos gratuitamente populao. Entretanto, este nmero

    mostrou-se pequeno, pois, em menos de trs horas, a tiragem se esgotou.

    Uma segunda edio completa, revista e ampliada, oi lanada em

    dezembro de 2010, e est sendo amplamente usada por pesquisadores

    desta temtica em seus trabalhos, assim como lida por inmeras pessoas

    que desejam conhecer melhor a nossa histria.1

    Embalados pela acolhida destes eventos, o Departamento e

    o Programa de Ps-Graduao em Histria da UFRGS, a Escola do

    Legislativo Deputado Romildo Bolzan e o Arquivo Pblico do Estado

    do Rio Grande do Sul propuseram a realizao, em 2011, do seminrio

    que teve como lema uma consigna muito cara para seus realizadores

    Memria, Verdade e Justia: as Marcas das Ditaduras do Cone Sul. Assim,1 Encontra-se disponvel no stio eletrnico: .

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    nossa preocupao era trazer o debate e a refexo para a sociedade gacha

    sobre as sequelas ainda presentes na nossa democracia provocadas por

    aquele longo perodo autoritrio, assim como refexes sobre as medidasnecessrias para que isto seja superado.

    O Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul, o Memorial do

    Rio Grande do Sul e o Teatro de Arena somaram-se aos esoros da

    realizao deste seminrio internacional.

    Vinculado ao seminrio tambm oi proposto o chamamento da

    I Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos,2 na tentativa deagregar trabalhos de dierentes reas de pesquisas que tivessem como mote

    a anlise do perodo da ditadura e suas consequncias at os dias atuais.

    Assim, no dia 30 de maro de 2011, no auditrio do Memorial

    do Rio Grande do Sul, houve a mesa Ditaduras de Segurana Nacional: o

    sequestro de crianas, que contou com a participao dos depoentes Camilo

    Casariego Celiberti e Edson Teles, alm da mediao da historiadora doArquivo Histrico do Rio Grande do Sul Ananda Simes Fernandes e

    a exibio do documentrio 15 flhos.

    No dia 31 de maro, as atividades ocorreram no Plenarinho da

    Assembleia Legislativa e oram abertas com a participao do msico e

    compositor Raul Ellwanger, que por meio de uma apresentao musical

    comentada, trouxe refexo a questo do azer artstico engajado em temposde autoritarismo e represso. Os trabalhos prosseguiram na Assembleia com

    os depoimentos de polticos vinculados Casa e que tiveram, cada um a seu

    modo, seu papel na luta contra a ditadura: Sereno Chaise, Antenor Ferrari

    e Raul Pont. Essa mesa, intitulada Memrias da Resistncia no Rio Grande

    2 Nos dias 2, 9, 13 e 30 de abril realizou-se, no Arquivo Pblico, a I Jornada de Estudos sobre

    Ditaduras e Direitos Humanos, que recebeu 64 propostas de investigao, totalizando 71pesquisadores. Os artigos aceitos para apresentao, inclusive, j se encontram disponveis no sitedo Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul. Endereo eletrnico:

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    do Sul, oi mediada pelo presidente da Escola do Legislativo, deputado

    Jeerson Fernandes, e pelo proessor Cesar Guazzelli, da UFRGS.

    No ltimo dia do evento, 1 de abril, a Tribo de Atuadores iNis Aqui Traveiz realizou interveno teatral sobre os desaparecidos

    em rente Reitoria da UFRGS. A seguir, ocorreu a instalao da

    mesa Memria, Verdade e Justia: Direitos Humanos e Deveres do Estado,

    mediada pelo proessor Enrique Serra Padrs (UFRGS) e integrada por

    Estela de Carlotto (presidente daAsociacin Abuelas de Plaza de Mayo),

    Suzana Lisba (Comisso de Familiares de Mortos e Desaparecidos)e Luis Puig (deputado uruguaio da Frente Ampla e vinculado aos

    Direitos Humanos). Alm disso, houve tambm a ala de Nadine

    Borges, representando a ministra Maria do Rosrio, da Secretaria de

    Direitos Humanos da Presidncia da Repblica.

    Devido grande repercusso do seminrio oram 55

    inseres na mdia espontnea , a Escola do Legislativo DeputadoRomildo Bolzan, juntamente com o Departamento e Programa de

    Ps-Graduao em Histria da UFRGS e demais realizadores, tomou

    a tarea de transcrever os depoimentos do seminrio a m de que a

    populao pudesse se apropriar desse passado recente que ainda persiste

    no presente. Para tanto, est sendo oerecido este livro, que conta ainda

    com a refexo dos mediadores e organizadores do evento sobre aquesto das ditaduras de Segurana Nacional e suas implicaes. Desde

    j, agradecemos a todos que contriburam para a eitura deste livro, e,

    em especial, aos depoentes, sobreviventes de uma triste poca que no

    pode ser relegada ao esquecimento.

    Por m, importante destacar o papel que as diversas

    instituies que tornaram esse evento possvel esto desempenhandojunto sociedade gacha para promover um espao de produo, debate

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    e refexo do conhecimento. Destaca-se tambm a participao eetiva

    de servidores que, de uma maneira ou outra, contriburam para que esse

    espao de divulgao osse oerecido.

    II. A obra

    La historia es nuestra y la hacen los pueblos.

    Salvador Allende, 11 de setembro de 1973.

    O livroMemria, Verdade e Justia: as marcas das ditaduras do Cone

    Sulinicia-se com a Parte I O sequestro de crianas no Cone Sul. Destacam-

    se os depoimentos de Camilo Casariego Celiberti e Edson Teles, crianas

    quando oram sequestrados pelos agentes do Estado durante a ditadura.

    Lilin Celiberti e Universindo Rodrguez Daz oram

    sequestrados, em 1978, em Porto Alegre, num operativo Condor quecongregou o aparato repressivo uruguaio e brasileiro, conhecido como o

    sequestro dos uruguaios. Depois da denncia do jornalista Luiz Cludio

    Cunha e do otgrao Joo Batista Scalco, a operao oi desmanchada.

    Camilo (sete anos) e Francesca (trs anos), lhos de Lilin, tambm oram

    sequestrados e levados para o Departamento de Ordem Poltica e Social

    do Rio Grande do Sul (DOPS/RS). Camilo teve um papel decisivo noesclarecimento da trama ao conrmar o local do seu cativeiro em Porto

    Alegre: reconheceu o Arroio Dilvio, que ele via do segundo andar do

    prdio da Secretaria de Segurana Pblica, onde uncionava o DOPS.

    Edson Teles lho e sobrinho de presos polticos e, aos quatro

    anos de idade, oi sequestrado e levado para as dependncias do Doi-

    Codi de So Paulo, juntamente com sua irm, Janana (cinco anos), esua tia, Crimia de Almeida, grvida de oito meses. As crianas caram

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    presas durante dez dias no centro de represso, assistindo s sesses de

    tortura s quais seus pais oram submetidos. Em 2008, a amlia Almeida

    Teles ganhou na Justia a ao declaratria contra o chee do Doi-Codi/SP, Carlos Alberto Brilhante Ustra.

    A Parte II Memrias da Resistncia no Rio Grande do Sultrata dos

    depoimentos de polticos dos tempos da ditadura e de polticos de agora

    que resistiram e lutaram contra esse regime. Esta parte traz ainda, em

    sua abertura, as letras das canes apresentadas pelo cantor e compositor

    Raul Ellwanger durante o seminrioMemria, Verdade e Justia: as Marcasdas Ditaduras do Cone Sul entre elas a indita Cano do Desaparecido ,

    intercaladas por refexes acerca da perseguio sorida durante a ditadura

    e seu consequente exlio em dierentes pases da Amrica Latina.

