Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio...

17
1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo 1 Resumo: O trabalho a ser apresentado nesta Jornada consistirá num comentário crítico sobre o livro De secreto conflictu curarum mearum, do poeta italiano Francesco Petrarca (1304- 1374). Este comentário terá dois principais objetivos: 1) expor o conteúdo do livro, ressaltando dois elementos essenciais na filosofia moral de Petrarca: a contradição e embate entre o mundo sensível e o espiritual e a importância da meditação e reflexão sobre a morte para que se viva de modo virtuoso; 2) discutir os livros dos historiadores e filólogos Martinelli, Rico, Baron e Billanovich, considerando especialmente o problema da data de confecção do Secretum e as implicações deste impasse para a elaboração da imagem histórica polarizada de um Petrarca jovem, em conflito com a luxúria, e um Petrarca mais velho e maduro, confessor de seus pecados e seguidor obstinado da filosofia agostiniana. Este comentário faz parte de uma extensa pesquisa, iniciada na graduação e aperfeiçoada no mestrado, sobre o conceito de filosofia virtuosa nos textos de Francesco. Um dos principais objetivos da pesquisa é expor os argumentos mais acentuados por Petrarca no distanciamento que existiria entre o caminho virtuoso para o conhecimento e o que ele mesmo classifica como “costume moderno da ciência” de seu tempo, que seria a filosofia escolástica praticada nas Universidades. Reconhecido como uma das figuras mais importantes no enriquecimento e consolidação da língua italiana moderna, Francesco Petrarca (1304-1374), nascido em Arezzo, dedicou boa parte de sua vida a expressar seja em composições poéticas de canzioni e sonetti, seja em diálogos, tratados ou em seu rico epistolário perturbações morais e espirituais advindas de um conflito interno entre suas paixões terrenas e o desejo de ascensão à bondade divina e à Verdade. É certo que este não é o único tópico contemplado em sua extensa produção, mas certamente é um dos mais frequentes e profundamente explorados. 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E- mail: [email protected]

Transcript of Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio...

Page 1: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

1

Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca

Maria Rita da Motta Thimoteo1

Resumo: O trabalho a ser apresentado nesta Jornada consistirá num comentário crítico sobre

o livro De secreto conflictu curarum mearum, do poeta italiano Francesco Petrarca (1304-

1374). Este comentário terá dois principais objetivos: 1) expor o conteúdo do livro,

ressaltando dois elementos essenciais na filosofia moral de Petrarca: a contradição e embate

entre o mundo sensível e o espiritual e a importância da meditação e reflexão sobre a morte

para que se viva de modo virtuoso; 2) discutir os livros dos historiadores e filólogos

Martinelli, Rico, Baron e Billanovich, considerando especialmente o problema da data de

confecção do Secretum e as implicações deste impasse para a elaboração da imagem histórica

polarizada de um Petrarca jovem, em conflito com a luxúria, e um Petrarca mais velho e

maduro, confessor de seus pecados e seguidor obstinado da filosofia agostiniana. Este

comentário faz parte de uma extensa pesquisa, iniciada na graduação e aperfeiçoada no

mestrado, sobre o conceito de filosofia virtuosa nos textos de Francesco. Um dos principais

objetivos da pesquisa é expor os argumentos mais acentuados por Petrarca no distanciamento

que existiria entre o caminho virtuoso para o conhecimento e o que ele mesmo classifica

como “costume moderno da ciência” de seu tempo, que seria a filosofia escolástica praticada

nas Universidades.

Reconhecido como uma das figuras mais importantes no enriquecimento e

consolidação da língua italiana moderna, Francesco Petrarca (1304-1374), nascido em

Arezzo, dedicou boa parte de sua vida a expressar – seja em composições poéticas de canzioni

e sonetti, seja em diálogos, tratados ou em seu rico epistolário – perturbações morais e

espirituais advindas de um conflito interno entre suas paixões terrenas e o desejo de ascensão

à bondade divina e à Verdade. É certo que este não é o único tópico contemplado em sua

extensa produção, mas certamente é um dos mais frequentes e profundamente explorados.

1Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-

mail: [email protected]

Page 2: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

2

No trabalho atual, realizaremos um comentário crítico de seu diálogo De secreto

conflictu mearum curarum2, destacando especialmente o problema de sua datação e

revisando-o. Reconsiderar este problema é uma das ferramentas escolhidas para a verificação

da seguinte hipótese: Petrarca se distancia das apropriações escolásticas da filosofia

aristotélica e segue por orientações agostinianas e neoplatônicas no que se refere ao caminho

para acessar a Verdade (para ele também o Bem e a Sabedoria), que, ele defende, não se dá

através de uma ascensão dialética, mas por uma experiência mística de revelação ou

rememoração da Verdade pela iluminação da alma e desenvolvimento da visão interior3.

Realizar a devida leitura do Secretum só é possível quando levamos em consideração

as características mais marcantes de sua obra no que se refere às considerações sobre virtude e

espiritualidade. Historiadores como Rico, Baron, Billanovich, Martinelli e Garin defendem

que a temática dos escritos de Petrarca se transforma visceralmente na maturidade, e que o

jovem poeta apaixonado pela herança latina e facilmente suscetível aos prazeres mundanos

(do corpo e da fama) que se apresenta nas Canzioni, por exemplo, lentamente cede lugar a um

Petrarca vivamente convertido, espiritualizado, estudioso das Escrituras e contemplador

admirado de seus mistérios. Não é tarefa nossa – e pareceria injusto à sua memória – tentar

reduzir este importante personagem a uma figura dicotômica pagã x cristã, jovem x maduro,

inflamado x ascético, etc. Mas concordamos que existe de fato uma mudança do eixo temático

de sua obra a partir de meados da década de 1340 que ele mesmo justifica com uma profunda

transformação espiritual.

Ao estudarmos sua obra e adentrarmos nos conflitos pessoais que Petrarca deseja

apresentar, torna-se evidente que a figura histórica e religiosa que ocupa o posto de grande

mestre nos ensinamentos sobre a conduta do cristão virtuoso e sobre o cultivo da sabedoria

que direciona a alma a Deus é Santo Agostinho (354-430). A admiração de Petrarca pelo

bispo de Hipona é explicitamente demonstrada em diversas passagens de sua obra, como

2Foi consultada a tradução para o italiano realizada por Giulio Cesare Parolari no site:

http://digilander.libero.it/letteratura_petrarca/index.html. A edição de referência em latim é: BIGI, E (org).

