Melhorar a governance das terras pastoris - fao.org · em inglês) como uma voz credível dos...

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GUIAS TÉCNICOS SOBRE GOVERNANÇA DA POSSE DA TERRA Melhorar a governança das terras pastoris Implementação das Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, das Pescas e das Florestas no Contexto da Segurança Alimentar Nacional 6

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  • GUIAS TCNICOS SOBRE GOVERNANA

    DA POSSE DA TERRA

    Melhorar a governana das terras pastorisImplementao das Diretrizes Voluntrias sobre a Governana Responsvel da Posse da Terra, das Pescas e das Florestas no Contexto da Segurana Alimentar Nacional

    6

  • Os Guias Tcnicos da FAO sobre a Governana da Posse da Terra fazem parte de uma iniciativa da Organizao que tem por finalidade contribuir para o desenvolvimento de capacidades para melhorar a governana da posse, apoiando assim os pases na implementao das Diretrizes Voluntrias sobre a Governana Responsvel da Posse da Terra, das Pescas e das Florestas no Contexto da Segurana Alimentar Nacional. Os Guias Tcnicos da FAO sobre a Governana da Posse da Terra foram preparados por especialistas tcnicos e podem ser usados por uma ampla variedade de atores. Estas publicaes:

    traduzem os princpios das Diretrizes em mecanismos, processos e aes prticas;

    proporcionam exemplos de boas prticas, mostrando as iniciativas que foram bem sucedidas, onde foram aplicadas, as razes para o seu sucesso e o mtodo utilizado;

    fornecem ferramentas teis para as atividades de concepo de polticas, processos de reforma, elaborao de projetos de investimento e para a orientao das intervenes.

    Para mais informaes sobre as Diretrizes Voluntrias e as atividades da FAO relativas governana da posse, visite: www.fao.org/nr/tenure

  • O R G A N I Z A O D A S N A E S U N I D A S P A R A A A L I M E N T A O E A G R I C U L T U R ARoma, 2016

    G U I A T C N I C O S O B R E G O V E R N A N A D A P O S S E D A T E R R A N r. 6

    Melhorar a governana das terras pastorisImplementao das Diretrizes Voluntrias sobre a Governana Responsvel da Posse da Terra, das Pescas e das Florestas no Contexto da Segurana Alimentar Nacional

    Autores:

    Jonathan DaviesUnio Internacional para a Conservao da Natureza

    Pedro HerreraFundao Entretantos

    Jabier Ruiz-MirazoFundao Entretantos / Comisso para Gesto de Ecossistemas da UICN

    Jennifer Mohamed-KaterereComisso de Poltica Ambiental, Econmica e Social da UICN

    Ian HannamComisso Mundial de Direito Ambiental da UICN

    Emmanuel NuesiriComisso de Poltica Ambiental, Econmica e Social da UICN / Universidade de Potsdam, Faculdade de Economia e Cincias Sociais

    Superviso de:

    Caterina BatelloOrganizao das Naes Unidas para a Alimentao e Agricultura (FAO)

  • As designaes empregadas e a apresentao do material neste produto de informao no implicam a expresso de qualquer opinio por parte da Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura (FAO) sobre a situao jurdica ou estgio de desenvolvimento de qualquer pas, territrio, cidade ou rea ou de suas autoridades, ou sobre a delimitao de suas fronteiras. A meno de companhias especficas ou produtos de fabricantes, patenteados ou no, no implica que sejam endossados ou recomendados pela FAO em preferncia a outros de natureza similar no mencionados.

    As opinies aqui expressadas so dos autores e no representam necessariamente as opinies ou polticas da FAO.

    ISBN 978-92-5-709292-1

    FAO, 2016

    A FAO incentiva o uso, reproduo e divulgao do material contido neste produto de informao. Salvo indicao em contrrio, o material pode ser copiado, baixado e impresso para estudo, pesquisa e ensino, ou para uso em produtos e servios no comerciais, desde que se indique a FAO como fonte e detentora dos direitos autorais e no implique o endosso pela FAO das opinies, produtos ou servios dos usurios.

    Todos os pedidos de traduo e direitos de adaptao, bem como revenda e outros direitos de uso comercial, devem ser feitos atravs de www.fao.org/contact-us/licence-request ou endereados a [email protected].

    Os produtos de informao da FAO esto disponveis no site www.fao.org/publications e podem ser adquiridos atravs de [email protected].

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  • iii

    ndice

    Prefcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . v

    Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . vii

    Acrnimos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . viii

    Introduo 1

    Porqu um guia sobre a governana da terra pastoril? . . . . . . . . . . . . . . . 3

    Como este guia tcnico sobre terras pastoris se relaciona com os outros guias . . . . . . 4

    Quadro de direitos humanos, resilincia e bem-estar humano . . . . . . . . . . . . 5

    Seco 1 Questes e desafios relativos garantia da governana da posse pastoril 9

    Uma viso geral da pastorcia como um sistema de uso da terra. . . . . . . . . . . . 11

    Caratersticas dos sistemas pastoris que determinam mecanismos de governana . . . . 18

    Benefcios da governana eficaz e da posse segura. . . . . . . . . . . . . . . . . 26

    Riscos associados ao fortalecimento da governana da posse pastoril . . . . . . . . . 29

    A estrada sinuosa para a atribuio de direitos terra apropriados s comunidades pastoris . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

    Desafios prioritrios para a posse pastoril . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

    Seco 2 Melhoria da governana e fortalecimento das capacidades humanas 37

    rea de ao 1: Desenvolvimento de processos responsveis de tomada de decises e de representao eficaz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

    rea de ao 2: Garantia de participao inclusiva, equitativa e transparente nas consultas e negociaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

    rea de ao 3: Reconhecimento do conhecimento local e indgena como garantia da diversidade cultural e ecolgica para a resilincia . . . . . . . . . . . . . . . . 59

    rea de ao 4: Reconhecimento dos sistemas consuetudinrios e reforo das sinergias com os sistemas legais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

    rea de ao 5: Fortalecimento das capacidades das organizaes locais e do espao institucional em que operam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

    rea de ao 6: Preveno e gesto de conflitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

    rea de ao 7: Fomento da aprendizagem colaborativa . . . . . . . . . . . . . . 83

  • iv MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    Seco 3 Desenvolvimento de polticas e de quadros jurdico para a pastorcia 89

    Princpios internacionais inspiradores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

    Desenvolvimento de polticas sobre terra pastoril . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

    Preparao de legislao nacional relevante para a pastorcia . . . . . . . . . . . 104

    Concluses 125

    Bibliografia 129

    Elenco das figuras

    Figura 1 Panormica do guia tcnico sobre terras pastoris . . . . . . . . . . . . 8

    Figura 2 reas de Pastagem do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

    Figura 3 Hierarquia de direitos incorporados numa sociedade pastoril Maasai no Qunia/Tanznia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

    Figura 4 Definio das caratersticas da gesto e governana pastoris . . . . . . . . 24

    Figura 5 Ligao dos desafios subjacentes aos problemas de governana comuns . . . 35

    Figura 6 Desafios subjacentes posse pastoril e reas de ao propostas. . . . . . . 41

    Figura 7 Formas de representao na tomada de decises . . . . . . . . . . . . 46

    Figura 8 Elementos-chave da prestao de contas . . . . . . . . . . . . . . . 48

    Figura 9 Elementos-chave de uma participao plena, significativa e eficaz . . . . . . 54

    Figura 10 Processos diferenciados e avaliao de resultados, com exemplos . . . . . . 58

    Figura 11 Ligao entre o conhecimento cientfico e o conhecimento local na tomada de decises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

    Figura 12 Elementos-chave da confiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

    Figura 13 Abordagem conceptual para a compreenso dos conflitos . . . . . . . . . 78

    Figura 14 Contribuies da aprendizagem social para uma governana responsvel da posse que reconhea a pastorcia . . . . . . . . . . . . 84

    Figura 15 Desafios subjacentes e respostas polticas e jurdicas . . . . . . . . . . . 92

    Elenco das tabelas

    Tabela 1 Desafios adicionais para a garantia da posse da terra . . . . . . . . . . . 36

    Tabela 2 Pontos fortes e limitaes dos diversos mecanismos de gesto de conflitos . . 80

  • v

    Prefcio

    Em 11 de maio de 2012, o Comit de Segurana Alimentar Mundial aprovou as Diretrizes Voluntrias sobre a Governana Responsvel da Posse da Terra, das Pescas e das Florestas no Contexto da Segurana Alimentar Nacional (DVGT; doravante tambm designadas como as Diretrizes). As Diretrizes tm por objetivo contribuir para os esforos mundiais e nacionais de erradicao da fome e da pobreza, mediante a promoo de direitos de posse seguros e do acesso equitativo terra e aos recursos pesqueiros e florestais. O guia tcnico "Melhorar a Governana das Terras Pastoris" fornece conselhos e exemplos sobre como fortalecer a governana da posse num contexto pastoril, reconhecendo a complexidade dos sistemas de posse pastoril e a grande diversidade de sociedades pastoris em todo o mundo. Este guia complementa os guias tcnicos Governana dos direitos de posse s terras comunais; Governana da terra em benefcio das mulheres e dos homens; Melhorar a governana da posse florestal; A governana responsvel da posse da terra e o Direito; e Respeito do consentimento livre, prvio e informado.1

    O guia tcnico Melhorar a Governana das Terras Pastoris assenta num conjunto de iniciativas e estudos dos ltimos anos que tm destacado a governana pastoril e a posse da terra, revelando desafios inerentes enfrentados pelos pastores, deficincias dos governos em garantir a posse pastoril, e exemplos emergentes de sucesso e progresso em todo o mundo. Entre estes encontra-se a Iniciativa Mundial para a Pastorcia Sustentvel (WISP, acrnimo em ingls), uma parceria global que rene e analisa casos de estudo atravs uma extensa rede. Duas importantes anlises globais foram particularmente influentes na criao deste guia tcnico: The land we graze2 e Governance of rangelands - collective action for sustainable pastoralism3. Alm disso, o surgimento da Aliana Mundial de Povos Indgenas Mveis (WAMIP, acrnimo em ingls) como uma voz credvel dos pastores na esfera internacional tem sido inestimvel para assegurar um elevado grau de consulta e de responsabilidade no desenvolvimento de estudos como este.

