Marxismo, Direito e Comunismo - Um Breve Esboço Sobre o Processo de Transição e a Forma Jurídica

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1 MARXISMO, DIREITO E COMUNISMO: UM BREVE ESBOÇO SOBRE O PROCESSO DE TRANSIÇÃO E A FORMA JURÍDICA. As relações sociais não podem partir de outro lugar senão da própria realidade concreta; não há relação humana que não seja intermediada pelo modo de produção da vida existente em determinada época histórica. Acreditar, pois, em uma força metafísica que incide sobre os homens e mulheres atuais trata-se de um engano. A perspectiva marxista conserva como sua maior grandeza a restituição do protagonismo histórico dos seres humanos sobre sua própria existência. Para Marx, quem faz a história são os próprios sujeitos sociais, mas às vezes não o podem fazer como querem devido às suas limitações materiais e históricas. Por isso, “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado1 . Não se pode compreender, logo, o sujeito atual como o responsável pelo dado, mas também não se pode deixa-lo isento de culpa: sua existência, embora se limite nas próprias condições dadas, ainda é uma possibilidade, dá-se em forma de desafio, de construção de uma realidade distinta a partir de seu projeto 2 . Afirmar a análise marxista como determinista e economicista trata-se do principal erro cometido pelos teóricos da atualidade (em especial – não coincidentemente – pelos não marxistas, que dizem ter superado o marxismo). Marx nunca defendeu semelhante 1 MARX, 2011, p. 25. 2 SARTRE, 1963;

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Análise das teorias de transição sobre a questão do direito de Evgeny Pachukanis e Ernst Bloch.

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MARXISMO, DIREITO E COMUNISMO: UM BREVE ESBOO SOBRE O PROCESSO DE TRANSIO E A FORMA JURDICA.As relaes sociais no podem partir de outro lugar seno da prpria realidade concreta; no h relao humana que no seja intermediada pelo modo de produo da vida existente em determinada poca histrica. Acreditar, pois, em uma fora metafsica que incide sobre os homens e mulheres atuais trata-se de um engano. A perspectiva marxista conserva como sua maior grandeza a restituio do protagonismo histrico dos seres humanos sobre sua prpria existncia. Para Marx, quem faz a histria so os prprios sujeitos sociais, mas s vezes no o podem fazer como querem devido s suas limitaes materiais e histricas. Por isso, Os homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado[footnoteRef:1]. [1: MARX, 2011, p. 25.]

No se pode compreender, logo, o sujeito atual como o responsvel pelo dado, mas tambm no se pode deixa-lo isento de culpa: sua existncia, embora se limite nas prprias condies dadas, ainda uma possibilidade, d-se em forma de desafio, de construo de uma realidade distinta a partir de seu projeto[footnoteRef:2]. Afirmar a anlise marxista como determinista e economicista trata-se do principal erro cometido pelos tericos da atualidade (em especial no coincidentemente pelos no marxistas, que dizem ter superado o marxismo). Marx nunca defendeu semelhante postura. Sempre compreendeu de forma mais ampla a realidade: so os homens e mulheres que fazem sua histria, lembra ele. Mas: [2: SARTRE, 1963;]

A estrutura social e o Estado nascem continuamente do processo vital de indivduos determinados; mas desses indivduos no tais como aparecem nas representaes que fazem de si mesmos ou nas representaes que os outros fazem deles, mas na sua existncia real, isto , tais como trabalham e produzem materialmente; portanto, do modo como atuam em bases, condies e limites materiais determinados e independentes de sua vontade.[footnoteRef:3] [3: ENGELS; MARX, 2002, p. 18.]

