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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO MARCELO SAMPAIO DA FRANCA COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ENDIVIDADO: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO DA EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIAS NA COMPRA DO CARRO RIO DE JANEIRO 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO

MARCELO SAMPAIO DA FRANCA

COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ENDIVIDADO: UM ESTUDO

EXPLORATÓRIO DA EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIAS NA COMPRA DO CARRO

RIO DE JANEIRO

2013

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MARCELO SAMPAIO DA FRANCA

COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ENDIVIDADO: UM ESTUDO

EXPLORATÓRIO DA EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIAS NA COMPRA DO CARRO

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Administração, Instituto COPPEAD de

Administração, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Administração.

Orientadora: Leticia Moreira Casotti, D.Sc.

Rio de Janeiro

2013

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F814c Franca, Marcelo Sampaio da

Comportamento do consumidor endividado: um estudo exploratório

da experiência de famílias na compra do carro / Marcelo Sampaio da

Franca. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

151 f.: il.; 31 cm.

Orientadora: Leticia Moreira Casotti.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Instituto COPPEAD de Administração, 2013.

1. Comportamento do Consumidor. 2. Marketing. 3. Administração –

Teses. I. Casotti, Leticia Moreira (Orient.). II. Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Instituto COPPEAD de Administração. III. Título.

CDD 658.8

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MARCELO SAMPAIO DA FRANCA

COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ENDIVIDADO: UM ESTUDO

EXPLORATÓRIO DA EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIAS NA COMPRA DO CARRO

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Administração, Instituto COPPEAD de

Administração, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Administração.

Aprovada em

_________________________________________________________

Prof.ª. Leticia Moreira Casotti, D.Sc. (Orientadora) – COPPEAD/UFRJ

_________________________________________________________

Prof.ª. Maribel Carvalho Suarez, D.Sc. – COPPEAD/UFRJ

_________________________________________________________

Prof. Vinicius Andrade Brei, D.Sc. – EA/UFRGS

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DEDICATÓRIA

Dedico esta dissertação a Leandro de Oliveira Leal

(in memoriam)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por guiar meus passos, por me capacitar a superar mais um desafio e

por não me deixar "inquietar com preocupações, guardando sempre meu coração e meus

pensamentos em Sua paz".

Agradeço a Ivanovna e Márcia Sampaio, as mulheres da minha vida desde sempre, por

criarem um ambiente perfeito para meus estudos e por serem meu porto seguro, meus

exemplos, minhas parceiras. Agradeço também a Marco Polo, por toda torcida e oração.

Agradeço a Carolina Senna, por fazer a vida bonita de qualquer jeito, e a Maria do

Carmo Senna, pelo carinho e tratamento sem igual.

Agradeço a Leticia Casotti, pelo acolhimento, confiança e orientação.

Agradeço a Helio Celidonio, de quem partiu a sugestão para cursar o mestrado, por

todo apoio e incentivo, e também ao Banco Central, por estimular o aperfeiçoamento

acadêmico e profissional de seus servidores.

Agradeço a Anderson Pires, Brunna Pinho, Daniel Pimenta, Luiz Gustavo Schiavo e

Yandra Bredoff, pelas conversas que ajudaram a definir rumos importantes da pesquisa.

Agradeço à Cátedra Fiat de Estudos de Consumo, pelo apoio em toda a pesquisa de

campo. Além disso, agradeço os problemas que foram compartilhados por profissionais da

Fiat do Brasil sobre experiências recentes com consumidores endividados pela compra do

automóvel.

Agradeço a Vera Estrella, pela gentileza de ceder salas para a realização de algumas

entrevistas. Agradeço também aos casais que compartilharam suas experiências de

dificuldades financeiras, muitas vezes me recebendo em suas casas.

Agradeço aos professores e demais profissionais do COPPEAD, pelos ensinamentos e

pela atenção dedicada aos alunos.

Agradeço ainda a toda turma 2011, pela companhia ao longo do curso, e

especialmente a Carlos Ambrosio, Celina Rebello, Debora Mattioda, Edgar Ferreira, Glauce

Nascimento, Leonardo Sertã, Mariana David, Michel Cohen e Natalia Miralles, cuja ajuda foi

fundamental em diversas ocasiões do mestrado.

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RESUMO

FRANCA, Marcelo Sampaio da. Comportamento do consumidor endividado: um estudo

exploratório da experiência de famílias na compra do carro. Rio de Janeiro, 2013.

Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

O presente estudo exploratório procurou entender a experiência de dificuldades

financeiras vivida por famílias que se endividaram para adquirir um automóvel. De natureza

qualitativa, a pesquisa contou com vinte entrevistas em profundidade junto a casais que

financiaram a compra do carro e não conseguiram efetuar os pagamentos previstos. Dentre os

achados do estudo, destaca-se que o automóvel aparece como um luxo necessário, pois, ao

mesmo tempo em que sinaliza o pertencimento desses casais a um grupo social com o qual

desejam se identificar e ser identificados, também marca sua diferenciação em relação àqueles

"sem nenhuma condição financeira". Além disso, no financiamento do carro, que se soma a

uma rotina de parcelamento de compras, a preocupação de conseguir fazer o valor da

prestação "caber no bolso" parece limitada ao momento da aquisição, deixando as famílias

com um orçamento sensível a eventuais comprometimentos da renda. De uma forma geral, os

achados de pesquisa apontam para relatos que mostram famílias iludidas em diversas

situações que permeiam o processo de consumo do automóvel. Montadoras, por sua vez,

precisam estar atentas ao tratamento que seus clientes têm recebido das financeiras a elas

coligadas e das agências terceirizadas de cobrança, cujas práticas são comparadas as de

agiotas. Chama-se atenção ainda para a necessidade de as empresas promoverem tanto a

concessão responsável de crédito quanto a educação para o consumo.

Palavras-chave: Endividamento. Comportamento do Consumidor. Família. Carro.

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ABSTRACT

FRANCA, Marcelo Sampaio da. Comportamento do consumidor endividado: um estudo

exploratório da experiência de famílias na compra do carro. Rio de Janeiro, 2013.

Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

The present exploratory study sought to understand the types of financial difficulties

experienced by families who run into debt to buy a car. Qualitative in nature, the research

involved in-depth interviews with twenty couples who financed the purchase of the car and

could not make the payments. Among the study's findings, it is worth noting that the car

appears as a necessary luxury because, while it associates these couples to a social group they

wish to identify with and be identified by, it also marks the differentiation from those

"without financial condition". Moreover, when financing a car, which adds up to a routine

installment, the concern of getting the value "to fit in your pocket" seems limited to the time

of acquisition, leaving families with a budget sensitive to possible compromises in income. In

general, the research findings indicate reports of deluded families in several situations that

permeate the process of the purchase of the automobile. Automakers, in turn, need to be

mindful of the treatment their clients have received from financial affiliates and third party

collection agencies, whose practices are compared to moneylenders. Attention is also drawn

to the need for companies to promote both responsible credit granting and consumer

education.

Keywords: Indebtedness. Consumer Behavior. Family. Car.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Movimento de Significado. ................................................................................... 31

Figura 2: Framework da Interação entre Identidades nas Práticas de Consumo. .................... 47

Figura 3: Práticas de Consumo com Cartão de Crédito e Movimento entre os Espaços de

Estilo de Vida Socialmente Construídos. ............................................................... 53

Figura 4: Sentimentos Associados ao Automóvel ............................................................... 126

Figura 5: Rotina de Parcelamento ....................................................................................... 127

Figura 6: Sentimentos Associados à Dívida ........................................................................ 128

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Perfil dos Entrevistados. ...................................................................................... 66

Quadro 2: Imaginário de Famílias Com e Sem Carro............................................................ 85

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABEP – Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa

ANEF – Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras

BACEN – Banco Central do Brasil

BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CCEB – Critério de Classificação Econômica Brasil

CCT – Consumer Culture Theory

CDC – Crédito Direto ao Consumidor

GNV – Gás Natural Veicular

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados

IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 25

1.1 RELEVÂNCIA DO TEMA ................................................................................... 25

1.2 ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO ........................................................................... 27

2. REVISÃO DE LITERATURA ..................................................................................... 29

2.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS NO CONSUMO DE AUTOMÓVEIS ......... 29

2.1.1 A perspectiva simbólica do consumo .................................................................. 29

2.1.2 Automóveis e significados .................................................................................. 32

2.1.3 Automóveis e sentimentos .................................................................................. 36

2.2 FAMÍLIA COMO AGENTE DE INFLUÊNCIA ................................................... 40

2.3 O PROCESSO DE ENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR .............................. 49

3. METODOLOGIA ......................................................................................................... 58

3.1 PARADIGMA INTERPRETATIVISTA................................................................ 58

3.2 TIPO DE PESQUISA ............................................................................................ 59

3.3 A ESCOLHA DA CATEGORIA ESTUDADA ..................................................... 61

3.4 PERGUNTAS DE PESQUISA .............................................................................. 61

3.5 SELEÇÃO DOS ENTREVISTADOS .................................................................... 62

3.6 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS INFORMAÇÕES ..................................... 66

3.7 LIMITAÇÕES DO MÉTODO ............................................................................... 68

4. DISCUSSÃO DE RESULTADOS ................................................................................ 70

4.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS ASSOCIADOS AO AUTOMÓVEL ............ 74

4.1.1. O luxo necessário ............................................................................................... 75

4.1.2. Sonho de consumo parcelado.............................................................................. 77

4.1.3. Patrimônio simbólico ......................................................................................... 81

4.1.4. Imaginário de famílias com e sem carro .............................................................. 84

4.2 A FAMÍLIA NO PROCESSO DE DECISÃO E COMPRA DO CARRO ............... 87

4.2.1 Reconhecimento do desejo ................................................................................. 88

4.2.2 Negociações para um desejo comum .................................................................. 90

4.2.3 O desejo que "cabe no bolso" ............................................................................. 92

4.2.4 Papéis de gênero ................................................................................................. 94

4.3 FORMAS DE LIDAR COM OS CUSTOS RELATIVOS AO AUTOMÓVEL ...... 96

4.3.1 Falhas no planejamento das famílias ................................................................... 97

4.3.2 Gerenciamento dos custos pelas famílias ............................................................ 99

4.3.3 Influência de imprevistos no orçamento das famílias ........................................ 103

4.4 O ENDIVIDAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE BENS ...................................... 104

4.4.1 Parcelamento como rotina ................................................................................ 104

4.4.2 Planejando o presente ....................................................................................... 107

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4.4.3 A dívida que "cabe no bolso" ............................................................................ 109

4.5 DIFICULDADES DE PAGAMENTO: SIGNIFICADOS, SENTIMENTOS E

ENFRENTAMENTO ..................................................................................................... 114

4.5.1 O endividamento internalizado ......................................................................... 114

4.5.2 Famílias que enfrentam, que mudam ou que adiam ........................................... 116

4.5.3 Desafios e experiências comuns ....................................................................... 120

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 124

5.1. "ME ENGANO QUE EU GOSTO" ..................................................................... 128

5.2. A EXPERIÊNCIA COM AS FAMÍLIAS............................................................. 130

5.3. OUTRAS CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO ...................................................... 132

5.4. SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS ................................................... 133

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 135

ANEXO 1 – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS .................................................................. 146

ANEXO 2 – CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO ECONÔMICA BRASIL ........................ 151

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1. INTRODUÇÃO

O principal objetivo da pesquisa foi estudar a experiência de dificuldades financeiras

vivida por famílias que se endividaram para adquirir um automóvel, isto é, que utilizaram

financiamento ou arrendamento mercantil (leasing) como modalidade de pagamento.

Para dar suporte à consecução desse objetivo geral, o estudo buscou, mais

especificamente: identificar significados e sentimentos envolvidos na compra do carro da

família; examinar como é a participação da família na aquisição do veículo; compreender

como a família lida com os custos inerentes ao automóvel; entender como a família vê o

recurso ao endividamento para a aquisição de bens; e conhecer significados, sentimentos e

experiências originados das dificuldades financeiras.

1.1 RELEVÂNCIA DO TEMA

Na busca por pesquisas realizadas dentro do tema endividamento do consumidor,

foram encontrados estudos principalmente nas áreas de psicologia econômica (KATONA,

1975; LIVINGSTONE e LUNT, 1992, 1993; LEA, WEBLEY e LEVINE, 1993;

TOKUNAGA, 1993), de políticas públicas (HILL, 1994), de saúde (DRENTEA, 2000;

DRENTEA e LAVRAKAS, 2000; READING e REYNOLDS, 2001; JACOBY, 2002;

KASSER, 2002; KASSER e KANNER, 2004) e de proteção ao consumidor (FALLS e

WORDEN, 1988; KINSEY e LANE, 1978; LANGREHR e LANGREHR, 1979, 1989;

SHEPARD, 1984; SHIERS e WILLIAMSON, 1987; SULLIVAN e DRECNIK, 1984). No

âmbito dos estudos de comportamento do consumidor, porém, foram encontradas poucas

pesquisas na literatura internacional, que estão associadas ao endividamento pelo uso do

cartão de crédito (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005; MENDOZA e PRACEJUS,

1997). No Brasil, foram identificados dois trabalhos relacionando os níveis de materialismo e

dívida (MOURA, 2005; PONCHIO, 2006) e um investigando a natureza e as estratégias de

enfrentamento dos problemas financeiros de consumidores pobres (MATTOSO e ROCHA,

2005).

Mudando o foco da produção acadêmica para a mídia de massa, percebe-se, no

entanto, que o endividamento do consumidor constitui tema em reiterada exposição, seja em

programas que trazem orientações de finanças pessoais para um consumo equilibrado, seja em

notícias que evidenciam os índices de inadimplência e os riscos econômicos associados, seja

em reportagens especiais de fim de ano que demonstram o que fazer com o 13º salário

(LUQUET, 2013; BRANCO, 2013; SANTOS, 2012). Matérias de jornal chamam atenção

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para o peso recorde das dívidas no orçamento das famílias brasileiras e que comprometem

percentuais cada vez maiores da renda anual (STEPHAN, 2012; DE CHIARA, 2011). Ainda,

uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre

orçamento familiar havia revelado que sete em cada dez famílias sentem alguma dificuldade

para chegar ao final do mês com seus rendimentos (IBGE, 2010).

O Relatório de Estabilidade Financeira, publicado pelo Banco Central em 2012,

também chama atenção para esse crescimento do endividamento das famílias observado nos

últimos anos e atribui como causas a estabilidade da economia associada à expansão do

crédito (BACEN, 2012). Níveis tão elevados de endividamento, porém, trazem consigo o

potencial de ocasionar dificuldades de pagamento e, por conseguinte, inadimplência.

Infelizmente, em meio a uma população sem o grau necessário de conhecimento sobre opções

de produtos e serviços financeiros, bem como sobre direitos e deveres como cidadãos e

consumidores, esse risco é maior. Araujo e Souza (2010) observam que esse cenário de maior

facilidade na obtenção de crédito, aliado à ausência de uma adequada educação financeira,

desfavorece tanto comportamentos de consumo mais próximos da realidade socioeconômica

dos indivíduos quanto tomadas de decisões mais conscientes sobre riscos e oportunidades.

Tendo em vista que a inadimplência acarreta um maior custo de crédito para a

sociedade como um todo – é elemento responsável por mais de 20% na composição do

elevado spread bancário no Brasil (BACEN, 2011) –, o fato de ela vir apresentando tendência

de alta desde março de 2011 e ter saltado de 5,1%, em dezembro de 2011 para 5,4%, em

junho de 2012 (BACEN, 2012), aponta para a pertinência de se buscar uma maior

compreensão sobre o processo de contração de dívida pelo consumidor e o contexto do

surgimento das dificuldades de pagamento.

Não obstante sejam múltiplas as fontes de endividamento suscitadas pelo consumo e

algumas formas de pagamento, como o cartão de crédito, despontem como vilões da saúde

financeira dos consumidores (DE CHIARA, 2012; TURCI, 2011), a pesquisa objeto desta

dissertação terá como foco a dívida contraída para a aquisição de um automóvel. Trata-se de

um bem comumente tido como sonho de consumo (STEFANO, 2010), com valor unitário

relativamente elevado e que pode trazer impactos financeiros significativos e duradouros no

orçamento doméstico, principalmente se adquirido por meio de financiamento. A esse

respeito, dados da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras (ANEF)

informam que 51% dos novos carros comercializados durante 2012 utilizaram o

financiamento bancário como modalidade de pagamento (ANEF, 2013). Além disso, o

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Relatório de Estabilidade Financeira apontou o financiamento de veículos como o principal

responsável pela alta na inadimplência de pessoas físicas mencionada anteriormente

(BACEN, 2012), fato que também foi objeto de grande cobertura jornalística (CUCOLO e

NAKAGAWA, 2012; MARTELLO, 2012; WARTH, 2012), ainda mais tendo em vista as

medidas do Governo Federal de estímulo à economia via redução do Imposto sobre Produtos

Industrializados (IPI) na compra de carros (DORIA, 2012).

Retomando a perspectiva teórica, vale ressaltar que tanto o endividamento (COHEN,

2007) quanto a família (COMMURI e GENTRY, 2000; EPP e PRICE, 2008) constituem

tópicos com agendas de discussão propostas ou sugeridos como oportunidades de pesquisa.

Considerando que o automóvel é um bem durável cuja aquisição pode demandar alto

envolvimento emocional e financeiro da família, ele se torna propício a uma investigação que

congregue ambos os temas. Acredita-se, portanto, que uma pesquisa sobre o comportamento

do consumidor de automóvel endividado pode trazer um melhor entendimento sobre

motivações que levam uma família a recorrer ao expediente do financiamento para antecipar

sua capacidade de consumir bens. Uma compreensão mais clara do contexto em que surgem

as dificuldades de pagamento pode igualmente gerar conhecimento acerca de práticas, rituais

e negociações relativas ao consumo em família, bem como a respeito dos impactos dos

contratempos financeiros sobre a identidade familiar (EPP e PRICE, 2008).

1.2 ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO

O capítulo seguinte traz uma revisão da literatura acadêmica desenvolvida em torno de

três tópicos principais: significados e sentimentos relacionados ao consumo de automóveis;

influência da família no comportamento de consumo; e endividamento do consumidor. A

seleção de tais tópicos procurou abarcar cada aspecto do tema da presente pesquisa – a

experiência de dificuldades financeiras vivida pela família que contrai dívida para a compra

do carro.

No terceiro capítulo, são descritas e situadas as opções metodológicas da pesquisa

objeto desta dissertação, incluindo as justificativas quanto ao paradigma adotado, ao método

de coleta de informação escolhido e à categoria de consumo estudada. Além disso, o capítulo

ainda traz as questões de pesquisa, os critérios para seleção de entrevistados, os

procedimentos de análise e interpretação dos dados e algumas limitações da metodologia

empregada.

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O quarto capítulo descreve resumidamente o histórico da situação de dificuldade

financeira vivida pelas famílias pesquisadas, como forma de contextualizar a discussão que se

segue acerca dos resultados das entrevistas realizadas. As interpretações propostas se

desenvolvem por meio de cinco categorias de análise definidas a partir do discurso dos

entrevistados e buscam confrontar os achados do campo e as teorias existentes sobre o assunto

de pesquisa.

No quinto e último capítulo, são tecidas as considerações finais, que contêm algumas

reflexões acerca das principais descobertas proporcionadas pelo estudo, além de sugestões

para pesquisas futuras em torno do assunto.

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2. REVISÃO DE LITERATURA

O presente capítulo tem por objetivo apresentar a revisão de literatura, que foi

estruturada de forma a apoiar os principais aspectos relativos ao tema de pesquisa, que

consiste na experiência de dificuldades financeiras vivida pela família a partir do

endividamento contraído para a compra do carro.

Inicialmente, procurou-se levantar estudos relacionados ao consumo de automóveis,

para se compreender significados associados a esse bem e sentimentos que ele pode provocar

nos consumidores. A crença subjacente é de que uma melhor compreensão sobre a

importância do carro como objeto de consumo pode trazer luz para o entendimento dos

esforços realizados para tê-lo.

Em seguida, são apresentadas pesquisas com foco na família, como agente de

influência nos hábitos de consumo. Acredita-se que o entendimento das histórias,

negociações, rituais e valores vivenciados no seio familiar pode contribuir para a

compreensão de padrões no comportamento de consumo.

Por fim, foi abordado o tema do endividamento diretamente, procurando checar o que

tem sido produzido na literatura acadêmica sobre o mesmo. Este esforço foi útil para verificar

como o assunto costuma ser abordado, as proposições teóricas, as dificuldades relacionadas à

sua natureza delicada e o relativo pequeno número de pesquisas na área de estudos de

consumo abordando o tópico.

2.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS NO CONSUMO DE AUTOMÓVEIS

2.1.1 A perspectiva simbólica do consumo

A tradição de pesquisa do consumidor centrada nos aspectos socioculturais,

experienciais, simbólicos e ideológicos do consumo é a Consumer Culture Theory1 (CCT),

denominação proposta por Arnould e Thompson (2005) em artigo no qual fazem uma revisão

sintetizada dos cerca de vinte anos de produção acadêmica da área. Apesar do nome, os

autores ressalvam que a CCT não constitui uma grande teoria unificada em torno da cultura de

consumo, mas uma família de perspectivas teóricas que tratam das relações dinâmicas entre as

ações dos consumidores, o mercado e os significados culturais (ARNOULD e THOMPSON,

2005). Essa linha de estudos do consumidor percebe o consumo – e as escolhas e práticas

1 Teoria da Cultura de Consumo.

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comportamentais associadas – como fenômenos sociais e culturais, em oposição a fenômenos

psicológicos ou puramente econômicos (CCT, 2012). Entende-se, portanto, que os indivíduos

consomem bens e serviços tendo em vista o referencial sociocultural de significados que

aspiram para si próprios e/ou desejam expressar a terceiros. Nesse sentido, investigações

sobre como as pessoas retrabalham e transformam os significados simbólicos codificados em

anúncios, marcas, ambientes de varejo e bens materiais, de modo a manifestar suas

circunstâncias pessoais e sociais, suas identidades e seus almejados estilos de vida, têm sido

enfatizadas pela CCT (ARNOULD e THOMPSON, 2005).

No âmbito desses estudos relacionados aos aspectos simbólicos do consumo, sobressai

a figura dos bens materiais, por sua capacidade de representar e comunicar significado

cultural. Miller (2007), por exemplo, ao discorrer sobre a abordagem da cultura material ao

consumo, informa que os "estudos de cultura material trabalham através da especificidade de

objetos materiais para, em última instância, criar uma compreensão mais profunda da

especificidade de uma humanidade inseparável da sua materialidade" (MILLER, 2007, p. 47).

Não por acaso o autor considera o livro The World of Goods: Towards an

Anthropology of Consumption, de Mary Douglas e Baron Isherwood, publicado em 1979, um

dos grandes responsáveis pela revolução dos estudos de consumo em direção a essa

abordagem mais atenta aos símbolos e significados culturais. A obra teria advogado a

compreensão dos bens materiais como um sistema de comunicação – em uma analogia com a

linguagem – e do consumo como um ato que dá visibilidade e estabilidade às categorias da

cultura. Nas palavras de Douglas e Isherwood (2004, p. 108), "a função essencial do consumo

é sua capacidade de dar sentido". Dessa forma, o entendimento dos bens de consumo como

comunicadores de categorias culturais e valores sociais, isto é, como constituintes de um

sistema simbólico, abre a possibilidade de "ler" e compreender padrões da própria sociedade

através dos seus padrões de consumo (MILLER, 2007).

Anos mais tarde, McCracken (1986) ajudaria a consolidar essa abordagem

antropológica do processo de consumo (MILLER, 2007), ao vislumbrar a qualidade móvel

dos significados culturais comunicados pelos bens materiais. De acordo com o autor, as

teorizações vigentes falhavam em observar que o significado está em constante trânsito, em

ininterrupto fluido (MCCRACKEN, 1986, 2003a). Essa nova perspectiva teórica se traduziu

no esquema conceitual sintetizado na Figura 1 a seguir, que contém três instâncias para a

localização do significado (mundo culturalmente constituído, bens de consumo e consumidor

individual) e dois momentos de transferência (mundo-para-bem e bem-para-indivíduo). No

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primeiro momento, a publicidade e o sistema de moda extrairiam significados do mundo

culturalmente constituído e os transfeririam para os bens de consumo; no segundo momento,

rituais de consumo (posse, troca, arrumação e despojamento) moveriam os significados dos

bens para o consumidor (MCCRACKEN, 1986, 2003a).

Figura 1: Movimento de Significado. Fonte: Adaptado de McCracken (1986, p. 72).

Outra importante contribuição de McCracken (2003b) diz respeito ao conceito de

"significado deslocado", uma categoria específica de significado cultural referente a ideais

culturais considerados inacessíveis, que são removidos da vida cotidiana e realocados em uma

dimensão distante de tempo ou espaço. Segundo o autor, o consumo seria uma forma utilizada

pela cultura para restabelecer o acesso a esses significados. Por essa perspectiva, os bens de

consumo serviriam como pontes para o significado deslocado e para uma versão idealizada da

vida. Uma questão interessante é que, de acordo com o autor, quando os indivíduos passam da

mera cobiça à efetiva posse de um bem, este normalmente é algo além do seu poder de

compra. "Não há motivo para aspirar àquilo que está prontamente ao alcance"

(MCCRACKEN, 2003b, p. 143). Trata-se de uma compra longamente contemplada e

imaginada e que comumente inclui bens de alto envolvimento, como um carro, um relógio,

uma peça de roupa, um perfume ou gêneros alimentícios especiais. Assim, a posse de um bem

desse tipo funcionaria como prova da existência de um estilo de vida idealizado e aspirado

pelo indivíduo.

Mundo culturalmente constituído

Bens de consumo

Consumidores individuais

Publicidade/

Sistema de moda

Ritual de

troca

Ritual de

arrumação

Ritual de

despojamento

Sistema

de moda

Ritual de

posse

Explicação: Localização do significado

Instrumento de transferência de significado

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32

2.1.2 Automóveis e significados

O automóvel, na condição de bem material, detém essa capacidade de carregar e

transmitir significados variados. De fato, Suarez (2010) observou que a dimensão simbólica

atrelada ao seu consumo tem sido o enfoque de diversas pesquisas sobre o consumidor

(GRUBB e HUPP, 1968; BELK, BAHN e MAYER, 1982; HIRSCHMAN, 2003; BELK,

2004; DALLI e GISTRI, 2006; LUEDICKE, 2006; LUEDICKE e GIESLER, 2008), nas

quais a categoria de produto é analisada.

Já na década de 1960, o estudo de Grubb e Hupp (1968) buscou desenvolver uma

metodologia que permitisse melhor comparabilidade entre as medidas usadas para a

autoconceituação dos consumidores e para os aspectos relevantes de seu comportamento de

consumo, a partir de uma pesquisa junto a estudantes proprietários de modelos populares de

automóveis Volkswagen e Pontiac. A premissa teórica em que os autores se basearam foi a de

que o autoconceito do consumidor está relacionado ao seu comportamento de consumo. Entre

outras coisas, isso quer dizer que, quando certo indivíduo consome determinado produto, ele

está comunicando que deseja se ver associado com o tipo de pessoa que ele percebe como

consumidor daquele produto. Essa espécie de associação simbólica foi suportada pelos

resultados da pesquisa, permitindo aos autores concluírem que os consumidores das duas

marcas de automóveis se percebiam significativamente diferentes e tinham percepções

concretas de estereótipos dos proprietários de cada marca. Além disso, os respondentes se

perceberam similares aos outros que possuíam o mesmo carro e bastante diferentes dos donos

da marca concorrente.

Essa capacidade de os automóveis transmitirem diferentes mensagens sobre seus

proprietários é retomada por Belk, Bahn e Mayer (1982), ao revisarem a literatura sobre os

mecanismos que os indivíduos usam para codificar e decodificar o consumo. Na codificação,

seria buscada a proximidade entre a imagem de categorias de produtos e a autoimagem de

consumidores, isto é, as pessoas procuram expressar um pouco de si, dizer algo sobre o que

são ou como se veem através da escolha dos produtos que consomem. Já a decodificação

envolve o processo de formação de impressões acerca de terceiros a partir das dicas que eles

revelam através de seu consumo.

Embora outros produtos e serviços tenham sido considerados pelos autores ao longo

de sua revisão de literatura (bebidas, casas, atividades de lazer, roupas e acessórios, cigarros

etc.), para seu objetivo de abordar o desenvolvimento de aspectos simbólicos do consumo

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entre crianças, Belk, Bahn e Mayer (1982) optaram por utilizar somente as categorias "carros"

e "casas". Assim, de modo a atender esse propósito de investigação de como se originam

estereótipos relacionados ao consumo, os pesquisadores apresentaram a cerca de mil crianças,

adolescentes e adultos fotos coloridas de carros e casas de diferentes preços, tamanhos e

estilos. Todos os estímulos foram feitos como comparação de pares e a tarefa era atribuir

descrições pessoais, como "feliz", "esperto", "alguém com muitos amigos", "mesquinho" etc.,

ao proprietário de um dos dois objetos do par. Uma das conclusões dos autores é que a

habilidade de reconhecer as implicações simbólicas das escolhas de consumo varia com a

idade: é mínima entre as crianças em fase pré-escolar, significante no segundo ano de estudos

e quase completamente desenvolvida no sexto ano; estudantes universitários apresentam o

maior grau de estereótipos de consumo; e, entre os adultos mais velhos, os estereótipos são

mais fracos, embora a habilidade de reconhecer o simbolismo do consumo ainda seja

pronunciada.

Mesmo textos culturais supostamente menos imersos na ideologia do consumo, como

o chamado cinema de arte italiano, utilizam a categoria "automóvel" para propósitos

metafóricos (DALLI e GISTRI, 2006), isto é, valem-se da capacidade dos carros de promover

a associação de símbolos e imagens. A partir de uma análise de filmes dos principais mestres

italianos dos anos 1945 a 1975, Dalli e Gistri (2006) procuram destacar como essas obras

representam a cultura de consumo, em especial pela inserção de bens de consumo. Entre as

conclusões dos autores está a de que uma das principais categorias de produto representadas

nos filmes de arte italianos é justamente a de carros, junto com a de cigarros, tendo ambas

sido usadas como componentes realísticos do cenário e pela sua natureza simbólica. No caso

dos automóveis, foi observado que os produtores começam a escolher modelos e marcas de

acordo com o papel social dos personagens e com as situações: o Fiat 600, muito comum nos

anos 1960, por exemplo, assumiu o estereótipo de carro utilitário; conversíveis, como o

Lancia Aurelia B24, foram definitivamente associados a atores bonitos e encantadores; carros

muito grandes significavam riqueza e esnobismo etc. Dessa forma, Dalli e Gistri (2006)

entendem que, ao enfatizar o papel que produtos tinham na cultura de consumo, os cineastas

contribuíram para o desenvolvimento de um discurso metafórico e imaginário ao qual esses

bens de fato pertenciam.

