Memória poética e esquecimento em História do Brasil e Contemplação de Ouro Preto de Murilo...

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O texto trata das relações entre memória poética e esquecimento, enfocando a importância da poesiade Murilo Mendes no restabelecimento da memória social e individual. Na amnésia coletiva do tempopresente, a poesia e a memória exercem função fundante do social, dando novas significações a símbolospassados e à história.

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  • Memria potica e esquecimento emHistria do Brasil e Contemplao de Ouro Preto de Murilo Mendes1

    Valmir de Souza*

    RESUMOO texto trata das relaes entre memria potica e esquecimento, enfocando a importncia da poesia de Murilo Mendes no restabelecimento da memria social e individual. Na amnsia coletiva do tempo presente, a poesia e a memria exercem funo fundante do social, dando novas significaes a smbolos passados e histria.

    Palavras-chave: Murilo Mendes; Memria; Esquecimento; Poesia; Histria; Literatura.

    Introduo

    No mundo ultra-moderno, com sua amnsia generalizada e o desmanche de tudo que slido, a memria de tipo tradicional, isto , aquela dos lugares da memria, perde espao na simbolizao do presente. Os grandes monumentos exercem papel de fantasmas do passado e perdem o peso daquela funo de representao de uma classe, pois a velocidade dos centros urbanos no permite mais a ocupao do espao pblico, fazendo arrefecer a participao na vida pblica. Se possvel afirmar isso no que concerne s formas consagradas de representar a histria e a memria, no que tange literatura e especificamente poesia, pode-se considerar a rarefao da memria coletiva em memria individual que gera novas formas de representao da vida social e do eu.

    Hoje as coisas mudaram muito em relao ao conceito de memria. A subjetividade ganha importncia no jogo de significaes do presente, o que desloca para o campo das prticas individuais as questes pertinentes lembrana e recordao. Vive-se um tempo em que a cultura da memria sofre uma guinada para a subjetividade (SARLO, 2007, p. 90-113). Mas, ainda que a perspectiva histrica seja paradigma para as reflexes sobre o fazer humano, as produes e criaes artsticas e literrias jogam novas luzes no passado.

    Ao transcender a histria dos fatos, a poesia coloca em questo a temporalidade historicista, recuperando elementos desprezados pelo processo histrico. Ao reorganizar os fatos de forma no-linear, o texto potico se contrape a uma concepo que v a histria linearmente, colocando assim a possibilidade de se perceber a realidade atravs de outras modalidades de conhecimento.

    A poesia, assim como a histria que tenta reconstruir o passado, busca uma verdade que corresponda ao no-esquecimento social e histrico, pois como lembra Marcel Detienne, a origem grega da palavra

    verdade (altheia) est associada ao no-esquecimento. Assim, ao recuperar informaes perdidas, a poesia teria a funo de falar a verdade que fora esquecida. Como afirma o helenista: A poesia, identificada com a memria, faz desta um saber e mesmo uma sageza, uma sophia. O poeta seria um mestre da verdade. (DETIENNE, s/d, p. 21)

    * Professor da Universidade Guarulhos e da UNIMESP.

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    Apesar de alimentada por informaes da histria, a poesia produziria uma viso de mundo a contrapelo do progresso inevitvel do tempo e da identificao afetiva com os objetos do passado como so (GAGNEBIN apud BENJAMIN, 1985, p. 7-11). A verso potica da histria carregaria uma concepo dinmica da realidade.

    Como aponta Murilo Marcondes de Moura , (...) a poesia, como expresso das mais arcaicas e densas da experincia humana, pode formular, mesmo diante da tragdia mais clamorosa, uma resposta prpria, isto primria (sic), e no apenas reagir de maneira circunstancial ou secundria (MOURA, 1998, p. 180). Apesar de a poesia se configurar em parmetros culturais definidos, e ainda que suas fontes sejam eclipsadas por uma dico marcadamente individual, preciso notar que, na elaborao potica, os eventos sociais so ressignificados, obtendo sentidos no compartilhados por um olhar eminentemente historiogrfico.