Opere di Francesco Petrarca. Milano: Ugo Mursia Editore, 1963. Contudo, para facilitar a identificação das

citações, uma vez que as disponibilizadas pelo site não são dadas em páginas, as referências a este texto serão

apresentadas de acordo com a versão em latim disponibilizada digitalmente pela editora Riccardo Ricciardi:

PETRARCA, F. De secreto conflictu curarum mearum (Secretum). Milano-Napoli: Riccardo Ricciardi editore,

1955. 3 Esta é uma das hipóteses defendidas na dissertação de Mestrado, e o presente trabalho apresentará apenas uma

das considerações possíveis sobre a hipótese.

Page 3: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

3

numa de suas Familiares onde ele defende que assim como muitas e várias são as estrelas

luminosas – aqui relacionadas aos diversos filósofos e poetas que passaram pelo mundo –

apenas um é o Sol que ilumina a vista, e a este se assemelha Agostinho4. Entretanto, Petrarca

faz questão de esclarecer que, por maior que seja seu apreço ao teólogo, ele não é dependente

por completo de suas palavras, uma vez que não deseja ser “escravo nem de uma opinião,

nem de uma seita, nem de um homem, sem poder mudar de parecer depois de haver

conhecido a verdade”5 e nem “jurar sobre a palavra de mestre algum” – atitude que confessa

ter aprendido com o próprio Agostinho, Cícero e Horácio6.

Neste sentido, retomamos aqui a constatação de Garin sobre o peso da filosofia de

Agostinho na espiritualidade e filosofia de Petrarca:

Filosofia que é, para Petrarca, com inflexões agostinianas, vida no Logos

vivente, escuta humilde do Verbo magistral, [e que] se opõe apenas à ciência

verbosa e abstrata, que isola o mundo de suas raízes, que entre os olhos do

homem e o mundo levanta véus e diafragmas, que se preocupa de tudo a não

ser da alma [...] E tal ciência deve ser ciência socrática, reforma da alma,

renovação interior. Os studia humanitatis possuem isto, eles abrem, para

além dos olhos do corpo, a mente, renovando o homem de modo que possa

compreender as coisas na raiz de sua verdade. Aqui, de fato, se implanta a

polêmica contra os naturalistas, médicos, cientistas, Averróes, Paris, que

destruiu Assis: a compreensão do mundo se dá através da alma e Deus, e não

vice-versa: a compreensão das coisas é alcançada não as removendo de suas

respectivas bases, mas numa imersão no fogo daquela vida de caridade

universal a partir da qual as coisas floresceram7.

Considerando que a partir de 1350 seus escritos encontram-se regularmente imersos

em profundas reflexões religiosas e autoavaliações que nos ajudam a verificar o verdadeiro

modo de filosofia para Petrarca, iniciaremos a leitura crítica do diálogo Secretum. Este

diálogo nos parece sua produção mais significante no que se refere à representação de si,

discussão dos conflitos espirituais, valorização do ato de meditar como o exercício filosófico

e potencialidade da presença agostiniana e platônica na filosofia de Petrarca, que, como

4 Fam IV,5. Petrarca segue o estilo das Familiares de Sêneca, onde o valor informativo familiar é modesto e as

cartas servem mais como pequenos tratados monográficos. PETRARCA, Francesco. Delle Cose Familiari,

tradução ao italiano por FRACASSETTI, Giuseppe. Firenze: Le Monnier, 1863, v.1 e v.5 de 1867. 5 PETRARCA, Fam IV, 16.

6 Idem.

7 GARIN, E. Storia della Filosofia Italiana, V.I. Torino: Giulio Einaudi, 1966, p. 248-249.

Page 4: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

4

previamente apontado, será, entre outros elementos, utilizado como arsenal em sua crítica à

escolástica.

1.1. Sob a luz da Verdade

A repercussão desta obra, já cem anos após sua morte, pode ser verificada pela

tiragem das opere varie de Petrarca em 1501 por Francesco Mazali, na qual o Secretum estava

incluso: mil cópias8, quantia grande para a época, ampliando as edições anteriores feitas em

manuscrito, que chegaram ao número de sessenta9. O livro teria sido composto não para uma

futura publicação, mas na esperança de que “em qualquer momento que eu o lesse, pudesse

experimentar novamente o prazer que tive na própria conversa”, evitando assim os “lugares

onde homens se reúnem”10

.

Este diálogo trata majoritariamente sobre a miséria humana. Podemos classificar o

escrito dentro do gênero de diálogo socrático, que propõe, através da reflexão pessoal

realizada pelos participantes, uma investigação da verdade e valor das opiniões utilizando

como material suas próprias experiências. O uso do gênero do diálogo no final da Idade

Média e início da Idade Moderna se dá principalmente na apresentação de questões morais de

maneira didática ao público11

. De acordo com Van Rossem, um importante fator de distinção

entre este método e outras formas de conversação como o debate é a proposta de se refletir

sobre a temática levantada de maneira cuidadosa e profunda12

.

O livro tem início com a visita inesperada que a figura da Verdade faz a Petrarca,

introduzindo-o ao personagem de Santo Agostinho. Esta alegoria é mobilizada por Petrarca

numa função metafórica. Assim, a Verdade possui, no desenrolar da conversa, a função de

8 DIONISISOTTI, Fortuna del Petrarca nel Quattrocento, in <IMU”, XVII (1974), p. 66.

9 MARTINELLI, Sulla data del Secretum del Petrarca, in Critica letteraria, 13. Loffredo Editore: Nápoles,

1985. p. 434. O autor diz que essa publicação era extremamente notável para a época, sendo uma vistosa

representação do alcance da área editorial possibilitada pela explosão da “Galassia Gutemberg”, p. 435. 10

PETRARCA 1955, p.3. 11

KRISTELLER, Eight Philosophers of the Italian Renaissance, Stanford University Press: 1964, p. 151. 12

VAN ROSSEM, Que és um diálogo socrático?, Revista acadêmica P@kenredes. Volume I, n9. p. 3. Ainda

sobre o método socrático de diálogo, ele diz o seguinte sobre sua estrutura e o efeito esperado: “La estructura de

un diálogo socrático varía de acuerdo con la época y el contexto, pero el elemento común a casi todas las

propuestas es que un grupo analice una cuestión inicial. Esta cuestión puede ser elegida de antemano por la

persona que dinamiza el diálogo (en adelante, el facilitador) , aunque es preferible que los participantes elijan

la pregunta por sí mismos. Las formas en que los participantes encuentran una pregunta adecuada que les

interese de verdad varían según la creatividad del facilitador, la tradición y el contexto en el que se desarrolla

el diálogo.[…] El efecto es que uno ya no busca la respuesta fuera de sí mismo, sino que se acerca al

autoconocimiento”, p. 4.