    Refletindo estas iniciativas, o guia tcnico Melhorar a Governana das Terras Pastoris foi desenvolvido atravs de um processo consultivo. da autoria da Unio Internacional para a Conservao da Natureza (UICN) e da WISP em colaborao com a Comisso sobre Poltica Ambiental, Econmica e Social (CEESP, acrnimo em ingls) e a Comisso Mundial de Direito Ambiental (WCEL, acrnimo em ingls). Um conselho

    1 Estes guias tcnicos esto disponveis em ingls em http://www.fao.org/publications/en/ respetivamente com os seguintes ttulos: "Governing tenure rights to commons, Governing land for women and men, Improving governance of forest tenure, Responsible governance of tenure and the law, e Respecting free, prior and informed consent".

    2 https://cmsdata.iucn.org/downloads/land_rights_publication_english_web.pdf3 https://portals.iucn.org/library/node/44904

  • vi MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    tcnico, composto por especialistas no domnio da pastorcia, incluindo representantes dos pastores identificados atravs da WAMIP, supervisionou o desenvolvimento deste guia, o qual foi posteriormente revisto por voluntrios identificados atravs da rede da WISP e por funcionrios da FAO.

    O guia tcnico Melhorar a Governana das Terras Pastoris foi concebido para diversos pblicos, incluindo atores governamentais e no-governamentais. Ainda que a maioria dos leitores tenha um conhecimento bsico sobre pastorcia, muitos no estaro familiarizados com a grande diversidade de sistemas e culturas pastoris em todo o mundo. O guia dirige-se queles que reconhecem a importncia de garantir a posse da terra pastoril e que esto procura de orientaes prticas para atuar. Portanto, ainda que este guia no seja um documento de sensibilizao, fornece na seco 1 argumentos para a garantia da posse pastoril que podem ser utilizados por diferentes atores para fortalecer as suas posies nesse sentido. Embora as Diretrizes forneam conselhos prticos que podem ser operacionalizados, ser necessrio trabalho adicional para traduzir o presente documento em formatos locais mais acessveis para as comunidades pastoris. Tambm se reconhece que algumas das recomendaes deste guia sero inalcanveis para algumas das comunidades pastoris mais marginalizadas. Isto inevitvel num guia concebido para ser aplicvel em todos os contextos. Espera-se que, ao apresentar aos leitores um conjunto de solues, o guia possa contribuir para o desenvolvimento de aspiraes mais ambiciosas para o fortalecimento da governana da posse pastoril em todo o mundo.

  • vii

    Agradecimentos

    O guia tcnico Melhorar a Governana das Terras Pastoris foi preparado por uma equipe liderada por Jonathan Davies da Unio Internacional para a Conservao da Natureza (UICN), com o apoio de Pedro Herrera (Fundao Entretantos), Jabier Ruiz-Mirazo (Comisso para Gesto de Ecossistemas da UICN), Jennifer Mohamed-Katerere (Comisso de Poltica Ambiental, Econmica e Social da UICN), Ian Hannam (Comisso Mundial de Direito Ambiental da UICN) e Emmanuel Nuesiri (Universidade de Potsdam, Faculdade de Economia e Cincias Sociais). O trabalho foi desenvolvido sob a liderana e superviso de Caterina Batello da Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e Agricultura (FAO), coordenado por Vivian Onyango (FAO) e apoiado por Razingrim Ouedraogo e Michelle Kimeu da UICN.O guia tcnico foi elaborado atravs de um processo consultivo supervisionado por um conselho tcnico composto pelos seguintes especialistas em pastorcia e direitos fundirios: Alejo Zarzycki, Caterina Batello, Charlotte Beckh, Fiona Flintan, Francesca Romano, Gonzalo Oviedo, Harold Liversage, Jean Maurice Durand, Jeremy Swift, Joseph Ole Simel, Katherine Homewood, Khalid Khawaldeh, Lalji Satya, Luca Miggiano, Maryam Niamir Fuller, Monica Lomena-Gelis, Munkhbolor Gungaa, Razingrim Ouedraogo e Vivian Onyango. O conselho tcnico realizou um seminrio de dois dias na sede da FAO em Roma, a 24 e 25 de maro de 2015, para refletir sobre a primeira verso do guia tcnico, fazer a sua reviso e propor alteraes para o trabalho a ser desenvolvido em seguida. Alm dos autores e dos membros do conselho tcnico, tambm participaram no seminrio os seguintes indivduos: Francesca Distefano, Fritjof Boerstler, Irene Hoffman, Pablo Manzano, Paulo Groppo, Vincent Briac-Warnon e o falecido Robinson Djeukam Njinga.

    O rascunho do guia tcnico foi significativamente melhorado graas s revises dos seguintes especialistas: Aderinoye Sidikat, Adoulaye Diaoure, Adrian Cullis, Babo Fadlalla,Birgit Muller, David Palmer, Eugenio Sartoretto, Francesca Distefano, Francisco Carranza, Frank Escobar, Fred Kafeero, Getachew Gebru, Gillian Vogt, Gregorio Velasco, Irene Hoffman, Karen Greenhough, Margret Vidar, Maryam Rahmanian, Paolo Groppo, Phillip Kisoyan, Piers Simpkin e Robert Allport. Alm dos funcionrios da FAO, foram identificados revisores atravs da rede da Iniciativa Mundial para a Pastorcia Sustentvel (WISP, acrnimo em ingls). O guia foi editado por Shannon Russell e desenhado por Luca Feliziani. A FAO deseja expressar o seu apreo ao Governo da Alemanha que financiou a produo deste guia, e UICN em conjunto com a WISP pela sua colaborao na sua elaborao.

  • viii MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    Acrnimos

    CBD Conveno sobre a Diversidade Biolgica

    CEDEAO Comunidade Econmica dos Estados da frica Ocidental

    FAO Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e Agricultura

    FAR Direitos de Acesso Difusos

    CLPI Consentimento Livre, Prvio e Informado

    ICCA Territrios e reas Conservadas por Povos Indgenas e Comunidades Locais

    FIDA Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrcola

    UICN Unio Internacional para a Conservao da Natureza

    ONG Organizao No-Governamental

    OSC Organizao da Sociedade Civil

    PPP Princpio do Poluidor-Pagador

    PUG Grupo de Utilizadores das Pastagens (Monglia)

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    UNDRIP Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas

    PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente

    DVGT Diretrizes Voluntrias sobre a Governana Responsvel da Posse da Terra, das Pescas e das Florestas no Contexto da Segurana Alimentar Nacional

    WAMIP Aliana Mundial de Povos Indgenas Mveis

    WISP Iniciativa Mundial para a Pastorcia Sustentvel

  • Introduo

  • INTRODUO 3

    Introduo

    As Diretrizes Voluntrias sobre a Governana Responsvel da Posse da Terra, das Pescas e das Florestas no Contexto da Segurana Alimentar Nacional (DVGT; doravante tambm designadas como as Diretrizes) mencionam explicitamente os pastores como utilizadores ltimos das Diretrizes e como alvos de capacitao. Na seco Direitos e responsabilidades relacionadas com a posse (pargrafo 4.8), as Diretrizes assinalam que os Estados devem respeitar e proteger os direitos civis e polticos dos ... pastores ... e devem cumprir as suas obrigaes em matria de direitos humanos quando lidam com indivduos e associaes que agem em defesa da terra e dos recursos pesqueiros e florestais.

    Os pastores so identificados em conjunto com os grupos historicamente desfavorecidos, os grupos marginalizados ... os povos indgenas e outros grupos relativamente s reformas de terras (pargrafo 15.5). Isso sublinha um dos desafios fundamentais para o fortalecimento da posse de muitas terras pastoris: a histrica e muitas vezes atual marginalizao dos pastores do discurso nacional. As Diretrizes tambm fazem meno explcita dos pastores e das suas terras relativamente s questes de posse transfronteirias (pargrafo 22.2). Isto ilustrativo dos muitos desafios particulares que os pastores enfrentam para garantir a governana da posse da terra; desafios que so determinados pela ecologia das reas de pastagem pastoris. As sociedades pastoris esto bem adaptadas a estes desafios e desenvolveram costumes e regras para regular a gesto e uso da terra pastoril que esto profundamente enraizados na cultura pastoril. Ainda que alguns governos vejam a fora da governana consuetudinria como um obstculo ao desenvolvimento, este guia tcnico vai demonstrar que, na realidade, ela a pedra angular no s para garantir a posse pastoril, mas tambm para a resilincia das sociedades pastoris e para o desenvolvimento sustentvel.

    Porqu um guia sobre a governana da terra pastoril?

    A pastorcia foi definida como a produo pecuria extensiva nas reas de pastagem. Esta ampla descrio engloba muitas prticas de pastoreio e diferentes sistemas produtivos em todo o mundo. No entanto, foi claramente demonstrado que o pastoreio planeado uma prtica comum vital para a gesto sustentvel das pastagens. A gesto dos movimentos do gado essencial para a pecuria sustentvel e representa o maior desafio para garantir a posse pastoril.

    Este guia tcnico apresenta detalhadamente os argumentos em defesa da mobilidade do gado. No entanto, os movimentos de gado podem ocorrer em escalas muito diferentes, desde o nomadismo de longo alcance e a transumncia sazonal de diferentes distncias, at movimentos de gado relativamente localizados e rotaes de pastagens. Historicamente, a mobilidade dos pastores tem sido muitas vezes utilizada como justificao para no garantir os seus direitos sobre a terra; segundo este argumento, uma vez que os pastores esto em constante deambulao no

  • 4 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    podem reivindicar nenhum pedao de terra em particular. Este argumento foi utilizado em locais onde os pastores tm seguido as mesmas rotas de transumncia durante sculos e onde existe uma clara evidncia histrica do seu uso e gesto. Ainda assim, mesmo nas comunidades pastoris mais nmadas, os movimentos do gado dependem de infraestruturas naturais e humanas que foram protegidas e conservadas pelos pastores desde tempos imemoriais.

    A mobilidade uma resposta incerteza e heterogeneidade dos recursos das reas de pastagem; as prticas de posse comunal da terra outra. Em conjunto, ambas criam complexos sistemas de posse consuetudinria da terra que requerem respostas sofisticadas dos governos e de outros agentes envolvidos para a sua preservao. As terras pastoris so em grande parte constitudas por terrenos baldios, mas tambm podem incluir terras ou outros recursos (por exemplo, rvores) que so de propriedade privada, ou que esto sujeitos a diferentes direitos em funo da poca do ano. Os pastores podem ter reivindicaes histricas sobre terras que se encontram a grandes distncias ou que eles s usam em determinados anos. Alguns espaos de recursos que esto geograficamente distantes, como salinas ou bosques, podem ser absolutamente essenciais para uma produo animal eficaz. Muitas vezes, esses espaos so usados por no-pastores ou procurados por forasteiros para explorao comercial e podem ser particularmente difcieis de proteger.

