Marinheiros e Barqueiros Africanos No Reconcavo Da Guanabara Sec Xix
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RECNCAVO 4
Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Ano 1 Nmero 1 Agosto- Dezembro de 2011
Marinheiros e barqueiros africanos no Recncavo da Guanabara,
sculo XIX. 1
Nielson Rosa Bezerra
Doutor em Histria - UFF
Resumo
Este trabalho uma provocao para uma nova abordagem para a escravido africana na
cidade do Rio de Janeiro, considerando os escravos que trabalhavam nas embarcaes que
ligavam a cidade e o recncavo fluminense. Assim, considerando fontes de pesquisa diversas,
como os relatos de viajantes e as matrculas de embarcaes que eram utilizadas na Baa de
Guanabara, espera-se construir novas problemticas para o estudo das africanidades no Rio de
Janeiro.
Palavras-Chave: escravido; marinheiros; baa de Guanabara.
Abstract
This work is a provocation to a new approach to African slavery in Rio de Janeiro City through a
study about mariner slaves who worked on trips from the city to Recncavo of Guanabra. This
work is based on primary sources such as traveller reports and ships registrations. Therefore, I
intend to create new questions in African studies in Rio de Janeiro.
Keywords: slavery; mariner; Ganabara Bay
1 Agradeo a generosidade do Prof. Dr. Flvio dos Santos Gomes (UFRJ).
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Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Ano 1 Nmero 1 Agosto- Dezembro de 2011
A baa de Guanabara j foi cenrio de manifestaes culturais, inspirao de
artistas, intelectuais e viajantes do sculo XIX, bem como objeto de pesquisas
acadmicas fundamentais para a percepo da relao dos seres humanos e o meio
ambiente na cena carioca. Atravs deste trabalho, considerando a cultura, a inspirao
e o rigor acadmico daqueles que delimitaram a baa de Guanabara no tempo e no
espao, penso que seja possvel contribuir para o desenvolvimento do conhecimento
do processo de formao da sociedade fluminense, considerando as fortssimas
interaes culturais que ocorreram nas guas da Guanabara durante o perodo
escravista de nossa histria.
Neste sentido, atravs das guas da Guanabara, seria possvel pensar a
histria da escravido africana, considerando as mltiplas conexes histricas que se
seguiram durante o perodo colonial e o sculo XIX, bem como as relaes sociais e
culturais constitudas entre as diversas regies africanas e o Brasil, particularmente a
cidade do Rio de Janeiro, sua baa e o seu recncavo. Muito tem se produzido sobre a
escravido que existia nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.2 Neste trabalho, venho
propor uma anlise das relaes escravistas que ocorriam no entorno da baa de
Guanabara, considerando-a uma representao valiosa do cenrio que constituiu um
mosaico tnico, caracterizado pelos inmeros grupos de procedncia que formavam
a sociedade brasileira escravista.
Para isso, pensar a baa de Guanabara pode ser providencial, pois as relaes
que os seres humanos tm construdo com a natureza ao longo do processo histrico
tm sido fundamentais para se pensar relaes de poder, formao econmica,
construes sociais e diversidade cultural. A principal iniciativa que pode melhor
estabelecer um exemplo desse dilogo so as reflexes de Fernand Braudel para a
expanso filipina atravs do Mediterrneo. Tal autor, considerando uma geo-histria,
percebeu trs dimenses para as transformaes sociais, sagrando-se como referncia
neste trabalho por conta de suas construes sobre a longa durao. Sem dvida
que Braudel foi o pioneiro em um olhar diferenciado para a histria regional,
2 Muitos desses trabalhos esto relacionados nas referncias bibliogrficas desse texto.
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sobretudo porque redefiniu a maneira como o conceito de regio era considerado
pelos historiadores. Alm disso, suas reflexes so deveras proveitosas como
referncia para esta pesquisa, pois inovou ao introduzir a ideia de uma histria
integrada pelo mar (BRAUDEL, 1949).