    Sereno Chaise oi deputado estadual do Rio Grande do Sul entre

    1959 e 1963 pelo PTB. Em 1963, elegeu-se preeito de Porto Alegre,

    assumindo o cargo em janeiro de 1964. Um dos lderes da resistnciaao golpe civil-militar, Sereno chegou a ser preso nos primeiros dias da

    ditadura e teve seu mandato cassado logo depois.

    Antenor Ferrari oi deputado estadual pelo MDB e presidiu a

    primeira Comisso de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia

    Legislativa, criada em 1980 inclusive, a primeira no Brasil.

    Raul Pont deputado estadual pelo PT. Historiador, oi lderestudantil e presidiu o DCE Livre da UFRGS, em 1968. Foi perseguido

    pela ditadura brasileira.

    J a Parte III Memria, Verdade e Justia abre com texto de

    Clarice Falco sobre os 33 anos de trabalho da Tribo de Atuadores i

    Nis Aqui Traveiz em prol da conscincia crtica. Na continuidade, traz

    os depoimentos de militantes dos direitos humanos, abordando a sualuta em busca dessa consigna.

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    O primeiro depoimento da presidente da Asociacin Abuelas

    de Plaza de Mayo, Estela de Carlotto. Sua lha oi sequestrada e

    enviada a um centro de deteno clandestino quando estava grvidade trs meses. O corpo de sua lha lhe oi devolvido. Seu neto, no

    entanto, no lhe oi entregue. At hoje, Estela segue em sua busca. A

    ditadura argentina sequestrou e expropriou a identidade de mais de

    500 crianas. At o presente momento, pouco mais de cem crianas

    tiveram suas identidades restitudas.

    A seguir, temos o depoimento de Suzana Keniger Lisba,integrante da Comisso de Familiares dos Mortos e Desaparecidos.

    Seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisba, oi o primeiro desaparecido

    poltico da ditadura brasileira cujos restos oram encontrados, em

    uma vala comum do Cemitrio de Perus, em So Paulo, a partir dos

    esoros dos amiliares. A denncia dessa descoberta ocorreu no mesmo

    dia da aprovao da Lei de Anistia no Brasil (13 de agosto de 1979).Luiz Eurico oi o primeiro desaparecido poltico a ser reconhecido

    ocialmente pelo Estado como assassinado pelo sistema repressivo.

    Luis Puig deputado do Partido por la Victoria del Pueblo

    (PVP), pela Frente Ampla do Uruguai. Tambm sindicalista

    e secretrio de Direitos Humanos do Plenario Intersindical de

    Trabajadores Convencin Nacional de Trabajadores (PIT CNT).Foi representante da CNT na Coordenao Nacional pela Anulao

    da Ley de Caducidad.

    Nadine Borges, na poca Diretora da Comisso Especial

    sobre Mortos e Desaparecidos Polticos, representou a ministra

    Maria do Rosrio, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia

    da Repblica.

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    A Parte IV Estado e polticas de memria agrega os textos

    das apresentaes do proessor e lsoo da Universidade Federal de

    So Paulo Edson Teles e do proessor e historiador da Universitat deBarcelona Ricard Vinyes durante a I Jornada de Estudos sobre Ditaduras

    e Direitos Humanos, assim como textos de integrantes da comisso

    organizadora do seminrio.

    Para que no se esquea

    Para que nunca mais acontea!

    Os organizadores

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    Introduo

    Enrique Serra PadrsCrmen Lcia da Silveira Nunes

    Vanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes

    I. Memria

    Hay quienes imaginan el olvidocomo un depsito desierto / una

    cosecha de la nada y sin embargoel olvido est lleno de memoria.

    El olvido est lleno de memoria, Mario Benedetti

    O Brasil conhecido, nos demais pases que tambm soreram

    ditaduras de Segurana Nacional, como o pas dosilncio. Isso se deve,

    entre outros motivos, ao ato de que a ditadura brasileira gerou a

    desmemria, um processo que no o simples esquecimento, mas, sim,

    o apagamento de atos e a impossibilidade de lembr-los. Vrios atores

    contriburam para a normalizao da violncia estatal e a interdio do

    passado: o milagre econmico, a distenso lenta, segura e gradual

    promovida pelo governo, a anistia conduzida pelos militares, alm dolongo perodo ditatorial que levou ao esquecimento ou diluio dos

    eeitos na sociedade do terror promovido pelo Estado. Este alheamento

    do passado aconteceu simultaneamente ao incio da poltica econmica

    do neoliberalismo, azendo com que o processo de esquecimento osse

    acentuado propositalmente anal, era importante apresentar os

    pases do Cone Sul com condies para a implantao desse modeloeconmico o que se deu de orma dierente em cada um deles.

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    Dois oram os elementos bsicos para a impossibilidade de

    simbolizao do perodo ditatorial por parte da sociedade: de um lado,

    a longa transio para a abertura democrtica, iniciada dez anos antesde ela de ato acontecer, levando ao esquecimento, na memria coletiva,

    do terror implantado pela ditadura; do outro, a prpria imposio do

    esquecimento, atravs da Lei de Anistia, interditando a investigao do

    passado. Dessa orma:

    no quadro destas consideraes que se pode propor uma

    interpretao do processo de normalizao da sociedade e da polticano Brasil, marcado pela interdio do passado, seja no aspecto da longa

    transio, onde o tempo parece adquirir uma dimenso inercial que

    em si mesma produziria o esquecimento, seja no aspecto da imposio

    mesma do esquecimento a anistia que provocaria o eeito de uma

    neutralizao moral do passado.1

    A vivncia do terror deu-se, principalmente, na tortura, nasprises, nos exlios, nos desaparecimentos e nas mortes; mas, tambm,

    na violncia repressiva cotidiana contra as comunidades camponesas e os

    estratos mais humildes das sociedades urbanas bem como na imposio

    da censura e nas ameaas e perseguio contra toda orma de oposio e

    resistncia aos interesses representados pela ditadura civil-militar. Porm,

    no caso brasileiro, reconhecido que a vivncia do terror ocorreu deorma menos extensa do que nas demais ditaduras do Cone Sul o

    que no signica armar que inexistiu ou que cou restrita a pequenos

    crculos de vtimas. Irene Cardoso destaca que essa situao gerou, para

    a sociedade brasileira, a sensao de inexistencialismo, isto , uma

    realidade que no ocorreu para muitos cidados, no sendo incorporada,

    dessa maneira, construo coletiva da memria e da histria. No1 CARDOSO, Irene. Para uma crtica do presente. So Paulo: Ed. 34, 2001. p. 159.

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    momento em que ela no oi agregada, ela no pode ser esquecida. No

    entanto, os amiliares dos mortos e desaparecidos polticos bem como

    os coletivos de ex-presos polticos trazem consigo essas recordaes nasua memria e histria; cam, contudo, isolados da suposta realidade

    apresentada populao. Essa uma das maiores ecincias geradas pelo

    Terrorismo de Estado: a impossibilidade da sua prpria culpabilidade,

    atravs da negao das prticas do seu uncionamento, consequncia do

    sistema legalidade x clandestinidade.

    Elizabeth Jeln2 considera que para o estudo dos perodosditatoriais do Cone Sul necessria a aplicao de estratgias de

    anlise das elaboraes que se realizam sobre passados politicamente

    confituosos. A primeira estratgia reerente necessidade de abordar

    os processos que dizem respeito memria em cenrios polticos de

    luta sobre essas memrias. A segunda a necessidade de pensar os

    processos de memria a partir de uma perspectiva histrica, ou seja,pens-los como parte de uma dinmica social, poltica e econmica,

    considerando como os atores especcos elaboram suas memrias. A

    terceira, o reconhecimento de que o passado uma construo eita

    no presente e sujeita aos interesses do presente. Assim, a continuidade

    ou a negao de certas construes do passado e a aceitao ou no de

    novas interpretaes so processos signicativos, que produzem eeitosconcretos na sociedade e infuem nas lutas polticas pelo poder.