    A herana do passado recuperada pela memria inscrita na poesia como memria literria que produz um trabalho de redescoberta de vises que teriam sido obliteradas pelos discursos historiogrficos. Isto , o que o texto histrico teria esquecido pode ser reativado pela poesia que, envolvida na teia da cultura, entretm relaes vivas e estreitas com o passado, mesmo o mais remoto, graas ao dinamismo da memria, e com o futuro, que j existe no desejo e na imaginao (BOSI, 2002, p. 33).

    1. A histria e a memria potica de Murilo Mendes

    Consideramos aqui a memria como algo relacionado com a construo do passado, tendo como funo a comunicao de algo que no existe no presente. A memria presentificaria, pelo ato de narrar, eventos histricos e culturais. Contra a amnsia coletiva, as narrativas de episdios, fatos, acontecimentos, localizados no tempo e no espao, servem para recordar o que foi esquecido. Desse modo, a memria no luta contra a histria, mas a resgata para o momento presente e, de certa forma, a revivifica, dando-lhe dinamismo.

    A memria, enquanto conjunto de smbolos que d sentido a uma coletividade - seja de tipo literria, artstica ou urbanstica -, uma construo social na qual entram em jogo as lutas pelo poder, e, nessas lutas, o domnio da memria social significa controlar o espao simblico e, com ele, o espao da realidade.

    A essa construo intencional da memria Edgar de Decca chama de memria histrica, isto , aquela definida pela instaurao simblica de determinados sentidos. Ento, a memria coletiva espontnea passa por uma redefinio histrica, perdendo o elo com a experincia social. Para Edgar de Decca, essa memria serviria para legitimar a dominao, (...) para destruir a memria dos vencidos e para impedir que uma percepo alternativa da histria fosse capaz de questionar a legitimidade de sua dominao. (DE DECCA apud CUNHA, 1992, p. 133)

    Note-se que a simbolizao da unidade nacional, por exemplo, atravs do mito fundador (CHAUI, 2000, p. 9), pilar da histria de grupos que se perpetuam como principais agentes do poder, tem sido a base da iconografia e das edificaes construdas e preservadas que no levam em considerao a presena do outro esquecido de nossa histria. Historiadores e artistas, em suas obras, vm desconstruindo as imagens consagradas do Pas, permitindo, assim, abordar problemas referentes ao tempo e histria. E mesmo os textos literrios, ainda que tenham sido uma arte restrita s classes cultivadas, propiciam a problematizao da memria escrita sobre o Pas bem como da memria edificada.

    O poeta Murilo Mendes (1901-1975), em seus livros, Histria do Brasil (1932) e Contemplao de Ouro Preto (1954), dialoga com a memria histrica, revendo e atualizando dados do passado. A

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    sua memria literria encena, no primeiro, momentos do passado em chave satrica. A a memria potica entra em contraste evidente com verses estabelecidas do passado. J no segundo, ao revisitar sua posio anterior, sua potica adere ao objeto histrico de um ponto de vista religioso e mais grave. O que importa aqui a traduo potica da histria no que se refere a temas brasileiros, pois suas obras se destacam na releitura de fenmenos histrico-sociais, porm com um olhar que percebe um outro movimento da histria, mais denso e mais intenso.

    Segundo Joana Matos Frias, desde os primeiros livros Murilo j trabalhava com a possibilidade de criar e recriar o passado e com a afirmao do poder e do domnio do homem sobre esse passado (FRIAS, 1998, p. 106). Essa recriao tem a ver com uma reconstruo muito particular e subjetiva dos fatos como coisa imaginria. A reconfigurao desse pretrito seria, ento, da ordem da memria cultural atravs da qual o poeta recuperaria o que no foi realizado.

    J no somente uma memria pessoal que entra em jogo, mas uma memria social reformulada atravs da subjetividade potica. Atravs da literatura, no trabalho de memria cultural do escritor, se recuperam elementos esquecidos pelo silenciamento de uma memria oficial.

