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Marcos Aguinis
A Saga do Marrano
Editora Pgina Aberta - 1996
Gnero: romance histrico
Numerao: cabealho - 488 pags
Contracapa
UM ROMANCE HISTRICO SOBRE A INTOLERNCIA E A F. UMA EMOCIONANTE NARRATIVA DA
PERSEGUIO
AOS JUDEUS NA AMRICA LATINA NOS SCULOS XVI E XVII, NUMA POCA DOMINADA PELA
INQUISIO, PELO
FANATISMO E PELA COBIA.
"A saga do marrano reconstri e relembra os horrendos mtodos inquisitoriais,
alm de alertar sobre todo tipo de discriminao. No centro da histria est a
defesa
do direito a escolher a sua prpria verdade sem submeter-se a ningum." Pagina
12, Buenos Aires
"Um romance que no apenas traz luz episdios histricos geralmente
desconhecidos, mas que tambm consegue comover o leitor."
mbito Financiem, Buenos Aires
"...um romance poderoso, dominador, envolvente... um livro para ler de um
flego s."
Aurora, Telavive
ISBN 85-7320 025 1
SCRITTA
9"788573"200256"
Orelhas
Marrano: dizia-se, na Pennsula Ibrica, uu
judeu ou mouro que, embora professando abertamente o cristianismo para evitar
perseguies, continuava ocultamente fiel sua primitiva religio.
NOS ANOS QUE PRECEDERAM a conquista da Amrica, a Inquisio intensificou a
perseguio aos judeus que habitavam a Espanha, acabando por expuls-los em
massa.
O mesmo ocorreu pouco depois em Portugal em 1996 completaram-se 500 anos do
dito de expulso dos
judeus daquele pas. Os judeus vagaram pelos pases vizinhos durante algumas
dcadas at que tentaram refgio seguro
nos longnquos pases da Amrica Latina. A saga do marrano um romance baseado
em fatos histricos
rigorosamente documentados que narra a saga da famlia Maldonado da Silva e suas
peripcias pelo Novo Mundo. um
relato sem retoques do perodo colonial latino-americano.
Francisco Maldonado, o protagonista da histria, um mdico judeu convertido
em cristo-novo que luta contra
seus temores e vacilaes em um mundo impregnado pelo fanatismo e pelo horror
diferena promovidos pela Inquisio;
um mundo regido pela hipocrisia e pela mais desptica corrupo. Suas convices
lhe do coragem para lutar pelo direito liberdade de
conscincia e por seus princpios ticos, num turbilho de crueldade e ambio
ilumnado a cada momento pelo pulsar da
piedade, da ternura e das lealdades.
A saga do marrano tambm um romance que, em seus desdobramentos, fala
eloqentemente de nosso tempo e descreve
com maestria e com um talento indignado a intolerncia, a violncia e a
cobia que marcaram a histria da Amrica
-
Latina desde a chegada dos europeus.
Marcos Aguinis nasceu em Crdoba, Argentina, em 1935. doutor em medicina e
cirurgia, especializado em psicanlise e membro titular da
Associao Psicanaltica Argentina. Autor de inmeros livros de grande sucesso
em
seu pas, recebeu prmios literrios na Argentina, Mxico, Espanha e Frana. Na
dcada de 1980, foi secretrio de
Cultura do governo argentino na gesto do presidente Raul Alfonsn.
Marcos Aguinis
A SAGA DO MARRANO
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
Aguinis, Marcos, 1935
A saga do marrano / Marcos Aguinis; traduo Hugueta Sendacz. So Paulo :
Scritta, 1996. (Terrae)
ISBN 85-7320-025-1
1. Romance argentino i. Ttulo, n. Srie.
96-4949
CDD-ar863.4
ndices para catlogo sistemtico:
1. Romances : Sculo 20 : Literatura argentina
ar863.4
2. Sculo 20 : Romances : Literatura argentina
ar863.4
Marcos Aguinis, 1991.
1a edio: dezembro de 1996
EDITORA PGINA ABERTA LTDA.
Publicado rnediante contrato com Internacional Editors Co.
A SAGA DO MARRANO
Marcos Aguinis
Traduo Hugueta Sendacz
SCRITTA
Coordenao editorial Daisy Barretta Flamarion Maus
Produo
Cyntia de Souza Levy Enrique Pablo Grande Isabel Cristina Lima Patrcio
Capa e projeto grfico Claudia Intatilo
Foto da capa Cludio Pinheiro
Reviso
Maurcio Baltazar Leal
Maria Borges
EDITORA PGINA ABERTA LTDA.
Rua Princesa Isabel, 1503
04601-003 So Paulo SP Telefone: (011)532-1833 Fax: (011)240-1301 e-mail
scritta @ax.ibase.org.br
SUMRIO
LIVRO PRIMEIRO
Gnese - Brasas da infncia 09
LIVRO SEGUNDO
xodo - O trajeto da perplexidade 131
LIVRO TERCEIRO
Levtico - A Cidade dos Reis 209
-
LIVRO QUARTO
Nmeros - Chile: a breve Arcdia 307
LIVRO QUINTO
Deuteronmio - Abismo e cume 395
EPLOGO 483
AGRADECIMENTOS 487
LIVRO PRIMEIRO
GNESE
Brasas da infncia
Imundcie, pele e osso, tornozelos e pulsos feridos pelos grilhes, Francisco
uma brasa que arde sob os escombros. Os juizes olham enfastiados para este
espantalho,
um tumor decididamente intolervel.
Fazia doze anos que o haviam encarcerado nos crceres secretos. Haviam-no
submetido a interrogatrios e privaes. Em acaloradas polmicas, confrontaram-
no com eruditos.
Humilharam-no e ameaaram-no. Mas Francisco Maldonado da Silva no cede. Nem a
dores fsicas, nem a presses espirituais. Os tenazes inquisidores transpiram
raiva,
porque no querem envi-lo fogueira, sem que carregue arrependimento nem
temor.
Quando seis anos antes o ru realizou um jejum que quase o transformou em
cadver, os inquisidores ordenaram aliment-lo fora, darlhe vinho e doces;
no podiam
tolerar que este verme lhes arrebatasse a deciso sobre seu fim. " a Inquisio
no seus prisioneiros que estabelece as penas e ordena seu cumprimento."
Francisco
Maldonado da Silva demorou a recuperar-se, mas conseguiu demonstrar a seus
verdugos que podia sofrer tanto quanto um santo.
Na masmorra malcheirosa, o desgraado prisioneiro consegue evocar sua odissia.
Nasceu em 1592, exatamente um sculo aps a expulso dos judeus da Espanha e da
descoberta
das ndias Ocidentais por Colombo. Veio luz no remoto osis de Ibatn, numa
casa onde predominava a cor pastel com enormes manchas de azul. Sua famlia
mudou-se
depois para Crdoba, precipitadamente. Tinham de fugir de uma perseguio que
logo os alcanaria. Viajou por terras ameaadoras: ndios, pumas, ladres,
salinas
alucinantes. Tinha nove anos de idade quando prenderam seu pai. Um ano depois
arrancaram violentamente de seu lar o irmo mais velho. Completou onze anos e
no restava
nada em sua casa para confiscar. Sua me, vencida, entregou-se morte.
Completou sua educao num convento: ouvia o violino de Francisco Solano, lia a
Bblia, aprendeu rapidamente o latim. Mas tambm sangrou um apopltico, cavalgou
pelas assombrosas cordilheiras e conheceu os flagelos. Antes de completar
dezoito anos resolveu partir para Lima, a fim de graduar-se mdico pela
Universidade de
San Marcos. Esperava encontrar seu pai semiparalisado pelas torturas da
Inquisio. A viagem de milhares de quilmetros em carroa e em mula levaram-no
desde os
pampas do sul at as savanas do norte. Alternou
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vicissitudes com descobertas inesperadas. E desceu buliosa Cidade dos Reis
para receber a revelao final. Ali conheceu e ajudou o primeiro santo negro da
Amrica,
participou da defesa de Callao contra o pirata holands Spilbergen e se formou
numa cerimnia brilhante. A perseguio que comeou em Ibatn e continuou em
Crdoba
tornou a avivar-se em Lima. Decidiu ento embarcar para o Chile. L foi
contratado como cirurgio-chefe do Hospital de Santiago: era o primeiro
profissional com
diploma legtimo que exercia medicina no pas. Sua biblioteca pessoal superava
todas as colees de livros existentes nos conventos e reparties pblicas.
Visitou
sales e palcios, conviveu com altas autoridades civis e religiosas, foi
adulado por sua cultura. Casou-se. Era um homem apreciado e bem-sucedido; seu
bem-estar
reparava a seqncia de padecimentos anteriores.
Um homem comum no alteraria esta situao. Mas em seu esprito ardia uma chama
inextinguvel. Era uma rebelio que ascendia das profundezas. Muita gente
perambulava
pelo mundo mantendo em segredo suas crenas. Contra a lgica da convenincia,
ele optou por tirar a mscara e defender seus direitos. At esse momemto havia
sido
um marrano *.
*Qualificao injuriosa aplicada pelo populacho aos judeus e muulmanos
convertidos ao cristianismo e que mantinham laos com sua antiga f. Marrano o
porco jovem
recm-desmamado. Lembra a imundcie e a sordidez. Primeiramente assim se
classificavam os excomungados. A partir do sculo XIII, o vituprio se dirigiu
aos judeus
convertidos fora e suspeitos de manter uma certa lealdade a suas razes.
Depois a injria foi estendida a todo judeu e, particularmente, aos cristos-
novos. A
palavra soava horrivelmente aos ouvidos espanhis, e um decreto de 1380 foi
promulgado para condenar, com multa e priso, a quem chamasse de marrano a um
converso
sincero. Mas no foi o bastante para deter o crescente fanatismo. Limpo era
aquele que no tinha sangue nem judeu nem mouro, mesmo que fosse um delinqente
vil e
cheio de pecados. Sujo, cachorro e sobretudo marrano era aquele em cujas
veias corria o sangue abjeto. Havia uma grotesca frase: "No come porco, porque
porco
." A palavra se imps em toda a extenso do imprio espanhol e ingressou no
lusitano.
(Fim da nota)
Quando vivia em hipcrita paz no Chile, decidiu dar o salto. Para que o
arrependimento no o tentasse, afiou seu escalpelo e circuncidou a si mesmo.
A marca fsica considerada infamante era a dolorosa proteo de sua
liberdade. Pouco depois ocorreu o esperado: a Inquisio foi busc-lo. Era o
incio da batalha.
Quando o fizeram
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comparecer ante o austero tribunal, no pediu clemncia. Os muros tremeram com a
provocao que seu incrvel juramento acarretava: com Maldonado, milhares de
vtimas
tambm reivindicavam.
Quando pde escapar pela janela de sua cela, no o fez para fugir: arrastou-se
s cmaras vizinhas e insuflou nimo em outros prisioneiros. Impelia-o uma
profunda
convico da justia de sua causa. Coberto de feridas e anmico, continuava o
combate. Na penumbra de seu tabernculo urdia discursos e os vertia nas sesses
inquisitoriais
-
como ondas do mar s escarpas.
