Marco zingano platão & aristóteles o fascínio da filosofia

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44 Plat.'io e Arist6teles o que ve aquele que possui a ciencia dialetica? Ele ve, segundo Platao, a essencia de cada coisa. 0 dialetico tem uma visao completa da realidade. Como pode ver a essencia de cada coisa? Vendo a essencia de toda coisa. Para Platao, 0 que realmente existe e 0 que reconhecemos pelo pensamento, nao 0 que percebemos com os sentidos. Esta mesa que to co aqui nao e a mesma que vejo Ja; uma e outra sofrem 0 des- gaste causado pelo tempo, ambas possuem esta e de madeira, aquela e de metal; 0 que e propriamente a mesa nao e ora uma coisa, ora outra, tampouco e de um modo em um dado momento e de outro em outro momen- to. Para Platao, isso significa que 0 que existe realmente nao sao os casos particulares, materiais e sensiveis de mesa (em nosso exemplo), mas 0 que ele chamou de Ideia - em nosso caso, Ideia de mesa. A Ideia de mesa e perfeita, eternamente mesa, e e a causa, segundo Pia tao, do ser mesa das mesas concretas que usamos. Esta mesa aqui, de madeira, e mesa na medida em que participa da Ideia de mesa; ela e mesa, mas em um grau menor, pois 0 que e real, verdadeira ou pura- mente mesa e unicamente a !deia de mesa. A doutrina das Ideias Platao esd. concluindo a reviravolta que com a sua do objeto matematico: embora acre- Plat.'io ditemos por que 0 que realmente existe e esta mesa aqui e aquela outra ali, ele pretende mostrar que as mesas concretas sao casos fugidios e secundarios de mesa, que'e pr6pria e primeiramente a mesa inteligivel, 0 que ele chamou de Ideia de mesa. A reviravolta esta feita: 0 que e realmente esta no dominic da razao; os sentidos nos dao meramente aparencias, que nos poem a pensar, mas que nao constituem realmente 0 mundo. Platao ilustra com freqiien- cia sua doutrina das Ideias com artefatos, como a mesa e a cama. No en tanto, isso pode ser enganador, pois poderiamos pensar que quisesse dizer que a ldeia da mesa e a que dela temos e com base na qual fabricamos as diferentes mesas espalhadas pelo mundo. Isso seria um erro, pois, para Pia tao, as Ideias nao sao conceitos ou enti- dades mentais, mas sim modelos natutais, dos quais partici- pam os objetos concretos e que entao apreendemos pela razao: 0 mundo e como e, para Platao, porque os objetos materiais participam das Ideias, e temos tais e tais con- e mentais porque 0 mundo e assim. Como para todo grego, tambem para Platao e porque 0 mundo e assim que 0 pens amos deste modo, e nao 0 contrario. E bem verdade que Platao nunca explicou claramente como se da essa mas via nela seguramente uma causal (a Ideia e causa dos objetos concretos) e uma hierarquica (a Ideia e 0 que e primeiramente, e 0 45

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Texto introdutório sobre a Doutrina das ideias.

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44 Plat.'io e Arist6teles

o que ve aquele que possui a ciencia dialetica? Ele ve,

segundo Platao, a essencia de cada coisa. 0 dialetico tem

uma visao completa da realidade. Como pode ver a essencia

de cada coisa? Vendo a essencia de toda coisa. Para Platao, 0

que realmente existe e 0 que reconhecemos pelo pensamento,

nao 0 que percebemos com os sentidos. Esta mesa que to co

aqui nao e a mesma que vejo Ja; uma e outra sofrem 0 des­

gaste causado pelo tempo, ambas possuem imperfei~oes,

esta e de madeira, aquela e de metal; 0 que e propriamente a

mesa nao e ora uma coisa, ora outra, tampouco e de um

modo em um dado momento e de outro em outro momen­

to. Para Platao, isso significa que 0 que existe realmente nao

sao os casos particulares, materiais e sensiveis de mesa (em

nosso exemplo), mas 0 que ele chamou de Ideia - em nosso

caso, Ideia de mesa. A Ideia de mesa e perfeita, eternamente

mesa, e e a causa, segundo Pia tao, do ser mesa das mesas

concretas que usamos. Esta mesa aqui, de madeira, e mesa

na medida em que participa da Ideia de mesa; ela e mesa, mas

em um grau menor, pois 0 que e real, verdadeira ou pura­

mente mesa e unicamente a !deia de mesa.