Nesta anlise tenho como objetivo principal identificar as relaes sociais
escravistas atravs de um estudo da ambincia social que ocorria na baa da
Guanabara, levando em conta as transformaes culturais atravs da construo de
um perfil da diversidade dos agentes sociais que atuavam neste contexto. Assim,
penso que a baa foi um espao de intensa integrao da capitania e da provncia
fluminense, tornando-se fundamental para a compreenso das construes sociais e
culturais das pessoas que habitavam esta regio, independente da condio social em
que viviam.
Os agentes da sociedade escravista privilegiados nesta pesquisa so os
marinheiros, barqueiros, proprietrios e mestres de embarcaes que vivenciavam o
concorrido cotidiano das viagens entre a cidade e as diferentes localidades do
recncavo, atravs das guas da Guanabara. Sobre esses agentes sociais, Mary Karach
afirmava:
Semelhante ao carreto por terra era o transporte de bens ou pessoas por gua. Canoas, balsas, veleiros pequenos e grandes e barcos a vapor viajavam pela costa, atravessavam a baa de Guanabara e iam at portos longnquos do mundo, inclusive alguns da frica. Um ou dois escravos tripulavam as canoas que traziam produtos para vender na cidade, enquanto outros alugavam seus servios para transportar passageiros ao longo da costa. (...) Desse grupo de cativos, parece que a maioria navegava pela baa sem seus donos e gozava de uma existncia menos controlada, sem dvida porque se confiava neles. Infelizmente, essa liberdade no era o quinho da maioria dos barqueiros e marinheiros, pois trabalhavam sob a superviso disciplinadora do senhor ou feitor ou manejo de escravos e marinheiros das galeras. (KARACH, 2000, p. 267)
Desta forma, o objeto de pesquisa sobre a escravido africana no Rio de
Janeiro se especifica pelo cenrio diferenciado, delimitando as guas da Guanabara
como um espao de confluncias sociais e culturais, cujas relaes favoreciam um
processo poltico entre senhores, escravos e outros agentes da sociedade escravista.
Tambm, a diversidade das relaes entre senhores e escravos que estavam
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empregados nos ofcios de carregadores das guas, que podiam caracterizar pelo
controle ou pela autonomia, flexibilizando as relaes construdas pela historiografia
brasileira at ento. Os tipos de embarcaes, os agentes sociais, o cotidiano das
viagens para os portos de freguesias do recncavo atravs da Guanabara, a
possibilidade de viagens mais longnquas, os internacionalismos sociais so algumas
questes que podem ser consideradas em novas abordagens.
As reflexes construdas neste trabalho ainda podem ser fundamentadas
pelas consideraes de John Thornton, que estudou a formao do mundo atlntico
atravs da atuao dos africanos de agentes de outras regies do mundo colonial. Para
isso, buscou compreender os diversos interesses que se conjugavam atravs das guas
atlnticas, estabelecendo um dilogo entre as reas de interesses de sua historiografia
com concepes geogrficas sobre a temtica. O autor evidencia a importncia do
Atlntico para o estudo da histria da dispora africana, principalmente no que se
refere aos agentes sociais marginalizados atravs do processo escravista. Mais uma
vez, pode-se perceber a importncia da ecologia para o processo histrico
desencadeado pela diversidade humana, propulsora de nossa formao social.
(THORNTON, 2004)
Da mesma forma, pode-se indicar o trabalho de Lus Felipe de Alencastro
voltado para o sculo XVII - quando afirma que o Brasil se formou fora do Brasil,
estabelecendo o Atlntico Sul como principal espao de confluncia na formao da
sociedade colonial. Nesse sentido, para o autor, as relaes entre as diferentes partes
da frica e do Brasil so fundamentais para a compreenso da sociedade colonial,
principalmente quando consideramos que as interaes econmicas e culturais so
muito mais diversificadas do que se poderia imaginar. Assim, Alencastro nos chama
ateno para a importncia dos africanos entre os interesses metropolitanos e dos
colonos brasileiros, alm de outros agentes de procedncias diversificadas, como os
holandeses, por exemplo. (ALENCASTRO, 2001)
Para que nosso objetivo possa ser factvel, necessrio se faz uma reduo de
nossa escala de anlise. As iniciativas historiogrficas realizadas para o Atlntico e para
o Mediterrneo s podem ser reproduzidas atravs de um estudo sobre as relaes
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escravistas no mbito da baa de Guanabara se estabelecermos uma microanlise da
temtica da escravido. Desta forma, as perspectivas de Jacques Revel tornam-se
valiosas para a fundamentao de nossa pesquisa.