    A memria histrica e social do Pas se presentifica na obra do poeta ainda que de forma indireta, sendo traduzida em Histria do Brasil e Contemplao de Ouro Preto de maneiras especficas. Em Histria do Brasil, a memria construda narrada com base em episdios registrados pela historiografia e pela literatura brasileira. Os romances da obra registram, no modo cmico-satrico, a histria e a memria do ponto de vista dos vencidos recompondo uma memria coletiva esquecida e fazendo falar o que foi silenciado pelos relatos da histria.

    Essa operao feita atravs de uma escrita que coloca em cena a voz reprimida pelos modos de representao oficial da cultura, o que identifica o poeta com as causas perdidas e esquecidas, reconsiderando-as poeticamente como um modo de apontar as devastaes polticas e sociais da histria brasileira. A implicao ideolgica do livro se liga a uma atitude radical, prpria de um Murilo leitor e simpatizante, poca, de Marx, Lnin e Trtski.

    J em Contemplao de Ouro Preto o tempo passado no presentificado atravs de datas ou episdios, mas est sinalizado pela presena de personagens histricas da cultura brasileira e pela abordagem do espao da cidade e tambm pelos dados concretos da cultura popular, no caso, pela cultura religiosa. Assim, apesar de haver a tentativa de abstrair o tempo e de no fazer referncias explcitas a conflitos e tenses sociais, como no livro de 1932, o registro da memria acaba por se fazer com base em elementos no declaradamente crticos. Nessa obra, as vozes da cultura popular, esquecidas, emergem na cena literria de forma indireta.

    Em Contemplao de Ouro Preto, a histria relatada de modo indireto pela evocao do passado. A arquitetura da cidade, como memria edificada, emite sinais para lembranas no s de um passado institudo, mas de uma memria cultural que vai alm do concreto, indicando um cruzamento de aspectos literrios, estticos e religiosos que ultrapassam a comemorao oficial.

    Nos dois casos, o passado ressurge por um movimento potico ambguo, promovendo o desesquecimento. Enfim, o que aproxima os dois livros o trabalho de representao do passado articulado pelo tempo presente e, nesse aspecto, eles do testemunho das tenses histricas presentes nas lembranas do poeta. Isso revela que o projeto potico de Murilo Mendes, mesmo oscilando entre uma postura apaixonada e uma reao mais contida do sujeito potico, um projeto atento s questes histricas.

    Vejamos como se d a apropriao de uma personagem histrica pela via da poesia de Murilo

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    Mendes, nas duas obras mencionadas. Reconstrues de Tiradentes

    O trabalho de apropriao do passado histrico e literrio, pelo poeta, bastante evidente. Por um lado, utiliza referncias histricas consolidadas pela histria oficial, por outro, trabalha com referncias da tradio literria e religiosa estabelecida.

    o caso da construo do mito de Tiradentes que serviu implantao do imaginrio republicano no Pas. Segundo Jos Murilo de Carvalho, Joaquim Jos da Silva Xavier, o Tiradentes faz parte de uma construo imaginria da Repblica que, se para se consolidar simbolicamente, teve dificuldade de construir um heri para o novo regime. Para Carvalho, os heris so instrumentos eficazes para atingir a cabea e o corao dos cidados a servio da legitimao de regimes polticos. Quando os heris no correspondem a um valor coletivo, ou so ignorados pela maioria ou ridicularizados por aqueles que tm acesso a instncias culturais onde se travam as lutas simblicas com instrumentos da cultura letrada e iconogrfica (CARVALHO, p. 55-63).

    Tiradentes pode ser definido como um dos mitos fundadores, referidos por Marilena Chau, no sentido de ser utilizado como uma soluo imaginria para tenses, conflitos e contradies que no encontram caminhos para serem resolvidos no nvel da realidade. Este mito fundador, carrega em seu vnculo com o passado, uma relao perene com o presente, o que dificulta o trabalho da diferena temporal e da compreenso do presente enquanto tal. Ainda segundo Chau, seria uma repetio no nvel do imaginrio que bloquearia a percepo da realidade presente (CHAU, p. 9).

