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matraga, rio de janeiro, v.18 n.29, jul./dez. 2011 11 DOIS MOMENTOS DA ÉPICA ÁRCADE-NEO- CLÁSSICA BRASILEIRA: VILA RICA E MUHURAIDA 1 Anazildo Vasconcelos da Silva (UFRJ) Christina Bielinski Ramalho (USP/FAPESP) RESUMO Estudo das obras Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa, e Muhuraida, de Henrique João Wilkens, que integram a épica árcade-neoclássica brasileira, com enfoque nas características da produção épica da época e nos recursos inventivos dos poetas árcades-neoclássicos brasileiros. PALAVRAS-CHAVE: épica árcade-neoclássica brasileira; Vila Rica No século XVIII, surge uma nova manifestação do discurso épico, contaminada pela concepção literária árcade-neoclássica, que denomi- namos Modelo Épico Arcádico-Neoclássico 2 , e que assinala uma nova etapa da épica ocidental. No âmbito da Literatura Brasileira, se, por um lado, o ideário da poética árcade-neoclássica era de difícil adaptação para expressar a natureza americana na vertente lírica do bucolismo, como declarou o próprio Cláudio Manuel da Costa no prólogo ao leitor das Obras Poéti- cas, por outro, serviu para instigar nossos poetas a buscarem uma ins- piração própria de expressão. Entende-se que a concepção literária árcade-neoclássica, uma vez forjada no seio cultural do velho mundo, estivesse apta para expressar a mentalidade do homem europeu do século XVIII, capaz de transpor os conceitos de iluminismo, enciclopedismo e racionalismo do pensamen- to filosófico para a experiência da realidade existencial. Nesse sentido, tal concepção fazia-se inadequada para expressar a mentalidade nativa do novo mundo. Carecendo de uma memória cultural anterior, ficava o poeta brasileiro, por exemplo, impedido de extravasar o sentimento de

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    DOIS MOMENTOS DA PICA RCADE-NEO-CLSSICA BRASILEIRA: VILA RICA E MUHURAIDA1

    Anazildo Vasconcelos da Silva(UFRJ)

    Christina Bielinski Ramalho(USP/FAPESP)

    RESUMOEstudo das obras Vila Rica, de Cludio Manuel da Costa, eMuhuraida, de Henrique Joo Wilkens, que integram a picarcade-neoclssica brasileira, com enfoque nas caractersticasda produo pica da poca e nos recursos inventivos dospoetas rcades-neoclssicos brasileiros.PALAVRAS-CHAVE: pica rcade-neoclssica brasileira; Vila Rica

    No sculo XVIII, surge uma nova manifestao do discurso pico,contaminada pela concepo literria rcade-neoclssica, que denomi-namos Modelo pico Arcdico-Neoclssico2, e que assinala uma novaetapa da pica ocidental.

    No mbito da Literatura Brasileira, se, por um lado, o iderio dapotica rcade-neoclssica era de difcil adaptao para expressar anatureza americana na vertente lrica do bucolismo, como declarou oprprio Cludio Manuel da Costa no prlogo ao leitor das Obras Poti-cas, por outro, serviu para instigar nossos poetas a buscarem uma ins-pirao prpria de expresso.

    Entende-se que a concepo literria rcade-neoclssica, uma vezforjada no seio cultural do velho mundo, estivesse apta para expressara mentalidade do homem europeu do sculo XVIII, capaz de transpor osconceitos de iluminismo, enciclopedismo e racionalismo do pensamen-to filosfico para a experincia da realidade existencial. Nesse sentido,tal concepo fazia-se inadequada para expressar a mentalidade nativado novo mundo. Carecendo de uma memria cultural anterior, ficava opoeta brasileiro, por exemplo, impedido de extravasar o sentimento de

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    exlio, impelido, embora, pela concepo literria, a expressar o desejode retornar a um passado inexistente. Seria natural, portanto, que alacuna aferida no segmento da tradio nativa, provocada pela ausnciada experincia de exlio, levasse o poeta rcade brasileiro a projetar sobreo quinhentismo europeu os referenciais de busca do equilbrio, transfor-mando o desconforto do choque em convencionalismo e afetao.

    No foi bem o que aconteceu, contudo, com os nossos melhorespoetas que, alados de inspirao prpria, souberam explorar acriatividade da concepo arcdica para integrar a tradio nativista namatriz literria importada. No caso da epopeia, a retomada da tradiopica, renovada na manifestao literria da concepo rcade-neoclssica, permitiu no s a integrao da tradio nativa nas obrasparticulares, mas tambm a insero destas no curso da pica ocidental.

    Os poetas do sculo XVIII retomam a tradio pica a partir daemulao direta dos autores renascentistas que lhes serviram de mode-lo, e dialogam indiretamente com os autores clssicos, referenciados,por sua vez, pelos picos renascentistas. Mas no se tome a explicitaodo modelo renascentista na epopeia neoclssica como limitao da ca-pacidade criativa do poeta e amesquinhamento da obra, uma vez que aemulao tem a dupla funo de possibilitar o reconhecimento de umanova manifestao do discurso pico e inserir as novas obras no cursoda pica ocidental. A emulao uma exigncia pica, mas no signifi-ca que o poeta tenha a obrigao de superar o seu modelo, emborapossa valer-se da proposta de ruptura, implcita na nova concepoliterria, para realar a grandeza de seu canto, como faz Cames aoemular os poetas clssicos (Cessem do sbio grego e do troiano), res-saltando, com o endosso da tradio clssica, a natureza pica do seupoema e, com o respaldo da nova concepo literria, a criao de umanova epopeia (um valor mais alto se alevanta).

    A tradio pica retomada pelos nossos poetas do sculo XVIIIa partir da emulao direta dos picos renascentistas, sobretudo Cames,escolha favorecida pela nacionalidade portuguesa da colnia, pela iden-tidade da lngua e pela qualidade literria de Os Lusadas.