Num caso e noutro, a escolha de um enfoque micro-histrico tem uma importncia decisiva. Tratando-se da natureza das categorias de anlise do social, com certeza no nvel local que a defasagem entre categorias gerais (ou exgenas) e categorias endgenas mais marcada. (REVEL, 2001, p. 24)
Assim, seria possvel estabelecer as guas da Guanabara como um lugar de
formao de uma sociedade cujas relaes se davam de forma dinmica, marcada pela
inquietude do trfico de escravos africanos que desembocava em suas guas.
Portanto, as guas da baa do Rio de Janeiro eram um cenrio privilegiado para as
confluncias de fatores endgenos e situaes especficas, que vinham e partiam para
o interior da provncia, de forma que nos favorece em uma anlise das suas relaes
escravistas. Ainda preciso esclarecer que a micro-histria no deve ser percebida
como um mtodo absoluto e autossuficiente, pelo contrrio, ser utilizado neste
trabalho como uma representao de um processo histrico mais amplo que se
iniciava na frica, atravessava o Atlntico, passava pelo litoral e chegava ao interior do
Brasil.
Considerando as preocupaes com o esclarecimento sobre uma negao da
autossuficincia, acompanhando a tendncia da historiografia sobre a dispora
africana, pode-se realizar uma importante insero antropolgica para os nossos
estudos. Fredrick Barth oferece ferramentas eficazes contra a ideia que a identidade se
formava atravs da restrio de comunidades e que os isolamentos sociais e
geogrficos foram fatores para a manuteno da diversidade cultural. Pelo contrrio, o
antroplogo noruegus considera a formao de identidades tnicas atravs do fluxo
de pessoas. Em outras palavras, as distines entre categorias tnicas no dependem
da ausncia de mobilidade, contato e informao, mas implicam efetivamente
processos de excluso e de incorporao, atravs dos quais, apesar das mudanas de
participao e pertena ao longo das histrias de vida individuais, estas distines so
mantidas. (BARTH, 2000).
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Aps uma breve insero terica que fundamentou as atividades empricas,
pode-se estabelecer uma caracterizao do ambiente natural que pretendo estudar. A
baa de Guanabara um acidente geogrfico. (LAMEGO, 1964) Tais ideias podem ser
melhor representadas atravs das palavras de Rugendas, que considera a beleza da
baa do Rio de Janeiro com sua forma oval e regular:
Talvez no exista no mundo uma regio como o Rio de Janeiro, com paisagens e belezas to variadas, tanto do ponto de vista da forma grandiosa das montanhas, quanto dos contornos das praias. Em virtude da multido de enseadas e promontrios, h uma variedade infinita de panoramas, tanto para o lado da baa e das suas ilhas quanto para o mar alto. No so menores a riqueza e a variedade da vegetao. (RUGENDAS, 1941, p, 20)
O estudo de Alberto Lamego destaca-se, em primeiro lugar por uma
catalogao das impresses dos europeus sobre as belezas do Rio de Janeiro atravs
de sua baa, iniciando no sculo XIV e estendendo-se at o sculo XX. Aps uma longa
descrio das inmeras belezas naturais da Guanabara, tal autor conclui:
O quadro panormico da Guanabara d-nos claro exemplo da limitao do artista ao querer escalar o inacessvel. o que nos provam tantos testemunhos, das mais extremas conformaes intelectuais e morais. Do mais rude e inculto marinheiro ao sbio de renome e ao esteta requintado transfiguram-se todos fascinao de uma inenarrvel maravilha. (LAMEGO, 1964, p. 14)
O trabalho de Lamego no se restringe apenas a uma compilao das
impresses de viajantes e artistas. Embora o autor no se furte do entusiasmo pelas
belezas naturais da baa do Rio de Janeiro, importante destacar sua importante
contribuio para se problematizar a relao entre o homem e o espao natural.