Encerra-se aqui no o fato de que a existncia humana est pr-determinada: o que se diz, sim, que os homens e mulheres so o que concretamente so; so o que produzem e refletem em suas relaes sociais e, assim, so por elas condicionados e, de certa forma, limitados. E tal produo inexoravelmente ser influenciada por sua realidade e necessidades concretas. Negar isso trata-se de negar o bvio: se em determinada poca histrica possumos determinadas necessidades, seguiremos certo modo de produo, isso se deve ao fato de que: O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua conscincia. Ele tem atividade vital consciente[footnoteRef:4]. Com determinada produo da vida por meio de seu trabalho, ele engendra em si mesmo um ser genrico: a sua conscincia serve como forma de manifestao de sua existncia. O trabalho alienado se contrape a isso porque fora o homem a, conscientemente, fazer do trabalho um mero meio de existncia servindo no mais como expresso plena desta. A produo humana, portanto, social; nela ele engendra sua existncia genrica isto , sua existncia social, geral[footnoteRef:5]. da que se tem sua expresso na realidade, sua humanidade, a transformao da natureza para a perpetuao de suas prticas sociais e humanas, indo alm da mera-existncia fenomenolgica. Logo, o homem e a mulher so seres histricos, como nota Freire: [4: MARX, 2008, p. 84-85.] [5: MARX, 2008.]

Ao no poder separar-se de sua atividade sobre a qual no pode exercer um ato reflexivo, o animal no consegue impregnar a transformao que realiza no mundo, de uma significao que v mais alm de si mesmo (...) o animal se constitui, fundamentalmente, como um ser fechado em si (...) os homens, pelo contrrio, porque so conscincia de si e, assim, conscincia do mundo, porque so um corpo consciente, vivem uma relao dialtica entre os condicionamentos e sua liberdade.[footnoteRef:6] [6: FREIRE, 2011, p. 123-125.]

H, pois, uma luta dialtica entre as condies pr-existentes e os seres sociais que as tentam superar. Essa compreenso bsica da realidade foi o que Marx sempre trouxe tona, mas que fora renegado por determinados discpulos marxistas, que acreditaram encontrar na teoria de Marx uma certeza cientfica que desembocava em um determinismo completamente simplista e que resumia a dialtica materialista mera trade tese-anttese-sntese [footnoteRef:7]. Esquece-se essa corrente determinista que no apenas a realidade faz os homens e mulheres, como estes tambm a fazem[footnoteRef:8]. [7: SILVA, 2009.] [8: Tambm no estamos fazendo a afirmao simplista de que a conscincia influencia tambm o mundo o que bvio; queremos afirmar, sim, que h limitaes histrico-objetivas para a transformao da realidade, que incidem, inclusive, sobre o prprio ser do sujeito social, o que o coloca em um constante desafio de transformao no apenas da realidade objetiva, como tambm de sua prpria modificao. Assim, sua existncia um desafio, uma disputa entre seu projeto de mundo e as condies dadas, de tal forma que no h existncia humana seno nessa dialtica das contradies de nosso ser.]

E esse o ponto no qual existe a pior interpretao de Marx sobre o direito. Segundo membros dessas mesmas correntes, o direito no pode ser substitudo por outra forma de regulao da sociedade enquanto o sistema capitalista se mantiver: a infraestrutura determina a superestrutura, sempre, de forma mecnica e previsvel. Para instaurar um direito distinto, torna-se necessria a transformao da infraestrutura. Fazendo uma anlise mais complexa e coerente, no se nega a necessidade disso, mas deve-se questionar justamente a crena na transformao desta sem se mexer na superestrutura, que no representa to-somente a ideologia das classes dominantes, porque aqui tambm se faz a produo da vida humana.Existe espao para a prpria resistncia hegemonia capitalista e assim se fomenta a transformao dos meios de produo, no como se fosse um curso natural histrico, mas como uma ao concreta e consciente por parte dos sujeitos sociais revolucionrios a classe trabalhadora --, que, bem posicionados ontologicamente na luta de classes, possuem capacidade de visualizar uma nova realidade e lutar pela transformao total do status quo. Ressalta Mascaro:

Nas obras de sua maturidade e, em especial, em O Capital, Marx estabelece um outro nvel de abordagem a respeito da relao entre foras produtivas e relaes de produo (...) Ao invs de propor um procedimento mecnico no qual a mudana dos meios de produo gera necessariamente a mudana do sistema econmico, Marx prope uma dialtica entre foras produtivas e relaes de produo. As relaes de produo capitalistas geram foras produtivas especficas, e a transio ao socialismo ao mesmo tempo a ruptura com as foras produtivas capitalistas e sua relao de produo.[footnoteRef:9] [9: MASCARO, 2008, p. 42.]