Page 5: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

5

levar a luz às trevas, de trazer de volta, através da memória, ideias que já teriam sido

compreendidas, mas que foram escurecidas pelas práticas terrenas e entrega às paixões. O

Homem, para conhecer Deus, não precisaria imitá-lo, mas sim retornar a Ele num movimento

de ascensão que se daria através de um dom divino disponível a todos, mas que poucos se

dedicam a cultivar. Deste modo a alma, e não ao corpo, entre dúvidas e dores similares às do

parto, garante lentamente o acesso à Verdade.

É possível também relacionar esta estratégia praticada pelo personagem de Agostinho

à doutrina formulada por Platão no diálogo Mênon e na República: a de amnésia, de

movimento de retorno às Formas Primeiras, como aqui apresentamos:

...se alguém forçasse a olhar para a própria luz [luz esta que representa a

Verdade, o Bem, as Formas Ideais], doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia,

para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria

ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam

[...] agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com

mais perfeição [...] O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o

ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a

alma que se eleva ao mundo inteligível. [...] Nos extremos limites do mundo

inteligível está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode

conhecer, mas que, uma vez conhecida, se impõe à razão como causa

universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo

visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a

qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos

negócios particulares e públicos13

.

Percebemos, portanto, a forte presença de dois elementos platônicos em Secretum: a

metafísica da luz e o processo de reminiscência, que mediam a conversa de Petrarca com

Agostinho, representante da doutrina cristã e do estágio espiritual a ser alcançado por

Petrarca.

Ainda no que se refere à representação da Verdade no Secretum, podemos dizer que

semelhante alegoria é utilizada por Boécio (480- após 524) em seu famoso De Consolatione

Philosophiae14

, texto que possui igualmente fortes influências platônicas e agostinianas15

, sob

13 PLATÃO. A República. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2001, p. 316-317. 14

BOÉCIO, De consolatione philosophiae. Tradução de Pablo Masa, Prólogo e notas de Alfonso Castaño Piñan.

Buenos Aires: Aguilar Argentina, 1964. 15

“Es continua la influencia del pensamiento platónico en la acentuación del carácter inefable del ser divino y

su absoluta bondad, de la tendencia de todas las cosas hacia Dios, del valor inmenso del alma y su

inmortalidad, de la distinción del conocimiento racional y las apariencias, de la necesidad de Dios para

Page 6: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

6

o nome de Sabedoria. A estratégia que as duas figuras praticam com os atormentados autores

dos textos é a mesma: tanto a Verdade quanto a Sabedoria possuem uma luz que, num

primeiro momento, pode doer à vista humana, mas que, uma vez a ela habituada, torna

possível trazer da memória ideias verdadeiras – formas ideais - e encontrar o Bem, num

processo de recuperação do conhecimento perdido que restaura a alma16

assim como quando

um médico oferece remédio à dor17

.

A recuperação das ideias uma vez esquecidas se dá numa analogia à recuperação da

saúde pela manipulação de medicamentos. Há uma espécie de inevitabilidade que marca o ato

de nascimento, de vir ao mundo como espírito e matéria: nascer é se enfermar, é participar de

uma experiência contaminada por sentidos enganadores. Portanto, assim como não existe

pessoa adoecida que não deseje profundamente a restituição de sua saúde, também não existe

pessoa tão negligente que não busque fervorosamente restituir sua alma ao estado de graça.

Consequentemente, a meditação filosófica proporciona um encadeamento de níveis de

ascensão: ela produz um desejo por cura, que gera a busca por virtude, iniciando a salvação.

Deste modo a alma, assim como o corpo, é passível de ser curada. Contudo, aquilo que

restaura sua sanidade não é qualquer coisa de material, mas sim o processo de retorno a Deus,

à Primeira Sabedoria: a meditatio mortis.

Primeiramente, o personagem de Agostinho explica que, a fim de evitar as

angústias da vida mortal e elevar a alma, deve-se meditar sobre a morte e a miséria

explicar el mundo y su orden admirable, del alma del cosmos, de la reminiscencia de las ideas, etc. En su

doctrina de la presciencia divina y la libertad de la voluntad humana, recoge la influencia de Jámblico y Proclo,

pero no acepta la teología panteísta y emanatista de Plotino, sino que subraya su posición teísta y de él no toma

apenas ningún elemento.” E transitando desta à agostiniana: “rechaza, por ejemplo, la sensualista teoría del

conocimiento de los estoicos y admite, en cambio, la teoría de la reminiscencia platónica en una forma que es

similar a la teoría agustiniana de las incommutabilia vera. […] Y, por fin, citaremos la influencia de San

Agustín, patente en el matiz que da Boecio a la teoría de la reminiscencia y, sobre todo, en la notable

investigación que en el libro V, prosa 6, dedica a la eternidad y el tiempo. En ella completa el agudo análisis

agustiniano (Cf. Confesiones, II, 14-31) que había señalado, sobre todo, el carácter subjetivo de la conciencia

del tiempo, condicionada por la “expectatio, attentio et memoria”. Ibidem, p. 6. 16

A função de trazer de volta à memória o conhecimento uma vez aprendido recai sobre Agostinho, que

pergunta: “Como pudestes ter esquecido todos os sábios preceitos da Filosofia, os quais declaram que homem

algum pode ser feito infeliz pelas coisas que você recita?”. PETRARCA, F. 1955, p. 8. 17

BOÉCIO, 1964, p.12: “Pero no es ahora tiempo de lamentos —dijo la mujer aparecida—, sino de poner el

remedio”; p. 15 “¿Has oído estas palabras? —me dijo la Filosofía—. ¿Han penetrado en tu espíritu, o bien te

has quedado tan insensible como el asno ante la lira? ¿Por qué lloras? ¿Por qué fluyen de tus ojos esos arroyos

de lágrimas? Si buscas remedio a tu mal, preciso es que descubras la herida”; e também p. 21 “¿Me permitirás,

pues, que tantee y pruebe tu espíritu por medio de preguntas para saber el tratamiento que te conviene?”.