Assim, sua obra se divide em trs partes: a terra, o homem e a cultura, constituindo-se
importante referncia sobre a ocupao e as transformaes sociais que ocorreram na
cidade do Rio de Janeiro, no seu recncavo e no interior da provncia. (LAMEGO, 1964)
Sobre a baa do Rio de Janeiro, posso afirmar que suas caractersticas naturais
foram humanizadas pela ao das pessoas em uma poca especfica. Por esse prisma,
pode-se perceber que a Guanabara, fonte de admirao e inspirao registradas nos
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relatos de europeus que aqui estiveram ao longo do perodo colonial e do sculo XIX,
passou a ser a principal referncia na entrada da cidade do Rio de Janeiro. Assim, o
encantamento das belezas naturais dividia o lugar com as complexas relaes
escravistas que caracterizavam a cidade colonial, o seu recncavo, bem como toda a
provncia fluminense.
Durante o sculo XVIII o Rio de Janeiro se tornou o principal porto importador
de escravos africanos da Amrica. Assim, a cidade do Rio de Janeiro passou a guardar
complexidades que tm sido largamente estudadas pela historiografia mais recente.
No obstante, podem citar-se estudos sobre a vida cotidiana, as diversas formas de
resistncia e de sociabilidade, bem como a cultura escrava pelas ruas do Rio de
Janeiro. No entanto, a historiografia mais recente, como tambm a mais tradicional,
considerou apenas o porto do Rio de Janeiro do ponto de vista do trafico atlntico,
minimizando a sua importncia para o movimento dos escravos atravs da baa e no
recncavo. As guas da Guanabara eram um importante espao de comunicao e
integrao entre a cidade e seu entorno, um cenrio valioso mesmo para aqueles
interessados em descrever o cotidiano da cidade
Tais consideraes remetem s palavras de Daniel Kidder, que registrou uma
importante caracterstica porturia do Rio de Janeiro, quando sua comitiva pretendia
conhecer o interior fluminense.3 Em seus registros, possvel perceber a importncia
dos barqueiros e marinheiros para a vida econmica, social e cultural da cidade.
Segundo esse viajante e missionrio protestante, a Praia dos Mineiros, onde se faziam
os embarques para o recncavo concentrava grande nmero de escravos treinados na
arte da navegao:
Quando chegamos ao ponto onde devamos tomar a embarcao (Praia dos Mineiros), fomos, como de costume, assaltados por cerca de cincoenta barqueiros, e tremenda concorrncia, oferecendo botes, faluas ou canoas... Esses homens pertencem numerosa classe de escravos adestrados no mister de catraeiros e empregados no transporte de passageiros no interior da baa. Do-lhes botes e canoas pelos quais ficam pessoalmente responsveis, assumindo perante seus senhores a obrigao de pagar certa parcela diria, depois de deduzida a quantia necessria a sua subsistncia...
3 Daniel Kidder (Darien, 1815 - Evanston, 1891) foi um americano mrmon que esteve no Brasil em
1836/37 e 1840/42 para fazer trabalho missionrio na Amaznia, tendo por isso passado pelo Rio de Janeiro e viajado em suas imediaes. Suas memrias de viagem foram publicadas em ingls em 1845.
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no trabalham apenas para ganhar a vida, mas para escapar ao castigo que lhes est reservado caso no consigam entregar a seus senhores a parcela estipulada... alugamos um bote munido de vela e remos conduzidos por dois negros que se diziam perfeitos conhecedores de todos os portos da baa. (KIDDER, 1972, p. 145-146)
As descries de Kidder revelam-se valiosas para a identificao da
complexidade do cenrio que se pretende reconstituir. A expressiva quantidade, a
concorrncia e a variedade de embarcaes concentradas na praia dos Mineiros so
indcios bem interessantes das caractersticas porturias da cidade, bem como do fluxo
dirio de pessoas e mercadorias para o recncavo e o interior da provncia. Uma outra
caracterstica a destreza dos barqueiros registrada pelo viajante, treinados tanto no
transporte de passageiros como de mercadorias. Alm disso, nas palavras do
missionrio americano, possvel identificar uma modalidade de explorao do
trabalho escravo tipicamente da cidade: o trabalho ao ganho. Desta forma, diversas
caractersticas da cidade do Rio de Janeiro, pouco faladas pelos historiadores, podem
ser identificadas nas palavras de Kidder.