A doutrina das Ideias

Platao esd. concluindo a reviravolta que come~ou

com a sua concep~ao do objeto matematico: embora acre-

Plat.'io

ditemos por intui~ao que 0 que realmente existe e esta mesa

aqui e aquela outra ali, ele pretende mostrar que as mesas

concretas sao casos fugidios e secundarios de mesa, que'e

pr6pria e primeiramente a mesa inteligivel, 0 que ele

chamou de Ideia de mesa. A reviravolta esta feita: 0 que e

realmente esta no dominic da razao; os sentidos nos dao

meramente aparencias, que nos poem a pensar, mas que nao

constituem realmente 0 mundo. Platao ilustra com freqiien­

cia sua doutrina das Ideias com artefatos, como a mesa e a

cama. No en tanto, isso pode ser enganador, pois

poderiamos pensar que quisesse dizer que a ldeia da mesa e

a concep~ao que dela temos e com base na qual fabricamos

as diferentes mesas espalhadas pelo mundo. Isso seria um

erro, pois, para Pia tao, as Ideias nao sao conceitos ou enti­

dades mentais, mas sim modelos natutais, dos quais partici­

pam os objetos concretos e que entao apreendemos pela

razao: 0 mundo e como e, para Platao, porque os objetos

materiais participam das Ideias, e temos tais e tais con­

cep~oes e no~oes mentais porque 0 mundo e assim. Como

para todo grego, tambem para Platao e porque 0 mundo e assim que 0 pens amos deste modo, e nao 0 contrario. E bem verdade que Platao nunca explicou claramente como

se da essa participa~ao, mas via nela seguramente uma

rela~ao causal (a Ideia e causa dos objetos concretos) e uma

fun~ao hierarquica (a Ideia e 0 que e primeiramente, e 0

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46 Platao e Aristoteles

modelo que os objetos concretos imitam imperfeitamente).

Nao podemos perceber ou sentir as Ideias, podemos

somente concebe-Ias ou compreende-Ias; elas nao existem

no mundo sensivel, mas residem alhures, la onde 0 pensa­

mento as apreende.

Entramos assim no cora~ao da fllosofia de Platao, a

sua doutrina das Ideias, que e ao mesmo tempo seu ponto

mais controverso. Como veremos, Arist6teles recusara. sem

hesita~ao tal doutrina, mas PIa tao cre que ela e 0 unico modo

de salvar a razao, pois, sem ela, nao haveria objeto estavel de

conhecimento; por conseguinte, tampouco objeto de racio­

cinio ou discurso verdadeiro.

Para Platao, dada uma multiplicidade de objetos referi­

dos por urn mesmo termo de modo inequivoco, ha uma e

apenas uma Jdiia, que e 0 modele do qual esses objetos sao

as copias. Obviamente, nao ha uma Ideia para qualquer

termo geral de nos sa linguagem (nao ha, por exemplo, Ideia

de barbaro ou de grego, mas somente de homem), mas a todo

termo geral que designa uma das junturas ou articula~6es do

mundo corresponde uma Ideia que concentra em si 0 ser em

questao, enquanto os objetos materiais existem a titulo mera­

mente de copias ou imita~6es. Os particulares, assim, nao

somente estao canticlos nos universals, como tambem sao

concebidos como causados pelos universais, derivados deles

e hierarquizados por eles.

Platao

De modo similar, as Ideias tambem tern uma hierar­

quia. A Ideia de homem, por exemplo (que Platao tambem

chama de o-homem-proprio ou homem-em-si), esta contida na

Ideia de animal e, por conseguinte, e dependente dela (se 0

animal for aniquiIado, 0 homem e aniquiIado; mas se 0

homem for destruido, nem por isso 0 animal e destruido);

do mesmo modo, a Ideia de animal depende da de ser vivo

e esta subordinada a ela, e assim por diante. A Ideia mais

geral, aquela que abarca todas as outras, e a Ideia de Ser, que,

em Platao, identifica-se it Idi'ia de Bem: elas concentram a

realidade no seu modo eminente, em seu maximo grau, pois

tudo 0 mais faz apelo it Ideia de S er e it de Bem. Ao unificar

ser e bern, PIa tao colocou no apice da realidade uma Ideia

que designa ao mesmo tempo 0 que e e 0 que deve ser, 0 fato

e a norma.

o dialetico e aquele que, tendo abandonado 0 mundo

das sensa~6es, nao se lirnitou it compreensao inteligivel das

coisas que a Matematica oferece, mas chegou it visao da Ideia

suprema, a Ideia de Bem. 0 que ve ele do alto do seu saber?