    Portanto, este guia tcnico necessrio para fornecer solues em vista da promoo da governana e posse pastoril sem comprometer a inerente e necessria complexidade dos sistemas consuetudinrios. Tambm disponibiliza solues num contexto em rpida transformao, em que as prticas tradicionais e os padres essenciais de mobilidade do gado esto a mudar.

    Como este guia tcnico sobre terras pastoris se relaciona com os outros guias

    O guia tcnico "Melhorar a Governana das Terras Pastoris" trata uma srie de questes que so abordadas por outros guias tcnicos desta srie, nomeadamente o prximo guia sobre governana dos direitos de posse dos comuns e os guias Governana da terra em benefcio das mulheres e dos homens4, A governana responsvel da posse da terra e o Direito, e Respeito do consentimento livre, prvio e informado5. Estes guias fornecem importantes conselhos e exemplos acerca do fortalecimento da governana e da posse pastoril e so coerentes com este guia. No entanto, ainda que estes guias sejam complementares, o guia tcnico Melhorar a Governana das Terras Pastoris aborda desafios especficos da posse pastoril que so nicos para a pastorcia e toma em considerao como estas diferentes facetas da posse pastoril (questes relativas aos terrenos baldios; consentimento livre, prvio e informado (CLPI); questes de gnero, etc.) podem ser articuladas numa abordagem coerente em vista da garantia das terras pastoris.

    4 http://www.fao.org/docrep/017/i3114e/i3114e.pdf5 http://www.fao.org/3/a-i3496e.pdf

  • INTRODUO 5

    O guia tcnico "Melhorar a Governana das Terras Pastoris procura abarcar todo o conjunto de sistemas de posse das reas de pastagem pastoris em diferentes regies do mundo, e foi desenvolvido reconhecendo o facto de que a importncia econmica e ecolgica da pastorcia comprometida pela fraqueza da governana da posse. Foi concebido para ser relevante para uma ampla gama de pastores, tanto de pases industrializados como de pases em desenvolvimento, incluindo aqueles que se identificam ou no como povos indgenas. Para alm da posse comunal este guia reconhece que a posse individual tambm pode ser um componente importante dos sistemas pastoris. O desafio da escala discutido, incluindo a governana da posse atravs das fronteiras internacionais. Alm disso, este guia tcnico toma em considerao a posse sobre recursos que no esto necessariamente abrangidas pelos direitos de terra, nomeadamente a gua, as salinas e as rvores, e como esses direitos interagem com os direitos sobre a terra.

    Governana dos direitos de posse dos comunsOs comuns so recursos naturais como terra, recursos pesqueiros e florestais que uma comunidade, grupo de comuni-dades ou grupo de pessoas possui, administra e/ou usa coletivamente em apoio da sua segurana alimentar e para sus-tentar os seus meios de subsistncia e bem-estar. Os direitos de posse coletivos so cruciais para milhes de pessoas em todo o mundo. As pessoas pobres, marginalizadas, vulnerveis e sem-terra so as mais dependentes dos comuns, uma vez que estes representam uma fonte de rendimentos, bem como uma rede de segurana em tempos de dificuldade. Os comuns tm um importante valor cultural, social e espiritual para muitas comunidades em todo o mundo e fornecem servios ambientais essenciais a nvel local e global. O reconhecimento dos direitos de posse coletivos dos comuns , portanto, um elemento fulcral para alcanar o desenvolvimento sustentvel e para a realizao do direito alimentao. A governana dos direitos de posse dos comuns apoia a aplicao prtica das Diretrizes, fornecendo um entendimento sobre os comuns, argumentos para garantir a posse coletiva e orientaes para a governana responsvel dos comuns. Tambm fornece orientao estratgica relevante para os direitos de posse coletivos dos comuns relativamente a diversos recursos naturais e regies. As orientaes estratgicas so ilustradas com casos de vrios pases em todo o mundo que servem como fonte de inspirao. As orientaes estratgicas so complementadas por orientaes me-todolgicas para o processo de adaptao local.O guia tcnico sobre governana dos direitos de posse dos comuns complementa este guia tcnico sobre terras pasto-ris. Apesar das terras pastoris inclurem todos os tipos de posse, na maioria dos pases os comuns constituem o sistema de posse dominante. No entanto, as estratgias especficas de gesto da pastorcia, que implicam utilizao em grande escala, ocupao sazonal e mobilidade, acrescentam nveis de complexidade para a garantia dos comuns pastoris.

    Quadro de direitos humanos, resilincia e bem-estar humano

    As Diretrizes visam melhorar a governana da posse atravs de trs objetivos inter-relacionados e mutuamente dependentes: (1) alcanar a segurana alimentar e a realizao progressiva do direito alimentao adequada; (2) melhoria de aspetos sociais e do desenvolvimento, nomeadamente a erradicao da pobreza, meios de subsistncia sustentveis, a estabilidade social, a segurana em matria de habitao, o desenvolvimento rural; e (3) assegurar a proteo do meio ambiente e o desenvolvimento social e econmico sustentvel (pargrafo 1.1). Para operacionalizar as Diretrizes este guia tcnico adota uma abordagem de panorama geral que considera a diversidade das relaes e das condies econmicas, sociais e polticas

  • 6 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    que afetam a realizao dos objetivos no seio das comunidades pastoris. Com base nos valores fundamentais e nas prioridades e estratgias chave das Diretrizes, este guia tcnico identifica trs aspetos essenciais que devem apoiar a operacionalizao:

    1. Um conjunto abrangente de compromissos de direitos humanos;2. A interdependncia entre o bem-estar humano e ambiental;3. O fortalecimento das capacidades humanas (por exemplo, o bem-estar)

    para permitir s comunidades pastoris reivindicar os seus direitos, utilizar as oportunidades disponveis na esfera pblica e realizar contribuies plenas no domnio da economia e da ecologia.

    O conjunto abrangente de compromissos de direitos humanos

    Entre os principais elementos dos compromissos de direitos humanos mencionados nas Diretrizes incluem-se:

    1. O reconhecimento das obrigaes existentes ao abrigo do direito internacional, nomeadamente a Declarao Universal dos Direitos Humanos e outros instrumentos internacionais de direitos humanos;

    2. Uma especial nfase sobre a realizao progressiva do direito alimentao;3. Um conjunto de princpios gerais para orientar as prioridades e aes (incluindo

    as estratgias);4. Um conjunto de princpios de implementao para garantir que essas

    abordagens so realizadas e implementadas de forma consistente com os direitos humanos.

    Porque isto importante?

    Estes compromissos reconhecem que uma governana responsvel da posse deve ir alm de uma abordagem no prejudicar e incluir direitos positivos e correspondentes responsabilidades e obrigaes tanto para os atores estatais como no-estatais. Em geral, os Estados tm as seguintes obrigaes:

    Respeitar os direitos, abstendo-se de interferir com o exerccio ou prossecuo dos direitos.

    Proteger os direitos, assegurando que terceiros - incluindo as empresas e as organizaes no-governamentais (ONG) - no interferem com o exerccio ou prossecuo dos direitos.

    Realizar os direitos, criando ambientes favorveis para a sua realizao. Os mecanismos de governana, portanto, necessitam de estar em conformidade

    com os direitos humanos. A lei deve ser coerente com esses direitos e a experincia vivida pelas pessoas deve respeitar essas disposies, ou devem ser tomadas medidas adicionais para realizar esses direitos. Isto exige o entendimento e a resposta aos mltiplos e diversos fatores que afetam a aplicao da lei e das prticas de governana, incluindo, por exemplo, o estatuto social (educao, etnia, gnero, etc.) e o acesso que as comunidades e os indivduos tm aos recursos

  • INTRODUO 7

    de apoio vida. Para as comunidades pastoris isto inclui a diferenciao social dentro dos grupos e das famlias, tal como os diferentes nveis de acesso que as mulheres tm aos recursos pecurios e os seus diferentes papis relativamente ao uso e gesto dos recursos naturais. Esta diversidade de experincias demonstra a importncia da igualdade de gnero. A resposta a esta realidade exige intervenes consistentes com as obrigaes existentes de direitos humanos, como exposto na seco 2. Estas realidades sociais e econmicas so discutidas mais detalhadamente na seco 1.

    A questo das capacidades das comunidades pastoris

    O conjunto de capacidades que as pessoas tm afeta a sua capacidade de viver vidas que elas valorizam (Sen, 1999); ou seja, de estar em posio de fazer escolhas de forma livre sobre o tipo de vida a que aspiram. O fortalecimento da capacidade dos pastores e de outros atores reconhecido como um objetivo especfico no pargrafo 1.2.4 das Diretrizes. O fortalecimento das capacidades das comunidades pastoris para alcanar os objetivos sociais e de desenvolvimento das Diretrizes incluindo a erradicao da pobreza, meios de subsistncia sustentveis, a estabilidade social, a auto-determinao, o desenvolvimento rural, bem como a sustentabilidade ambiental dos recursos dos quais dependem um foco central deste guia tcnico. importante assinalar que estas aspiraes contam com um forte compromisso governamental, tal como refletido nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentvel.

    Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentvel e a governana da posse pastoril6

    Muitos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentvel so relevantes para o fortalecimento da governana da posse nas terras pastoris, em particular os seguintes:Objetivo 1: Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares.Objetivo 2: Acabar com a fome, alcanar a segurana alimentar e melhoria da nutrio e pro-mover a agricultura sustentvel.Objetivo 3: Assegurar uma vida saudvel e promover o bem-estar para todos, em todas as idades.Objetivo 5: Alcanar a igualdade de gnero e capacitar todas as mulheres e meninas.Objetivo 6: Assegurar a disponibilidade e gesto sustentvel da gua e saneamento para todos.Objetivo 8: Promover o crescimento econmico sustentado, inclusivo e sustentvel, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos.Objetivo 13: Tomar medidas urgentes para combater as alteraes climticas e os seus impactos.Objetivo 15: Proteger, recuperar e promover o uso sustentvel dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentvel as florestas, combater a desertificao, deter e reverter a degradao da terra e deter a perda de biodiversidade.Objetivo 16: Promover sociedades pacficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentvel, proporcionar o acesso justia para todos e construir instituies eficazes, responsveis e inclu-sivas em todos os nveis.