    Nas epopeias brasileiras do modelo pico rcade-neoclssico,vamos encontrar ainda a identidade herica guerreira, prpria de co-munidades brbaras, atribuda aos heris indgenas que, excludos doparadigma civilizatrio, alcanam a glria com a morte honrosa nocampo de batalha. Alis, esse mesmo princpio da glorificao pelofeito herico individual que orienta a construo das heronas indge-

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    nas dos episdios lricos que alcanam a glria sublimada com a mortepor amor ou compartilham da insero de seu parceiro no mbito domaravilhoso. Cabe recordar que a identidade herica incorpora o epos,ou seja, os referentes histricos e simblicos gerados no seio das repre-sentaes socioculturais de um povo, grupo ou comunidade, e o ethos,ou seja, as caractersticas predominantes nas atitudes e nos sentimentosdos indivduos, que particularizam as manifestaes culturais de seusrespectivos agrupamentos. A interveno do poeta, para selecionar, nombito das representaes socioculturais de uma comunidade, povo enao, os referenciais histricos e simblicos legitimados pelo ethoscultural, orientada pelo iderio da concepo literria vigente.

    A Literatura Brasileira contabiliza, sob a influncia renovadorado Arcadismo e do Neoclassicismo, cinco novas epopeias conhecidasque, realizando matrias picas que fundem fatos relevantes da histriacolonial com a aderncia mtica nativa, atualizam uma nova etapaevolutiva da epopeia nacional. So elas, por ordem de aparecimento: OUraguai (1769), de Baslio da Gama, Vila Rica (1773)3, de Cludio Manuelda Costa, Caramuru (1781), de Santa Rita Duro, Muhuraida (1785), deHenrique Joo Wilkens e A Conceio (1995, datado de 1804), de To-ms Antonio Gonzaga. Com relao ao projeto nacionalista, a picarcade-neoclssica realiza uma etapa de integrao da expressodiferenciadora da brasilidade na matriz literria importada, conferindo tradio americana nativa a universalidade das formas poticas e oaprimoramento artstico da expresso literria brasileira. Essas obrasinauguram tambm, na Literatura Brasileira, a galeria pica dos herisnacionais, franqueada ao ingresso das personalidades hericas, prota-gonistas de episdios relevantes da histria colonial, independente-mente, dada a natureza histrica do momento fundador, da nacionali-dade portuguesa ou brasileira que ostentem de nascimento.

    Tambm para compor o panorama literrio no Brasil da poca,recordamos que o desenvolvimento da colnia despertava no meio in-telectual o desejo de alcanar o reconhecimento da metrpole, o queincentivava a elevao literria do padro de qualidade das obras coma valorizao dos elementos da terra. Nesse sentido, a transposio dapotica rcade-neoclssica no sculo XVIII, associada s idias iluministasde reformulao do pensamento ocidental, se presta, pelo iderio arts-tico e filosfico do movimento, integrao literria da tradio nativapelo vis nacionalista, ainda que imperceptvel na inteno criativa.Exemplo disso est em O Uraguai, em que a heroicizao pica de

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    Cacambo pela ao narrativa, aparentemente revelia da inteno doeu-lrico/narrador, poderia ter sido motivada pela impregnao nacio-nalista do poeta.

    Seguiremos, agora, com uma apresentao sinttica da anlisedas obras Vila Rica e Muhuraida, que configuram essa etapa do per-curso pico brasileiro, e que aqui recebem destaque especial pelo fatode terem recebido pouca ou nenhuma apreciao crtica, principalmen-te sob o vis da teoria pica. Assim, ainda que O Uraguai e Caramurusejam as obras picas brasileiras em que mais se destaca a questo dorealce figura herica do indgena, que dar, inclusive, sustentao posterior leitura que o romantismo brasileiro far da cultura nativa,optamos, neste breve texto, trazer tona aspectos das obras Vila Rica eMuhuraida que justificam sua presena na galeria da pica rcade-neoclssica nacional.

    1. Vila RicaCludio Manuel da Costa constitui um caso interessante de opi-

    nio crtica, pois, no consenso de nossos historiadores, ocupa, ao mes-mo tempo, o posto de maior poeta lrico do perodo colonial e o depoeta pico decadente e medocre. Acreditamos tais vises negativasdecorrem de uma atribuio crtica ao gnero pico, tido como ultra-passado, e no propriamente ao poeta, opinio que pode ser revista debom grado desde que se reconhea a trajetria evolutiva da epopeia.

    Vila Rica, datado de 1773, circulou em cpias manuscritas noBrasil e no exterior at sua primeira edio grfica em 1839. Da emdiante teve outras edies baseadas ora na primeira ora em manuscritosdiferentes, criando controvrsias que prejudicaram sensivelmente a re-cepo crtica do poema. De qualquer modo, embora no haja ainda aedio crtica que a questo historiogrfica do texto requer, j estamosa caminho dela com a cuidada edio de 1966 da Aguilar que, cotejan-do edies anteriores e manuscritos, aponta as variantes e sugere corre-es. A falta de uma edio em vida do poeta, sua longa circulao emcpias manuscritas de m qualidade, retardando o estabelecimento daescritura original, teriam afetado a apreciao crtica da obra? poss-vel que sim, quando se pensa na diviso da crtica em relao nature-za e qualidade literria da obra, radicalizada nos extremos dos juzosde valor. A questo aqui, contudo, no tomar partido, acatando osmritos ou os demritos j impostos, mas lanar um novo olhar sobre o

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    poema, livre do tacanho preconceito pico de gnero que tem prejudi-cado a apreciao crtica e o reconhecimento literrio no s de VilaRica, mas de todas as epopeias brasileiras, inclusive as modernas.