Eram exploses de espuma e de luz que os juizes interrompiam abruptamente,
vencidos e perplexos. Perguntavam-se consternados como foi a vida desse homem,
quem moldou
sua diablica insolncia. Era necessrio sab-lo, porque se tratava de uma
histria inusitada, perigosa.
O Santo Ofcio inicia os preparativos de um multitudinrio Auto-de-F, a
realizar-se em janeiro de 1639. Descobriu a chamada Grande Conspirao. Sero
executados
muitos rus. A ocasio aconselha a terminar com esse rptil. Os juizes convocam
ento Fernando de Montesinos, respeitado autor de muitas obras, para que faa o
relato
pormenorizado do Auto-de-F e a biografia dos condenados. O excelente trabalho
seria impresso por ordem do Ilustrssimo Inquisidor Geral. No suspeitam que,
desta
forma, as vtimas ascenderiam imortalidade.
Meio sculo antes da grande matana, o mdico portugus Diego Nunez da Silva
pai do futuro mrtir havia chegado ao osis de Ibatn. A buclica regio
apenas
insinuava o comeo de uma epopia.
Ao instalar-se em Ibatn* ou San Miguel de Tucumn** Diego Nunez da Silva sentiu
urgncia em cumprir uma estranha obrigao. Inquietava-o o ptio retangular de
sua
humilde casa de pedras, adobe e teto frgil, construda pelos indgenas. Era um
ptio
*Nome do povoado no idioma tonocot. Um sculo aps sua fundao, o rio invadiu
a cidade e seus habitantes a reconstruram muitos quilmetros ao norte.
**Nome do povoado Ibatn no idioma espanhol.
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quente, coberto por moitas, e para o qual se abriam os quartos. O quadro
inspito devia ser substitudo por outro: por aquele desenhado em seus sonhos e
que testemunharia
sua deciso de radicar-se no lugar definitivamente.
Diego Nunez da Silva nasceu em Lisboa em 1548. Quando obteve a licenciatura em
medicina, aos trinta e dois anos, farto das perseguies e submisses, decidiu
fugir
para o Brasil. Queria afastar-se das fogueiras sem fim, da vertigem das
acusaes, das foradas pias de batismo, das cmaras de tortura e dos Autos-de-
F que assolavam
Portugal. Regozijou-se com o oceano e festejou suas tempestades que pareciam
apagar as tempestades humanas. Mas, ao desembarcar no Brasil, percebeu que
convinha
afastar-se do territrio dominado pela Coroa Portuguesa. Continuou, pois, sua
viagem em direo ao oeste, at o Vice-Reino do Peru. Chegou finalmente
lendria
Potos, onde as minas de prata eram furiosamente exploradas: os veios j davam
inequvocos sinais de esgotamento. Encontrou outros portugueses, com quem travou
amizade;
essas relaes tiveram mais tarde onerosas conseqncias.
Desejoso de praticar a medicina, resolveu construir um hospital para os
indgenas e realizou trmites junto ao Cabido, e tambm junto ao bispo de Cuzco.
No teve
xito: a sade dos ndios no era assunto de interesse. Tampouco lhe convinha
permanecer nesse lugar, onde era visto com suspeita. Sabendo que necessitavam de
mdicos
ao sul, reiniciou a marcha. Ainda o animavam esperanas. Atravessou mesetas,
quebradas e desertos espectrais, at alcanar o osis de Ibatn. Ali conheceu a
jovem
-
Aldonza Maldonado, uma moa de olhos doces, mas sem bens; uma formosa crist-
velha* que, pelo exguo dote, no podia aspirar a um casamento vantajoso.
Aceitou casar-se
com este mdico portugus maduro, pobre e cristo-novo**, porque tinha aspecto
confivel e trato cordial. Os esponsais foram austeros, como exigia a falta de
dinheiro
de ambas as partes.
Diego Nunez da Silva sentiu-se feliz. Havia oferecido seus servios a toda
Ibatn e aos poucos povoados dispersos pela imensa provncia de Tucumn. Com
suas economias
anteriores e seu magro salrio, conseguiu financiar a construo da modesta casa
em torno do tradicional ptio retangular. Terminou a casa, mas faltava corrigir
o ptio.
Soube que no Convento de La Merced havia um laranjal. Procurou o superior, frei
Antnio Luque. Foi suficiente uma s conversa para
*Sem antepassados mouros nem judeus.
** Convertido ou filho de convertido.
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obter vrias mudas e a ajuda gratuita dos ndios e dos negros. Sob sua
superviso, as enxadas arrancaram as moitas daninhas. Os caules e razes gemeram
sob os golpes.
A caa mida fugiu. Em seguida, as ps e picaretas completaram a limpeza,
removendo tocas de lebres e ovos de rpteis. Roaram a terra mida e fizeram um
pequeno
declive suave por onde pudesse escorrer a gua das chuvas. Depois, aplainaram o
terreno at que o retngulo se tornou to liso quanto uma pele de tambor.
Dow Diego marcou ento doze pontos e mandou cav-los. Para assombro dos pees,
fincou um dos joelhos e, dispensando ajuda, plantou cada rvore em seu
respectivo
lugar. Comprimiu a terra ao redor da delicada base das hastes, regou com prazer,
como se desse de beber a peregrinos e, ao terminar o trabalho, chamou sua
mulher.
Ela atendeu submissa, as mos enredadas nas contas do rosrio. A escura
cabeleira chegava aos ombros. A pele azeitonada contrastava com os olhos cor de
mel. Rosto
redondo, de boneca, boca pequena e nariz delicado.
O que voc acha, Aldonza? perguntou orgulhosamente, enquanto apontava as
pequenas rvores. Explicou-lhe que logo brotariam as flores, viriam os frutos e
teriam
uma boa sombra.
No lhe disse, porm, que o recm-terminado ptio de laranjeiras era a
reproduo de um sonho. Era a saudade da Espanha, uma terra que nunca havia
conhecido.
Quando nasceu o quarto filho do casal, Francisco, a magnfica ramagem do
laranjal j abrigava a estridncia dos pssaros. O quadro era idlico. Francisco
o evocaria
amide nos anos posteriores, mesmo quando jazia no cho de sua priso. A memria
lhe trazia a paisagem distante em tom pastel com pinceladas de azul.
Os trs irmos de Francisco eram Diego, Isabel e Felipa. Diego, o primognito,
era dez anos mais velho do que Francisco e foi batizado com o mesmo nome de seu
pai.
Porm seus traos fsicos e espirituais no lembravam o licenciado, mas sim a
bela Aldonza. Como esta e como sua irm Isabel, Diego era tranqilo, afetuoso,
de cara
redonda e baixa estatura. Ao contrrio, Felipa e Francisco reproduziam o pai:
nariz ossudo, fronte ampla, cabelos acobreados e altura generosa. Eram,
16
-
como don Diego, apaixonados, falantes e audazes. A impetuosa Felipa, por
exemplo, no conseguia frear seu esprito rebelde. Seus atrevimentos deixavam
desesperada
a pobre Aldonza, que a repreendia com sua voz de santa e lhe ordenava purificar-
se com uma srie de ave-marias. O pequeno Francisco seguia o mesmo caminho.
Esta famlia de seis pessoas contava com os servios de um casal de escravos:
Lus e Catalina. Em comparao com outras casas, dois escravos eram um completo
certificado
de pobreza. Don Diego os comprara em uma liquidao de mercadoria defeituosa: o
negro mancava devido a um ferimento na coxa, causado durante uma tentativa de
fuga,
por isso no servia para os trabalhos pesados. Ela era vesga. Ambos haviam sido
aprisionados em Angola, ainda crianas. Aprenderam os rudimentos do castelhano,
que
entremeavam com speras expresses de sua lngua de origem. Tambm se resignaram
ao batismo e imposio de nomes cristos, se bem que continuassem evocando
dissimuladamente
seus deuses distantes. O coxo Lus fabricou um instrumento musical com a
queixada de um asno e o ossinho de uma ovelha. Raspava os dentes da queixada com
ritmo excitante,
e sua voz entoava uma cantilena inverossmil. A vesga Catalina acompanhava com
palmas, leves movimentos de todo o corpo e um canto triste com a boca fechada.
O doutor reconheceu a inteligncia de Lus, que afirmava descender de um
feiticeiro, e o ensinou a auxiliar em seus trabalhos de cirurgia. Esse fato
repercutiu escandalosamente
em Ibatn. Se bem que alguns negros e mulatos j trabalhassem como barbeiros e
realizassem as sangrias comuns, no se confiava a eles a reduo de uma fratura,
a
drenagem de abscessos ou a cauterizao de feridas. Don Diego encarregou-o
tambm da custdia de seu delicado instrumental. Sua manqueira no o impedia de
seguir
don Diego pelas ruas de Ibatn, ou atravs do pedregal extramuros, carregando
sobre os ombros a arca cheia de peas cirrgicas, ps, ungentos e ataduras.
Quando, ao entardecer, Diego Nunez da Silva se sentava sob as laranjeiras, em
sua larga poltrona de junco, uma pequena audincia comeava a rode-lo. Ele era
um
narrador nato. Se iniciava uma histria, era difcil levantar-se, at mesmo para
urinar. Tinha um repertrio inesgotvel. Estava sempre disposto a oferecer novos
contos sobre heris e cavaleiros, mas geralmente lhe pediam que repetisse as
comovedoras lembranas espanholas e os moralizantes episdios
da histria sagrada. Seu maior prazer mais do que o repouso, mais do que a
deliciosa conversao era manter sua memria ativa e exercitar a de seus
filhos.
A manuteno da memria no era uma predileo inocente ou desprovida de riscos.
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Um dia o ptio das laranjeiras comeou a ser chamado de "a academia". A ironia
no incomodou o mdico portugus. Mais ainda, para no parecer intimidado,
decidiu
que ali se ministrasse uma educao sistemtica a sua famlia. Alegou que os
ensinamentos dispersos eram insuficientes. Convenceu o debilitado frei Isidro
Miranda
a dar aulas para todos. Assim comeou uma atividade que no seria bem-vista
pelas autoridades. Aprender algo estranho ao catecismo implicava invadir
jurisdies
perigosas.
Sob a ramagem instalaram uma mesa de alfarrobeira e a rodearam com bancos
desiguais. O abatido frade props ensinar o quatrivio* bsico: gramtica,
geografia, aritmtica
e histria. Sua voz era clida e persuasiva. O melhor deste homem. Em
compensao, seu rosto ossudo emoldurava um par de olhos constantemente
desorbitados, como
-
se no sassem do assombro ou terror. Apesar de sua boa vontade, o
impressionante olhar chocava seus alunos. A estes era difcil subtrair-se ao
sobressalto. O adoentado
frade havia evangelizado no Peru e Paraguai, foi trespassado por flechas no
Chaco e trabalhou na cidade de Santiago del Estero com o legendrio primeiro
bispo desta
extensa provncia de Tucumn.