    6 Ver https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/21252030%20Agenda%20for%20Sustainable%20Development%20web.pdf

    https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/21252030%20Agenda%20for%20Sustainable%20Development%20web.pdfhttps://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/21252030%20Agenda%20for%20Sustainable%20Development%20web.pdf

  • 8 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    A participao dos pastores na definio de solues importante para garantir que as estratgias adotadas melhoram o seu bem-estar. As respostas do Estado s vulnerabilidades sociais, tais como agregados familiares isolados, desprovidos de servios educativos e de assistncia sanitria, muitas vezes ocorrem atravs de intervenes de desenvolvimento externas para fortalecer as capacidades de adaptao das pessoas e instituies. No entanto, as respostas externas tambm podem aumentar a vulnerabilidade dos pastores; por exemplo, criando novos tipos de competio em relao s pastagens e aos seus recursos fundamentais. So necessrias abordagens de gesto flexveis e adaptveis com base na comunidade para assegurar que as escolhas locais so livremente exercidas. Por conseguinte, este guia identifica estratgias de implementao que contribuem para o fortalecimento dessas capacidades (Herrera, Davies e Manzano Baena, 2014; Reid, Fernndez-Gimnez e Galvin, 2014).

    Seco 1 Questes e desafios relativos garantia da governana da posse pastoril Enquadramento do contexto singular da governana das terras pastoris Principais desafios de governana a superar

    Seco 2 Melhoria da governana e fortalecimento das capacidades humanas Respostas transversais, normalmente combinadas, para abordar os principais

    desafios de governana delineados na seco 1

    Seco 3 Desenvolvimento de polticas e de quadros legais para a pastorcia Opes e princpios legais para fortalecer o apoio governamental governana da

    posse da terra pastoril

    FIGURA 1 Panormica

    do guia tcnico sobre terras

    pastoris

  • 1Questes e desafios relativos garantia

    da governana da posse pastoril

    SECO

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 11

    Seco 1: Questes e desafios relativos garantia da governana da posse pastoril

    Uma viso geral da pastorcia como um sistema de uso da terra

    A pastorcia foi definida como a produo pecuria extensiva nas reas de pastagem e praticada em todo o mundo como uma resposta a desafios ecolgicos particulares. As diferentes formas como as vrias sociedades tm respondido a esses desafios tm muito em comum, e igualmente criam alguns desafios comuns em matria de fortalecimento da governana da posse. A pastorcia um sistema de gesto da produo animal e da terra em vista do benefcio econmico e da sustentabilidade ecolgica, constituindo uma ferramenta particularmente importante a gesto da mobilidade dos rebanhos, frequentemente ao longo de grandes distncias. Os pastores so as pessoas que se encontram por trs desse sistema, gerindo e protegendo a terra, e lucrando com a criao de gado. A sua cultura inseparvel das suas estratgias de pastoreio e fundamental na gesto dos seus recursos naturais.

    A pastorcia , em grande medida, uma adaptao variabilidade ecolgica e climtica, embora os pastores tambm enfrentem outras fontes de imprevisibilidade, particularmente em virtude dos mercados e dos contextos polticos. O clima das reas de pastagem observa uma forte variabilidade sazonal (por exemplo, estaes secas ou frio extremo) que limita o acesso ou a disponibilidade de recursos, mas tambm uma extrema variabilidade interanual. Em muitas zonas ridas, por exemplo, a precipitao pode variar bem mais do que 50 por cento em relao mdia dos anos normais, e em anos extremos pode ser vrias vezes superior mdia ou completamente inexistente. Os recursos naturais refletem esta variabilidade e os pastores gerem uma matriz de recursos de diferente valor, acessibilidade e uso produtivo. Isso pode incluir, por exemplo, diversas reas de pastagem, zonas hmidas e osis, zonas ribeirinhas, bosques e reas florestais, salinas e muitas outras. Os pastores utilizam uma grande variedade de instrumentos de mercado e de gesto para contrastar a variabilidade na sua atividade, procurando controlar esses diversos fatores.

    Existem cerca de 500 milhes de pastores em todo o mundo, a maioria deles em pases em desenvolvimento onde enfrentam muitos desafios de pobreza e desenvolvimento (McGahey et al., 2014). No entanto, os pastores tambm esto presentes na maioria dos pases industrializados: Austrlia, China, Europa, Estados Unidos da Amrica e outros pases. Os pastores normalmente ganham a vida atravs de um conjunto complexo de atividades, criando gado no s para uso domstico (laticnios, fibra, estrume, carne, peles) mas tambm para o mercado, como um meio de obteno de bens que eles mesmos no podem cultivar ou fabricar. Para criar o gado os pastores utilizam vrias fontes de alimentao, incluindo pastos, colheitas, lenhas, pousios, restolhos, prados, frutas, florestas, rvores, charnecas e at mesmo bermas das estradas e das ruas das cidades. Isto exige direitos de acesso adequados e muitas vezes coloca desafios nicos

  • 12 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    para a defesa desses direitos. Alm disso, a pastorcia depende de um duplo imperativo: o uso extensivo da terra e a liberdade de movimentos. Este duplo imperativo determina a conceo pastoril dos direitos fundirios. Atravs do seu modo de vida, os pastores tm acesso a gua e a pastagens dispersas, ecologicamente especializadas e sazonalmente variadas, que proporcionam uma margem de segurana contra o crescimento imprevisvel da vegetao, vetores de doenas sazonais e outros desafios.

    A singularidade das terras pastoris

    A terra ocupada pelos pastores muitas vezes denominada de pastagens. Os ecossistemas de pastagem desenvolveram-se amplamente em locais de clima extremo e alta incerteza climtica, e constituem ambientes exigentes e imprevisveis nos quais a natureza e a sociedade evoluram, levando a uma singular diversidade biolgica e cultural. Os ecossistemas de pastagem fornecem muitos bens e servios para a humanidade, incluindo o fornecimento de alimentos e fibras, a regulao do abastecimento de gua e o sequestro de carbono.

    As reas de pastagem so por vezes definidas em termos ecolgicos como as terras nas quais a vegetao nativa (clmax ou sub-clmax) predominantemente composta por ervas, plantas gramneas e no gramneas e arbustos sujeitos a pastoreio ou que tm potencial de pastoreio, e que so utilizadas como um ecossistema natural para o pastoreio de gado e pelos animais selvagens (Allen et al., 2011). As reas de pastagem podem incluir espaos naturais como pradarias ou estepes, savanas, pntanos, terras ridas e desertos, tundra e certos matagais como chaparrais ou maquis mediterrnicos. Frequentemente as pastagens encontram-se em zonas ridas e montanhas, onde o crescimento das plantas limitado pela baixa precipitao, frio extremo, elevada altitude, encostas ngremes ou outros fatores. A Figura 2 ilustra a distribuio mundial das pastagens de acordo com a Society for Range Management, com base nas seguintes categorias de terra: deserto; pradaria; matagal; bosques e savana; e tundra. Contudo, as pastagens tambm so paisagens sociais nas quais as culturas indgenas influenciam os ecossistemas e vice-versa. Tal como indicado na Figura 2, as pastagens representam cerca de metade de toda a terra (51 por cento) e isso permite uma estimativa da distribuio e possvel extenso das terras pastoris.

    REAS DE PASTAGEM

    DesertoPradariaMatagalBosques e SavanaTundra

    OUTRAS REASFlorestaLagosRochas e Gelo

    FIGURA 2reas de

    Pastagem do mundo

    S O C I E T Y F O R R A N G E M A N A G E M E N T

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 13

    Os benefcios para a humanidade decorrentes das pastagens mundiais esto sob ameaa em muitos pases devido degradao da terra. A degradao das pastagens uma das principais preocupaes a nvel mundial, embora os processos de degradao de terra nas pastagens sejam mal compreendidos. Esta falta de compreenso contribuiu para intervenes e polticas pouco informadas que muitas vezes agravaram a degradao. As reas de pastagem esto sujeitas converso em terras de cultivo, sobre-explorao pecuria, ao excesso de extrao de biomassa florestal e ao aumento da aridez devido s alteraes climticas e extrao de gua. Estes tipos da degradao so impulsionados pelo crescimento da populao, crescente procura por alimentos e outros produtos, alteraes na gesto e nas tecnologias, e por uma srie de polticas e fatores institucionais. Os fracassos das polticas podem, por sua vez, ser atribudos combinao de uma fraca governana com fragilidades dos direitos sobre os recursos, falta de capacidade de influncia das partes interessadas nas pastagens, e informaes e conhecimentos insuficientes ou imprecisos (Mortimore et al., 2009; Davies et al., 2015).

    Os fracassos das polticas tambm podem ser atribudos a mal-entendidos no domnio da pastorcia, ou mesmo deliberada representao da pastorcia como uma prtica retrgrada. A mobilidade dos rebanhos crucial para a gesto sustentvel das pastagens, ainda que a mobilidade seja frequentemente considerada arcaica. Prticas flexveis e oportunas de acomodao dos rebanhos so uma ferramenta fundamental de gesto de risco, embora tambm sejam etiquetadas como desatualizadas e mesmo irracionais. Embora pouco frequente, a utilizao de refgios durante os anos difceis essencial para a sobrevivncia, ainda que os pastores sejam descritos como anarquistas por exigirem o acesso a estes. Muitas pastagens dependem do fogo para a sua conservao, embora os pastores sejam criticados quando usam o fogo como uma ferramenta de gesto para renovar as pastagens e para combater as pragas (UICN, 2011a).

    A experincia mostra que o valor da pastorcia e das reas de pastagem na maioria dos pases muito subestimado, e que a converso dos recursos das pastagens para outros usos pode acarretar mais custos do que benefcios quando ponderado no conjunto de todo o sistema (Davies e Hatfield, 2007). No entanto, apesar das evidncias de que a converso de pastagens em terras de cultivo uma das mais significativas causas de degradao do solo, a esmagadora maioria dos pases continua a focar as suas aes na explorao agrcola em detrimento da sade das pastagens. Contudo, tambm se assinala que em muitos pases h poucos indcios de degradao das pastagens e que a anlise da degradao, geralmente atribuda ao sobrepastoreio, pode esconder uma motivao poltica e ser usada para justificar o confisco de terras pastoris. Ao mesmo tempo, tem-se observado que, quando a mobilidade e as instituies consuetudinrias de governana local so eficazes a degradao das pastagens escassa (Niamir-Fuller, 1999).

    A gesto pastoril da terra e da gua

    A forragem e a gua so os recursos mais importantes para a gesto pecuria pastoril, mas uma ampla gama de outros recursos tambm so usados e reivindicados pelos pastores. Os pastores consomem - como alimento ou medicamento - frutos silvestres,

  • 14 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    sementes, tubrculos, cascas, gomas e folhas, e tambm usam muitas espcies de rvores para forragem, sombra, vedao, construo e para o fabrico de mveis domsticos e ferramentas. Devido predominante dependncia de terras com baixa produtividade biolgica e grande variabilidade, os pastores necessitam de acesso a vastas reas de terreno para se assegurar de que dispem de recursos para os seus rebanhos. A concentrao de terras para uso individual geralmente no funciona, j que as parcelas individuais podem intercalar perodos de abundncia com outros de carncia. Quando as pastagens no so eficientemente utilizadas por gado suficiente, isso pode conduzir a uma forma de degradao: o subpastoreio uma ameaa to grande como o sobrepastoreio e esta degradao pode ser ainda mais difcil de reverter. A utilizao do mercado para ajustar o nmero de animais variabilidade climtica poucas vezes eficiente e, em vez disso, os pastores optam por utilizar a mobilidade para otimizar o uso dos seus recursos em toda a paisagem e para evitar a degradao (UICN, 2011a).