Ainda no âmbito do simbolismo dos automóveis, Belk (2004) se propôs a entender,

por meio de entrevistas em profundidade com homens fascinados por carros e de observações

em encontros de colecionadores, concursos de carros, autoshows etc., o potencial simbólico

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que muitos homens investem em suas máquinas, que chegam a ser vistas tanto como

extensões deles próprios quanto como seres animados. No primeiro caso, há a possibilidade

de os carros receberem características pessoais dos donos, por meio de customização e tuning,

e, inversamente, de transmitirem aos seus proprietários atributos relativos a status ou potência.

No segundo caso, os carros são muitas vezes tratados como crianças, amigos e até amantes,

no sentido de que levam para si boa parte da atenção que as esposas gostariam de receber de

seus maridos; ou são dotados de personalidade, como se carros ou marcas em particular

tivessem características próprias, alguns mais masculinos, outros mais femininos. Além disso,

o autor aborda a visão dos carros como objetos sagrados, recebedores de grande devoção, em

meio a um processo de sacralização que envolve rituais (limpeza, polimento), salvação e

sacrifício (processos de restauração), peregrinação (grandes autoshows, museus do

automóvel) e a separação do mundo profano das commodities.

Quanto aos desdobramentos positivos e negativos desse fenômeno que Belk (2004)

denomina "autoerotismo" na vida dos seus entusiastas e na dos outros membros da família, o

autor aponta que, da mesma forma que os carros servem como assunto de conversa entre

homens e os cuidados com o mesmo podem envolver os filhos homens, tendo um aspecto de

socialização, eles podem se tornar um refúgio, um lugar de escape e terapia, com

características antissociais. Outra implicação é a existência de um potencial compulsivo e de

vício nessa relação de cuidados com os carros, que envolve justificativas como a de uma

doença sem tratamento, a de se estar preservando a história do país ou da família ou a de que

se trata de brinquedo de adultos, o que ressalta o aspecto lúdico do entusiasmo por

automóveis.

A questão simbólica do intercâmbio ou transmissão mútua de atributos entre veículos

e seus proprietários mencionada anteriormente também havia sido de certa forma vislumbrada

por Hirschman (2003), em sua investigação das estruturas semióticas – visuais e verbais –

caracterizadoras e comunicadoras do etos do extremo individualismo norte-americano. Por

meio da análise de uma série histórica de anúncios publicados em revistas com temas, ícones

e retórica voltados para os adeptos desse tipo de individualismo, a autora pôde perceber como,

em relação aos polos de uma de suas categorias de tensão subjacentes – instrumentalismo vs.

antropomorfismo – chama atenção o fato de automóveis e seus equipamentos muito

comumente encontrarem a propensão do individualista de enquadrá-los no segundo grupo.

Isso significa que carros são anunciados com características humanas similares às daqueles

aos quais se destinam, como malvadeza, rapidez e resistência.

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Luedicke (2006), por sua vez, vai investigar essa dimensão simbólica da construção de

significados no contexto das comunidades de marca, compreendidas como sistemas sociais.

Sob essa compreensão, tais comunidades estariam inseridas em ambientes sociais e ambos se

construiriam, situariam e legitimariam mutuamente. Pelo framework conceitual proposto pelo

autor, as comunidades de marca devem ser observadas como comunicações contínuas em

meio ao seu ambiente social, sob três aspectos: o da diferenciação, que é gerada de forma

bivalente, com construções internas e externas de significados; o da necessidade de discursos

contínuos, sendo a quantidade e a qualidade das contribuições comunicativas determinantes

para a associação e sobrevivência da comunidade; e o da presunção de instabilidade, em

virtude da tendência humana ao esquecimento, o que faz das comunidades ainda mais

dependentes de reprodução comunicativa contínua.

A evidência empírica que Luedicke (2006) vai buscar para essa proposição conceitual

é a HUMMER Brand Community (HBC), comunidade que evoluiu em torno de um veículo

utilitário esportivo de estilo militar extremamente distinto e controverso. Para tanto, o autor

faz uma abordagem da HBC sob perspectivas múltiplas, incluindo entrevistas

fenomenológicas em profundidade, coleta de dados netnográficos e artefatos históricos, tanto

a favor quanto contra o modelo e seus adeptos. Tal procedimento é consistente com o

conceito de ambientes sociais mencionado anteriormente, mais amplo que a comunidade de

marca, que só agrega entusiastas. Os achados do estudo revelam que um grupo de distinções

ideológicas bivalentes (capacidade off-road vs. irresponsabilidade ambiental, atenção positiva

vs. vaidade egoísta, e superioridade social vs. excesso de consumo de combustível) fornecem

temas para discutir, razões para socializar e significados para identificar, tanto para adeptos

quanto antagonistas da marca, envolvendo a HBC em uma disputa contínua em meio ao seu

ambiente social sobre os significados predominantes da marca e da comunidade.

Vale destacar que a marca HUMMER e as disputas ideológicas de significados

envolvendo seus defensores e opositores serão objeto de outro trabalho de Luedicke e Giesler

(2008), no qual os autores propõem o conceito de "consumo contestado", que compreenderia

um conjunto de práticas influenciadoras interativas através das quais os consumidores

explicitamente desafiam e criticam cada uma das escolhas, comportamentos e ideologias de

consumo dos outros. A análise de Luedicke e Giesler (2008) revela práticas clássicas de

antagonismo do consumidor, que oferecem valiosos insights sobre a criação e proliferação de

ideologia, cultura e significado de marca a partir da perspectiva do consumidor.

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Além dessa capacidade de carregar e transmitir significados culturais, demonstrada

nas pesquisas atentas à dimensão simbólica associada ao seu consumo, o automóvel é

reconhecido por ser um bem material capaz de despertar sentimentos variados nos

consumidores, como os de fascínio e devoção encontrados por Belk (2004). Essa habilidade

dos carros também recebeu a atenção de diversos trabalhos na área de estudos de consumo

(BELK, GER e ASKEGAARD, 2003; CHITTURI, RAGHUNATHAN e MAHAJAN, 2008;

DESMET, HEKKERT e JACOBS, 2000; LUCE, 1998) e será abordada a seguir.

2.1.3 Automóveis e sentimentos

Com o intuito de avançar o conhecimento sobre o modo com que os consumidores

consomem, Holt (1995) empreendeu um estudo observacional de dois anos junto a

espectadores presenciais de partidas de beisebol e propôs um framework com quatro

metáforas descritoras das práticas que constituem o consumo: consumo como experiência;

consumo como integração; consumo como classificação; e consumo como jogo. A primeira

metáfora, do consumo como experiência, é a que fundamenta as pesquisas interessadas nas

reações subjetivas e emocionais dos consumidores aos objetos de consumo.

De acordo com o autor, Holbrook e Hirschman (1982) foram pioneiros nesse tipo de

pesquisa (HOLT, 1995), percebendo a experiência de consumo como um fenômeno voltado

para a busca de fantasias, sentimentos e diversão. Para tanto, os pesquisadores construíram

um quadro geral de representação das variáveis tipicamente presentes em um comportamento

de consumo e compararam as diferentes abordagens feitas pelo modelo prevalente do

processamento da informação e pela perspectiva experiencial a cada uma delas. O

procedimento evidenciou que a pesquisa convencional negligenciava importantes aspectos da

experiência de consumo, em especial sua natureza simbólica, hedônica e estética. A agregação

da visão experiencial aos estudos do comportamento do consumidor, portanto, fazia-se

necessária para a compreensão dos estados emocionais que surgem durante o consumo

(HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1982).

Desde então, diversas pesquisas procuraram aprofundar o entendimento sobre esse

aspecto experiencial do consumo, investigando como diferentes tipos de emoções e

sentimentos se relacionam ao processo de consumo, sua influência sobre a decisão de compra,

seu desencadeamento durante a ou como consequência da aquisição, seus impactos sobre a

avaliação dos consumidores etc. Por exemplo, a experiência de consumo tem sido ligada à

esperança (MACINNIS e DE MELLO, 2005), ao hedonismo (HIRSCHMAN e HOLBROOK,

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1982; O'SHAUGHNESSY e O'SHAUGHNESSY, 2002), à nostalgia (HOLBROOK, 1993),

ao amor (AHUVIA, 2005), ao sagrado (BELK, WALLENDORF e SHERRY, 1989), ao

fascínio (BELK, 2004), ao afeto (EREVELLES, 1998), à inveja (BELK, 1997) e ao desejo

(ELLIOTT, 1997; BELK, GER e ASKEGAARD, 2003). No que se refere à categoria de

consumo investigada nesta dissertação, é possível destacar não só a pesquisa de Belk, Ger e

Askegaard (2003), mas também as de Chitturi, Raghunathan e Mahajan (2008), Desmet,

Hekkert e Jacobs (2000) e Luce (1998), que abordaram sentimentos e emoções envolvidos no

consumo de automóveis.

O artigo de Belk, Ger e Askegaard (2003) se baseia nas experiências de ansiar por e

fantasiar sobre determinados bens vivenciadas cotidianamente por consumidores, recaindo o

foco dos autores sobre os pensamentos, sentimentos, emoções e atividades evocadas quando

consumidores de diferentes culturas são instados a refletir sobre o desejo. Os resultados da

pesquisa indicaram que o desejo é sentido como uma emoção muito forte, essencialmente

positiva, mas cuja perseguição pode levar a transgressões das limitações internalizadas sobre

o que é um apropriado comportamento social. Além disso, mesmo tendo cultivação interna,

desejos são altamente influenciados por fatores externos, como propagandas, filmes, televisão

e, principalmente, interações com parentes, amigos, colegas de trabalho etc. Essa natureza

social do desejo implica a não independência das preferências do consumidor. Nesse sentido,

a atração que um objeto exerce sobre alguém não seria explicada por suas características

intrínsecas (funcionalidade, desempenho, beleza etc.), mas sim pelas esperanças do

consumidor no potencial desse objeto como viabilizador de relações e aceitação em

sociedade.

No estudo ainda sobressaíram alguns bens e experiências como objetos de desejo por

excelência: carros, barcos, férias, casas bonitas, comer bem e marcas de luxo mundiais. Isso

apontaria para a existência de uma cultura de consumo globalizada, com um imaginário

comum quanto à base material do que seria uma boa vida de consumo. O carro,

especificamente, pode despertar emoções tão fortes que chegam a ser expressas como

sensações corporais tal qual a descrita por um entrevistado: "Eu queria tanto aquele carro que

eu podia sentir seu gosto!" (BELK, GER e ASKEGAARD, 2003, p. 333, tradução nossa).

Luce (1998) também atenta para as emoções despertadas por automóveis em seu

estudo sobre processo decisório. A autora se utiliza da categoria para fazer experimentos

baseados no framework teórico por ela proposto para a melhor compreensão do modo com

que os consumidores lidam com decisões carregadas de emoção, em especial as opções de

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enfrentamento da situação por meio do evitamento de emoções negativas. Os resultados

obtidos indicam que: a dificuldade de fazer trade-off, em meio à necessidade de tomar uma

decisão, aumenta a emoção negativa na ausência de uma opção de evitamento; e que a escolha

de manter o status quo, que é uma opção de evitamento, aumenta com a dificuldade de fazer o

trade-off. De acordo com a autora, categorias de produto como carro e seguro de vida

consistentemente envolvem trade-offs entre atributos ligados a objetivos altamente

valorizados (segurança física, estabilidade financeira), de tal forma que as decisões de

consumo relacionadas a elas podem seguramente ser associadas com emoções negativas. O

principal problema é a possibilidade de fazer uma escolha não ótima (suboptimal choice), que

leve a resultados negativos, arrependimento e culpa.

Desmet, Hekkert e Jacobs (2000) também investigam essa capacidade dos carros de

despertar emoções. Porém, diferentemente de Luce (1998), mais preocupada com o papel das

emoções negativas no processo decisório, estes autores se propõem a apresentar um

instrumento de medição de emoções, positivas e negativas, geradas pela aparência dos

produtos, a Product Emotion Measure. Essa ferramenta se baseia no autorrelato dos

respondentes a partir de dezoito animações de um personagem de desenho animado e é

utilizada em um estudo empírico para medir as emoções provocadas por diferentes modelos

de carros. Embora seja uma pesquisa exploratória, os resultados mostraram que os diferentes

veículos desencadearam emoções mistas de duas formas: no mesmo indivíduo e entre

indivíduos distintos. No primeiro caso, quando se deparam com um carro, as pessoas se

deparam com variadas combinações de emoções (escolheram mais de uma emoção pra

explicar o que sentiam), o que é explicado pela natureza complexa dos produtos, sendo que

diferentes aspectos do seu design podem provocar reações distintas. No segundo caso, como

reações emocionais são pessoais, diferentes pessoas podem exprimir reações diversas a um

mesmo estímulo, o que está vinculado ao tipo de preocupação prévia que ela tem com a

obtenção de determinado produto, como exibição de status ou sentimento de segurança.

Pode-se dizer que essas preocupações prévias dos indivíduos com status ou segurança

guardam relação, respectivamente, com os objetivos de promoção e prevenção oriundos da

chamada Teoria do Foco Regulatório2 (HIGGINS, 1997; 2000). Tais conceitos, em conjunto

com outros desenvolvidos sobre benefícios hedônicos e utilitaristas do consumo, bem como

2 Objetivos de prevenção são aqueles que devem ser cumpridos, como "se comportar de uma maneira segura e

protegida" e "ser responsável", e eliminam ou reduzem significativamente a probabilidade de uma experiência

dolorosa. Objetivos de promoção são aqueles que as pessoas aspiram atender, como "parecer bacana" e "ser

sofisticado", e aumentam a probabilidade de uma experiência prazerosa (Higgins, 1997; 2000).

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sobre satisfação e encantamento do cliente, formam o arcabouço teórico do framework

conceitual proposto por Chitturi, Raghunathan e Mahajan (2008) acerca do papel dos

benefícios hedônicos e utilitaristas na evocação de vários tipos de emoções positivas e

negativas pós-consumo. A partir da constatação de que elevados níveis de satisfação não são

suficientes para garantir elevada fidelidade, os autores se propõem a investigar a relação entre

os benefícios – hedônicos vs. utilitaristas – do design de produtos e os sentimentos pós-

consumo de satisfação e encantamento dos clientes. Também no estudo desses autores a

categoria de produto "automóvel" (além de celular e laptop) será utilizada para testar a

proposição teórica.

Os achados primários da pesquisa indicam que: produtos que atendem ou superam as

necessidades utilitárias dos clientes e cumprem os objetivos de prevenção melhoram a

satisfação do cliente (por exemplo, um carro com freios ABS e controle de estabilidade); e

produtos que atendem ou superam os desejos hedônicos dos clientes e cumprem os objetivos

de promoção aumentam o encantamento do cliente (por exemplo, um carro com teto solar

panorâmico e sistema de áudio sixspeaker). Além disso, a pesquisa constata que os

sentimentos primários antecedentes da satisfação são as emoções de prevenção de confiança e

segurança proporcionadas pelos benefícios utilitários, enquanto que os sentimentos primários

antecedentes do encantamento são as emoções de promoção de contentamento e excitação

proporcionadas pelos benefícios hedônicos. Finalmente, os resultados mostram que encantar

os clientes melhora sua fidelidade, medida pelo boca-a-boca e pelas intenções de recompra,

mais do que apenas satisfazê-los.

Conforme extenso levantamento feito por Suarez (2010), são numerosos e

diversificados os estudos que envolvem o consumo da categoria de produto automóvel, seja

nas áreas de Marketing e Comportamento do Consumidor ou outras afins. Ante todo o

exposto, é possível perceber que o carro é um bem de consumo que: detém intensa carga

simbólica, possibilitando associações variadas de imagens com seus proprietários; é capaz de

despertar emoções diversas, ora sendo objeto de grande devoção, ora ocasionando

sentimentos conflitantes no processo decisório; pode satisfazer ou encantar consumidores,

dependendo da capacidade do modelo em atender os diferentes objetivos que movem os

compradores; e pode envolver forte interferência de grupos de referência na decisão de

compra, tendo em visto a natureza social do desejo. Na próxima sessão, será dada maior

atenção a essa questão dos grupos de referência, por meio de uma revisão da literatura

produzida sobre a família e sua influência nos hábitos de consumo.

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2.2 FAMÍLIA COMO AGENTE DE INFLUÊNCIA

Os seres humanos possuem uma natureza social: vivem e interagem cotidianamente

em diversas esferas de relacionamento interpessoal, fazem parte de grupos, tentam agradar

aos outros e seguem padrões de conduta a partir da observação de ações alheias (SASTRE,

SERRALVO e MORAS, 2010; SOLOMON, 2011). Nesse contexto, o consumo de produtos,

serviços e marcas emerge como importante forma de interação social, segundo Sastre,

Serralvo e Moras (2010). Como consequência, o comportamento dos consumidores

dificilmente será indiferente à influência de pessoas com quem eles se relacionam direta ou

indiretamente. Tal compreensão é compartilhada por Solomon (2011), para quem o desejo de

conformidade ou identificação com indivíduos ou grupos chega a ser a primeira motivação de

algumas pessoas para muitas de suas compras e atividades.

Esses terceiros capazes de exercer influência sobre o comportamento das pessoas são

justamente quem caracterizam o chamado grupo de referência. Park e Lessig (1977, p. 102,

tradução nossa) definem um grupo de referência como "um indivíduo ou grupo, real ou

imaginário, concebido como tendo relevância significativa para as avaliações, aspirações ou

comportamento de um indivíduo". Inserem-se nesse conceito: artistas, atletas, bandas de

música, colegas de escola ou trabalho, comunidades de marca (MCALEXANDER,

SCHOUTEN e KOENIG, 2002), familiares, institutos de pesquisa, jornalistas, médicos,

políticos, revistas especializadas, tribos de consumidores3 (COVA e COVA, 2002) etc.

Segundo Park e Lessig (1977) e Bearden e Etzel (1982), são três os tipos de influência

que os grupos de referência exercem sobre os consumidores: informacional, utilitária e

expressiva de valor. A influência informacional é baseada no desejo de tomar decisões

fundamentadas. Para tanto, a pessoa buscará ou aceitará as recomendações feitas por terceiros

com experiência reconhecida ou conhecimento especializado sobre o produto ou serviço. Já a

influência utilitária reflete uma conformidade das decisões de compra do indivíduo às

preferências de outrem, como meio de atender suas expectativas e assim conseguir possíveis

recompensas ou evitar imagináveis punições. A influência expressiva de valor, por sua vez, é

caracterizada pela aceitação de sugestões alheias em virtude de um desejo do consumidor de

ver a própria imagem associada com as características expressas pelo grupo de referência ou

3 Apesar de afirmarem que as tribos não sejam diretamente comparáveis aos grupos de referência, Cova e Cova

(2002) defendem que esses grupos têm relevante poder de afetar e influenciar os comportamentos das pessoas

que os compõem, o que não confronta a definição de Park e Lessig (1997). Além disso, Solomon (2011) também

inclui as tribos de consumidores entre os tipos de grupos de referência.

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41

de um simples sentimento seu de afeição ou simpatia pelo mesmo (PARK e LESSIG, 1977;

BEARDEN e ETZEL, 1982).

Todavia, uma tentativa posterior de validação de escala feita por Bearden, Netemeyer

e Teel (1989) indicou que as percepções dos consumidores quanto às influências utilitária e

expressiva de valor eram difíceis de distinguir empiricamente. De acordo com Childers e Rao

(1992), essas duas concepções aparentam representar a noção de influência normativa e talvez

pudessem ser combinadas. Com efeito, essa função normativa está associada a referentes

como pais, professores e pares (amigos, colegas de trabalho, vizinhos), que transmitem

normas, valores e atitudes, por meio de uma interação direta, ajudando a estabelecer e a

reforçar padrões fundamentais de conduta e afetando uma gama mais ampla de decisões de

consumo (KELLEY, 1952; CHILDERS e RAO, 1992; SOLOMON, 2011).

A família, assim, destaca-se como um grupo de referência normativa. Já em outra

tipologia, proposta por Blackwell, Miniard e Engel (2005 apud SASTRE, SERRALVO e

MORAS, 2010), a família é citada como o principal exemplo de grupo de referência primário,

classificação que abriga aqueles de maior impacto e maior influência, nos quais a interação

entre os participantes ocorre com frequência, frente a frente ou não. Os grupos primários

ainda se caracterizam pelo compartilhamento de valores, crenças e comportamentos e por uma

coesão que leva seus integrantes a valorizarem as normas e opiniões do grupo.

Não por acaso Commuri e Gentry (2000) afirmam que talvez um dos campos mais

estudados sobre o comportamento de consumo da família seja a influência dos membros da

família no consumo individual. Dentro desse contexto, algumas áreas objeto de investigação

foram a influência intergeracional e a família como grupo de referência (MOORE-SHAY e

LUTZ, 1988; CHILDERS e RAO, 1992). Já no que se refere à influência dos membros da

família no processo decisório coletivo, Commuri e Gentry (2000) ressaltam a considerável

atenção que o conceito de influência relativa recebeu da literatura. Belch e Willis (2002), por

exemplo, investigaram os impactos das mudanças na estrutura da família sobre as influências

relativas do casal na tomada de decisão familiar.

De acordo com Moore, Wilkie e Lutz (2002, p. 17, tradução nossa), o conceito de

influência intergeracional "refere-se à transmissão de informações, crenças e recursos, dentro

da família, de uma geração para a seguinte", sendo um mecanismo fundamental para a

manutenção da cultura ao longo do tempo. Para investigar o papel desse tipo de influência na

formação de atitudes e crenças dos consumidores com relação ao mercado, o estudo de

Moore-Shay e Lutz (1988) abordou as interações diádicas entre mães e filhas com base em

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um modelo de coorientação. Esse modelo visava examinar os níveis de concordância e de

precisão das respostas dos pares a algumas proposições, indicando, respectivamente, a

extensão da transferência intergeracional e a efetividade da comunicação subjacente. Ao todo,

49 estudantes universitárias e respectivas mães preencheram questionários nos quais relataram

as próprias preferências por marcas, regras de escolha e crenças quanto ao funcionamento do

mercado (relação preço-qualidade, nível de conhecimento dos vendedores etc.), bem como

estimaram as de seu par. Os resultados da pesquisa indicaram que mães e filhas

provavelmente compartilham mais preferências por marcas e estratégias de compras do que

crenças abstratas sobre o mercado e também que o sentido da influência entre gerações é

primariamente dos pais para os filhos.

Childers e Rao (1992) replicaram e estenderam o modelo de Bearden e Etzel (1982)

sobre a influência de grupos de referência nas decisões de compra dos indivíduos sobre

produtos e marcas, com o propósito de avaliar sua validade ao longo do tempo e em diferentes

contextos culturais. Para tanto, questionários abordando a influência de pares não familiares

(amigos, colegas de trabalho, vizinhos) sobre as decisões de consumo, bem como sua variação

em função de o produto ser consumido pública ou privadamente ou de ser considerado um

luxo ou uma necessidade, foram respondidos por 196 norte-americanos e 149 tailandeses

participantes de associações Alumni de programas de MBA e integrantes de famílias

nucleares e estendidas4, respectivamente. Além disso, a influência de membros da família foi

abordada por meio de um exame das influências intergeracionais, mais especificamente da

transferência de lealdade à marca.

Os resultados do estudo não somente deram suporte ao framework teórico original

como também proporcionaram insights sobre como a influência do grupo de referência pode

variar conforme seja exercida por pares ou pela família. Em essência, a influência de pares é

relativamente maior para produtos de consumo público e de luxo, e as decisões de consumo

referentes a produtos menos conspícuos (de consumo privado ou necessidades) estão mais

sujeitas à influência dos membros da família. A pesquisa ainda indicou diferenças na

influência exercida por pares de acordo com o tipo de família: em famílias nucleares, o grau

com que um indivíduo é influenciado por pares parece ser significativamente maior para

produtos e marcas consumidos publicamente, o que não ocorre em famílias estendidas. Isso

provavelmente ocorre porque, em famílias nucleares, o número de membros familiares

4 Uma típica família nuclear compreende dois cônjuges e um pequeno número de crianças. Já famílias estendidas

normalmente abrigam uma figura patriarcal ou matriarcal e numerosos filhos adultos, que podem ter seus

próprios cônjuges e descendentes (CHILDERS e RAO, 1992).

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imediatos é limitado, enquanto em família estendidas são numerosos os familiares capazes de

exercer influência na tomada de decisão do indivíduo (CHILDERS e RAO, 1992).

Voltando-se para a influência dos membros da família no consumo coletivo, Belch e

Willis (2002) realizaram uma pesquisa com 458 homens e mulheres (229 casais), para

examinar se os achados de estudos das décadas de 1970 e 1980, a respeito das influências

relativas de maridos e esposas sobre a tomada de decisão familiar, permaneciam

generalizáveis. Os questionários aplicados buscavam obter informações sobre a influência de

cada membro em três etapas do processo de decisão (iniciação, pesquisa e avaliação e decisão

final) e também em áreas específicas de decisão (quando e onde comprar, quanto gastar,

marca etc.) relativas a sete produtos e serviços. De acordo com os autores, os resultados

sugerem que houve mudanças significativas nos papéis assumidos no processo decisório

familiar, com destaque para a compra do automóvel, um produto anteriormente dominado

pelo marido: as mulheres ganharam mais influência na maioria das áreas de tomada de

decisão, sendo que o ganho foi significativamente maior na fase de iniciação do processo

decisório, embora elas também tenham aumentado sua influência na etapa de pesquisa e

avaliação e na decisão final.

Não são somente Commuri e Gentry (2000), porém, que percebem como o tópico da

influência familiar tem sido objeto de diversos estudos do consumidor. Para Epp e Price

(2008), a pesquisa do consumidor da família tem sido dominada por uma preocupação com a

forma pela qual os indivíduos influenciam e orquestram o consumo das famílias, geralmente

enfatizando como negociam a alocação de recursos dentro de uma família e como influenciam

outros membros da família (COMMURI e GENTRY, 2005; MOORE, WILKIE e LUTZ,

2002). Nesse domínio, as autoras ainda incluem alguns trabalhos investigando o modo com

que indivíduos representam a família na condição de self5 estendido e os diferentes níveis de

persuasão que consumidores sofrem conforme tenham uma autoimagem independente ou

definida em função de relações interpessoais (TIAN e BELK, 2005; AAKER e LEE, 2001).

A pesquisa de Commuri e Gentry (2005) procurou demonstrar a inadequação das

perspectivas teóricas dominantes sobre a tomada de decisão familiar aos domicílios nos quais

a renda da mulher é superior à do marido. De acordo com os autores, a falha dessas teorias

poderia estar em sua presunção de que todos os recursos são postos em um fundo comum.

5 Optou-se por não traduzir o termo self, tendo em vista que a busca de uma tradução adequada per se já

configura uma investigação à parte. Conforme levantamento de Souza e Gomes (2005), nas traduções para a

língua portuguesa no Brasil, self não tem sido traduzido, não obstante seja possível encontrar as traduções

"consciência", "eu" e "si" em publicações de Portugal.

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Sendo assim, dois estudos foram empreendidos para investigar a alocação de recursos dentro

das famílias. O primeiro revelou que, embora dispusessem de fundos conjuntos para cobrir

despesas de rotina, lares chefiados6 por mulheres também adotavam fundos segregados

capazes de ofuscar as diferenças salariais e de permitir a representação de papéis semelhantes

aos de domicílios chefiados por homens. Um mecanismo encontrado para o marido figurar o

bom provedor, a despeito da primazia econômica da mulher, consistia em ligar uma despesa

carregada de significado simbólico (parcela da hipoteca, por exemplo) ao seu fundo

individual. O segundo estudo comparou lares chefiados por mulheres e por maridos e deu

suporte adicional aos achados do primeiro quanto ao uso de múltiplos fundos como

ferramenta que possibilita aos casais lidar com as implicações idiossincráticas de a esposa ser

melhor remunerada que o marido.

Moore, Wilkie e Lutz (2002) também conduziram uma investigação composta por dois

estudos, porém com o objetivo de examinar a relação entre as influências intergeracionais e o

brand equity7. O primeiro estudo, que foi construído a partir de uma survey junto a 102 pares

de mães e filhas, para isolar e quantificar os impactos intergeracionais sobre o brand equity,

revelou que estes são persistentes e poderosos para uma variedade de bens de consumo. No

entanto, seus efeitos são seletivos: parecem beneficiar fortemente algumas marcas, mas outras

não. No segundo estudo, os autores procuraram entender mais profundamente a natureza

desses efeitos, por meio de entrevistas em profundidade com 25 estudantes universitárias,

tanto no ambiente do lar como em ocasiões de compras, utilizando a abordagem da história de

vida. Entre os achados de pesquisa, sobressaem algumas formas de manifestação das

interferências geracionais na vida dos consumidores (reação condicionada pela repetição,

mecanismo de evitamento de riscos, meio de vínculo emocional etc.), alguns fatores de seu

desenvolvimento (grande número de episódios de consumo, longos períodos de tempo,

negociações e adequações para refletir preferências pessoais etc.) e algumas forças

sustentadoras e enfraquecedoras de tais influências na idade adulta (desejo de manutenção da

autoidentidade, fornecimento de produtos pelos pais, novas influências de cônjuges e colegas

de quarto, restrição de renda etc.).

Já Tian e Belk (2005), constatando uma presença mais evidente de objetos

relacionados à vida pessoal, ao lar e à família no local de trabalho, desenvolveram um estudo

sobre os significados desses bens exibidos como extensões do self. Foram entrevistados

6 O termo chefiado aqui se refere exclusivamente ao cônjuge com maior rendimento no lar. 7 Representa o valor adicional atribuído a um produto ou serviço como resultado de esforços e investimentos de

marketing (MOORE, WILKIE e LUTZ, 2002).

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dezessete funcionários de uma empresa de tecnologia, previamente instruídos a fotografar

doze objetos que tivessem importância para eles em seus ambientes de trabalho. A formulação

das perguntas se preocupou em conduzir ao compartilhamento das experiências e associações

relativas às posses exibidas, que incluíram tanto extensões funcionais de um self próprio do

trabalho, voltadas para a melhoria de desempenho (laptops) ou a inibição de interações

distrativas (fones de ouvido), quanto extensões primariamente relacionadas a um self da casa,

voltadas a sensações do passado (souvenires de férias) e do futuro (sonhos de consumo), à

brincadeira (pequenas coleções, bolas) e à família (retratos familiares, desenhos de criança,

fotos de animais de estimação, presentes dados por parentes).

De acordo com os autores, os achados do estudo sugerem extensões para o conceito de

self estendido, como a compreensão de que, ao invés de formarem um todo integrado, os

selves da casa e do trabalho costumam competir, procurando se impor um no domínio físico

do outro. O grau com que extensões do self não relacionado ao trabalho (relativos à vida

pessoal, ao lar ou à família, por exemplo) são reveladas ou escondidas no local de trabalho

reflete uma negociação da fronteira casa-trabalho e a visão de que aspectos da identidade e da

vida pertencem a cada domínio. Além disso, pressão dos pares e preocupações da corporação

com a própria imagem também ajudam a estabelecer limites para o grau de representações

pessoais no local de trabalho (TIAN e BELK, 2005).

Outro conceito relacionado ao self é o de autoimagem8, que expressa a percepção que

uma pessoa tem de si, podendo ser independente ou interdependente (GOUVEIA et al, 2005).