    Cludio Manuel da Costa, resgatando a tradio pica e inserindoseu poema no curso da pica ocidental, fez a escolha deliberada deescrever uma epopeia sabendo, perfeitamente, os recursos que a epopeia,sob a inspirao da nova concepo literria inerida no discurso, ofere-cia para a consecuo de suas intenes criativas. Ele realizou literari-amente uma matria pica legtima que tem sua dimenso real reconhe-cvel na sequncia de eventos histricos que, encadeados no percursoda viagem do governador Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho sMinas Gerais, no incio de sculo XVIII, culminam com a fundao dacidade de Vila Rica em 1711. Os eventos histricos se prendem a dife-rentes temticas da Histria do Brasil, como as guerras regionais, nocaso a dos Emboabas, as campanhas contra os ndios, as viagens dosbandeirantes, a descoberta do ouro, a conquista do serto, a mineraoe a fundao de povoados. Todas essas temticas tiveram desdobramen-tos no curso de nossa formao histrica, culminando, no raro, comluta e derramamento de sangue.

    Os vrios eventos atrelados trajetria do heri servem deroteirizao histrica para a fundao de Vila Rica que , de acordocom a proposio do poema, o evento central. Ou seja, o poema aepopeia de fundao de Vila Rica. Nele, os demais eventos encadeadosna ao herica, como o confronto com os ndios, com os bandeirantes,com a guerra dos emboabas, etc., servem de contextualizao histricapara a viagem do heri, mas no integram a motivao intencional docanto, e, por isso mesmo, no esto configurados em seus respectivosdesdobramentos histricos.

    A escolha dos eventos no aleatria, como poderia parecer primeira vista, mas motivada pela inteno pica de envolver o herina aderncia mtica inerente a eles, construindo o plano maravilhosodo poema. O confronto com os bandeirantes desbravadores, para osquais o serto mtico nunca dantes pisado, inspito e desconhecido,reproduz o mesmo desafio herico do mar mtico, nunca dantes nave-gado, para os navegantes descobridores, confere ao heri do poema, emsua viagem ao corao do serto dos Gerais, a condio mtica paraagenciar o plano maravilhoso, qualificando-o para o encontro com en-tidades mticas, como o gnio da terra. O confronto com os ndios, deigual modo, confere ao heri a condio mtica para agenciar o maravi-

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    lhoso indgena, ganhando a qualificao herica nativa. A adernciamtica crist configura no heri as virtudes da f, que o qualificam parareceber as graas divinas, garantindo-lhe a proteo da Providnciapara a realizao de sua viagem e o sucesso de sua ao pacificadora.

    Claudio Manuel da Costa vai usar abundantemente o episdiolrico para fazer a interao entre os planos estruturais do poema eprojetar o seu heri, que se filia estirpe do heri civilizado e pacifica-dor e no a do heri guerreiro tradicional, e o relato histrico no planomaravilhoso. E o faz magistralmente, valendo-se de vrios recursos re-conhecidamente picos, como a personificao de entidades abstratas,como a Traio, o Engano e a Hipocrisia, que, filiadas s divindadesmitolgicas das frias, insuflam animosidade no peito dos adversriosdo heri (canto VIII); a criao de figuras mticas como a de Filoponte,o gnio da terra, que aparece materializado na figura de um velhondio, ou de personagens histricas como o fantasma de Dom RodrigoCastelo Branco, governador assassinado na casa de Borba Gato, queconversam com o heri em estado de viglia ou em sonhos, aportandovises histricas do presente, do passado e do futuro das Minas Gerais(canto I e V); a induo de vises profticas momentneas atravs demetamorfoses inusitadas da natureza, como a oferta da mquina do mundo(canto VI); e outros.

    Cludio consegue sustentar a unidade estrutural do poema, de-senvolvendo nos episdios lricos a ao herica inerente aos eventossecundrios, encadeados no percurso da marcha do heri serto aden-tro. Assim, enquanto Albuquerque realiza sua marcha pacificadora nopresente histrico da narrativa, os episdios lricos, desencadeando aao herica na imagstica das vises histricas do passado e do futuro,se sucedem em cenas narrativas que vo mostrando os confrontos vi-olentos, as aes de crueldade, o derramamento de sangue, os suicdios,os assassinatos, as privaes e os sofrimentos fsicos e morais, nomean-do o legado indesejvel que compe a fatura da conquista do sertopelos bandeirantes, da captura escravagista e da sujeio dos ndios aopoder blico do colonizador, da busca e descoberta do ouro, da mine-rao, da fundao de povoados, da construo e desenvolvimento dascidades, recompondo assim, em torno do evento de fundao de VilaRica, o processo histrico da colonizao.

    Vila Rica, tecnicamente, compe-se de 2.868 versos decasslaboscom rima emparelhada e estrofao livre, distribudos em dez cantos detamanho irregular. O Canto I se inicia explicitando a inteno pica,

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    com a proposio, em que o poeta declara o tema e o objetivo de seucanto: dar destaque fundao da capital das Minas Gerais pelo heriAntnio de Albuquerque: Cantemos, Musa, a fundao primeira/ DaCapital das Minas, onde inteira/ Se guarda ainda, e vive inda a mem-ria/ Que enche de aplauso de Albuquerque a histria. 4(v. 1 a 4).

    Segue-se uma segunda invocao nativa (j que no primeiro ver-so a Musa clssica invocada), em que o poeta pede inspirao paratornar seu canto grandioso:

    Tu, ptrio Ribeiro, que em outra idadeDeste assunto a meu verso, na igualdadeDe um pico transporte, hoje me inspiraMais digno influxo, porque entoe a Lira,Por que leve o meu Canto ao clima estranhoO claro Heri, que sigo e que acompanho:Faze vizinho ao Tejo, enfim, que eu vejaCheias as Ninfas de amorosa inveja.(v. 5 a 12)

    Prossegue com a dedicatria ao Conde de Bobadela, Gomes Freirede Andrade, que foi governador interino de Minas Gerais: E vs, honrada Ptria, glria bela/ Da Casa e do Solar de Bobadela,/ Conde feliz, emcujo ilustre peito/ De alta virtude respeitando o efeito,/ O Irmo defuntoreviver admiro:/ Afvel permiti que eu tente o giro/ Das minhas asas pelaglria vossa,/ E entre a srie de Heris louvar-vos possa. (v. 13 a 20).

