Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce · a memória épica vencendo a morte em mil e...

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1 Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce Resgatando a memória do lugar e sua importância para a recuperação da interação entre jovens e idosos Rosilene Silva de Oliveira 1. Justificativa Os atores sociais dessa proposta pedagógica serão os alunos do 8º - ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Santo Amaro e os moradores idosos e antigos da comunidade rural de Riacho Doce, no município de Marituba, Pará. Ao iniciar minhas atividades nessa escola, que ainda preserva algumas caracte- rísticas da vida rural, percebi que os alunos valorizam muito as histórias contadas pelos mais velhos sobre a fundação da localidade e os modos de vida da comunidade. Aproveitando a prática de letramento local da esfera cotidiana, procurei desenvolver um projeto que os envolvessem nessa experiência. Assim, surgiu o projeto “Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce – Resgatando a memória do lugar e sua importância para a recuperação da interação entre jovens e idosos”, que, a partir de uma sequência de atividades cujo início consiste na escuta dos relatos de lembranças dessas pessoas, por meio de depoimentos, oferecerá aos alunos a oportunidade de produzir textos com um embasamento real com o tema “O ontem e o hoje através de olhares experientes”. Os alunos mostraram bastante interesse em desenvolver o projeto, pois eles já têm conhecimento sobre os acontecimentos e histórias contadas a respeito da fundação da localidade, especialmente quando se verifica a participação de moradores antigos da região.

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Memória literária de um lugar chamado Riacho DoceResgatando a memória do lugar e sua importância para a recuperação da interação entre jovens e idosos

Rosilene Silva de Oliveira

1. JustificativaOs atores sociais dessa proposta pedagógica serão os alunos do 8º- ano do Ensino

Fundamental da Escola Municipal Santo Amaro e os moradores idosos e antigos da comunidade rural de Riacho Doce, no município de Marituba, Pará.

Ao iniciar minhas atividades nessa escola, que ainda preserva algumas caracte -rís ticas da vida rural, percebi que os alunos valorizam muito as histórias contadas pelos mais velhos sobre a fundação da localidade e os modos de vida da comunidade.

Aproveitando a prática de letramento local da esfera cotidiana, procurei desenvolver um projeto que os envolvessem nessa experiência. Assim, surgiu o projeto “Memória literária de um lugar chamado Riacho Doce – Resgatando a memória do lugar e sua importância para a recuperação da interação entre jovens e idosos”, que, a partir de uma sequência de atividades cujo início consiste na escuta dos relatos de lembranças dessas pessoas, por meio de depoimentos, oferecerá aos alunos a oportunidade de produzir textos com um embasamento real com o tema “O ontem e o hoje através de olhares experientes”.

Os alunos mostraram bastante interesse em desenvolver o projeto, pois eles já têm conhecimento sobre os acontecimentos e histórias contadas a respeito da fundação da localidade, especialmente quando se verifica a participação de moradores antigos da região.

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Com esse projeto, os alunos poderão conviver e trocar experiências com os mais velhos e assim valorizar a coletividade passada, estreitando os laços e sentimentos de pertencimento que ligam gerações novas e antigas de um lugar.

A sociedade contemporânea, infelizmente, não valoriza o saber histórico das pessoas idosas de uma comunidade. Segundo Frochtengarten (2005, p. 370), podemos afirmar:

A contemporaneidade entre a formulação do conceito de desenraizamento e

as reflexões sobre o decaimento da narração não é casual. As circunstâncias que

ameaçam as raízes da participação dos homens na vida comunitária igualmente

ferem as modalidades de relacionamento apoiadas sobre a narração. São condições

que prejudicam a memória social.

Objetivo

O objetivo desse projeto é a valorização das experiências vividas por pessoas idosas da comunidade, que por meio da exposição oral oferecem ensinamentos, saberes e culturas e através dessa ação desenvolvem as práticas de oralidade, leitura e escrita, proporcionando interação entre leitor e texto e interesse pela produção textual do gênero Memórias literárias, com a colaboração da Escola Municipal Santo Amaro e o envolvimento da comunidade do Riacho Doce.