Um indivíduo com autoimagem independente se vê e define com base em atributos internos e

características únicas que o distinguem dos outros (inteligente, agressivo etc.), enquanto

alguém com autoimagem interdependente se percebe e define em função de relações

interpessoais (pai de família, bom amigo etc.). Tais noções, oriundas da psicologia social,

serão relacionadas por Aaker e Lee (2001) aos conceitos de objetivos de promoção e

prevenção9 da Teoria do Foco Regulatório (HIGGINS, 1997; 2000), para estudar o impacto

persuasivo de diferentes mensagens sobre os consumidores e o processamento de informação

subjacente.

O estudo foi realizado a partir de quatro experimentos, que envolveram um total de

551 estudantes de universidades nos Estados Unidos e na China (refletindo diferenças

8 De acordo com Gouveia et al (2005), o termo autoimagem é utilizado no Brasil como tradução para o termo

inglês self-construal. 9 Ver nota 2, à pág. 38.

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culturais de individualismo e coletivismo), bem como simulações de situações que

estimulavam o pensamento individual ou em termos de equipe. Os resultados demonstraram

que as distintas visões do self encorajam diferentes perspectivas sobre a busca dos objetivos

do foco regulatório: para os indivíduos com autoimagem independente, a informação focada

na promoção (fornece mais energia) levou a atitudes mais positivas em relação a um website e

a níveis mais elevados de afinidade com a marca do que informações focadas em prevenção

(evita doenças), ocorrendo o inverso para indivíduos com autoimagem interdependente. Além

disso, a compatibilidade entre o apelo persuasivo da mensagem e o foco regulatório da pessoa

faz com que esta demonstre maior recordação do seu conteúdo e seja mais exigente quanto à

força de argumento, o que pode ser explicado pelos processamentos mais elaborados que

ocorrem quando a informação é compatível com autoimagem do indivíduo (AAKER e LEE,

2001).

A despeito da importância desses e de outros estudos sobre a influência da família nos

hábitos e decisões de consumo dos indivíduos, Epp e Price (2008) entendem que as teorias,

questões de pesquisa e métodos correntes no domínio do consumo da família têm falhado em

abordá-lo como um empreendimento verdadeiramente coletivo. Mais que isso, estaria sendo

completamente ignorado o fato de que as famílias abrigam uma série de identidades que

coexistem e interagem nas experiências cotidianas, que se envolvem em práticas de consumo

complementares e concorrentes e que afetam as decisões coletivas: a identidade coletiva da

família como um todo; as identidades relacionais de grupos menores no seu interior (casal,

irmãos, pai-filho); e as identidades individuais de seus membros. Cabe destacar que, para as

autoras, a identidade familiar é resultado das interações compartilhadas entre esses

subconjuntos ou faixas de identidade, isto é, não se trata de um conceito pronto nas mentes

das pessoas, mas de algo co-construído em ação. Como consequência, a unidade de análise do

consumidor deveria se afastar de medidas internas do indivíduo para focar as práticas

comunicativas (atividades de consumo simbólico, por exemplo) que constituem e delimitam a

identidade coletiva, tanto para os membros da família quanto para terceiros (EPP e PRICE,

2008). A Figura 2 a seguir traz o framework concebido pelas autoras:

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Figura 2: Framework da Interação entre Identidades nas Práticas de Consumo. Fonte: Adaptado de Epp e Price

(2008, p.52).

Por esse framework, as formas de comunicação a que as famílias recorrem para

gerenciar as interações entre as representações de identidades individuais, relacionais e

coletivas incluem rituais, narrativas, dramas sociais, interações cotidianas e transferências

intergeracionais. Essas práticas comunicativas, por sua vez, podem lançar mão de recursos

simbólicos de mercado, como marcas, objetos, atividades e serviços. Segundo as autoras,

objetos e atividades de consumo podem servir como acessórios fundamentais ou verdadeiras

muletas para haver uma interação familiar (EPP e PRICE, 2008). Esse entendimento, de certa

forma, está em sintonia com a interpretação de Belk (2004) a respeito do aspecto de

socialização presente nas atividades de cuidado com o carro, tendo em vista o envolvimento

conjunto de pais e filhos.

Ainda, o framework prevê alguns moderadores do processo de gerenciamento de

identidades por meio de atividades de consumo: o grau de adaptabilidade das famílias quanto

a formas de comunicação e símbolos; os níveis de concordância dos membros da família

quanto à identidade coletiva e de seu comprometimento em manter determinadas

representações; a medida da sinergia entre a identidade familiar e as identidades individuais e

relacionais; rupturas e transições que desafiam práticas de identidade, bem como a forma com

que a família utilizará recursos do mercado para responder a essas perturbações; barreiras

Faixas de Identidade

Familiar

Família

Relacional

Individual

Recursos Simbólicos de

Mercado

Marcas

Objetos

Atividades

Serviços

Moderadores

Adaptabilidade das Formas de Comunicação

Concordância dos Membros

Comprometimento dos Membros

Sinergia (Dissonância) entre as Faixas de Identidade

Rupturas e Transições

Barreiras à Representação

Necessidades de Identidade Contextuais

Formas de Comunicação

Narrativas

Rituais

Dramas Sociais

Interações Cotidianas

Transferências

Intergeracionais

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iniciais e correntes à representação identitária; e respostas contextuais para o fluido de

necessidades das identidades individuais, relacionais e familiar.

Algumas colocações de Epp e Price (2008) acerca dos moderadores acima merecem

atenção especial, em virtude de potenciais desdobramentos sobre o processo de

endividamento, que será objeto da seção seguinte. Quando abordando a sinergia entre os

diferentes tipos de identidade, por exemplo, as autoras questionam se objetos de consumo que

tenham uma relação simbólica e/ou uma associação especial com diversas identidades

relacionais (em oposição àqueles que são valorizados por uma ou poucas identidades) são

mais propensos a serem vistos como insubstituíveis ou inalienáveis. Caso um carro financiado

se enquadre nessa situação, pode ser difícil para a família desfazer-se do bem, ainda que o

endividamento atrelado pese em sua renda.

Com efeito, a própria aquisição de um automóvel por meio de financiamento pode ser

entendida como um evento de ruptura na identidade da família, ainda que desejado ou

planejado, assim como um casamento, o nascimento de uma criança e a compra de uma casa

nova (EPP e PRICE, 2008). Outras rupturas, no entanto, são menos previsíveis ou desejáveis,

como divórcio, doença grave e desemprego, e podem afetar as "programadas",

comprometendo a capacidade de pagamento. A esse respeito, Bolea (2000 apud EPP e

PRICE, 2008, p. 58) afirma que os testes a que a família resiste, bem como as maneiras com

que ela responde às mudanças para garantir sua sobrevivência tornam-se parte fundamental de

sua identidade coletiva. Epp e Price (2008) também percebem em eventos críticos e não

planejados desse gênero possíveis pontos de transição capazes de estimular mudanças

imediatas na identidade familiar. Apesar disso, as autoras afirmam que são poucos os estudos

do consumidor que conectam os desafios enfrentados pela identidade da família durante esses

momentos de transição e o comportamento de consumo associado em que ela irá se envolver

para restaurar, manter ou reconstruir seu sentido de família.

Já com relação às barreiras do mercado que restringem as práticas de construção de

identidade, Epp e Price (2008) identifica que a falta de recursos financeiros pode impedir que

a família represente suas identidades nas formas que deseja, levando a uma redefinição

forçada da identidade familiar. Um exemplo dado pelas autoras de atividade de consumo

central para representações da identidade familiar e que pode ser inviabilizada por restrições

financeiras é a viagem de férias. E então as pesquisadoras questionam que estratégias

orientadas ao consumo as famílias poderiam usar para superar essas barreiras. Nesse sentido,

talvez o fenômeno do endividamento possa ser compreendido como um mecanismo utilizado

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para antecipar o consumo de um bem tido como fundamental para a construção da identidade

da família, porém fora dos limites orçamentários correntes. Não é difícil vislumbrar como o

acesso que uma família tem a bens materiais, comparado ao de outras famílias, pode moldar

sua identidade coletiva (EPP e PRICE, 2008), com impacto nas práticas de consumo.

2.3 O PROCESSO DE ENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR

A aquisição de marcadores de consumo que sinalizam uma boa vida pode ser

considerada condição sine qua non para a participação na cultura de consumo, sendo difícil

que se faça qualquer exagero sobre a importância do endividamento dos consumidores para a

busca desse estilo de vida (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005). Com efeito, o crédito

se tornou um expediente comum ao qual consumidores recorrem para adquirir bens; gerenciar

esse recurso, porém, pode ser problemático para alguns deles (MENDOZA e PRACEJUS,

1997). Para Hill (1994), uma consequência adversa do uso ampliado do crédito são os

problemas do consumidor com a gestão do débito. Quando o crédito obtido supera a

capacidade de pagamento do indivíduo, ele acaba acumulando dívida e fica sujeito não

somente a sérias consequências financeiras, mas também a um estigma social de

irresponsável, autocondescendente e impaciente (LIVINGSTONE e LUNT, 1992).

Em face desses desdobramentos negativos e possivelmente duradouros, Mendoza e

Pracejus (1997) ressaltam a importância de investigar os antecedentes do uso excessivo do

crédito, o que teria sido contemplado na literatura por meio de alguns trabalhos nas áreas de

política do consumidor (DESSART e KUYLEN, 1986) e de psicologia econômica

(LIVINGSTONE e LUNT, 1992, 1993; TOKUNAGA, 1993), preocupados com a

identificação de características dos consumidores com potencial para acumular dívidas em

geral. No âmbito da psicologia econômica, especificamente, a investigação sobre

endividamento teve início em 1975, com a publicação de Psychological Economics, por

George Katona (DAVIES e LEA, 1995), que listou três razões para um indivíduo gastar mais

do que ganha: baixa renda, insuficiente para cobrir até despesas essenciais; alta renda

combinada com um forte desejo de gastar; e falta de vontade de economizar,

independentemente da renda. Com essa lista, Katona (1975) inseriu motivações psicológicas e

comportamentais na abordagem da origem dos problemas com crédito, não restringindo suas

explicações a circunstâncias econômicas adversas.

O estudo de Dessart e Kuylen (1986) concluiu que o perfil das famílias mais propensas

a ter excesso de dívidas era o de locatários (sem casa própria), com filhos entre sete e dezoito

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anos e com saldos em aberto junto a diferentes empresas. Uma variável individual

identificada pelos autores que desfavorece a predisposição ao endividamento é o locus de

controle10

interno: "quanto mais os devedores sentem que podem controlar suas vidas e as

coisas ao seu redor, menos provável é que eles entrem em dificuldades financeiras"

(DESSART e KUYLEN, 1986, p. 320, tradução nossa). Os pesquisadores ainda sugeriram

alguns fatores que contribuem para o problema da dívida, como a falta de compreensão das

consequências de transações financeiras, o crédito facilmente acessível e a falta de

competências de gestão do dinheiro (DESSART e KUYLEN, 1986).

Já o estudo de Livingstone e Lunt (1992) utilizou medidas individuais de atitude para

identificar devedores problemáticos. De acordo com os autores, devedores tendem a manter

atitudes um tanto favoráveis ao crédito e ao débito, especialmente pela possibilidade de

acesso imediato a bens cuja compra, de outra forma, teria de ser adiada. Além disso, os

pesquisadores também identificaram fatores demográficos e econômicos que diferenciavam

devedores e não devedores: a classe social tinha uma relação negativa com a dívida, enquanto

a renda disponível era positivamente relacionada com o débito. Ainda, o número absoluto de

dívidas de uma pessoa era positivamente relacionado com o nível global de endividamento.

Em outra pesquisa, Livingstone e Lunt (1993) relataram que as estratégias financeiras

de poupadores e tomadores de empréstimos não eram necessariamente excludentes entre si, a

despeito de as concepções estereotipadas de um grupo e outro sugerirem que seus

comportamentos tinham diferentes motivações e consequências. Na verdade, esses

pesquisadores encontraram um número considerável de respondentes que possuíam,

simultaneamente, dívida e poupança.

O perfil psicológico das pessoas em problema com dívidas ainda foi estudado a partir

da perspectiva da teoria da dependência: Tokunaga (1993) supôs que consumidores com

problemas relacionados ao crédito tinham um perfil psicologicamente semelhante ao de

viciados. O autor descobriu, por exemplo, que locus de controle externo e sentimento de

autoeficácia inferior estão entre as características de pessoas que usam o crédito

excessivamente. De acordo com Tokunaga (1993), esses consumidores veem o dinheiro como

fonte de poder e prestígio e são menos propensos a tomar medidas apropriadas para reter o

seu dinheiro. No entanto, ao contrário das expectativas do pesquisador, os consumidores com

10 Refere-se ao grau com que o indivíduo percebe os acontecimentos como dependentes do seu próprio

comportamento. Aqueles com locus de controle interno acreditam que seu comportamento influencia os eventos,

enquanto aqueles com locus de controlo externo tendem a ver os acontecimentos como sendo resultado do acaso,

do destino ou das ações dos outros (ROTTER, 1966 apud TOKUNAGA, 1993, p. 298).

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problemas de crédito não apresentam níveis mais altos de tomada de risco ou de busca de

sensação, como seria previsto por um modelo de dependência.

Mendonza e Pracejus (1997), já no âmbito da pesquisa do consumidor, procuraram

explorar a relação entre a orientação temporal do indivíduo11

e o uso descomedido do cartão

de crédito, como forma de abordar especificamente o perfil do consumidor com dívida

acumulada nesse meio de pagamento, até então negligenciado pela literatura (MENDOZA e

PRACEJUS, 1997). O nível de utilização do cartão foi medido pelo número de cartões

possuídos, em face da dificuldade para obter outras variáveis, como quantia total da dívida,

valor médio dos pagamentos mensais e a razão entre dívida e renda. Embora os resultados

tenham confirmado que a orientação temporal tem impacto significante sobre a quantidade de

cartões possuída, esse impacto se deu na direção oposta à predita pelos autores: ter uma

orientação temporal futura – e não presente – é que estava associada à posse de mais cartões.

Segundo os pesquisadores, o fato de os respondentes serem estudantes universitários pode

ajudar a explicar o resultado: esses jovens podem ter maiores expectativas que o resto da

população em sua habilidade pagar o débito, vinculadas à crença na obtenção futura de um

bom trabalho após a graduação, por exemplo.

Com relação à dificuldade relatada para obter informações sobre a dívida, Mendoza e

Pracejus (1997) informaram que Lea, Webley e Levine (1993) já haviam observado que a

natureza sensível deste tópico tem algumas vezes impedido uma descrição completa e acurada

das causas e consequências do endividamento excessivo. A despeito da "taxa de resposta

decepcionante" (LEA, WEBLEY e LEVINE, 1993, p. 112, tradução nossa), os autores

afirmaram que resultados da pesquisa sugerem que a dívida é fortemente influenciada por

circunstâncias econômicas adversas, mas que os fatores sociais e psicológicos também são

importantes. Nesse sentido, existiriam condições para o desenvolvimento de uma "cultura da

dívida" autossustentável, já que, em uma sociedade dirigida pelo consumo, estar em débito se

tornou um modo de vida.

A literatura sobre endividamento, porém, não se limita à identificação das

características dos consumidores com dívidas. Segundo Hill (1994), os pesquisadores têm

respondido à necessidade de investigação dos problemas de crédito do consumidor de três

formas principais: além dessas abordagens voltadas ao desenvolvimento de um perfil

11 Diz respeito à tendência de o indivíduo focar a atenção em uma determinada região temporal. Segundo Jones

(1994), uma orientação ao futuro pode ser percebida no hábito de definir objetivos e traçar planos, enquanto uma

orientação ao presente pode ser caracterizada por certa impulsividade e espontaneidade no comportamento.

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psicológico dos consumidores endividados, entre as quais o autor inclui os estudos de

indivíduos caracterizados como impulsivos (ROOK, 1987) ou compulsivos (FABER e

O'GUINN, 1988; O'GUINN e FABER, 1989), tem havido pesquisas focadas nos efeitos do

endividamento sobre o bem-estar dos consumidores (KINSEY e LANE, 1978; LANGREHR e

LANGREHR, 1989; SHEPARD, 1984; SHIERS e WILLIAMSON, 1987; SULLIVAN e

DRECNIK, 1984) e investigações preocupadas com a proteção dos consumidores contra as

soluções oferecidas por credores (LANGREHR e LANGREHR, 1979; FALLS e WORDEN,

1988).

Entretanto, a partir da constatação de que tais pesquisas não teriam examinado

adequadamente a conturbada relação entre agências de cobrança de dívidas e consumidores

endividados, Hill (1994) se propôs a investigar as crenças, sentimentos e comportamentos dos

cobradores e devedores um em relação ao outro. As entrevistas em profundidade revelaram

que cobradores identificam pelo menos dois tipos diferentes de consumidores endividados:

aqueles que são cooperativos ou por recearem as desconhecidas consequências de suas

dívidas estarem sob o cuidado de agências especializadas ou por precisarem liquidar seus

débitos para obter novos créditos para compras maiores, como do carro ou da casa; e os não

cooperativos, que são abertamente confrontadores ou, inversamente, muito solícitos, mas

igualmente sem pretensão de pagar. Pelo lado dos consumidores, o autor conseguiu encontrar

três explicações principais para os problemas financeiros enfrentados: a ocorrência de alguma

tragédia recente que exauriu os recursos da família (doenças graves com tratamentos caros,

por exemplo), a desaceleração da economia com o advento de desemprego, subemprego ou

redução salarial, e a inaptidão para gerenciar o uso do crédito.

Já para Bernthal, Crockett e Rose (2005), a literatura teria falhado em identificar as

práticas que os consumidores empregam para lidar com o endividamento. Sendo assim, os

autores realizaram uma investigação na área da pesquisa do consumidor com foco nas práticas

relacionadas ao cartão de crédito e descobriram que elas podem tanto favorecer o alcance de

objetivos de estilo de vida definidos pelo consumo quanto restringir a capacidade de realizá-

los, esta última situação caracterizando a metáfora da "prisão do devedor", ou seja, uma vida

de enfrentamento das propriedades confinantes da acumulação de dívidas. A Figura 3 a seguir

sintetiza o modelo sugerido pelos pesquisadores:

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Figura 3: Práticas de Consumo com Cartão de Crédito e Movimento entre os Espaços de Estilo de Vida

Socialmente Construídos. Fonte: Adaptado de Bernthal, Crockett e Rose (2005, p.133).

Entre as práticas que caracterizam o espaço do alcance de objetivos estão o uso do

cartão de crédito para a construção ou a sinalização do estilo de vida, como na aquisição de

experiências valorizadas ou de bens que demonstrem ausência de restrições materiais. Já o

espaço da "prisão do devedor" é marcado pela necessidade de lidar com os custos

psicológicos e financeiros do endividamento. Referenciar gastos como necessários e

apropriados, focar o aspecto altruísta do ato de presentear e pagar pouco mais que o valor

mínimo da fatura estão entre as práticas concebidas para proteger psicologicamente o usuário

dos efeitos negativos do acúmulo de dívida sobre seu autoconceito e para justificar o uso

continuado de cartões de crédito, apesar de endividamento elevado. As práticas de

enfrentamento das consequências financeiras visam postergar/evitar o pagamento das

obrigações e a alteração dos padrões correntes de consumo e consistem em uma espécie de

"baralhamento" das dívidas: recursos de um cartão são usados para pagar a conta mais

onerosa de outro, pagamentos são priorizados em função das taxas de juros e empréstimos que

consolidem as dívidas muitas vezes são contratados. Isto é, os endividados encontram formas

de criar um espaço vivível dentro das "muralhas de sua prisão", usando as regras do mercado

em vantagem própria (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005).

O modelo teórico proposto por Bernthal, Crockett e Rose (2005) também informa que

a capacidade de os consumidores se moverem entre esses dois espaços de estilo de vida

Trajetória de

Restrição

Trajetória de

Libertação

"Prisão do Devedor"

O Mercado

Espaços de Estilo de Vida

do Consumidor

Alcance ControleEnfrenta

mento

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(alcance de objetivos vs. "prisão do devedor") é influenciada por características de

autocontrole pessoais. Negar ou postergar a gratificação que acompanha a aquisição e o

consumo pode manter o indivíduo longe do confinamento, ao passo que uma inabilidade de

apresentar autocontrole pode conduzi-lo diretamente para lá. Esses movimentos, denominados

trajetórias de libertação e de restrição, respectivamente, ainda trazem ideologias subjacentes:

uma ideologia de frugalidade é mais evidente entre as pessoas na trajetória de libertação, que

têm maior controle sobre o cartão de crédito e menores níveis de dívida; aqueles na trajetória

da restrição, por sua vez, apresentam sentimentos mais proeminentes de compensação, no

sentido de que se acreditam merecedores de "prêmios" por enfrentarem as dificuldades do dia-

a-dia, utilizando o cartão de crédito como meio legítimo para adquiri-los.

Cohen (2007) também não deixa de notar alguns paradoxos interessantes entre as

práticas daqueles consumidores que fazem rolagem da dívida – que habitariam a metáfora da

"prisão do devedor" sugerida por Bernthal, Crockett e Rose (2005) –, ao abordar o

predomínio do cartão de crédito como sistema de pagamento e suas implicações para a

sustentabilidade no consumo. A autora observa, por exemplo, que esses "roladores" de dívida

devem destinar uma parcela significativa de sua renda mensal ao pagamento de juros e taxas

do cartão de crédito, que é o meio preferencial para ampliar a capacidade de consumo. Ocorre

que, por terem que desviar constantemente uma porcentagem substancial das finanças

familiares para cobrir tais despesas, esses consumidores são forçados a reduzir, em termos

absolutos, o seu consumo no longo prazo (COHEN, 2007).

Independentemente da observação dessas contradições nos níveis de consumo que o

cartão de crédito pode provocar, o principal objetivo de Cohen (2007) é propor uma agenda

para a discussão de mudanças estruturais nas práticas de empréstimo que respondem pela

popularidade desse sistema de pagamento, destacando as ligações entre o crédito ao

consumidor e o consumo sustentável. De acordo com a autora, a prevalência de cartões de

crédito e a acumulação de dívida do consumidor nos países avançados têm sido fatores

importantes para o crescimento econômico. À medida que o hábito comum entre os

consumidores deixa de ser poupar dinheiro para compras futuras e passa a ser antecipar novas

aquisições por meio de endividamento, fica evidenciada para Cohen (2007) a preponderância

do papel do gerenciamento financeiro familiar na capacitação para um consumismo mais

responsável ambiental e socialmente. Segundo a autora, as discussões acerca da

sustentabilidade no consumo têm se restringido a iniciativas com foco em eficiências

materiais e energéticas, que, embora favoreçam notáveis ganhos de curto prazo, tendem no

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longo prazo a ocasionar melhorias aquém das expectativas e efeitos-rebote imprevistos.

Assim, programas de políticas eficazes precisariam reconhecer as dimensões sociais e

financeiras da tomada de decisão do consumidor e se tornar mais atentos ao papel das famílias

como catalisadores da produção (COHEN, 2007).

Cohen (2007) ainda faz um levantamento de pesquisas na área da saúde sugerindo que

a acumulação de níveis insustentáveis de endividamento pode contribuir para a diminuição do

bem-estar no longo prazo (DRENTEA, 2000; DRENTEA e LAVRAKAS, 2000; READING e

REYNOLDS, 2001; JACOBY, 2002; KASSER, 2002; KASSER e KANNER, 2004). Os

achados de tais estudos estabeleceriam um contraponto à percepção de que o uso do crédito

seria psicologicamente fortalecedor, uma vez que o endividamento para o consumo

responderia à necessidade imediata de manutenção da saúde mental, em meio a um ambiente

estimulador de ansiedade pela promoção onipresente de produtos.

Alguns estudos no Brasil também abordaram a questão do endividamento para o

consumo, tanto direta (MOURA, 2005; PONCHIO, 2006) quanto indiretamente (BRUSKY e

FORTUNA, 2002; MATTOSO e ROCHA, 2005). Com relação às razões que motivaram

essas pesquisas, parece ser útil considerar a distinção feita por Lea, Webley e Levine (1993).

De acordo com os autores, são dois os principais tópicos que despertam o interesse nas

pesquisas sobre endividamento: os fatores que levam algumas pessoas a usarem o crédito

mais intensamente que outras; e os fatores que fazem alguns indivíduos entrarem em situações

de dificuldade de pagamento, com a possibilidade de ocasionar acúmulo de dívidas até níveis

impagáveis (LEA, WEBLEY E LEVINE, 1993). Sob essa perspectiva, os estudos de Moura

(2005), Ponchio (2006) e Brusky e Fortuna (2002) aparentam estar mais relacionados ao

primeiro tópico, enquanto a pesquisa de Mattoso e Rocha (2005) parece se aproximar mais do

segundo. Nesse sentido, é possível perceber ainda que a presente dissertação volta seu

interesse para a compreensão do segundo grupo de fatores.

Moura (2005) se propôs a estudar o impacto do materialismo, valor dado aos bens

materiais e às propriedades, na atitude em relação ao endividamento e no nível de dívida para

financiamento do consumo junto a famílias de baixa renda da cidade de São Paulo. As

principais conclusões da autora foram que o materialismo tem efeito direto sobre a atitude ao

endividamento, mas indireto sobre a dívida, e que o efeito mais relevante sobre a dívida vem

da vulnerabilidade das famílias, mas no sentido inverso do esperado, ou seja, quanto menor a

vulnerabilidade, maior o volume de dívida. Uma possível explicação é que, entre os

indivíduos que vivem com baixos rendimentos (a renda compõe a dimensão socioeconômica

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da vulnerabilidade), aqueles com renda relativamente mais alta têm mais acesso ao crédito e,

portanto, mais oportunidades de entrar em acordos de parcelamento do que aqueles com

menor renda (MOURA, 2005).

O estudo de Ponchio (2006) também utilizou o contexto de consumidores de baixa

renda do município de São Paulo para explorar e caracterizar as manifestações do

materialismo e medir seu impacto na contratação de carnês de crediário. Os achados da

pesquisa confirmam a tese de que não apenas fatores econômicos adversos levam as pessoas a

se endividarem (KATONA, 1975; LEA, WEBLEY e LEVINE, 1993) e que o estudo da

demanda por crédito para consumo necessariamente deve testar a influência de variáveis

sociodemográficas e psicológicas. Constatou-se, por exemplo, que o materialismo está

associado à idade (indivíduos mais novos tendem a ser mais materialistas que os mais velhos)

e à educação (adultos analfabetos tendem a ser menos materialistas que adultos tardiamente

alfabetizados, sendo a busca por escolaridade na fase adulta possivelmente motivada por

desejos de melhor empregabilidade, renda e maior participação na sociedade de consumo),

mas não ao gênero ou à renda.

A pesquisa de Brusky e Fortuna (2002), como citado acima, não abordou diretamente,

ou pelo menos não exclusivamente, a questão do endividamento para consumo. Trata-se de

um projeto desenvolvido para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

(BNDES), com o objetivo de proporcionar um maior entendimento sobre a demanda por

microfinanças no País. Com metodologia qualitativa, o estudo foi conduzido nas cidades de

São Paulo e Recife junto a grupos de microempresários, autônomos, assalariados e

desempregados, com renda entre zero e seis salários mínimos. Entre os achados relativos ao

endividamento para consumo, os autores perceberam que, mesmo relatando uma incapacidade

de fazer sobrar dinheiro ao fim do mês, os entrevistados separavam as quantias necessárias

para pagar as prestações de suas compras financiadas ou para cobrir multas e juros dos cartões

de crédito. Esses pagamentos de dívidas, segundo os pesquisadores, podem ser vistos como

"poupança invertida" e mostram a capacidade de fazer sobrar dinheiro, quando é preciso (ou

quando se quer).

A pesquisa de Mattoso e Rocha (2005), por sua vez, procurou investigar a natureza

dos problemas financeiros enfrentados por consumidores pobres, moradores da favela da

Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro, e as estratégias adotadas para o seu enfrentamento. Os

resultados indicaram que as dificuldades vividas originavam-se tipicamente de eventos

inesperados como desemprego, redução ou suspensão de renda, gravidez, divórcio, doença,

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morte e emergências em geral, e que as soluções mais utilizadas para contornar a situação

eram não pagar ou contrair empréstimos. O estudo revelou ainda que, nesse contexto, "ter

nome", que significa, essencialmente, ter acesso a crédito, torna-se um demarcador social a

evidenciar quem está bem financeiramente (e apto a "emprestar o nome", isto é, a abrir um

crediário em seu nome ou a usar o próprio cartão de crédito para fazer as compras de outra

pessoa) e quem está mal e inadimplente (com o "nome sujo", ou seja, listado em cadastros de

devedores, e que precisa "pedir um nome emprestado" para consumir).

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3. METODOLOGIA

Este capítulo tem por objetivo descrever e situar as opções metodológicas da pesquisa

objeto desta dissertação. Inicialmente é exposta a adoção do paradigma interpretativista. Em

seguida, são oferecidas as razões que motivaram a escolha da abordagem exploratória, bem

como da entrevista em profundidade como método qualitativo de coleta de dados e da

aplicação de exercícios projetivos. Além disso, são apresentadas justificativas para a escolha

da categoria de automóveis, como instrumento para estudar o endividamento. As perguntas de

pesquisa, os critérios para seleção dos entrevistados e a proposta de análise das informações

coletadas também integram o presente capítulo, que se encerra com o levantamento de

algumas limitações da metodologia adotada.

3.1 PARADIGMA INTERPRETATIVISTA

Todo pesquisador é guiado por princípios que combinam crenças sobre ontologia,

epistemologia e metodologia (DENZIN e LINCOLN, 2006). Os princípios ontológicos se

referem à compreensão do investigador sobre a natureza do ser humano e da realidade; os

epistemológicos, à relação existente entre o investigador e o conhecido; e os metodológicos, à

forma de o investigador adquirir conhecimento. Esse conjunto de crenças e sentimentos em

relação ao mundo e ao modo como este deveria ser compreendido e estudado, que orienta a

ação do pesquisador, é o que Lincoln e Guba (1985) vão denominar paradigma. Para Patton

(2008, p. 423, tradução nossa) o paradigma "informa aos seus adeptos o que é importante,

legítimo e razoável (...), dizendo o que fazer sem a necessidade de longas considerações

existenciais e epistemológicas". Essa característica dos paradigmas, porém, constituiria tanto

sua força quanto sua fraqueza: eles tornam a ação possível, mas mantêm suas razões

subjacentes ocultas em suposições não questionadas (LINCOLN e GUBA, 1985; PATTON,

2008).

O paradigma adotado neste estudo é o interpretativista, que, segundo Denzin e Lincoln

(2006), supõe uma ontologia relativista (existem múltiplas realidades), uma epistemologia

subjetivista (pesquisador e pesquisado trabalham juntos na criação das compreensões) e um

conjunto naturalista (no mundo natural) de procedimentos metodológicos. De acordo com

Patton (2008), o paradigma interpretativista volta sua atenção para o significado do

comportamento humano, o contexto da interação social e as conexões entre estados subjetivos

e comportamento. Enfatiza-se, assim, a capacidade humana de conhecer e compreender os

outros a partir de introspecção e reflexão baseadas em descrições detalhadas obtidas por meio

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de métodos como observação direta, entrevista aberta e em profundidade e estudo de caso.