    Faz em seguida uma sntese histrica, mencionando as regies jconquistadas, a busca de metais e pedras preciosas, e as formas de go-verno na colnia, o que serve de contexto para o anncio da novaconquista que o poeta vai celebrar: a fundao da capital das MinasGerais pelo heri Antnio de Albuquerque, que vai ser guiado peloGnio experto.

    A narrao tem incio na estrofe sete com a apresentao deAlbuquerque acampado nas margens do rio das Velhas, j em meio daviagem, gozando do descanso reparador do sono, sob a vigilncia deGarcia. O heri acorda de repente, assustado com a viso e as palavrasaterradoras de Dom Rodrigo, o governador assassinado na casa de BorbaGato, que lhe apareceu em sonho, e narra, em seguida, o episdio lricodo fantasma para Garcia que faz a interpretao.

    Em seguida entra no acampamento uma comitiva que voltava deum confronto com os tapuias, que afugentaram com um tiro de espin-

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    garda, trazendo trs velhas ndias, as nicas sobreviventes que no con-seguiram fugir. Uma delas era a me de Aurora, grande amor de Garciano passado, que, ao reconhec-la, se enche de lembranas e ficarememorando a relao com a amada, enquanto os demais vo se alo-jando para o descanso.

    O canto II se inicia com a descrio da chegada da noite que doportunidade a Garcia para ir ter com as duas ndias, recm-chegadasao acampamento, em busca de notcias da amada, o que constitui oepisdio de Negua. Albuquerque convoca os companheiros para oConselho e, discorrendo sobre sua misso e os obstculos que se inter-pem no caminho, fala ento de um sonho repetido que o atormenta, enarra o episdio do Monte. No final do canto, encerrado o Conselho,chega Borba Gato, que recebido festivamente por todos.

    Tem incio o canto III com a fala de Borba Gato, que, aps justi-ficar-se pela morte do governador Dom Rodrigo, narra o episdio lri-co de suas conquista de bandeirante. O resto do canto ocupado comarranjos de provises e a chegada de um jovem ndio que tenta matarGarcia durante o sono. Ferido por Garcia, o ndio socorrido por or-dem de Albuquerque.

    No canto IV, quando o heri se preparava para seguir viagemaparece uma sucuri enorme, que tinha engolido trs veados inteiros.Depois de grande rebolio, acham os restos do governador Dom Rodrigoe lhe do enterro digno. Aps o enterro, o ndio que agredira Garcia, jrecuperado dos ferimentos que sofrera, conta que se chama Argasso,que um cacique Manax e est apaixonado por Aurora. Esclarece queo atentado a Garcia foi motivado por amor, e narra em seguida, emdilogo com Garcia e Negua, o episdio de Aurora.

    O canto V se abre com uma formidvel descrio do Itamonte esegue com as falas de Frei Francisco e Frei Conrado, intercaladas pelavoz do eu-lrico/narrador, sobre o episdio da Guerra dos Emboabas.Encerra-se o canto com o episdio lrico do teatro de imagens, encena-do por Filoponte, que faz desfilar aos olhos do heri, em exuberantesimagens projetadas na parede da caverna, eventos do passado, do pre-sente e do futuro da conquista histrica dos Gerais.

    No canto VI, o gnio Filoponte continua sua fala com o episdioda Mquina do Mundo, descrevendo, com a sutil sensibilidade poticado rcade Glauceste Satrnio, a soberba geografia das Minas Gerais e odesbravamento dos sertes pelos bandeirantes paulistas e lusitanos.Garcia volta da aldeia Manaxs, e o Padre Faria narra o episdio lrico

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    de Aurora e Argasso, atribuindo o fim trgico do casal a ao da feiti-ceira Terifia que, criando uma viso ilusria, faz com que Argassomate Aurora e se suicide em seguida.

    No canto VII, a marcha prossegue, e a comitiva chega s margensde um ribeiro, em frente da serra de Itamonte, onde tem lugar o epis-dio lrico de Garcia e Eulina, em que o poeta, mesclando a mitologiaclssica com a indgena, ensaia a construo de um maravilhoso nativo.O canto termina com a visita do heri Albuquerque disfarado ao acam-pamento inimigo para se encontrar com Sebastio Pereira de Aguilar,chefe contrrio s idias dos rebeldes, fazendo com ele uma aliana.

    O canto VIII tem incio com o episdio das frias, animizao deentidades abstratas, como a Traio, o Engano, a Hipocrisia que atiamos nimos dos revoltosos. O episdio de Garcia e Eulina prosseguedesdobrado no episdio da Fbula do Ribeiro do Carmo, em que se d,mais uma vez e de forma admirvel, a fuso da mitologia clssica coma indgena, explorando o colorido das pedras preciosas na construodo maravilhoso nativista.

    No canto IX, o episdio Proftico conclui a fala de Eulina, queexplica a Garcia as imagens que vo passando, a sucesso dos governa-dores de Minas e a fundao de diversos povoados e vilas. Um tropelinterrompe a narrao proftica, e o palcio se desfaz. Garcia retornaao grupo e comea a fundao da Vila. Ento Bartolomeu Bueno narrao episdio lrico da lenda de Blzimo que, ganhando a mo de Elpiniranuma disputa com Argante, acaba morrendo com a amada numa arma-dilha preparada pelo rival. Albuquerque fecha o canto com um discur-so que d destaque sua vitria.

    No canto X, inspirado no Adamastor, tem a fala final de Itamontedirigida ao heri, e seguem-se os preparativos, a fundao de Vila Ricae o eplogo do poema.

    tu, por tantos riscos triunfante,Albuquerque feliz, pois que a fortunaTe conduziu com mxima oportunaA registar de perto os meus domnios,Pois que cortados os fatais desgniosDo conjurado bando alegre pisasEste verde Pas, onde eternizasEm gloriosos feitos o teu nome,Deixa que em teu obsquio a empresa tomeDe ir j desentranhando do meu seio

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    Os mrmores mais finos; nisto veioPulando desde o centro um Padro lisoDa mais subida massa; eu j divisoNele entalhadas do cinzel agudoAs Rgias Armas; tanto ao destro estudoDe Praxteles no devera a idade:Sobre o quadro da base eternidadeSe recomenda a estampa; ao alto erguidaSobre a coluna, a ponta est partidaDe um aguado alfanje; assim denotaQue aos crimes ameaa, e o sangue esgotaDos que entregues prfida maldadeDesconhecem as leis da humanidade

    Enfim sers cantada, Vila Rica,Teu nome impresso nas memrias fica;Ters a glria de ter dado o beroA quem te faz girar pelo Universo.