Como a Ideia suprema concentra a realidade e 0 valor d~

modo eminente, ao contempla-la 0 dialetico contempla toda

a realidade. Do alto da pirimide do S er e do Bem, contempla-se

a planicie inteira da realidade. Quem conhecer a Ideia m:ixima

conhece tudo, pois tudo esti concentrado nela, tudo depende

dela, tudo deriva dela. Como, porem, pode 0 dialetico chegar

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48 Platao e Arist6teles

a urna zona de ar tao rarefeito, como pode ele abandonar as

hip6teses matematicas e apreender fmalmente 0 principio

supremo nao hipotetico? A esta altura, poderiamos temer

que Pia tao ou nao tivesse mais resposta, ou fizesse apelo a

experiencia mistica e ao inefivel, visto ter-se ja distanciado

tanto do senso comurn com a sua teoria das Ideias. Ele,

porem, tern urna resposta precisa e clara. Para removermos

as hip6teses e chegarmos ao principio nao hipotetico, aquele

que concentra a totalidade do ser e e isento de qualquer resto

ou obscuridade, devemos corrigit nossas defmi~iies com­

parando-as urnas as outras, tornando-as perfeitamente com­

pativeis entre si e, desse modo, oferecendo uma explica~ao

unificada do real.

Este e 0 grande lance de Plarao: urna vez obtidas as

hip6teses matematicas a partir da apreensao intelectual do

que nos e dado por meio da percep~ao, a ascensao ao princi­

pio Ultimo do ser se fad nao mais por apelo a uma experien­

cia, seja ela sensivel ou mistica, mas pelo ato da razao de

tornar coerentes as nossas hip6teses e teses mediante 0 exa­

me rigoroso de suas compatibilidades com vistas a uma teo­

ria unificada do real. Uma vez instalados no dominio do

inteligivel (pela formula~ao matematica da essencia das coisas

materiais), basta acomodarmo-nos confortavelmente nele

para chegar a visao do todo mediante 0 uso rigoroso da ra­

zao. A coerencia interna do pensamento garante a descoberta

Platao

da verdade Ultima aquele que conseguir subtrair-se as paixiies

e sensa~iies do mundo empirico, se for paciente e inteligente

o suficiente para perseguir ate 0 fun 0 fio da razao.

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A resposta de Platao e, novamente, sedutora: nada de

experiencia mistica, nenhurn irracional a fundamentar a

razao, apenas 0 pr6prio pensamento que vasculha seus mean­

dros para esclarecer a si mesmo. Ainda hoje temos forte

apego a esse procedimento, pois consideramos que toda teo­

ria cientifica tern de ser internamente coerente, 0 que obte­

mos pelo seu polimento interno, pela compara~ao e con­

fronta~ao incansavel de suas hip6teses entre si. Para alguns,

a verdade de urna teoria provem e limita-se a sua coerencia

interna. No entanto, 0 que marca a resposta de Platao e seu

carater radical: nao s6 chegamos a ldeia suprema pelo trabal­

ho interno da razao consigo mesma, como 0 fazemos dando

as costas a experiencia e ao mundo sensivel. No sistema de

Platao, essa radicalidade e inevitavel porque 0 que existe real­

mente, para ele, nao sao os objetos materiais, mas os mode­

los inteligiveis que as coisas concretas imitam imperfeita­

mente. Platao dividiu a realidade em dois mundos: de urn

lado, hi 0 mundo concreto, percebido pelos sentidos, cons­

tantemente gerado e destruido, irregular, repleto de exce~iies

e falhas, que, como Plarao diz no Timeu, nunca e real mente; de

outro, esra 0 mundo das Ideias, uniformemente existente,

sempre 0 mesmo, apreendido somente pelo pensamento,

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50 Platao e Arist6teles

causa do ser do mundo sensivel. Nesse esquema, nao faz sen­

tido, uma vez al~ado ao dominio das Ideias, querer voltar ao

mundo irregular e falho das coisas concretas. Platiio estabe­

lece urn fosso entre urn mundo e outro; 0 problema todo

consiste, para ele, ern sair do mundo enganoso das sensa<;oes

e entrar no reino tranqiiilo e recompensador das Ideias, nao

em transitar continuamente de urn mundo para outro.