Por isso, afirmar o fim do capitalismo por meio de uma mera transformao dos meios de produo uma utopia abstrata, dicotomizada da realidade concreta humana. Fazemo-nos no na produo, mas, sim, nas relaes sociais. Se a produo to forte na teoria marxista, isto se deve ao fato de que: O que produto da relao do homem com o seu trabalho, produto de seu trabalho e consigo mesmo, vale como relao do homem com outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de outro homem[footnoteRef:10]. A luta de classes relao de homens e mulheres, no de condies de produo. Estas influenciam os sujeitos sociais, sem dvidas, mas so eles que as determinam e assim fazem suas relaes de produo. A emancipao proletria no algo dado: construo histrico-consciente de homens e mulheres em relao com sua realidade concreta, repetimos. Naves nos rememora, assim, que as anlises de Marx permitem apreender que as foras produtivas dependem sempre da luta de classes, que elas nunca se desenvolvem independentemente das relaes de produo[footnoteRef:11]. Ou seja, as relaes de produo no so mero reflexo das foras produtivas e tampouco esto completamente libertadas destas: aquelas influenciam estas, tambm, embora no se deixe de lado o primado ontolgico natural do segundo sobre o primeiro. [10: MARX, 2008.] [11: NAVES, apud. MASCARO, 2008, p.. 47.]

Ento, essa a perspectiva crtica que precisamos ter sobre o direito para Marx: sem dvidas, o direito, em um primeiro momento, tem como finalidade a reproduo das relaes de produo capitalistas, e tal funo somente pode ser quebrada completamente (isto , h espao para desvencilhamento desta hegemonia desde j, mas ele no completo) aps uma revoluo no modo de produo. Na realidade capitalista, concordamos, o direito, adquirindo seu aspecto monista e ligado inexoravelmente ao Estado, acaba por defender os prprios valores da propriedade privada e tem como sua principal arma a abstrao da realidade concreta (isto , seu funcionamento como ideologia, mas cuja verdadeira face passa despercebida para a maioria das pessoas, aparecendo, pois, como algo neutro). No se nega isso: o grande fato que a transformao da economia apenas no transformar o direito; ou melhor: no possvel uma verdadeira transformao dessa economia sem a mudana do prprio direito em unidade dialtica com a mudana das foras produtivas. Uma alimenta e refora a outra; entregar infraestrutura ou superestrutura o trabalho da transio dos modos de produo cometer um erro fatal.No podemos imaginar o direito, ento, como mero produto da superestrutura poltica resultado da infraestrutura econmica , relegando-o simples funo de mascarar a realidade e reproduzir as relaes de produo[footnoteRef:12]. Acreditar nisso simplesmente olvidar o grande fato de que h no somente uma estruturao do direito pela questo econmica, mas que este tambm a determina e somente porque ele existe de tal forma que se faz possvel o modo de produo capitalista. A distncia colocada entre direito e economia, como demonstra Pachukanis[footnoteRef:13], falsa: a forma jurdica independente resultado do processo econmico das trocas de mercadorias. Antes esse formato era inexistente porque no era necessrio tal instrumento para se exercer a dominao, uma vez que: [12: Um autor que reproduz muito esse conceito Louis Althusser. Para ele, o direito tanto um Aparelho Repressor de Estado quanto um Aparelho Ideolgico de Estado. Sua funcionalidade no sistema capitalista, ento, deveras ampla para manter a dominao existente, sendo ele uma figura totalmente monopolizada pela classe dominante, segundo o autor francs. Ver: ALTHUSSER; 2008.] [13: PACHUKANIS, 1988.]