    Vila Rica , nas palavras do prprio poeta, um teatro de imagens,definio que, tendo em vista a elaborao estrutural da narrativa, lhecabe muito bem. No que se refere questo do heroismo, Vila Ricaaporta outra contribuio importante para integrao da tradio picana Literatura Brasileira: a criao da galeria dos heris nacionais. Opoema constri duas identidades hericas, a do novo heri metonmicode povo e nao, agente do processo civilizatrio, inspirado nos ideaisnobres e altrustas, representado pelo governador Albuquerque, e a doheri individual, movido pelo sentimento de aventura guerreira, repre-sentado por Garcia Dias. O poema realiza internamente a transio doconceito de heri guerreiro, movido pela destreza pessoal e pela forafsica, para o de heri cultural, movido pela ao moralizante e pelosanseios da sociedade, conseguindo, dessa forma, integrar os dois tiposna galeria dos heris. Com Albuquerque ingressam os demais heriscivilizadores na pessoa dos governadores nomeados no canto profticode Eulina, com Garcia, os demais heris bandeirantes nomeados pelognio Filoponte. Tambm os heris indgenas participantes dos eventoshistricos e lendrios vinculados ao desbravamento do serto, com des-taque para os protagonistas dos episdios lricos, especialmente Aurorae Elpinira que ingressam na galeria das heronas, trazendo junto comelas a antecessora Lindoia e as sucessoras Paraguau e Moema. Essaconjugao harmnica de diversos tipos de contribuies e experinci-

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    as heroicas traduz o real envolvimento da voz potica com a viso deuma realidade nacional na qual j no caberia privilegiar um ou outrosegmento cultural, ignorando, pois, a complexidade cultural brasileira.

    De outro lado, para dar maior rigor e fundamentao s suasestratgias de composio (o que constitui o plano literrio da epopeia),o poeta cria um paratexto informativo, composto pela Carta Dedicat-ria, Prlogo e Fundamento Histrico, que antecede o poema, e asnotas que o acompanham. O Fundamento Histrico, certamente inspi-rado em Voltaire, que compe com os demais o plano de referncia dopoema, no constitui nenhuma aberrao, at pelo contrrio, um ele-mento indispensvel da pica. A epopeia, nutrindo-se do real e do mito,exige, para a perfeita compreenso de sua dimenso histrica, a exis-tncia de um paratexto que sirva de suporte ou fundamento histricodos eventos narrados. A Ilada de Homero no seria entendida, nem emsua poca nem na nossa, sem as diversas narrativas mticas sobre aguerra de Tria e sobre os heris gregos que integraram o exrcito deAgamenon, e a Eneida, de igual modo, sem o conhecimento do paratextolendrio e de obras como Annales de nio. Quando o paratexto histri-co externo se perdeu, devido criao de matrias picas apartadas datradio oral, se fez necessria sua incluso na matria narrada do po-ema, como Baslio da Gama fez, por exemplo, em O Uraguai, utilizandoa contextualizao da guerra guarantica como suporte da ao hericados ndios na batalha de Caiboat.

    Vale considerar ainda a utilizao da concepo literria rcade-neoclssica, sob a inspirada vocao potica de Cludio Manuel da Cos-ta, adaptada para a integrao pica da tradio nativista (a natureza, ondio e a perspectiva cultural e histrica) sob o vis nacionalista emformao, fazendo da epopeia brasileira Vila Rica uma legtima ex-presso artstica do sculo XVIII. Sob a influncia da concepo rcade,Cludio, o poeta da penha, traduz a natureza ptria contrapondo-a,implicitamente, ao modelo esteticamente importado de uma naturezaeuropeia, trao, inclusive, tambm conhecido em sua lrica, quando di-versas vezes discute a incompatibilidade entre o modelo importado dedescrio buclica e a natureza real com a qual se defronta no Brasil.

    Alm dessa contribuio e da relevncia dos episdios lricosque integram o imaginrio europeu e o nativo em um rol de lendas enarrativas maravilhosas, o poema revela uma conscincia crtica acercada condio indgena bastante elaborada, ainda que discreta em meioaos eventos que mesclam as perspectivas portuguesa, paulista e mineira

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    DOIS MOMENTOS DA PICA RCADE-NEOCLSSICA BRASILEIRA: VILA RICA E MUHURAIDA

    sobre a questo desbravamento do serto e da explorao das riquezasdaquelas terras. Racional e capaz de discernir a natureza poltica eeconmica do desbravamento do serto, assim como as injunes quesobredeterminam o destino dos indgenas, e relatada por distintas per-sonagens, a presena dos nativos na obra contempla questes como: aescravido e a perda da identidade familiar e cultural (relembrada nafala da ndia Negua, no Canto II); a imagem mtica impregnada decircularidade cultural5 dos botocudos; o poder de seduo das mulhe-res nativas sobre os colonizadores e desbravadores do serto; o conhe-cimento que os nativos tinham da terra, fato que os tornou fontes pre-ciosas de facilitao dos projetos expansionistas dos colonizadores edos prprios colonos deles descendentes.

    De outro lado, a influncia da esttica rcade-neoclssica em Clu-dio, talvez mais que nos outros picos, levou-o a realizar uma mesclaliterria de elementos culturalmente distantes, mas aproximados peloprocesso bvio de aculturao. Assim, ainda que a descrio da terra,de sua geografia, fauna, flora e minrios integrem-se perspectiva deum olhar centrado na realidade brasileira, a mescla entre essa paisagemlocal e elementos advindos de um repertrio simblico importado per-mitem que se flagrem as influncias da esttica importada na produode Cludio Manuel da Costa. Poderamos, talvez, dizer que na pica deCludio so mais visveis os ndices da mescla cultural e mesmo decerto conflito entre a tradio importada e os referentes nativos.