Objetivos específicos

•valorizar a experiência de pessoas idosas;

• compreender o gênero textual Memórias literárias;

•analisar as marcas linguísticas que articulam esse gênero textual;

• identificar o uso de verbos e palavras que remetem ao passado;

•produzir textos do referido gênero.

2. Fundamentação teóricaA recriação do passado da comunidade de Riacho Doce será realizada por

pessoas idosas e trará à luz relatos de memória. Como afirma Bosi (2012, p. 20), “o passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea”. Cada indivíduo irá construir essa memória independentemente, com significações para ressurreições das lembranças de um passado que marcou a história da construção de um lugar.

Segundo Parreiras (2009, p. 46), “o trabalho com memória na sala de aula é de extrema importância para o aluno. A memória traz a identidade de cada um, da família, do bairro. Ao lidarmos com relatos do passado, tomamos contato com a nossa própria memória”.

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É através da memória que nos colocamos ao longo de nossa existência. O trabalho de memória em sala de aula é muito bem-vindo, pois desencadeará em cada aluno a busca de sua própria identidade, principalmente quando essa memória é trazida pelos relatos dos mais velhos.

Dentro deste contexto, aponta Bosi (2012, p. 144), “o idoso também não é um ser inútil, sem participação ativa na sociedade, ele produz conhecimento e reproduz experiências. A linguagem fluida, sem rebuscamento, atinge o imaginário do leitor”. E segundo Parreiras (2009, p. 147),

a oralidade deixa marcas nas narrativas que trazem linguagem bastante coloquial,

próxima a nossa fala. A ancestralidade, o tempo subjetivo interno dos sentimentos.

O tempo como reconstrução do presente. A construção do presente pelas vias

do imaginário do passado. São questões pertinentes de serem trabalhadas entre

educadores e com alunos.

Ao considerarmos a língua no seu aspecto histórico e social, a atividade de oralidade deve ocorrer em momentos reais do uso da fala. O professor deve promover o uso da oralidade de maneira que o educando perceba sua utilidade em diferentes situações. Partindo do pressuposto de que a fala é um dos aspectos do conhecimento relativo às variedades linguísticas e se dá em diferentes construções da língua, é primordial que sejam desenvolvidas em sala de aula atividades que favoreçam as habilidades do falar e do ouvir.

Saber escutar com respeito os mais diferentes tipos de interlocutor é fundamental.

Se não houver ouvinte, a interação não acontece. Logo, é preciso desenvolver

nos alunos a competência de saber escutar o outro, o que favorece, inclusive, a

convivência social. (Porto, 2009, p. 23)

À medida que damos importância ao uso da oralidade em sala de aula, devemos estendê-la aos narradores. Ainda de acordo com Bosi (2012, p. 85), “a arte da narração não está confinada nos livros, seu veio épico é oral. O narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o escutam”.

Dessas experiências nasce o entrelaçamento do passado com o presente, com elos marcantes de tempos embasados nas recordações de um narrador que envolverá um ouvinte prestes a se desvencilhar de seu presente na busca da reconstrução de um passado histórico.

Entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação baseada no interesse comum em

conservar o narrado que deve poder ser reproduzido. A memória é a faculdade

épica por excelência. Não se pode perder nos desertos dos tempos uma só gota

da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão.

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A história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos

fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos. Quando

Scheerazade, contava, cada episódio gerava em sua alma uma história nova, era

a memória épica vencendo a morte em mil e uma noites. (Bosi, 2012, p. 90)

O reconhecimento da cultura de um lugar terá eixo permanente dentro do espaço escolar, a partir do momento em que a proposta da diversidade baseia-se no respeito e na valorização do ser humano, em que todos têm o direito a uma identidade, à liberdade de expressão e à valorização de crenças e valores, a um modo de vida, a opções e pontos de vista.