O escravo est totalmente subordinado ao seu senhor e justamente por isso que esta relao de explorao no necessita de nenhuma elaborao jurdica particular. O trabalhador assalariado, ao contrrio, surge no mercado como livre vendedor de sua fora de trabalho e, por esta razo, a relao de explorao capitalista se realiza sob a forma jurdica do contrato.[footnoteRef:14] [14: PACHUKANIS, 1988, p. 69.]

Resta claro, portanto, que o direito um produto no das relaes de dominao direta (fsica e coercitiva) entre as classes sociais, mas, sim, de relaes indiretas, isto , econmicas. Ele adquire, sem dvidas, essa caracterstica da coero fsica, mas sua origem se d no processo econmico e tal violncia existente to-somente para proteger este mesmo processo[footnoteRef:15]. O direito (que, para o jurista sovitico, representado pela relao entre sujeitos privados e no pblicos) nada mais do que a ponte entre os dois trocadores de mercadorias; estabelece, assim, um meio impessoal e neutro de resoluo dos conflitos. Nisto reside sua finalidade ideolgica. Mas no apenas esta a sua funcionalidade: sem uma terceira instncia que garanta os direitos burgueses, torna-se impossvel a existncia de tal permutao; sem a existncia do sujeito de direito, no se pode consolidar a afirmao da forma valor nas relaes entre os homens e mulheres. O direito, pois, no resultado da ideologia: ele uma relao social, como afirma Pachukanis; igual ao o capital, transfere a sua forma para as relaes sociais existentes, exercendo sobre os indivduos uma coao inescapvel, ao transferir-se sobre a relao social. No se liberta da presso jurdica ao se desvendar a ideologia do direito: necessria uma transformao social concreta e ampla que possibilite estabelecer o fim da forma jurdica, assim como necessria uma revoluo que acabe com os meios de reproduo do capital para que este pare de reproduzir sua forma[footnoteRef:16]. [15: PACHUKANIS, 1988.] [16: PACHUKANIS, 1988.]