Os alunos da escola foram Aldonza a quem seu marido havia ensinado as
primeiras letras , seus quatro filhos (inclusive o pequeno e travesso
Francisco), Lucas
Graneros (amigo de Diego) e trs vizinhos. Embora proveniente de uma famlia
crist-velha, com relativa tradio, Aldonza no havia recebido mais instruo
do que
fiar, tecer, bordar e costurar.
O conhecimento poder repetia don Diego aos dspares estudantes batendo com
a mo fechada sobre a mesa. um estranho poder que no se compara com o ao,
nem com a plvora, nem com a fora dos msculos. Quem conhece poderoso.
Frei Antnio Luque, o severo superior da ordem dos mercedrios, que lhe havia
dado generosamente as mudas para o laranjal, no pensava da mesma maneira. Luque
era
um sacerdote rude, a quem o Santo Ofcio da Inquisio investiu na categoria de
familiar**. Usou um tom amvel para dirigir-lhe uma refutao
esmagadora:
*Trivio ou Quatrivio: conjunto de trs ou quatro matrias escolares que assim se
agrupavam desde a Idade Mdia.
**Funcionrio da Inquisio que devia denunciar as pessoas que atentavam contra
a f e prender os rus com ordem do tribunal (por si mesmo ou auxiliado pelo
oficial
de justia). Para o cumprimento de sua misso, estava autorizado a portar armas,
pblica ou secretamente, em todo o distrito inquisitorial.
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O conhecimento soberba disse lentamente; cada palavra destilava fel. Por
querer engolir o conhecimento, fomos expulsos do Paraso.
E referindo-se academia do ptio das laranjeiras, desqualificou-a duramente:
uma excentricidade.
Como se no tivesse sido bastante categrico, acrescentou:
um absurdo que toda uma famlia estude. Para a educao das mulheres
suficiente aprender trabalhos manuais e o catecismo.
Diego Nunez da Silva o ouviu com respeito. Sabia o risco que implicava ofender
sua autoridade de familiar. Aps cada frase, ainda que no estivesse convencido,
baixava
as plpebras e at inclinava sua cabea. O rgido sacerdote era pequeno e de
olhar raivoso. O mdico era alto e de olhos ternos. Mas o mdico, obviamente,
devia
ceder ante a fora do pequeno sacerdote. Ao menos para que no fechasse a
academia. Limitava-se a dizer que refletiria sobre suas criteriosas palavras.
Mas no despediu
frei Isidro, nem limitou o horrio das aulas, nem excluiu as mulheres do
aprendizado. Sua escola devia prosseguir e frei Antnio Luque provavelmente
reconheceria
seu valor, quando se convencesse de que no lesava a f.
Diego Nunez da Silva dedicou seu tempo e presena a sua criao. Em algumas
tardes se incorporava mesa de estudo para insuflar nimo. Ouvia, perguntava,
anotava.
Brincava de aluno. O afetuoso Isidro induzia-o a completar dados e explicar
melhor certos problemas.
o senhor, don Diego insistia o frade , quem suprime as dificuldades da
geografia e da aritmtica. E quanto gramtica e histria, o senhor as
converte
-
em matrias profundamente influentes. Como no admir-lo? Minha maneira de
ensinar elementar, sem desleixar e sem sofisticar.
Exagero. Se o senhor no desleixasse ria-se don Diego de pouco valeriam
minhas intervenes.
O senhor nos entusiasma. E quanto a mim reconheo que permite oportunos
castigos a meus acessos de orgulho. bom que me lembrem como sou insignificante
e enfermio.
Encantada, Aldonza contemplava o mirrado sacerdote. Sua firme humildade a
enternecia. Era um bom modelo para seu ideal de modstia. A submisso e a
humildade comoviam-na.
Frei Antnio Luque convocou Isidro Miranda para que "o informasse" sobre
a "ridcula academia". O limitado funcionrio no queria descries ingnuas.
Queria algo que se resumia em uma palavra, sonora, inequvoca e enaltecedora:
denncia.
A denncia dos costumes, frases, opinies e at aluses sutis que permitissem
apanhar a ponta de um
19
fio que levasse imunda cova do demnio. Formulou meia dzia-de perguntas, que
o bom frei Isidro respondeu em seguida, com seus olhos mais esbugalhados do que
nunca:
eram globos que flutuavam em seu rosto. Depois, o familiar o censurou:
Que idia foi essa de armar um quatrivio? seu olhar emitia raios. Sim, um
quatrivio inslito para esta parte do mundo. Que necessidade existe de ensinar
histria,
aritmtica, geografia e gramtica, neste deserto da cristandade? So quatro
matrias para centros qualificados, no para Ibatn. Para completar esse fato
grotesco,
falta apenas que inclua os escravos entre seus alunos.
Frei Isidro comprimia a cruz que pendia no peito.
O senhor ensina matrias faustosas para seres miserveis. Isto jogar prolas
aos porcos. Absurdo! levantou-se, deu algumas voltas na escura sacristia e
ergueu
o indicador para o cu. Alm disso, cometeu um esquecimento imperdovel:
marginalizou a teologia, a rainha das cincias. Como pretende que compreendam o
mundo,
sem a teologia? Se o senhor e esse mdico extremamente suspeito querem cultivar
almas, como dizem, ensinem ao menos rudimentos de teologia. Rudimentos!
Na tarde seguinte, frei Isidro abriu o maltratado caderno, que conservava desde
os tempos de sua juventude e deu sua primeira aula de teologia. Ao final da
aula,
Diego, o irmo mais velho, disse que queria aprender latim. O frade ficou
surpreso:
Latim?
Para entender a missa respondeu o rapaz, desculpando-se.
Voc no necessita entend-la explicou o sacerdote , basta assistir, ouvir,
emocionar-se, comungar. E crer.
Eu tambm quero aprender isso! exclamou o pequeno Francisco.
"Isso" se chama latim.
Sim, latim.
No tens idade suficiente sentenciou frei Isidro.
Por qu?
O sacerdote acercou-se do menino e abraou-o carinhosamente.
No se pode saber tudo disse.
Soltou-o, caminhou lentamente ao redor de seus alunos e dirigiu-se ao ausente
don Diego: "Saber nem sempre poder."
Deu por terminada a aula. Cada um recolheu seus utenslios.
Contrariamente ao previsto, aps algumas semanas, comeou a ministrar aulas de
latim. Diego e Francisco estudaram o idioma como se fosse um jogo. Repetiam as
declinaes
enquanto pulavam corda e se
-
20
entretinham com a prtica do jogo de malha. Sabedor dessa novidade, frei Antnio
Luque permitiu-se emitir uma centelha de aprovao. Mas ainda no se afastavam
de
seu esprito alerta as suspeitas de heresia.
Francisco Maldonado da Silva completou trinta e cinco anos de idade. Mudou-se
para Concepcin, no sul do Chile, para evitar as garras da Inquisio. Tem sono
leve
e sobressaltado. Intui que em algum momento, que em alguma dessas noites,
acontecer. Esboa planos, mas os afasta por serem ingnuos. Ambos ele e a
Inquisio
tero de encontrar-se, fatalmente.
Ouve rudos em torno da casa. Seu pressentimento torna-se realidade. Imagina os
soldados com a ordem de priso. Chegou o momento, levanta-se silenciosamente.
No
deve assustar a esposa e a filhinha adormecidas. Veste-se na obscuridade. Os
esbirros costumam agir brutalmente e ele ir surpreend-los com sua postura
digna. Ainda
que seu corao desenfreado tenha comeado a latejar em sua garganta.
Ibatn se escondia nas fraldas de uma montanha que detinha as nuvens
provenientes do leste e as obrigava a regar suas encostas; a vasta aridez
circundante se transformava
abruptamente em selva. Para chegar a este osis, Diego Nunez da Silva teve que
percorrer os mesmos caminhos que, pela primeira vez, sculos atrs, os incas
haviam
desbravado. Aps os incas, esses caminhos foram exauridos pelos tenazes
conquistadores: suas pequenas e suicidas tropas eram atradas pela alucinao de
uma cidade
portentosa, cujas casas tinham muros de prata e telhados de ouro. Os
conquistadores, levando fulgurantes armaduras, percorreram a antiga trilha. No
descobriram
a cidade dos seus sonhos, mas fundaram outras, entre elas Ibatn, ou San Miguel
de Tucumn, junto a um rio que desce fresco e sonoro pela Quebrada do Portugus.
Batizaram-no com o nome de "rio do Telhal", porque em suas margens instalou-se
uma fbrica de telhas. Mas no se sabe a que portugus se referiram, quando
chamaram
a quebrada "do Portugus"; esse nome j existia quando Nunez da Silva chegou.
21
Os habitantes de Ibatn tiveram que lutar em princpio contra duas ameaas: a
natureza exuberante e os ndios. Junto cidade, agitava-se a selva. A
respirao dos
pumas chegava at os ptios. O rio baixava em impressionantes barrancos; na
poca das chuvas os afluentes engordavam rapidamente e ele ento se convertia
num monstro
escuro e agressivo. A enchente arrancava rvores
inteiras, empurrava pedras e devorava muros. Seu horrendo avano gerava pnico.
Os aldees construam barragens com pedras e troncos. Por mais que se
esforassem,
nunca conseguiam deter as lnguas que se estendiam at o centro. Uma vez a gua
chegou aos umbrais da Igreja Matriz.
A recm-fundada Ibatn contaram a don Diego logo que l se instalou produziu
uma sublevao dos calchaques. Estes ndios habitavam as montanhas e no
aceitavam
ser submetidos ao regime de encomiendas*. Seu lder naquela poca era um
legendrio cacique de enorme estatura chamado Gualn, que foi comparado por um
sacerdote
ao bblico Golias. Planejaram um ataque devastador e tiveram pacincia de
aguardar at que a maioria dos espanhis sasse para uma expedio. Quebraram a
muralha
-
da cidade, destruram os semeadouros, afugentaram os animais, atearam fogo s
construes. A resistncia sobre-humana dos poucos espanhis, mantida com
arcabuzes
e punhais, durou vrios dias, at que pudesse chegar ajuda de Santiago del
Estero. Gualn morreu no combate. Os calchaques de pescoo taurino e
cabeleiras leoninas
retrocederam para suas posies nas montanhas. Os ndios da plancie, que
tambm queriam sublevar-se, ao perder a proteo destas tribos indmitas,
submeteram-se
definitivamente ao poder espanhol. Ibatn foi reconstruda sobre os calcinados
alicerces.
Este conflito teve repercusso no vnculo entre os homens e as foras
sobrenaturais. Com efeito, a cidade havia sido fundada sob a proteo do arcanjo
Miguel e sua
espada. Mas viu-se que o arcanjo no enfrentou os calchaques. Sua negligncia
provocou muita decepo. Os sacerdotes e o povo decidiram conseguir outra
proteo
mais confivel. Um padre sonhou com os santos Judas e Simo. A mensagem era
clara: foram Judas e Simo quem realmente intervieram para salvar Ibatn.
