Mariana & Francisco

5
MARIANA & FRANCISCO Escrito por Jorge Lopes Mariana está na Praia da Barra, em Ílhavo, às 6:30 da manhã. Sentada na areia, com a roupa vestida e os chinelos de lado, tendo assim os pés descalços. Ela anda calma, parada e estática. O som da maré é o som do fundo dela nesta hora e neste instante. O amanhecer começa a surgir e não há vento. Mariana anda a pensar na vida ou noutra coisa? Uma coisa é certa: não podemos saber o que anda a passar na alma de uma determinada pessoa, a não ser que essa pessoa seja nossa amiga e, da nossa parte, colocá-la-íamos uma pergunta sobre o assunto. Mas, como sou nesta história um narrador que sabe de tudo e mais alguma coisa, posso relevar tudo o que anda a passar na mente da Mariana. Mariana chegou à Barra, de carro, na noite anterior para dormir e para fazer depois esta espécie de visualização de paisagem nesta manhã. Agora cá estamos. Vemos uma jovem mulher de 23 anos, com cabelo ruivo e 1,72 metros de altura, a sentar na praia e a assistir não só ao amanhecer como também às marés calmas. Por esta altura, ela continua a sentir-se triste e em transe em relação à notícia da morte do seu irmão mais novo Francisco que tinha sido vítima de morte súbita com apenas 17 anos. Teve a dor infame de assistir o seu mano falecer à sua frente em casa, mais concretamente num convívio de amigos 1 . Como era possível um jovem adolescente morrer assim brutalmente e subitamente se era saudável e são? A vida tem estas coisas mas, para Mariana, foi um ato injusto, cruel e bárbaro que não conseguiu realmente compreender. Mariana via o irmão como uma das poucas pessoas da família que podia confiar plenamente todos os dias. Ela não conseguia entender-se com os pais. Já não sentia neles o conforto, a confiança e a simpatia que sentia na infância. Desentendia-se muitas vezes com eles sobre várias coisas. Daí o facto de, entre outras coisas, o Francisco ser um ponto de conforto, de abrigo, de confissão e de desabafo. Já admitiu, algumas vezes e em conversas, que o irmão era o seu melhor amigo. 1- Lembram-se do momento em que o filho da Paula Teixeira da Cruz e do Paulo Teixeira Pinto faleceu, vítima de morte súbita, numa festa qualquer em casa? É exatamente a mesma causa.

description

conto

Transcript of Mariana & Francisco

MARIANA & FRANCISCOEscrito por Jorge LopesMariana est na Praia da Barra, em lhavo, s 6:30 da manh. Sentada na areia, com a roupa vestida e os chinelos de lado, tendo assim os ps descalos. Ela anda calma, parada e esttica. O som da mar o som do fundo dela nesta hora e neste instante. O amanhecer comea a surgir e no h vento. Mariana anda a pensar na vida ou noutra coisa? Uma coisa certa: no podemos saber o que anda a passar na alma de uma determinada pessoa, a no ser que essa pessoa seja nossa amiga e, da nossa parte, coloc-la-amos uma pergunta sobre o assunto. Mas, como sou nesta histria um narrador que sabe de tudo e mais alguma coisa, posso relevar tudo o que anda a passar na mente da Mariana.Mariana chegou Barra, de carro, na noite anterior para dormir e para fazer depois esta espcie de visualizao de paisagem nesta manh. Agora c estamos. Vemos uma jovem mulher de 23 anos, com cabelo ruivo e 1,72 metros de altura, a sentar na praia e a assistir no s ao amanhecer como tambm s mars calmas. Por esta altura, ela continua a sentir-se triste e em transe em relao notcia da morte do seu irmo mais novo Francisco que tinha sido vtima de morte sbita com apenas 17 anos. Teve a dor infame de assistir o seu mano falecer sua frente em casa, mais concretamente num convvio de amigos1- Lembram-se do momento em que o filho da Paula Teixeira da Cruz e do Paulo Teixeira Pinto faleceu, vtima de morte sbita, numa festa qualquer em casa? exatamente a mesma causa.