A escrita entrará como forma de registro de todo o material ouvido ou relatado. As produções da escrita terão função social e serão apreciadas por outras pessoas. Como diz Ângela B. Kleiman (2010, p. 378), “uma perspectiva escolar do ensino

da língua escrita pode, no entanto, estar filiada a uma perspectiva sociocultural de letramento. Nesse caso, a abordagem antropológica, com observação etnográfica, própria dos estudos de letramento, é posta a serviço da observação...”. Reitero o que diz Fernando Frochtengarten (2005, p. 368): “Enfatizando o caráter coletivo da memória, diríamos que seu suporte social é doado por grupos pregressos e atuais, especialmente em condições promotoras de uma participação enraizada dos homens no meio coletivo. São circunstâncias em que o passado de um homem pode mais vigorosamente ser vivido como o passado do grupo”.

Dessa forma, deve-se apresentar ao aluno a estrutura linguística de um texto escrito com base em elementos gramaticais (pronomes, advérbios, conjunções etc.), de que forma que as partes se tornam coesivas e coerentes. Como aponta Porto (2009, p. 29), “tendo a compreensão de que a língua oral e a língua escrita são duas modalidades, o professor deverá criar situações para que o aluno se aproprie das estruturas da variedade culta sem fazer disso o cerne de seu trabalho”.

3. Pré-projeto de práticas de letramento em sala de aula3.1. Discussão dos aspectos culturais e sociolinguísticos

implicados no projeto

A língua é uma das formas de linguagem, ela é produzida dentro de contextos sociais e culturais e aí desenvolvida, pessoas de diferentes grupos sociais empregam- -na de modo diferente, em momentos históricos e espaços geográficos diversos. A maioria da população brasileira fala português; nossa língua apresenta alto grau de variedade, ela varia no tempo, no espaço.

A proposta da diversidade baseia-se no respeito e na valorização do ser humano, em que todos tenham liberdade de expressão. Com esse pensamento os alunos farão contatos com moradores da localidade, conversarão e recolherão relatos e acontecimentos importantes para o registro dos textos de memórias literárias.

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A partir dos relatos ouvidos serão abordados com os alunos aspectos pertinentes à fala, e à maneira de pensar, ou seja, como eles se posicionam diante dos fatos. Frisar a importância da escola também é importante, pois muitos idosos não foram à escola e aqueles que tiveram oportunidade de frequentá-la poderão apresentar testemunhos das maneiras e comportamentos da escola de seu tempo. Desse feito poderemos tirar muitas experiências e conclusões em relação ao comportamento, respeito e valorização dos mais velhos em outras épocas.

A multiplicidade de cultura permite, hoje, a mescla do erudito com o popular. Para tanto, é preciso ampliar os nossos olhares para fazer acontecer o diálogo.

Toda essa prática acenará para a importância do enquadramento dos letramentos críticos, como afirma Roxane Rojo e Eduardo Moura no livro Multiletramento na escola: “Essas práticas buscam interpretar os contextos sociais e culturais de circulação e produção desses enunciados. Essa proposta didática é de grande interesse e condiz com os princípios de pluralidade cultural e de diversidade de linguagens envolvidos no conceito de multiletramento”.

3.2. Estratégias para promover a motivação e a adesão dos alunos ao projeto

Num primeiro momento apresentar aos alunos a variedade de textos referentes ao gênero literário: diário, relato histórico, relato de experiência, relato de memória, texto biográfico e autobiográfico. Em seguida, buscar informações através de objetos antigos presentes na comunidade: fotos, roupas, objetos etc.; nesse momento, se realizará uma pequena exposição desses objetos e a história de cada um deles, para que educandos tenham oportunidade de perceber o envolvimento emocional dos donos dos objetos por meio de seus relatos.

No segundo momento apresentarei os elementos das narrativas: narrador, personagens, tempo psicológico e cronológico, espaço, enredo, clímax, desfecho etc., bem como a importância dos tempos verbais, em especial o pretérito, na construção do passado e o uso adequado da pontuação, que será observado no decorrer da escrita e reescrita dos alunos.