Page 7: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

7

humana, deixando que o pensamento sobre as mesmas penetre em todo o ânimo18

.

Petrarca, contudo, revela não compreender o que isso realmente significa, fazendo com que

Agostinho discorra por páginas seguidas sobre o tema de modo profundo, assustador,

detalhado e belo, ensinando cada nível de reflexão para demonstrar a maneira correta de se

pensar sobre a morte. As estratégias são as seguintes: trazer da memória imagens e cheiros

de corpos mortos e imaginar a si mesmo morto e os efeitos da morte em cada parte do

corpo, a fim de compreender o que significa este nome e tornar-se acostumado com a ideia

da morte, que é certa para todos, apesar de incerta sobre quando chegará.

De acordo com o personagem de Agostinho, algumas ordens religiosas, inclusive,

incentivariam seus membros a assistirem defuntos serem lavados e vestidos para o enterro

a fim de fazê-los refletir sobre a morte e “assustar da mente daqueles sobreviventes

qualquer esperança para este mundo transitório”19

. Em seguida, ele descreve exatamente

como se imaginar morto:

Devemos imaginar os efeitos da morte em cada parte de nossa estrutura

corpórea, as extremidades frias, o peito suando com febre, os lados latejando

de dor, os espíritos vitais correndo cada vez mais lentamente enquanto a

morte se aproxima, os olhos inchados e marejantes, cada olhar preenchido de

lágrimas, a testa pálida e marcada, as bochechas penduradas e côncavas, os

dentes fixados e descoloridos, as narinas encolhidas e afiadas, os lábios

espumando, a língua imunda e imóvel, o céu da boca murcho e seco, a

cabeça lânguida e o peito ofegante, o murmúrio rouco e o suspiro triste20

.

Contudo, Petrarca continua inseguro sobre como saberá se a meditação chegou ou

não ao fundo da alma, como se espera que seja, e assim o personagem de Agostinho

pondera que quando se medita sobre qualquer tópico, mas não se comove verdadeiramente,

é certo que a meditação foi em vão. Ele descreve quais devem ser os efeitos da meditação

correta:

...se no ato da meditação você se encontrar de repente enrijecido, se você

tremer, se empalidecer, e sentir como se já tivesse suportado suas dores; se,

ao mesmo tempo, você sentir como se estivesse deixando seu corpo para

trás, e fosse forçado a prestar contas diante do Tribunal do eterno juízo, se

todas as palavras e atos de sua vida passada não fossem omitidas ou deixadas

18 PETRARCA, 1955, p.9.

19 Idem.

20 Ibidem, p.18.

Page 8: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

8

de lado; que nada, jamais, deve ser esperado de boas aparências ou status

social, nada da eloquência, ou da riqueza, ou do poder: se você realizar que

este Juiz não aceita subornos e que todas as coisas aparecem nuas e claras

perante seus olhos; que a morte em si não se freará por nenhuma apelação;

que ela não é o fim dos sofrimentos, mas apenas uma passagem: se você

imaginar para si milhares de formas de punição e dor, o barulho e

lamentação do Inferno, os rios sulfúricos, a escuridão densa, as Fúrias

vingativas, numa palavra, a poderosa maldade em todos os lados que a

escuridão cobre; e, o que é o clímax deste horror, que a miséria não conhece

fim, e o desespero, portanto, é perpétuo desde o tempo em que é passada a

misericórdia de Deus; se, eu digo, todas essas coisas se elevarem diante de

seus olhos de uma só vez, não como ficções mas como a verdade, não como

sendo possíveis mas inevitáveis, e certamente obrigadas a chegarem, sim,

agora mesmo, na sua porta; e se você pensar nestas coisas, não

superficialmente, não com desespero, mas repleto de esperança em Deus, e

de que sua forte mão direita é capaz de arrancar-te para fora de tamanhas

calamidades; se você mostrar-se desejoso de ser curado e ascender; se você

se unir à sua finalidade e persistir em sua conduta, então você estará certo de

que não meditou em pecado”21

.

A descrição desses efeitos é importante porque ela não apenas explica como se dá a

prática da meditação, mas também como a pessoa deve se sentir após alcançar essa

instância atemporal da alma. Assim, o que se espera da meditação é que ela permita ao

homem considerar - não de forma ordenada e cronológica, mas sim numa experiência

mística na qual todo o tempo e toda a ordem dos acontecimentos se concentram num único

instante de revelação - os horrores intermináveis da vida terrena, o sofrimento e as chamas

do Inferno e a bondade e a misericórdia de Deus22

.

Através desta contemplação, a alma deseja ser curada e ascender, o que é um efeito

extremamente importante, uma vez que desejar a virtude é a segunda atitude que, atrelada

à meditação, permite que a alma de fato se eleve à Verdade23

. Através da autoavaliação

guiada por Agostinho, num processo que novamente se assemelha ao que acontece em De

Consolatione Philosophiae, Petrarca primeiramente queixa-se de diversos elementos da

vida humana que trazem a ele e aos outros uma grande infelicidade, como a penúria, dor,

doença, desgraça, morte, etc. O personagem de Agostinho retoma aqui os conceitos de

virtude e vício em Cícero, para quem nada é oposto à verdadeira felicidade que não seja

21 Ibidem, p. 19.

22 Boécio chega à mesma conclusão. “Tú, igualmente, si quieres percibir la verdad en todo su fulgor y avanzar

por el camino recto, deja a un lado las bulliciosas alegrías, aleja de tu corazón el temor, desecha la esperanza,

ahuyenta todo dolor. Bajo el dominio de esas pasiones, pesada niebla se cierne sobre el espíritu, que se siente

como atado con fuertes cadenas.” BOÉCIO, 1964, p.23. 23

Ibidem, p. 9.

Page 9: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

9

igualmente oposto à verdadeira Virtude24

, e nenhum homem pode ser infeliz a não ser por

escolha própria, na medida em que, através do desejo pela virtude, ele inicia a caminhada

em sua direção25

.