Mas a questo chave encontra-se aqui: o direito desenvolvido, sendo fundamento para a existncia do sistema capitalista, ser eliminado, ento, quando for eliminada a propriedade privada e as trocas mercantis. O trabalho inteiro de Pachukanis se refere a essa questo, em especial devido ao contexto de sua obra, no qual existia toda uma discusso acerca da transio socialista para o comunismo (e o jurista sovitico em questo estava posicionado na ala da esquerda, defendendo uma posio radical de que no poderia existir comunismo com o direito e, conseguintemente, o Estado existindo). Para ele, ento, a questo se resume em transformar as relaes de produo, extinguindo as trocas de mercadorias, algo que seria possvel somente em um longo perodo, no qual, posteriormente, j teria ocorrido uma evoluo considervel nas foras produtivas e no seria mais necessria as relaes de troca no sistema comunista. Assim sendo, o direito se extinguiria conforme houvesse tal desenvolvimento histrico.Mas essa percepo de Pachukanis confeccionada muito exclusivamente por seu olhar econmico. Sem dvidas que sua anlise fora correta, mas precisamos contextualizar o que o autor sovitico falara: quando ele afirma a extino do direito, ele to-somente afirma que o direito como forma independente deixar de existir. No que no existiro regras e normas numa sociedade comunista: elas existiro, mas no sero mais dicotomizadas da realidade concreta (abstratas, formais e gerais), no necessitando de uma forma especfica, isto , jurdica. O direito burgus precisa se afirmar como regra geral para exercer sua fora: sem isso, no consegue garantir que o trabalhador venda sua fora de trabalho livremente (abstratamente falando). Isto , sem a garantia da liberdade de venda e compra de mercadorias, no se permite a concorrncia entre trabalhadores para vender a sua fora de trabalho, que, como demonstra Marx, de acordo com o desenvolvimento do exrcito industrial de reserva, torna-se cada vez mais barata, possibilitando que o capitalista lucre mais com a explorao dos trabalhadores. Entretanto, essa mesma fora de trabalho que vendida a um preo abaixo do que se espera que agrega valor ao produto que ser posteriormente vendido pelo capitalista. Por isso, a igualdade abstrata se demonstra, na materialidade, completamente favorvel ao capitalista. O direito burgus, ento, serve como fundamento para a existncia desta explorao; com ela cessada, no h mais direito burgus, mas, sim, um novo formato de regulao da vida social, muito mais adequado s necessidades concretas da coletividade.Isso o que coloca Ernst Bloch em sua obra Direito natural e dignidade humana. De forma mais apurada que Pachukanis, o filsofo alemo compreende a existncia de diversos conceitos histricos de direito (sua obra faz toda uma recapitulao da histria do jusnaturalismo e sua relao com o conceito da dignidade humana) e postula seu posicionamento acerca destes direitos distintos. Para ele, o direito natural representaria, na realidade, a defesa da dignidade humana, que seria a garantia da no degradao do ser humano, isto , a defesa de sua libertao de foras exteriores a ele, conferindo-lhe autonomia e liberdade. Segundo Bloch, o primeiro ato de defesa do direito natural foi a insurgncia do indivduo contra o despotismo da coletividade. Mas isso no se configura, de forma alguma, como uma contrariedade perspectiva socialista, porque, para o filsofo, a realidade socialista a concretizao tanto das utopias jurdicas (referentes a essa liberdade) quanto das utopias sociais (que se referem libertao da misria e das ms condies de vida). Ou como j diria ele mesmo: there can be no human dignity without the end of mistery and need, but no human dignity without the end of old and new forms of servitude[footnoteRef:17]. Por isso, seu posicionamento o mesmo que o de Rosa Luxemburgo: o socialismo no o fim da democracia, da liberdade, mas, sim, sua plenificao. [17: BLOCH, 1996, p. 208.]

Assim, seguindo nesse processo de anlise, Bloch afirma que a revoluo burguesa foi a primeira revoluo que conseguiu derrotar seus inimigos e instaurar uma nova perspectiva de mundo, concretizando suas utopias. Essas utopias, entretanto, eram, obviamente, as utopias burguesas, isto , resultado da vontade de garantir o livre-comrcio; no havia interesse algum na libertao total da sociedade, na supresso de sua misria e concretizao da liberdade de fato. Por isso, os direitos humanos analisados por Marx (cujos princpios continuam remanescentes at hoje) eram inerentemente burgueses e estabeleciam a propriedade privada como a grande garantia da dignidade humana. ela que, ao focar os direitos humanos no mais nos homens, mas nas relaes alienadas da coletividade e colocadas de forma egosta, impossibilita a unio do citoyen (cidado, o ser poltico, responsvel pela coletividade) ao homme (homem, o ser individual, que possui a sua liberdade de ao garantida), estabelecendo a supremacia deste sobre aquele[footnoteRef:18]. nisso que se fundamentam os direitos humanos burgueses: o homem individual egosta, tendo sua liberdade garantida, d o melhor para a sociedade por meio da concorrncia na troca de seus produtos (surge, assim, a funo social do empresrio e do burgus). Mas essa colocao pura abstrao, e no reflete a realidade, uma vez que tal liberdade formal no se reflete concretamente. [18: BLOCH, 1996.]

Mesmo assim, contudo, abre-se espao para a formulao de uma nova realidade, uma vez que, obtendo-se avanos com essa conquista, tem-se a possibilidade concreta de unir a liberdade do homme do citoyen, que se encontra limitada pela propriedade privada; o cenrio, para Bloch, pede, como para todo marxista, o fim da propriedade privada. Somente assim se poder efetivar o ser genrico humano e terminar essa contradio[footnoteRef:19]. Como dissera Marx (aps afirmar a realidade do Estado burgus como o proposto por Hegel, isto , como a totalidade composta por diversos indivduos que se limitam para garantir o bom funcionamento da sociedade e, assim, respeitam a totalidade determinada, que possui legitimidade para regular suas vidas e manter a sociedade em questo), esse Estado um ente abstrato (um predicado) que se torna sujeito[footnoteRef:20]. Assim sendo, apesar de todos esses avanos: [19: BLOCH, 1996.] [20: MARX, 2010, a.]