    Em todo o mundo h alguns exemplos de indivduos que controlam de forma privada reas suficientemente grandes que permitem uma eficaz gesto dos riscos (por exemplo, alguns fazendeiros americanos e produtores de ovelhas australianos), mas a esmagadora maioria dos pastores depende de pastagens comunais. Muitos pastores possuem ou controlam recursos individuais, incluindo parcelas de terra, rvores e recursos hdricos. No entanto, a gesto e utilizao destes recursos tem de ser equilibrada com a gesto e uso das terras comunais nas quais eles se encontram. Muitas vezes, os indivduos (ou os agregados familiares) possuem direitos exclusivos para a gesto desses recursos, mas normalmente promovem a partilha e a reciprocidade, salvaguardando assim o seu prprio acesso aos recursos que so da mesma forma controlados por outros. Em alguns sistemas pastoris europeus, o acesso a pastagens comunais (muitas vezes estatais) determinado pelo arrendamento privado dos pastos adjacentes. No entanto, as regras de densidade de pastoreio das terras comunais (tanto em termos de tempo como de nmeros) tm um impacto direto na gesto da terra de privados (Herrera, Davies e Manzano Baena, 2014).

    Os pastores capitalizam a diversidade dos ecossistemas de pastagem utilizando raas de gado nativas que esto adaptadas ao ambiente das pastagens e ao seu sistema de produo. Muitos pastores tambm conservam um conjunto variado de espcies de gado para aproveitar uma maior variedade de recursos: por exemplo, combinando gado bovino e ovelhas nos pastos com camelos ou cabras nos matagais. Esta combinao permite aos pastores usar uma variedade mais ampla de nichos ecolgicos e tambm proteger a produo da incerteza.

    O acesso gua desempenha um papel fundamental na gesto das pastagens, particularmente nas estaes em que o pasto est seco. A gua distribuda de forma irregular ao longo da paisagem e isso pode determinar a gesto do gado. Ainda que a pastorcia possa ser desenvolvida eficazmente em ambientes com muita disponibilidade de gua, em muitas comunidades pastoris os sistemas de gesto so organizados em torno do acesso a reas de pasto variveis e do seu limitado abastecimento de gua.

    A estreita relao entre a gua e a disponibilidade de forragem a razo principal para a mobilidade do gado. Determinar quem e quando se ter acesso aos recursos hdricos uma questo essencial em matria de posse para os pastores. A regulao dos momentos de acesso e do nmero de animais baseada na definio clara de papis, responsabilidades, direitos e prioridades, o que exige instituies de gesto sofisticadas.

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 15

    Os territrios da maior parte das comunidades pastoris esto intimamente ligados aos seus pontos de gua permanentes e, mesmo que tradicionalmente os pastores no sejam proprietrios" de terra, muitas vezes a titularidade dos recursos hdricos d-lhes o controlo de facto. Podem existir significativas diferenas entre as pastagens sazonais, como reas de pastagem da estao chuvosa ou pastagens de vero, cujo acesso se realiza atravs de movimentos de gado sazonais, e reas de pastagem da estao seca ou pastagens de inverno, que na maioria dos casos so utilizadas de forma mais esttica. Estas, muitas vezes incluem recursos estratgicos, como poos permanentes, que exigem um maior investimento para a sua instalao e manuteno e que so geralmente sujeitos a direitos de uso mais restritos.

    Governana das rvores nas pastagensMuitas comunidades pastoris possuem conhecimentos profundos sobre o uso e valor de diferentes espcies de r-vores, refletindo a grande importncia das rvores na economia e cultura pastoril. Muitas sociedades pastoris tm regras acerca do corte de rvores proibindo rigorosamente o abate de algumas espcies. Por exemplo, ao longo da frica Oriental o desbaste e a poda das rvores so prticas comuns, para a extrair madeira de forma sustentvel e tambm para melhorar o fornecimento de sombra e frutas. Os Turkana do noroeste do Qunia realizam a poda de rvores como a Balanites aegyptiaca (tmara do deserto) e a Dobera glabra para promover a ramificao baixa e melhorar o acesso de animais e humanos. Os Turkana fazem a gesto das suas rvores atravs de um sistema de posse chamado ekwar que particularmente associado posse de Acacia tortilis que se encontram em reas ribeirinhas e fornecem vagens de sementes que constituem um recurso de forragem fundamental durante a estao seca (UICN, 2007). Da mesma forma, os sistemas agrossilvopastoris mediterrnicos combinam pastorcia, arboricultura e pequenos cultivos, criando com-plexos sistemas de gesto. Nesses sistemas, os ciclos das pastagens e da criao de gado so sincronizados, utilizando as rvores como um aglomerado de recursos para suplementar as necessidades de forragem do gado em tempos de escassez (por exemplo, rebentos, frutos ou folhas cadas) (Barrow, 1990; Moreno e Pulido, 2009).

    Gesto dos recursos hdricos nas pastagens da frica OrientalNas reas Borana do Qunia e da Etipia, a construo e manuteno de captaes de superfcie so geralmente realizadas de forma cooperativa. A utilizao desses recursos cuidadosamente controlada e gerida a fim de minimizar o uso excessivo e outros danos. Quando os nveis de gua descem muito rapidamente, a precedncia de utilizao nor-malmente atribuda aos agregados familiares mais prximos. s vezes, os bovinos adultos so excludos em favor dos bezerros, mas quando necessrio at mesmo os bezerros so deslocados para outros lagos ou poos. Por outro lado, os poos profundos de Borana so recursos vitais durante a estao seca e muitas vezes apresentam direitos mais restritivos, uma vez que necessrio um trabalho considervel para a sua construo e para a extrao da gua. O Abba Ella, ou pai do poo, promove a escavao ou reparao de um poo. Isto garante-lhe prioridade de acesso e privilgios na tomada de decises, ainda que ele seja acompanhado de perto pelos ancios dos cls que se certificam de que as decises so tomadas de acordo com os costumes Borana. O Abba Ella recruta ajudantes dentro do seu prprio cl e de outros cls e linhagens para o trabalho de construo, pelo que os cls participantes tambm adquirem direitos de acesso ao poo, embora os Borana, que no contriburam para a construo do poo, tambm possam ter direito de acesso temporrio ao poo em momentos de necessidade, dependendo da quantidade e caudal de gua dis-ponvel (Layne Coppock, 1994).

  • 16 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    A mobilidade no centro da cultura e dos sistemas de gesto pastoril

    A pastorcia mvel altamente adequada para a gesto das pastagens e fornece benefcios econmicos e ambientais. A mobilidade contribui para assegurar o acesso a forragens, pontos de gua e abrigo, para evitar problemas externos como secas, doenas e conflitos, e para vender produtos nos mercados variveis. uma estratgia flexvel, adaptvel e adequada para a gesto de ambientes variveis. A mobilidade do gado no um fim em si mesmo, mas um meio para a eficaz gesto das pastagens e constitui uma ferramenta fundamental na preveno e gesto de riscos. No entanto, a mobilidade influencia profundamente a sociedade e cultura das comunidades pastoris e muitas vezes essencial para a sua identidade e relaes. Os pastores fazem a ligao entre terras onde a aridez ou a altitude limitam as opes de utilizao com reas mais hmidas ou de altitude inferior que podem ser partilhadas por muitos outros utilizadores.

    A mobilidade pastoril influenciada pelo estado dos recursos e infraestruturas necessrias para os movimentos, incluindo pontos de gua, trilhos de gado, pastos e locais de acampamento. A degradao ou perda dessas infraestruturas pode comprometer seriamente a mobilidade. Os sistemas de posse da terra pastoril necessitam assegurar essas infraestruturas naturais e artificiais, mantendo a flexibilidade na sua utilizao. Esta tenso entre segurana e flexibilidade imposta pelos padres de mobilidade transforma a atribuio de direitos sobre a terra numa tarefa complexa. Ainda que, muitas vezes, a delimitao, o levantamento cartogrfico e a proteo jurdica das infraestruturas pastoris possa ser necessria, tambm pode afetar o seu funcionamento. s vezes, a atribuio de direitos ou a definio permanente de algumas estruturas, como trilhos de gado, pode conduzir ao desaparecimento

    de outras, reduzindo flexibilidade e interferindo com os movimentos pastoris. A mobilidade ameaada por inmeros fatores, incluindo o acesso aos servios sociais, educativos, sanitrios, jurdicos e de segurana. A fim de se alcanar a governana efetiva da posse da terra pastoril, por vezes h que enfrentar um conjunto variado de desafios inter-relacionados.

    Gesto do risco e posse pastoril

    A gesto do risco est profundamente enraizada na forma de vida dos pastores e explica muitas das caratersticas nicas do sistema. Essas caratersticas so muitas vezes vistas como obstculos para fortalecimento da governana da posse. As restries mobilidade e flexibilidade limitam consideravelmente o acesso dos pastores

    A transumncia de longo alcance e o desafio de governana das pastagens em escala A mobilidade pastoril pode ser de curto a longo alcance dependendo do contexto. No Sahel, os pastores podem percorrer centenas (criadores de bovinos Fulani) ou mesmo milhares de quilmetros por ano (pastores de ca-melos Tuareg). Os Wodaabe do Nger deixam bem claro que a mobilidade um atributo cultural, e o pastor que se torna sedentrio considerado um preguioso. Esse pastor visto como incapaz de ser um membro da comu-nidade e durante os perodos de seca ou de doenas no ajudado pelos outros (Schareika, 2003). A transumncia espanhola pode cobrir distncias de 20 km (movimen-tos sazonais para pastagens de montanha de grande al-titude) a 500 km (transumncia entre as montanhas do norte e as plancies do sudoeste), enquanto os Qashqai do Iro realizam uma migrao anual de 500 km ou mais.

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 17

    aos recursos e as suas respostas ao risco. As estratgias de gesto do risco podem ter impactos na governana, incluindo a perceo dos direitos sobre o gado e os seus produtos. Uma estratgia de segurana comum o investimento em redes com comunidades distantes atravs da partilha de ttulos e emprstimos, originando dvidas que podem ser liquidadas aps situaes de crise. No entanto, isso cria um sentimento de partilha de direitos relativamente ao gado que pode limitar a sua gesto: por exemplo, quem deve ser consultado antes de os animais serem abatidos ou vendidos? Devem ser tomadas precaues para assegurar que a garantia da posse e o fortalecimento da governana no comprometem inadvertidamente essas capacidades de gesto.