. Como era possvel um jovem adolescente morrer assim brutalmente e subitamente se era saudvel e so? A vida tem estas coisas mas, para Mariana, foi um ato injusto, cruel e brbaro que no conseguiu realmente compreender. Mariana via o irmo como uma das poucas pessoas da famlia que podia confiar plenamente todos os dias. Ela no conseguia entender-se com os pais. J no sentia neles o conforto, a confiana e a simpatia que sentia na infncia. Desentendia-se muitas vezes com eles sobre vrias coisas. Da o facto de, entre outras coisas, o Francisco ser um ponto de conforto, de abrigo, de confisso e de desabafo. J admitiu, algumas vezes e em conversas, que o irmo era o seu melhor amigo. Mariana procurava ento na praia um refgio para escapar dura realidade que estava a sofrer tambm sofria imenso pelas amigas (uma delas acabou por morrer vtima de uma overdose de drogas no seu apartamento) e para cair as mgoas penduradas com a morte sbita do irmo Francisco. No entanto, no podia deixar de fazer luto por ele. L pensa ela emocionalmente: Como era possvel? Tenho o direito de fazer luto mas tenho de esconder as mgoas e o sofrimento e aqui, na praia, que devo fazer! Tenho de resistir ao fado2- Neste caso, o fado refere-se ao destino. A Mariana pensa que deve resistir ao fado porque ela acha que, tal como o seu irmo, ia sucumbir-se morte mais cedo do que poderia imaginar e da mesma maneira que ele sofreu: dolorosamente, abruptamente e inesperadamente.

e crueldade para sempre. Assim tirou as mgoas e ficou na praia durante algum tempo. Assim que conseguiu, Mariana sai da praia. So 7:30 da manh. Vai passear pela costa. S pra quando no h mais edifcios na Barra. Assim que no h mais edifcios que possam tapar a vista da estrada e do mar, Mariana fica mais do que feliz. Fica tranquila e encantada. Muita areia, palmeiras, e muitas rochas verdes ou plantas. Em relao a este ltimo aspeto, Mariana no consegue saber exatamente o que . So, no fundo, verduras. Bem frente da rotunda. O ar estava lindo. As gaivotas comeam a aparecer cada vez mais. O mar continua calmo. Mariana decide pegar numa foto que tinha trazido nas calas. Essa foto , para ela, muito especial. O contedo daquela foto envolve a prpria e o Francisco que tinha, naquela altura, 13 anos de idade sorrindo na serenata dela. Vendo a foto, ela sorri emocionada. To emocionada que fico a pensar, na altura em que escrevo estas linhas, se ela poderia voltar a chorar. Mas no, no chorou e graas a Deus.Passados alguns minutos mais tarde, Mariana sai da zona das verduras. Entra para o carro e fica a pensar durante mais uns instantes. Fecha tambm os olhos. Ela est agora a pensar nos melhores momentos que passou com ele: noites onde jantavam comidas decentes3- Lasanha, pizza, hambrguer, tortellini, etc.

e viam filmes sozinhos, dias passados na praia, conversas sobre tudo4- Exemplos: poltica, sexo, educao, futebol e cinema.

e algumas coisas embaraosas como aquela em que o Francisco e umas amigas tiveram de suportar uma Mariana incrivelmente bbada durante uma madrugada, depois de estiverem numa discoteca. Ela s dizia merda despropositada. Ainda tiveram que ser inspecionados pela Brigada de Trnsito da GNR. A grande sorte foi o facto de Mariana ter ficado a dormir nos lugares de trs do carro e tambm o facto de a condutora do blide, a amiga Diana, ter ficado a soprar a mquina de alcoolemia dada pelos guardas. O resultado foi zero. Que grande sorte do caraas, digo eu. Para os outros que esto a ler isto, no seiUm flashback em que Mariana deveria fazer, e fez. Brincavam, divertiam, passavam dias juntos, faziam jogos5- Nada de referncias porcas, est bem?