    Todos esses aspectos, todavia, so garimpados na leitura da obra,ou seja, o repertrio de referentes histricos, culturais, polticos, eco-nmicos e mticos que Vila Rica oferece necessitam, antes de tudo, paraserem compreendidos e avaliados, da ateno de uma leitura que osrecolha e reflita sobre a importncia da obra como mais uma contribui-o pica dentro da historiografia literria brasileira.

    2. MuhuraidaHenrique Joo Wilkens, engenheiro militar portugus, partici-

    pou da comisso portuguesa de demarcao territorial no Estado doGro-Par e Rio Negro, tendo sido testemunha e agente do processo decolonizao e aldeamento indgena da regio amaznica. autor dopoema pico Muhuraida, datado de 1785, mas editado somente em1819, que aborda a voluntria rendio da nao indgena Mura, atri-buindo o fato da converso desses ndios ao cristianismo, a uma inter-

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    veno direta da Providncia. O poema de Wilkens no foi incorpora-do, embora tratando do confronto entre o colonizador e os ndios, tpi-ca herica da pica setecentista, pelo movimento indianista romnticoda primeira metade do sculo XIX, que consagrou os poemas de Baslioda Gama e Santa Rita Duro. Por falta de recepo crtica, inclusive porparte de nossas histrias literrias, permaneceu desconhecido do pbli-co at a dcada de 1990, quando comeou a despertar o interesse dosestudiosos da histria, da etnografia e da literatura amaznica.

    Sob o ponto de vista literrio, a avaliao crtica do poema deWilkens em relao ao conjunto da produo da pica do sculo XVIIIno conseguiu reivindicar-lhe um lugar de destaque, reconhecendo-lhe, todavia, o mrito de ser o texto fundador da literatura amaznica.

    Muhuraida se insere no curso da pica brasileira do sculo XVIII,compartilhando com O Uraguai, Vila Rica e Caramuru a mesma inten-o de construir, a partir do relato de eventos histricos vinculados aoprocesso da colonizao, marcadamente os de confronto do coloniza-dor com o meio natural e o ndio, uma identidade herica fundadora datradio pica nativa. Mas a inteno explcita de uma epopeia cristafasta o poema de Wilkens dos demais mencionados, j que a concep-o crist interfere na caracterizao do confronto histrico e na cons-truo da identidade herica dos personagens envolvidos na ao pi-ca. A utilizao da perspectiva religiosa na estruturao do relato, des-locando o conflito do colonizador com os ndios do plano da contin-gncia material para o plano espiritual, atribui um sentido transcendental represso blica dos ndios, justificando, na possesso demonaca dospovos indgenas, a ao de extermnio da chamada guerra justa dopresente, como foram as guerras santas contra os hereges do passado.

    Wilkens exclui de seu poema o confronto blico, no insere norelato narrativo nenhuma ao guerreira movida contra os Mura, pode-rosa nao indgena do rio Madeira, que resistiu na defesa de seu terri-trio, durante um sculo pelo menos, ao processo de colonizao por-tuguesa e jesutica da Amaznia, at a rendio completa na segundametade do sculo XVIII, dizimada pela guerra contra o colonizador eoutras tribos indgenas, e pelas doenas contradas com o homem bran-co. A adoo da perspectiva religiosa, aportando o aval divino para aao missionria e civilizadora, impede a contraposio das ticas cul-turais do colonizador e do colonizado, eliminando do poema de Wilkenso espao de integrao do vis nacionalista configurado nos outros

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    poemas. Por outro lado, a excluso do feito blico impe a construoda identidade herica a partir do maravilhoso cristo, decorrente daaderncia mtica crist projetada no fato histrico, enfraquecendo aao pica e o estatuto do heri.

    Assim posto, Muhuraida integra o curso da pica brasileira dosculo XVIII, mas, pela concepo mtica crist, se aproxima mais daepopeia De gestis de Mendi Saa, que Wilkens no deve ter conhecido,do que das contemporneas O Uraguai, Vila Rica e Caramuru. Por ou-tro lado, se comparado ao poema de Anchieta, uma autntica epopiacrist, torna-se difcil a atribuio de valor e qualidade ao poema deWilkens, tanto em relao concepo potica quanto realizaoliterria do texto, j que a nica aproximao entre os dois se d pelautilizao do maravilhoso cristo para transfigurao mtica do heri edo relato e na concepo da possesso demonaca dos ndios.

    Muhuraida explicita a inteno literria na composio formal,abrindo com um paratexto que inclui a Dedicatria a Joo Pereira Cal-das, ex-governador geral do Estado do Gro Par, um prlogo (paraservir de instruo aos que lerem), e notas ao texto. Alguns trechospermitem verificar tanto a inteno de Wilkens ao compor o poemacomo o tipo de linguagem por ele adotada: Tem incio o poema com aProposio6:

    Canto o sucesso fausto, inopinado,Que as faces banha em lgrimas de gosto,Depois de ver num sculo passadoCorrer s pranto em abatido rosto;Canto o sucesso que faz celebradoTudo o que a Providncia tem disposto,Nos impensados meios admirveis,Que aos altos fins confirmam inescrutveis.

    A Narrao apresenta o quadro inicial, em que os navegantesesto merc das surpresas do desconhecido:

    Mais de dez lustros eram j passados,Que a morte e o terror acompanhavaAos navegantes tristes, que ocupadosEstavam com o perigo, que esperavaA cada passo ter, nos descuidados,Segura presa em que se alimentava,

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    Despojo certo e vtima inocente,Na terra ou mar do rio na corrente.