Contudo, a integrao necessria para se caracterizar o cenrio que se
pretende trabalhar no se restringe s ofertas e organizao do trabalho escravo nos
portos urbanos do Rio de Janeiro. As embarcaes tinham destinos costumeiros,
permitindo identificar a circulao e o ordenamento espacial dessas embarcaes no
perodo estudado. Kidder arrola os principais portos da Baa de Guanabara:
Os portos principais da baa so Mag, Piedade, Estrela e Iguau. Nesses pontos as tropas procedentes do interior descarregam grandes quantidades de mercadorias que seguem para o Rio de Janeiro em pequenas embarcaes... Se alguma coisa pode aumentar a magnificncia do empolgante cenrio so as numerosssimas embarcaes de todos os tipos que cruzam incessantemente a baa, pontilhando com suas velas brancas, o verde claro do mar.(KIDDER, 1972, p. 158-159)
So vrios os viajantes europeus que relataram suas experincias sobre a
travessia da Baa de Guanabara, registrando as caractersticas fsico-geogrficas e
sociais presentes na sociedade escravista da poca. Com o objetivo de chegar at o
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Porto da Estrela para prosseguir at Minas Gerais, o naturalista ingls Charles James
Fox Bunbury registrou:
Fiquei impressionado com a beleza das pequenas ilhas cobertas de mato de que a baa espessamente salpicada, e muitas das quais habitadas; as cabanas aninhadas debaixo das orlas das florestas, perto do mar, com pequenas plantaes de bananeiras ou cana-de-acar, lembram-me as gravuras que vi nas ilhas do mar do sul. A parte superior da baa tem as caractersticas de um lago. Cinco horas eram passadas desde que tnhamos partido da cidade, antes de chegarmos entrada do rio da Estrela ou Anhum-mirim (em tupi pequeno campinho)... (BUNBURY,1981, p. 51-52)
O relato de Bunbury torna-se fundamental ao estabelecer traos sobre a
importncia da Baa de Guanabara, bem como o tempo aproximado de travessia.
Atravs de suas memrias possvel inferir as condies favorveis para os constantes
deslocamentos fluviais e martimos que facilitavam o trnsito de pessoas, o
escoamento de mercadorias e as trocas de signos culturais. Francisco Pond, em
estudo mais recente, tambm descreve as caractersticas do incio da viagem para
Minas Gerais atravs da travessia da Baa de Guanabara:
Tomava-se na Praia dos Mineiros, no Rio de Janeiro, passagem em uma falua s 11 horas da manh e aproava-se ao Porto da Estrela, passando pelo Boqueiro, na ponta Ilha do Governador(...). Do Porto da Estrela, desembarcava-se em qualquer dos ancoradouros de Francisco Alves Machado Martinho e de Joviniano, s cinco horas da tarde, quando o tempo favorecia(...) (POND,1971, s.p)
Ao contrrio de Banbury, Pond destaca um perodo maior de viagem entre o
Rio de Janeiro e o Porto da Estrela, bem como a possibilidade de condies
desfavorveis para a circulao de pessoas e mercadorias atravs das diversas
embarcaes que navegavam atravs da Guanabara. Desta forma, a diversidade de
memrias e as interpretaes construdas sobre o processo que ora estuda-se
contribuem para o desenvolvimento da ideia de que a Guanabara era um ponto
privilegiado para as interaes sociais e as reconstrues culturais que ocorriam entre
africanos, crioulos, livres, escravos e libertos empregados nos servios martimos entre
a cidade do Rio de Janeiro e o seu recncavo.