Deveriam ento
ser designados padroeiros, no lugar do ineficiente Miguel. Mas como deslocar o
arcanjo sem ofend-lo? O mesmo padre props a soluo: designar Judas e Simo
como
vice-padroeiros.
*Instituio pela qual se "encomendava" para um colonizador um grupo de ndios
que trabalhariam para ele, em troca da obrigao, que o encomendero assumia, de
custear
sua educao crist.
22
A proposta obteve uma alegre aprovao e em poucas semanas se ergueu a capela
dos novos protetores. Foi primorosamente construda no acesso norte, por onde
ingressavam
os viajantes do Peru, que assim logo sabiam da sua presena. Por ali costumavam
passar Francisco, o seu irmo Diego e seu amigo Lucas, quando iam pescar.
Uma cerca de troncos rodeava a povoao. Cada morador estava obrigado a manter
armas em casa e pelo menos um cavalo. Vivia-se em p de guerra. Os guardies
faziam
permanentemente a ronda extramuros. Dow Diego tambm fazia a ronda a cada dois
ou trs meses. Mas, como era o nico mdico, as autoridades preferiam que ele
no
participasse tanto das rondas e ficasse disponvel para sua tarefa especfica.
Francisco orgulhava-se de ver seu pai alistar-se como soldado. Observava-o
revisar
o arcabuz, contar a munio e colocar o capacete sobre a cabeleira ruiva.
A praa central de Ibatn era ladeada pelas ruas reais, que se ligavam aos
caminhos para o Chile e o Peru (no Norte) e s plancies pampianas (no Sul). O
alvoroo
no cessava: ao trnsito das carroas somavam-se as tropas de mulas, o mugido
dos bois, o relincho dos cavalos e o regateio dos comerciantes. No centro desse
movimento
de homens, animais e veculos, erguia-se o pelourinho: era chamado "rvore da
justia". Era o rstico eixo da cidade: testemunha de sua fundao e vigia do
seu crescimento.
Solidamente fixado terra "em nome do rei" legitimava a presena e a ao
dos colonos. No pelourinho se aoitava e se executava. Os rus chegavam sua
severa
instncia com a grossa corda no pescoo, escoltados por guardas. O pregoeiro
informava sobre o seu delito; o verdugo o enforcava com eficincia; o pelourinho
o exibia
-
com orgulho macabro; os moradores olhavam morbidamente o corpo que pendia da
corda e se balanava ligeiramente, como se transmitisse saudaes ao inferno. s
vezes
era necessrio retirar o cadver antes que se cumprisse sua didtica funo de
exemplo, porque se celebrava uma festa. Festa pelo nascimento de um prncipe, a
coroao
de um novo rei, a designao de outras autoridades. Era imprescindvel que
domingos e dias de guarda, bem como a celebrao de santos favoritos, nunca se
contaminassem
com uma execuo. No porque a execuo em si carecesse de elementos festivos,
mas sim que Eclessia abhorret a sanguini que corresponde ao bom cristo dar a
Csar
o que de Csar e a Deus o que de Deus.
A praa, portanto, era um espetculo permanente. Se no pendia um enforcado
rapidamente visitado pelas moscas , havia folguedo secular. Se no se realizava
uma
corrida de touros, circulava uma procisso (contra a prxima enchente do rio,
contra uma epidemia, por
23
falta de chuva, por excesso de chuva, contra renovada ameaa dos calchaques, ou
em ao de graas pela boa colheita). Durante as procisses desfilavam as quatro
principais ordens religiosas com seus estandartes: dominicanos, mercedrios,
franciscanos e jesutas. O fantico frei Antnio Luque costumava dirigir as
ladainhas
e imprecaes com sua voz estentrea, podia assim lembrar aos hereges ocultos
seu terrvel poder de familiar. Marchava frente da imagem fitando o p do
caminho
porque "p fomos e p seremos" e, de quando em quando, cravava suas pupilas com
preciso intuitiva em quem esquecia a gravidade do momento. Depois era realizada
uma corrida de cavalos e uma de arcos e tambm elementares
representaes teatrais sobre temas sagrados e concursos de poesia, dos quais
Diego Nuez da Silva participou uma vez. Ao escurecer, soltavam fogos de
artifcio.
Certa ocasio, Diego queimou uma das mos por querer ajudar; ficou com uma
cicatriz na palma.
Esta resumida descrio seria incompleta se no lembrssemos que a um lado da
praa erguia-se o Cabido a autoridade secular , composto por vrias salas que
rodeavam
o inevitvel ptio. Seus muros caiados brilhavam como a neve dos altos cumes. No
centro do ptio instalaram uma cisterna com formoso parapeito de azulejos.
Defronte
ao Cabido, erguia-se a Igreja Matriz a autoridade eclesistica. Ali estavam,
pois, os dois poderes que disputavam o domnio de Ibatn, a provncia de Tucumn
e
o continente inteiro. De um lado o poder terreno, de outro o poder celestial. E
assim como o primeiro se estendia at o implacvel pelourinho, o segundo se
estendia
a outras igrejas e conventos. No pelourinho mandava Csar (inclusive os
condenados pela religio deviam ser entregues ao brao secular) e nos templos
mandava Deus.
Mas ambos sempre excediam seus limites, porque Deus est em toda parte e Csar
no se resigna a ser menos que Deus.
Pelas ruas vizinhas praa, construram-se outras igrejas, com seus respectivos
conventos. Os franciscanos, melindrados, ergueram uma igreja mais alta que a dos
mercedrios e lhe anexaram uma formosa capela. Expuseram-se crtica
e culpa pela quantidade de dinheiro investido. Os jesutas, por sua vez, no
se intimidaram com as eventuais crticas: construram uma nave com cruzeiro de
quarenta
-
metros de largura, amplo trio, paredes de azulejos e almofadado exterior;
revestiram o piso com cermica, recobriram as paredes com gesso e cobriram o
teto com
telhas; instalaram um altar grandioso e dotaram o templo com um plpito
admiravelmente decorado. Os jesutas assumiam frontalmente a belicosidade de sua
Companhia.
24
Corre a tranca de ferro. Ao entreabrir a porta, vrias mos empurram de fora.
Supem que Francisco, assustado, tornaria a fech-la. Mas Francisco no se move.
Os
soldados tm de frear seu mpeto: diante deles, na penumbra, ergue-se um homem
corpulento, que o lampio pincela de ouro e anil. Quase esquecem o que tinham a
dizer.
Um dos esbirros aproxima o lampio dos seus olhos e pergunta:
O senhor Francisco Maldonado da Silva?
Sim.
Eu sou Juan Minaya, escrivo do Santo Ofcio aproxima o lampio ao nariz,
como se desejasse queim-lo. Identifique-se.
Francisco, quase cego, se anima a perguntar:
No acaba de nomear-me?
Identifique-se grunhe com impacincia burocrtica.
Sou Francisco Maldonado da Silva.
O tenente baixa lentamente o lampio, como se iluminasse partes ondeantes dos
rostos espectrais.
Est preso em nome do Santo Ofcio sentencia.
Outros homens amarram seus braos com rudeza. Apropriam-se do seu corpo.
Isidro Miranda costumava levar o pequeno Francisco at a ermida dos vice-
padroeiros Simo e Judas. Era um passeio agradvel para ambos: o ancio se
divertia com
as perguntas do pequeno e o religioso as respondia. A salvo da solenidade
imposta pelos semelhantes, o menino era como um neto que lhe permitia brincar de
av transgressor.
Enquanto percorriam as ruas de casas toscas que contrastavam sua cobertura de
adobe com o verde dos cedros Francisco lhe tazia perguntas sobre os outros
lugares
onde havia vivido antes de radicar-se em Ibatn, especialmente sobre a vizinha
Santiago del Estero. Ali passou anos junto ao divertido Francisco de Vitoria,
que
havia sido o primeiro bispo da provncia. Vitoria foi um homem excepcional, que
interrompeu bruscamente sua gesto pastoral, quando mais necessitavam dele.
25
Foi perseguido por seus prprios pecados ou pela inveja dos outros frei
Isidro no conseguia chegar a uma concluso; algumas vezes acentuava o primeiro
e outras
o segundo. Mas insistia Francisco de Vitoria deixou uma lembrana
indelvel. Sim: indelvel.
Gostaria de t-lo conhecido disse Francisquinho.
Simconcordou o frade.E teria te causado uma forte impresso.
Ele gostava de crianas?
s vezes.
Como, s vezes?
Quando o divertiam. Veja bem. Um de seus filhos, que lhe deu uma negra
angolana, era extremamente tmido.
Filho dele e de uma negra angolana? surpreendeu-se o pequeno.
Isidro no fez caso da interrupo e continuou:
Enfurecia-o, que fosse tmido. Tanto insistiu para que o mulatinho fosse mais
travesso, que festejou a destruio da imagem de um santo. Levantou-o, beijou-o
e
-
danou com ele em torno dos sagrados pedacinhos da imagem. Depois, aplicou-lhe
uma penitncia. O mulatinho chorou confuso: fizera bem? fizera mal?
E o senhor, o que acha?
Espera. Francisco de Vitoria organizou uma procisso para desagravar o santo,
como devia ser feito, e perguntou ao mulatinho se estava arrependido. O menino
no
sabia o que responder e disse com muita graa que ainda lhe doa a sova. No
est arrependido?, insistiu seu pai. Est doendo, repetia. Responde minha
pergunta!
Est doendo. E assim outra vez. O bispo interpretou esta evasiva como uma
saudvel rebelio.
Saudvel rebelio?
"Saudvel"... duvidou o frade. Sim, ele disse saudvel rebelio. Um
absurdo, naturalmente. Mas Francisco de Vitoria era absurdo. Definitivamente:
celebrava
a rebelio. Estranho, no ?
Um bispo pode ter filhos?
O frade pigarreou e desviou o olhar. O senhor tem filhos?
Agarrou com as mos a cruz que lhe pendia no peito:
Os sacerdotes fazem voto de castidade e praticam o celibato.
O que celibato?
No contrair casamento.
Mas pode ter filhos?
Pode, mas no deve.
O bispo Francisco de Vitoria...
26
Deus o julgar.
Estendia-se ao norte a cadeia montanhosa atapetada pela selva. No alto brilhavam
os cumes nevados. medida que se acercavam de Ibatn, crescia o nmero de
carroas
e animais. Ingressaram numa esplanada, onde confluam policromia e estrondo. A
se renovavam cavalgaduras e bois, se vendiam tropas de mulas, se amontoavam
fardos
cheirosos, os escravos carregavam volumes. Era o lugar onde rapidamente se
encontrava o seleiro que consertava os arreios e os carpinteiros que recolocavam
o eixo
nas carroas.
Ento o bispo Vitoria era bondoso com os rebeldes? Francisco continuava
assombrado.
Somente com os meninos rebeldes.
Por qu?
No o ameaavam. Era cioso de seu poder e fora. Os adultos que ousavam
insubordinar-se eram por ele esmagados sem misericrdia, com mo pesada. Saiba
que chegou
a excomungar o governador.