A realizao plena do idealismo do Estado representou concomitantemente a realizao plena do materialismo da sociedade burguesa. O ato de sacudir de si o jugo poltico representou concomitantemente sacudir de si as amarras que prendiam o esprito egosta da sociedade burguesa (...) A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no homem, s que no tipo de homem que realmente constitua esse fundamento, no homem egosta. Esse homem, o membro da sociedade burguesa, passa a ser a base, o pressuposto do Estado poltico. Este o reconhece como tal nos direitos humanos.[footnoteRef:21] [21: MARX, 2010, b, p. 52.]

Ou seja, a evoluo abstrata representou, tambm, um retrocesso concreto: a manuteno das relaes de explorao, apesar de todo o processo de transformao social que ocorreu, atravs do modo de organizao capitalista. Por isso, analisando os propsitos e as anlises de Marx sobre o direito, Bloch chega seguinte concluso:

He [Marx] discovered private property as the dominant right among human rights, and as the reason why these other rights were only appeared more disjointed than before. When Marx rejects private property as the bourgeois barrier to human rights, does he reject freedom, the resistance of people the people to oppression, and security as other declarations of right? Absolutely not. It goes without saying that he concentrated his efforts on the forward effect of rights, which no private property can impede or destroy. For Marx, freedom is criticized so little that, quite the contrary, it is that human right whose radiance and humanity provide the standards for Marxs critique of private property. The marxist conclusions follow from this: not freedom of property, but from property, not freedom of industry, but freedom from the egoism of industry; not emancipation of the egoistic individual of the merely feudal society, but emancipation of all men from every type of class society.[footnoteRef:22] [22: BLOCH, 1996, p. 177.]

Por isso, o filsofo alemo afirma a necessidade de continuarmos lutando pelo direito, mas pelo direito verdadeiro, defensor da dignidade humana, para que se possa manter as liberdades da sociedade que se almeja. A utopia representa a humanizao da sociedade: sua negao nada mais que a negao do prprio socialismo; assim, quando se fala de socialismo, no se pode negar o direito natural (enquanto garantia da dignidade humana) e suas utopias. Para Bloch, pois:But in the program of socialism, where the exploitation and oppression of workers have disappeared, the struggle for rights has continued no less critical, but still positive, as the search for the rights of an uncompromising objective practical criticism that intervenes in the interests of the goal of socialist construction with the framework of solidarity. This solidarity of socialism signifies that the human in human rights no longer represents the egoistic individual, but the socialistic individual who, according to Marxs prophecy, has transformed his forces propres into a social and political force. Thus, the citoyen is retrieved from the abstract, moralistic other world that he inhabited in the ideology of the French Revolution, and returned to the mundane world of socialized humanity. But it should be the same banner of human rights that exalts the workers of capitalistic lands to their right to resist, and that opens the way for them in socialistic lands by means of the construction of socialism, and the right (and even obligation) to criticize. Otherwise, authoritarian socialism would prevail contradictio in adjecto even though the Internationale fought for human right of organization and maturity.[footnoteRef:23] [23: BLOCH, 1996, p. 177-178.]

A crtica de Bloch (e de Marx, segundo o filsofo da utopia) dirige-se, pois, ao direito positivo, isto , forma jurdica de Pachukanis, que se desenvolve de forma independente dos indivduos e submete sobre eles as condies de produo capitalista. No h, assim, socialismo sem o fim desta mesma forma; ou seja, segundo esta perspectiva, a teoria de Vychynsky jurista sovitico que defendia a possibilidade de um direito estatal proletrio impossibilita a efetivao do socialismo[footnoteRef:24], uma vez que este a supresso da distino entre Estado e sociedade civil, implicando, pois, no fato de que: [24: MASCARO, 2008.]