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Durante a sua estada na Corte do Imprio, a francesa Adle Toussant-
Samson, visitou duas vezes uma fazenda de Mag. Atravessou a Baa de Guanabara,
chegou ao Porto da Piedade, esteve em um hotel da localidade e fez pouso na fazenda
So Jos, em Mag. Em uma de suas viagens, relatou:
Gordos vendeiros portugueses tiravam os sapatos e coavam os ps durante a viagem; outros estendiam-se nos bancos, semi-despidos e roncavam sem se importar com seus companheiros de viagem; negros sujos e malcheirosos, carregados de cestos e de gneros de toda a natureza atravancavam o barco, de sorte que ficamos muito satisfeitos de deixar essa encantadora sociedade ao desembarcar na Piedade. (TOUSSANT-SAMSON, 2003, s.p)
Embora trate-se de um olhar etnocntrico caracterstico dos viajantes
europeus, fica evidente o ambiente do pequeno comrcio. Em seu breve relato, alm
da presena de um francs, no caso, ela mesma, a descrio destaca que as
embarcaes mesclavam o servio de passageiros e o transporte de mercadorias,
facilitando a percepo do cotidiano dessas embarcaes aqui estudadas.
Os relatos de viajantes so valiosos em qualquer processo investigativo do
passado. Em geral, so impresses de pessoas que viveram, visitaram, vivenciaram e
experimentaram situaes que ajudam na reconstituio do cenrio estudado.
Entretanto, se no se pode confiar cegamente por um possvel olhar exterior, cheio de
concepes europeias ou norte-americanas que procuravam entender o Brasil atravs
de uma lgica exgena, tambm preciso considerar o pouco conhecimento que os
viajantes tinham do processo. Por mais detalhado que o registro e as descries
possam ser, preciso questionar, problematizar e confrontar com outras fontes de
poca e que ofeream informaes similares, ou pelo menos sobre a mesma situao
que se est estudando. Com essa preocupao, buscamos outras fontes que
pudessem informar sobre a insero da sociedade escravista nas guas da Guanabara.
A mais rica documentao encontrada foram as matrculas das embarcaes de fretes
e servios de frete empregados na Baa do Rio de Janeiro, disponveis no Arquivo
Nacional, analisadas a seguir.
Desde o sculo XVIII o Rio de Janeiro passava por um processo de
crescimento de suas atividades comerciais e de uma intensa expanso demogrfica.
Tais transformaes alteraram a dinmica urbana, trazendo situaes difceis de serem
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controladas. As dificuldades se multiplicavam, porque o Rio de Janeiro se tornou uma
espcie de cidade aberta, que abrigava todo tipo de gente, escravos e livres, naturais
da terra, portugueses e ainda uma diversidade assombrosa de estrangeiros espanhis,
austracos, americanos, turcos, entre muitos outros. Sobre os contrastes urbanos da
cidade do Rio de Janeiro, Ilmar de Mattos frisou que:
Do Rio de Janeiro, sede do governo do Estado do Brasil desde 1763, pode-se dizer que preservava as caractersticas de uma quase aldeia ao encerrar-se o perodo colonial. Ruas estreitas, escuras e sujas; no havia remoo de lixo, sistemas de esgotos, qualquer noo de higiene pblica. As casas eram trreas e sua maioria, ocupadas pelos prprios donos. (...) No decorrer do sculo XVIII, sua populao crescera significativamente (...). Tal crescimento expressava, se dvida, a intensificao da atividade comercial com a regio mineradora, a Metrpole e o litoral africano.(MATTOS, 1994, p. 29)
Segundo Ilmar de Mattos, a formao do Estado Imperial Brasileiro se deu de
forma extremamente complexa, considerando as caractersticas demogrficas de sua
capital. Portanto, um controle das ruas deveria ser expressamente necessrio para que
fosse feita a transio entre o governo da casa e o governo do Estado. (MATTOS,
1994) Entre os diversos estudiosos que buscaram entender a dinmica das ruas do Rio
de Janeiro durante a primeira metade do sculo XIX, destaca-se Carlos Eugnio Soares
que ao decorrer sobre as diversas formas de rebeldia escrava que se alastravam pela
cidade do Rio de Janeiro, evidenciou as preocupaes da classe senhorial em criar
mecanismos de controle e represso das massas intertnicas que viviam e povoavam a
capital do Imprio. (SOARES, 2001).