Como os Trovante diziam numa msica, as memrias so como livros escondidos no p e as lembranas so os sorrisos que queremos rever e devagar. Entretanto, ela comea a chorar. Emociona-se com as lembranas. Comea a sentir cada vez mais falta do Francisco.De sbito, retira da carteira um bloco de notas. Aponta uma ideia. Qual a ideia? Ela apontou: Escrever uma carta de despedida ao Chico. E foi exatamente o que fez quando chegou casa: escreveu uma carta de ltimo adeus da seguinte forma:Para algum que foi especial para a minha vida e que foi alm daquilo do que seria capaz de fazer na sua idade, aqui vai esta carta de despedida da tua irm mais velha. Esta no uma carta ordinria. Esta no uma carta de elogios ou de conselhos. Esta , simplesmente, uma carta que me custa a fazer. O teu desaparecimento no foi justo nem merecido. A minha vida no a mesma coisa sem a tua luz, sem a tua presena.Ningum queria que a tua vida acabasse de uma forma to vil, cruel, insensata e insensvel. Deus tirou a tua vida demasiado cedo e andamos todos zangados com Ele. Sabes, Deus pode ser simptico, querido, adorvel e solidrio connosco mas tens de perceber que existe, de fato, um lado negro da Sua face. Um lado que mostra que no se importa em tomar vidas que so inocentemente tiradas e que, muitas vezes, no olha com ateno s malfeitorias que so feitas para prejudicar o Seu nome como pedofilia, uso indevido de dzimos, corrupo e luxria para construir grandes casas e comprar carros de topo de gama. Deus, como todos os Homens e as Mulheres, no perfeito e assume os erros que cometeu na construo do Seu mundo. Sinto-me particularmente revoltada por isso e julgo que, se eu morresse muito cedo, tambm estarias revoltado com este mundo e com este Deus que temos. Deus no teve um pico de vergonha quando veio te buscar. Nessa altura, Ele no teve pacincia, piedade e d.Tenho saudades tuas. Ns na casa sentimos a tua falta. Sinto falta das nossas brincadeiras, das nossas conversas, das nossas ideias, dos nossos sorrisos... Fico grata por ter um irmo como tu. Sempre gostei de ti desde que nasceste. Mas, como sabes, a vida tem estas coisas, h que seguir em frente. H que continuar os estudos que tm andado a correr bem, h que continuar a vida louca e agitada que tenho vindo a ter ultimamente, h que continuar com a minha vida...No ser fcil dizer-te adeus pela ltima vez mas aqui vai... At sempre, irmo! At sempre, Francisco!Da tua irm MarianaTerminada a escrita, Mariana pega na carta e coloca-a num envelope fechado. Vai at igreja, onde est a famlia. a missa do funeral. Chega atrasada e aguenta a cerimnia.No final da eucaristia, Mariana vai at ao carro fnebre e pede aos homens para arrumar a carta. Peo-vos do fundo do meu corao. S quero falar com ele uma ltima vez. Por favor..., ela dizia. L os homens se deram por solidrios e abriram uma ltima vez o caixo do Francisco. L, deita-se um rapaz plido, suave, quieto, com olhos fechados e com as mos juntas bem perto do peito. Mariana emociona-se, chora e pe a carta nas mos do irmo. Depois, os homens fnebres seguem passo at ao cemitrio, juntamente com as pessoas comuns, segurando o caixo a passos lentos. Um passo. Mais um. Um. Mais um. Um. Mais um. Um. Mais um. E por a diante, at chegarem ao destino. medida que todo este tempo passa, vemos que a Mariana sente no apenas a falta de um ente querido. Ela sente a falta de uma luz que a conduz melhor do que ningum. Ela sente a falta do irmo que sempre quis ter e que sempre a quis. Ela sente a falta do homem que nunca a desiludiu. Que isto fique claro para todos numa altura em que Francisco vai para debaixo da terra, culminando assim o luto onde todos os pssaros voam com laos negros, onde as impressoras param e deixam de imprimir jornais, revistas e documentos, onde os carros buzinam e os animais gritam de pesar, onde as pessoas vestem de preto todos os dias, onde as lojas deixam de promover descontos e fecham as portas, onde as estaes de rdio e televiso deixam de transmitir a programao e fecham as emisses, onde os polticos deixam de fazer as aventuras do costume e passam a prestar homenagem ao falecido em unssono, onde os pedfilos deixam de abusar sexualmente de pobres petizes e deficientes, onde a Bolsa de Lisboa deixa de negociar as aes das empresas do PSI-20 e fecha as portas, onde os servios pblicos fecham as portas com as bandeiras em meia haste, e onde sobretudo a vida deixa de funcionar tal como era e fica silenciada pelo peso, pela significncia, pelo impacto, pela cor e pelo sabor de um eclipse inevitvel, a morte.