    O presente recente uma construo coletiva: no algo

    dado, mas buscado. Enquanto no Brasil no houver demandas sociais

    pelo estudo da ditadura, nem questionamento por parte das novas

    geraes, mais acentuada ainda estar a necessidade da interveno dos

    2 JELN, Elizabeth. La confictiva y nunca acabada mirada sobre el pasado. In: FRANCO,Marina; LEVN, Florencia. Historia reciente: perspectivas y desafos para un campo en construccin.Buenos Aires: Paids, 2007. p. 307-340.

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    pesquisadores deste perodo histrico. O caso brasileiro, dierentemente

    dos demais pases do Cone Sul, oi marcado pelo silncio, que acabou

    privando as geraes seguintes do direito ao conhecimento da histriarecente de seu pas. Esse silncio provoca o desconhecimento e az com

    que as novas geraes no saibam da existncia de arquivos repressivos

    que precisam ser abertos ao pblico, o que contribui para que estes

    continuem echados, diante da ausncia de presso por parte da

    sociedade. Esse mesmo silncio tambm az com que as novas geraes

    ignorem que h torturadores que oram anistiados e precisam ser punidos.Estabelece-se, assim, um crculo vicioso no qual o desconhecimento

    (amnsia social), o imobilismo e a impunidade se tornam parte de uma

    engrenagem que at agora se tem mostrado exitosa. Sua ecincia

    medida de diversas ormas. Aos que vivenciaram e soreram a ditadura,

    negou-lhes sua histria; ao conjunto da sociedade, procurou ocultar que

    esse perodo oi marcado por prticas coercitivas e de desmobilizao daslutas sociais e polticas; histria do pas, diluiu, entre outras heranas,

    as responsabilidades sobre as srias consequncias econmicas legadas

    s geraes posteriores.

    Tais refexes, nalmente, obrigam a rearmar a mxima de que a

    sociedade que desconhece seu passado no consegue ser dona do seu presente.

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    II. VerdadeUna historia tiene su puerta escondida,

    y otra historia junta manos para abrirla.Y mientras se pesan balanzas distintas,la verdad espera su hora de justicia.

    Quemando mentiras, Manuel Capella

    A Lei de Anistia, de 1979, negou, entre vrios outros aspectos, aos

    amiliares de mortos e desaparecidos polticos a possibilidade de conhecer

    os atos relacionados a esses crimes e de contar sua histria. Assim, osamiliares no puderam dar continuidade a investigaes que levassem

    responsabilizao individual por estes crimes cometidos durante a ditadura

    brasileira. Parte dessas investigaes depende da abertura dos chamados

    arquivos repressivos, ou seja, produzidos pelos rgos de segurana,

    que englobava represso, inormaes, inteligncia, espionagem, entre

    outros. Dessa orma, azemos nossas as palavras de Emir Sader: Na suaase nal, a ditadura decretou uma anistia que a avorecia, amalgamando

    vencidos e vencedores, verdugos e vtimas, apagando da histria do pas

    todas as violaes que havia cometido. Com isso, alm da impunidade

    dos agentes do terror da ditadura, impediu que se apurasse tudo o que oi

    eito, buscando apagar aquele perodo da memria dos brasileiros.3

    Os povos possuem o direito de conhecer a sua histria. Assim, aabertura dos arquivos da represso az-se imprescindvel para que os cidados

    brasileiros possam ter acesso ao seu passado recente, interditado de vrias

    ormas. At porque, se estes arquivos oram necessrios para o prprio exerccio

    das atividades repressivas, so instrumento insubstituvel na conormao das

    novas relaes sociais, principalmente no perodo de transio.4

    3 SADER, Emir. A primavera dos direitos humanos. In: NUNES, Maria do Rosrio et al (orgs.).Resgate da memria da verdade: um direito histrico, um dever do Brasil. Braslia: Presidncia daRepblica, Secretaria de Direitos Humanos, 2011. p. 42.

    4 GONZLEZ QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidosregmenes represivos. Paris: UNESCO, [1995?]. Disponvel em: .Acesso em: 27 mar. 2009.

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    A sano pela presidente Dilma Rousse, em 18 de novembro

    de 2011, da Lei de Acesso Inormao oi um avano nesta questo.

    Por esta lei, os documentos brasileiros perdem a possibilidade de sigiloeterno, cando estabelecidos 50 anos como o tempo mximo no qual

    podero car inacessveis ao pblico. J os documentos que digam

    respeito aos direitos humanos no possuiro sigilo.

    A eccia das medidas de reparao s vtimas das ditaduras e

    a apurao das responsabilidades dos agentes envolvidos nos crimes de

    Estado cam, em grande parte, condicionadas ao uso dos documentosproduzidos e armazenados pelas instituies repressivas daquele perodo.

    A disponibilizao desses arquivos, em tese, permite vrios direitos

    populao, tanto no nvel individual quanto no coletivo.

    Na questo individual podem-se elencar os seguintes direitos:

    direito de conhecer os dados existentes sobre qualquer pessoa nos

    arquivos repressivos; direito anistia para presos e perseguidos polticos;

    direito reparao por danos sofridos pelas vtimas da represso;

    direito restituio de bens conscados;

    direito investigao histrica e cientca.

    J na questo dos direitos coletivos, a abertura dos arquivos

    repressivos acilita: o direito integridade da memria escrita dos povos;

    o direito verdade;

    o direito de conhecer os responsveis por crimes contra os direitos humanos;

    o direito dos povos e naes de escolher a sua prpria transio poltica.

    Nesta ltima questo, levanta-se a eetividade da instalao das

    comisses da verdade, eetuadas durante o perodo da chamada justiade transio, cujas experincias em diversos pases j demonstraram que

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    variam muito de acordo com a disponibilidade ou no de se ter acesso

    documentao repressiva.

    De acordo com a diretriz 23 do eixo 6 do Programa Nacional deDireitos Humanos, anunciado pelo ento presidente Luiz Incio Lula

    da Silva, em 21 de dezembro de 2009, oi convocado um Grupo de

    Trabalho ormado por representantes da Casa Civil, do Ministrio da

    Justia, do Ministrio da Deesa, da Secretaria de Direitos Humanos da

    Presidncia da Repblica e da sociedade civil. A este grupo oi atribuda

    a tarea de elaborar um projeto de lei que institusse a Comisso Nacionalda Verdade.5 Depois de passar pela Cmara dos Deputados, o Senado

    aprovou esta lei no dia 26 de outubro de 2011, e a presidente Dilma

    Rousse a sancionou no dia 18 de novembro.

    Mesmo passados 26 anos do trmino da ditadura civil-militar,

    o Brasil ainda se encontra na ase da justia de transio. Experincias

    em outros pases que passaram por ditaduras demonstram que ascomisses da verdade so aplicadas durante este perodo. Os prprios

    pases do Cone Sul instalaram suas comisses da verdade ao sarem

    de ditaduras: Bolvia (1982), Argentina (1983), Uruguai (1985), Chile

    (1990), novamente Uruguai (2000) e Chile (2003) e tambm Paraguai

    (2003). O Brasil, entretanto, somente agora vai montar a sua comisso

    da verdade, que j nasceu negociada com as oras conservadoras. Provadisso que o relatrio a ser produzido pela Comisso ao nal de dois

    anos de trabalho no possuir valor penal, visto que os crimes cometidos

    pelos agentes do Estado esto protegidos e impossibilitados de punio

    5 Diretriz 23: Reconhecimento da memria e da verdade como Direito Humano da cidadania edever do Estado.Objetivo Estratgico I: Promover a apurao e o esclarecimento pblico das violaes de

    Direitos Humanos praticadas no contexto da represso poltica ocorrida no Brasil no perodoxado pelo artigo 8 do ADCT da Constituio, a m de eetivar o direito memria e verdade histrica e promover a reconciliao nacional. BRASIL. Secretaria de DireitosHumanos da Presidncia da Repblica. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Braslia: SDH, 2010.