    E o Eplogo significativo no sentido de ratificar a filosofia queembasa a inteno criadora:

    Do Onipotente, a Santa Providncia,Que c no Solimes resplandecia,Em quatro fundaes que a persistnciaDo Mura fizera, e brbara porfia.Tambm l no Madeira a excelnciaDa Graa difundindo os atraaA procurar a paz interessante,Com o morador de Borba, e comandante.Sobre princpios tais, tal esperanaFundamenta a razo todo o discurso;Em Deus se emprega toda a confiana;Pende do Seu poder todo o recurso;Os frutos j se colhem da aliana,Apesar dos acasos no concurso.Sempre os progressos a cantar disposto,Aqui suspendo a voz, a lira encosto.

    O poema integra a tradio pica a partir, quase exclusivamente,da emulao de Cames, e respalda a interveno divina nas refernciasbblicas, que, considerando a inteno religiosa do poema, no so muitas.Muhuraida concebe a natureza selvagem dos ndios como influncia deuma fora demonaca que s pode ser combatida pela fora divina,atribuindo a rendio dos Muras interveno de um Anjo enviado porDeus para libert-los das foras do mal e gui-los no caminho do bem.O Mura feroz e impiedoso, convertido na f catlica pelo Mura Anjo,transforma-se pela Graa divina no Mura bom e pacfico e, assistidoespiritualmente pelo anjo humanizado, convence seu povo a depor asarmas e buscar a vida tranqila do aldeamento, sob a tutela do coloni-zador. Inspirada na converso de Paulo de Tarso, feroz perseguidor doscristos, que, depois do encontro com Cristo na estrada de Damasco,converte-se ao cristianismo e busca amparo na comunidade que antesperseguia, o Mura Cristo, impiedoso inimigo do colonizador, trans-formado pela f, rende-se com seu povo, buscando abrigo no seio da-queles que antes combatia.

    Wilkens, mesmo evitando o confronto blico, poderia ter utiliza-

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    do a selva, ao mesmo tempo esplendorosa e aterradora, como adernciamtica, construindo um percurso pico da conquista da Amaznia, comoa conquista pica dos Gerais em Vila Rica, mas, preocupado em relatarapenas o evento da converso dos Muras, impe a leitura religiosa doseu poema como nica forma de avaliao literria.

    No Canto Primeiro, o eu-lrico/narrador faz uma contextualizaohistrica da ao colonizadora da Amaznia, destacando a resistnciada nao indgena dos Muras como maior entrave ao desenvolvimentodo processo civilizatrio.

    No Canto Segundo, reafirmada a ferocidade irredutvel dos Murascomo motivo do fracasso das tentativas de aproximao e negociaode rendio pacfica. O Mura cristo, embora historicamente individu-alizado na narrativa, uma identidade metonmica do povo Mura, in-corporando, por isso mesmo, a identidade histrica da nao indgenacontextualizada no poema.

    A fala doutrinria do Mura Anjo prossegue pelo Canto Terceiro,revelando ao Mura Cristo, que o ouve atento, os mistrios divinos dacriao, at que, subitamente tocado pela f, o Mura Cristo levanta-see vai convencer o resto da tribo, proferindo um discurso evangelizadorem que repudia a identidade histrica do passado guerreiro e incentivaa deposio das armas e uma rendio voluntria e pacfica. Apesar dareao de um Mura velho, inspirado no Velho do Restelo, que toma apalavra para relembrar as amargas experincias passadas com o homembranco, o discurso do Mura Cristo alcana o efeito esperado.

    No Canto Quarto, o eu-lrico/narrador relata as viagens do MuraCristo conduzindo sua tribo a diversos aldeamentos, onde so recebi-dos festivamente pelos aldeados de outras naes indgenas e pelosadministradores portugueses. J no Canto Quinto, depois de um agrade-cimento evocativo ao Criador, segue-se o aldeamento dos Muras, d-ceis e obedientes s leis ditadas pelo colonizador.

    No Canto Sexto, h uma ltima investida do esquadro demona-co do Prncipe das Trevas, inspirando os Muras a desistirem da rendi-o, mas foi neutralizada pela ao do Mura Anjo, enviado por Deuspara operar a transformao espiritual dos Muras.

    O poema de Wilkens reproduz uma realidade colonial bastanterelevante para a compreenso da trajetria da cultura indgena em nos-so pas. Lembramos que Ronaldo Vainfas, em A heresia dos ndios, enu-mera alguns rituais relacionados s idolatrias indgenas descritas porcolonizadores, jesutas e estrangeiros do sculo XVI como rituais de-

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    monacos da se chamar essa perspectiva de demonizadora. Contu-do, como o prprio Vainfas observa, mesmo as idolatrias7 indgenasforam atingidas pelo processo de disjuno cultural gerado pelocolonialismo. Ainda que, para os colonizadores europeus, as idolatriasindgenas representassem cultos demonacos, muitas vezes foi neces-srio ao colonizador recorrer compilao de procedimentos hbridoscomo forma de exercer, mais sutilmente, influncia crist sobre os ndi-os. A presena dessas pseudo-idolatrias somadas a elementos de feiocrist caracterizaram o hibridismo cultural da religiosidade colonialbrasileira.

    Alm das injunes colonialistas, essa mistura, diversas vezes,escapou ao controle dos colonizadores, e o que seria apenas ummascaramento dos reais interesses polticos, econmicos e religiosos dedominao, ganhou cunho de mito e certa tradio, na qual, inclusive,mesmo alguns portugueses encaixavam-se. Em Muhuraida o que seobserva o recurso de transferir para a imagem de outros indgenas afilosofia cristianizadora, tornando-os atores a servio da catequese. Esserecurso, de criar um heri-ator, visa a alcanar a aceitao dos ndios f crist por meio de um jogo retrico de convencimento livre da forablica. Esse heri-ator ter, todavia, duas identidades, j que necessita-r atuar tanto no plano histrico quanto no maravilhoso. O Mura Cris-to cumprir um papel no plano histrico e o Mura Anjo outro noplano maravilhoso. Como essas identidades no se fundem, ou seja,como a identidade do Mura Cristo/Anjo fica sempre bipartida, oherosmo no se completa de fato.