O governador?
Exatamente! E no uma, mas quatro vezes!
Excomungou o governador quatro vezes?
Assim como ouves: quatro.
Pobre. Deve estar penando no inferno.
Junto cerca e perto do prtico destacava-se a esbranquiada capela dos vice-
padroeiros. Foi construda nesse lugar por razes prticas: assim podiam
controlar
melhor as ameaas do rio, da selva e dos impenitentes calchaques. Entraram na
acolhedora penumbra. So Judas e So Simo foram esculpidos em imagens
impressionantes.
As bordas de prata ressaltavam seus retintos cabelos. Vestiam hbitos verdes,
que correspondia cor dominante em Ibatn, e envolvia-os uma tnica roxa, sobre
a
qual refulgiam estrelas de ouro.
-
Ajoelharam-se sobre o tapete de l e rezaram. Ao sair, frei Isidro repetia
sempre:
Nunca confundas So Judas Tadeu com Judas Iscariotes. Apoiando-se nos reforos
da paliada estendia-se uma ampla estalagem, cujas paredes estavam cobertas por
camadas de pintura vermelha. Ali se hospedavam os viajantes. O governador de
Tucumn havia ordenado com sensatez que toda cidade do territrio deveria ter
pelo menos
uma estalagem, "para remediar o dano de que todas as residncias
o sejam". A uma distncia de uns trinta passos, funcionava a taberna, cujo teto
de bambu e palha era sombreado por uma alfarrobeira. O frade puxou a mo de
Francisquinho,
para afast-lo dessa tentao. Era um edifcio muito concorrido e alegre. Na
primeira vez em que o menino
27
se interessou pelo lugar, o frade disse que era uma porqueira, que taberna
significava isso: "porqueira".
Mas no se criam porcos a.
Algo pior.
O qu?
Pecadores.
Por qu? O que fazem?
Pecam.
Que pecados?
Embriagam-se. E jogam por dinheiro, por terras, por mulas, por roupa. um
antro de Satans. As cartas, os dados e a piorra os enlouquecem. Alguns saem
desesperados
porque empobreceram e outros, desesperados porque enriqueceram. Deveriam deit-
la por terra.
Por que no o fazem?
Frei Isidro erguia seus protuberantes olhos para o cu, para transferir-lhe a
pergunta.
Por qu? insistia o pequeno.
O frade, impotente, fez outra transferncia, mais prxima. Deveria perguntar a
frei Antnio Luque. O juiz da Santa Cruzada, que vela pelos bons costumes. E
familiar
da Santa Inquisio. Tem autoridade suficiente para exigir dos jogadores que
empenhem sua palavra de que no tornaro a pecar e tambm para castig-los se
violarem
o juramento.
Mas ele no o faz!
No.
O pequeno meneou a cabea. Logo insistiu:
H tabernas em Santiago del Estero?
H.
J havia na poca do bispo Francisco de Vitoria?
Sim, havia. Instalaram-se antes da sua chegada.
Sua mo pesada no as destruiu?
No.
Por qu?
Por qu! Por qu! No tenho todas as respostas. Francisquinho gostava de
irrit-lo. O enrugado frade tornava-se
mais jovem.
Sei porque murmurou em seguida com um trejeito, mas demorou a diz-lo.
Por qu?
Extorquia-lhes dinheiro. O bispo recebia muito dinheiro, como castigo por seus
vcios. A taberna converteu-se numa importante fonte de recursos para sua obra
pastoral.
Isso ele me disse uma vez. um segredo.
28
-
Era verdade?
Em parte, creio.
Esse bispo era pior que os porcos da taberna! sentenciou
Francisco.
O frade se benzeu:
Sou um Judas murmurou arrependido e comeou a beliscar seu rosrio. No
era um mau pastor. No sou digno dele.
Sua voz se embargava. Seus olhos enormes brilhavam. No aceitou falar novamente
sobre seu antigo prelado. Somente o fez muito tempo depois, durante a viagem a
Crdoba.
Enquanto os trs oficiais e o severo escrivo do Santo Ofcio o empurram at a
porta com desnecessria e desrespeitosa violncia, Francisco sai da escurido
circundante
e recupera a beleza de Ibatn. V o sonoro rio Tejar, a capela dos vice-
padroeiros, a buliosa praa central, os cumes nevados sobre as encostas
cobertas pela selva,
a incessante fbrica de carroas e o ptio das laranjeiras em cor azul e pastel.
V sua famlia ntegra, alvoroada, terna e perplexa.
Nos pequenos povoados da vasta e remota provncia de Tucumn, costumava-se
acumular certos bens que significavam riqueza: terras, ndios, negros, recuas de
mulas,
piaras, gado e semeaduras. A isso tudo se agregavam certos luxos como vasilhas
de prata, mveis, tecidos finos, peas de ouro e delicados utenslios importados
da
Europa. Mas a ningum ocorria formar um tesouro com livros. Os livros eram caros
para comprar e difceis de vender; ademais, continham pensamentos temerrios. E
os pensamentos geravam perturbaes que uma cadeira ou uma mula, por exemplo,
jamais produziriam. Diego Nunez da Silva interessou-se em formar uma biblioteca.
Ao
invs de investir suas economias em bens produtivos, gastou-as na aquisio de
volumes questionveis. Trouxe alguns de sua Lisboa natal, e comprou os restantes
em
Potos. Sua biblioteca teria sido apreciada em Lima ou Madri, onde funcionava a
Universidade e
29
abundavam os eruditos. Na miservel Ibatn, ao contrrio, no somente era uma
extravagncia, mas tambm um motivo de suspeitas.
Os volumes alinhavam-se sobre grossas estantes, num pequeno quarto, onde ele se
encerrava para estudar. Quando construiu a casa, ele se esmerou em
dotar esse quarto da privacidade necessria. Ali tambm guardava sua arca com
instrumentos mdicos e algumas lembranas pessoais. Ningum podia entrar sem sua
autorizao.
Os escravos tinham instrues precisas e a compreensiva Aldonza fazia respeitar
a vontade de seu marido.
Francisco adorava introduzir-se nessa espcie de santurio, quando seu pai se
isolava para ler ou escrever. Tratou de decifrar o enigma por sua prpria conta.
De
tanto observar seu pai, reproduzia cada um de seus passos: retirava um tomo com
carinho, estreitava-o contra o peito como uma valiosa carga, depositava-o sobre
a
mesa, abria a dura capa e deixava correr as folhas de sinais iguais. Nesse
alvoroado mar de letras, apareciam vinhetas coloridas e se intercalavam
formosas ilustraes.
Dedicou-se a examinar as ilustraes de todos e de cada um dos livros. Antes de
aprender a ler, j havia conhecido figuras e paisagens maravilhosas. Quem sabe
no
eram os sbios que lhe falavam de terras longnquas. Quando pde ler, esses
livros j constituam um territrio familiar.
Algum dia lers todos sorria don Diego ante a voracidade de Francisco.
-
Aconselho-te a ler uni pouco cada dia conciliava frei Isidro. Para no
cansar-te, caminha devagar e com boa vontade. Toda vez que te concentrares em
uma folha,
alegra-te. Alegra-te, porque entabulaste relaes com outro ser, que tem algo
importante a dizer.
Entre os numerosos livros disponveis se destacava o Teatro de los dioses de la
gentilidad do franciscano Baltazar de Vitoria. Teria algum parentesco com quem
foi
o primeiro e muito escandaloso bispo de Tucumn? Impossvel sab-lo. A obra era
um deslumbrante catlogo de divindades pags. Fervilhava com historietas sobre
personagens
fabulosos e explicaes inslitas. Mostrava as crenas ridculas que existiram
antes da revelao. E, se bem que fossem mentiras do princpio ao fim, tinham
extraordinria
beleza. Frei Antnio Luque, sabedor do fato, opsse a que Francisco lesse esse
livro.
Vai confundi-lo em matria de religio.
Seu pai, por sua vez, opinava que lhe fortaleceria o raciocnio.
Ajudar a no confundir-se, precisamente.
O pequeno lia em forma salteada. Heris, deuses, filicdios, enganos,
metamorfoses e prodgios, se alternavam com argumentos
30
verossmeis. Aprendeu a respeitar os disparates: tambm so poderosos.
Quando seus progressos em latim lhe permitiram traduzir alguns versos, brincou
com a Antologia de poetas latinos, composta por Otaviano de la Mirandola. Seu
pai
comentou com frei Antnio Luque que os poemas de Horcio includos nessa
Antologia exalavam um lirismo fantstico e que as suas sentenas penetravam como
a boa chuva.
O austero familiar no respondeu porque no lhe interessava o lirismo, e sim a
f. A moral de Horcio prosseguia don Diego grata ao sentimento cristo. A
moral
replicou Luque secamente no necessita ser grata, mas sim acatada.
Entre a seo mdica e a geral, estavam localizados os seis volumes da Naturalis
Historia de Plnio. Fascinante: reuniam os trinta e sete livros escritos por
esse
romano genial. Francisco levou anos para ler esses livros integralmente. Plnio
foi um homem corpulento que engoliu o conhecimento global de sua poca. Estudou
sem
limites, comeando pela origem do Universo e seu contedo; sabia at que a Terra
era redonda. Diego Nukz da Silva tinha por ele uma desenfreada admirao. Esse
homem havia estudado a bagatela de dois mil livros, pertencentes a cento e
quarenta escritores romanos e 326 gregos contava. Sua vocao pelo saber era
to ardente,
que no andava para no perder tempo: os escribas sempre o acompanhavam para
anotar suas observaes. Sua recompilao foi inteligente e, apesar de sua
erudio
incomparvel, teve a modstia de citar as fontes que usou. Algumas de suas
observaes so impressionantes: assegura que os animais sentem sua prpria
natureza,
agem de acordo com ela, e assim resolvem suas dificuldades; mas o homem, ao
contrrio, no sabe nada sobre si mesmo se no o aprende; o nico que sabe por
si s
chorar. Portanto, a obrigao de cada ser humano aprender e instruir-se
completou don Diego. A partir de ento, cada vez que Francisco chorava, dizia a
si
mesmo: "Estou procedendo como um animal; vejamos agora como procede um homem."
Plnio dedicou muitas pginas aos seres fabulosos. Tinha prazer em descrever
homens cujos ps apontavam para trs ou seres desprovidos de boca que se
alimentavam
-
inalando perfumes; cavalos alados; unicrnios; pessoas com dedos to
descomunais, que podiam cobrir com eles a cabea, como se fossem um chapu.
verdade tudo o que Plnio escreveu? perguntou Francisco.
No tenho certeza se mesmo para ele era verdade respondeu o pai, acariciando
sua aparada barba com reflexos dourados. Mas escreveu porque era verdade
para algum. Imps a si mesmo a tarefa de recompilar, no de censurar.
31
Ento, como sabemos se certo? Meneou a cabea leonina:
Esse o grande dilema dos pensadores suspirou. Ou daqueles que amam o
pensamento.