    Murilo Mendes, consciente tanto da heroificao e legitimao quanto da ridicularizao de personagens da histria, como pode ser detectado em seus versos, zomba desses heris fabricados. Essa atitude estabelecia elos com uma das inquietaes das vanguardas artsticas, isto , compromisso com uma viso menos idealizada do Pas, e que se inseria no campo da luta simblica travada nos incios do sculo XX, fazendo com que a arte se aproximasse do ponto de vista das camadas populares.

    Abordaremos dois poemas, O Alferes na cadeira, de Histria, e Acalanto de Ouro Preto, de Contemplao. Ambos tratam de Tiradentes de forma diferente, ainda que haja dois traos comuns: a personagem histrica como vtima e heri.

    O Alferes na cadeira

    Antes eu fosse Dirceu,Vivesse aos ps da mulataDesfiando o lundu do amor,Fazendo crochet de noite,Do que estar como estou:Os dentes me arrancaram,Incendeiam meu chalet; No pude livrar ningumDa escravido atual;Arranjei foi mais um escravo,Eu mesmo, entrei na cadeia;Tirei retrato de heri,Mostrei a mestre SilvrioOs planos desta revolta;Pareo com aviadorQue faz viagem no plo,

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    Queria mesmo morrer;Sentei na cadeira eltrica,Morro, inda mesmo que tarde A morte que sempre sonhei, No essa morte vulgar,Apagada, clandestina:Eu quero morrer de heri,Eu amo a posteridade;Comecei me lamentandoDe no ser como Dirceu,Mas s pra tapear;Acabei me convencendoQue no h nada melhorDo que a gente ser heri;Eu amo a posteridade,Quero nome no jornal,Esttua na praa pblica,Vejam a minha vocao!...Vamos, apertem o boto. (MENDES, 1993, p. 157-158)

    Nesse poema, dois participantes da Inconfidncia Mineira so abordados: Tiradentes e o poeta de origem portuguesa Toms Antonio Gonzaga. No poema, em primeira pessoa, o Alferes comea ironizando o segundo participante da revolta mineira (vv. 1-4), cujo pseudnimo Dirceu. Em seu ideal de vida amorosa e domstica, este poeta vive cantando o lundu do amor e passa fazendo crochet de noite (v. 4). Faz-se aqui uma crtica ao ideal rcade do locus amoenus, registrado em Marlia de Dirceu, e tambm elite intelectual da poca, que no tinha interesse na emancipao da vida poltica do Pas, pois se sabe que a Inconfidncia tinha muito de inconformismo de grandes proprietrios da poca.

    Registre-se que Tiradentes, segundo Manuel Bandeira, no teria sido bem visto por seus companheiros da Conjurao. Provavelmente, no texto que estamos abordando, Murilo esteja respondendo a Dirceu que, na Lira 38, teria chamado Tiradentes de um pobre, sem respeito e louco (BANDEIRA, 1957, p. 52). O poeta dialoga com o passado e, ao mesmo tempo, se insere no seu tempo, comeo do sculo XX, quando tambm percebia a existncia de uma elite mais interessada em modelos europeus do que propriamente brasileiros.

    O contraste de Tiradentes com outros personagens evidente, pois o tratamento dado aos inconfidentes intelectuais e ao Alferes foi bastante distinto no julgamento. Os primeiros foram desterrados, mas, do grupo, somente Tiradentes, por ser um simples Alferes de origem pobre, foi degolado, e sua cabea exposta em praa pblica de Vila Rica. No poema, enquanto Dirceu est voltado para o ideal de vida domstica, Tiradentes sofre agresses (vv. 6 e 7).

    O uso de tcnicas surrealistas, no livro, refletido nos anacronismos e na atualizao (aviador, cadeira eltrica, jornal, nos vv. 15, 18, 32, respectivamente), e no fato de dar voz s personagens. Com tais procedimentos, so confundidos os planos da temporalidade histrica e da relao poeta-personagens, e isto se verifica pelo fato de a histria (o enunciado) ser narrada a partir do presente (enunciao). A voz do narrador passa com naturalidade do presente para o passado, confundindo assim os dois tempos. o que enfatiza sua interveno no presente. Por exemplo, nos versos 5, 6 e 7 Do que estar como estou / Os dentes me arrancaram /

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    Incendeiam meu chalet; verifica-se, pelas mudanas verbais, a mescla das temporalidades. A inverso tambm faz parte destes procedimentos surrealsticos. No verso 19 - Morro,

    inda mesmo que tarde -, o poeta cita o lema da Inconfidncia - Liberta quae sera tamen -, mas colocando-o noutro patamar, pois a liberdade se transforma em morte. Uma citao que troa de uma insgnia sria da cultura latina que, na boca de Tiradentes, traduzida para o vernculo de modo a se integrar ao tipo de construo do poema.