    Riscos emergentes para a posse pastoril

    Os pastores sustentam uma complexa teia de direitos relativos a diferentes recursos dentro de uma paisagem, afirmando esses direitos com pouca frequncia. Como resultado, a perda de terra e de outros direitos um risco comum para os pastores, e as terras no tituladas geridas de forma comunitria so um alvo fcil para as aquisies e apropriaes de terra. A terra pode ser retirada aos pastores para muitas finalidades, incluindo o cultivo em diferentes escalas, concesses mineiras, reservas de caa e conservao da natureza. Os pastores tambm podem anexar terras de outros pastores atravs de processos de privatizao e da utilizao de vedaes, com consequncias nefastas para a economia e paisagem pastoril no seu todo (UICN, 2011b).

    Os pastores esto entre as pessoas que sero mais afetadas pelas alteraes climticas, que iro comportar grandes implicaes para a posse pastoril. As alteraes climticas vo exacerbar a variabilidade inerente ao seu ambiente, trazendo eventos mais extremos como secas, inundaes ou tempestades de neve. A extenso total dos pastos tambm ir mudar medida que se alterem os padres climticos, com algumas terras pastoris tornando-se mais secas e, portanto, com acesso provavelmente mais difcil. Ao mesmo tempo, outras terras pastoris podero tornar-se mais hmidas e ser sujeitas a grande presso de converso para outros usos (Davies e Nori, 2008).

    Historicamente os pastores tm sido as pessoas mais adaptveis. A pastorcia pode ter surgido em algumas partes do mundo como uma adaptao direta a perodos histricos de alteraes climticas, no entanto, a capacidade de adaptao dos pastores tem-se desgastado em paralelo com a sua crescente necessidade de adaptao. Muitos pastores tm acesso limitado a servios governamentais e apresentam baixos ndices de alfabetizao, acesso deficiente a cuidados de sade e pouca segurana, o que

    Agrupamento de recursos comunais para a gesto do risco Nukhurlul uma estratgia de centralizao do risco na Monglia que satisfaz, pelo menos parcialmente, a maioria dos requisitos para o funcionamento e viabilidade das instituies de coordenao das atividades entre os agregados familiares em apoio ao agrupamento de recursos comunais como uma estratgia adaptativa (Upton 2009; Agrawal 2008). As ativi-dades de agrupamento comunais podem, em certa medida, refletir as estratgias tradicionais, mas tambm proporcionam um meio mais formalizado e extenso de cooperao baseado num mecanismo intimamente relacionado com a posse da ter-ra. A reciprocidade fundamental para a cultura de pastoreio mongol e apoia estratgias como os movimentos de rebanhos (otor) durante invernos rigorosos (dzud) e perodos de seca. A prtica da reciprocidade, tal como a partilha de pastos, pode ser essencial para a sobrevivncia daqueles que esto em mov-imento, mas eles tambm pode aumentar a exposio e vul-nerabilidade geral das comunidades que acolhem os rebanhos.

  • 18 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    contribui para o declnio da sua capacidade de adaptao e compromete a resilincia. As estratgias de adaptao existentes podem ser reforadas para reduzir o risco a mdio prazo, mas a satisfao das necessidades de desenvolvimento fundamentais pode ser essencial para permitir que os pastores se adaptem s alteraes climticas no longo prazo. Em vez de investimentos avultados em solues tcnicas, o fortalecimento dos direitos dos pastores para que eles possam fazer uma melhor gesto da variabilidade climtica pode representar uma melhor alternativa (Davies e Nori, 2008).

    Caratersticas dos sistemas pastoris que determinam mecanismos de governana

    J que os pastores normalmente utilizam a terra e outros recursos de forma coletiva, qualquer sentido de propriedade (por exemplo, o direito de controlar um recurso de uma forma completa e exclusiva) se enquadra mal com as suas tradies e meios de subsistncia. Os direitos de propriedade pastoril so melhor compreendidos como direitos sobrepostos, muitas vezes com direitos a um determinado recurso incorporado dentro de um diferente conjunto de direitos sobre outro recurso, atuando em mltiplas escalas espaciais com diversas autoridades e funes. Os direitos dos pastores necessitam de ser reconhecidos em todos os territrios que eles utilizam, mesmo que pertenam a regies ou pases diferentes ou que sejam regulados por sistemas de posse diversos. Isso pode incluir direitos de usufruto temporrios em terras consideradas fora das reas de pastagem, tais como algumas reservas de seca. Apesar dessa aparente dificuldade, ao longo da histria os sistemas de posse da terra tm-se revelado adequados para a gesto sustentvel das pastagens e dos seus recursos.

    O papel dos sistemas consuetudinrios de posse pastoril

    Os sistemas consuetudinrios de posse da terra desempenham um papel crucial na governana das reas de pastagem, ainda que a sua funo permanea pouco reconhecida e raramente apoiada pelas polticas fundirias. As polticas governamentais muitas vezes so mal orientadas devido assuno normalmente incorreta da tragdia dos comuns (Hardin, 1968), segundo a qual o acesso gratuito a um recurso partilhado (as pastagens, neste caso) conduz sobre-explorao e, eventualmente, ao seu completo esgotamento. Estudos mais recentes sobre os regimes de propriedade comum demonstram claramente que os sistemas de gesto coletiva funcionam e que so necessrios e eficientes (Ostrom, Gardner e Walker, 1994). Os sistemas tradicionais baseados na comunidade, mesmo aqueles com direitos de acesso bastante flexveis, tm demonstrado a sua sustentabilidade e a eficcia das suas instituies reguladoras. Assumindo a ausncia de controlo, muitos governos tm invocado polticas de nacionalizao da terra, o que levou a um enfraquecimento ou colapso dos regimes locais de propriedade comum, criando uma tragdia dos comuns onde anteriormente no existia. Os sistemas consuetudinrios no so estticos: adaptam-se continuamente s mudanas das condies econmicas,

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 19

    sociais, polticas, culturais ou ambientais. Colocar os sistemas consuetudinrios de posse da terra sob o domnio do direito ordinrio pode proporcionar novas oportunidades e benefcios para os pastores, mas muitas iniciativas tm falhado neste aspeto, concentrando riqueza, privilgios e poderes de tomada de decises nas mos dos indivduos mais poderosos do grupo (Dressler et al., 2010). As reformas destinam-se a garantir os direitos das pessoas mais pobres e marginalizadas, pelo que precisam de flexibilidade suficiente para incorporar a complexidade dos direitos e prticas a vrios nveis. Isto inclui o combate s desigualdades de gnero presentes em muitas instituies pastoris tradicionais.

    Os sistemas consuetudinrios de posse pastoril esto presentes nas pastagens de todo o mundo, funcionando com diferentes graus de eficcia, tanto nos pases em desenvolvimento mas tambm em muitos pases industrializados, como no caso dos terrenos baldios da Europa (por exemplo, na Romnia, Espanha, Itlia e Sua). Muitos esforos tm sido feitos para revitalizar e formalizar os sistemas de posse tradicionais, a fim de capturar a sua eficincia na gesto dos recursos das pastagens. As instituies consuetudinrias podem fornecer regras e regulamentaes atravs das quais o conhecimento local utilizado para a gesto das pastagens. Por vezes, as instituies consuetudinrias no lidam eficazmente com o direito ordinrio nem com as instituies governamentais e, em alguns casos, so criadas instituies intermedirias para a atuar como rgos de interao (Herrera, Davies e Manzano Baena, 2014).

    Defendendo a governana consuetudinria na Bolvia Enquanto muitos governos tm tentado dissolver os sistemas de direitos coletivos terra, tambm existem exemplos de comuni-dades pastoris que resistem privatizao e tentam conservar os sistemas de posse coletiva. Um exemplo a luta dos pastores Ay-mara na Bolvia contra a reforma agrria que pretendia distribuir a propriedade de forma individual. No centro do conflito estavam as regras de entrada para grupos sociais e as prticas de colaborao. O acordo final entre os Aymara e o Estado permitiu uma subdiviso de grandes reas de terra comunal em lotes menores administra-dos coletivamente por grupos de famlias e com a manuteno das regras consuetudinrias bsicas. Isso no s ajudou os Aymara a preservar a sua cultura, mas tambm lhes permitiu manter as prti-cas de gesto comunal dos recursos naturais que tm sido impor-tantes para a sua subsistncia (Global Drylands Imperative, 2003).

    Revitalizao do Al Hima: governana local na sia Ocidental As reas de pastagem na Jordnia e no Lbano so caraterizadas por sistemas tradicionais de posse da terra e direitos de pastoreio associados s instituies tribais dos Bedunos. O Hima o sistema de governana de uma rea protegida pelas autoridades locais para o interesse pblico e a conservao do habitat natural, que foi desenvolvido na Pennsula Arbica mesmo antes do surgimento do Islo. No entanto, a influncia islmica transformou o antigo sistema privado de Hima, que pertencia a determinados indivduos poderosos, num sistema legal de proteo das reas naturais com mais benefcios comunais. O sistema Hima permite a proteo das pastagens durante a estao da regenerao da vegetao e controla indiretamente a capacidade de acolhimento das parcelas de pastagem, especificando o tamanho dos rebanhos.A eliminao destes sistemas de posse para converter as pastagens em terras de propriedade estatal conduziu sua degradao. Os esforos das ONG para revitalizar o Hima na Jordnia tm girado em torno do desenvolvimento de um processo de dilogo e de planeamento participativo com as vrias partes interessadas, e pela mediao entre a comu-nidade e o governo com o propsito de atribuio de direitos de gesto comunidade. A comunidade tem implemen-tado planos de gesto baseados no pastoreio de curta durao com perodos de descanso para permitir a regenerao natural das pastagens. A rpida recuperao da vegetao das reas de pastagem gerou o respeito do governo e um rpido interesse em ampliar a gesto comunitria das pastagens por todo o pas, ao abrigo de uma reviso da estratgia nacional para as reas de pastagem (Haddad, 2014).