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    pela ainda vigente Lei de Anistia.6

    As comisses da verdade so mecanismos ociais que buscam

    apurar as violaes aos direitos humanos num determinado perodohistrico a m de se obterem esclarecimentos. Para tanto, priorizam-

    se os testemunhos das vtimas, assim como se tenta averiguar o padro

    de abusos cometidos por meio, agora, de depoimentos dos violadores

    e tambm de arquivos que no oram disponibilizados sociedade.

    Uma das expectativas geradas com a Comisso da Verdade que, com

    a abertura dos arquivos, consiga-se estabelecer um padro da repressodurante a ditadura, comprovando que esta no atingiu somente alvos

    especcos, mas, sim, toda a sociedade brasileira. Isto poderia dar incio

    ao processo de conscientizao da sociedade de que a nossa ditadura

    no oi apenas uma ditabranda e de que estas questes precisam ser

    resolvidas, e no deixadas no passado.

    6 NCLEO de Preservao da Memria Poltica So Paulo.A Comisso da Verdade no Brasil.Ncleo de Preservao da Memria Poltica: So Paulo, 2011.

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    III. Justia

    Ni olvido, ni perdn. Justicia.

    Uma das maiores marcas se no a maior das ditaduras a

    gerao da cultura da impunidade. As ditaduras de Segurana Nacional

    do Cone Sul ou os governos democrticos continustas concederam

    anistia aos agentes do Estado, impedindo que os responsveis pelos crimes

    e violaes aos direitos humanos pudessem ser culpabilizados. Estas leis

    traziam em si um intuito de perdo, esquecimento e impunidade.No Chile, em 1978, ainda em pleno regime autoritrio, oi

    concedida anistia a todos os que se envolveram na qualidade de autores,

    cmplices ou acobertadores nos crimes cometidos durante o perodo de

    Estado de Stio, de 11 de setembro de 1973 a 10 de maro de 1978.

    Na Argentina, as leis de Punto Final(1986) e de Obediencia Debida

    (1987), juntamente com os indultos posteriores do ento presidenteCarlos Menem (1989-1990), so conhecidas como as leis de impunidade.

    No Uruguai, aps o trmino da ditadura, em 1986, oi

    aprovada pelo governo a Ley de Caducidad de la Pretensin Punitiva del

    Estado, que previa que nenhum militar ou policial poderia ser acusado

    de crimes cometidos durante a ditadura. Mesmo o questionamento

    por parte de setores da sociedade no evitou que a lei osse conrmadapor meio de plebiscito, em 1989.

    No Brasil, oi estabelecida, pelos prprios militares, a Lei de

    Anistia, em 1979, aos crimes polticos ou praticados por motivao

    poltica. Pela lei, militares e guerrilheiros seriam anistiados de seus

    crimes, como se osse possvel comparar os crimes cometidos pelos

    agentes do Estado repressivo aos dos que estavam se deendendo doterrorismo promovido pelo prprio Estado.

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    Muitas dessas leis de anistia acabaram sendo revertidas no Cone

    Sul. Um caso exemplar o da Argentina, que, em 2003, anulou suas

    leis de anistia e ainda determinou que os crimes de lesa-humanidadedeviam ser punidos, pois no prescrevem. Alm disso, vrios integrantes

    das Juntas Militares oram detidos e encontram-se presos.

    Em 2008, amiliares de mortos e desaparecidos polticos, grupos

    de esquerda e setores da sociedade civil no Uruguai desencadearam novo

    processo de mobilizao para tentar convocar outro plebiscito para anular

    a Ley de Caducidad. Em 2009, a nova consulta plebiscitria manteve alei por uma margem mnima de votos. Mas, em 2011, o Parlamento

    uruguaio aprovou a norma que declara que os delitos cometidos durante

    a ditadura so de lesa-humanidade e, portanto, imprescritveis.

    No Chile, alm de o prprio ditador Augusto Pinochet ter sido

    julgado, oi aberto um precedente com reerncia anulao de uma lei

    de anistia: o sequestro considerado um delito continuado quando oscorpos das vtimas tiverem sido encontrados. Alm disso, os principais

    dirigentes da Direccin de Inteligencia Nacional(DINA) oram presos e

    esto sendo processados.

    O Brasil, todavia, est na contramo da histria. Em 2008, a Ordem

    dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou no Supremo Tribunal Federal

    (STF) com uma ao de descumprimento de preceito undamental a mde esclarecer o artigo primeiro da Lei de Anistia, pelo qual concedida

    anistia a todos que cometeram crimes polticos ou conexos com estes,

    considerando-se conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com

    crimes polticos ou praticados por motivao poltica.7

    O ministro da Justia na poca, Tarso Genro, e o ministro Paulo

    Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica,7 BRASIL. Lei n 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e d outras providncias.

    Disponvel em: . Acesso em: 10 nov. 2011.

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    j haviam explicitado seu posicionamento ao armar que tortura no crime

    poltico; logo, os torturadores no poderiam ser beneciados com a Lei de

    Anistia. Entretanto, em 2010 o pedido oi julgado pelo STF e consideradoimprocedente, com uma votao de sete contra dois.

    Em 14 de dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos

    Humanos da Organizao dos Estados Americanos publicou sentena no

    caso Julia Gomes Lund versus Brasil. O Estado brasileiro oi considerado

    culpado por no ter punido os responsveis pelas mortes e desaparecimentos

    ocorridos durante a guerrilha do Araguaia e tambm lhe oi determinadoque zesse todos os esoros para localizar os corpos dos desaparecidos. A

    deciso da Corte arma que a Lei de Anistia no pode ser invocada para

    esses casos, porque se trata de crimes de lesa-humanidade.

    A prpria Comisso da Verdade s oi aceita quando oi

    declarado que ela no teria eeito condenatrio, visto que os crimes

    que sero apurados esto resguardados pela Lei de Anistia. Porm,para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comisso da

    Verdade no substitui a obrigao do Estado de estabelecer a verdade

    e assegurar a determinao judicial de responsabilidades individuais,

    atravs dos processos penais. No dia em que oi sancionada a Comisso

    da Verdade pela presidente Dilma Rousse, a Organizao das Naes

    Unidas louvou tal ato, mas pediu a revogao da Lei de Anistia.O que se busca com a implantao da Comisso Nacional da

    Verdade no Brasil e, principalmente, com a condenao do Estado

    brasileiro e a punio dos seus agentes, que o entulho autoritrio

    legado pelos 21 anos de ditadura deixe de persistir na nossa sociedade.

    Se antes era o subversivo, o comunista, o terrorista que deveria ser

    atingido independentemente do meio utilizado para tal m , hoje osmecanismos de represso visam ao suspeito, ao pobre, ao marginal.

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    Ainda vivemos em uma cultura autoritria e, no que diz respeito aos

    direitos humanos, muitas vezes, pouco democrtica. Nos pases em cujo

    perodo de transio oram julgadas as violaes aos direitos humanos,o ndice da Escala de Terror Poltico PTS (em ingls, Political Terror

    Scale) diminuiu consideravelmente; ou seja, a violncia produzida pelo

    prprio Estado contra a sociedade retrocedeu signicativamente.