As preocupaes com o controle da populao no se restringiam aos que
habitavam nas ruas da cidade, mas tambm aos escravos, libertos e livres que viviam
o cotidiano fluvial da Guanabara e dos rios que os ligavam com o interior do
recncavo. Assim, as medidas propostas em 1829 para o controle das embarcaes e
suas tripulaes nos revelam tais preocupaes:
1. Todos os Juzos de Paz apresentaro uma lista das embarcaes pertencentes as pessoas dos distritos de sua jurisdio, designando nome de seus tripulantes, nome dos barcos, servio em que se emprega, e se de frete ou particular.
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2. Todos sero no prazo de um ms destas publicadas receberem do Juiz de Paz um boletim com as declaraes assim, e com eles apresentarem-se no Arsenal de Marinha para ali serem numeradas fazendo-se um lanamento sobre declaraes e sinais do Arraes (...).
3. Que todas as embarcaes que forem encontradas sem esta numerao se considerem suspeitas e em estado de averiguao.(...) 4. Todos os botes de demais embarcaes empregadas no servio de quitanda pelo mar sero obrigadas as mesmas legitimar que so obrigadas os mascates e quitandeiros que so de qual distrito. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1829.4
Como se v, a preocupao com a ordem e a formao de uma boa sociedade
eram flagrantes nas medidas das autoridades cariocas, evidenciando a necessidade de
controle da massa nas ruas e nas vias fluviais. Tais preocupaes se estendiam para
alm das freguesias sob a jurisdio da cidade do Rio de Janeiro, pois eram os
inmeros agentes sociais que residiam em freguesias do recncavo e que
quotidianamente visitavam a cidade. Portanto, a preocupao e as medidas de
controle deveriam estar associadas a um permanente alerta, para que a ordem fosse
estabelecida no mbito da capital do Imprio.
As matrculas eram registradas em livros do Arsenal de Marinha, ficando
disposio da Polcia da Corte. Entretanto, cada embarcao recebia um bilhete de
identificao para ser apresentado s autoridades, quando solicitado, incluindo tipo e
nome da embarcao, servio para qual era destinada, nome e endereo do
proprietrio, nome e funo da autoridade encarregada do registro e da autorizao.
Ficava ainda registrada a identidade dos tripulantes.
Sobre a tripulao empregada nas embarcaes, necessrio um breve
descritivo e analtico, pois tais registros so extremamente reveladores para a
problemtica enfocada nesse captulo. O nmero de tripulantes variava de acordo com
o tamanho da embarcao e o servio, mas quase todos os registros indicam um
arraes, o mestre da embarcao, responsvel por ela e pelos demais tripulantes. A
seguir, eram apresentados os marinheiros que, embora no tivessem uma descrio
densa de suas caractersticas, eram identificados pelos nomes e, no caso dos africanos,
4 Arquivo Nacional. Polcia da Corte (Diversos Cdices). Cdice 413. Volume 1. Rio de Janeiro, 1829-1832.
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por seus grupos de procedncia. A variedade tnica dos tripulantes das embarcaes
era enorme, sendo um importante elemento para identificar a formao de mosaico
de naes que caracterizavam a escravido na provncia do Rio de Janeiro. Uma
reflexo mais complexa sobre a hierarquizao social representada pela tripulao das
embarcaes da Baa de Guanabara pode ser bem interessante. Pela identificao e
quantificao das matrculas possvel perceber uma expressiva diversidade de
naes, de atividades e de servios oferecidos, revelando mais uma face da escravido.