A prtica do socialismo exige uma transformao completa no esprito das massas, degradadas por sculos de dominao da classe burguesa. Instintos sociais em vez de instintos egostas; iniciativa das massas ao invs da inrcia; idealismo, que faz superar todo tipo de sofrimentos, etc. (...) O nico caminho que leva ao renascimento a prpria escola da vida pblica, a mais ampla e ilimitada democracia, opinio pblica (...) Ele [proletariado] tem o dever e a obrigao de tomar imediatamente medidas socialistas da maneira mais enrgica, mais inexorvel, mais dura, por conseguinte, exercer a ditadura, mas a ditadura da classe, no a de um partido ou de uma clique; ditadura de classe, isso significa que ela se exerce no mais amplo espao pblico, com a participao sem entraves, a mais ativa possvel, das massas populares, numa democracia sem limites (...) tal ditadura precisa ser obra da classe, no de uma pequena minoria que dirige em nome da classe; quer dizer, ela deve, a cada passo, resultar da participao ativa das massas, ser imediatamente influenciada por elas, ser submetida ao controle pblico no seu conjunto, emanar da formao poltica crescente das massas populares.[footnoteRef:25] (p. 207-210) [25: LUXEMBURGO, 2011, p. 207-210.]

Esse trecho de Luxemburgo , nada mais, a afirmao da necessidade da concretizao do ser genrico humano como ser poltico, algo impossvel no sistema capitalista uma vez que o homem, neste modo de produo, to-somente o indivduo privado egosta afastado de todo o restante da sociedade, surgindo como mera mnada afastada do restante da sociedade que se aproxima desta somente no momento de realizar a troca de mercadorias[footnoteRef:26]. A utopia verdadeira do socialismo nega essa perspectiva e exige um direito diferente, que enxerga o homem em sua totalidade, isto , enquanto ser social, que necessita no somente da liberdade de propriedade efetiva (isto , apropriada por todos), mas tambm de diversas outras, que devem ser garantidas primordialmente. E justamente porque existe essa propriedade privada que no conseguimos superar as condies existentes de vida, como corretamente analisaram Bloch e Marx. Segundo os dois, portanto, quando, enfim, houver toda a supresso da propriedade privada e se estabelecer de fato uma sociedade socialista, na qual o citoyen e o homme se encontram plenamente, o direito burgus ser enterrado em um remoto canto da histria e permitir-se- a instaurao de um verdadeiro momento de justia, afirmado pelo direito proletrio, que j perdeu, assim, seu formato burgus. [26: LUXEMBURGO, s.d.d.]

Esse processo, sem dvidas, entretanto, um processo histrico, conforme lembra Marx na Crtica ao programa de Gotha, que durar um longo tempo; por certo tempo, persistir o direito burgus (isto , a forma jurdica)[footnoteRef:27], mas ele ser utilizado a favor do proletariado e ir, desde seu mais tenro incio, promover a crtica da dicotomia entre o citoyen e o homme. que o processo de transformao econmica no ser imediato, mas, sim, ele, conforme rememora-nos Guevara, , tambm, influencivel pela condio moral e poltica dos integrantes da sociedade, que, pouco a pouco, vo se transformando moralmente, e fazem surgir o hombre nuevo do qual o revolucionrio tanto falava[footnoteRef:28]. Assim sendo, cabe proferir: sem democracia ampla e ilimitada, sem socializao dos meios de produo; sem socializao dos meios de produo, sem democracia ampla e ilimitada. Somente com a afirmao radical destes dois princpios a transio ser possvel e o direito acompanhar tal transformao, uma vez que suas utopias permanecero vivas e defendero o sistema socialista a partir da verdadeira conservao da dignidade humana, que no pode ser dicotomizada do processo coletivo da sociedade. [27: MARX, 2012.] [28: GUERVARA, 1965.]

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