    O Brasil um dos poucos pases que possui a desonrosa marca

    de no ter realizado julgamentos contra os violadores dos direitos

    humanos e de no ter instalado uma comisso da verdade. Isso leva a umcrescimento maior ainda da violncia na sociedade brasileira. De acordo

    com a PTS, hoje, o ndice de terror poltico do Brasil est maior do

    que durante o perodo relativo ao nal da ditadura, ao contrrio do que

    acontece nos pases que tiveram comisses da verdade e julgamentos.

    Deduz-se que o aumento do ndice da PTS se deve prtica de tortura

    e s execues sumrias ainda existentes e derivadas de uma cultura deimpunidade muito orte no nosso pas.8

    8 SILVA FILHO, Jos Carlos Moreira da. Dever de memria e a construo da histria viva: a

    atuao da Comisso de Anistia do Brasil na concretizao do direito memria e verdade.In: PADRS, Enrique Serra et al (orgs.).A Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande doSul (1964-1985): histria e memria. O fm da ditadura e o processo de redemocratizao. 2. ed.Porto Alegre: Corag, 2010. v. 4. p. 47-92.

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    Parte I

    O sequestro de crianas no Cone Sul

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    Esta guerra nos es contra los nios: o

    sequestro de crianas durante as ditaduras

    de Segurana Nacional no Cone Sul

    Ananda Simes Fernandes1

    Buenos Aires, 28 de octubre de 1986.

    Querido hermano:

    Cuando supe de tu existencia me invadi una prounda alegra, pero tambinme senti triste por no tenerte a mi lado.Te cuento que yo soy Mariana, tu hermana.Te deseo eliz cumpleaos El 15 de noviembre cumpls 8 ans y todava note conozco!Todos en casa estn bien y te esperan ansiosos. Mam y Pap no estn: viven

    en una estrellita de antasa y desde all nos cuidan.Solo hay una cosa ms que te quiero decir: volv Rodolo, volv!Te extrao mucho y te quiero.Un abrazo grande.

    Mariana2

    1 Historiadora e Tcnica em Assuntos Culturais do Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul.

    Mestre em Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autora da dissertaoQuando o inimigo ultrapassa a ronteira: as conexes repressivas entre a ditadura civil-militarbrasileira e o Uruguai (1964-1973), deendida em 2009.

    2 ORIA, Piera Paola. De la casa a la plaza. Buenos Aires: Nueva Amrica, 1987.

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    Esta a carta escrita por uma criana de dez anos de idade, chamada

    Mariana, quando sua turma oi solicitada pela proessora a redigir para um

    amiliar. Mariana escolheu escrever para seu irmo Rodolo, de oito anos,que, entretanto, no conhecia. Mariana, Rodolo, seus pais desaparecidos

    queviven en una estrellita de antasa, seus avs e o restante do entorno

    amiliar sorem um drama que no somente individual, pois se trata de

    uma modalidade do Terrorismo de Estado das ditaduras de Segurana

    Nacional e, em particular, da Argentina: o sequestro de crianas e o consco

    de suas reais identidades. Mais de quinhentas crianas tiveram suasidentidades apropriadas durante a ditadura argentina: at o ano de 2011,

    105 recuperaram sua verdadeira histria e passado.

    Entretanto, com o avano das denncias e das pesquisas na

    temtica das ditaduras de Segurana Nacional, comeou a se apontar

    que em outros pases do Cone Sul o sequestro de crianas tambm oi

    praticado, envolvendo dierentes causas e nem sempre com a inteno deapropriao de identidade. Por isso, estas crianas comearam a ser mais

    vislumbradas e percebidas talvez como as maiores vtimas do Terrorismo

    de Estado que se instalou entre as dcadas de 1960 e 1980 no Cone Sul.

    Para se trabalhar com temas to traumticos e ainda presentes

    visto no terem sido superados , a utilizao da metodologia da Histria

    do Tempo Presente se az importante como erramenta para avaliarmosalgumas questes. O objeto do historiador do Tempo Presente o prprio

    presente, porm, ele est inserido nesta temporalidade e interage tanto

    com a histria (escrita e vivida) quanto com a sociedade. Historiador,

    histria e sociedade acabam cando intrincados nessa relao. Dessa

    orma, se estabelece uma nova conexo entre o pesquisador e seu campo

    de investigao histrica, mas, o que poderia ser caracterizado comoragilidade da Histria do Tempo Presente a ausncia de distanciamento

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    entre sujeito e objeto uma das suas especicidades.

    A subjetividade, presente em todo campo cientco, acentua-se,

    porm, no estudo da histria recente. At porque essa subjetividade vemcarregada de um carter ideolgico, que acaba infuenciando a orientao

    historiogrca do pesquisador. Somam-se infuncia ideolgica na

    produo do historiador do Tempo Presente os questionamentos coletivos

    da sociedade e o chamado impacto de geraes como os homens tentam

    reagir e explicar o seu presente. Estas demandas tambm acabam por

    transparecer na produo do historiador, pois, conorme Eric Hobsbawm, inegvel que a experincia pessoal desses tempos modele a maneira

    como os vemos, e at a maneira como avaliamos a evidncia qual todos

    ns, no obstante nossas opinies, devemos recorrer e apresentar.3

    Dessa orma, acaba se colocando tambm a questo do engajamento

    na realizao do estudo do Tempo Presente. Entretanto, o engajamento

    percebido como uma orma de expresso de transormao da realidade eda orientao das prticas de transormao das estruturas:

    [] o engajamento poltico pode servir para contrabalanar atendncia crescente de olhar para dentro, em casos extremos,o escolasticismo, a tendncia a desenvolver a engenhosidadeintelectual por ela mesma, o autoisolamento da academia []mecanismos para gerar novas ideias, perguntas e desaos nascincias a partir de ora so hoje mais indispensveis que nunca.O engajamento um mecanismo poderoso desse tipo, talvezno momento o mais poderoso nas cincias humanas. Sem ele, odesenvolvimento dessas cincias estaria em risco.4

    com base nesta argumentao que muitos pesquisadores das

    ditaduras latino-americanas direcionam seus estudos e suas obras para

    3 HOBSBAWM, Eric. Sobre Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 245.4 Ibid., p. 154.

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    uma histria-denncia, ou seja, consideram que trabalhos sobre perodos

    traumticos e ainda em aberto da histria no podem prescindir de elementos

    de denncias polticas, a m de, por um lado, esclarecer a sociedade e, poroutro, agir contra a impunidade desses regimes autoritrios. Estabelece-se,

    assim, uma relao dialtica entre a subjetividade/ideologia/engajamento e

    o contexto histrico do historiador, que, por sua vez, tambm um agente

    social. Desse modo, justica-se o uso desta metodologia para o estudo deste

    caso to aterrador que o de sequestro de crianas.

    No que diz respeito ditadura argentina, essa prticatransormou-se em uma poltica de Estado. Posteriormente ao sequestro,

    as crianas tinham sua identidade subtrada, pois eram retiradas de seus

    amiliares e adotadas ilegalmente, geralmente por pessoas ligadas direta

    ou indiretamente represso.