Pelo paradigma interpretativista, portanto, a construção do conhecimento decorre da

combinação de diferentes visões sobre um tema; previsibilidade ou leis gerais não são

buscadas, mas sim a diversidade de descrições e interpretações acerca de um mesmo

fenômeno (LINCOLN e GUBA, 1985).

3.2 TIPO DE PESQUISA

De acordo com Malhotra (2006), o objetivo da pesquisa exploratória, como o próprio

nome indica, é explorar determinado problema ou situação, para descobrir ideias e percepções

que possibilitem sua maior compreensão. A abordagem exploratória é especialmente

pertinente quando há pouco ou nenhum conhecimento científico sobre o grupo, processo,

atividade ou situação que se deseja examinar (STEBBINS, 2008) ou quando o conhecimento

sobre o tema na área de estudo é pouco sedimentado (VERGARA, 2005).

Esse parece ser justamente o caso do tema da presente pesquisa na área de estudos de

consumo. Conforme exposto no capítulo de introdução, o tema do endividamento tem

recebido bastante atenção da mídia de massa, além de ter sido investigado por outras áreas do

conhecimento; no âmbito dos estudos de consumo, contudo, o endividamento não tem

conquistado muito espaço.

A opção por um método qualitativo decorre igualmente de sua indicação para explorar

áreas sobre as quais pouco se sabe (STERN, 1980 apud STRAUSS e CORBIN, 2008), sendo

a pesquisa qualitativa uma importante metodologia usada na pesquisa exploratória

(MALHOTRA, 2006). Não por acaso há predominância de dados qualitativos na maioria dos

estudos exploratórios (STEBBINS, 2008).

Além disso, segundo Strauss e Corbin (2008), o uso da pesquisa qualitativa é

motivado sobretudo quando o problema de pesquisa está relacionado ao entendimento dos

significados ou da natureza de experiências vividas pelas pessoas. Isso porque os métodos

qualitativos são úteis para obter detalhes intricados sobre fenômenos como sentimentos,

processos de pensamento e emoções difíceis de extrair ou de descobrir por meio de métodos

de pesquisa mais convencionais (STRAUSS e CORBIN, 2008). A abordagem qualitativa,

portanto, aparenta ser a ideal para a temática do endividamento, cuja natureza sensível

inclusive já acarretou, em pesquisas quantitativas, taxas de resposta desapontadoras (LEA,

WEBLEY e LEVINE, 1993) e dificuldades para obtenção de informações sobre valor total da

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dívida, valor médio dos pagamentos mensais e a proporção entre dívida e renda (MENDOZA

e PRACEJUS, 1997).

Dentre os métodos qualitativos de coleta de dados, a escolha recaiu sobre a entrevista

em profundidade com roteiro semiestruturado12

. A entrevista em profundidade é considerada

um dos métodos mais poderosos dentro do arsenal qualitativo (MCCRACKEN, 1988) e, na

definição de Malhotra (2006), constitui uma abordagem direta, pessoal e aberta, cuja principal

utilidade é proporcionar à pesquisa exploratória maior entendimento a respeito do problema

estudado. Para Gaskell (2000), a entrevista qualitativa é o meio de que o pesquisador dispõe

para formar uma compreensão mais detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações

relacionados ao comportamento das pessoas. McCracken (1988, p. 9, tradução nossa) chega a

dizer que a entrevista "oferece a oportunidade de entrar na mente de outra pessoa, para ver e

experimentar o mundo como ela própria faz". Ademais, Malhotra (2006) destaca que o

método pode ser usado com eficácia em casos que envolvam a sondagem detalhada do

entrevistado a respeito da compra de um carro novo ou a discussão de tópicos confidenciais,

delicados e embaraçosos, como finanças pessoais, o que reitera a pertinência do uso da

entrevista em profundidade na pesquisa proposta.

No que se refere à inclusão de exercícios projetivos no roteiro de entrevista, cabe dizer

que atende à necessidade de favorecer a superação de alguma inibição ou reserva própria da

natureza do tema endividamento. Segundo Malhotra (2006, p. 167) a técnica projetiva é "uma

forma não-estruturada e indireta de fazer perguntas que incentiva os entrevistados a

projetarem suas motivações, crenças, atitudes ou sentimentos subjacentes sobre os problemas

em estudo". A vantagem dessa técnica está em aumentar a validade das respostas,

particularmente quando os problemas abordados são pessoais, delicados ou estão sujeitos a

severas normas sociais (MALHOTRA, 2006). O entendimento de Rook (2006) quanto às

vantagens das técnicas projetivas é similar. Para o autor, como o consumo muitas vezes

ocorre em ambientes imersos em normatizações sobre certo e errado, a natureza indireta das

questões projetivas encoraja os consumidores a se desviarem do "desejado socialmente" ou

supostamente "esperado pelo pesquisador", expressando mais honestamente seus sentimentos

primários sobre gastar dinheiro, comer e beber, usar preservativos etc. (ROOK, 2006).

12 O roteiro utilizado nas entrevistas está disponível no Anexo 1 desta dissertação.

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3.3 A ESCOLHA DA CATEGORIA ESTUDADA

A escolha da categoria de automóveis como instrumento para explorar o tema do

endividamento no âmbito dos estudos de consumo se baseou, principalmente, em três fatores:

a utilização profícua do produto em outras pesquisas da área (SUAREZ, 2010); a crescente

participação alcançada pelo financiamento como opção de pagamento na compra de carros no

Brasil (ANEF, 2013); e a recente tendência de alta na inadimplência em financiamentos de

veículos (BACEN, 2012).

Em primeiro lugar, o automóvel é um produto cujo consumo apresenta forte dimensão

simbólica, podendo envolver elevado engajamento emocional e financeiro da família, além de

um extenso processo de decisão. Por essas características, a categoria tem sido utilizada como

fonte de dados empíricos em diversas pesquisas sobre o consumidor, conforme levantamento

realizado por Suarez (2010).

No que se refere à consolidação do financiamento como meio preferencial de compra

de automóveis pelos brasileiros, dados da ANEF informam que cerca de 51% dos novos

automóveis comercializados durante 2012 utilizaram o financiamento bancário como

modalidade de pagamento (ANEF, 2013).

O financiamento de veículos, por sua vez, conforme Relatório de Estabilidade

Financeira, publicado pelo Banco Central, tem sido a modalidade de crédito com maior

contribuição para a recente elevação na inadimplência de pessoas físicas, que manteve a

tendência de alta iniciada em março de 2011, atingindo 5,4% em junho de 2012 contra 5,1%

em dezembro de 2011 (BACEN, 2012).

Se, do total de famílias brasileiras que compram um carro novo, metade o faz

contraindo dívida, isto é, antecipando sua capacidade de consumir, aparentemente fica

evidenciada a pertinência do uso da categoria de automóveis em um estudo sobre

endividamento. Se, adicionalmente, muitas dessas famílias enfrentam dificuldades de

pagamento posteriores, parece estar reiterada a adequação desse produto à natureza da

investigação proposta.

3.4 PERGUNTAS DE PESQUISA

As perguntas de pesquisa foram elaboradas a partir da revisão de literatura e das

entrevistas realizadas como pré-teste.

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A principal pergunta que a pesquisa objeto da presente dissertação pretende responder

é esta: "Como é a experiência de dificuldades financeiras vivida pelas famílias a partir do

endividamento contraído para a aquisição de um automóvel?"

O desenvolvimento da resposta a essa pergunta principal, por sua vez, será apoiado

pela compreensão do contexto em que ocorreu a compra do carro e das circunstâncias em que

surgiram os problemas financeiros. Sendo assim, são propostas as seguintes questões

complementares:

a) Quais são os principais significados e sentimentos envolvidos na compra do carro?

b) Como é a participação da família na aquisição do veículo?

c) Como as famílias lidam com os custos inerentes ao automóvel?

d) Como as famílias veem o recurso ao endividamento para a aquisição de bens?

e) Quais são os principais significados, sentimentos e experiências originados das

dificuldades financeiras?

3.5 SELEÇÃO DOS ENTREVISTADOS

O processo de seleção de entrevistados para a pesquisa, assim como o delineamento

dos critérios de escolha, começou durante o pré-teste do roteiro de entrevistas. No início, a

preocupação básica era que os selecionados fossem consumidores pertencentes a famílias que

tivessem passado ou estivessem passando por uma experiência de dificuldades financeiras em

virtude da dívida contraída para a aquisição de um automóvel. Ainda não havia, por exemplo,

uma definição quanto à forma de abordagem da família (quantos e quais membros seriam

entrevistados) nem quanto a filtros relacionados a aspectos demográficos. Dessa forma, a

etapa de teste do roteiro deveria servir não somente para verificar a clareza e a adequação das

perguntas propostas, mas também para avaliar o indivíduo ou o grupo que seria estudado,

além de possíveis parâmetros demográficos dos pesquisados.

Tendo em vista a recorrência de notícias sobre a elevação da inadimplência e a

responsabilização do financiamento de veículos como seu maior contribuidor (BACEN,

2012), havia certa expectativa de facilidade na localização de pessoas com problemas para

pagar as prestações do carro financiado. Por esse motivo, para o pré-teste do roteiro, foi

adotada a mesma estratégia de recrutamento por conveniência que havia sido proposta para o

momento das entrevistas efetivas, isto é, por meio de indicações e contatos da rede de

conhecimento do pesquisador.

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Essa fase inicial de testes, porém, apontou para a dificuldade e para o risco de

impertinência dessa opção de recrutamento. Embora muitos contatos informassem

"certamente conhecer" indivíduos na situação procurada, tais manifestações se traduziram em

uma única indicação concreta. Entretanto, a pessoa indicada, que havia sido lembrada por

"viver reclamando" da dificuldade de pagar o financiamento do carro, mostrou-se relutante

para admitir seus problemas financeiros durante a entrevista realizada. Essa resistência da

entrevistada, assim como o receio do pesquisador de forçar sua superação, indicou que a

ligação estabelecida pela rede de contatos não era adequada, no caso desse tema

aparentemente delicado e que sugeria constrangimento e desconforto nas conversas iniciais.

Sendo assim, em função das inesperadas dificuldades para encontrar pessoas na

situação desejada e para extrair informações sensíveis no único caso conseguido, foram

tomadas duas decisões: seria mantido o recrutamento por conveniência para as entrevistas

dessa etapa de pré-teste, quando não havia a exigência de problemas com o pagamento do

financiamento do veículo; e seria contratado um serviço profissional de recrutamento para as

entrevistas efetivas da pesquisa. Entendeu-se, portanto, que, para os objetivos do pré-teste de

averiguar a qualidade do roteiro e de indicar a melhor forma de abordagem da família,

bastaria que a mesma houvesse inserido recentemente um automóvel financiado no orçamento

doméstico.

Além da entrevista anteriormente citada, o pré-teste contou com mais quatro

entrevistas. Esse total de cinco entrevistados representaram quatro famílias pesquisadas, da

seguinte forma: na primeira família, somente a esposa foi entrevistada; na segunda, somente o

marido; na terceira, o casal, separadamente; e na quarta, somente o filho adulto. Vale ressaltar

que, nesta pesquisa, os termos "casal", "marido", "esposa" e afins se referem livremente ao

par formado por homem e mulher e que vive junto, com o intuito de ser reconhecido como

família.

Todas as entrevistas dessa fase de testes geraram informações interessantes, mas a

abordagem de ambos os membros do casal como porta-vozes da experiência familiar foi a que

proporcionou maior riqueza de detalhes, em virtude das informações que se complementaram

na fala de cada um a respeito da compra do automóvel e dos seus efeitos sobre as finanças da

família. Dessa forma, ficou definida a abordagem de casais para as entrevistas e que cada um

seria entrevistado separadamente, para evitar distração ou inibição dos informantes

(BERENT, 1966).

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64

Uma vez alcançada essa definição quanto à forma de abordagem das famílias e

realizados pequenos ajustes no roteiro testado, deu-se prosseguimento à contratação de um

serviço profissional de recrutamento. Esse serviço consiste na localização de indivíduos com

o perfil definido pelo pesquisador: famílias que tivessem passado ou estivessem passando por

uma experiência de dificuldades financeiras por causa da dívida contraída para a aquisição de

um automóvel.

Inicialmente, havia uma intenção de não considerar filtros relacionados a aspectos

demográficos nesse perfil, de modo a não adicionar mais obstáculos à seleção, que já havia

apresentado sinais de dificuldade. No entanto, as entrevistas iniciais sugeriram também que a

existência de filhos na casa poderia contribuir para a configuração de uma realidade de

consumo com maior comprometimento do orçamento doméstico e, consequentemente, com

mais dificuldades financeiras. Com efeito, ao estudar casais sem filhos, Azevedo (2010)

observou um comportamento de consumo diferenciado, pautado na liberdade, na

imprevisibilidade, no individualismo e na orientação ao lazer. Tais especificidades, por sua

vez, pareciam relacionadas ao fato de esses casais desfrutarem de maior renda discricionária

(LEE e SCHANINGER, 2003).

Outro critério demográfico adicionado ao perfil repassado à empresa de recrutamento

dizia respeito à localização geográfica dos respondentes: eles deveriam pertencer a famílias

residentes no estado do Rio de Janeiro. Tal decisão foi tomada por uma questão não só de

acessibilidade, mas também como forma de definir um contexto para a pesquisa, cuja

importância é defendida por Arnould, Price e Moisio (2006).

No que se refere ao número de entrevistados, a presente pesquisa contou com dez

casais, totalizando vinte entrevistas, todas aproveitadas para análise. Essa quantidade de

respondentes adere ao entendimento de Gaskell (2000) de que um grande número de

entrevistas pode não implicar necessariamente uma compreensão mais aprofundada do

fenômeno estudado. As vinte entrevistas realizadas contabilizaram mais de quinze horas de

conversação registradas em áudio, que foram convertidas em 394 páginas de transcrições. O

tempo médio de duração das entrevistas foi de 46 minutos, tendo a mais longa se prolongado

por 65 minutos e a mais curta, por 34 minutos. Dessa forma, o tempo de duração das

entrevistas parece estar de acordo com Malhotra (2006), para quem uma entrevista pode durar

de trinta minutos a mais de uma hora. Considerou-se que essas informações eram suficientes

para o estudo exploratório proposto.

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65

As entrevistas foram realizadas no período de setembro a novembro de 2012, em

locais escolhidos pelos entrevistados conforme sua conveniência, ou seja, em suas casas, em

seus ambientes de trabalho ou em salas cedidas pelo instituto de pesquisa contratado para

realizar o recrutamento.

No Quadro 1 a seguir, é apresentado um breve perfil dos entrevistados, com as

seguintes informações: idade, ocupação, tempo de relacionamento, número de filhos e suas

idade, bairro e município de residência, classe social de acordo com o "Critério Brasil"13

, da

Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), modelo, ano de fabricação e

montadora do carro da família, forma de pagamento acordada e número de parcelas pagas e

atrasadas. Para manter o anonimato dos respondentes, na análise das informações foi adotada

a marca do automóvel da família como o nome do casal.

13 O Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), conhecido como Critério Brasil, encontra-se disponível

no Anexo 2 desta dissertação.

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66

Quadro 1: Perfil dos Entrevistados. Fonte: Elaborado pelo autor.

3.6 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS INFORMAÇÕES

Uma vez com a posse do material transcrito, o passo seguinte consistia em organizar,

interpretar e analisar as informações. Tais procedimentos costumam ser conduzidos em meio

Casal Cônjuge Idade Ocupação

Tempo

de

relacion

amento

Nº de

filhos

(idades)

Bairro

(município)

Classe

social*

Carro/Ano**

(montadora)

Forma de

pagamento

Nº de

parcelas

pagas

(atrasadas)

Sr. 45Operador de

Máquinas

Sra. 43 Atendente

Sr. 31 Vigilante

Sra. 29 Recepcionista

Sr. 47Motorista de

Entregas

Sra. 31 Dona de Casa

Sr. 33Atendente de

Produção

Sra. 33 Atendente

Sr. 46Aposentado da

Marinha

Sra. 44Técnica em

Enfermagem

Sr. 32Coordenador de

Relacionamento

Sra. 31 Dona de Casa

Sr. 35Analista de

Suporte

Sra. 32Vendedora de

Roupas

Sr. 40Coordenador de

Hidráulica

Sra. 41Supervisora de

Atendimento

Sr. 34Técnico em

Eletrotécnica

Sra. 29Suporte

Comercial

Sr. 49 Policial Militar

Sra. 44Técnica em

Enfermagem

* De acordo com o Critério de Classificação Econômica Brasil, disponível no Anexo 2.

** Ano de fabricação.

*** O casal Celta não sabe precisar quantas parcelas foram pagas ao todo. Do último refinanciamento, havia uma parcela atrasada.

Symbol/2011

(Renault)

Veículo

anterior +

48x R$ 440

6

(5)Symbol 3

Campo Grande

(Rio de

Janeiro)

B11

(1)

Palio/2008

(Fiat)

20% +

48x R$ 460

38

(10)Palio II 7

Jardim Sulacap

(Rio de

Janeiro)

B11

(3)

Palio/2010

(Fiat)

R$ 3.000 +

60x R$ 830

2

(20)Palio I 7

Pilar

(Duque de

Caxias)

B11

(2)

Classe A/2001

(Mercedes-

Benz)

R$ 6.000 +

48x R$ 800

41

(7)Classe A 8

Ilha do

Governador

(Rio de

Janeiro)

B21

(5)

Mégane/2001

(Renault)

0 +

60x R$ 560

24

(10)Mégane 25

Campo Grande

(Rio de

Janeiro)

B22

(24,16)

Siena/2009

(Fiat)

Veículo

anterior +

60x R$ 650

24

(2)Siena 8

Chatuba

(Mesquita)B1

1

(6)

J3 Turin/2012

(JAC)

0 +

60x R$

1.100

8

(4)Turin 20

Bento Ribeiro

(Rio de

Janeiro)

B23

(18,16,13)

Celta/2003

(Chevrolet)

R$ 3.000 +

60x R$ 470Celta 23

Vila Meriti

(Duque de

Caxias)

C11

(21)

refinanciado

2x***

Fox/2008

(Volkswagen)

0 +

72x R$ 670

36

(6)Fox 5

Porto Novo

(São Gonçalo)B2

1

(3)

Cerato/2011

(KIA)

0 +

60x R$

1.730

4

(10)Cerato 3

Cachambi

(Rio de

Janeiro)

B21

(10)

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67

a um processo de codificação, que consiste na elaboração de categorias, na redução dos dados

e na verificação de existência de relações entre as categorias.

Para tanto, foi cogitada inicialmente a utilização do software ATLAS.ti, desenvolvido

especificamente para a análise de dados qualitativos, como instrumento de auxílio na

organização do extenso material coletado, inclusive pela possibilidade de cruzamento de

temas e de criação de diagramas. Todavia, ao mesmo tempo em que o programa se mostrava

de grande valia no tratamento das informações isoladas, ele parecia limitar ou dificultar uma

percepção mais completa e integrada dos dados, importante para o reconhecimento de

relações, conexões, conflitos e contradições inerentes ao tema do endividamento. A esse

respeito, Schwandt (2006, p.197), ao discorrer sobre a tradição interpretativista, informa que

"para entender uma parte (uma frase, um enunciado ou um ato específico), o investigador

deve entender o todo (o complexo de intenções, crenças e desejos ou o texto, o contexto

institucional, a prática, a forma de vida, o jogo de linguagem etc.) e vice-versa".

Além disso, para a presente pesquisa, optou-se por adotar preceitos do enfoque

elaborado por Gill (2000) para a análise do discurso, cujo caráter artesanal a autora afirma não

haver como negar, constituindo-se a mesma um processo sempre "intensivo em mão de obra"

(p. 180, tradução nossa). De acordo com a pesquisadora, análise do discurso é o nome dado a

diferentes perspectivas sobre o estudo de textos, que compartilham do pressuposto que o

discurso tem importância central na construção da vida social. Nesse sentido, o termo discurso

se refere a todas as formas de interação oral ou escrita, como conversas cotidianas, entrevistas

e textos de qualquer tipo (GILL, 2000).

Segundo Gill (2000), a análise do discurso contém quatro temas principais: uma

preocupação com o discurso em si, que se traduz pelo interesse no seu próprio conteúdo e na

sua própria organização; uma visão da linguagem como construtiva e construída, isto é, textos

constroem a vida social e o mundo, mas sua composição envolve escolha e combinação dos

recursos linguísticos disponíveis; uma ênfase do discurso como forma de ação, tendo em vista

que as pessoas, como atores sociais, procuram adequar o discurso ao contexto interpretativo

em que se encontram; e uma convicção na organização retórica do discurso, no sentido de que

sua elaboração sempre procura torná-lo persuasivo.

O emprego da análise do discurso nesta dissertação assimilou alguns passos sugeridos

por Gill (2000). De acordo com a autora, uma vez transcritas as entrevistas realizadas, o

pesquisador deve mergulhar no material a ser estudado, lendo e relendo as transcrições até

que se tornem familiares. Essa leitura cuidadosa e atenta ainda deve comportar um

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68

movimento entre texto e contexto, de forma a favorecer o exame do conteúdo, da organização

e das funções do discurso, com base naqueles quatro temas principais acima expostos.

Após essa imersão preliminar nos textos transcritos, foi dado seguimento ao processo

de codificação, por meio da elaboração de categorias de análise. Essas categorias usadas para

a codificação, de acordo com Gill (2000), são determinadas pelas questões de interesse do

pesquisador. É possível dizer, porém, que aspectos do referencial teórico e temas revelados

pelas entrevistas também influenciaram na definição das categorias propostas no capítulo de

discussão dos resultados.

Definidas as categorias, a análise ocupou-se de explorar as informações para conferir

substância a cada uma delas. Nesse trabalho de construção das categorias, procurou-se não

somente perceber padrões, diferenças e contradições presentes dos dados, mas também

integrar a teoria revisada. Quanto ao fato de os dados serem constituídos essencialmente pelo

falado, a análise deve ir além (GASKELL, 2000) e examinar o que não é dito, os silêncios

(GILL, 2000). Para tanto, torna-se fundamental a atenção do pesquisador aos contextos que

permeiam todo o discurso (GILL, 2000), de forma a alcançar seu objetivo mais amplo de

procurar significados e compreensão (GASKELL, 2000).

3.7 LIMITAÇÕES DO MÉTODO

Os resultados deste estudo, por sua natureza exploratória e pela utilização de

metodologia qualitativa, não podem ser considerados conclusivos ou utilizados para fazer

quaisquer generalizações (MALHOTRA, 2006) em relação à experiência de dificuldades

financeiras vivida pelas famílias pesquisadas. É preciso salientar, porém, que a principal

preocupação deste trabalho consistiu justamente em buscar detalhes e particularidades, sem

abrir mão de apontar eventuais semelhanças e diferenças entre as respostas dos entrevistados.

No que se refere ao emprego de entrevistas em profundidade, é possível destacar

algumas dificuldades inerentes ao método, como a limitação ao que é lembrado pelo

entrevistado no momento da interação. Além disso, segundo Gaskell (2000), o entrevistado

pode: ter um linguajar próprio que dificulta a correta compreensão de sua fala; omitir detalhes

importantes, seja por considerá-los muito óbvios, seja por achá-los difíceis de traduzir em

palavras ou grosseiros e indelicados; e fornecer respostas que não reflitam exatamente seu

pensamento, em virtude de uma percepção distorcida da situação apresentada.

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Vale mencionar ainda a opção por uma categoria de consumo específica. A escolha do

automóvel como objeto de investigação atendeu ao interesse de proporcionar maior foco e

aprofundamento das questões relacionadas ao consumo via endividamento. Se o recurso a

somente uma categoria pode ter limitado os achados da pesquisa, acredita-se ter evitado o

risco de dispersão e superficialidade que a agregação de outras categorias poderia trazer.

Tendo em vista que as informações coletadas e aqui analisadas foram objeto de um

esforço interpretativo, deve-se reconhecer a subjetividade presente nas mesmas, que não

podem ser consideradas simplesmente objetivas. Com efeito, as análises realizadas trazem não

somente a visão do pesquisador, mas também os conceitos e teorias levantados durante a

revisão de literatura, que se misturam aos achados do campo e se inserem no processo de sua

interpretação.

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4. DISCUSSÃO DE RESULTADOS

Neste capítulo procura-se realizar uma discussão a partir das informações levantadas

nas entrevistas qualitativas, sendo utilizadas como fios condutores da análise as perguntas de

pesquisa que motivaram o estudo. Esse processo inclui ainda a associação e o confronto dos

dados coletados no campo com proposições teóricas presentes no capítulo de revisão da

literatura.

Com base no roteiro e nas informações captadas no decorrer das entrevistas, foram

elaboradas categorizações temáticas com o intuito de facilitar a compreensão, favorecer a

comparação e auxiliar na interpretação do conjunto de dados. Há categorias que aparecem

mais em algumas famílias do que em outras, o que se deve ao caráter subjetivo de um estudo

exploratório. São elas:

(1) Significados e sentimentos associados ao automóvel. Esta categoria de análise

procura explorar a dimensão simbólica do consumo de automóveis e entender

sua influência na motivação para a compra, além de trazer uma compilação do

imaginário dos entrevistados sobre famílias com e sem carro, captado a partir de

exercício projetivo;

(2) A família no processo de decisão e compra do carro. Nesta categoria,

procura-se abordar o aspecto coletivo da aquisição do automóvel, como prática

de consumo simbólico propícia à interação das identidades familiares;

(3) Formas de lidar com os custos relativos ao automóvel. O objetivo desta

categoria de análise é compreender as consequências dos custos decorrentes da

posse do automóvel no controle do orçamento doméstico;

(4) O endividamento para aquisição de bens. Nesta categoria, busca-se entender a

influência de percepções sobre o endividamento para consumo e de

circunstâncias do financiamento do automóvel na incapacidade de pagamento;

(5) Dificuldades de pagamento: significados, sentimentos e enfrentamento. O

objetivo desta categoria de análise é captar possíveis desdobramentos do estado

de inadimplência sobre a identidade familiar.

No entanto, de modo a proporcionar uma melhor contextualização para a discussão

proposta, previamente será feita uma descrição resumida das famílias estudadas e dos

principais aspectos relacionados à compra de seus carros e à sua incapacidade de pagamento.

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Casal Celta

Casados há 23 anos, o Sr. e a Sra. Celta (operador de máquinas e atendente) moram

em uma casa no bairro de Vila Miriti, em Duque de Caxias, com um filho de 21 anos. A

compra do Celta, zero quilômetro, foi concebida e levada a cabo pelo marido, que queria:

poder responder às constantes necessidades médicas de sua sogra sem depender de parentes

ou conhecidos; e aliviar o "sufoco" pelo qual a esposa passava diariamente por "pegar ônibus

lotado para trabalhar". Para o pagamento do financiamento, que seria sua responsabilidade, o

Sr. Celta contava com o efeito duplicador de horas extras de trabalho sobre seu salário básico.

Entretanto, cerca de três anos após a compra, a empresa em que trabalhava "cortou as horas

extras" e ele ficou alguns meses sem conseguir pagar as parcelas de R$ 470,00. Foi feito então

um refinanciamento com pagamento em 48 vezes de R$ 390,00. Dois anos depois, o Sr. Celta

foi demitido e, desempregado por quase um ano, ficou sem pagar as prestações nesse período.

No novo emprego, o salário inferior e a dívida acumulada implicaram uma nova

renegociação, que previu um pagamento de R$ 1.000,00 mais 48 parcelas de R$ 250,00.

Mesmo considerado um valor "incrível" pelo Sr. Celta, a parcela devida pela ocasião da

entrevista estava atrasada há quinze dias "porque usaram o dinheiro para outra coisa".

Casal Cerato

O Sr. e a Sra. Cerato (vigilante e recepcionista) vivem juntos há três anos e criam um

menino de dez anos, que é filho apenas do marido. Quando compraram seu Cerato, zero

quilômetro, ele trabalhava como taxista, "pagando a famosa diária" (não tinha veículo

próprio), e ela, como supervisora em um salão de beleza. Cerca de quatro meses após a

aquisição, o dono do táxi utilizado pelo Sr. Cerato se mudou de cidade e vendeu o carro para

alguém que preferiu não dividi-lo. Pouco tempo depois, o salão em que a Sra. Cerato

trabalhava foi vendido, e o posto de supervisão, ocupado por pessoa da confiança do novo

proprietário. Com o desemprego de ambos, as prestações de R$ 1.730,00 não puderam ser

pagas, situação inalterada após a recolocação com salários que "não chegam nem perto" dos

anteriores. Além disso, o casal passou a viver "de favor" na casa da mãe da Sra. Cerato, no

bairro do Cachambi, no subúrbio do Rio de Janeiro, porque também não conseguiu pagar o

aluguel da moradia anterior.

Casal Classe A

O Sr. e a Sra. Classe A (motorista de transportadora e dona de casa) moram em uma

casa no bairro da Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro, estão juntos há oito anos e

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têm um filho de cinco anos. Como o carro de trabalho fica à disposição do marido para uso

pessoal e familiar, o casal "não estava procurando alguma coisa do tipo" até o Classe A ser

oferecido a eles pelo então proprietário, conhecido da família. A partir daí, a Sra. Classe A,

que trabalhava em um restaurante na época, ficou muito interessada pela oportunidade e o

marido concordou com a compra. Os problemas de pagamento começaram quando o

restaurante em que a esposa trabalhava faliu, restando pagar sete das 48 prestações do

financiamento. Sem a contribuição da mulher, a parcela de R$ 800,00 ficou além das

possibilidades de pagamento do Sr. Classe A.

Casal Fox

O Sr. e a Sra. Fox (atendente de produção e atendente em corretora de seguro saúde)

têm um relacionamento de cinco anos e moram em uma casa construída por eles no bairro de

Porto Novo, no município de São Gonçalo, com sua filha de três anos. A compra do Fox, zero

quilômetro, foi imaginada para o momento da gravidez da esposa, que tinha uma pequena

padaria em sociedade com o irmão. Em sua gestação, porém, houve graves complicações e ela

precisou deixar de trabalhar. Pouco tempo depois, o irmão se mudou de cidade e o negócio

precisou ser vendido. Sem a renda da Sra. Fox, que era a maior da casa, o casal não conseguiu

mais pagar as parcelas de R$ 670,00.

Casal Mégane

O Sr. e a Sra. Mégane (sargento da Marinha aposentado e técnica em enfermagem) são

casados há 25 anos e moram no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, com um casal de

filhos; a moça tem 24 anos e o rapaz, dezesseis. A vontade de voltar a ter um carro cresceu à

medida que se avolumaram as situações em que o casal era "obrigado a pedir favor a

parentes". Quando compraram o Mégane, usado, o marido já tinha empréstimo consignado,

descontado diretamente em sua folha de pagamento, e seu salário não era suficiente para a

obtenção do crédito necessário. Por isso, a compra só foi possível mediante a assinatura do

contrato pela irmã da Sra. Mégane. Sem reajustes salariais "há anos" e contraindo novos

empréstimos para manter o padrão de vida, o casal foi perdendo o poder de compra até se

tornar impraticável o pagamento da prestação de R$ 560,00. Além disso, houve doenças que

exigiram a compra de medicamentos caros e agravaram ainda mais a situação.

