Mas o que é mesmo “gramática”

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Universidade de Brasília - UnB Departamento de Linguística, Português, Línguas Clássicas – LIP FRANCHI, C. Mas o que é mesmo “gramática”?. In: POSSENTI, S. (Org.). Mas o que é mesmo “gramática”?. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, pp. 11-33. Resenhado por Mário Melo 1 O texto se debruça sobre o conceito de gramática, baseando-se em redações de alunos do ensino básico, e procura mostrar o caráter descritivo na gramática normativa, evidenciando suas consequências às práticas escolares. Carlos Franchi fez pós-doutorado na University of California e atuou como professor na Unicamp, onde foi um dos fundadores do Departamento de Linguística, passando a lecionar na USP em 1991. Ao diferenciar conceitos de gramática, busca-se promover uma discussão sobre como a gramática e seu ensino são abordados nas escolas, para entender de que maneira isso influencia as considerações dos professores sobre a forma de escrita dos alunos. Como o objetivo fundamental da escola é o de “levar a criança a produzir textos e compreendê-los de um modo criativo e crítico” (p. 11), Franchi analisa se a proposta utilizada está de acordo com este objetivo. O que se pode notar neste momento é a aparente exclusão do caráter pluralista das escolas para o autor, pois também é objetivo dela trabalhar as diversas capacidades do aluno. Usar o ensino da gramática tradicional de maneira indireta, como propõe no fim do texto, é algo que deve ser discutido e analisado. No mínimo, o que deve acontecer é inverter a ordem

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Universidade de Brasília - UnB

Departamento de Linguística, Português, Línguas Clássicas – LIP

FRANCHI, C. Mas o que é mesmo “gramática”?. In: POSSENTI, S. (Org.). Mas o que é

mesmo “gramática”?. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, pp. 11-33.

Resenhado por Mário Melo1

O texto se debruça sobre o conceito de gramática, baseando-se em redações de alunos

do ensino básico, e procura mostrar o caráter descritivo na gramática normativa, evidenciando

suas consequências às práticas escolares. Carlos Franchi fez pós-doutorado na University of

California e atuou como professor na Unicamp, onde foi um dos fundadores do Departamento

de Linguística, passando a lecionar na USP em 1991.

Ao diferenciar conceitos de gramática, busca-se promover uma discussão sobre como

a gramática e seu ensino são abordados nas escolas, para entender de que maneira isso

influencia as considerações dos professores sobre a forma de escrita dos alunos. Como o

objetivo fundamental da escola é o de “levar a criança a produzir textos e compreendê-los de

um modo criativo e crítico” (p. 11), Franchi analisa se a proposta utilizada está de acordo com

este objetivo.

O que se pode notar neste momento é a aparente exclusão do caráter pluralista das

escolas para o autor, pois também é objetivo dela trabalhar as diversas capacidades do aluno.

Usar o ensino da gramática tradicional de maneira indireta, como propõe no fim do texto, é

algo que deve ser discutido e analisado. No mínimo, o que deve acontecer é inverter a ordem

da prioridade das gramáticas de acordo com cada contexto em que o aluno está inserido.

O capítulo se estrutura em seis partes. Primeiro, para avaliar o conhecimento

gramatical e sua manifestação nos textos, o autor examina duas redações de alunos da terceira

série do primeiro grau seguidas de comentários de professores sobre elas. A primeira, sobre

um passarinho, possui erros gramaticais, sendo considerada ruim apesar de possuir

características linguísticas complexas, se comparada à segunda. Já a segunda, sobre “a

fazenda dos animais”, por não conter erros ortográficos e apenas um gramatical, é

considerado um texto em bom português, mesmo possuindo estrutura simplificada, com

períodos justapostos.

O autor observa, então, que a fundamentação para um texto estar melhor que outro é a

utilização da concepção de gramática normativa. Nesse contexto, gramática é “o conjunto

sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas” [grifo do

autor] (p. 16), e significa aplicar estas normas ativamente na produção textual. No entanto, a

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partir de dados históricos, mostra-se que este conceito privilegia elites e deixa de lado

variações existentes no idioma.