A meditação aparece, portanto, como um fator de extrema importância no que se

refere à busca pela Verdade sobre o mundo exterior e sobre si mesmo, que é uma só, assim

como para alcançar a humildade e serenidade que permitirá ao Homem viver

bondosamente. Além disso, é ela que garante o desejo por virtude, sem o qual não há

felicidade. Neste sentido, seria coerente afirmar que para Petrarca o conhecimento mais

alto a respeito das coisas se alcança através de uma experiência mística, introspectiva,

numa jornada interior que permite a elevação da alma e o acesso à Verdade.

A temática da meditação sobre a morte, contudo, não é original no poeta e pode ser

mapeada desde a filosofia antiga. O princípio de meditatio mortis, ou momento mori,

sugere que a prática da Filosofia é nada além de uma preparação para a morte alcançada

através da meditação, treinamento ascético de separação da alma em relação ao corpo, cujo

conhecimento constantemente se corrompe devido à confusão causada pelos sentidos. Este

exercício antecipatório permitiria uma aceitação melhor da morte, condição necessária para

uma vida feliz de acordo com Platão26

, Cícero27

e com a própria Bíblia28

, transformando a

vida dos homens de modo a torná-los bons – o que é, enfim, o objetivo da Filosofia. De

acordo com diversos estudiosos de Petrarca29

a principal mensagem no Secretum é, sem

dúvidas, a proposta de meditatio mortis como caminho único para o conhecimento do

Bem.

24 “Por pessoas de bem entendo as que reúnem todas as virtudes. Por felizes, entendo as que possuem todos os

bens, sem nenhuma mescla de males. Pois não creio que a felicidade nos permita outra noção senão o conjunto

de todos os bens, com exclusão de todos os males. Ora, seria em vão que a virtude aspirasse à felicidade, se fora

dela houvesse algum outro bem”. CÍCERO. A virtude e a felicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.31. 25

PETRARCA, 1955, p. 9. 26

Diz Sócrates: “Embora os homens não o percebam, é possível que todos os que se dedicam verdadeiramente à

Filosofia, a nada mais aspirem do que a morrer e estarem mortos”, in: PLATÃO, Fedon, Versão eletrônica do

diálogo platônico “Fedão”. Tradução: Carlos Alberto Nunes, grupo Acrópolis, p. 6. Texto digitalizado:

http://br.egroups.com/group/acropolis/. 27

“Portanto, a vida de todos os filósofos é comentário sobre a morte”, in: CÍCERO, Tusculanae Disputationes,

Liber Primus, XXX, 74, Internet, http://www.thelatinlibrary.com/cicero/tusc1.shtml 28

Eclesiastes 8:8 e 9:5-6; Jó 10:18-22; 1Co 15:20; entre outros. 29

MARTINELLI, 1985, p. 435. RICO, Francisco, Lectura del Secretum, in: Vida u Obra de Petrarca, v. I.

University of North Carolina, 1974, p. 20. E por fim BARON, Hans, Petrarch’s Secretum: its making and its

meaning. University of Cambridge: Massachusetts, 1985, p. 44.

Page 10: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

10

Assim, amparado por elementos retirados das tradições católica, platônica e latina,

o Agostinho de Petrarca é grande instrutor deste modo de filosofia capaz de apaziguar os

temores do homem e elevar sua alma. De acordo com Baron, “Petrarca consegue

incorporar com sucesso o esquema casual num contexto que enfatiza a meditatio mortis

como passo indispensável em direção à educação de si”30

ao longo do diálogo, o que

parece ser a primeira e mais importante decisão para sua mutatio vitae. Portanto, é por

meio de um diálogo socrático direto com a tradição católica - que no texto se representa no

personagem de Agostinho, e que por sua vez é introduzido por elementos místicos

platônicos e morais ciceronianos - que Petrarca apresenta em Secretum sua proposta

filosófica transformadora do Homem.

1.2 – O debate da datação do Secretum e a dualidade na obra de Petrarca

De acordo com Martinelli, grande especialista nos estudos petrarcheschi, uma

releitura histórica correta do livro Secretum deve ter como ponto fundamental de referimento

sua data de composição. Até o final dos anos 60, a colocação cronológica do livro mantinha a

solução tradicional proposta por Sabbadini em 1917: de que o diálogo teria sido composto em

1342, com algumas revisões posteriores. Nesta época, contudo, a teoria inicial passa a ser

contestada por Francisco Rico, que argumenta que a ideia de um paralelismo cronológico

entre ação e redação no Secretum é falaciosa. Em sua opinião, o diálogo representa - para

além da importância e profundidade que os temas tratados pareciam exercer na vida de

Petrarca - um exercício de memória, pois o poeta mobilizaria um personagem com seu

próprio nome para representar quem ele havia sido em anos anteriores, realizando uma

reflexão madura sobre suas antigas atitudes que só poderia ter sido possível num momento

posterior.

É certo que o explicit do texto editado por Tedaldo della Casa, responsável pela

primeira transcrição completa das obras de Petrarca, indica três datas diferentes: 1353, 1349,

134731

. A crítica tradicional orientada por Sabbadini defende que o poeta redigiu finalmente

os três livros em 1358, partindo de retoques que teriam sido dados em 1347 no Livro I, 1349

no Livro II e 1353 no terceiro e último livro. Contudo, Rico alega que essas datas se referem

30 BARON, 1985, p. 45. Todas as citações apresentadas no trabalho, inclusive esta, foram traduzidas livremente

pela autora. 31

Biblioteca Laurenziana, Florence, 26 sin. Copiada ao final da década de 1370.

Page 11: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

11

não a retoques, mas sim a redações e refundições exatas do corpo inteiro do texto, e que

teriam sido realizadas de modo inverso ao proposto pela interpretação em vigor. Petrarca teria

anotado primeiramente o ano em que o Secretum sofreu sua mais ampla e decisiva

relaboração, 1353. A edição de 1349 se referiria a uma refundação intermediária do texto, e a

de 1347 à sua redação inicial, seguindo, assim, uma hierarquia de importância32

.