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Casal Palio I

Casados há sete anos, o Sr. e a Sra. Palio I (coordenador de relacionamento em

empresa de informática e dona de casa) têm um filho de dois anos e moram em uma casa no

bairro de Pilar, em Duque de Caxias. A ideia de comprar um carro veio com o nascimento da

criança e foi implementada após a Sra. Palio I ser demitida da empresa em que trabalhava

anteriormente, quando recebeu uma indenização. Parte dessa verba foi utilizada para dar a

entrada no pagamento do Palio, zero quilômetro, e o restante, para montar um negócio próprio

junto com o marido, que não estava trabalhando na época. O empreendimento, porém, foi

malsucedido e ambos tiveram que voltar a procurar emprego. O Sr. Palio I conseguiu se

recolocar, mas a esposa teve que ficar cuidando do filho, uma vez que problemas de saúde

impediram sua mãe de continuar tomando conta da criança. Com somente uma fonte de renda,

o pagamento das parcelas de R$ 830,00 do financiamento não pôde ser mantido.

Casal Palio II

Juntos há sete anos e com uma filha de três anos, o Sr. e a Sra. Palio II (analista de

suporte em informática e vendedora de roupas) moram em uma casa no bairro de Jardim

Sulacap, no Rio de Janeiro. No mesmo terreno, fica a casa da mãe do Sr. Palio II, que mora

com o irmão e o pai. Quando compraram seu Palio, seminovo, a esposa, que era "bem

empregada" em um banco e "tinha um salário muito bom", ficou integralmente responsável

pelo pagamento do carro, que também havia sido ideia sua. Contudo, faltando pagar dez das

48 prestações de R$ 460,00, a Sra. Palio foi demitida e não teve como manter os pagamentos.

Casal Siena

O Sr. e a Sra. Siena (coordenador de hidráulica e supervisora de atendimento), moram

no bairro da Chatuba, no município de Mesquita, são casados há oito anos e têm um filho de

seis anos. A compra do Siena, zero quilômetro, foi planejada pelo marido, que estava

"detestando levar pra oficina" o carro antigo. No entanto, como seu nome constava em

cadastro de devedores, o contrato precisou ser assinado no nome da mãe da esposa. A

primeira dificuldade de pagamento aconteceu quando o Sr. Siena ficou desempregado. Os

pagamentos só foram regularizados meses depois, quando ele aceitou um cargo em Fortaleza,

no estado do Ceará, no qual conseguiu um salário melhor. Ocorre que mais à frente um

incidente de trabalho fez com que o Sr. Siena ficasse em licença médica por cerca de

cinquenta dias. Após a primeira quinzena de afastamento, seus rendimentos passaram a ser o

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benefício pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), cujo valor foi insuficiente

para cobrir as prestações de R$ 650,00.

Casal Symbol

Quando casaram, há cerca de três anos, o Sr. e a Sra. Symbol (técnico em eletrotécnica

e agente de suporte comercial) fizeram um financiamento habitacional para a compra do

apartamento em que moram no bairro de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro. Em

virtude desse investimento, o casal concordou em ter um carro básico e usado, "só para não

ficar a pé" até surgir uma oportunidade de trocar por um melhor. Com a gravidez da Sra.

Symbol, dois anos depois, o marido entendeu que tal ocasião havia chegado e, apesar dos

receios iniciais da esposa quanto ao acúmulo de dívidas, eles acabaram concordando em

trocar de carro. Seis meses após a compra do Symbol, "praticamente zero quilômetro" (era

carro de test drive), o marido precisou emprestar dinheiro para a cirurgia de emergência a que

seu sobrinho teve que se submeter, porque os pais da criança não tinham como custear. Pouco

tempo depois, sua sogra também teve uma urgência médica e a família onerou muito seu

orçamento com os custos da internação e dos medicamentos. Como não dispunham de

reservas financeiras, o casal viu os R$ 440,00 previstos para as prestações do veículo serem

consumidos por essas situações e acabou ficando cinco meses sem pagar o financiamento.

Casal Turin

O Sr. e a Sra. Turin (policial militar e técnica em enfermagem), casados há vinte anos,

vivem em Bento Ribeiro, subúrbio do Rio de Janeiro, com duas filhas, de dezoito e dezesseis

anos, e um filho de treze. A compra do J3 Turin, zero quilômetro, da família foi conduzida

somente pelo marido, que estava cansado dos problemas que o carro velho passou a dar após

um acidente. O Sr. Turin, que tinha um pequeno comércio na garagem de sua casa,

considerava a renda dele proveniente como não pertencente ao orçamento da família e seria

essa a fonte dos recursos para o pagamento do carro. Outro acidente, porém, deixou o Sr.

Turin sem ter como manter a "birosquinha" em funcionamento, o que impactou diretamente

no pagamento das prestações de R$ 1.100,00.

4.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS ASSOCIADOS AO AUTOMÓVEL

A compreensão das categorias culturais e valores sociais comunicados por um bem

material é fundamental para o entendimento da sua importância como objeto de consumo,

pois é tendo em vista o referencial sociocultural de significados que aspiram para si próprios

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e/ou desejam expressar a terceiros que os indivíduos efetuam o ato de consumo (ARNOULD

e THOMPSON, 2005; DOUGLAS e ISHERWOOD, 2004; MCCRACKEN, 1986, 2003a;

MILLER, 2007). Assim, esta seção procura explorar a perspectiva simbólica presente no

consumo de automóveis, a partir da análise do discurso das famílias entrevistadas, para

identificar significados e sentimentos associados à posse do carro e entender sua influência na

motivação para a compra.

4.1.1. O luxo necessário

As entrevistas indicaram percepções variadas a respeito do significado do automóvel.

Se luxo e necessidade fossem considerados construtos opostos em um continuum (MARTINS

e IKEDA, 2012), o carro poderia ser considerado um luxo-necessário, pois supostamente teria

se deslocado de um extremo (luxo) ao outro (necessidade) com o passar do tempo, de acordo

com alguns relatos identificados:

O carro hoje em dia é necessidade, não é mais luxo. (Sr. Cerato, 31).

Dificilmente uma família hoje não tem necessidade de ter um carro. Carro é mais

necessidade do que conforto. (Sr. Fox, 33).

Veículo não é mais um luxo, né. Ele é uma necessidade pra transporte familiar. (Sr.

Turin, 49).

Visto por esse grupo como artigo necessário, a situação colocada no exercício

projetivo de uma família sem seu próprio automóvel foi justificada basicamente pela ausência

de condições financeiras. Outras possibilidades (não saber dirigir, por exemplo) só aparecem

esporadicamente, e não como primeira razão para a família não ter carro. Dessa forma, a

compreensão parece ser a de que, havendo ou se configurando um padrão econômico que

permita a compra de um carro, este estará ou será automaticamente incluído como realidade

da família, independentemente de ano ou modelo:

Se tivessem condições, com certeza teriam um carro. (Sra. Fox, 33).

Hoje em dia não se tem carro por questão financeira. (Porque a pessoa, tendo

recursos...) ela vai querer um carro. (Sra. Turin, 44).

O carro passou a ser necessidade, eu penso assim... indiferente de modelo ou ano, o

carro em si. (Sra. Cerato, 29).

Eu não estou falando de carro zero, mas de um carro. Dificilmente a família que

puder comprar um carro não vai comprar, acho pouco provável. (Sr. Fox, 33).

As falas que caracterizam os carros como necessidade das famílias aparecem mais

atreladas aos benefícios funcionais do bem, que em essência é um meio de transporte. Como é

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76

na dimensão utilitária de um produto que os consumidores esperam alcançar seus objetivos de

prevenção14

(CHITTURI, RAGHUNATHAN e MAHAJAN, 2008; HIGGINS, 1997; 2000),

seria razoável esperar a presença de objetivos desse tipo incentivando a aquisição do

automóvel. Com efeito, as entrevistas evidenciaram uma preocupação em evitar dificuldades

próprias do transporte coletivo, como restrição de horários, escassez e superlotação; o carro,

como alternativa, ofereceria tranquilidade e conforto na locomoção da família. Outra

aspiração comum era a de independência, sendo o carro próprio sinônimo de "não ter que

depender de transporte público" ou "não ter que pedir favor a vizinho". Tal autonomia se

torna particularmente crítica em situações emergenciais, sobretudo, se envolvem filhos. Seja

porque crianças naturalmente frequentam mais médicos e hospitais, seja porque a saúde dos

filhos gera uma preocupação diferenciada nos pais, era recorrente a alusão à necessidade do

automóvel para dar segurança, para garantir uma pronta resposta ou uma reação imediata

nessas circunstâncias.

(Carro) é necessidade, ainda mais com lance de hospital, com filho... às vezes precisa levar pra hospital ou coisa parecida e acaba sendo prioridade mesmo. (Sr.

Cerato, 31).

Não tem como ter uma criança de três anos em casa e de madrugada precisar de

alguma coisa e não ter o que fazer... bater na porta de vizinho, alguma coisa assim...

(Sr. Fox, 33).

Pra gente, (o carro) é necessidade. Com uma criança pequena, com tudo, e é

necessidade. (...) Até mesmo para o lazer das crianças, pra gente ir no mercado, se

passar mal, levar ao médico, alguma coisa. (Sra. Palio II, 32).

Porque uma família com um filho dificilmente seria possível (não ter carro). (Sr.

Turin, 49).

Embora tenham predominado nos testemunhos argumentos que configuram o carro

como uma necessidade, é preciso lembrar que esse entendimento parece responder apenas por

uma parcela da motivação para a compra, haja vista estudos que já apontaram a diversidade

de sentimentos e a devoção que os carros são capazes de despertar (BELK, 2004). Não por

acaso é extensa a pesquisa acadêmica sobre a perspectiva simbólica presente no consumo de

automóveis (SUAREZ, 2010). Sem entrar na discussão sobre o que é e o que não é luxo nem

no mérito da colocação "carro não é mais luxo", é possível encontrar na própria fala dos

entrevistados indicações de que o automóvel é ou se mantém como forte marcador da

condição socioeconômica do proprietário, o que inclusive vai afetar a forma como o bem é

desejado.

14 Ver nota 2, à pág. 38.

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Se a principal razão apresentada no exercício projetivo, pelo conjunto de

entrevistados, para uma família não possuir um automóvel é a falta de recursos financeiros,

pode-se pensar em uma associação primária do tipo "ter carro é ter dinheiro" e "não ter carro é

não ter dinheiro"15

. Não parece se tratar apenas de uma oposição entre ricos e pobres, mas ter

carro significa fazer parte de um grupo social distinto, o "grupo com alguma condição

financeira", em oposição ao "grupo sem nenhuma condição financeira". Sob essa perspectiva,

o automóvel passa a ser um símbolo muito importante do pertencimento ao primeiro grupo.

A esse respeito, o discurso dos entrevistados indica haver dois possíveis caminhos

para a compra do carro: ou a família está (ou acredita que está) melhorando sua situação

econômico-financeira e quer registrar essa transição por meio da aquisição do automóvel; ou a

família adquire o veículo movida pelo desejo de se sentir incluída e de sinalizar que faz parte

daquele grupo social, independentemente de ter uma condição financeira condizente. Nos dois

caminhos o movimento para a compra do carro envolve "o outro", que pode ser "todo mundo"

ou "os vizinhos", em uma referência a grupos sociais de referência e de convivência.

E tivemos a vantagem de comprar um carro pra gente. A gente estava estabilizado,

tanto eu quanto ela num serviço legal, entendeu? Tinha condições para isso e eu dei

a ideia. (Sr. Cerato, 31).

Em 2009 eu entrei em uma empresa bem legal, e você se empolga, está com um salário legal. Aí eu falei "Tá na hora de trocar de carro". (Sr. Siena, 40).

Os vizinhos pensaram a mesma coisa que eu pensaria: "O negocio está indo bem por

lá". (Sra. Classe A, 31).

Acho que o vizinho se preocupa muito com a vida do outro vizinho, isso

infelizmente existe. Eles pensaram o quê? "Fulano está ganhando bem, fulano está

bem de vida", por ter comprado um carro. (Sra. Mégane, 44).

Às vezes, em festas que a gente ia, ou ele ia viajar, todo mundo tinha carro e ele não

tinha. (Sra. Fox, 33).

Enquanto não tiver uma mudança de vida, eu não acredito, não (que a família esteja

planejando comprar um carro)... porque não é o perfil da pessoa, né. (Sr. Turin, 49).

4.1.2. Sonho de consumo parcelado

Apesar de a aquisição do automóvel sinalizar o ingresso em um novo grupo social,

parece haver um reconhecimento de que o tipo de compra, financiada ou à vista, diferencia

esse grupo do "grupo dos ricos", que mora nos endereços mais caros do Rio de Janeiro:

15 O final desta seção traz um quadro que sintetiza o imaginário dos entrevistados acerca de duas famílias, uma

com e outra sem carro, captado por meio de exercício projetivo. É interessante observar o grau de desigualdade

que pode marcar a caracterização de famílias cuja diferenciação inicialmente proposta se resumia à presença ou à

ausência do automóvel.

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Eu nunca ouvi falar que (alguém) foi na loja e comprou um carro à vista. (Sra. Turin,

44).

À vista eu acho quase impossível, pra te ser sincero. (...) Se você falar pra mim "Pô,

o cara mora lá na Vieira Souto", eu vou falar "Pô, meu irmão, o cara, pra morar na

Vieira Souto, ele tem dinheiro para chegar na agência e comprar um carro de R$ 30

mil à vista". (Sr. Cerato, 31).

Curiosamente, os relatos sugerem que não ter recursos suficientes para a aquisição do

automóvel à vista não desestimula, mas contribui para a sua transformação em um sonho de

consumo, em um objeto de desejo. Segundo McCracken (2003b, p. 143), "não há motivo para

aspirar àquilo que está prontamente ao alcance". Nesse sentido, a posse de um bem que está

além do poder de compra atual do indivíduo pode funcionar como prova da existência de um

estilo de vida idealizado e aspirado por ele (MCCRACKEN, 2003b).

A compra do carro, portanto, não poderia ter o mesmo significado no "grupo com

alguma condição financeira" e no "grupo dos ricos", capaz inclusive de comprar o automóvel

sem parcelar o valor. As colocações abaixo reforçam a percepção de que os automóveis

podem ser diferenciadores de grupos sociais e possuem significados que são deslocados (Ver

McCracken (2003b)):

(Comprar um carro é um sonho para qualquer pessoa?) Não, não. Dependendo do estilo (...) se fosse uma pessoa da Zona Sul, seria mais fácil. (Sra. Fox, 33).

O carro, ele nunca vai deixar de ser um sonho de consumo. Mas aí se vai a níveis...

nós podemos dizer que chega às Ferraris, aos Audis da vida, né. (...) Ou seja, o

sonho de consumo de quem não tem comida é um prato de feijão com arroz. E o

sonho de consumo de quem tem um prato de comida já é comer picanha. (Sr. Turin,

49).

Essa espécie de deslocamento dos sonhos de consumo que aparece na colocação do Sr.

Turin sugere que não há razão para sonhar com o que é facilmente acessível (MCCRACKEN,

2003b). Dessa forma, o carro mais adequado à realidade de recursos da família pode não ter

apelo suficiente para se tornar o objeto de desejo. A esse respeito, chama atenção em algumas

entrevistas o fato de modelos básicos e populares, mais simples e baratos, não aparecerem

entre o rol de possibilidades lembradas pela ocasião da compra, o que pode estar relacionado

ao fato de não serem considerados os sinalizadores que buscam para a concretização do sonho

ou por não carregarem os significados que gostariam de transmitir aos grupos de referência.

Ao longo das entrevistas é possível perceber que perde força a descrição do carro

como necessidade, indiferente a ano ou modelo, pautada principalmente por objetivos de

prevenção e mais focada em benefícios utilitaristas. Ao mesmo tempo, ganha espaço nos

relatos a associação do carro com o sonho, com benefícios hedônicos que atendam a objetivos

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de promoção16

e com significados que o veículo transmitirá a respeito do seu proprietário

(CHITTURI, RAGHUNATHAN e MAHAJAN, 2008; HIGGINS, 1997; 2000).

Você se sente bem. Você entrar num... dirigir um Cerato e entrar e dirigir um Corsa

não é a mesma coisa. (Sr. Cerato, 31).

Eu falei "Gol e Palio todo mundo tem. Vamos escolher uma coisa diferente". E na

época o Fox estava em alta, né? Não tinha quase ninguém, não via ninguém na rua...

"Pô, vamos escolher um que quase ninguém tem, chamar a maior atenção, vai ficar legal". (Sra. Fox, 33).

Eu acho que significou a satisfação de falar que eu tenho alguma coisa que é minha,

foi o status, agora eu estou andando de Mercedes (...). Eu sentia que eu estava

tirando onda. (Sra. Classe A, 31).

É a primeira vez que a gente compra carro com airbag, essas coisas que fazem

diferença. Não seria a mesma coisa se eu tivesse comprado uma Fiat Uno. Não seria.

Tem a satisfação sim. (Sr. Turin, 49).

Os testemunhos acima demonstram que a grandeza dos sonhos não é balizada somente

pela condição financeira da família. Belk, Ger e Askegaard (2003) já haviam ressaltado que a

atração exercida por um objeto tem explicação na esperança do seu potencial como

viabilizador de relações e aceitação em sociedade. Isso implica dizer que a dimensão

simbólica presente no consumo do automóvel dificilmente deixará de levar em consideração a

condição daqueles com os quais a família se relaciona, em termos comparativos, ou seja, a

família desejará ter um carro "diferente", que "ninguém tem", que "está em alta", que "chama

a atenção", que confere "status" ou que "tira onda".

Essa preocupação com as diferentes associações que podem ocorrer em virtude do

carro adquirido, presente nos exemplos acima, está em sintonia com os achados de Grubb e

Hupp (1968) sobre a relação entre o autoconceito do consumidor e seu comportamento de

consumo, com a habilidade dos adultos em reconhecer o simbolismo do consumo observada

por Belk, Bahn e Mayer (1982) e com o critério do papel social dos personagens, identificado

por Dalli e Gistri (2006) no cinema de arte italiano, para a escolha de modelos e marcas.

Nesse sentido, o tipo de associação pretendida pela família ao adquirir um automóvel

como registro simbólico da melhoria em sua condição econômico-financeira pode influenciar

sua tentativa de entrada no grupo superior da hierarquia social. Quando os pares se encontram

naquele nível de "qualquer ano ou modelo" e este não é suficiente para despertar o desejo da

família, existe uma preocupação de diferenciação e a compra deverá ter o significado de "ser

melhor" do que os outros, pela posse do veículo. Já quando os pares se encontram em um

patamar de consumo mais próximo ao do sonho da família, parece predominar uma vontade

16 Ver nota 2, à pág. 38.

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de equiparação, com valor de integração. Interessante observar que essas diferentes

percepções podem coexistir em uma mesma família, como nos relatos abaixo:

(Quando eu dirijo o carro) eu me sinto diferente das pessoas. Me passa uma

sensação de eu ser melhor que alguém. (Sra. Fox, 33).

Não, (os vizinhos não comentaram) porque na maioria quase todo mundo já tinha

carro... tanto melhores que o meu, quanto do mesmo tipo. Então, não foi nada assim

de extraordinário. (Sr. Fox, 33).

Havendo uma preponderância do significado de deslocamento, como evidenciado na

fala da Sra. Fox, essa mudança de grupo social pode desencadear no comprador do carro

sentimentos como "vaidade", "exibicionismo", "ostentação", "deslumbramento" e "sensação

de superioridade" em relação aos outros, que, por sua vez, são descritos com sentimentos e

reações como "inveja", "olho grande" e "incredulidade".

Isso aí é mais para o lado da vaidade, né. (...) Você sente, as pessoas olham pra você

na rua, falam "Caraca, olha o carro do cara". (Sr. Cerato, 31).

Eu sei de pessoas no bairro que "Nossa, fulano...", ia cumprimentar "...parabéns!",

mas com aquelas pontas de inveja, olho grande. (Sr. Mégane, 46).

Nossa, é um olho que só Jesus! (risos). (...) Os vizinhos falam "São metidos. Pra que

comprar um carro zero morando aqui?" (Sra. Siena, 41).

Sempre causa uma certa inveja aos outros porque é o sonho de todos ter o seu carro

novo. (...) E, pelo menos na minha pessoa, causa até constrangimento porque quem

foi criado no subúrbio como eu fui criado teve uma educação diferenciada. (...) A

gente não deixa de ter um vínculo direto com o vizinho. (...) A gente às vezes

gostaria de compartilhar... os mais chegados amigos compartilham essa felicidade. É

como se eles também tivessem realizado o próprio sonho. Mas, no geral, não. No

geral causa inveja. (Sr. Turin, 49).

Se fosse pela profissão (policial), eles iam dizer que estava roubando, né (risos). Caso contrário, se fosse uma (profissão) comum, "É seu?", com certeza nunca uma

pergunta te engrandecendo por você ter algo. É para ter certeza de que é seu ou se

você pegou emprestado. Aos primeiros olhos ninguém diz que é seu. (Sra. Turin,

44).

O constrangimento, que é um sentimento manifestado no relato do casal Turin, parece

ter alguma associação com a profissão do marido, que é policial. Tendo em vista que se trata

de uma ocupação ocasionalmente vinculada a práticas ilegais, como abuso de poder ou

corrupção, tanto no noticiário cotidiano quanto em obras cinematográficas, torna-se uma

preocupação para a família não favorecer uma aproximação com esse tipo de imagem. Isso

pode inclusive trazer restrições ao padrão do automóvel desejado, que não deverá se deslocar

muito do nível de renda percebido como compatível para o policial, de modo a evitar

desconfiança.

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Não obstante a ocorrência dos sentimentos mencionados acima, as entrevistas parecem

indicar que o processo de transição entre grupos sociais marcado pela compra do carro – tenha

valor de deslocamento ou de equiparação – é quase sempre percebido como a "realização de

um sonho", uma "conquista" ou uma "vitória". Nesse caso, tal movimento é geralmente

acompanhado de sentimentos positivos como "satisfação", "bem-estar", "felicidade",

"orgulho" e "prazer"; em um relato mais entusiasmado, a emoção que acompanha esse

"upgrade na vida" chega a ser descrita como "melhor do que qualquer droga" poderia

proporcionar.

Quando eu consegui comprar meu carro, foi a maior felicidade, uma conquista,

realização de um sonho. Os sentimentos são os melhores possíveis, de quando você

corre atrás de alguma coisa, batalha, se esforça, consegue conquistar, cara. (Sr.

Cerato, 31).

Uma satisfação enorme você comprar um carro zero, você ver um bem daquele,

entendeu? Pô, é muito bom! Muito boa a sensação de poder comprar um carro

naquela circunstância. (Sr. Fox, 33).

É uma vitória, né... a compra do seu veículo. (Sr. Turin, 49).

É muito feliz... borbulhante, vamos dizer assim. Realização de sonho é bom (...) Se

pudesse engarrafar e vender assim a emoção da hora, né? Acho que é melhor do que qualquer droga que tem por aí, como dizem, né (risos). (Sra. Celta, 43).

4.1.3. Patrimônio simbólico

Outro significado do automóvel, que está subjacente a essas ideias de conquista e

realização, é o de patrimônio. Se a posse de um carro sinaliza o alcance de certo padrão de

vida, é porque há um entendimento anterior de que a posse de bens em geral serve como

medida das condições de vida de uma pessoa ou de uma família. Por essa perspectiva, uma

vida feliz, vitoriosa e de sucesso, digna de ser perseguida, seria marcada pelo acúmulo de

riquezas e bens materiais. Como os entrevistados, uma vez perguntados sobre o hábito de

juntar dinheiro, informaram que tal prática é muito difícil e "coisa para poucos"17

, parece

restar a eles a possibilidade de aplicação dos recursos financeiros em objetos de consumo.

Então, a justificativa para a eleição do carro como um dos destinos preferenciais dos recursos

que poderiam estar em algum tipo de poupança é a sua capacidade como reserva de valor. Por

maior que seja a depreciação a atuar sobre seu valor de compra e por maiores que possam ser

os recursos despendidos com juros do financiamento, isso parece não ter relevância: o que

importa para o grupo de entrevistados é que aquele bem é a materialização de uma soma, de

um valor monetário que, de outra forma, não conseguiria ser acumulado.

17 As dificuldades no gerenciamento do dinheiro serão tratadas na seção referente ao endividamento como

mecanismo de aquisição de bens.

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(A justificativa para comprar um carro era) Pra gente ter um bem também. Era mais

isso assim, pra gente ter um bem. (Sra. Cerato, 29).

O cara corre atrás para ter aquele dinheiro (da parcela do financiamento). Acho que

é uma maneira de economizar numa coisa mais durável. (Sr. Classe A, 47).

Essa compreensão do automóvel como patrimônio da família terá impacto inclusive na

disposição para mantê-lo, independentemente de ser essa ou não a melhor decisão sob o

aspecto financeiro.

Eu achava assim: eu já paguei, vamos dizer, dois anos... R$ 6 mil? R$ 12 mil! Se

eles me dessem R$ 3 mil e eu devolvesse o carro, eu achava que valeria à pena. Mas

eles não devolvem nada, eles não te dão nada e você tem que dar o carro, aí eu achei também ruim. (...) Então eu prefiro dar um jeito pra pagar. (Sra. Fox, 33).

Atreladas à visão do carro como "patrimônio", "bem" ou "valor", apareceram ainda

duas concepções complementares: a de solidez na vida e a de investimento. A primeira

implica que a posse de bens materiais de alto valor não somente indica uma vida de

realizações, mas também traz uma sensação de segurança contra adversidades, no sentido de

que há de onde extrair recursos em uma situação extrema. Já a segunda concepção quer dizer

que o carro é utilizado como "forma de capitalização" na construção contínua de patrimônio,

isto é, o veículo atual nada mais é do que um passo em direção a outro passo futuro, que será

um carro de maior valor ou que exigirá menos esforço financeiro, em ambos casos

significando um movimento de evolução ou conquista.

Um bem material, né. (...) Eu acho que o carro representa um patrimônio pra família

porque de uma hora para outra você teve algum problema e esse patrimônio pode ser usado pra você de repente vender, resolver os seus problemas ou então, sei lá, se for

o meu caso, ajudar uma família, se precisar, coisas desse tipo. Se precisar, eu vendo.

(Sr. Celta, 45).

Aí já utiliza esse valor do bem como entrada, entendeu? Acredito que vai ficar uma

coisa até mais fácil de pegar o carro, dar entrada e financiar só a diferença, aí fica

uma parcela mais barata. (Sr. Fox, 33).

Esse carro daqui a seis anos ele tem um valor. Eu dou ele de entrada e tiro outro com

uma prestação muito mais módica e reduzo de sessenta (vezes) pra cinquenta, pra

quarenta. (...) Tem que se capitalizar pra poder ter alguma coisa. (Sr. Turin, 49).

Afora esses significados mais relacionados a aspectos socioeconômicos e financeiros,

as entrevistas também revelaram a questão simbólica do intercâmbio ou transmissão mútua de

atributos entre veículos e seus proprietários (BELK, 2004; HIRSCHMAN, 2003) e da

percepção do automóvel como um ser animado (BELK, 2004). Em alguns relatos, pode-se

observar que a descrição do carro vai além e inclui características de instituições e relações

pertencentes à esfera humana: ele é "família", ele é "casamento", ele é "paixão", ele é "filho",

ele é "companheiro".

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Vou falar, eu, (Sra. Cerato), como mulher, naquele carro que era lindo, eu me sentia

maravilhosa ali dentro. (Sra. Cerato, 29).

(O que não podia faltar no carro era) Essa mala família. Porque eu sou família, não

tem jeito. (Sr. Turin, 49).

Não (cogitei vender ou devolver o carro). Estou casado com ele. (Sr. Mégane, 46).

Era exatamente o carro que eu estava procurando, estava lá me esperando. Aí eu

olhei, foi paixão à primeira vista. (Sra. Palio II, 32).

É meu segundo filho. Os cuidados que eu tenho com o meu filho são

incomparavelmente maiores, mas depois do meu filho é com o carro. (Sr. Symbol,

34).

Eu sinto como se ele fosse meu companheiro mesmo, né? (...) Eu sinto como que ele faz parte da família mesmo. Porque passou por várias etapas de turbulência e ele

conseguiu sobreviver. A verdade é essa. (Sr. Celta, 45).

Vale reiterar ainda que os sentimentos positivos dos entrevistados com relação ao

automóvel são, no geral, inabaláveis, no sentido de que não sofrem influência da situação de

dificuldade financeira e de incapacidade de pagamento18

. O carro ou "não tem culpa" ou "não

tem nada a ver com a história". Portanto, da mesma forma que, para os homens aficionados

por automóveis, existe uma profunda separação entre seus carros e o mundo profano das

coisas ordinárias (BELK, 2004), para os entrevistados, parece que o carro e a dívida contraída

para sua compra não pertencem à mesma realidade.

Embora este seja o entendimento usual, há duas manifestações de sentimento

dissonantes. Na primeira, o carro em si também não é afetado pela situação desfavorável,

porém, por esta ter fugido completamente do controle da família, reconhece-se a perda

iminente do veículo, o que traz sentimentos de tristeza, frustração e saudade.

Eu acho muito triste. É porque, assim, a gente já não pode mais passear, não pode

ficar dando sopa com o carro, vamos dizer assim. Então fica, né? Você fica

frustrado, fica meio triste assim. (Sra. Cerato, 29).

Saudade. Como eu te falei, adoro dirigir, eu gostava do meu carro, foi o primeiro...

(Sr. Cerato, 31).

Já a segunda manifestação é efetivamente contrária ao veículo. Trata-se da única

responsabilização direta do carro pela situação negativa encontrada entre os vinte

entrevistados e o sentimento é de raiva. Nesse caso específico, na realidade, nem é exatamente

18 Os significados e sentimentos associados à dívida serão abordados em seção específica.

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um sentimento da família como um todo, mas da esposa, que, mesmo sem ter participado da

decisão de compra, sofre suas consequências igualmente19

.

É igual se fosse o bem e o mal. (...) Por mais que ele me dê o conforto, me dê a

tranquilidade, mas também tá tirando o sono. Então, assim... dá raiva. (Sra. Turin,

44).

4.1.4. Imaginário de famílias com e sem carro

O Quadro 2 a seguir traz uma síntese das principais respostas dos entrevistados quanto

à caracterização de duas famílias solicitada no exercício projetivo proposto no início de cada

entrevista. O intuito foi descontrair os entrevistados em relação ao tema central da pesquisa. A

situação apresentada falava de uma família sem carro e pedia que descrevessem essa família.