    Essas crianas eram sequestradas, muitas vezes, juntamente com

    seus pais, que eram enviados a centros clandestinos de deteno e depoismortos e desaparecidos. Ou ento eram levadas aps operativos nos quais os

    pais morriam no local da tentativa de sequestro. Outros casos dizem respeito

    a mulheres que estavam grvidas no momento em que eram arrastadas aos

    centros clandestinos. Os torturadores esperavam essas uturas mes darem

    luz os seus bebs em cativeiro e, ento, estes lhes eram retirados (geralmente

    com a alsa inormao de que seriam entregues aos avs) e depois disto elaseram executadas. Vida transormava-se em morte: o nascimento de seus

    bebs transormava-se no ultimato dessas mulheres, e s crianas roubavam

    suas histrias de vida, impondo-lhes outras. Alm disso, h os casos em que

    os amiliares desconheciam a gravidez de suas lhas/noras/irms, no tendo

    cincia, por isso, da alta de uma pessoa em seu entorno amiliar.

    importante ressaltar que essa metodologia repressiva oiutilizada de orma racional pela ditadura argentina. Inclusive, o Exrcito

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    elaborou um manual com orientaes especcas sobre essa questo,

    intitulado Instrucciones sobre procedimientos a seguir con menores de edad

    hijos de dirigentes polticos o greminales cuando sus progenitores se encuentran

    detenidos o desaparecidos. Nele, havia instrues para que os militares

    entregassem para oranatos ou amlias de militares crianas com at

    quatro anos de idade, pois estas ainda no estariam contaminadas

    pela m infuncia poltica de seus pais. J as crianas mais velhas,

    especialmente em torno dos dez anos, deveriam ser eliminadas.5 Dentro

    dessa temtica, Nilson Mariano denuncia que, entretanto, os bebs doscabecitas negras (como so pejorativamente denominados na Argentina

    os descendentes de indgenas) no seriam entregues adoo, e, sim,

    mortos, pois os militares preeriam crianas de pele clara.6

    O sequestro de crianas e a apropriao de suas identidades

    durante a ditadura argentina caram internacionalmente conhecidos

    em 1985, quando oi lanado o lme A Histria Ofcial, dirigido pelocineasta Luiz Puenzo e vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

    Porm, j antes desta pelcula, no ano de 1981, ainda em plena ditadura,

    um grupo de ativistas de direitos humanos convocado pela Asociacin

    Abuelas de Plaza de Mayo (existente na Argentina desde 1977) realizou

    uma conerncia em Buenos Aires. A nalidade era mobilizar a opinio

    pblica em torno de um problema que no havia se colocado antes e queera devastador: o desaparecimento de mais de vinte crianas sequestradas

    durante operativos repressivos e de mais de cem crianas nascidas durante

    o cativeiro de suas mes nos centros clandestinos de deteno.

    5 QUADRAT, Samantha Viz. O direito identidade: a restituio de crianas apropriadas nos

    pores das ditaduras militares do Cone Sul. Histria, So Paulo, v. 22, n. 2, p. 167-181, 2003.6 MARIANO, Nilson.As garras do condor: como as ditaduras militares da Argentina, do Chile,do Uruguai, do Brasil, da Bolvia e do Paraguai se associaram para eliminar adversriospolticos. Petrpolis/RJ: Vozes, 2003.

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    As Abuelas de Plaza de Mayo desprenderam-se das Madres de

    Plaza de Mayo. Inicialmente, possuam um objetivo em comum: encontrar

    seus lhos detidos-desaparecidos. Porm, sAbuelas somou-se mais umabusca: a dos netos sequestrados juntamente com seus pais ou nascidos

    em cativeiros. Logo estas Madres,que tambm buscavam os lhos de

    seus lhos, perceberam que no se conguravam como casos isolados:

    Neste longo andar, as avs omo-nos encontrando, organizamos um

    grupo para buscar as crianas desaparecidas, primeiro pensando que

    seramos poucas, mas o terror oi imenso quando descobrimos queramos centenas.7 A luta implacvel das Abuelas para reencontrar

    seus netos prossegue at hoje; entretanto, a questo temporal coloca-se

    como um obstculo: vrias avs j aleceram sem terem encontrado seus

    netos. Por isso, elasdedicaram-se a criar o Banco Nacional de Dados

    Genticos de Parentes de Crianas Desaparecidas, aprovado pela Lei

    Nacional n. 23.511/87, possibilitando que seus netos ou at mesmoprximas geraes conheam suas verdadeiras identidades.

    Porm, apesar de o sequestro de crianas e a apropriao de

    suas identidades terem sido aplicados em larga escala pela ditadura

    argentina, outros pases do Cone Sul os utilizaram.8 O Uruguai tambm

    soreu essa modalidade especca do Terrorismo de Estado. A ditadura

    desse pas oi a que mais se utilizou da Operao Condor, sendo quemuitos cidados uruguaios que se encontravam exilados ou clandestinos

    na Argentina oram vtimas de operaes binacionais, destacadamente

    no centro de deteno clandestinoAutomotores Orletti, em Buenos Aires.

    7 CONADEP. Nunca Mais. Inorme da Comisso Nacional sobre o desaparecimento de pessoas naArgentina. Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 314.

    8 Denncias recentes apontam que quatro bebs de guerrilheiros do Araguaia teriam sido

    levados pelos militares. Ver: Exrcito levou 4 bebs do Araguaia, diz ex-guia militar.O Estadode So Paulo, So Paulo, 14 jul. 2009. Disponvel em: . Acesso em:28 out. 2009.

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    Uma das detenes ilegais uruguaias reere-se ao sequestro

    de Simn Riquelo, e acabou se transormando num dos casos mais

    emblemticos de crianas sequestradas, pois se constitui no nicoem que uma me reencontrou seu lho. Simn Riquelo era lho dos

    uruguaios Sara Mndez e Mauricio Gatti, ambos militantes do Partido

    por la Victoria del Pueblo (PVP), que se encontravam clandestinos em

    Buenos Aires (Riquelo oi o sobrenome que Sara adotou na Argentina).

    Em julho de 1976, um grupo de 15 homens invadiu a casa onde

    Sara Mndez e Asil Maceiro (tambm militante do PVP) estavamescondidas. Junto com elas, estava Simn, um beb de apenas 22 dias.

    Ambas so sequestradas e levadas paraAutomotores Orletti, e Simn oi

    retirado dos braos de sua me:

    Cuando nos van a sacar de mi domicilio reacciono tratando dellevar a mi hijo conmigo. Me dicen que no lo puedo llevar, queal nio no le va a passar nada, que esta guerra no es contra losnios y me lo sacan de mis brazos. Nos comienzan a prepararpara el traslado. Esa es la ltima vez que veo a Simn.9

    Devido a uma alsa tentativa de invaso do Uruguai por parte dos

    militantes do PVP, orquestrada pela represso uruguaia, e que oi desmascarada

    pela imprensa, Sara sobreviveu. Seu destino e do restante dos militantes eraa desapario; porm, depois de descoberta a arsa, Sara reaparece e presa,

    durante quatro anos e meio, no Penal de Punta Rieles, em Montevidu.

    Quando sai da cadeia, comea sua busca incansvel por Simn.

    A otograa do beb de apenas 22 dias passa a ser uma das imagens mais

    conhecidas no Uruguai. Durante vrios anos, quando juntava pistas, se

    ateve esperana de que uma criana uruguaia osse Simn. Conorme

    9 REPBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Presidencia de la Repblica. Investigacinhistrica sobre detenidos desaparecidos. Montevideo: Direccin Nacional de Impresiones yPublicaciones Ociales, 2007. t. 3. p. 705. Grios nossos.

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    las conductas solidarias. Estas caractersticas hacen del secuestroun mtodo represivo de eectos multiplicadores y consecuenciasproundas sobre todo el tejido social, an en sectores objetiva ysubjetivamente alejados de las vctimas.10

    s crianas que oram sequestradas e depois tiveram suas

    identidades apropriadas, soma-se a questo da poltica do desaparecimento,

    que oi a modalidade terrorista mais ecaz para a dissuaso pelo medo.

    O primeiro eeito do desaparecimento a ausncia de

    responsabilidade judicial perante a vtima. O Estado no poderia ser

    considerado culpado dessas mortes, pois a sistemtica do terror havia

    sido utilizada: sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento, todos

    realizados de orma clandestina. Entretanto, seu eeito mais duradouro

    e persistente a rentabilidade do terror, ou seja, a criao da incerteza

    mxima na sociedade.