A crítica em geral aceita com quase unanimidade a composição entre o outono de

1342 e inverno de 1343. Em relação aos três diferentes anos marcados no explicit, Sabbadini,

por exemplo, afirma que se referem aos anos em que o texto original de 1342-43 foi

enriquecido, mas não profundamente modificado, e que a assinatura final fora preparada em

1358, cinco anos após Petrarca se mudar da Provença para Milão. Deste modo, a tradição

acredita que o Secretum foi escrito antes da composição do Rerum memorandarum libri, em

junho de 1343.

A quantidade de historiadores e filólogos que defenderam a composição original por

volta de 1342-1343, próxima à redação do Africa e do De viris illustribus, é vastíssima:

Baldelli, Korting, Voigt, Sabbadini, Foresti, Tatham, Calcaterra, Bosco, Billanovich, Wilkins.

De modo geral, podemos dizer que seu posicionamento estava baseado nos seguintes

argumentos de origem filológica: a utilização do advérbio nuper logo na Introdução, que

significaria recentemente ou há pouco tempo, o que impossibilitaria a confecção do texto por

um Petrarca “amadurecido”, o contato do poeta com o exemplar da Naturalis historia de

Plínio, o Velho33

, um conhecimento direto do diálogo Fédon de Platão, a insistência nas

tópicas ócio/amor/glória, que são refletidas em outros escritos de 1343 (canção I’vo pensando,

por exemplo), a posse das cópias das Tusculanae de Cícero34

e duas citações diretas das ad

Atticum de Cícero, com as quais ele não teria tido contato material após 1345.

Francisco Rico, contudo, está na contramão da crítica tradicional e propõe que

Petrarca poderia ter, por exemplo, movimentado uma data falsa em seu discurso de forma tão

lícita quanto sua mobilização alegórica da figura da Verdade que cai do céu para dar início à

conversa35

: ambos seriam técnicas de construção de texto. Após contestar alguns dos

principais argumentos de defesa da data de 1342, Rico levanta sua hipótese de uma datação

32 RICO, 1974, p. 15.

33 Que teria sido consultada na biblioteca papal da Provença.

34 Que ele havia deixado em Valchiusa.

35 Ibidem, p. 9.

Page 12: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

12

em 1353 baseando-se em motivos da evolução filosófica e espiritual de Petrarca. São

mobilizados por ele certos motivos “psicológicos”, como o desejado afastamento à cidade de

Avinhão, refletido na Familiar VI, 3 e nos sonetos 114 e 117, sua estadia em Vaucluse36

, o

nascimento da filha Francesca37

e o envio do irmão ao mosteiro dos Cartuxos38

.

Os personagens de Francesco e Agostinho no diálogo teriam características opostas,

complementares, que evidenciariam um distanciamento temporal, filosófico e espiritual entre

eles: a saber, um estoicismo e destaque da ratio na busca da Verdade em Agostinho por um

lado, e uma moral peripatética, baseada nos sentidos e costumes na figura de Francesco39

por

outro. O personagem de Agostinho representaria a maturidade de Petrarca e o personagem de

“Francesco” sua juventude. Assim, ao redatar o Secretum Petrarca encarnaria a tensão entre a

certeza da ratio e as impressões enganadoras do sensus. O diálogo apontaria para um “sutil

intercâmbio de personalidades e cruzamento efetivo de planos temporais, como um jogo de

espelhos cujas imagens se refletem através dos tempos”40

, uma vez que Francesco e

Agostinho conteriam etapas distintas, porém complementares, da trajetória espiritual de

Petrarca.

Sob essa interpretação, o personagem Francesco representaria um estágio

espiritualmente já superado, e Agostinho o estágio incessantemente perseguido agora, na

maturidade. Imprescindível causa deste acontecimento teria sido a estadia curta com o irmão

no mosteiro e o aprofundamento da leitura do De vera religione. Rico escreve:

A concentração na questão dos phantasmata e a semelhança ou

complemento no tratamento dos mesmos permitem conjecturar que o

Secretum e o De otio religioso (cujas versões primeiras, segundo todos os

indícios, são quase contemporâneas) respondem a um mesmo período de

interesse pelo De vera religione: período que deve se situar até 1347.

Petrarca havia lido a obra pela primeira vez em junho de 1335. O Francisco

do Secretum, contudo, queria fazer crer que o tratado agostiniano chegara

às suas mãos nas datas fictícias em que transcorrem as ações do diálogo41

.

36 Abril de 1343.

37 20 de julho 1343. Não se conhece o nome da mãe da criança, mas sabe-se que Petrarca manteve uma relação

de proximidade com a filha. Inclusive, “Quando Boccaccio foi a Veneza na primavera de 1367, conhece Eleta,

neta de Petrarca que portava o nome de sua bisavó [mãe de Petrarca]”. MARTINELLI, 1985, p. 472. 38

Abril de 1343. 39

RICO, 1974, p. 55. 40

Ibidem, p. 77. 41

Ibidem, p. 113.

Page 13: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

13

Com algumas exceções como a apresentada acima, sua argumentação pauta-se

majoritariamente num aspecto subjetivo da escrita de Petrarca que nos parece impossível de

acessar. Entretanto, nos parece justa e possível, por exemplo, a identificação temática que

Rico propõe entre Secretum e outras duas obras: De otio religiosorum e De vita solitaria,

ambos iniciados entre 1346/1347 e concluídos entre 1356/1357, no que se refere à busca por

isolamento das cidades e à valorização da meditação. Além disso, a própria questão da crítica

à escolástica e sugestão do método de meditação como mais útil ao acesso à Verdade parece

se tornar um tema recorrente após meados de 1340, orientando a composição de obras como a

Invective contra medicum (1355) e o famoso De sui ipsius et multorum ignorantia (1368).

Comparando seus textos de antes de 1345, como Africa, De viris illustribus e De

rerum memorandum libri, percebemos certa predominância da narração objetiva, o

entusiasmo pela grandeza de Roma e implacável imitação dos modelos clássicos. Já nas obras

pós-1345 os aprendizados retirados do modelo latino clássico parecem servir para outros

interesses: indagação de questões morais, reflexão sobre a vida e a morte, conciliação destes

com referências patrísticas e medievais. Para Rico42

, esta nova prosa de Petrarca incorporará

um acordo entre classicismo e cristianismo, revocando a docta pietas de São Jerônimo43

. Essa

conciliação entre doutrinas latinas e cristãs, da ética com a técnica no discurso, se dá

especialmente no âmbito da filosofia moral, um dos cinco pontos dos studia humanitatis44

, e

concordamos que ela é extremamente importante na produção de Petrarca. De acordo com

Rico, uma leitura aprofundada dos clássicos garantiria reflexões espirituais úteis a qualquer

cristão, uma vez que os problemas morais ali expostos se estendem à dimensão religiosa.