Voltado para a investigao sobre o trfico atlntico de escravos, Jaime
Rodrigues analisou e refletiu sobre o cotidiano das embarcaes que atracavam no
porto do Rio de Janeiro. Sobre suas tripulaes afirmou que:
Independente da nacionalidade, pertencer a uma tripulao era fazer parte de um processo de trabalho especializado e dividido em tarefas que variavam de acordo com uma hierarquia que, se era construda a partir das habilidades, tambm refletia uma diviso social transportada da terra para bordo. (RODRIGUES, 2005, p. 162)
No resta dvida sobre a importncia econmica dessas atividades exercidas
concomitantemente por escravos, livres e libertos; africanos, crioulos, brasileiros e
europeus. Portanto, a hierarquizao social era bem mais complexa durante o
processo cotidiano da escravido que existia nas guas guanabarinas. A presena
expressiva de africanos nessas atividades torna-se um importante indcio de
permanncia e reconstruo de habilidades e expresses culturais entre aqueles que
se deslocaram da frica para o Brasil. Alm do mais, no se pode furtar o contato
cultural de pessoas que guardavam naes diversas em seu universo identitrio. Assim,
manter e reconstruir identidades sociais e culturais era bem mais complexo, pois se
tratava da ampliao de fronteiras que eram redefinidas, no mbito do trabalho
martimo na Baa de Guanabara.
Com referncia s ideias que estamos propondo, o trabalho de Jaime
Rodrigues, aponta para questes fundamentais:
Se o sofrimento era uma marca desse tipo de trabalho, produzindo resultados que esto no cerne mesmo da cultura martima, outros elementos ainda intervinham na caracterizao de prticas culturais dos marinheiros. Entre elas estava a mobilidade no espao, responsvel pelo
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contato com outras prticas culturais mundo (ou mar) afora, alm de inmeras diversidades: a diferena social entre membros das tripulaes, a variao etria, a multiplicidade religiosa, de nacionalidade, de etnia, etc.(RODRIGUES, 2005, p. 185)
Assim, as possibilidades de anlise da sociedade escravista se multiplicam de
forma contundente. Associada s descries de viajantes, a anlise da documentao
das embarcaes permite oferecer uma importante contribuio para o historiografia
da cidade do Rio de Janeiro, do comrcio e do controle da escravido, que tinha lugar
nas fazendas, nas ruas das cidades, mas tambm nas guas da baa e dos rios que
ligavam a Cidade s freguesias do seu recncavo.
Atravs deste estudo, pretende-se apontar para a necessidade de se valorizar
a concentrao da demografia africana na cidade do Rio de Janeiro. So muitos os
trabalhos que vm demonstrando tais preocupaes. Porm, tambm muito
importante descentralizar os estudos africanistas para o recncavo guanabarino. Isso
se explica pela perspectiva das conexes histricas que precisam caracterizar a
produo historiogrfica do presente, haja vista a percepo da ausncia de
isolamento entre os indivduos, as sociedade e regies.
Portanto, o estudo dos marinheiros e barqueiros empregados na Baa de
Guanabara nos empresta muito mais diversidade cultural do que se supunha no
processo de formao da sociedade escravista brasileira. As diversas identidades
ligadas procedncia e a grupos tnicos, as muitas naes construdas pelo trfico
atlntico devem ser consideradas ao lado das mltiplas naes no africanas que
tambm se faziam representar nas guas da Guanabara e no seu cotidiano comercial.
As confluncias culturais tambm so percebidas pelas prprias modalidades de
explorao do trabalho, pois os escravos africanos dividiam o cotidiano com
trabalhadores livres. Embora esta informao seja lugar comum na historiografia
brasileira, neste caso, a experincia de trabalhadores no-africanos com outros que
viviam o cativeiro pode enriquecer uma nova anlise para o estudo de nosso passado
escravista. Neste caso, ainda acrescente-se o fato de se tratar de marinheiros
africanos, brasileiros, europeus, norte-americanos, asiticos, australianos, que viviam a
experincia da liberdade como natureza de ofcio. Desta forma, pode-se afirmar que,
alm de toda experincia de autonomia, trocas culturais, dentre outras, o cotidiano da
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baa de Guanabara, que ligava a cidade do Rio de Janeiro e suas freguesias recnditas,
guardavam uma caracterstica de sntese internacional, multiplicando as possibilidades
de transformao e reconstruo cultural dos africanos e de todos os agentes
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