    Dessa orma, os desaparecimentos produziram os maiores eeitosprticos para a consolidao do Terrorismo de Estado das ditaduras do

    Cone Sul. A dor, a angstia e o sorimento gerados pela incerteza, pela

    dvida e pela no aceitao do ato pois no h corpo para ser chorado

    e enterrado (e no caso das crianas, a impossibilidade de ver crescer

    junto a si a sua descendncia) tornaram-se os melhores antdotos para

    as maniestaes polticas e sociais, almejando anestesiar a populaoperante essa prtica de terror. Assim, conorme Figueroa Ibarra:

    el secuestro y desaparicin de una persona, al igual que su ejecucin,es como un guijarro tirado en un estero de aguas plcidas.Produce ondas que van mucho ms all del lugar en donde cayel pedrusco. El terror se expande bastante ms lejos del mbito de

    10 CONTE MAC DONELL, Augusto; LABRUNE MIGNONE, Noem; FERMNMIGNONE, Emilio.El secuestro como mtodo de detencin. Buenos Aires: CELS, [198-?].

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    las relaciones personales de la vctima. No solamente amiliares,amigos, conocidos de sta son presas del miedo. Tambin aquelo aquella que ven la oto del desaparecido o desaparecida, en elperidico, que leen las atribuladas declaraciones y desesperadosruegos de la madre, esposo o hermana. El primer ruto de losperpetradores, la intimidacin, ha sido logrado: escondmonos,no hagamos nada, sigamos viviendo.11

    Eduardo Duhalde12 destaca que vrias eram as motivaes que

    levavam, na tica das ditaduras de Segurana Nacional, ao sequestrode crianas: produzir terror na populao; vingar-se e ustigar seus

    amiliares; interrogar as crianas; quebrar o silncio dos pais, torturando

    os lhos; beneciar-se com as crianas como botim de guerra; educar

    os lhos menores com uma ideologia contrria dos pais.

    A imposio do medo entre a populao elemento central

    no Terror de Estado. Utilizando-se de um conjunto de instrumentos

    que visava educar (pela ora e pela alienao) a sociedade a

    pedagogia do medo , as ditaduras puderam estabelecer a denominada

    cultura do medo. Os instrumentos pedaggicos do Terrorismo de

    Estado objetivavam impactar os cidados, ensinando-os, atravs do

    eeito demonstrativo, como deveriam agir no Estado de Segurana

    Nacional. Ou seja, a pedagogia do medo era a aplicao direta das

    prticas coercitivas sobre a populao, constantemente lembrando de

    que as altas seriam castigadas. J a utilizao sistemtica das prticas

    do Terrorismo de Estado levava construo dessa cultura do medo,

    um cenrio com um clima de tons cinza e opacos, no qual predomina

    o silncio, pois uns calam porque lhes alta a voz e outros por medo de

    11 FIGUEROA IBARRA, Carlos. Dictaduras, tortura y terror en Amrica Latina. Bajo el Volcn,

    Revista del Posgrado de Sociologa, Benemrita Universidad Autnoma de Puebla, Mxico,ao/v. 2, n. 3, p. 53-74, 2. sem. 2001, p. 63.

    12 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado terrorista argentino: quince aos despus, una miradacrtica. Buenos Aires: Eudeba, 1999.

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    punio exemplar.13

    Se o regime repressivo sequestrava at crianas, muitas vezes

    torturando-as e retirando-as de seus amiliares, o que poderia azer como restante da populao? Assim, atravs da cultura do medo o Estado

    pretendeu se impor com poderes quase ilimitados.

    A tortura, tanto sica quanto psicolgica, oi aplicada muitas

    vezes contras essas crianas, visando a atingir seus pais, conorme

    denncia doNunca Ms argentino:

    Por eu responder de orma negativa, comearam a baterna minha companheira com um cinto, puxavam seus cabelose davam chutes nos pequenos Celia Luca, de 13 anos, JuanFabin, de oito anos, Vernica Daniela, de trs anos, e Silvina,de somente vinte dias As crianas eram empurradas de umlado ao outro e perguntadas se iam amigos casa. Depois demaltratar minha companheira, pegaram a nenm de somente

    vinte dias; pegaram-na pelos ps, de cabea para baixo, ecomearam a bater nela, gritando me: se voc no alar,vamos mat-la. As crianas choravam e o terror era imenso. Ame suplicava, gritando, que no mexessem com a nenm. Entodecidiram azer o submarino na minha companheira na rentedas crianas, enquanto me levavam para outro quarto. At o diade hoje no soube nada de minha companheira14

    Prticas essas tambm apontadas no Brasil: Nunca Mais:

    Ao depor como testemunha inormante na Justia Militar doCear, a camponesa Maria Jos de Souza Barros, de Japuara,contou, em 1973: (...) e ainda levaram seu lho para o mato, judiaram com o mesmo, com a nalidade de dar conta de seu

    13 PADRS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay Terror de Estado e Segurana Nacional.Uruguai (1968-1985): do Pachecato ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em Histria).Porto Alegre: UFRGS, 2005. p. 97.

    14 CONADEP.Nunca Mais, op. cit., p. 320.

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    marido; que o menino se chama Francisco de Souza Barros etem a idade de nove anos; que a polcia levou o menino s cincohoras da tarde e somente voltou com ele s duas da madrugadamais ou menos (...)

    ---------------------------------------------------------------

    Algumas crianas oram interrogadas, no intuito de se obterdelas inormaes que viessem a comprometer seus pais. O ex-deputado ederal Digenes Arruda Cmara denunciou, em seu

    depoimento, em 1970, o que ocorreu lha de seu companheirode crcere, o advogado Antnio Expedito Carvalho: (...)ameaaram torturar a nica lha, de nome Cristina, com dezanos de idade, na presena do pai; ainda assim, no intimidaramo advogado, mas, de qualquer maneira, oram ouvir a menor e,evidentemente, esta nada tinha para dizer, embora as ameaaseitas inteis, por se tratar de uma inocente que, jamais, bvio, poderia saber de alguma coisa. (....)15

    Ao sequestro das crianas oi aplicada a lgica de botim de

    guerra. Era comum, aps as invases nos domiclios e os sequestros, os

    agentes repressivos saquearem as casas, levando consigo televisores, rdios,

    geladeiras, joias, dinheiro. Assim, s crianas oi imputada a noo de que

    tambm eram objetos que podiam ser saqueados pelos vencedores:

    El 24.11.1976, a las 13.15 hs, ue totalmente rodeado eldomicilio donde Clara Anah Mariani, de tres meses, viva consus padres, en la ciudad de La Plata. La nia se encontraba conellos en momentos en que se produjo un prolongado tiroteo queculmin con la muerte de los siete adultos que se encontrabanen la nca, segn consta en el comunicado dado a conocer por el

    Regimiento 7 de Inantera, que intervino en el procedimento.Las autoridades negaron que los eectivos hubieran llevado

    15 ARQUIDIOCESE DE SO PAULO.Brasil: Nunca Mais. 11 ed. Petrpolis/RJ: Vozes, 1985.

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    consigo a la nia y, pese a las evidencias y a las numerosasgestiones realizadas, se niegan a entregarla a sus amiliaresaduciendo que desconcocen su paradeiro.16

    Um dos objetivos mais perversos deste sistema racional de roubo

    de bebs reere-se apropriao de crianas para cri-las numa ideologia

    contrria dos pais, conorme as palavras de Ramn Camps (ex-chee

    da Polcia da provncia de Buenos Aires): A los hijos de los subversivos los

    entregamos a organismos de benefcencia para que les encontraran nuevos padres,

    ya que los padres subversivos educan a sus hijos en la subversin.17 Filhos de

    militantes, cujos pais morreram para que as prximas geraes pudessem

    viver numa sociedade melhor, acabaram sendo criados e educados por

    aqueles contra quem eles lutavam. Dessa orma, pode-se perceber que

    a guerra suja do Terrorismo de Estado tambm oi contra as crianas,

    apesar da alsa declarao do major Nino Gavazzo.