  • 20 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    Direitos sobrepostos sobre recursos variveis

    Os pastores necessitam de acesso seguro a recursos especficos em diferentes momentos do ano, incluindo terras de pastagem, poos, salinas, rvores e outros, e estes direitos so normalmente regulados por princpios de flexibilidade e reciprocidade. Muitas sociedades pastoris exigem que os limites territoriais permaneam incertos - muitas vezes mencionados como difusos - com contnua negociao sobre o acesso dos indivduos ou dos grupos de utilizadores na reavaliao da sua quota e nvel de controlo sobre os recursos estratgicos. Isso pode criar tenses com as comunidades sedentrias que partilham direitos aos recursos com os pastores, em especial quando o direito ordinrio d prioridade s populaes estabelecidas e s reivindicaes de posse baseadas no cultivo e uso permanente ao longo do ano.

    Uma armadilha frequente das reformas fundirias a definio rgida e arbitrria dos limites de uma comunidade, ignorando as reivindicaes dos grupos vizinhos. Quando os direitos de propriedade so formalizados de forma rgida, os interesses sobrepostos so desconsiderados atravs do estabelecimento de formas exclusivas de titularidade dos recursos. Visto que a paisagem progressivamente analisada, demarcada e alocada, a mobilidade dos pastores pode ser obstruda e as suas prticas de renegociao constante dos direitos de acesso aos recursos podem tornar-se menos eficazes, privando-os de tais direitos.

    Os mecanismos que regulam o acesso aos recursos devem ser suficientemente flexveis para permitir as negociaes e acordos necessrios para conciliar os diferentes direitos, muitas vezes sobrepostos. Essas negociaes so dinmicas e sujeitas a alteraes por acordo das partes envolvidas, criando cenrios de mudana dos direitos atribudos.

    Direitos pastoris incorporados e flexveis: exemplos do Mali e do Uganda O delta interior do rio Nger, no Mali, fornece uma valiosa percepo sobre o funcionamento dos direitos sobrepostos e incorporados. A rea abriga recursos naturais particularmente vali-osos numa grande escala, que levaram criao de complexos sistemas de sobreposio de direitos e usos concorrentes sobre os recursos. No mesmo pedao de terra podem ser prati-cadas a pecuria, a agricultura e a pesca por pastores, agricultores e outros residentes ou no-residentes, sucessivamente ao longo de diferentes estaes do ano. As reivindicaes con-correntes so geridas atravs de sistemas como o Dina. A eficcia desses sistemas tradicionais tem sido bem documentada, juntamente com sua capacidade de adaptao ao longo do tempo. Esses sistemas combinam direitos incorporados e flexveis entre etnias juntamente com os direitos incorporados e flexveis no mbito de reas especficas controladas por "mes-tres de pastoreio", incorporados numa matriz de negociao e partilha (Cotula e Ciss, 2006).A tipologia dos direitos incorporados est presente no caso dos pastores Karimojong do Uganda. Os limites do territrio pastoril consuetudinrio reivindicado pela tribo como seu territrio base so relativamente fixos e identificveis pelas caratersticas da paisagem. Cada cl, subcl ou frao tem uma rea anual de pastagem atravs da qual se move sazonal-mente, e que normalmente se estende para fora do territrio base. O limite geogrfico desta rea de pastagem extremamente fludo de ano para ano devido variabilidade da precipi-tao. Em muitos locais (particularmente nas reas de valor relativamente elevado) cada rea anual de pastagem autossuficiente. No entanto, em momentos de necessidade, o acesso de outros cls ou fraes acordado por meio de negociao (Niamir-Fuller, 1999).

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 21

    Como ilustrado na Figura 3, pode haver uma hierarquia de direitos e de responsabilidades ao nvel do agregado familiar, ou unidade domstica, at ao nvel do grupo tnico como um todo, e as especificidades variam em cada sociedade pastoril. de salientar que tais hierarquias de direitos esto sob constante presso e no caso mencionado de seguida tambm existe um nmero crescente de excees: por exemplo, devido privatizao generalizada de terra na Maasailand (Qunia) ou alienao estatal de pastagens na Repblica Unida da Tanznia.

    FIGURA 3Hierarquia de direitos incorporados numa sociedade pastoril Maasai no Qunia/Tanznia(Spear e Waller, 1993)

    Agregado familiarPropriedade do gado, tomada de decises, unidade de mobilidade e de prestao de contas, mxima flexibilidade

    DIM

    ENS

    O C

    RES

    CEN

    TE

    Unidade residencial conjunta

    Vizinhana/localidade

    Seco/circunscrio

    Sociedade/ grupo tnico

    Trabalho conjunto (pastoreio, rega, gesto do gado), partilha de recursos, unidade de autoajuda

    Controlo partilhado dos recursos hdricos e das pastagens, unidade populacional, unidade de relacionamento social e de cooperao mais ampla

    Acesso relativamente livre aos recursos agrupados para combater as flutuaes acentuadas, administrao tradicional de maior dimenso

    Acesso limitado em momentos de extrema dificuldade para todos os grupos envolvidos, inclusive atravs de casamento e adoo

    Esta complexidade transforma o conceito de propriedade comunal numa definio de posse mais flexvel e sofisticada; os chamados direitos de acesso difusos (FAR, acrnimo em ingls). Os FAR predominam nos regimes de posse em ambientes incertos e so implementados atravs de mecanismos culturais especficos com base em negociaes formais e acordos informais. As caratersticas distintivas dos FAR incluem direitos complexos sobre a terra e os recursos. Esses direitos podem ser definidos em vrias dimenses: direitos sobrepostos relativos a diversos recursos da mesma terra (por exemplo, diferentes direitos sobre forragem, frutos e combustvel), direitos parciais (por exemplo, direito de passagem de um rebanho sem possibilidade de pastoreio), direitos assimtricos (por exemplo, um proprietrio no pode negar o acesso a um rebanho mas tem direito a uma compensao), limites flexveis (por exemplo, trilhos de gado que variam anualmente), direitos limitados no tempo (por exemplo, definio dos perodos de pastoreio e de repouso das pastagens comunais), e confiana mtua e reciprocidade.

    Esta complexidade, para alm da coexistncia de regimes consuetudinrios e legais (pluralismo jurdico), cria um amplo conjunto de regulamentaes sobrepostas e por vezes contraditrias: normas culturais locais, regras coloniais impostas, instituies formais e informais, quadros legislativos consuetudinrios, legais e modernos, e influncias relacionadas com a religio. Consequentemente, os direitos tm de ser codificados de uma forma que no interfira com a flexibilidade e adaptabilidade inerente aos sistemas pastoris, garantindo, no mnimo, espao suficiente para negociao e acordo sobre os recursos.

  • 22 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    Questes de gnero

    As mulheres pastoras desempenham muitas das funes essenciais da sociedade pastoril e so os titulares de facto de direitos relativamente a muitos recursos naturais; por exemplo, controlando o uso de certos pastos e rvores mais prximos do lar. Em lugares onde os homens esto a abandonar cada vez mais a economia rural em busca de emprego, as mulheres tomam a maioria das decises mais importantes sobre os recursos das reas de pastagem. No entanto, os homens muitas vezes mantm o poder sobre a tomada de decises e podem exercer o controlo quando lhes convm; por exemplo, em questes de venda de terras ou de animais. As regras hereditrias normalmente tambm desconsideram os direitos das mulheres. Consequentemente, as mulheres pastoras precisam de negociar continuamente com pretendentes secundrios atravs de parentes do sexo masculino, e as suas capacidades de gesto e desenvolvimento de atividades pecurias podem ser limitadas.

    A posio relativamente fraca das mulheres no interior da sociedade pastoril torna-se mais evidente quando ocorrem mudanas nos direitos fundirios, nomeadamente nos esforos de garantir os direitos terra para a sociedade pastoril em geral. Muitas vezes, os direitos que as mulheres pastoras exercem de acordo com as regras consuetudinrias perdem-se nos processos de formalizao de direitos de propriedade. Em virtude da crescente sedentarizao dos pastores, h uma tendncia de privatizao dos direitos sobre a terra, com impacto no acesso e direitos terra tanto de homens como de mulheres. Os processos de privatizao no proporcionam a todos as mesmas oportunidades de aquisio de direitos de terra e de participao no mercado de terras.

    Ainda que as instituies consuetudinrias tenham muito para oferecer em termos de gesto das pastagens em escala, frequentemente incorporam desigualdades de gnero profundamente enraizadas que precisam ser enfrentadas durante os processos de revitalizao ou reforma institucional. A reforma das instituies consuetudinrias uma questo altamente sensvel que exige um forte compromisso dos membros da comunidade e liderana por pastores homens e mulheres, visto que os direitos terra moldam as relaes de poder dentro e entre os diferentes grupos envolvidos. Embora existam diferenas entre as sociedades pastoris e algumas possam ser mais democrticas ou igualitrias do que outras, a estratificao social, bem como as diferenciaes tnicas e de gnero muitas vezes representam uma caraterstica principal da hierarquia social. Os dois maiores grupos pastoris da frica Subsariana, os Peul/Fulani e os Tuareg/Kel Tamasheq, so altamente estratificados com um fosso entre as elites e as castas mais baixas. Mesmo os Maasai, supostamente igualitrios, so gerontocrticos com a subservincia dos homens jovens aos homens mais velhos e das mulheres a ambos.

    Alteraes das relaes de poder nas comunidades pastoris

    As relaes de poder nas sociedades pastoris esto em constante estado de mudana, um aspeto intimamente relacionado com a mobilidade e a flexibilidade. Paralelamente a este dinamismo inerente, nos ltimos anos ocorreram significativas mudanas

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 23

    generalizadas nas relaes de poder por influncia de muitos fatores. Entre esses fatores est o crescente poder do Estado e a sua intromisso na governana das terras pastoris, e tambm a poderosa influncia exercida pelas agncias de desenvolvimento e os seus projetos. Entre os fatores que contribuem para alteraes nas relaes de poder incluem-se:

    Intervenes estatais: implementao de programas de assentamento; leis injustas ou injustamente aplicadas.

    Captura do poder pastoril por uma elite: as elites instrudas tm ganho poder face s instituies consuetudinrias; ausncia dos proprietrios dos rebanhos.

    Alteraes nos regimes de propriedade: delimitao das zonas pastoris; alocao de direitos privados de indivduos ou grupos; apropriao/realocao de terras.

    Prioridades de desenvolvimento: perda de terras, gua e outros recursos para explorao agrcola, programas de hidroeletricidade, urbanizao, minerao, etc.; encerramento ou bloqueio das rotas de migrao; perda de terras para projetos de conservao e reas protegidas.

    Alteraes nas identidades territoriais: reivindicaes de terras relativas a intervenes fundirias foradas (por exemplo, para limpeza da terra); litgios intensos sobre terra.

    Conflitos armados: conflito entre nmadas e agricultores e entre grupos nmadas; conflitos sobre fronteiras nas reas pastoris; perturbaes da economia pastoril; degradao das instituies comuns de cooperao e de resoluo de conflitos.