Algumas perguntas de apoio foram preparadas, indagando onde moravam, se faziam compras

financiadas e de que tipo e quais eram as ocupações do casal. Em seguida, a mesma situação

era proposta para uma família com carro.

A análise desse quadro permite compreender que o carro, assim como a casa e outros

bens de consumo mencionados, são capazes de construir um imaginário sobre as pessoas e, ao

mesmo tempo, atribuir a elas características, indicando que em uma sociedade de consumo os

indivíduos parecem ser mesmo inseparáveis da cultura material (MCCRACKEN, 2003a;

MILLER, 2007). Foi possível ver também como a categoria automóvel sinaliza movimentos

de ascensão social: apenas com a informação "sem carro" ou "com carro", os entrevistados

descreveram outros movimentos que simbolizavam conquistas, seja de outros bens materiais,

seja de formas de aquisição de bens, seja de trabalho ou ocupações desempenhados.

No imaginário dos entrevistados, não ter carro está associado a famílias que não

possuem casa própria (alugada, herdada) ou que até têm a propriedade, mas de casas descritas

com complementos negativos que desvalorizam essa posse, como "pequena", "ainda em

construção", "em prédio antigo", "com infiltrações", "de difícil acesso", "precisando de

reforma". Já na segunda parte do exercício projetivo, quando as famílias têm carro, as

moradias não são apenas descritas como próprias; elas trazem descrições com complementos

positivos que, em geral, invertem a situação desfavorável atribuída à família quando não tinha

carro. As casas passam a ser maiores, mais confortáveis, em "área nobre", "planejada", "com

vista", "vagas de garagem" e "sem infiltrações".

19 As circunstâncias dessa compra serão tratadas em maiores detalhes na seção referente à participação da família

no processo de decisão e compra do carro.

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Quadro 2: Imaginário de Famílias Com e Sem Carro. Fonte: Elaborado pelo autor.

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86

Quando perguntados sobre as compras financiadas das famílias com e sem carro, o

movimento para bens melhores, ainda que financiados, também acontece quando a família

hipoteticamente passa a ter carro. Não foi um movimento tão claro quanto o que havia sido

descrito para as moradias, pois alguns entrevistados mantiveram as mesmas categorias de

produtos para as compras financiadas de famílias com e sem carro. Mesmo assim, em alguns

casos, os celulares, micro-ondas, televisões, geladeiras, fogões, computadores, roupas e

compras descritos como "básicos" e "necessários" nas famílias sem carro, são substituídos ou

complementados por "mais caros", "mais sofisticados", "top de linha", "recém-lançados" e

"melhores marcas", quando a família tem carro. Para a família com carro, o imaginário dos

entrevistados trouxe ainda alguns produtos diferenciados, como imóveis, passeios e viagens,

além de observações registrando que essas famílias podem não precisar parcelar suas

compras, isto é, podem "comprar à vista", "em menos parcelas" ou "parcelam apenas em

casos extremos".

Sabe-se que, da mesma foram que a posse de bens materiais como automóvel e

moradia, dentre outros, constrói a identidade em nossa sociedade de consumo, o trabalho ou a

ocupação também são responsáveis pela construção da identidade. Alguns autores (JENKINS,

2004; RANSOME, 2005) discutem como a identidade é formada na contemporaneidade pelo

trabalho e pelo consumo. Nas famílias descritas como sem carro, o homem aparece limitado a

ocupações pouco qualificadas, como as de lixeiro, porteiro, corretor, instalador, pedreiro,

vendedor. A posse do carro, de forma similar ao que foi observado na questão da moradia,

abre espaço para ocupações bem mais qualificadas, no exercício projetivo tanto dos homens

quanto das mulheres entrevistadas: lixeiro passa a contador, corretor e eletricista passam a

empresários de pequeno negócio, pedreiro passa a metalúrgico, e porteiro passa a policial ou

técnico em enfermagem.

Mesmo sendo observado esse movimento de ascensão profissional das famílias sem

para as com carro, as ocupações mais qualificadas dos homens não ficaram distantes das

ocupações dos entrevistados, conforme descrito no capítulo de metodologia (ver Quadro 1).

Quando foi pedido que descrevessem o carro da família para a qual haviam construído um

breve perfil de posses e ocupações, os modelos apresentados foram, em geral, simples,

sugerindo também que não se descolaram de suas realidades.

Quando perguntados sobre a ocupação da mulher, no entanto, o exercício projetivo

parece trazer algumas diferenças, ou melhor, não é tão clara a natureza dos movimentos

profissionais das mulheres a partir da posse do carro. Quando a manicure passa a advogada, a

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87

vendedora a médica ou a dona de casa a empresária, tem-se uma lógica semelhante àquela

descrita sobre a ocupação dos homens. Quando, porém, a posse do carro sinaliza que

profissionais menos qualificadas passam a ser donas de casa no imaginário tanto de homens

quanto de mulheres, quando donas de casa passam a funções mais simples como vendedora

ou técnica de enfermagem, ou quando donas de casa continuam donas de casa, fica mais

difícil fazer algum tipo de inferência ou interpretação. Essas informações podem sugerir a

existência de contradições e conflitos no papel profissional de mulheres na sociedade

contemporânea.

4.2 A FAMÍLIA NO PROCESSO DE DECISÃO E COMPRA DO CARRO

O entendimento das atividades de consumo como mecanismos utilizados pelas

famílias para constituir e delimitar sua identidade coletiva (EPP e PRICE, 2008) pode

contribuir para a compreensão da compra do automóvel como um empreendimento coletivo.

No caso das famílias estudadas, a aquisição do veículo pode ser percebida como uma prática

de consumo que marca uma transição da identidade familiar, sendo o carro o recurso

simbólico utilizado na construção de uma narrativa de ascensão social. Dessa forma, esta

seção procura explorar as motivações, preferências e influências manifestadas pelo casal ao

longo do processo familiar de decisão e compra do automóvel, além de apontar eventuais

diferenças de gênero.

As entrevistas indicam que a aquisição do automóvel da família pode apresentar

processos de decisão distintos, com variedade de agentes e níveis de participação em suas

diferentes etapas. Embora o modelo adotado por Solomon (2011) para a tomada de decisão do

consumidor contenha quatro estágios principais, que vão do reconhecimento da necessidade,

passando pela busca de informações e pela avaliação de alternativas, até a escolha do produto,

o próprio autor entende que ele é um tanto simplista para decisões de natureza coletiva. Nos

casos pesquisados, parecem ser dois os principais fatores a adicionar complexidade ao

referido modelo: a situação de ter que convencer (ou ignorar) o cônjuge após o

reconhecimento da necessidade, como condição para dar prosseguimento ao processo; e a

preponderância da definição das possibilidades financeiras sobre as decisões relativas ao

produto.

O primeiro estágio, portanto, compreende não só o reconhecimento da necessidade do

automóvel por um cônjuge, mas também o compartilhamento dessa informação com o outro.

Com relação a esse momento inicial, os relatos aparentam sugerir uma variação restrita à

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88

pessoa que assume o papel de iniciador – marido ou esposa – e aos motivos informados como

despertadores do desejo pelo veículo. A partir dessa manifestação, porém, abre-se espaço para

diferentes tipos de posicionamento do companheiro com relação à ideia proposta. A esse

respeito, as entrevistas parecem indicar que a postura adotada pelo parceiro pode resultar na

mencionada necessidade de seu convencimento (ou desconsideração), além de influenciar o

nível de engajamento do casal na busca de informações, na avaliação de alternativas e na

escolha do produto. Já no que se refere às possibilidades financeiras da família, os

depoimentos dos entrevistados apontam para sua aparente onipresença na tomada de decisão,

delimitando as opções em todos os estágios, do começo ao fim do processo.

4.2.1 Reconhecimento do desejo

Dos dez casais entrevistados, sete informaram que a primeira manifestação de desejo

pelo carro partiu do marido e três, da esposa. Embora a natureza qualitativa da presente

pesquisa não permita qualquer inferência de ordem estatística, é possível dizer que a simples

ocorrência de mulheres exercendo o papel de iniciador no processo de compra do veículo

corrobora o estudo de Belch e Willis (2002). A partir da análise dos efeitos de mudanças na

estrutura da família sobre o processo decisório de compra familiar, os autores chegaram à

conclusão de que, mesmo o marido permanecendo o mais influente na iniciação da decisão de

comprar um automóvel, havia aumentado significativamente o grau relativo de influência das

esposas nessa etapa (BELCH e WILLIS, 2002).

Apesar dessa constatação, vale ressaltar que os três casos de aquisição do automóvel

da família iniciados com uma manifestação feminina apresentam algumas especificidades. Em

dois deles (casais Palio I e Palio II), o marido não possuía habilitação para dirigir. No terceiro

(casal Classe A), o esposo já contava com veículo da empresa em que trabalhava para uso

pessoal e familiar. Até que ponto tais circunstâncias podem ter comprometido o interesse

desses homens por um carro é uma incógnita. O que os relatos permitem afirmar é que suas

esposas tiveram motivos próprios suficientes para querer comprar um carro.

Com efeito, entre as razões que essas mulheres alegam ter despertado e/ou alimentado

seu desejo pelo veículo, aparecem duas com caráter mais individualista, no sentido de que se

referem ou a um histórico individual de posse de carros ou a sensações particulares de

"desespero" pelo tempo sem automóvel ou de "agitação" pela "oportunidade muito boa" de

compra. É interessante notar, nos discursos a seguir, como a migração do "eu" para o "nós"

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ocorre justamente quando se passa da exposição de motivos para a declaração da vontade de

comprar:

Eu sempre tive carro. Quando eu fiz dezoito anos, meu pai me deu um carro. Então

eu fiquei uma época sem carro. Então já começou a me dar desespero. Falei "Não,

vamos comprar, vamos comprar" e a gente comprou. (Sra. Palio II, 32).

Sabe quando você fica assim, é uma oportunidade muito boa, é um carro muito bom,

está em um preço legal? E aí a minha pulguinha ficou muito agitada e eu falei "Vamos ter que comprar". (Sra. Classe A, 31).

De forma semelhante, os testemunhos de iniciadores masculinos também informam

algumas motivações privativas para a compra ou troca do carro, como "ser alucinado por

carro", "sempre ter dirigido o carro de amigos", "detestar levar o carro para a oficina" ou "não

aguentar mais o carro velho". Eventualmente, a evidência dessa motivação personalista parece

demandar alguma dissimulação por meio da adaptação do discurso, como bem percebe a Sra.

Cerato:

Ele sempre trabalhou dirigindo, era taxista, sempre quis ter um carro. Aí eu acho que

foi mais essa coisa, porque, na verdade, ele não gosta, ele é alucinado por carro.

Então ele sempre falava... primeiro era "meu", né, quando namorava: "Vou comprar

o meu carro" (risos). E depois "Vamos comprar o nosso carro". (Sra. Cerato, 31).

Eu tinha um grupo de amigos que quase todos tinham carro, só que do grupo eu era

o único que não bebia. Então eu sempre dirigi o carro deles. (...) Pô, você toma gosto

naquela coisa. (...) Aquilo vai cultivando o desejo de ter um carro. (Sr. Fox, 33).

Eu falei que estava na hora de mudar porque estava começando a ir muito pra

oficina e eu detesto ficar levando carro pra oficina. (Sr. Siena, 40).

Trouxe pra ela (Sra. Turin): "Vou comprar um carro novo porque eu não aguento

mais o velho". (Sr. Turin, 49).

Nem todas as razões apresentadas, porém, são individualistas. Alguns depoimentos

sugerem que o reconhecimento da necessidade do automóvel decorreu de motivações mais

coletivas ou altruístas. Nesse caso, os iniciadores do processo de compra afirmam querer

"facilitar o transporte da esposa para o trabalho", "não depender de parentes para ajudar a

sogra", "viabilizar certas atividades da família sem ser obrigado a pedir favores", "oferecer

mais conforto para a esposa grávida" ou "ajudar nos cuidados com o filho recém-nascido":

Onde nós moramos, nós temos dificuldade com transporte. (...) A gente achou

melhor comprar um carro para se locomover e para a (Sra. Fox) trabalhar, porque na

época ela trabalhava. (Sr. Fox, 33).

Na época a gente tinha a minha sogra muito doente e a gente ficava dependendo de

parente aqui, parente ali e eu botei na minha cabeça de comprar um carro para ajudar

a mãe da minha esposa. (Sr. Celta, 45).

Ficamos um tempo sem carro. O que acontece? Para fazer algumas coisas, você é

obrigado a pedir a cunhado, cunhada, então fica ruim, fica chato. (Sr. Mégane, 46).

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90

Tínhamos um carro mais simples, básico, sem luxo, sem conforto, sem ar-

condicionado, direção e nada disso e, com ela ficando grávida, eu vi a necessidade

de ter um carro mais confortável. (Sr. Symbol, 34).

Quando nasceu (nosso filho), eu falei: "(Sr. Palio I), a gente precisa comprar um

carro", porque o carro ajuda muito. (Sra. Palio I, 31).

4.2.2 Negociações para um desejo comum

Manifestada a vontade de adquirir um automóvel pelo iniciador, abrem-se algumas

possibilidades de negociação com o cônjuge para a concretização da ideia. Nas famílias

pesquisadas, o companheiro normalmente se posicionou a favor da compra. Em dois casos,

porém, o iniciador teve que enfrentar a resistência do companheiro (casais Symbol e Turin),

impondo-se a necessidade de convencer ou ignorar o parceiro para se chegar à tomada de

decisão. De uma forma geral, as entrevistas parecem indicar que o nível de consenso do casal

com relação à importância dessa compra para a família pode influenciar o engajamento de

cada um na busca de informações, na avaliação de alternativas e na escolha do produto.

Uma forma válida de compreender o posicionamento do parceiro em relação à compra

do carro consiste em recorrer a construtos do modelo teórico de Epp e Price (2008) sobre a

interação de identidades familiares nas práticas de consumo. Dos sete fatores que as autoras

entendem moderar como as famílias constituem e gerenciam suas identidades, pelo menos três

aparentam estar presentes nessa passagem da intenção para a decisão de comprar o automóvel

das famílias pesquisadas. São eles: eventos de transição da identidade familiar; nível de

concordância dos membros da família quanto à identidade coletiva; e grau de sinergia entre as

identidades da família (EPP e PRICE, 2008).

Embora Epp e Price (2008) não mencionem expressamente a compra do carro como

um evento de transição da identidade, parece ser razoável entender sua qualificação como tal,

tendo em vista os exemplos elencados pelas autoras: casamento, nascimento de filho e compra

de uma casa (EPP e PRICE, 2008). Em se tratando das famílias estudadas, esse caráter de

transição fica reforçado, uma vez que conferem à aquisição do automóvel o significado de

ascensão social. Assim, para os casais entrevistados, a compra do carro aparentemente pode

ser um acontecimento tão buscado quanto os citados pelas autoras e cercado de expectativa

similar.

Entretanto, a priori, nada impede que um casal apresente níveis diferentes de

concordância quanto à identidade familiar e aos objetos de consumo que contribuem para a

sua constituição. Nos casos investigados, um entendimento compartilhado quanto à

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91

importância do carro para a família, independentemente de quem fez a proposição inicial,

parece ter suscitado no cônjuge uma atitude de "comprar a ideia" ou "concordar com a

loucura"; uma compreensão "muito diferente", porém, aparenta ter implicado na discordância

do companheiro, tornando inúteis as "tentativas de convencimento", conforme relatos abaixo:

Foi a nossa conquista, porque depois que eu comprei essa ideia do carro, então

fiquei naquela ansiedade. Quando chegou é igual doce para criança, fiquei super

feliz, entendeu? (Sra. Cerato, 31).

Eu concordei. Nessa parte, a gente se entende... nessas loucuras assim, a gente se

entende. De falar "Vamos trocar?", "Vambora!" (Sra. Siena, 41).

Assim... o nosso jeito de pensar é muito diferente. (...) Por mais que ele tente me

convencer do contrário, minha resposta melhor até hoje ainda é que dava-se um jeito

de consertar o outro carro... (Sra. Turin, 44).

Já a medida da sinergia entre a identidade coletiva da família (em vias de transição

pela compra do carro) e as identidades individuais de cada cônjuge parece ter relação com o

grau de engajamento que marido e esposa apresentaram no processo de compra. Quanto a

isso, as entrevistas revelam envolvimentos que variam de um mero aval ou apoio até uma

participação entusiasmada, capaz de alterar aspectos inicialmente concebidos para o carro. No

primeiro caso, se o cônjuge não percebe sua identidade atrelada à pretendida transição da

identidade coletiva, ele pode preferir "não se meter" ou "dar pitaco" na compra ou só se

preocupar em "não ter aporrinhação", como exemplificado nos seguintes depoimentos:

Ela deixou tudo por minha conta, ela não se meteu, não deu pitaco... não falou o que

ela queria. Ela queria o carro. Na verdade, ela queria era isso. (Sr. Celta, 45).

Eu só falei "Se o carro não me der muita aporrinhação, vai valer o investimento".

(...) Foi mais ela (que participou). Ela que praticamente falou "É esse que vamos

pegar" (Sr. Classe A, 47).

Se o parceiro, porém, acredita que a aquisição do automóvel pode afetar a identidade

coletiva e a sua identidade individual similarmente, parece haver motivos para ele "realmente

se animar", "gostar de ver tudo", "falar o que não pode faltar" e até determinar qual será o

modelo escolhido:

Depois que eu realmente me animei, eu dei uma olhada no carro, também achei

maravilhoso e tal. (...) Eu queria preto, ar condicionado, vidro elétrico e um som

bonito. Completamente diferente do que ele pensava (risos). Quando eu falava isso,

ele respondia "Não, mas tem, tá". (Sra. Cerato, 31).

Carro quem quis foi meu marido. Ele queria um carro seminovo, né? Um Fiat Uno,

que eu acho horrível esse carro. E eu que consegui convencer ele a comprar um

carro zero. (...) Eu, como gosto de ver tudo, eu fiquei verificando os lugares, fiquei

assim buscando informações. (Sra. Fox, 33).

Ele escolhe o carro. Aí eu falo o que não pode faltar. Tem que ter quatro portas, tem

que ter ar condicionado. (Sra. Siena, 41).

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Minha esposa, assim que olhou o carro, bateu o olho, "Esse aqui". Eu falei "Mas isso

aqui é carro importado". Ela "Não, esse aqui". Aí eu olhei, fui ver se o carro era

bom, completo. "O carro é completo. Então tá". (Sr. Mégane, 46).

4.2.3 O desejo que "cabe no bolso"

Como se pode observar, as discussões conduzidas acima sobre o processo de compra

do automóvel das famílias pesquisadas não incluíram o componente financeiro. Todavia, o

teor das entrevistas parece sugerir que a questão financeira pode ser preponderante em relação

às negociações realizadas em todos os estágios da tomada de decisão. De fato, uma das

principais preocupações dos casais estudados com relação à compra aparenta ser definir o

valor do orçamento doméstico que pode ser direcionado para o financiamento do veículo, uma

vez que comprar à vista é para os "ricos" e juntar dinheiro previamente não é uma

possibilidade considerada20

. Essa espécie de "dotação orçamentária" para a aquisição do

carro, por sua vez, parece influenciar fortemente definições de duas naturezas: as relativas ao

envolvimento financeiro de cada membro do casal; e as relacionadas a aspectos do veículo

(ano, modelo, tamanho, potência etc.).

Nas compras efetuadas pelas famílias pesquisadas, o engajamento financeiro

aparentemente foi determinado mais por necessidade que por voluntariedade. Quando o

proponente era capaz de cobrir aquela "dotação" somente com recursos próprios21

,

comumente ele se tornava responsável pelo pagamento do financiamento, sem a colaboração

do cônjuge. Nesse caso, do ponto de vista financeiro, o iniciador parecia gozar de autonomia

para dar prosseguimento ao processo de compra, sendo a concordância do parceiro apreciada,

mas não necessária. Quando, porém, a viabilização da compra dependia da complementação

com recursos do cônjuge, tornava-se imprescindível que este fosse favorável à compra ou que,

pelo menos, pudesse ser convencido da sua importância. Nessa situação, a responsabilidade

pelo pagamento do carro costumava ser compartilhada, com marido e mulher procurando

contribuir de forma equitativa.

Como mencionado anteriormente, as entrevistas revelaram dois casos de parceiros

contrários à ideia do automóvel: casais Symbol e Turin. Seus processos de compra ilustram

20

As dificuldades no gerenciamento do dinheiro serão tratadas na seção referente ao endividamento como

mecanismo de aquisição de bens. 21 O caso de famílias que afirmam adotar um fundo comum está compreendido na discussão. A questão passa a

ser sobre o grau de autonomia ou influência do cônjuge que deu a ideia do carro quanto à destinação de recursos

do fundo para a cobertura da referida "dotação", se ele pode tomar essa decisão sozinho ou se precisa da

concordância do parceiro.

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como a autonomia financeira do iniciador pode levar a soluções distintas para a resistência

enfrentada, com diferentes desdobramentos.

No caso da família Symbol, o marido, que se dizia cansado do carro velho sem ar-

condicionado e queria proporcionar mais conforto ao filho recém-nascido no verão que se

aproximava, levantou o interesse pela troca do carro. Contudo, em face da necessidade de

colaboração financeira da esposa, que era "meio contra" à compra, foi preciso o Sr. Symbol

apresentar "argumentos" para o seu convencimento. Tendo em vista que a Sra. Symbol

"acabou concordando", não há razões para não considerar essa aquisição como fruto de uma

decisão consensual.

No começo eu meio que fui contra, eu achei que a gente estava se endividando, mas ele argumentou, falou que precisava para a gente ir no mercado, por essas coisas...

Aí eu vendo também pelo meu filho acabei concordando. (Sra. Symbol, 29).

Já no caso da família Turin, o marido queria um carro novo porque "não aguentava

mais o velho", que passou a apresentar muitos problemas após um acidente. Como o Sr. Turin

considerava a renda proveniente de seu pequeno comércio "um dinheiro só dele",

desvinculado do orçamento familiar, e essa era suficiente para cobrir o financiamento do

veículo, ele não se preocupou em convencer a esposa, que preferia "dar um jeito de consertar"

o carro antigo. Ele "simplesmente foi" comprar o carro, em uma decisão autônoma. No

entanto, a Sra. Turin não parece admitir a pretensa autonomia financeira do marido como

condição para um planejamento que não seja conjunto, tanto que diz ter ficado "chocada" e

com "cara de babaca" frente à atitude do esposo, que é percebida como uma "sacanagem":

Meu esposo simplesmente deslumbrou a historia de ter um carro e foi... (...) Eu

embirro um pouco pelo fato de não ter sido uma coisa planejada em conjunto. (...)

Quando eu fui encontrar com ele, ele já estava lá na agência, já olhando e dizendo

"Eu comprei esse". Eu olhei para a cara dele, fiz aquela cara de babaca, né

"Comprou esse? Tá de sacanagem...". "Não, comprei". Pensei "Não deve estar

falando a verdade...". E de fato ele estava falando a verdade. Aquilo foi um choque

pra mim. (Sra. Turin, 44).

No que diz respeito à influência exercida pela sugerida "dotação orçamentária" sobre

as definições relativas a aspectos do automóvel, um quarto moderador do modelo teórico de

Epp e Price (2008) acerca da interação de identidades familiares parece poder ser encontrado:

barreiras de mercado que restringem as práticas de construção de identidade. Segundo as

autoras, a falta de recursos financeiros pode impedir que a família represente suas identidades

nas formas que deseja, levando a uma redefinição forçada da identidade familiar (EPP e

PRICE, 2008). Nesse sentido, as entrevistas revelam que as possibilidades financeiras da

família, isto é, o "orçamento", o "bolso", a "prestação" ou a "renda" delimitam em muitos

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casos as decisões relacionadas ao ano, modelo, tamanho e potência do carro. Essa limitação

financeira impede que os entrevistados adquiram o carro que "queriam muito" ou que "ainda

desejam" e faz com que eles "tenham que se adaptar", conforme testemunhos abaixo:

Um amigo meu disse que 1.0 é uma coisa horrível, eu não acho, entendeu? Porque,

além de ser o que cabe no meu bolso, eu não posso ficar aborrecido com algo que é

meu, eu tenho que me adaptar. (Sr. Siena, 40).

Eu a princípio queria muito o Golf porque, pô, eu acho lindo. Só que a vendedora foi

informando "Olha só, a manutenção do Golf é cara, o seguro do Golf é caro". (...) Aí

ficou entre o Gol e o Fox. (...) (O Golf) ia fugir do nosso orçamento. (Sr. Fox, 33).

Eu queria um sedã. Mas porque eu não podia comprar um carro perua, né, uma station. Não tinha como, ficava muito acima da minha prestação. (Sr. Turin, 49).

O (Sr. Palio I) queria um carro maior, só que na hora da compra, acabou da gente

não tendo como comprar por questão de renda, enfim, a gente acabou comprando o

Palio. (Sra. Palio I, 31).

Não chegamos a comprar um carro zero... mas porque estava bem mais caro, a

prestação ia ficar um pouquinho alta para o nosso bolso. (Sra. Palio II, 32).

É o que eu falei para você, eu comprei o Celta na época, mas o carro que eu desejo

comprar ainda é um Gol. É, com certeza... (Sr. Celta, 45).

O Symbol é um carro muito confortável, dá muita satisfação... embora, se eu

pudesse adquirir, eu adquiria um Civic... mas é um carro confortável, eu acho muito

bom. (Sra. Symbol, 29).

4.2.4 Papéis de gênero

Os processos de compra do automóvel conduzidos pelas famílias pesquisadas

aparentam comportar, ainda, certa influência de gênero em algumas definições quanto ao

envolvimento de cada cônjuge. Parece haver, entre os entrevistados, uma percepção geral da

existência de papéis predominantemente masculinos na aquisição do carro, a despeito da

crescente influência da mulher (BELCH e WILLIS, 2002). Destacam-se, nesse contexto, as

transações realizadas pelo casal quanto à atribuição das seguintes responsabilidades: pela

negociação no momento da compra; e pelo pagamento do financiamento do veículo, no qual

há a presença de um componente simbólico.

Embora o estudo de Belch e Willis (2002) sugira que a influência da esposa tenha

aumentado em todos os estágios do processo de compra do automóvel, para os casais

estudados, determinada função parece competir ao homem: negociar as condições de compra

(preço, prazo, forma de pagamento, brindes etc.) diretamente com o vendedor. De fato, em

quase todos os casos investigados, o marido ficou à frente dessas negociações,

independentemente de ter sido ele a pessoa que deu a ideia do carro, que assinou o contrato de

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financiamento ou que ficou responsável pelo pagamento. Na compra do casal Palio I, por

exemplo, mesmo a esposa tendo iniciado o processo de compra, escolhido o modelo que

considerava "carro de mulher" e assinado o contrato, coube ao marido assumir a negociação

junto à concessionária:

(A palavra final foi) minha porque acabou sendo o Palio e eu era louca pelo Palio,

porque eu acho que é um carro de mulher. O (Sr. Palio I) não ficou muito satisfeito

não, mas eu quis. (...) Está no meu nome, mas ele que negociou tudo. (...) O (Sr.

Palio I) tem muita lábia. Então ele foi conversando para reduzir um pouco o valor de

entrada, para reduzir parcelamento, e aí a gente conseguiu. (Sra. Palio I, 31).

O único caso em que a esposa desempenhou o papel de negociador, entre as dez

famílias pesquisadas, foi o do casal Palio II. Para tanto, "ter um poder da palavra incrível"

talvez pudesse ser entendido como uma competência determinante para ela se incumbir dessa

responsabilidade, ainda mais considerando que "ter muita lábia" foi um dos motivos sugeridos

no relato anterior para o marido ter ficado à frente das negociações.

Eu tenho um poder da palavra incrível. Negociei, negociei, cheguei mais ou menos

no patamar que eu queria. Ficou no meio, entre eles e eu, não ficou nem do jeito

deles nem do meu. (Sra. Palio II, 32).

O teor das entrevistas com a família Palio II, porém, parece sugerir que a compra do

carro não é a única coisa "resolvida" pela esposa. Na realidade, ela aparenta dominar as

decisões do lar como um todo, no sentido de que "ali a palavra final é dela". Como

consequência dessa ocupação prévia de um posto tradicionalmente masculino, a atuação da

Sra. Palio II frente às negociações com a concessionária talvez possa ser compreendida não

como exceção, mas sim como confirmação de que essa função compete predominantemente

ao homem.

Ela demonstrou interesse em querer comprar por gostar muito da marca Fiat, um carro que ela gosta, o Palio, então ela resolveu comprar e fomos até um loja. (Sr.

Palio II, 35).

A palavra final aqui (em casa) é minha. (Sra. Palio II, 32).

Já com relação à responsabilidade pelo pagamento do financiamento do veículo,

alguns casos estudados parecem assinalar uma importância simbólica da sua atribuição à

figura masculina. Como dito, nas compras cuja viabilização passava pelo engajamento

financeiro de ambos os cônjuges, tal responsabilidade costumava ser compartilhada, com

marido e mulher procurando contribuir de forma equitativa. Algumas dessas famílias, porém,

aparentavam ofuscar a participação da mulher no pagamento do carro, por meio do rearranjo

do acordo firmado sobre o orçamento doméstico: ao invés de aplicar diretamente seus

recursos no automóvel, a mulher passava a assumir uma parcela maior das "despesas da casa";

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uma vez diminuída sua colaboração nesses gastos, o homem tornava-se apto a pagar o

financiamento do veículo "sozinho" ou "integralmente", conforme depoimentos abaixo:

(Você ficou responsável integralmente pelo pagamento?) Exato. Caso desse algum

problema, aí ela chegaria. Mas ela ficaria responsável por outras situações, despesas

da casa, mas a prioridade do pagamento do carro seria comigo. (Sr. Siena, 40).

O que ela ganhava era o suficiente para manter as despesas da casa e eu pagar o

carro. Eu pagaria o carro sozinho, as despesas do carro, e ela continuaria com a despesa da casa. (Sr. Fox, 33).

Eu fiquei com o carro e ela ficou com mais alguma coisa da casa, porque a gente

paga também o apartamento. (Sr. Symbol, 34).

Fui eu (quem ficou responsável pelo pagamento), mas ela me ajudava. Se ela não me

ajudasse pagando as prestações, ela me ajudava nas despesas de casa. (Sr. Mégane,

46).

A situação acima, de certa forma, assemelha-se à vislumbrada por Commuri e Gentry

(2005) em estudo sobre a tomada de decisão familiar em domicílios chefiados22

pela mulher.

De acordo com os autores, um mecanismo adotado nesses lares para o marido figurar como

bom provedor, a despeito da primazia econômica da esposa, consistia em ligar uma despesa

carregada de significado simbólico (parcela da hipoteca, por exemplo) ao seu fundo

individual. Nos casos em apreço, o financiamento do carro parece ser a despesa a portar tal

importância simbólica. Contudo, no lugar da maior renda da mulher, o que se procura

disfarçar é dependência do homem em relação à renda da parceira, para comprar um bem

associado simbolicamente a uma narrativa de ascensão social. Nessas famílias, portanto, o

papel de bom provedor parece ser atribuído àquele que "ficou com o carro" ou com "a

prioridade do seu pagamento", independentemente das negociações engendradas para tornar

isso possível.