A alegoria da caverna de Platao

Em urna de suas mais famosas compara~oes, Pia tao

ilustrou essa passagem com a alegoria da caverna: aquele que

acredita somente no que vI', e sente e como urn homem acor­

rentado no fundo de urna caverna que assiste ao espetaculo

Platao

das sombras de objetos que !he sao projetadas em seus

muros. Sem ver de onde vern essa proje~ao e tomando as

sombras peias proprias coisas, nao suspeita que os objetos, os

verdadeiros, se encontrarn fora cia caverna. Se, porem, (00-

seguir livrar-se de seus grilhoes, veri entao que nao passavam

de sombras, e tentari, com grande esfor~o, galgar as entra­

nhas da caverna para sair deia; Ii fora, cegado pela luminosi­

dade que desconhecia inteiramente, teri primeiro de acostu­

mar-se com ela para enfun urn dia mirar de frente 0 Sol, fon­

te de toda luz. 0 Sol simboliza a Ideia suprema; a saida da

caverna designa 0 abandono do mundo das sensa~oes em

proveito unicamente do pensamento; os grilhoes, nossa

obstina,ao com 0 mundo da experiencia.

A alegoria da caverna poe em cena 0 esfor~o trigico da

ascensao que 0 homem deve fazer para chegar a ciencia. 0

motivo disso e que, a disrancia que existe entre a Ideia e 0

objeto material (urn e 0 modelo; 0 outro, a copia), corres­

ponde urn fosso entre 0 conhecimento e a opiniao. A opiniao

pode ser verdadeira, mas pode tambem ser falsa; ela e mura­

vel, presa ficil da persuasao, produto de nossas sensa~oes; 0

conhecimento, ao contd.rio, e por essencia verdadeiro e nao

se deixa persuadir, pois e objeto de convic~ao. Nao hi conhe­

cimento falso; se e falso, entao nao era conhecimento. A

Ciencia, para Platao, responde aos altos criterios de ser sem­

pre verdadeira, objeto de convic~ao e resultado do pensa-

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52 Plat.lo e Arist6teles

mento que examina com rigor a si mesmo, abandonando

para sempre 0 mundo cambiante, irregular e falho de nossas

sensa~oes e experiencias.

As assembleias eram a base da democracia ateniense

PIa tao e 0 mundo dos homens

Ao subordinar 0 conhecimento matemitico a Dia­

letica, Platiio concebeu uma ordem do saber altamente hie­

rarquizada. No topo esti a Dialetica, visao do todo a partir

da Ideia suprema, pois dela todas as demais derivam; abaixo,

."

Plat.lo 53

as ciencias matemiticas, que se al~am ao inteligivel, mas

operam ainda com hipoteses; por fun, estao os objetos mate­

riais e as opinioes que a eles correspondem. Essa hierarquil

do saber reflete os graus do ser: no topo, 0 que e sumamente,

o perfeito; Ii embaixo, 0 que mescla ser e nao ser, 0 que e

imperfeito; entre eles, 0 objeto matemitico, inicio da ascen­

sao ao inteligiveL Essa hierarquia e acompanhada, por sua

vez, de uma perspectiva antropologica: todos temos opinioes,

mas, segundo Platiio, a Ciencia e para poucos. Ele refor~a

assim, ao termino de seu percurso intelectual, a visao pes­

simista que tinha dos homens, que 0 decepcionaram tanto,

sobretudo no episodio da condena~ao de Socrates. Platiio

havia abandonado a carreira dos cargos publicos para

dedicar-se aos estudos, mas pensa agora, com base em suas

doutrinas, poder voltar ao mundo da politica. Hi, para

Platao, uma ciencia politica, segura e infalivel; e com base

nessa ciencia que 0 governante decide a respeito do bern de

seus subordinados, estejam eles de acordo ou nao,' assim

como 0 medico prescreve ao doente 0 exato remedio que 0

curari, queira ele beber ou nao tal po<;ao. Quem possui tal

ciencia nao deve, como propunha a Atenas democritica,

deliberar e discutir publicamente a respeito das decisoes a

tomar, mas deduzir 0 que deve ser feito a partir das premis­

sas de seu saber. E, como 0 medico altera sua prescri~ao sem

ficar limitado pelo que determinara antes, mas unicamente