7
O episdio do estojo tambm aconteceu na lendria Ibatn. Junto ao mvel de
cedro no qual se alinhavam os livros de medicina, havia uma grande arca, na qual
Nunez
da Silva guardava seu melhor traje e algumas camisas de linho. Na base, oculto
sob a pilha de tecidos, a curiosidade de Francisco descobriu um estojo
retangular,
forrado de brocado prpura, enrolado vrias vezes por um cordo que terminava
num n.
O que ? levou o estranho objeto at onde estava sua me.
De onde voc o tirou?
Da arca. Do quarto de papai.
Com licena de quem? Voc no sabe que no deve espiar, nem mexer em suas
coisas?
No mexi assustou-se o menino. Deixei a roupa como estava. Mas encontrei
isto.
Coloque-o no lugar ordenou Aldonza com doce severidade. E no entre no
quarto na ausncia do seu pai.
Est bem vacilou, girou o estojo entre os dedos. Mas... O que ?
Uma lembrana de famlia.
Que lembrana?
S sei que uma lembrana de famlia. Uma esposa no deve fazer perguntas ao
marido se ele no gosta de responder.
Ento... deve ser algo horroroso.
Por qu?
Papai sempre responde. Eu vou perguntar-lhe o que .
Por enquanto v colocar o estojo no mesmo lugar de onde o tirou. E, quando seu
pai voltar, no o incomode com perguntas desnecessrias.
Quero saber o que esta lembrana de famlia.
Diego Nunez da Silva havia partido de manh at os confins de
32
uma fazenda, para atender ndios enfermos. O feudatrio veio busclo
pessoalmente. Estava muito nervoso: temia o comeo de uma epidemia, apesar de
no saber exatamente
do que se tratava.
O que uma epidemia? perguntou-lhe Francisquinho.
A propagao rpida de uma doena.
E como se cura?
No diria que se cura: se detm pediu a bolsa com os instrumentos a Lus e,
ao mesmo tempo, recomendava ao encomendero que se mantivesse calmo.
Se detm? Como a um cavalo?
No exatamente: isola-se. Encerra-se em uma espcie de muro.
Construir um muro ao redor dos ndios com epidemia? Nunez da Silva riu:
Somente em sentido figurado. Primeiro terei que me inteirar se exato o que
chegou aos ouvidos do capataz.
Nessa noite, logo ao regressar, Francisco disparou a pergunta:
O que contm o estojo vermelho guardado na arca grande?
Deixe-o apear protestou Aldonza.
-
epidemia? interveio Diego.
O pai revolveu os cabelos de Francisco e se dirigiu ao filho mais velho:
No, felizmente. Creio que o capataz teve a suspeita por medo. um homem
demasiadamente cruel. Exige tanto dos ndios que vem sonhando com a epidemia que
eles
desencadeariam como represlia.
Os olhos de Francisco continuavam cravados no pai, aguardando a resposta.
Falarei sobre o contedo do estojo respondeu em seguida. Mas antes vou me
lavar, est bem?
O pequeno no conseguia dissimular sua alegria. Selecionou algumas frutas,
lavou-as e arrumou-as sobre uma bandeja de cobre. Os figos maduros, pretos e
brancos,
alternavam com roms lustrosas. Seu pai tinha predileo por elas.
Dow Diego entrou na sala com roupa limpa. Exalava a frescura de seu banho. O
cabelo e a barba midos resplandeciam mais escuros e brilhantes. Trazia o
misterioso
estojo, que colocou sobre a mesa. Francisco instalou-se ao seu lado. Tambm se
aproximaram Diego, Isabel e Felipa. Aldonza, ao contrrio, distanciou-se; no
parecia
interessar-se pelo assunto. Na realidade a inquietava; mas no conseguia
expressar seu mal-estar de outra forma, a no ser pelo silncio.
uma lembrana de famlia advertiu o pai. No se decepcionem.
Desfez o n do cordo. Acariciou o brocado gasto, que no tinha nenhuma
inscrio. Alou os olhos em busca de mais luz e pediu que aproximassem o
candelabro. As
chamas prximas e fortes produziram um brilho no velho tecido.
No tem valor material. O espiritual inestimvel. Abriu a tampa. Todos
puderam ver.
Uma chave.
Sim, uma chave. Uma simples chave de ferro pigarreou, levantou as
sobrancelhas e disse: Na empunhadura tem uma inscrio: conseguem v-la?
Aproximaram-se. O pai ajustou a posio do candelabro. Distinguiram um desenho.
uma chama de trs pontas. Pode ser a chama de uma tocha. Parece um smbolo,
no? A gravao tampouco excepcional. Ento tornou a pigarrear , por que
guardo
este objeto num estojo e o considero valioso?
Francisco aproximou a cabea at quase tocar a chave com seu nariz, mas no
decifrava o enigma. Don Diego lha entregou.
Toque-a. de puro ferro. No tem prata, nem ouro. Meu pai entregou-a para
mim, em Lisboa. E ele a recebeu de seu prprio pai. Provm da Espanha, de uma
formosa
casa de Espanha.
Francisco ergueu-a com delicadeza e a susteve com ambas as mos, como fazem na
missa com o clice sagrado. A luminosidade oscilante do candelabro reverberava
em
sua rugosa superfcie. Parecia emitir um fulgor prprio: a pequena chama gravada
na enferrujada empunhadura acendeu-se tambm.
Pertence fechadura de um prtico majestoso que foi atravessado por muitos
prncipes. Nessa residncia havia um belssimo salo, onde se realizavam
reunies em
torno de documentos preciosos que ali eram escritos e copiados. Vejam a textura
da chave. Foi elaborada por um ferreiro de reconhecida santidade. Usou
partculas
de metal que nunca pertenceram a arma alguma, que jamais feriram um homem. A
tnue patina amarelada que agora a recobre como a tnica que proteje algo
nunca maculado.
Tiveram-na em suas mos grandes prncipes, lembrem-se, de cuja dignidade e
sabedoria podemos apenas ser uma imperfeita imitao. Quando esses prncipes,
por razes
-
alheias a sua vontade, no puderam continuar freqentando o esplndido recinto e
nossos antepassados tiveram que abandonar a residncia, fecharam o pesado porto
e decidiram guardar a chave. Sim, esta singela e, ao mesmo tempo, preciosa
chave, que simboliza os documentos, o recinto, toda a reunio de dignitrios, o
magnfico
lar
de nossos antepassados espanhis.
34
Meu bisav prendeu a chave em seu cinto. Nunca mais se separou dela. Quando o
anjo da morte o visitou, nem sequer a debilidade de sua agonia abrandou a mo
que se
fechava com obstinao sobre a empunhadura trabalhada. Seu filho, quer dizer,
meu av, teve de arrancla, chorando, como se estivesse cometendo um sacrilgio.
Confeccionou
um estojo, forrou-o cuidadosamente com brocado, para que no se repetisse a
penosa histria de se violentar um morto. Meu av recomendou a meu pai que
cuidasse desta
pea como se fosse um tesouro. Meu pai a mim. E eu a vocs.
Reinava um pesado silncio. Os quatro filhos de Diego Nunez da Silva estavam
assustados. A luz das velas pintavam suas faces de escarlate.
O pai aproximou a relquia dos olhos de Diego, de Felipa, de Isabel e de
Francisco.
Observem novamente esta pequenina chama da empunhadura. No lhes parece
enigmtica? Imaginam o que estas trs pontas significam? No?... Observem:
parecem trs
ptalas sobre uma grossa barra horizontal. Ou trs avezinhas sobre um galho.
Aguardou as opinies de seus filhos, mas a perplexidade no lhes permitia emiti-
las.
Algum dia sabero aproximou o signo de seus lbios e o beijou. Os
prncipes e os nossos antepassados acreditavam retornar a essa casa. Por isso
guardamos a
chave.
Francisco balbuciou uma pergunta:
Poderemos retornar?
No sei, filho, no sei. Quando eu era pequeno, sonhava transformar-me num
desses legendrios prncipes e abrir o majestoso porto.
A pequena Alba Helena acorda sobressaltada e comea a chorar; sua me a
acode. Francisco Maldonado da Silva tenta aproximar-se delas, mas as mos dos
oficiais, inflexveis
como tenazes, prendem seus braos. A esposa, atnita, com a criana ao colo,
avana at o grupo que representava o pesadelo, iluminado pelo lampio do
tenente Juan
Minaya.
No se assuste consegue dizer Francisco.
Cale-se ordena o tenente.
Francisco tenta libertar-se. Os oficiais no permitem.
No fugirei exclama com inesperada autoridade e os fita diretamente.
35
As correntes se contraem. Uma surpreendente dvida invade os guardas. Lembram-
se, subitamente, que enfrentam um mdico honrado pelas autoridades e cujo sogro
foi
governador do Chile.
Os dedos rudes, pouco a pouco, comeam a afrouxar. Francisco se desprende,
recupera sua postura e caminha at sua amada Isabel Otanez e sua filhinha.
Enxuga-lhes
as lgrimas. Abraa-as e beija-as. Nunca mais tornar a v-las.
8
-
Pouco antes da famlia mudar-se para Crdoba, Francisco testemunhou outra
chocante revelao. Seu irmo Diego convidou-o a pescar. Primeiro procurariam o
amigo Lucas
Graneros, depois iriam juntos ao rio Tejar. O pai de Lucas tinha uma fbrica de
carroas, que abastecia toda a provncia. Havia formado uma empresa colossal.
Teve
a perspiccia de canalizar o imenso patrimnio madeireiro de Ibatn para a
produo em grande escala do melhor transporte imaginvel entre as encostas do
Noroeste
e o porto de Buenos Aires. Enriqueceu mais rapidamente que muitos descobridores
de ouro. Possua cento e vinte escravos negros, alm de ndios e mestios que,
com
destreza, moviam o cinzel e a plaina.
Graneros construiu sua casa no sul, no bairro dos artesos. Ali, assim que
despontava a aurora, acendiam-se as forjas e comeava o bulcio das oficinas.
Todo mundo
conhecia o ourives Gaspar Prez, que cinzelava valiosas peas para altares e
armrios. Tambm o sapateiro Andrs, que confeccionava botas rsticas, sandlias
de
frade e calados finos com fivelas de cobre. O seleiro Juan Quisna consertava
arreios, polia arcas e costurava selas. O alfaiate Alonso Montero confeccionava
gibes,
jaquetas com abas, hbitos de dignitrios religiosos e trajes para funcionrios
reais. O chapeleiro Melchor Fernandez modelava os grossos feltros que cobririam
as
cabeas de um capito, de um feudatrio ou de um corregedor. Quase todos eram
homens com mescla de sangue indgena, mas ansiosos por mesclar-se raa dos
conquistadores.
Vestiam-se como os espanhis e empenhavam-se em falar somente o espanhol. O
gosto pelos vencedores fazia crescer ao mesmo tempo o desgosto pelos vencidos.
Seguramente
no dormiam em paz.