E, no terceiro momento, os alunos convidarão pessoas idosas da comunidade para um bate-papo, no qual conversarão a respeito dos tempos passados e da história da comunidade. Esse momento servirá para a busca de reminiscências afetivas do lugar para a construção do texto de memórias literárias.

A roda de conversa será feita por meio de perguntas a respeito de lazer, festas, meios de transporte utilizados, meios de comunicação, modos de vestir, a escola, a origem da comunidade, o morador mais velho, a primeira casa, as primeiras famílias... enfim, aspectos da comunidade. A partir daí os alunos produzirão os textos que serão analisados e preparados para a reescrita.

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O quarto momento será a ocasião de reunir os textos para a construção de um livro de história da comunidade de Riacho Doce, cujo título será o mesmo do projeto. Esse momento será realizado numa tarde de contação de histórias e o lançamento do livro contará com a presença dos autores e realizadores: idosos e alunos da Escola Santo Amaro. Haverá também uma exposição de fotos e objetos antigos, bem como das etapas de construção do livro.

3.3. Exemplos de textos que serão lidos e analisados para ampliação do conhecimento dos gêneros literários

•Coletânea de textos do gênero Memórias literárias da coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro – Se bem me lembro...

•Texto de ficção – Manuscrito encontrado numa garrafa, de Edgar Allan Poe.

•Texto poético – “Profundamente”, de Manuel Bandeira.

• Literatura de cordel – “A realidade da vida”, de Patativa do Assaré.

•Estórias da Casa Velha da Ponte – Cora Coralina.

3.4. Processo de produção dos textos de Memórias literárias

A produção escrita dos alunos seguirá a sequência didática apresentada em Se bem me lembro... Caderno do Professor – Orientação para produção de textos, da Coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

3.5. Eventos de letramento decorrentes do trabalho dentro e/ou fora do ambiente escolar

Para que os alunos possam estabelecer uma relação de comunicação com os idosos da comunidade será necessário a ida dos alunos à casa deles para convidá-los a comparecer à escola e para que haja uma aproximação entre eles, e num segundo momento o contato direto na roda de conversa em sala de aula. Outros eventos ocorrerão durante a produção dos textos dos alunos, que resultará na confecção de um livro para toda a comunidade escolar, que será a culminância. Neste evento todos os alunos apresentarão suas produções.

3.6. Avaliação

A avaliação faz parte de um processo contínuo e ocorre durante todo o proce-dimento de ensino-aprendizagem, por meio de instrumentos formais e estratégias de observação e interpretação qualitativa.

No transcorrer do projeto, serão observados o nível de apropriação do gênero e a sua produção escrita.

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4. Referências bibliográficasASSARÉ, P. “A realidade da vida”, in: Ispinho e fulô. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e

Desporto/Imprensa Oficial do Ceará, 1988.

BANDEIRA, M. “Profundamente”, in: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 17ª- ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

CENPEC. Se bem me lembro... Caderno do Professor – Orientação para produção de textos. 4ª- ed.

São Paulo: Cenpec, 2014. Coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

CORALINA, C. Estórias da casa velha da ponte. 13ª- ed. São Paulo: Editora Global, 2006.

FROCHTENGARTEN, F. “A memória oral no mundo contemporâneo”, in: Estudos Avançados,

v. 19, nº- 55, set./dez., 2005. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-

40142005000300027&script=sci_arttext.

KLEIMAN, A. “Trajetórias de acesso ao mundo da escrita: relevância das práticas não escolares de

letramento para o letramento escolar”, in: Perspectiva, v. 28, nº- 2, jul./dez., 2010, pp. 375-400.

Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.

2010v28n2p375>.

PARREIRAS, N. Confusão de línguas na literatura: o que o adulto escreve, a criança lê. Belo

Horizonte: RHJ, 2009.

POE, E. A. “Manuscrito encontrado numa garrafa”, in: O escaravelho de ouro e outras histórias.

São Paulo: L&PM Pocket, 2011.

PORTO, M. Mundo das ideias: um diálogo entre os gêneros textuais. Curitiba: Aymoré, 2009.

ROJO, R.; MOURA, E. (orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.