    A auto-derriso da personagem, visvel em boa parte do poema, se manifesta de maneira mordaz e por uma forma de composio potica leve. O fato de o heri, oportunisticamente, ter querido morrer para se tornar famoso e ganhar uma esttua pblica, ndice de uma desconstruo das boas intenes dos chamados heris da ptria. Alis, o Tiradentes a nica figura dentro da categoria dos populares que representada num tom de chacota, com forte carga de ambigidade, pois ainda que fosse o heri escolhido pela Repblica, no teria tido antes disso uma correspondncia no imaginrio popular.

    Murilo Mendes, sabendo que est lidando com uma gama de informaes que construiu o mito, na verdade, debate com essas formulaes oficiais e com dados histricos naturalizados sobre Joaquim Jos da Silva Xavier. E, ento, a derriso recai tambm sobre um modo de fazer histria que, por exemplo, recomps a figura do Alferes em trajes e por inteiro, quando a possibilidade de Tiradentes estar com barbas no momento de seu enforcamento no se justifica, pois na cadeia ele teria os cabelos e barba cortados.

    A ironia sobre a personagem, ento, se constitui, simultaneamente, em ataque pungente pseudo-transformao poltica construda pela verso republicana da histria brasileira, pois, como se sabe, a Conjurao Mineira de 1792 no se originou de nenhuma revolta popular, como costumavam anunciar alguns manuais escolares. Em suma, atravs da voz do heri que se ouvem as vozes das classes dirigentes e, ao mesmo tempo, a desmistificao dessas.

    No poema, ento, v-se a identificao do poeta com uma posio crtica da histria construda, apontando para o no reconhecimento, por parte da populao, dos smbolos nacionais, e para uma expresso do sentimento e das aspiraes populares, fazendo um contraponto a uma memria histrica e cultural. Por isso, a irriso de Tiradentes como representante de uma viso oficial e tambm como uma vtima dentro da Inconfidncia coloca em questo os smbolos nacionais atravs do prprio mito, pois o poeta opera duas crticas simultneas, a da intelectualidade e a das formas de se representar os eventos histricos.

    O poeta utiliza as armas da linguagem para atacar as estruturas arcaicas da sociedade brasileira sua contempornea e, pelo tom e pela linguagem de Histria, no h dvida de que o poeta nesse momento alimenta simpatia pelos de baixo. A linguagem espelha um posicionamento contra a retrica empolada de uma intelectualidade passadista de seu tempo.

    Em Contemplao, a figura de Tiradentes retomada de forma indireta, como sombra, em referncias esparsas de vrios poemas. A ttulo de ilustrao, vejamos alguns exemplos de tais aparies no cenrio das cidades histricas. Logo no incio do livro, em Motivos de Ouro Preto (vv. 15-17), ele aparece junto com outras sombras (poetas, padres) que pairam nas Runas de solares e sobrados. Em Romances das Igrejas de Minas tambm h aluses deste tipo (vv. 105-9: Paredes em faiscado, / consistrios, corredores / Onde vagueiam fantasmas / De poetas inconfidentes, / De padres conspiradores). Tambm em Romance de Ouro

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    Preto (vv. 85-91: Torsos de Minas / Dependurados, / Restos rodos / De Inconfidentes / Na cal propcia / Recolocados,/ Sombras vencidas,/ sombras severas/ estranho esplio,/ Solene expe;).

    Somente Acalanto de Ouro Preto - ltimo poema do livro - se refere diretamente ao heri, junto com os espectros familiares da cidade que perpassam a obra, como a figura do heri.