A exposição de Rico, que se posiciona na contramão da tradição aceita, recebeu as

mais diversas críticas. Hans Baron, por exemplo, se coloca ao seu lado na defesa de uma

datação pós-1342 para o texto principal de Secretum. Ele chega à conclusão de que “Petrarca

42RICO, 1974, p. 490.

43 Docta pietas representa, tal como proposto por São Jerônimo, a virtude intelectual e a própria erudição do

estudioso cristão. ETHAN, Daniel. Florence and Beyond: Culture, Society and Politics in Renaissance Italy, in:

RUMMEL, Erika. Desiderius Erasmus. Continuum: London, 2004, p. 117-118. Texto digitalizado em:

https://books.google.com.br/books?id=lqCYBvufYj0C&pg=PA118&lpg=PA118&dq=docta+pietas+jerome&so

urce=bl&ots=yCKW0Psg9f&sig=sr9ZsRRJyMDHlkBzSJdbLg40cSk&hl=pt-

BR&sa=X&ved=0ahUKEwiE8K7L8tDPAhUGEZAKHUMlAVMQ6AEIKTAC#v=onepage&q=docta%20pieta

s%20jerome&f=false 44

Para além da retórica, gramática, história e poética.

Page 14: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

14

mudou substancialmente ao menos três extensas seções desse texto”45

, ressaltando novamente

a interdependência entre Secretum e o De vera religione, assim como a relação entre estes

textos e a preparação do De otio religioso. Baron defende que diversos autores clássicos com

os quais Petrarca não era familiar antes de meados da década de 1340 são citados no Secretum

sem qualquer sinal de terem sido ali tratados por intermédio de outros autores, e também

realiza uma série de analogias entre o diálogo e as epístolas Familiares já citadas por Rico46

.

No que se refere, entretanto, ao argumento defendido por Rico sobre o personagem de

Agostinho representar um Petrarca maduro e de tendências estoicas, Baron coloca-se contra47

.

Uma pergunta importante para nossa pesquisa, levantada através dessa revisão, é a

seguinte: seria o Secretum, como propõe Rico, um embate entre o Francesco aristotélico,

corrompido pelos sentidos, e um Agostinho estoico? Sobre a hipótese principal de Rico

devemos especificar, primeiramente, a qual uso da doutrina estoica ele estaria se referindo ao

identificá-la em Petrarca, o que o próprio autor não faz. Certamente ele não poderia estar

falando do estoicismo de pórtico ou antigo48

e nem do estoicismo médio49

. O estoicismo ao

qual poderíamos nos referir tratando de um humanista como Petrarca é o imperial (I-III d.C),

com assimilação de elementos da ética cínica50

. Importantes representantes desta fase são os

romanos Sêneca, Epíteto e o Imperador Marco Aurélio, que dissertam sobre a ética exaltando

a liberdade e dignidade do homem, que deve ser capaz de se deparar com a morte de forma

serena aceitando desde sempre a perenidade do mundo51

.

Neste caso, não seria inviável sugerir que a meditatio mortis proposta pelo

personagem de Agostinho a Petrarca, especialmente no livro I, segue orientações do

45 BARON, 1985, p. 4.

46 Devido às limitações de página, não é será possível contemplar aqui esta discussão em toda sua profundidade.

Ela é tratada extensivamente entre as páginas 110-114 (op. cit). 47

O principal ataque à proposta de Rico, contudo, vem de Bortolo Martinelli, no seu Sulla data del Secretum,

acusando-o de manipulação de texto e dizendo que, no trabalho de Rico, a ciência cede posto à opinião. Ele

acredita que o artifício utilizado por Rico de transformar a revisão de três textos em três redações novas é

falacioso e se trata de um caso de petitio principii, o que já esvaziaria o valor de sua argumentação desde o

início. 48

Que se refere à sistematização e expansão da doutrina estoica ensinada pelo mestre Zenão de Cítio, ao longo

dos séculos III-II a.C. 49

No qual há uma apropriação de elementos neoplatônicos e epicuristas ao longo dos séculos II-I a.C. 50

Escola helenística fundada por Diógenes de Sinope (404 ou 412 a.C - 323 a.C), que propunha uma reforma no

estilo de vida através do retorno à natureza e libertação das convenções políticas, sociais e culturas. Defendia

uma convergência entre filosofia e vida, na busca de eliminação das necessidades supérfluas do Homem. 51

Não sobreviveram obras completas de qualquer filósofo estoico das duas primeiras fases. Apenas textos

romanos da última fase chegaram completos até os dias atuais.

Page 15: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

15

estoicismo latino. Contudo, as observações de Baron sobre o problema nos parecem muito

mais coerentes: nas primeiras páginas do livro I do Secretum, o personagem de Agostinho

emerge não como um filósofo semi-estoico, mas como um professor religioso e

minuciosamente patrístico52

. É certo que o conflito proveniente das paixões humanas é

apontado pelos estoicos desde Zenão; contudo, Baron identifica versos virgilianos em

Agostinho que se referem ao mesmo conflito53

. Sendo assim, a melhor maneira de responder a

esta pergunta não é ressaltando um estoicismo em Petrarca, mas sim um possível estoicismo

na obra de Agostinho54

.

É certo que o debate sobre a data do Secretum é extremamente longo e detalhado, e o

que desejamos apresentar aqui é uma resumida revisão de seus pontos mais importantes. Essa

releitura, contudo, nos permite considerar a relevância que a obra em específico possui dentro

de toda a produção petrarchesca e com isso reforçar a magnitude da presença de elementos

agostinianos e platônicos em sua filosofia.

Verificamos, assim, a exposição dos seguintes temas em Secretum: exposição da

miséria e fraqueza humana, introspecção, disposição socrática (através de Agostinho) ao

conhecimento de si, visão mística, rememoração platônica da Verdade, desvalorização das

impressões físicas e evidenciação da sabedoria interior. O conflito humano constante entre o

corpo – com seus prazeres – e a alma – em sua busca pela Verdade - só pode ser resolvido

quando é feita a escolha pelo caminho do conhecimento de si, da meditação e do desejo da

virtude.