    O surgimento de proprietrios de rebanhos ausentes nas sociedades pastoris originou vrias formas de regimes de locao pecuria, com a crescente contratao de pastores pobres pelas elites ricas. Em alguns casos, estes proprietrios de rebanhos ausentes perturbam as estratgias de pastoreio tradicionais; por exemplo, exigindo que os rebanhos sejam deslocados de acordo com os ditames do mercado, em vez da disponibilidade sazonal de recursos, contribuindo assim para a degradao das reas de pastagem. No Norte de frica, por exemplo, os proprietrios de rebanhos ausentes insistem que os rebanhos permaneam perto dos mercados, onde podem ser rapidamente comercializados, levando degradao generalizada nessas reas e subutilizao de pastagens distantes (Davies e Hatfield, 2007). Por outro lado, alguns pases onde existem proprietrios de rebanhos ausentes, como a Monglia, revelam poucos impactos ambientais associados e existem relaes mutuamente benficas entre os pastores e os proprietrios dos rebanhos (por exemplo, o acesso ao transporte e mo de obra melhora o acesso aos pastos remotos bem como a ligao com os mercados). Contudo, os proprietrios de rebanhos ausentes constituem um tema importante para a posse pastoril, pois normalmente tm muitos mais direitos e redes de influncia mais fortes do que os prprios pastores.

    Defesa dos direitos das mulheres terra pastoril A participao das mulheres deve ser melhorada nos processos e decises relativos posse da terra, contribuindo para a sua capacitao e um melhor reconhecimento dos seus direitos. Na aldeia de Bisanda na ndia, por exemplo, as mulheres pastoras costumam agru-par-se em cls e qualquer irregularidade contra as mulheres considerada como uma ofensa contra o cl, desencade-ando alguns mecanismos de defesa. A gesto de base comunitria aplicada no sistema Hima no Lbano inclui ativi-dades de sensibilizao sobre a legis-lao fundiria e o reconhecimento do papel das mulheres e dos seus direitos terra. Na Repblica Unida da Tanznia, o Conselho das Mulheres Pastoras (PWC, acrnimo em ingls) est a facilitar o acesso das mulheres e crianas Maasai educao, sade, e aos servios sociais e de capacitao econmica. As opinies das mulheres comearam a ser ouvidas nos fruns comunitrios, onde so reali-zadas discusses sobre terras e direitos antes de as propostas serem apresen-tadas s instituies governamentais (Flintan, 2008; Sattout, 2014).

  • 24 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    Riscos

    do mercado,

    incluindo instabilidade

    dos preos, acesso

    deficiente e

    abastecimento irregular

    Clima varivel

    e imprevisvel

    Risco

    s

    ambie

    ntais

    emerg

    entes

    ,

    inclui

    ndo

    as al

    tera

    es

    clim

    ticas

    e a

    dese

    rtific

    ao

    Riscos especficos

    relacionados com a sade

    para o gado e os

    seres humanos

    Risco de conflitos:

    entre pastores; com os

    agricultores; com o

    Estado

    Marginalizao

    poltica e baixo

    investimento

    pblico

    Fragilidades

    da posse da

    terra: risco de

    perda da terra e de

    acesso aos recursos

    Clima

    adve

    rso

    e alto

    risco

    de

    secas,

    intem

    prie

    s,

    inund

    aes,

    incn

    dios, e

    tc.

    Co-dependncia

    das reas de

    pastagem e da

    pastorciaEcologia

    complexa e

    diversa das reas de

    pastagem

    Condies sob as quais praticada a

    pastorcia

    FIGURA 4Definio das caratersticas da gesto e governana pastoris

    Direitos

    de terra

    comunais,

    incluindo propr

    iedade

    partilhada e ter

    ras

    estatais, com us

    o limitado de

    terras privadas

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 25

    Instituies esp

    ecficas

    de gesto da

    mobilidade

    Posse sobreposta, direitos

    difusos, limites

    fluidos, flexibilidade

    e negociao

    contnua

    Variabilida

    de sazona

    l

    e interanua

    l dos

    direitos e u

    so

    peridico

    de

    recursos

    estratgic

    os

    Cama

    das

    comple

    xas

    de ris

    cos

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    vos a t

    erras,

    gua,

    rvor

    es

    e outr

    os rec

    ursos

    natura

    is

    Governana ba

    seada

    em relacionam

    entos,

    parentesco, agr

    upamento

    e partilha comu

    nal,

    pluralismo jurd

    icoPosse baseada em instituies consuetudinrias em coexistncia

    com regimes jurdicos

    Direitos

    de terra

    comunais,

    incluindo propr

    iedade

    partilhada e ter

    ras

    estatais, com us

    o limitado de

    terras privadas

    Adaptaes de governana dos pastores

    Forragem natural como principal

    recurso

    Adaptaes de gesto da

    pastorcia

    Uso de recursos

    complementares:

    gua, restos das

    colheitas, etc.

    Raas e espcies

    adaptadas a nvel local

    Tam

    anho

    vari

    vel d

    os

    reba

    nhos

    ,

    dete

    rmin

    ado p

    ela

    disp

    onib

    ilidad

    e de

    recu

    rsos,

    cond

    ies

    do m

    erca

    do e

    gest

    o

    dos r

    iscos

    Diversidade

    de produo:

    mltiplas

    espcies e

    mltiplos

    produtos

    Comercializao

    sazonal e oportuna

    dos produtos

    pecurios e de

    animais vivos

    Mobilidade dos rebanhos para aceder a recursos e

    oportunidades e para evitar riscos e

    ameaas

    Sincronizao da comercializao e

    da mobilidade com a variabilidade climtica

    e ecolgica

    Gest

    o dos

    riscos,

    incluin

    do

    patrim

    nio

    comun

    itrio,

    agrup

    ament

    o

    de rec

    ursos,

    reserv

    as de

    forrag

    em, et

    c.

  • 26 MELHORAR A GOVERNANA DAS TERRAS PASTORIS

    Benefcios da governana eficaz e da posse segura

    O acesso seguro e flexvel terra e aos recursos crucial para a obteno de benefcios econmicos, sociais e ambientais das reas de pastagem geridas pelos pastores. O reconhecimento dos mltiplos benefcios da pastorcia est por trs do nmero crescente de iniciativas em todo o mundo para o fortalecimento dos regimes de posse. o caso, por exemplo, do Norte da Austrlia, onde alteraes relativas posse da terra e da gua esto a promover usos mais diversificados no interior dos nichos de posse num quadro de direitos claro mas flexvel (Organizao de Pesquisa Cientfica e Industrial da Commonwealth - CSIRO, acrnimo em ingls - 2013). Entre os resultados esperados destes regimes incluem-se a capacitao econmica das comunidades indgenas, a diversificao e crescimento das indstrias pecurias e um maior desenvolvimento dos mercados de servios ambientais e de conservao (por exemplo, carbono e biodiversidade).

    Benefcios econmicos e sociais

    A pastorcia fornece bens e servios que no s apoiam os meios de subsistncia de milhes de pastores, mas que tambm so valorizados muito alm das reas de pastagem, incluindo a produo de alimentos, fibras, peles e estrume, bem como produtos naturais da terra gerida de forma sustentvel, tais como combustvel, frutos e plantas medicinais. Existe um conjunto mltiplo e extenso de valores associados pastorcia, alguns dos quais tangveis e outros no; alguns podem ser medidos e outros no. Tambm se incluem os muitos valores culturais da pastorcia, tanto para os pastores como para a sociedade em geral. Existem duas categorias principais de valores:

    1. Os valores diretos, onde se incluem produtos como leite, carne, fibras e peles, bem como outros de mensurao mais difcil, como emprego, transportes ou seguro social;

    2. Os valores indiretos, tais como os insumos para a agricultura (estrume, trao, transporte) e os produtos complementares, tais como os produtos medicinais e cosmticos oriundos de plantas, o mel e o turismo de vida selvagem. Estes valores indiretos tambm podem incluir valores menos tangveis, como a gesto do risco ou a proteo dos servios ambientais.

    A produo de alimentos vital para a maioria dos pastores, embora alguns pastores obtenham o seu rendimento primrio a partir de fibras ou de estrume. Os alimentos so produzidos para o mercado e, embora muitos pastores tambm dependam consideravelmente da criao de gado para a sua subsistncia, a grande maioria complementa a sua dieta com a compra de cereais, legumes e outros bens. Com efeito, os bens pastoris contribuem para os mercados de alimentos nacionais e mesmo globais, fornecendo produtos pecurios de alto valor para as populaes urbanas em rpido crescimento. Os esforos de desenvolvimento em frica nas dcadas de 1970 e 1980 foram realizados com a convico que a pastorcia deveria produzir um nico produto (por exemplo, carne) para os mercados de exportao,

  • SECO 1: QUESTES E DESAFIOS RELATIVOS GARANTIA DA GOVERNANA DA POSSE PASTORIL 27

    sempre que possvel com base em gesto sedentria e utilizando raas importadas. Estudos posteriores demonstraram que a utilizao de mltiplas espcies, mltiplos produtos e mobilidade em larga escala nos sistemas pastoris permite resultados significativamente mais produtivos, sustentveis e fiveis (Scoones, 1995).

    Os esforos desenvolvidos no passado para transformar o setor pastoril contriburam para a pobreza, degradao da terra e enfraquecimento da posse e da governana. O fortalecimento dos direitos de acesso terra e aos recursos, por outro lado, pode ajudar a superar esses retrocessos e essencial para melhorar a segurana alimentar dos pastores e o desenvolvimento sustentvel da pastorcia. No entanto, os governos muitas vezes tm falta de dados sobre a contribuio da pastorcia para as economias nacionais, porque a mobilidade dos pastores no refletida nas estatsticas oficiais ou porque esses dados so reunidos nos mercados e os governos no investem adequadamente em mercados apropriados (Randall, 2015; UICN, 2008a).

    Tambm existem benefcios intrnsecos ao fortalecimento da posse pastoril. Uma posse reforada pode ajudar a consolidar a identidade pastoril e a promover o respeito e a sensibilizao, dentro e fora das comunidades pastoris. Pode igualmente contribuir para a perceo da pastorcia como um meio de subsistncia desejvel, o que pode favorecer o regresso de jovens instrudos com novas ideias e recursos em pases onde o despovoamento uma grande ameaa para a pastorcia, como o caso da Europa. As redes sociais e as instituies que apoiam os sistemas de posse da terra tambm podem fornecer um ponto de partida para outras iniciativas, incluindo o ordenamento do territrio, assistncia sanitria, projetos educativos e programas de desenvolvimento sustentvel. A existncia de grupos par