    Vejamos os versos 9-38 de Acalanto de Ouro Preto:

    Desponta o primeiro espectro:Duras algemas arrasta,Veste a camisa marcadaDos criminosos infames. Conversando o crucifixoLogo a morte se descobre.Ao mirar o povo, exclama:O meu Redentor morreuPor mim tambm deste modo...Ao prprio carrasco beija,Curvando-se, a mo e os ps.

    Retido pelo barao Oscila o corpo no espaoEm terrvel convulso.Mantendo a corda, o carrascoSobre os ombros do pacienteCavalga, abrevia a morte,Apressa a consumao.Tambores rufando abafamDo povo infeliz o grito.Logo o corpo esquartejado- Germina o sangue do heri E a cabea trasladadaPara Minas, penduradaNa praa pblica, i!

    Dorme, dorme, inconfidente.Nos teus membros reunidosPela tcnica divina,Dorme, dorme, Tiradentes, O sono da perfeio. (MENDES, 1993, p. 535-536)

    O tom grave dos versos acima produz a elevao do heri, retomado agora sob as vestes divinas. Nesses versos, Tiradentes reaparece em primeiro lugar, visto como heri comparado a Cristo (vv. 9-38) e, para reforar isso, o Inconfidente confundido com criminosos infames (v. 12), cena que remete situao do Calvrio em que Jesus representado entre malfeitores. A consagrao do heri afirmada, aqui, atravs de um forte pathos religioso. Tiradentes se volta ao povo, mirando-o e afirmando a proximidade de sentido entre sua morte e a de Cristo, ao mesmo tempo que reafirma a figura de Cristo, imitando-o no tipo de morte e de atitude em relao aos adversrios - Ao prprio carrasco beija / Curvando-se, a mo e os ps.. A consagrao reforada pela descrio mais detalhada do enforcamento e do esquartejamento (vv. 20-33), ao montar uma cena realstica com os dados da imagem histrica do heri, que inclui acentuado tom dramtico, lembrando as narrativas dos Evangelhos sobre a Paixo e Morte de Cristo.

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    Embora os versos finais (34-38), nos quais os membros do heri so reunidos pela tcnica divina, continuem com a nfase num pathos religioso e na soluo metafsica para a morte, constatam-se elementos que apontam para uma mirada crtica sobre a histria que contemple a presena do povo no momento da execuo de Tiradentes.

    Os sons dos tambores como que obliteram a presena popular no evento histrico. A repetio de sons graves e nasalados no verso Tambores rufando abafam (v. 27), alternada e contraposta pelo som agudo do verso seguinte (Do povo infeliz o grito), sugere uma ocultao da manifestao popular no evento representado, porque infeliz e grito se referem ao povo que assistia ao enforcamento. E, portanto, aponta para uma viso em que a populao no teria tido participao efetiva nos episdios da Conjurao, a no ser como platia. Assim, a condio religiosa do poeta no lhe confere uma posio poltica desconectada da opo pelos vencidos em Histria do Brasil. O pathos religioso incorpora, de certa forma, aquela primeira simpatia pelos rebeldes da histria nacional.

    Mas o Tiradentes consagrado aqui dialoga com o Cristo da quarta parte de Motivos de Ouro Preto (MENDES, 1993, p. 459, vv. 89-100), que, no meio dessas sombras, considerado a extrema assombrao, sendo equiparado aos mrtires nacionais e, de certa forma, humanizado e historicizado pelo poeta (Parece que em sua imensa humanidade/ Aos espectros o Cristo se aparelha,), fazendo-se carne de novo mas que tem o poder de amar a todos, independentemente de seu pecado (Sua caridade a todos estendendo,/ Mesmo a Joaquim Silvrio d o po).

    Tal tipo de operao demonstra que, em Contemplao, o aspecto religioso enfatizado pela reiterao de imagens ao longo do livro, mas isso tambm denota uma relao dialtica entre o sagrado e o profano, pois a a histria sagrada se confunde com a histria social. H um movimento ambivalente pelo qual a imagem do perdo de Cristo humanizado que, retirada do plano da histria sagrada, inserida no da histria humana e, inversamente, a histria social de Tiradentes alada ao plano do sagrado.