Percebemos que a distração causada pelos prazeres do corpo na busca pela plenitude

espiritual e sabedoria é, como assinalado desde o início, um dos tópicos mais marcantes da

filosofia de Petrarca. De acordo com Rico, o mal profundo do protagonista Francesco em

Secretum é o engano sobre si, a perversa opinio e a confusão causada pelas falsas imagens

que nublam a vista55

: deste modo, apesar de diferentes vícios serem apontados ao longo das

diversas páginas do diálogo, fica claro que o pior erro humano, aquele no qual frequentemente

52 BARON, 1985, p. 34.

53 No livro XIV da Cidade de Deus Agostinho explora a ideia de pecado original como fonte de vida carnal e das

paixões viciosas, apresentando diretamente argumentos platônicos e estoicos (capítulos VII e VIII). 54

Ao refletirmos sobre a apropriação de elementos agostinianos nos discursos morais e espirituais de Petrarca

devemos também considerar que ela é seletiva, como qualquer apropriação. O Agostinho que claramente

identificamos em Secretum é o das Confessiones e De vera religione, não o teólogo dogmático que servirá de

matéria para as discussões escolásticas e suas incessantes quaestione disputatae. 55

RICO, 1974, p. 22

Page 16: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

16

incide Petrarca, é mentir a si mesmo levando-se pelos sentidos, pois o homem que assim age

impossibilita a própria felicidade.

Podemos dizer, portanto, que a filosofia defendida por Petrarca parece estar

circundada por uma tensão constante entre os seguintes motivos: homem x mundo, interior x

exterior, alma x natureza, iluminação x sensação. Estes tópicos pontuam, nos limites de sua

filosofia, as congruências com a tradição agostiniana e platônica, assim como os desvios

perante a tradição aristotélica. O estudo mais profundo de sua crítica à medicina certamente

possibilitará a compreensão destas tensões de maneira mais clara, uma vez que nos

aprofundaremos no modelo de estudo que Petrarca não considera virtuoso e enriquecedor à

alma.

Contudo, através do conteúdo já analisado, podemos propor que o conhecimento

verdadeiro para Petrarca não é derivado do contato sensitivo com o mundo, mas sim de uma

experiência de iluminação espiritual e rememoração da verdade que poderia ser descrita como

uma ascensão cognitiva. É, portanto, neste aspecto de sua filosofia que se identifica um forte

alinhamento tanto com a agostiniana quanto com a platônica, uma vez que ambas se

constroem sobre um ceticismo perante os sentidos e a percepção sobre o mundo que deriva

deles.

Considerando a exposição realizada até agora, verificamos também que a discussão

que o poeta levanta em seus escritos sobre o conhecimento verdadeiro e virtuoso produz

fortes dissonâncias em relação à filosofia escolástica, que se referem tanto ao processo de

produção de conhecimento sobre o mundo (conflito em relação ao modo de produzir

conhecimento escolástico, que, por ser silogístico, não se aproxima do exercício construtivo

da meditação), quanto ao nível moral (se produz ou não homens bons) e ao espiritual (se eleva

ou não a alma a Deus).

Através deste estudo espera-se ter comprovado que a filosofia proposta por Petrarca

em sua obra é aquela existente em Deus: imutável e eterna, porque Deus é sempre igual a si

mesmo e não conhece a passagem do tempo. Tudo o que há para se conhecer, portanto, é

Deus, pois o amor a Deus é amor à Sabedoria56

. Deus deve ser o ponto mais alto da vontade

humana57

; assim, é ele que se encontra quando se medita e quando se deseja a virtude. Da

56PETRARCA, Fam X,5.

57PETRARCA, 1906, p.21.

Page 17: Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de … · 2017-07-11 · 1 Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca Maria Rita da Motta Thimoteo1

17

mesma forma, o amor a Deus deve estar acima do amor a qualquer tipo de conhecimento

mundano58

, porque é o amor a Ele que faz dos homens realmente bons, e ser bom é a única

coisa que o filósofo deve necessariamente aprender.

Referências bibliográficas

Primária:

PETRARCA, F. De secreto conflictu curarum mearum (Secretum). Milano-Napoli: Riccardo

Ricciardi editore, 1955.

__________, F. Delle Cose Familiari, tradução ao italiano por FRACASSETTI, Giuseppe.

Firenze: Le Monnier, 1863, v.1 e v.5 de 1867.

Secundária:

AGOSTINHO, Confissões, tradução por SANTOS, J. Editora Vozes: Petrópolis, 2002.

__________, Cidade de Deus, parte II, tradução por LEME, O. Vozes de Bolso: Petrópolis,

2012.

BARON, Hans, Petrarch’s Secretum: its making and its meaning. University of Cambridge:

Massachusetts, 1985.

BOÉCIO, De consolatione philosophiae. Tradução de Pablo Masa, Prólogo e notas de

Alfonso Castaño Piñan. Buenos Aires: Aguilar Argentina.

CÍCERO, Tusculanae Disputationes, Liber Primus, XXX, 74, Internet,

http://www.thelatinlibrary.com/cicero/tusc1.shtml

DIONISISOTTI, Fortuna del Petrarca nel Quattrocento, in <IMU”, XVII (1974).

ETHAN, Daniel. Florence and Beyond: Culture, Society and Politics in Renaissance Italy, in:

RUMMEL, Erika. Desiderius Erasmus. Continuum: London, 2004.

GARIN, E. Storia della Filosofia Italiana, V.I. Torino: Giulio Einaudi, 1966.

KRISTELLER, Eight Philosophers of the Italian Renaissance, Stanford University Press:

1964.

MARTINELLI, Sulla data del Secretum del Petrarca, in Critica letteraria, 13. Loffredo

Editore: Nápoles, 1985.

PLATÃO. A República. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

__________, Fedon, Versão eletrônica do diálogo platônico “Fedão”. Tradução: Carlos

Alberto Nunes, grupo Acrópolis.

RICO, Francisco, Lectura del Secretum, in: Vida u Obra de Petrarca, v. I. University of

North Carolina, 1974.

VAN ROSSEM, Que és um diálogo socrático?, Revista acadêmica P@kenredes. Volume I,

n9.

58 Idem.