36
Essa manh prometia ser muito quente. Francisco levava a funda, que o coxo Lus
fizera para ele com uma bexiga de boi. Usava-a compulsivamente, atirando em
qualquer
alvo: uma fruta silvestre, a flor de um arbusto, um seixo distante. Chegou a se
tornar infalvel com estas flechas cintilantes que so os lagartos. Enterrou com
honras o primeiro em que acertou na cabea; inclusive armou uma cruz com dois
galhinhos para identificar seu sepulcro. "Quem mata lagarto com uma funda no
somente
gil, como astuto", sentenciou seu pai.
O bairro dos artesos exalava um odor cido, mescla de metais, couros, tintas e
ls. Atrs das oficinas viram-se diante de um par de altas nogueiras, que
marcavam
o acesso fbrica de Graneros. Era um terreno enorme, to extenso que foi
batizado de "pas". Junto ao muro se estendia um telhado, sob o qual se
alinhavam as mesas
de carpintaria, caixas com ferramentas e artigos de cobre e lato. Diversas
carroas estavam terminadas e outras pareciam o esqueleto de um animal pr-
histrico.
Curiosamente, a montagem era feita sem nenhum prego. A estrutura desses veculos
era to firme, que podiam carregar pelo menos duas toneladas. As rodas eram um
prodgio
com mais de dois metros de dimetro; somente duas sustentavam a pesada carga e
estavam unidas por um nico eixo. O centro da roda era uma massa slida feita
com
o cerne de um grosso tronco.
Don Graneros deu um pio a seu filho, como presente de aniversrio.
-
Desse tamanho mostrou com as mos: como uma pra. Foi feito em madeira
leve, torneado artisticamente, e lhe colocaram uma ponta de metal. Depois,
pintaram-no
de cores vivas.
Poderia levar esse pedao de madeira? perguntou Francisco.
Claro respondeu Lucas, enquanto revisava sua sacola de iscas. Para que
voc precisa?
Para fazer um pio igual ao seu.
Lucas riu. Tomou da madeira e dirigiu-se a um grupo de homens. A conversa foi
to rpida que, quando os irmos se aproximaram, j pde dizer-lhes que no dia
seguinte
entregariam o pio.
Com ponta de metal e bem pintado! Deu um salto triunfal.
Por enquanto, empresto o meu ofereceu Lucas. Francisco o recebeu alvoroado.
Lucas colocou no ombro a sacola cheia de iscas e se encaminharam at o rio.
Deixaram para trs o bairro dos artesos com sua algaravia de forjas. Entraram
na estrada real, parcialmente sombreada pelos carvalhos. Chegaram at a
esplanada cheia de mercadores, escravos em
37
perptua atividade e tropas de mulas prontas para receber novas cargas. Da ampla
estalagem, cujas paredes conservavam restos de pintura vermelha, saa um grupo
de
forasteiros;
na taberna coberta por uma copa de alfarrobeira, entrava outro. Junto ao porto
aberto da paliada, destacava-se o quadrado da pequena e luminosa capela dos
vice-padroeiros.
Cruzaram o limite. frente, fremia a selva profunda e aterradora.
Seguiram at o rio, cujas guas ressoavam entre os paredes de vegetao, e
subiram rocha viva, que tanto Diego como Lucas consideravam o melhor lugar
para lanar
as linhas.
Enquanto ajustavam os anzis, Francisco ps-se a brincar com o belo pio de
Lucas. A rocha viva tinha vrios lances horizontais, que serviam como degraus.
Enrolou
o fio em torno da madeira reluzente, prendeu a extremidade no indicador, e
lanou-o para baixo e para a frente. A ponta metlica arrancou chispas da pedra.
O objeto
girou loucamente e suas cores se transformaram em tiras mal delineadas. O pio
aproximou-se da borda do degrau e, sem parar de girar, desceu ao nvel seguinte.
Depois,
inclinou-se at os flancos, indeciso, e ergueu a ponta metlica como a pata de
um animal ferido. Francisco levantou-o, tornou a enrolar o fio e se disps a
faz-lo
descer vrios degraus. Calculou a distncia, colocou o brao bem para trs,
levantou a perna oposta, e o atirou em forma rasante. O golpe foi certeiro: o
pio avanou
rapidamente at a borda do degrau, saltou o seguinte, continuou rodando,
progrediu at a nova borda, tornou a saltar, seguiu girando e Francisco comeou
a gritar
e estimullo com palmas.
Trs degraus! Vamos, vamos. O quarto!
Quarto! exclamou Lucas.
O pio conseguiu passar o novo limite. Seu irmo tambm se entusiasmou. Largou
os anzis e se aproximou com gestos de admirao. O pio dava mostras de
cansao.
Beliscou a borda, mas inclinou-se demasiado e caiu com a ponta metlica para
cima.
Que pena.
Muito bem disse Lucas.
Est despencando! gritou Diego.
-
Com efeito, rodava lentamente at o declive lateral que terminava no rio. Num
timo o perderiam de vista. Diego saltou para peglo e escorregou sobre um tufo
de
ervas. Seu p se enredou e deslizou novamente, at ficar preso numa fenda.
Desequilibrou-se, soltando uma maldio.
Lucas e Francisco acorreram em sua ajuda, tarde demais. A greta era funda e
tinha a borda afiada. No puderam alcanar a extremidade. Cuidadosamente fizeram
girar
seu corpo para acomod-lo forma
38
da fenda, at que seu p se soltou. Tiraram-no lentamente. Surgiu o tornozelo
ensangentado; parecia que tinha algo dependurado. Apesar da dor, teve a lucidez
de
pedir a Lucas que lhe aplicasse uma atadura. Com tua camisa. Com qualquer
coisa. Rpido! Depois o carregaram. Lucas pelos ombros e Francisco pelos
joelhos. Pediram
ajuda a um grupo de negros, que emprestaram sua jumenta. Montaram Diego, que se
abraou ao pescoo do animal. Dirigiram-se a sua casa, seguidos pelo cortejo dos
negros que deveriam recuperar a jumenta. Levaram-no diretamente para sua cama.
Aldonza alarmou-se. Apesar de Diego dissimular a dor e insistir que no era
grave,
a camisa que envolvia seu tornozelo j exibia uma grande mancha vermelha. Lus
trouxe uma bacia com gua morna, desatou a precria atadura e lavou a ferida.
Ajustou
o pedao de pele e enrolou rapidamente a rea afetada com uma atadura limpa.
Colocou trs almofadas sob a perna, para que o tornozelo ficasse mais elevado
que o
corpo. Depois, saiu correndo procura do mdico.
Lucas permaneceu junto a seu amigo at que chegasse don Diego. Francisco
atribuiu o acidente ao pio. O mdico olhou o corpo deitado e formulou algumas
perguntas
enquanto apalpava a parte afetada. Pediu mais gua morna e que os presentes se
afastassem, para no impedir a luz. O escravo levantou a perna de Diego e o
mdico
desenrolou a atadura quase at o fim. O rapaz comeou a queixar-se de dor,
porque o tecido j havia grudado com o sangue. Lus derramou borrifos de gua,
enquanto
don Diego manobrava at liberar completamente o tornozelo. Escolheu uma pina e
extraiu os imperceptveis corpos estranhos que teimavam em ficar grudados.
Depois,
aproximou as bordas e esticou a azulada poro de pele sobre a ferida. Diego
cerrava os dentes. Seu pai cobriu a carne viva com
ump leitoso, que combinava casca de salgueiro com limalha de zinco.
Ficars bom em trs semanas. Agora necessitas de repouso. No preciso
colocar talas. Tambm tomars uma colherinha deste remdio.
Abriu sua arca e tirou um frasco de vidro.
um remdio excelente, que os ndios do Peru usam. Mitiga a dor e baixa a
febre.
Dirigindo-se sua esposa, que o olhava angustiada, disse:
Todas as vezes que o usei foi eficaz. Como se fosse mandrgora.
Como se chama?
Quinino. extrado de uma planta chamada quinina sentou-se novamente junto
cama de seu filho. Tomou-lhe o pulso, enquanto observava firmemente o seu
rosto.
Depois, fez sinal para que
39
as pessoas deixassem o quarto. Desejaria desnudar Diego e fazer um exame
completo?
-
Lucas despediu-se. Aldonza e Francisco acompanharam-no at a porta. Eles saram
e Francisco recuou um pouco. Para que lhe faria um exame completo? No teria
sentido,
se somente feriu o tornozelo e j lhe havia medicado. No estaria querendo dar-
lhe um conselho mdico ntimo que diga somente respeito aos homens? Boa
oportunidade
para saber. Francisco no era tambm um varo? O aposento encheu-se de
silenciosa intimidade.
Don Diego acariciou a testa de seu filho prostrado, que o fitava agradecido.
Nunca me machuquei to forte. Di muito.
Eu sei. Te feriste numa regio muito sensvel. O p de quinino vai te aliviar.
Tambm indicarei compressas com ervas sedativas. Isso tudo o que te pode
ajudar
externamente e...
O pai se interrompeu. Em seguida, insistiu com a ltima palavra:
"externamente..."
Francisco esgueirou-se pela penumbra do quarto e conseguiu esconder-se a pouca
distncia do leito. Conhecia essa forma de introduzir um assunto embaraoso: seu
pai
suavizava a voz, acariciava o cabelo ou a borda de uma mesa; repetia certas
palavras.
Entendes, Diego?
O jovem assentiu por condescendncia, mas no entendia. Francisco, tampouco.
No, no me entendes suspirou o pai. Diego contraiu a boca.
Quero dizer-te, filho, que nem toda a ajuda que necessitas provm do que te
alheio, como o p cicatrizante ou o quinino ou outro remdio. Tambm podes obter
alvio vindo de teu interior, de teu esprito.
Era esse o tema ntimo de que iria tratar? Diego tornou a concordar.
Creio que no me entendes inteiramente insistiu seu pai. Com a ponta de um
leno enxugou-lhe a testa; o meio-dia era como um forno aceso.
Havia outra coisa, ento? Francisco aproximou-se mais, esgueirando-se como um
gato. Sua curiosidade no permitia perder uma s palavra.
A cura importante, a definitiva, provm do esprito. Nessa deves apoiar-te.
Diego atreveu-se a confessar sua desorientao:
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Parece-me que compreendo disse , e me parece que h algo que no
compreendo...
Sim o pai sorriu. simples e no . Soa como simples, conhecido,
evidente. Mas h outra ressonncia, profunda, que no se nota sem alguma
preparao.
Olhou a mesa e encheu um copo com gua de sara. Tomou um largo sorvo. Depois,
secou os lbios e se reacomodou em sua cadeira rangente.
Vou explicar. Ns, os mdicos usamos produtos curativos que a natureza
oferece. E, se bem que a natureza seja obra de Deus, Deus no a consagrou como
recurso absoluto,
mas proveu ao homem mesmo, sua criatura bem-amada, de dispositivos que
permitem estabelecer contato direto com Ele. Uma parte de sua grandeza infinita
habita sempre
em nosso corao. Se nos propomos a consegui-lo, reconheceremos sua presena em
nossa mente, em nosso esprito. Nenhum mecanismo to eficaz como essa
presena.