    Acentua-se, novamente, a transformao nos modos de abordar a histria de um livro para outro, indicando tambm que a mudana ocorrida no se d de modo a abandonar totalmente o primeiro pathos do poeta, agora retomado em outro registro.

    Mas preciso considerar que o aspecto religioso do segundo livro retoma o mito fossilizado pela verso oficial e, portanto, conectado com os mitos de fundao, ao mesmo tempo que inclui o personagem na histria sagrada mais geral, por exemplo, ao comparar o Alferes a Cristo, o que mostra que o livro est vazado na sagrao da histria proposta pela Igreja Catlica (CHAU, p. 70-79).

    Se Histria do Brasil j seria sintoma das perdas histricas do que poderia ter acontecido, mas no ocorreu , assim tambm as sombras de Contemplao podem ser lidas como sintomas, no s das perdas histricas, mas tambm de uma reestruturao potica do autor. Assim, a releitura dos eventos do passado em Histria preenche os vazios histricos deixados pela memria histrica que consagrou mitos nacionais, bem como Contemplao rel os vazios deixados na prpria obra do autor.

    Estas releituras so modos de articulao entre passado e presente nos dois textos. Dito de outro modo, h uma reapropriao da histria nos livros. Enquanto Tiradentes retomado como heri, o Aleijadinho valorizado por sua obra, e isso se d evidentemente pela forma de atuao de cada um, o primeiro pela ao poltica e o segundo pela ao artstica.

    No caso de Contemplao a releitura do passado literrio brasileiro se transforma num trabalho mais lento, mediado pela referncia a episdios, escritores e personagens agora revistos por outra lente. O espao comum de aparecimento dessas sombras um cenrio especfico no qual se cruzam os acontecimentos

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    histricos: a cidade de Ouro Preto. Este lugar, onde se passam os eventos relidos pelo autor, traveja os eventos, dando sustentao verso do poeta, e se constitui no lugar ideal da memria sagrada, j que possibilita abordar a histria eclesistica, dramatizando a combinao da histria profana e da sagrada, duas vertentes claramente articuladas no texto.

    Em Histria este espao est oculto, s se mostrando indiretamente no relato sobre Aleijadinho e Tiradentes, personagens pelas quais se identifica a cidade de modo metonmico. J em Contemplao, as descries oriundas de uma viso acurada do lugar resvalam para a meditao metafsica, numa perspectiva visionria e complexa em que o espao arquitetnico e a escultura de Aleijadinho so refletidos na arquitetura da obra.

    Numa sntese comparativa, e relembrando traos j abordados das duas obras, pode-se dizer que, na obra sobre o Brasil, h uma desconstruo potica da viso consagrada pela memria histrica, enquanto na obra sobre Ouro Preto a reconstituio de tal memria se faz pela chave religiosa.

    A memria literria dos dois textos dialoga com os esquecimentos da histria e, numa perspectiva abrangente, faz-se necessrio ressaltar que a memria em ambos os livros se constitui em reatualizao simblica, e no em mera lembrana. Neles, o poeta recapitula a histria, resumindo-a em seus poemas que condensam certos momentos do passado. A condensao se faz no sentido de trazer o passado para o presente, e no registrar o passado em sua factualidade (LWI, 2005, p. 124).

    Pois, ao contrrio daqueles que se identificam com um passado cristalizado e parado no tempo, a identificao afetiva do poeta est com os vencidos do passado, transformando, em tom satrico ou meditativo, a matria do passado em uma crtica do presente e da histria cultural. Se isso verdade para o primeiro Murilo, tambm o para o segundo, pois, apesar de mudar o tom e mudar o tema, o poeta no abandona totalmente suas preocupaes com o que ficou no meio do caminho da histria.

    ABSTRACTThe aim of this study is to analyze the relations between poetic memory and oblivion in Murilo Mendes poems, emphasizing the importance of poetry in the rescue of the social and individual memory. Nowadays, when we live in a state of amnesia poetry and memory have an important function in giving new meanings to the past symbols and to the history.

    Keywords: Murilo Mendes; Memory; Oblivion; Poetry; History; Literature.

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