Após isso, ao expor a necessidade de um complexo e fragmentado entendimento de

todo um sistema linguístico, o autor demonstra que a gramática tradicional não possui apenas

normas insubstituíveis, mas também elementos descritivos, uma vez que permite “associar a

cada expressão dessa língua uma descrição estrutural e estabelecer suas regras de uso” (p. 22).

Demonstra de forma bastante simplificada como esse componente descritivo é construído e

como exclui determinadas variantes linguísticas; argumentando que a gramática descritiva

pode se transformar em instrumento para as prescrições da normativa, já que, para a

construção daquela, pode-se utilizar parâmetros desta.

Carlos Franchi lança um novo olhar sobre o texto aplicando uma contemporânea

concepção de gramática, que tem o sentido de “saber linguístico que o falante de uma língua

desenvolve dentro de certos limites impostos pela sua própria dotação genética humana”

(p.25); diferente do que vimos, aqui, saber gramática “é algo que desabrocha e se desenvolve

como uma flor” (p. 24). Com isso, defende que a primeira redação apresenta razoável grau de

amadurecimento linguístico textual, pois o aluno consegue dominar princípios e regras pelos

quais se constroem expressões da língua, além de estruturar melhor o texto, ao contrário da

“aluninha” da segunda redação, destacando que pode isso pode não significar necessariamente

que ela tivesse menor domínio de sua gramática.

Depois de contrapor a concepção nova de gramática com a tradicional, ressalta que

aquela não ignora os problemas da variação linguística e que reconhece as diferenças entre

modalidade culta e coloquial. Desta forma, defende que, assim como na gramática da

modalidade culta, nas modalidades coloquiais também há regras que regem o comportamento

linguístico do falante – dando o tradicional exemplo da modalidade coloquial se contentar em

assinalar morfologicamente a marca de plural em apenas um de seus constituintes; ainda diz

que, para a criança dominar a modalidade culta-escrita de sua língua, é preciso proporcionar o

acesso às diversas formas linguísticas em atividades orais, escritas, produções literárias e

comparação entre uma modalidade e outra.

O autor destaca que todos os seres humanos possuem uma faculdade da linguagem,

uma gramática interna, não fazendo sentido valorizar uma determinada língua em detrimento

de outra. Mas é preciso, na verdade, levar a criança a dominar os outros tipos de linguagem,

por razões sociais e políticas. Não significando tornar a gramática interna imediatamente

operacional, mas diagnosticar a realidade linguística dos alunos para fazê-los dispor de uma

gramática cada vez mais rica e operativa.

Por fim, diferencia a “gramática dos gramáticos e linguistas” da gramática interna –

construída e desenvolvida na atividade linguística – para defender que a primeira, “um

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sistema de noções e metalinguagem que permitem falar da linguagem e descrever (ou

explicar) os seus princípios de construção” (p. 31), quase não contribui para o

amadurecimento da linguagem dos alunos; mas, por outro lado, afirma que ela pode ser

estudada em níveis mais avançados, e que é preciso que os professores conheçam-na para usá-

la como meio analítico e explicativo da linguagem de seus alunos.

Esse capítulo, cuja estrutura se evidenciou, alonga-se muito em termos de explicação,

ao mostrar e explicar os erros gramaticais do aluno da primeira redação e demonstrar a lógica

da marca de plural na língua coloquial, por exemplo, o que o torna um pouco repetitivo. Não

consiste necessariamente em negatividade, já que para o público leigo, os fenômenos expostos

podem ser desconhecidos, sendo interessante que sejam mostrados de forma didática, outra

característica positiva do autor; mas, para os que já conhecem, a leitura é cansativa.

É importante que o texto seja lido porque possibilita uma abordagem contemporânea

sobre gramática, reforçando a ideia de igualdade entre variantes da língua. É leitura

interessante para professores de todas as áreas e principalmente para os que estão em processo

de formação, uma vez que entrarão contato com alunos que falam uma gramática diferente.

Podendo, assim, ter conhecimento sistematizado sobre o assunto: a importância de não excluir

ou valorizar uma maneira individual de se falar.

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1 Mário Melo Bueno Dias é graduando em Letras Português pela Universidade de Brasília - UnB.