4.3 FORMAS DE LIDAR COM OS CUSTOS RELATIVOS AO AUTOMÓVEL

Uma vez concretizado o sonho de adquirir o carro da família, os entrevistados parecem

ser chamados mais cedo ou mais tarde à realidade de custos que o veículo encerra. Os casais

estudados falam, por exemplo, do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores

(IPVA), do seguro, do combustível, da manutenção, da garagem, do licenciamento, das

multas, dos consertos. Sendo assim, a presente seção procura explorar alguns aspectos

abordados pelas famílias pesquisadas acerca dessas despesas que se somam à prestação do

veículo, para entender possíveis efeitos da sua aquisição sobre o orçamento doméstico e o

22 O termo chefiado aqui se refere exclusivamente ao cônjuge com maior rendimento no lar.

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cotidiano familiar. Além disso, busca compreender formas encontradas para lidar com esses

gastos, muitas vezes não considerados no processo de compra do automóvel.

4.3.1 Falhas no planejamento das famílias

Alguns casais estudados reconhecem certo descuido no "planejamento" realizado para

a aquisição do carro. Para eles, o valor da prestação, "parcela mensal" ou "mensalidade"

aparenta ter sido o grande foco de atenção, fazendo com que "nem pensassem nos outros

gastos". Como tais custos são inerentes ao consumo do automóvel, "ter que vê-los depois"

parece ser a consequência natural de não ter pensado neles "na hora de comprar" ou "no

começo". Entretanto, tendo em vista que o orçamento dessas famílias não foi planejado

adequadamente, são relatadas dificuldades para assimilar todas as despesas:

Na hora de comprar a gente só pensa na parcela mensal, se consegue dar algum

dinheiro a mais para abater na mensalidade. Mas não pensa nos outros gastos. (Sra.

Siena, 41).

A gente acaba não incluindo no planejamento. Você não tem que colocar só o

parcelamento, você tem que colocar IPVA, tem que colocar gasolina, manutenção,

seguro. No começo, a gente compra o carro e nem pensa. (Sra. Palio I, 31).

Depois é que a gente tem que torcer, a gente tem que ver o custo do sonho. E o

primeiro mês foi legal, o segundo mês já foi tira daqui, bota ali. (Sra. Turin, 44).

Outras famílias, porém, afirmam ter considerado em seu "orçamento" ou

"programação" os principais custos relativos ao automóvel, conforme exemplificado nos

testemunhos abaixo:

Eu tinha noção de que tem que ter uma garagem, que você paga IPVA, que todo ano

tem licenciamento, que você pode ter multas, que você pode ter problemas com o

carro. (Sr. Cerato, 31).

A gente já tinha visto isso também, estava dentro do orçamento: seguro, IPVA, tudo.

(Sra. Fox, 33).

A princípio pensei que essa parcela poderia ser do Golf, só que, com o acréscimo de

todas as outras condições que vêm agregadas ao carro, não só o pagamento da

parcela (...) seguro, manutenção, aquela coisa toda (...), eu excluí (o Golf como

alternativa de compra) porque fugiu do meu orçamento. (Sr. Fox, 33).

É, a gente já tinha programado. Até tanto a gente pode pagar naturalmente. Dá pra

gente pagar o carro, dá pra dar o dinheiro pra manutenção, pro combustível. (Sra.

Palio II, 32).

Como se pode observar, esses relatos também transparecem uma preocupação com a

"parcela mensal", mas sugerem uma concepção diferente: para esse segundo grupo de

famílias, "parcela" parece ser o "até tanto", no limite permitido do orçamento, que pode ser

despendido com o carro. Sendo assim, a parcela do orçamento a ser comprometida com o

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automóvel não se resume à parcela do financiamento ou prestação; ela inclui tanto a prestação

quanto as "condições que vêm agregadas". Ao conceber "parcela" dessa forma, tais famílias

supostamente afastariam o risco a que o grupo anterior ficou exposto por considerar, para a

parcela do financiamento, o valor da parcela disponível do orçamento, isto é, por deixar o

orçamento "no limite" antes mesmo da incidência de custos em princípio inevitáveis.

Ocorre que tanto as famílias que "só pensaram na parcela" quanto as que "já tinham

visto tudo" antes de comprar o carro acabaram chegando a uma situação semelhante de

dificuldade financeira e se tornando igualmente incapazes de pagar o financiamento do

automóvel. Esse destino comum, a despeito da suposta diferença de risco que declararam

incorrer, sugere certa inconsistência no discurso de bom planejamento apresentado pelo

segundo grupo de famílias. Pode-se questionar se o relato da compra melhor planejada

exprime uma crença genuína na mesma ou uma resistência em admitir os próprios erros de

planejamento, mas é possível encontrar na própria fala desses entrevistados indícios de falhas

que podem ter contribuído para chegarem à circunstância de adversidade financeira:

Quando chega é que você toma aquele susto. O primeiro IPVA ainda não tinha o

gás, falei até para ele "Nossa! Salgado, né?" Aí ele até falou "Mas eu tinha

comentado com você". Mas ele não tinha falado o valor exato porque nem ele sabia

(...) A esperança é a ultima que morre, eu imaginei que fosse um pouco menos. (Sra. Cerato, 29).

O IPVA (surpreendeu), não achei que ia ser tão caro como foi. Pra mim, por o carro

ser 1.0 (...) pra mim, "Meu carro é 1.0, vai ser barato". (Sr. Celta, 45).

O pior mesmo é a porcaria do IPVA. O carro tem onze anos e tu paga R$ 1 mil de

IPVA, é meio desproporcional, né. (...) É muito dinheiro por nada. (...) O carro está

parado há um tempão, não estou nem usufruindo da rua. (Sr. Classe A, 47).

Preço absurdo, R$ 800. Eu acho um roubo (o IPVA). (Sra. Mégane, 44).

IPVA é bem salgado, né. Pelo menos, o do nosso carro. Acho que tinha que dar um

jeito disso aí diminuir. (Sra. Fox, 33).

Com efeito, os testemunhos acima parecem demonstrar a "surpresa" ou o "susto" dos

entrevistados com o IPVA, talvez o custo mais fortemente vinculado ao automóvel, por sua

obrigatoriedade legal. Em alguns casos, a surpresa é francamente exposta. Em outros, ela

aparenta estar contida na veemência das reclamações dirigidas ao imposto, o que pode indicar

alguma frustração por esse custo não ter sido da forma que essas famílias esperavam ou até

precisavam para "poder pagar naturalmente". Aberta ou velada, tal surpresa é incompatível

com o discurso do bom planejamento e sugere que alguns custos podem ter sido mais

"comentados" do que efetivamente calculados ou então uma qualidade muito precária no

levantamento de informações para a compra. Nesse caso, "ter esperança" e "imaginar" que

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determinado custo seria "barato" ou "um pouco menos" parecem ser posturas próximas às

confessadas pelo primeiro grupo quando admitiu "nem pensar" nele.

Portanto, independentemente do discurso adotado quanto à qualidade do planejamento

feito para a aquisição do automóvel, as famílias entrevistadas aparentam ter cometido falhas

que as expuseram de forma semelhante ao risco de dificuldades financeiras. Essas falhas de

planejamento sugerem o desequilíbrio do orçamento doméstico para o recebimento de todas

as despesas do veículo, mesmo com algumas alternativas buscadas para diminuir seu impacto

sobre o cotidiano familiar.

4.3.2 Gerenciamento dos custos pelas famílias

A decisão de comprar o carro, para o grupo de entrevistados, parece envolver

negociações, escolhas e renúncias no âmbito familiar, uma vez que o pagamento do

financiamento do veículo passa a demandar recursos que poderiam ser gastos de outra forma.

O orçamento doméstico "no limite" após a aquisição do automóvel pode fazer com que outros

itens de consumo valorizados pela família passem a ter que se considerados entre as opções de

cortes. Nesse sentido, os relatos parecem indicar a existência de duas formas principais de as

famílias estudadas tentarem manter seu nível de gastos "dentro do orçamento": o

gerenciamento dos custos relativos ao carro; e a negociação de outras despesas do cotidiano

familiar.

Um dos custos associados ao carro que aparenta oferecer maiores dificuldades de

pagamento para as famílias estudadas é o IPVA. Embora as entrevistas indiquem uma ciência

geral de que o imposto segue um calendário de cobrança relativamente fixo, costumando

incidir nos primeiros meses do ano, o conjunto de entrevistados parece percebê-lo como uma

despesa excepcional ao cotidiano familiar de gastos. Essa percepção, inclusive, reforça a ideia

de que o planejamento de compra do automóvel pode não ter incluído tal custo na "parcela

mensal" do orçamento destinada ao carro. Como resultado dessa falta de provisão para o

IPVA a partir de recursos habituais, alguns casais entrevistados costumam vincular seu

pagamento ao recebimento de rendimentos também considerados excepcionais,

principalmente, 13º salário, premiação em remuneração variável e adicional de férias.

(O IPVA) entra sempre em cima do final do ano, onde você tem sempre um serviço

extra, você ganha mais dinheiro. Você tem o 13º salário, eu junto as férias em cima

dessa época, eu planejo pra receber todo o bruto do meu dinheiro. (Sr. Turin, 49).

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O IPVA era logo no começo do ano e combinava junto com a empresa quando

pagava a premiação do ano anterior. Então, eu já pegava de uma parte e pagava

logo, já entrava o ano sem essa preocupação, entendeu? (Sr. Fox, 33).

O bom é que eu sempre paguei ele (o IPVA) nas férias. (Sr. Celta, 45).

A lógica descrita acima se baseia no aumento, ainda que temporário, dos rendimentos

da família, como forma de comportar uma despesa para a qual o orçamento doméstico não foi

adequadamente preparado. Outra maneira de gerenciar esse orçamento "estourado", quando

"não sobra nada", passa pela tentativa de redução dos custos mal calculados do carro, tendo

sido diversos os mecanismos lembrados pelas famílias pesquisadas.

O "kit gás", que é a conversão do carro para Gás Natural Veicular (GNV), habilita o

proprietário a obter o desconto de 75% sobre o valor do IPVA, oferecido pelo Governo do

Estado do Rio de Janeiro como incentivo à redução de poluentes emitidos pela frota

fluminense. Além disso, serve para reduzir os gastos com combustível, uma vez que o GNV é

uma opção mais econômica que a gasolina ou o etanol (BARROS, 2012). Contudo, nem todas

as famílias que consideraram essa possibilidade conseguiram implementar efetivamente a

estratégia. Dentre as dificuldades de instalação do "kit gás", a falta de homologação do

procedimento pela montadora do carro, o receio de que problemas mecânicos causados pela

conversão compensem seus benefícios e a crença de que há impacto sobre a potência do

automóvel são mencionadas nos depoimentos abaixo:

Na época não sobrou (dinheiro). (...) Esse era um dos motivos para a gente colocar o

kit gás, para reduzir o IPVA. (...) porque é muito caro, IPVA é muito alto e a gente acabou parcelando esse ano e tudo para poder pagar. (Sra. Palio I, 31).

O IPVA aqui no Rio de Janeiro ele é muito caro. Um IPVA de R$ 1.600 num carro

desse é muita coisa. E eu não posso usar o gás porque a empresa não libera, não

homologou o gás do carro, pra redução. (Sr. Turin, 49).

Eu cheguei a pensar em botar gás para poder quebrar esse (IPVA)... Me falaram que

era uma aporrinhação danada porque o carro era meio melindroso para botar gás e

eu desisti. É trocar seis por meia dúzia, vou ficar morrendo em mecânica toda hora.

(Sr. Classe A, 47).

Nós pensamos em comprar o carro e comprar kit gás para reduzir o IPVA, entendeu?

Mas nós não fizemos isso. (...) O povo fica falando que o carro era 1.0, aí não ia

subir isso, não ia subir aquilo. (Sra. Celta, 43).

Outra forma de lidar com o custo de combustível eventualmente percebida nas

entrevistas foi a redução da própria utilização do veículo, conforme relatos abaixo:

Por ele ser flex, a gente até ficou com uma alternativa maior de custo de

combustível, mas chegou um período que tanto álcool quanto gasolina ficaram

muito caros. Então, teve um período que realmente, assim, fugiu um pouco do

orçamento. A gente diminuía o uso do carro para não gastar tanto combustível. (Sr.

Fox, 33).

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(Usar menos o carro em um mês em que se esteja apertado, isso pode acontecer?)

Acontece, acontece sim. (Sra. Turin, 44).

Não realizar os serviços relativos à manutenção em concessionárias das montadoras de

automóveis também aparece como uma prática recorrente das famílias entrevistadas para o

controle dos gastos do carro. As concessionárias, que são representantes das marcas das

montadoras, além de cobrarem "muito caro", são vistas com desconfiança em relação aos

serviços que prestam. Os entrevistados parecem contar com as sugestões de amigos e um dos

relatos abaixo chega a insinuar que a despesa de manutenção deve ser evitada por completo,

na esperança de que o carro "não dê nenhum problema".

(Manutenção) Na concessionária é muito caro, cara. Muito caro. (...) Como eu tinha

muito conhecimento então eu levava em alguns colegas de confiança. (Sr. Cerato,

31).

Eu vou te confessar... Eu só levei o carro na concessionária para fazer uma revisão,

foi a primeira. (...) Foi a única revisão que eu levei. Porque até um amigo que trabalhava na concessionária falou "Pô, seu carro tá novo, não tem nada pra fazer,

não precisa trocar nada, não tem nada condenado. Então eu não te aconselho a ficar

trazendo o carro aqui não, cara." (...) Não fiz revisão e o carro não deu problema.

Problema nenhum. (Sr. Fox, 33).

Essa opção de eliminar determinado custo do carro para o qual a família não se

programou, que aparece no combustível e na manutenção preventiva, também se faz presente

com relação ao seguro. Algumas famílias, por "não ter como custear" o seguro, parecem ter

"preferido arriscar", conforme relatos abaixo:

Não, não teve como custear (o seguro). Ia encarecer muito mais do que já está sendo

caro. (Sra. Turin, 44).

(O carro) nunca teve seguro. (...) porque a gente já estava pagando a prestação e o

seguro ia ficar pesado e era esse negocio da gente saber que o carro era um carro que

quase não era roubado. Então a gente preferiu arriscar. (Sra. Classe A, 31).

Já outras famílias informam ter encontrado uma alternativa ao seguro convencional, na

forma de uma proteção veicular (OLIVEIRA, 2011) oferecida por "cooperativas",

"associações" ou "consórcios". No lugar do prêmio anual que as seguradoras cobram pela

cobertura do veículo, esse serviço contratado por algumas famílias entrevistadas estabelece

um valor mensal variável, calculado a partir do rateio, entre todos os usuários, dos custos dos

sinistros cobertos pela entidade naquele mês.

Eu consegui achar um segurozinho tipo cooperativa, entendeu? Então ficou bem

mais em conta. Eu pagava acho que R$ 170 e pouco por mês, cara. (Sr. Cerato, 31).

Acabei fazendo (o seguro) por uma cooperativa, né? Esses que tem aí muito de

cooperativa hoje em dia. (...) É todo mês, o ano inteiro. A parcela, ela variava... às

vezes a gente pagava, vamos botar assim, R$ 120, no outro mês a gente pagava R$

130. (Sr. Celta, 45).

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Eu achei um (seguro) agora que tem uma outra forma de organização que eu acho

interessante, porque é uma cooperativa e você paga mensal contínuo. (...) Por

exemplo, ele tem lá mil carros e os mil, eles fazem um rateio por mês. (...) Então tem

mês que eu pago 160, tem mês que eu pago... por exemplo, o mês que houve menos

sinistro eu pago R$ 120. (Sr. Siena, 40).

Ainda que os discursos acima considerem essa proteção veicular um "achado",

principalmente em função do custo mais baixo que o seguro convencional, tal percepção está

longe de ser uma unanimidade. Outros relatos qualificam tais serviços como não estando entre

os "melhores", como não sendo "seguro mesmo" ou até como incapazes de "dar a mesma

segurança". Essa falta de confiança pode tanto gerar receio de "não saber como seria", no caso

de necessidade de acionar efetivamente o serviço, quanto ocasionar a migração para o seguro

padrão, mesmo sendo mais caro.

O seguro a gente fazia seguros sempre melhores. A gente já teve Porto Seguro, já

teve Unibanco. Agora a gente faz um seguro que é de uma associação. Graças a Deus, a gente não precisou usar. E eu não sei como seria, porque eu acho que não

cobre muita coisa, não. Porque ele é muito barato, ele é R$ 180, R$ 170, por mês.

(Sra. Siena, 41).

O seguro ano passado... Eu comecei com uma cooperativa, mas aí eu não vi tanta

segurança e eu fiz um seguro mesmo. (...) Todos os orçamentos acabaram elevando

muito o valor, mas é uma coisa que a gente tem que pagar porque a gente tem que se

sentir seguro. (Sra. Palio I, 31).

A gente pensou até em não fazer na hora de renovar, a gente pensou fazer aquele

outro, ele que me explica, que é de consórcio, que é mais barato, mas ele ficou com

medo de não dar a mesma segurança. (Sra. Symbol, 29).

Quando é estabelecida uma situação de "ter que pagar" determinado custo do carro

para o qual o orçamento doméstico não foi adequadamente preparado, como é o caso do

seguro para a Sra. Palio I, as famílias pesquisadas parecem se ver obrigadas a fazer trade-offs

ou "abrir mão" de algo. Como seus orçamentos aparentam estar "no limite", acaba sendo

necessário negociar outros itens de consumo eventualmente com níveis de importância

similares ao do automóvel.

Tal circunstância, como consequência da falta de planejamento, pode fazer com que

algumas famílias se sintam "machucadas" ou "passando aperto", por verem custos próprios do

carro disputando espaço no orçamento doméstico com despesas relativas a outros itens

importantes, como a casa, a escola dos filhos e o lazer:

No início do ano tem a escola, tem material, que também não é barato (...) IPTU...

Mesmo sendo dividido (o IPVA), acaba pesando. Então quando junta isso tudo em

um, dois meses, que são no inicio do ano, machuca. (Sra. Cerato, 29).

Porque você só pode parcelar o IPVA em três parcelas. (...) São três meses que você

passa apertado, ainda mais que é um mês que cai matrícula, que tem que pagar um

monte de coisas, material escolar e fica o "Ó". (Sra. Classe A, 31).

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Tudo (mudou). Muitas coisas ficaram pendentes, né. (...) Minha pintura de casa,

minha reforma de um banheiro. (...) Então nessas coisas o carro atrapalhou muito,

até hoje eu não consegui. (Sra. Turin, 44).

Tem a luz, você tem que economizar na luz. (...) "Ah, tem uma viagem". Geralmente

o pessoal viaja, não vou com a família porque esse dinheiro... Então você acaba

tendo que abrir mão de outras coisas para poder arcar com a responsabilidade. (Sra.

Palio I, 31).

Quando fazia um passeio... hotel fazenda, a gente ia lá com o pacote completo, com

estadia, com a grana que a gente tinha que separar lá pra tomar uma cerveja. (...) A

gente fazia um passeio, dois, por ano. Hoje já tem um tempo que a gente não faz um

passeio assim. (Sr. Siena, 40).

A gente todo final de semana ia para shopping, para teatro, não tem como. Impactou

sim, lazer impactou. (Sra. Palio II, 32).

De forma diversa, outras famílias parecem ter percebido nessa necessidade de fazer

ajustes no orçamento uma oportunidade para rever sua "maneira de ser". O carro, nesse acaso,

aparenta ter "ajudado bastante" para a busca de um comportamento de consumo mais

consciente, para o corte de "supérfluos" e "besteiras":

A gente também mudou nossa maneira de ser. (...) A gente ia no mercado, a gente

comprava mil e uma besteiras. (...) Então o carro em si ele ajudou a gente a enxugar

mais essa parte do mercado, a comprar mais o necessário. O supérfluo era só mesmo

pro filho, né, porque era adolescente na época, essas coisas todas, mas o restante

enxugamos bastante isso daí, ajudou bastante. (Sr. Celta, 45).

Ir para um supermercado... eu chegava na prateleira e saía pegando diversas coisas

que não eram tão necessárias. (Agora falo) "Isso não vou levar porque tenho que

pagar a prestação". (Sra. Mégane, 44).

4.3.3 Influência de imprevistos no orçamento das famílias

A despeito de todas essas demonstrações de como os custos relativos ao carro

afetaram seu orçamento e cotidiano, as famílias estudadas não admitem em seus relatos que as

lacunas observadas no planejamento de seus gastos estão relacionadas aos problemas de

pagamento enfrentados após a aquisição do automóvel. Tanto para as famílias que admitem

"só ter pensado na parcela" quanto para as que afirmam "já ter visto tudo" antes da compra do

carro, as estratégias que precisaram ser adotadas para tentar controlar o orçamento após essa

aquisição eram e permaneceriam válidas e suficientes para realizar o pagamento dos custos

relativos ao veículo continuamente.

O conjunto dos entrevistados fala, de uma forma geral, que seus problemas financeiros

fugiram ao controle por causa da ocorrência de fatos imprevistos graves, que ou reduziram a

renda (p. ex., perda do emprego) ou trouxeram um gasto excepcional e prioritário (p. ex.,

urgência médica de parente). Em outras palavras, as famílias entrevistadas não percebem ou

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não assumem as suas falhas de planejamento, o seu orçamento "estourado" nem o risco a que

estavam expostas em virtude do endividamento contraído a partir da compra do automóvel. A

tendência de atribuir a eventos alheios e inesperados a incapacidade de pagamento posterior

será abordada a seguir.

4.4 O ENDIVIDAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE BENS

O reconhecimento da aquisição de bens que sinalizam uma boa vida como condição

indispensável à participação na cultura de consumo contemporânea é importante para a

compreensão da preponderância do endividamento como mecanismo de compra, uma vez que

o crédito torna imediato o acesso a marcadores de consumo cuja obtenção, de outra forma,

seria mais difícil para muitos consumidores (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005;

COHEN, 2007; HILL, 1994; LIVINGSTONE e LUNT, 1992; MENDOZA e PRACEJUS,

1997). Dessa forma, a presente seção procura trazer percepções dos entrevistados sobre o

expediente de contrair dívida para o consumo. Além disso, busca identificar circunstâncias e

condições referentes ao financiamento do automóvel da família, para entender sua influência

no surgimento das dificuldades de pagamento.

4.4.1 Parcelamento como rotina

Assim como, para Lea, Webley e Levine (1993), estar em débito se tornou um modo

de vida, para os entrevistados, de uma forma geral, o endividamento para o consumo é tido

por uma "prática normal", uma "cultura brasileira", um "vício" ou uma "mentalidade"

aparentemente reforçada pela constante exposição midiática. Isto é, parece estar internalizada

a ideia de que, se o valor de um bem extrapola o orçamento mensal, a solução para a sua

aquisição deve ser o parcelamento, e não poupar dinheiro para comprar à vista, porque isto

"ninguém consegue" e "não é o costume".

(Compra-se eletrodoméstico financiado) por não ter condições de comprar à vista,

que é o normal, né. (...) Se a pessoa estiver dentro de um orçamento, (...) vale a pena

financiar, nada de extraordinário, não. (Sr. Fox, 33).

É uma prática, né? Já é uma cultura nossa do Brasil, ninguém junta dinheiro pra

comprar. Se endivida e compra. (Sr. Turin, 49).

Pagar à vista é muito difícil, não tem como pagar à vista hoje, você já tem que pagar

o aluguel, pagar comida. Então, para não ultrapassar (o que você possa pagar no

mês), as outras coisas têm que ser parceladas. (...) Eu acho que é cultural mesmo,

poucas pessoas têm o costume de guardar dinheiro. (Sra. Classe A, 31).

Eu acho que a pessoa acaba parcelando por vício. (Sra. Symbol, 29).

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Eu acho que a maioria das pessoas hoje tem bem isso (comprar eletrodomésticos

parcelados) em mente, né, de acordo com o que eles veem na televisão. (Sra. Fox,

33).

Não tem como comprar à vista. Não dá, não dá pra comprar à vista. (...) Chegar no

seu pagamento e no ato, a pessoa de hoje, assalariada, não consegue. (Sra. Turin,

44).

O cara tem que ganhar muito e ter uma sobra grande para no final ter alguma coisa

guardada (que permita comprar à vista). (Sr. Classe A, 47).

Como se pode observar nos relatos acima, o pagamento à vista parece estar muito

relacionado com uma disponibilidade imediata e suficiente de dinheiro. Então, para o grupo

de entrevistados, duas condições precisariam ser atendidas para a ocorrência dessa forma de

pagamento: uma renda que comportasse o valor integral do bem e o não comprometimento

prévio da mesma com outros gastos. Ter essas condições em mente contribui para o

entendimento da normalidade com que as famílias pesquisadas encaram o endividamento

como meio de consumo. Primeiro, porque não são poucos os objetos de desejo cujo valor

pode superar o poder de compra mensal desses consumidores, como eletrodomésticos,

eletrônicos, mobiliário de casa e o próprio carro. Segundo, porque os casais estudados

reportam que a renda da família é rapidamente consumida com as despesas do dia-a-dia.

Talvez seja essa a razão de comprar um bem à vista após juntar o dinheiro necessário

por algum período de tempo ser uma possibilidade raramente cogitada e, quando tanto,

atribuída a famílias "organizadas", "pacientes" ou "com pulso firme", não pertencentes ao

grupo de convivência dos entrevistados.

Acho que à vista só realmente aquela família que é muito organizada e consegue

guardar aquele dinheiro, o que também é difícil. Tem (família assim), mas é difícil.

(Sra. Cerato, 29).

Hoje em dia, pra você comprar à vista, você tem que ficar esperando aí de dois a três

meses, aqueles que têm cabeça e paciência de guardar um pedaço de dois, de três a

seis meses, pra poder chegar lá e comprar algo à vista. (Sra. Turin, 44).

Só quem tem muito pulso firme que compra à vista (...) Compra à vista é (pra) quem tem aquela mentalidade "eu vou juntar até eu ter o dinheiro pra comprar à vista, até

ter o desconto" e dificilmente... eu não convivo com ninguém que tenha esse

pensamento, eu não conheço ninguém que consiga fazer isso. (Sra. Classe A, 31).

Nos testemunhos acima, é possível identificar dois fatores internos ou

comportamentais que aparentam reforçar o aspecto de naturalidade do consumo via

endividamento: a dificuldade de juntar dinheiro e o imediatismo do consumo. A julgar pelos

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relatos a seguir, não seria exagero dizer que o primeiro fator é bem ilustrado pelo famoso

verso "dinheiro na mão é vendaval"23

:

É difícil (guardar dinheiro) porque não se dá, não tem como. Você está com dinheiro

na mão e você só tem aquele dinheiro quando está na sua mão. Se você abriu a mão,

você não tem mais dinheiro. (...) E olha que eu sou meia (mão fechada)... mas, hoje

em dia, se meu pagamento durar cinco dias, é muitíssimo, é muita coisa. Deve ser

um feriado com tudo fechado, caso contrário, não dura. (Sra. Turin, 44).

O dinheiro na mão não fica. (...) Se você não gastar numa coisa que você quer, você

não vai ver onde foi parar o dinheiro. (Sr. Classe A, 47).

Um dia você tem R$ 1.800, no outro você não tem R$ 180. (Sr. Turin, 49).

Assim, eu sempre tive um problema seríssimo com juntar dinheiro. (...) Você fala

"Pô, vamos almoçar ali no shopping hoje? Vamos lá no cinema? Eu vou gastar só

R$ 50, R$ 60 e guardo os outros R$ 100". Aí, meu amigo, vai... aí chega lá, você

gosta de alguma coisa, tem os R$ 100, você acaba comprando (risos). (Sr. Cerato,

31).

É importante observar que essa incapacidade de reter dinheiro ajuda muito a explicar

porque o endividamento desponta como único recurso para a aquisição de bens cujo valor

extrapole o orçamento doméstico. Trata-se de uma "obrigação" autoimposta pelas famílias

estudadas para "não gastar futilmente" seus recursos e garantir que parte deles seja

direcionada para objetos de consumo valorizados por elas, conforme colocações abaixo:

Eu sou do seguinte pensamento: se você não fizer dívida, você não tem nada. (Sra.

Classe A, 31).

Coisas que custam mais de R$ 1.000, por exemplo, para mim é só financiado. (...)

(A parcela é como se fosse) uma obrigação, exatamente. Às vezes, você segura um

gasto aqui e outro ali para focar naquilo. Muitas vezes, você gasta futilmente, nem

nota que gastou o dinheiro e não teve proveito quase nenhum. (Sr. Classe A, 47).

Você sabe que, tipo assim, vai fazer um financiamento, você vai pagar R$ 200 por

mês daquele financiamento. Só que, se você não fizer a compra, você não consegue

guardar aqueles R$ 200, entendeu? (risos) Então a pessoa acaba tipo "Não, vou

comprar o carnê, que eu sei que tenho condições de pagar. E o carnê, tipo assim, é a

minha obrigação, não tem como fugir". Agora tu pegar do teu pagamento e guardar

R$ 200 é bem mais difícil. (...) Por isso que eu acho mais fácil assim, entre aspas,

quando você tem ali a conta. Porque, pega o pagamento, a primeira coisa que você

faz é o quê? Separar os R$ 200, botar lá junto com a conta pra esperar o dia pra

pagar. (Sr. Cerato, 31).

Eu prefiro comprar parcelado e ter aquela conta todo mês do que juntar o dinheiro e

comprar. Juntar seis meses um dinheiro e comprar um bem, eu nunca consigo fazer isso. (...) Porque eu gasto com outras coisas. (Sra. Siena, 41).

Como se pode observar, "poupar vs. gastar" não é o conflito presente na fala dos

entrevistados. Em seu lugar, aparece um conflito relativo ao "como gastar" ou "em que

gastar", o que aponta para algum grau de incoerência no discurso da incapacidade de guardar

23 Verso da música "Pecado Capital", lançada em 1974 pelo cantor e compositor Paulinho da Viola.

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dinheiro, já que o parcelamento implica "segurar outros gastos" ou "separar parte do

dinheiro". Tal situação remete ao conceito de "poupança invertida", que aparece no estudo de

Brusky e Fortuna (2002) e se refere justamente à capacidade de fazer sobrar dinheiro quando

preciso (ou quando se quer), para o pagamento de prestações e juros. Assim, considerar o

pagamento parcelado como uma espécie de poupança, isto é, "fazer dívida para ter alguma

coisa" parece servir como mecanismo para diminuir nos entrevistados a dissonância cognitiva

em relação à sua escolha de não guardar dinheiro.