Enxugou o suor do pescoo, nariz e testa com o leno de algodo.
Te perguntars por que digo isso. E por que o digo com certa... estalou os
dedos procura da palavra precisa solenidade. Bom... Porque um assunto
concernente
minha profisso de mdico, mas... no s um paciente igual aos outros.
Sou teu filho.
Claro. E isto implica algo especfico, quase secreto. Implica a Deus e a nossa
especial relao com Ele.
-
Francisco precisava coar a nuca. A confuso e a impacincia lhe provocavam
coceira. Seu pai no desfazia o n.
Deveria comungar? conjecturou Diego, somente para tentar descobrir a ponta
do enigma.
Seu pai moveu os ombros para relaxar as costas. Estava tenso e queria mostrar-se
relaxado.
Comungar? No, no isso que quero transmitir-te. A hstia desliza de tua
boca ao estmago, do estmago ao intestino, da ao sangue, ao resto do teu
corpo. Mas
no falo da hstia, nem da comunho, nem dos ritos, nem de algo que se incorpora
de fora. Falo da presena ininterrupta de Deus em tua pessoa. Falo de Deus, do
nico.
Diego franziu as sobrancelhas. Francisco tambm. Que coisa nova ou secreta
pretendia insinuar com isso?
No me entendes? Falo de Deus, o que cura, consola, d luz, d vida.
Cristo a luz e a vida recitou o rapaz. isso que me dizes, papai?
Falo do nico, Diego. Pensa. Olha para dentro. Conecta-te com o que te habita
desde antes do nascimento. O nico... Compreendes agora?
No sei.
Deus, o nico, o Todo-Poderoso, o Onisciente, o Criador, o nico, o nico
repetiu com nfase.
O rosto de Diego se enrubescia. Estava estendido na cama e seu pai sentado.
Ambos muito tensos. A figura do pai lhe parecia gigantesca, no apenas pelo
desnvel,
mas sim porque o forava a um raciocnio penoso. Don Diego alisou seu bigode,
para deixar mais livres os lbios e adotou uma postura de quem vai declamar. Com
voz
lenta e arquejada, pronunciou umas palavras sonoras:
Shem Israel, Adonai Elohenu, Adonai Ehad.
Um tremor percorreu Francisco. Somente reconheceu a palavra Israel. Seria uma
frmula mgica? Teria relao com bruxaria? Don Diego traduziu com devoo:
"Ouve Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor nico."
Que significa?
O significado est escrito em teu corao.
O mistrio estava por ser esclarecido. A nvoa densa e violeta que ocultava o
sol ia rebentar. Algumas de suas gotas j surgiam na testa de Diego.
Durante muitos sculos esta breve frase sustentou a coragem de nossos
antepassados, filho. Sintetiza histria, moral e esperana. Foi repetida sob
perseguies
e durante os assassinatos. Ressoou entre as chamas. Ela nos une a Deus como uma
inquebrantvel corrente de ouro.
Nunca a ouvi.
Ouviste; naturalmente que a ouviste.
Na igreja?
Em teu interior, em teu esprito estendeu ambos os indicadores para marcar o
ritmo. Ouve, Diego. "Ouve Israel"... Ouve, filho meu: "Ouve Israel" agora
sussurrava.
Ouve, filho de Israel. Ouve.
Diego ergueu-se sobressaltado.
O pai apoiou as mos sobre seu peito, suavemente, e o obrigou a deitar-se.
Logo entenders.
Suspirou. Sua voz era mais ntima.
Estou te revelando um grande segredo, meu filho. Nossos antepassados viveram e
morreram como judeus. Pertencemos linhagem de Israel. Somos os frutos de um
tronco
muito antigo.
42
Somos judeus? um trejeito deformou-lhe o rosto.
Assim .
Eu no quero ser... no quero ser isso.
Pode a laranja no ser laranja? Pode o leo no ser leo?
-
Mas ns somos cristos. Alm disso disse com voz trmula , os judeus so
prfidos.
Por acaso ns somos prfidos?
Os judeus mataram o Nosso Senhor Jesus Cristo.
Eu o matei?
No surgiu-lhe um sorriso forado. Claro que no. Mas os judeus...
Eu sou judeu.
Os judeus o mataram, o crucificaram.
Voc o matou? Voc judeu.
Deus e a Santssima Virgem, protejei-me! No, claro que no! persignou-se
horrorizado.
Se no foi voc, nem eu, evidente que "os judeus", que "todos os judeus",
no somos culpados. Alm disso, Jesus era to judeu quanto ns. Digo mais,
Diego: talvez
mais judeu do que ns, porque se educou, cresceu e pregou em cidades
manifestamente judias. Muitos daqueles que o adoram na verdade tm horror ao seu
sangue, tm
horror ao sangue judeu de Jesus. Tm merda na cabea: odeiam o que amam. No
conseguem ver quo perto de Jesus est cada judeu, apenas pelo fato de pertencer
sua
mesma linhagem e sua mesma histria castigada por sofrimentos.
Ento, papai, ns... quero dizer, os judeus, no o matamos?
Eu no participei nem de sua priso, nem de seu julgamento, nem de sua
crucificao. Voc participou? Ou meu pai? Ou meu av?
Meneou a cabea:
Te ds conta que levantaram uma calnia atroz? Nem mesmo o Evangelho o afirma.
O Evangelho diz que "alguns" judeus pediram o justiamento, mas no "todos":
porque
seno, meu filho, seria preciso incluir os apstolos, sua me, Maria Madalena,
Jos de Arimatia, a primeira comunidade de cristos. Tambm eles so criminosos
irredimveis?
Que absurdo, no verdade? Jesus, o judeu Jesus, foi preso pelo poder de Roma,
que subjugava a Judia. Foram os romanos que o torturaram em seus calabouos,
nos
mesmos calabouos onde torturaram centenas de outros judeus como ele e como ns.
Os romanos inventaram a coroa de espinhos para caoar do judeu que pretendia ser
rei e libertar seus irmos. A morte por crucificao tambm foi inventada por
eles e na cruz no morreu somente Jesus e um par de ladres,
43
mas milhares de judeus, antes do nascimento de Jesus e at muito depois de sua
morte. Um romano lhe cravou sua lana no lado direito do corpo e soldados
romanos
tiraram a sorte para repartir suas vestes. Em compensao, foram os judeus que o
baixaram piedosamente da cruz e lhe deram sepultura decente. Foram judeus que
recordaram
e difundiram seus ensinamentos. Contudo, Diego, contudo fez uma longa pausa ,
no se repete que os "romanos", "os romanos e no os judeus", escarneceram e
mataram
Nosso Senhor Jesus Cristo. Os romanos no so perseguidos. Nem se exige pureza
do sangue romano.
Por que essa sanha contra os judeus, ento?
Porque nossa resistncia em deixar-nos submeter provoca desespero neles.
Os judeus no aceitam Nosso Senhor.
O cerne do conflito no religioso. Eles no querem nossa converso. No.
Isso seria fcil. J converteram comunidades judias inteiras. Na verdade, Diego,
lutam
por nosso desaparecimento. Querem-no por bem ou por mal. Teu bisav foi
arrastado pelos cabelos at a pia batismal e depois o atormentavam porque
trocava de camisa
-
aos sbados. Teve de abandonar a Espanha fora. Mas no se resignou. Levou
consigo a chave de sua antiga residncia e gravou nela uma pequenina chama de
trs pontas.
O que significa?
uma letra do alfabeto hebraico: o shin.
Por que essa letra?
Porque o comeo de muitas palavras: shem, "ouve", shalom, "paz". Mas,
sobretudo, a primeira letra de shem, que significa "nome". E, acima de todos
os nomes,
existe o Shem, o "Nome". Quer dizer, o inefvel nome de Deus. O Shem tem
infinito poder. Sobre isto, os cabalistas realizaram inmeros estudos.
Quem?
Os cabalistas. J vou explicar, Diego. O essencial, por ora, que tenhas
conscincia da deciso profunda que muitos judeus tomaram. A deciso de
continuar existindo,
nem que seja mediante a conservao de uns poucos ritos e tradies.
Diego, confuso, fitava-o. No podia absorver o aluvio de dados e argumentos;
somente podia assombrar-se; Francisco tampouco entendia. Ambos estavam
perplexos. Diego
na cama e Francisco em seu esconderijo. As palavras de seu pai eram um
terremoto.
Mas somos catlicos Diego resistia em aceitar. Somos batizados. Eu fiz o
sacramento da confirmao. Vamos igreja, confessamos. Somos catlicos, no?
44
Sim, mas fora. O prprio Santo Agostinho disse algo assim: "Se somos
arrastados a Cristo, iremos sem desejar crer, e somente se cr quando se chega a
Cristo
pelo caminho da liberdade, no da violncia." A ns foi aplicada e continuam a
aplicar a violncia. O efeito trgico: somos catlicos na aparncia para
sobreviver
na carne, e somos judeus por dentro, para sobreviver no esprito.
terrvel, pai.
. E foi terrvel para o teu bisav e para o teu av. E para mim. Que
pretendemos? Simplesmente, que nos permitam ser o que somos.
Que deveria fazer para... converter-me em judeu? Seu pai riu suavemente:
No precisas fazer nada. J s judeu. No ouves por a que nos qualificam de
"cristos-novos"? Vou contar-te nossa histria, meu filho. uma histria
admirvel,
rica, dolorosa. Explicarei a chamada lei de Moiss*, a que Deus entregou ao
nosso velho povo no monte Sinai. Explicarei muitas tradies formosas, que
conferem a
esssa vida uma enorme dignidade.
Apoiou as mos sobre os joelhos, para levantar-se.
Agora, descansa. E no reveles a ningum o nosso segredo. A ningum.
Olhou a atadura, apalpou-a suavemente e arrumou as almofadas que elevavam a
perna.
Francisco permaneceu no cho, acocorado, at que anunciaram o almoo.
A academia das laranjeiras funcionava de tarde, quando amainava o calor da
sesta. Frei Isidro chegava pontualmente e ocupava seu lugar na ampla mesa
instalada no
ptio. Seus grandes olhos flutuavam e ele afastava uma rala mecha de cabelos
grisalhos. Arrumava o material e dava um longo suspiro. Aguardava pacientemente
que
os alunos tomassem seus lugares.
*Chamava-se "lei de Moiss" ao judasmo, em contraste com a "lei de Jesus
Cristo".
45
O mestre pretendia ser bravo, como convinha ao ensino seus olhos ajudavam-no
, mas no conseguia esconder sua inata ternura. Fingia aborrecer-se quando
algum
-
se distraa. s vezes, desbaratavam o plano de aula. Fingia ignorar, fazia-lhes
perguntas simples ou mesclava-as com anedotas para despertar o interesse dos
alunos.
Quando lhe esgotavam a pacincia tinham de ser perseverantes para consegui-lo
, e no lhe restava outro recurso a no ser bater ou retirarse, comeava a
imitar
a