    O poema, assim, sugere, pelo ttulo e pela proposio, a cons-truo de um heri indgena que seria, no caso, o Mura Cristo ou oMura Anjo, os dois ndios implicados na ao narrativa. O Mura Anjo,privado da condio humana, um ser mtico, j que sua constituiohumanizada no lhe permite agir no plano histrico do poema, suaao fica limitada ao plano maravilhoso. O Mura Cristo age no planohistrico, mas o disfarce fsico do Mura Anjo, ocultando sua verda-deira identidade, impede a projeo do Mura Cristo no maravilhoso,mas ele que exerce a ao do relato narrativo, possui identidadehistrica e realiza o percurso histrico da rendio do povo mura. Ouseja, o Mura Cristo possui uma identidade histrica e o Mura Anjouma identidade mtica que, fundidas, construiriam uma identidadeherica verdadeira, mas, apartadas uma da outra, no conferem o es-tatuto pico do heri a nenhum dos dois ndios.

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    Do lado do colonizador, os trs personagens mencionados nanarrativa, alm da reduzida participao no relato histrico, principal-mente do governador Joo Pereira Caldas, nomeado heri do poema,no se projetam no maravilhoso cristo nem alcanam a qualificaodo heri civilizador, so apenas agentes do contexto histrico em quese insere o relato da rendio voluntria do Mura Cristo e seu povo.

    Muhuraida importante como uma narrativa histrica de carterdocumental, servindo de fonte para pesquisadores de diversas reascientficas, valorizada pela participao direta do autor nos eventosnarrados. Como obra literria, vale pela inteno pica explcita quelhe confere, ao mesmo tempo, a condio de texto fundador da literatu-ra amaznica e o mrito de aderir proposta sociocultural da picasetecentista de construir, a partir de uma narrativa literria da histriacolonial, uma memria herica nativa, fundadora da pica brasileira.

    De outro lado, leituras que se aprofundem no aspecto social daobra encontram nela um testemunho no-intencional, obviamente, dasinjunes que levaram as sociedades indgenas brasileiras a se subme-terem lgica da f crist. O processo de demonizao, a descrionegativa da cultura indgena e de seu modo de realizar a experinciahumano-existencial, as estruturas retricas de convencimento e omascaramento da verdade por meio de recursos enganadores so exem-plos cabais de um momento histrico definidor de nossa constituiocomo nao crist. Assim, ainda que, em termos picos, Wilkens notenha logrado inscrever seu poema na galeria das obras picas bemelaboradas, deixou para o futuro um registro importante dos modoscomo o discurso era trabalhado pelo colonizador com a finalidade dealcanar a compreenso dos indgenas sobre a necessidade de cederems imposies do padro cristo de comportamento, conduta e ao.

    Conforme temos defendido em nossas anlises, o legado deixadopela produo pica, ainda que muitas vezes tendencioso, em termos deveiculaes de pensamentos de natureza doutrinria, sempre traz tonacircunstncias histricas e mticas que podem ser lidas de forma crtica,ainda que, para isso, seja necessrio reconhecer esses traos de submis-so a ideologias incoerentes em relao ao propsito maior que costu-ma contaminar textos literrios: traduzir a realidade e seus smbolos deforma crtica, transgressora, transformadora.

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    ABSTRACTStudy of the epic poems Vila Rica, by Claudio Manuel daCosta, and Muhuraida, by Henrique Joo Wilkens, thatintegrate the Brazilian neoclassical epic poetry, with a focuson the characteristics of the epic production of that time inBrazilian poetry and on the inventivity of its poets.KEYWORDS: Vila Rica; Muhuraida

    REFERNCIAS

    COSTA, Cludio Manuel da. Vila Rica. 6 ed. In: PROENA FILHO, Domcio(Org). A poesia dos inconfidentes: A poesia completa de Cludio Manuel daCosta, Toms Antonio Gonzaga, Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: NovaAguilar, 1966.RAMALHO, Christina. Elas escrevem o pico. Florianpolis: Ed. Mulheres;Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.SILVA, Anazildo. Formao pica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Elo,1987.SILVA, Anazildo Vasconcelos da; RAMALHO, Christina. Histria da epopeiabrasileira.vol. 1. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos ndios. Catolicismo e rebeldia no Brasilcolonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.WILKENS, Henrique Joo. Muhuraida ou o triunfo da f. Manaus: BibliotecaNacional/UFAM/Governo do Estado do Amazonas, 1993.

    Data de recebimento: 20 de maio de 2011

    Data de aprovao: 15 de julho de 2011

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    NOTAS

    1 Este artigo apresenta, sinteticamente, parte do segundo volume de

    Histria da epopeia brasileira, ainda indito.2 O primeiro volume de Histria da epopeia brasileira explicita as categoriastericas criadas por Anazildo Vasconcelos da Silva em semiotizao pica dodiscurso e referenciadas neste artigo.O Modelo pico rcade-neoclssico, inte-grando a Matriz pica Clssica, filia-se diretamente ao Modelo picoRenascentista e, indiretamente, ao Modelo pico Clssico, reproduzindo osmesmos ideais de racionalidade, de objetividade, de universalismo e de equil-brio entre pensamento e emoo.3 A publicao de Vila Rica ocorre 1839, mas a cpia manuscrita, no perodocolonial, vale como edio da obra.4 Todas as citaes foram extradas da edio de 1966.5 Circularidade cultural uma categoria terica desenvolvida por ChristinaRamalho na tese Vozes picas: histria e mito segundo as mulheres.6 Todas as citaes foram extradas da edio de 1993.7 Vainfas esclarece que o conceito de idolatria remonta da longa tradiohebraico-crist. Segundo ele, o Antigo Testamento j discriminava como ido-latrias as prticas de gentios que cultuavam dolos diversos por no conhece-rem Jeov, o nico Deus. A idolatria relacionava-se, portanto, ao comporta-mento primitivo, ignorante, obsceno.