    O sequestro de crianas e a apropriao de identidades

    conguram-se como crimes de lesa-humanidade, logo, so imprescritveis.

    Alm disso, na Argentina, por exemplo, no oram includos nos crimes

    contemplados pelas leis de anistia desse pas. Isso possibilitou que um dos

    ditadores argentinos, Jorge Raael Videla, osse condenado em virtude do

    sequestro de cinco crianas nascidas em cativeiro.

    Em realidade, o sequestro dessas crianas agora adultos

    ainda permanece. Muitas no tiveram suas verdadeiras identidades

    restitudas e chamam de pais queles que eram agentes da represso.

    Conorme Marisa Punta Rudolo,18 no momento especco da separao

    da me da sua descendncia, os militares j tentavam se apoderar tanto

    16 CONTE MAC DONELL, Augusto; LABRUNE MIGNONE, Noem; FERMN

    MIGNONE, Emilio. Los nios desaparecidos. Buenos Aires: CELS, [198-?].17 Ramn CAMPS apud PADRS, op. cit., p. 667.18 PUNTA RODULFO, Marisa. Trauma, memoria e historizacin: los nios desaparecidos

    vctimas de la ditadura militar. In: ULRIKSEN DE VIAR, Mauren (comp.).Memoria social:ragmentaciones y responsabilidades. Montevideo: Trilce, 2001. p. 89-98.

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    do espao sico quanto do psquico dessa criana. Aps o sequestro, o

    passo seguinte era a anulao da sua liao, por meio da desapario da

    me e da separao total do restante de sua amlia. Com isso, tomava-seconta de seus espaos sico e psquico, retirando dela sua histria, mas,

    tambm, sua pr-histria. Isso leva ao ocultamento das suas verdadeiras

    origens, produzindo uma ruptura geracional tanto para a criana quanto

    para seus amiliares. Ela convive em um meio de mentiras sistemticas

    e, geralmente, criada com convices e ideologias totalmente opostas

    s de seus pais. Por m, Punta Rudolo destaca o sequestro permanentedessa criana, que somente voltaria sua vida quando tivesse sua

    identidade restituda.

    UmaAbuela ala:

    Nuestros nios y bebs secuestrados y nacidos en cautiverio,ueron criminal y violentamente arrancados de los brazos de

    sus madres, padres, hermanos, abuelas y abuelos y la mayoracontina padeciendo el secuestro y la desaparicin. Estnilegalmente anotados o como propios o por medio de adopcionesraudulentas, alseando sus padres, sus nombres, sus edades, laorma y el lugar en que vinieron al mundo, quines asistieronsu nacimiento; es decir, apropriados, privados de su verdaderaidentidad, privados de su origen, de su historia y de la historiade sus padres, privados del lugar que ocupan en el deseo y en el

    aecto de los suyos, privados de las palabras, las costumbres ylos valores amiliares, sustrados de la posibilidad de desenvolversus vnculos identicatorios originarios y de la posibilidad deautorreconocimiento y de reconocimiento de todo lo propio,tratados como cosas de las que se dispone a voluntad, parte delsaqueo y despojo de sus hogares.19

    19 ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Restitucin de nios. 1997. Disponvel em: . Acesso em: 12 mar. 2011.

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    Mais de cem crianas sequestradas nas ditaduras de Segurana

    Nacional no Cone Sul tiveram suas identidades restitudas. Algumas,

    quando ainda eram pequenas; muitas tiveram essa descoberta j adultas.Sempre so situaes traumticas e que geram dor e sorimento para

    ambos os lados: para essa criana/adulto que repentinamente perde toda

    a sua histria de vida e para os verdadeiros amiliares, que aguardam

    ansiosamente por um gesto de aeio. Esperam encontrar nos seus

    netos recuperados os lhos de seus lhos, mas estes no os conhecem,

    no oram educados por eles: o nico elo que realmente os une osangue. Desse modo, as Abuelas e os amiliares devem aceitar, como

    se diz na Argentina, que este adulto precisa tomarse su tiempo, mas

    as Abuelas respondem Pero su tiempo no es mi tiempo. Muitas vezes, o

    reconhecimento de um neto chega tarde demais para elas.

    Felizmente, h casos que, dentro das possibilidades, tiveram um

    desecho eliz, mas, mesmo assim, nada tornar possvel recuperar ossentimentos de perda que essas pessoas tiveram e o perodo de vida e

    a histria que lhes oram conscados. Esses traumas vo car como

    marcas das ditaduras de Segurana Nacional. O que pode ajudar a san-

    los a recuperao da Memria, a busca pela Verdade e a Justia.

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    ORIA, Piera Paola. De la casa a la plaza. Buenos Aires: Nueva Amrica, 1987.

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    MARIANO, Nilson.As garras do condor: como as ditaduras militares daArgentina, do Chile, do Uruguai, do Brasil, da Bolvia e do Paraguai se

    associaram para eliminar adversrios polticos. Petrpolis/RJ: Vozes, 2003.

    ORIA, Piera Paola.De la casa a la plaza. Buenos Aires: Nueva Amrica, 1987.

    PADRS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay Terror de Estado eSegurana Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato ditadura civil-

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    nios desaparecidos vctimas de la ditadura militar. In: ULRIKSEN

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    O sequestro de crianas no Cone Sul -

    Depoimento de Camilo Casariego Celiberti

    Camilo Casariego Celiberti1

    Boa noite, eu sou Camilo e vou contar um pouco da minha histria.

    Quando tinha sete anos, vim para Porto Alegre com minha me,

    minha irm e outros companheiros e companheiras que se encontravam

    exilados. Viemos para c porque minha me e outros companheiros

    uruguaios exilados queriam estabelecer os primeiros contatos para

    denunciar as atrocidades que estavam ocorrendo em nosso pas.

    Em um determinado momento, a polcia uruguaia e brasileira

    chegou nossa casa e nos levaram delegacia, onde fcamos detidos

    durante muitas horas. Depois disto, colocaram a mim, minha irm e

    minha me em uma camionete e nos levaram rumo ao Uruguai.

    No caminho, minha me convenceu os militares de que iria

    colaborar, de que iria denunciar seus companheiros, e nos separaram.

    Trouxeram minha me de volta a Porto Alegre, e ento a imprensa,

    chamada pelos companheiros com quem mantnhamos contato,

    divulgou e rustrou o sequestro.

    Eu e minha irm fcamos detidos durante muitos dias, indo

    de uma casa para outra. No nos causaram danos sicos srios, porm

    soramos pelo ato de estarmos separados de nossa me. Logo nos

    devolveram a nossos avs, e assim terminou nossa histria.

    Nosso caso tornou-se pblico, porque fzemos denncias sobre

    1 Filho de Lilin Celiberti, sequestrada em 1978 em Porto Alegre num operativo Condor que

    congregou os aparatos repressivos uruguaio e brasileiro, conhecido como o sequestro dos uruguaios.Camilo (sete anos) e sua irm Francesca (trs anos) tambm oram sequestrados e levados para oDepartamento de Ordem Poltica e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS). Depoimento prestadono Memorial do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no dia 30 de maro de 2011.

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    o sequestro e identifcamos os militares, que, me comentaram, agora

    andam por a, muito tranquilos.

    Isso marcou muito a nossa amlia. Porm, eu no me considero

    uma vtima. Como alvamos antes, somos sobreviventes e, sobretudo,

    aortunados, porque estamos aqui, contando nossa histria. Tenho

    minha me a [Lilin Celiberti estava assistindo ala do flho, sentada

    no meio do pbl