4.4.2 Planejando o presente

O segundo fator de natureza interna a contribuir para a normalidade do consumo por

meio do endividamento – o imediatismo – já havia sido identificado por Livingstone e Lunt

(1992) como um dos motivos para devedores manterem certa atitude favorável ao crédito e ao

débito, especialmente pela possibilidade de acesso imediato a bens cuja compra, de outra

forma, teria de ser adiada. Bernthal, Crockett e Rose (2005), ao estudar práticas relacionadas

ao cartão de crédito, também haviam chegado à conclusão de que uma inabilidade de

apresentar autocontrole (isto é, de negar ou postergar a gratificação que acompanha a

aquisição e o consumo) pode conduzir o indivíduo para a "prisão do devedor", denominação

dada pelos autores para uma vida caracterizada pelo enfrentamento das propriedades

confinantes da acumulação de dívidas. De fato, essa vontade de antecipar o consumo aparece

nas entrevistas:

(Recorre-se ao financiamento) Por causa do imediatismo, ninguém quer comprar

nada pra esperar pra receber. Faria um consórcio... "Olha, mas daqui a sessenta

meses eu te dou o carro". "Não, daqui a sessenta meses eu posso ter morrido". (Sr.

Turin, 49).

Eu acho isso (tentar juntar uma grana e depois comprar à vista) um pouco difícil, as pessoas gostam das coisas muito ligeiras, entendeu? (Sr. Siena, 40).

(Poupar para depois comprar o bem) Acho bem difícil, cara. No meu caso, acho bem

difícil. Porque é uma renda... é muito tempo, cara. Muito tempo. (Sr. Cerato, 31).

Hoje acho que a facilidade e o imediatismo que você tem de ter alguns bens, acho

que faz com que você, ao invés de comprar só a geladeira nesse momento, você

troque geladeira, fogão e mais alguma outra coisa e parcele isso à frente. (Sr.

Symbol, 34).

Um terceiro fator, de ordem externa, a atuar em favor da naturalidade com que o

endividamento para o consumo é percebido é o crédito facilmente acessível, que já havia sido

apontado por Dessart e Kuylen (1986) como contribuinte para o problema da dívida:

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Hoje em dia o normal é você ter (produtos financiados). Até pela facilidade que você

vai nas lojas aí de eletrodomésticos e tudo mais. (Sr. Cerato, 31).

(Compram eletrodomésticos financiados) Porque hoje a facilidade da compra, ela é

grande. (Sr. Fox, 33).

Pela facilidade hoje de crédito, entendeu? Hoje tem essa facilidade de crédito. Então,

pela facilidade de crédito, o cara com o nome limpo, só com a identidade, ele

compra praticamente qualquer coisa pra dentro de casa. (Sr. Siena, 40).

Porque hoje em dia não é difícil você abrir uma linha de crédito para tirar um

veículo. (Sr. Turin, 49).

Se "muita organização", "paciência" e "pulso firme", que poderiam funcionar como

soluções para os dois primeiros fatores – dificuldade de juntar dinheiro e imediatismo do

consumo –, já aparentam ser esforços de difícil empreendimento ou pertencentes à realidade

de outras famílias, pode-se imaginar quão complicado seria para o conjunto de entrevistados

oferecer resistência ao crédito fácil, cuja oferta está sob o controle de um elemento estranho.

Com efeito, a facilidade de crédito parece alimentar a compreensão de que é perfeitamente

possível o acesso imediato a bens sem a necessidade de acúmulo prévio de recursos. Dessa

forma, o caráter de naturalidade do crédito se torna sólido ao ponto de alguma restrição ou

recusa na sua concessão ocasionar a busca de métodos alternativos para garanti-lo. Destacam-

se nesse ponto negociações envolvendo o "nome", significando acesso ao crédito

(MATTOSO e ROCHA, 2005): caso a renda não seja suficiente para conseguir o crédito

pretendido, pode-se "pegar emprestado o nome"24

de alguém com renda compatível; caso um

cônjuge esteja com o "nome sujo", o esperado é que aquele com "nome livre" assuma a

responsabilidade contratual pela dívida.

Quem assinou o contrato foi a minha cunhada. (...) Porque na época o meu ganho

não dava para comprar o carro, o banco não liberava. A minha cunhada tem uma

situação bem melhor e ela o banco já passou direto. (Sr. Mégane, 46).

(No dia da compra) Fui eu, minha esposa, meu filho e minha sogra, até porque eu

comprei no nome dela, porque meu nome estava inadimplente. (Sr. Siena, 40).

Como ele era taxista, toda a burocracia que eles pediam, para ele iria ser muito mais

difícil. Então no meu nome foi muito mais fácil. (Sra. Cerato, 29).

(O negócio foi fechado no nome) Do meu marido. (...) Na verdade eu não podia ter

nada no meu nome porque eu estava com o nome sujo e eu não tinha renda

suficiente. (Sra. Classe A, 31).

Tudo no meu nome. É questão de renda, né... a minha renda era compatível com o

que a financeira precisava pra provar. E foi o quê? Nome livre, né... ele com o nome

sujo, eu com o nome limpo. (Sra. Palio II, 32).

24 De acordo com Mattoso e Rocha (2005), "emprestar o nome" consiste em abrir um crediário ou usar o cartão

de crédito para fazer as compras de outra pessoa, ficando esta responsável pelos pagamentos na ocasião ou

ocasiões previstas.

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Embora a percepção de facilidade a respeito do acesso ao crédito seja a habitual entre

os entrevistados e a ocorrência de uma eventual restrição aparente poder ser contornada sem

maiores dificuldades, é possível identificar uma visão destoante e talvez mais realista. O

discurso da Sra. Turin parece indicar que a obtenção do crédito, pelo menos o de alto valor, é

percebida como o feito de um "campeão", que não fica "à espera" de uma oferta, mas antes

demonstra coragem para "meter a bifa" e passar pelos "processos" necessários, superando

toda "burocracia" ativamente. Dessa forma, ela foi a única a falar da dificuldade de obter

crédito, ao mesmo tempo em que coloca aquele que o obtém como heroico lutador.

Porque, assim, eu digo que o brasileiro, ele nunca tem vez, ele fica sempre na espera

de algo. Então quando um chega e mete a bifa mesmo e fala "Eu vou comprar, é isso

que eu quero" e quando eles conseguem isso, é muito bom. Até mesmo por causa da

burocracia que se tem hoje de comprar algo de tanto valor. É tanto processo que

você passa, é tanto isso, é tanto aquilo que, quando você passa por isso tudo, "Pô, já

sou campeão". (Sra. Turin, 44).

Ressalvado esse relato diferenciado, o teor geral das entrevistas parece indicar uma

complementaridade na forma com que os três fatores citados – dificuldade de juntar dinheiro,

imediatismo do consumo e facilidade de crédito – atuam em prol do endividamento das

famílias pesquisadas. Contudo, estar endividado per se não implica encontrar-se em apuros

para honrar os compromissos no futuro. Daí a importância de se entender que aspectos da

utilização desse expediente para a aquisição de bens podem favorecer o surgimento de

dificuldades de pagamento.

Grosso modo, a compra financiada de um objeto de consumo envolve quatro

elementos – preço do bem, taxa de juros, prazo de pagamento e valor da prestação. Não

obstante, os testemunhos referentes à aquisição do carro aparentam sinalizar um foco maior

no último, em detrimento dos demais.

4.4.3 A dívida que "cabe no bolso"

Nos relatos das circunstâncias do financiamento, menções ao valor do automóvel, aos

juros cobrados e aos anos de pagamento praticamente não aparecem, sugerindo que são

informações pouco relevantes nas decisões dos entrevistados, em relação ao que de fato

interessa: de quanto será a parcela mensal e se ela parece ser razoável no orçamento

individual ou da família.

Já tinha dado uma estudada para ver quanto fica a parcela e tal. (...) Mas foi o valor

da parcela (que foi decisivo para a compra). (Sr. Cerato, 31).

Eu acho que foi mais isso que eu te falei da parcela. (...) foi isso que foi decisivo

porque o carro a gente queria de qualquer forma. (Sra. Cerato, 29).

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Foi em 72 vezes e o valor (da parcela) a gente já tinha conversado sobre o valor já

antes. Tinha que ser até aquele valor. Se fosse a mais, não poderia aceitar. (...) Foi

(ser até aquele valor que determinou o número de vezes) porque só dava para pagar

aquele valor. (Sra. Fox, 33).

Eu não podia passar de R$ 1.100, não. (...) (Foram) sessenta vezes, pra chegar nesse

valor de prestação. (Se tivesse que ser em mais vezes pra chegar nesse valor), eu

teria feito. (O foco era) no valor da parcela. Porque os juros sempre vão estar

abusivos, não tem jeito. (Sr. Turin, 49).

Esse desequilíbrio na atenção dada aos elementos do financiamento tem alguns

desdobramentos que podem ajudar no entendimento de como as famílias estudadas atingiram

o estado de inadimplência. Os depoimentos sugerem, por exemplo, que subjacente a essa

preponderância do valor da parcela no financiamento do automóvel está a preocupação de que

a mesma "caiba no orçamento". É possível dizer, portanto, que aquelas condições de

suficiência de renda e de seu não comprometimento prévio, mencionadas como necessárias

para o pagamento à vista, também estão presentes de certa forma no pagamento parcelado: o

valor da prestação do carro passa a ser um custo fixo mensal que precisa ser integralmente

comportado pela renda e pago antes de esta ser consumida de outra maneira.

Nesse contexto, qualquer inconsistência que as famílias pesquisadas apresentassem

com relação a uma ou outra condição poderia deflagrar dificuldades para pagamento do

financiamento do veículo, risco esse ampliado pela reduzida atenção dada ao prazo de

pagamento. Com efeito, todos os casos estudados apresentavam financiamentos com duração

igual ou superior a 48 meses e, como observado na fala de alguns entrevistados, esses prazos

poderiam ser ainda maiores, se necessário para se chegar ao valor de prestação concebido para

caber no orçamento. Logo, a ausência de garantias de que a suficiência de renda seria mantida

até o final do contrato e de que a família estaria imune a ocorrências que comprometessem os

recursos programados para o carro configuraria uma situação de exposição a problemas de

pagamento, exposição essa que cresceria com o horizonte de tempo dos financiamentos

contratados.

Ainda a respeito desse destaque da parcela como chamariz do consumo via

endividamento, merece atenção um aspecto interessante e que apareceu em alguns

testemunhos sobre a incapacidade de pagamento, que é o "desejo de parcelar a parcela". Esse

desejo parece ser mais um indicador do quão profundamente está estabelecida a "cultura do

parcelamento" ou do endividamento para o consumo. Como dito, para as famílias estudadas, o

pagamento da prestação do carro parece se revestir das características de um pagamento à

vista, que demanda uma renda compatível e disponível para sua liquidação integral. Se essas

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condições deixam de ser atendidas em algum momento e o valor da parcela passa a extrapolar

o orçamento mensal, é razoável esperar a mesma solução que os entrevistados entendem

como natural para situações desse tipo, isto é, o parcelamento:

Eu acho que a prestação é mais difícil de pagar porque a prestação você não pode

parcelar uma prestação, entendeu? Você tem que ter ou o dinheiro todo e paga ou

você vai pagando juros, juros até embolar a conta.(...) IPVA parece, acredito eu, que

pode ser parcelado, o seguro também eu acredito que pode ser parcelado. (...) Mas a

prestação em si não tem como. (Sra. Turin, 44).

Ah, só a prestação do carro mesmo (que é mais complicado de pagar), que é pesada.

A prestação, R$ 1.700. O resto dá para você levar tranquilo. IPVA você pode parcelar, multa também. (Sr. Cerato, 31).

Uma vez abordados esses desdobramentos da primazia que os entrevistados dão ao

valor da prestação, cabe averiguar o nível de atendimento das condições de suficiência e

disponibilidade de renda, necessárias para o pagamento normal do financiamento do veículo.

Como visto na seção que tratou dos significados e sentimentos associados ao automóvel, para

o grupo de entrevistados, a compra financiada desse bem costuma registrar uma evolução da

circunstância econômico-financeira da família. Logo, seria normal esperar que o atendimento

da primeira condição de compatibilidade entre renda e valor da parcela fosse, de fato, um

cuidado das famílias. Entretanto, as entrevistas parecem indicar que tal preocupação restringe-

se à observação desse requisito pela ocasião da compra, no sentido de que conseguir pagar a

prestação naquele momento sinaliza que essa capacidade estará mantida no futuro. Em outras

palavras, os entrevistados parecem não considerar a possibilidade de ocorrência de

contratempos que afetem a renda, tais como desemprego ou problemas de saúde, no horizonte

de tempo do financiamento:

A gente estava estabilizado, tanto eu quanto ela num serviço legal, entendeu? Tinha condições para isso e eu dei a ideia (de comprar o carro). (...) O problema nosso,

assim, não foi a falta de planejamento não, foi que a vida deu uma reviravolta, ela

saiu do trabalho dela e eu praticamente saí do meu, aí foi quando desandou tudo. (Sr.

Cerato, 31).

A gente vive meio que pelo momento, entendeu? A gente não previu isso de

acontecer, senão a gente tinha feito uma reserva, tinha enxugado alguma coisa. (...)

Então a gente não se programou muito assim pra essas emergências. (Sr. Siena, 40).

Faz sete meses que a gente parou de pagar, foi porque eu fiquei desempregada. (...)

eu acho que o que aconteceu foi um imprevisto. (Sra. Classe A, 31).

O que aconteceu com a família foi que (...) tivemos o problema de doença, que não

tinha o tal da reserva que eu até falei na (família) Ferreira (...). Aí, quer dizer, correu

tudo pra lá e foi que começou a dar o problema dos atrasos. (Sra. Celta, 43).

Eu era bem empregada, eu tinha um salário muito bom e eu fui mandada embora,

não estava esperando. Então eu tive que parar de pagar o carro, não tinha como

manter. (Sra. Palio II, 32).

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Primeiro foi um sobrinho meu, que meu irmão estava desempregado, e ele precisou

fazer uma cirurgia e ele não tinha condições e eu abri mão do que tinha no momento

pra poder auxiliá-lo. (...) E logo duas semanas depois a minha sogra também

precisou passar por uma cirurgia emergencial que também a gente (ajudou)... onerou

medicação, onerou internação e tudo mais. (Sr. Symbol, 34).

Já a segunda condição, de não comprometimento da renda com outros gastos, torna-se

particularmente problemática em função da já citada incapacidade de guardar dinheiro das

famílias estudadas. Como visto, essa característica pode favorecer a aquisição de bens via

endividamento e, caso ocorram novas compras financiadas antes da conclusão do pagamento

de anteriores, haverá uma sobreposição de compromissos. Essa situação sozinha não

configurará um problema, se o somatório dos valores a pagar for abrigado pela renda familiar.

Todavia, é perceptível nas entrevistas o reconhecimento de um potencial de risco no acúmulo

de prestações, que apareceu de forma mais pronunciada nos exercícios projetivos, ou seja,

situações de descontrole com parcelas foram atribuídas a "outros":

Eles podem agora estar apertados pra conseguir pagar (o financiamento do carro).

(...) De repente, fizeram outras compras, né? Compraram outras coisas e ficou muita

coisa para pagar. E agora está enrolado. (Sra. Fox, 33).

(Considerando que estão) pagando muitas parcelas, ainda não. Ainda não estão

planejando, não (comprar um carro). (...) Fica muita parcela. (Sra. Cerato, 29).

(A família) pode até estar planejando comprar o carro, mas primeiro está vendo esse

lado da casa, né. Porque, se você for juntar as duas coisas, aí fica difícil, você não

consegue nem fazer uma coisa e nem outra. (Sr. Celta, 45).

Beleza, comprou (o carro). Mas o risco de acumular parcelas... e, quando acumula,

os juros é grande. E pra você tentar reverter essa situação é complicado, ele corre um

risco aí de devolver esse carro. (Sr. Siena, 40).

Quando perguntados diretamente sobre a existência de outras compras parceladas pela

ocasião da compra do carro ou do surgimento das dificuldades de pagamento, o grupo de

entrevistados raramente respondeu afirmativamente. Mais que isso, quando indagados se o

pagamento de outros compromissos dificultou a liquidação da prestação do automóvel ou

vice-versa, a resposta habitual foi de a interferência ser nula. De uma forma geral, as famílias

pesquisadas atribuem a dificuldade de pagamento ao advento de uma situação imprevista

grave, como as relatadas anteriormente, que ou reduziram a renda (p. ex., perda do emprego)

ou trouxeram um gasto excepcional e prioritário (p. ex., urgência médica de parente). Até

mesmo o Sr. Celta, que é um dos poucos entrevistados a reconhecer abertamente falhas no

planejamento para a aquisição do carro, acredita que não teria enfrentado problemas se

mantidas as condições salariais da época da compra:

Uma família regradazinha, direitinha, ela compra (financiado) mais o essencial, né.

Ela não vai fazer que nem eu fiz, a gente fez na época né, comprar o carro e sair

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comprando um montão de coisa, depois que fomos ver o orçamento, entendeu? (...)

A gente, na verdade, quando fez as contas, a gente esqueceu da Leader.

Esquecemos, mas esquecimento mesmo. A empolgação do carro fez esquecer

algumas coisas. (...) Tinha também na época também a escola do garoto. A gente

não planejou tudo assim e depois de um tempo que nós fomos ver. Foi o que

aconteceu. As horas extras terminaram, cortaram as horas extras. É isso aí que

acabou... (Se tivesse continuado com as horas extras) teria dado tranquilo.

Tranquilo. (Sr. Celta, 45).

Vale dizer que essa tendência apresentada pelas famílias estudadas de responsabilizar

grandes eventos alheios à sua vontade pela circunstância adversa em que se encontram indica

um locus de controle25

externo. Tal característica, aliada à normalidade com que os

entrevistados percebem o hábito de endividar-se, parece complementar os achados do estudo

de Dessart e Kuylen (1986). De acordo com os autores, uma variável individual que

desfavorece a predisposição ao endividamento é o locus de controle interno, ou seja, um

entendimento de que os acontecimentos são influenciados pelo próprio comportamento.

Como se pode observar, as duas condições necessárias para que o pagamento do

financiamento do automóvel ocorresse sem percalços – suficiência e disponibilidade de renda

– não aparentam estar muito consolidadas nas aquisições efetuadas pelo grupo de

entrevistados. A preocupação com o atendimento da primeira condição parece restringir-se ao

momento da compra, mesmo a suficiência de renda sendo imprescindível por toda a vigência

do contrato. Se a família entende que em determinada circunstância a prestação do carro cabe

no seu orçamento, parece haver justificativa suficiente para se "tentar" a compra ou "achar

que dá para pagar" o financiamento do começo ao fim.

No que diz respeito à observação da segunda condição, se as entrevistas não permitem

concluir que a disponibilidade de recursos para o pagamento do carro foi afetada pela

sobreposição de outras compras financiadas, elas revelam, pelo menos, quão sensível essa

disponibilidade pode ser ao surgimento de gastos excepcionais. Tal situação pode sugerir que

o orçamento da família, com a prestação do automóvel, esteja no limite, sem muita margem

de manobra, conforme testemunho a seguir. Nesse caso, ficaria reforçada a compreensão de

que o atendimento da condição de suficiência de renda não existe para alguns dos

entrevistados.

Porque meio que a gente está no limite. A gente faz meio que "Sobrou uma grana?

Então vamos passear, vamos viver o momento". (Sr. Siena, 40).

Por outro lado, é possível imaginar que a já mencionada incapacidade de os casais

estudados juntarem dinheiro amplifica essa sensibilidade dos recursos destinados ao veículo,

25 Ver nota 10, à pág. 50.

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expondo a família a um duplo problema: como não conseguem poupar, não possuem reserva

para emergências; como não existe poupança, precisam utilizar os recursos disponíveis para

cobrir as despesas extraordinárias, o que não raro implica cessar o pagamento do carro. Nesse

contexto, apesar de a tendência geral dos entrevistados ser não perceber os eventos como

dependentes do seu próprio comportamento, é possível identificar manifestações

reconhecendo que algum grau de previdência poderia mitigar os impactos do "inevitável",

como a seguinte:

O que eu faria diferente seria não em relação ao carro, mas em relação a outras

coisas. Não abriria mão de ter um mínimo de reserva possível porque tem coisa que

é inevitável. A gente não está livre do que possa acontecer. (Sr. Symbol, 34).

4.5 DIFICULDADES DE PAGAMENTO: SIGNIFICADOS, SENTIMENTOS E

ENFRENTAMENTO

A falta de recursos financeiros pode restringir práticas de consumo constituidoras da

identidade familiar, inclusive levando a uma redefinição forçada da mesma (EPP e PRICE,

2008). Dessa forma, torna-se importante compreender rupturas e mudanças na identidade da

família ocasionadas não somente pela deterioração de sua situação financeira, mas também

pelas maneiras encontradas para enfrentar os desafios desse momento (BOLEA, 2000 apud

EPP e PRICE, 2008). A partir desses entendimentos, esta seção procura identificar

significados e sentimentos desencadeados pela incapacidade de pagamento do financiamento

do carro, de forma a compreender como o estado de inadimplência pode conduzir a família a

uma nova realidade ou mesmo uma nova identidade. Além disso, serão abordadas as

estratégias utilizadas pelas famílias entrevistadas para o enfrentamento da circunstância

adversa.

4.5.1 O endividamento internalizado

A aquisição do automóvel procura sinalizar uma ascensão da família na hierarquia

social e costuma ser percebida como uma conquista, geralmente acompanhada por

sentimentos positivos de satisfação, felicidade e orgulho. As entrevistas sugerem, porém, que

a incapacidade de pagar a dívida contraída para obter o veículo suscita significados e

sentimentos quase opostos, indicando a suspensão daquele movimento evolutivo ou um

retrocesso. Se adquirir o carro tem o valor de vitória ou de realização de um sonho, não

conseguir pagá-lo significa "fracasso", "desengano" e "decepção", usualmente acompanhados

de reações como "tristeza", "frustração", "depressão" e "preocupação":

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Tristeza total. É... sinto... (tempo refletindo) acho que até é um pouco de exagero,

mas é o que às vezes eu sinto, parece que eu fracassei, entendeu? (Sra. Cerato, 29).

Tristeza... tristeza. Frustrado. Uma coisa que você achou que tinha realizado, que na

verdade não aconteceu, durou pouquíssimo. (Sr. Cerato, 31).

Eu sinto uma tristeza profunda, uma depressão que eu falo "Caramba, cara... seis

meses atrás eu estava com meu carro na boa" e agora não poder mais andar com o

carro é bem decepcionante assim. (...) Eu fico chateada de às vezes você não dormir

e pensar "Caramba, o que eu vou fazer para resolver?" É um incômodo, né, todo dia

você tem de falar "Eu tenho que dar um jeito e não foi hoje que eu arrumei a

solução". (Sra. Classe A, 31).

Rapaz, eu vou te confessar... Eu nem durmo direito. Não durmo. (...) Quando eu vejo aquilo que eu não tenho condições de pagar, aquilo me assusta, aquilo me preocupa.

(Sr. Fox, 33).

Embora pareça haver certa lógica nessa oposição entre os significados e sentimentos

associados à aquisição do carro e aqueles vinculados à incapacidade de saldá-lo, é preciso

registrar a presença de algum nível de incoerência no discurso dos entrevistados. As famílias

estudadas aparentam apresentar um locus de controle26

externo, que se traduz pelo não

reconhecimento da própria responsabilidade no infortúnio financeiro vivido. Portanto, se a

tendência entre elas é apontar grandes eventos alheios à sua vontade como causa da situação

desfavorável, não parece fazer muito sentido entenderem que fracassaram ou que falharam.

Afinal, tais percepções pressupõem um forte componente de controle interno sobre os

acontecimentos, como o "empenho" ou o "intento correto" observados nos relatos a seguir:

Numa coisa que eu me empenhei, parece que eu fracassei, apesar da culpa não ter

sido minha, eu não ia imaginar nunca que ia acontecer essas coisas. (Sra. Cerato,

29).

Penso que eu tô errada, né. Realmente eu tô porque eu comprei para pagar e não

estou pagando. Só que não tem como eu explicar isso a eles (credores)... do que

aconteceu, não foi culpa minha também. (Sra. Fox, 33).

Essa aparente contradição relativa ao locus de controle talvez possa ser superada a

partir da interpretação de que se trata, na realidade, da expressão de uma mudança em curso

na identidade de algumas famílias. De acordo com Epp e Price (2008), eventos críticos e não

planejados, como aqueles aos quais os entrevistados atribuem sua circunstância financeira

adversa (desemprego, problemas graves de saúde etc.), são capazes de estimular mudanças

imediatas na identidade familiar. Nesse caso, mesmo que as famílias pesquisadas não

admitam ou não queiram admitir qualquer culpa por terem adentrado aquela situação, é

possível que algumas delas estejam começando a manifestar uma vontade de assumir o

controle sobre o processo de saída, com diferentes graus de internalização dessa

26 Ver nota 10, à pág. 50.

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responsabilidade. Outras famílias, no entanto, aparentam ter mantido uma postura mais

passiva e esperam uma melhoria futura não necessariamente vinculada a iniciativas próprias.

Vale ressaltar que esses movimentos de "entrada" e "saída", assim como a situação de

descontrole financeiro a que se referem, parecem guardar semelhança com os seguintes

construtos do modelo teórico que Bernthal, Crockett e Rose (2005) construíram a partir de um

estudo com foco nas práticas relacionadas ao cartão de crédito: "trajetória de restrição",

"trajetória de libertação" e "prisão do devedor", respectivamente. As trajetórias remetem à

capacidade de os consumidores se aproximarem ou se distanciarem de uma vida caracterizada

pelo enfrentamento das propriedades confinantes da acumulação de dívidas, vida essa

apreendida pela metáfora da "prisão do devedor".

Assimilando a terminologia proposta por Bernthal, Crockett e Rose (2005) e

considerando a possibilidade de mudança no locus de controle, pode-se dizer que as famílias

pesquisadas apresentam três níveis distintos de internalização da responsabilidade pela

trajetória de libertação: integral, parcial e nulo. As famílias com internalização integral

parecem ter a própria imagem gravemente afetada pelo estado de inadimplência e conferir ao

processo de libertação o simbolismo de "resgate do orgulho perdido". As famílias com

internalização parcial aparentam ter sua autoimagem menos impactada pelo não cumprimento

das obrigações financeiras e atribuir ao percurso de saída o significado de "adequação a uma

realidade indesejada". Já as famílias com internalização nula, ou simplesmente sem

internalização, não parecem ver sentido em prejudicar a imagem que têm de si em virtude de

uma situação pela qual julgam não ter culpa, o que implica para a trajetória de libertação um

sentido de "esperança de um futuro melhor".

Como se pode observar, o grau de responsabilidade que as famílias entrevistadas

imputam a si próprias pela construção da trajetória de libertação aparenta depender de dois

fatores interligados: do impacto percebido da inadimplência sobre sua imagem; e dos

significados atribuídos à superação do problema. Além disso, o nível dessa internalização

parece influenciar a estratégia de enfrentamento adotada: enquanto o primeiro grupo (integral)

restringe os expedientes admissíveis para sua recuperação, o segundo grupo (parcial) não

oferece óbices aos mesmos, e o terceiro grupo (nulo) simplesmente não adota qualquer um.

4.5.2 Famílias que enfrentam, que mudam ou que adiam

O primeiro grupo de famílias, que internaliza integralmente a responsabilidade pela

trajetória de libertação, parece entender que seu estado de insolvência, mesmo provocado por

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eventos imprevistos e indesejados, em nada modifica as obrigações previamente assumidas.

Na realidade, para essas famílias, ter obrigações aparenta ser o meio normal de alcançar seus

objetivos de consumo e "pagá-las sempre em dia", motivo de orgulho, por atestar sua

capacidade de concretizar o estilo de vida almejado. Tal circunstância reporta ao "espaço de

alcance de objetivos", construto que se opõe à "prisão do devedor" no modelo de Bernthal,

Crockett e Rose (2005) e se refere justamente ao uso do crédito como viabilizador de estilos

de vida desejados. Era razoável esperar, portanto, que a perda dessa condição imprimisse nos

entrevistados desse grupo a vontade de reavê-la brevemente. De fato, é perceptível nos seus

testemunhos tanto a preocupação de enquadrar a situação desfavorável como "passageira"

quanto o desejo de "dar a volta por cima":

Eu tenho dívidas, tudo, mas tudo dentro do orçamento. O que eu tenho pra pagar,

conta, tudo é dentro do orçamento. Quando vira o mês, eu vou lá, pego e pago. Tudo

previsto. (...) Se for puxar o histórico, o começo, as parcelas iniciais, todas elas eram

pagas rigorosamente em dia... ou até antes. Então, era tudo realmente dentro do previsto, não tinha nada assim que fosse... Era pra estar acabando agora... 72 vezes,

seis anos, estaria pagando agora o último ano sem problema nenhum. Tinha que ser

daquela forma. (Sr. Fox, 33).

Antes eu tinha a minha dívida com cama, mesa e banho, vamos botar assim, eu

sempre pagava em dia. (Sra. Turin, 44).

É passageiro. Não, é passageiro, é passageiro. Acostumado a dar (a volta por cima).

(Sr. Turin, 49).

Nesse contexto de "resgate do orgulho perdido", questões relativas ao "nome" parecem

indicar que nem todo expediente é apropriado para o empreendimento. Conforme Mattoso e

Rocha (2005), "ter nome limpo" identifica a pessoa honrada, que tem acesso a crédito e uma

situação financeira equilibrada, ao passo que o "nome sujo" indica o estado de inadimplência

e a inclusão em cadastros de maus pagadores. Dessa forma, embora reconheçam a

possibilidade de "limpar o nome" pelo decurso do tempo27

ou por meio de ações judiciais que

afrouxem as condições de pagamento acordadas, as famílias desse primeiro grupo não

parecem julgar tais soluções como válidas para sanar o orgulho ferido, o que aparenta só

ocorrer quando se "entra e sai pela porta da frente", ou seja, realizando os pagamentos

"idoneamente" na forma contratada:

Não foi uma coisa inconsequente. Eu não acordei achando que "Não, vou comprar

um carro porque dá para eu pagar". Não foi. (...) Eu quero pagar, sempre tive meu

nome limpo, entendeu? (...) O objetivo é realmente voltar ao normal. Porque eu

sempre tive linha de crédito, tudo. (...) Eu sempre tive o nome tranquilo, nunca tive

nada... Eu nunca fui aquela pessoa que esteve sempre com nome sujo. Aconteceram

esses fatos e isso fez com que eu ficasse na situação que estou hoje, mas não

27 A prescrição da dívida, assim como o prazo máximo de cadastro em órgãos de restrição de crédito, é de cinco

anos, a contar a partir da data em que a dívida venceu.

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significa que eu esteja acomodado nessa situação "Ah, daqui a cinco anos limpa". Eu

não tenho essa perspectiva, eu quero limpar pagando. Chegar lá no final (e dizer)

"Está aqui, o valor devido é esse, vamos pagar, vamos sentar e negociar", seja lá o

que for. Vou pagar e resolver o problema, mas fazer uma coisa de forma que seja

aquilo que a gente planejou, entrar e sair pela porta da frente. Eu comprei com o

intuito de pagar e vou pagar. (Sr. Fox, 33).

Eu poderia colocar na justiça por juros abusivos. (...) Mas, vem cá: quando eu

comprei o carro, eu já sabia que aqueles juros não eram reais. Eu acho que as

empresas de financeiras deveriam ser mais sinceras só (...), pra evitar justamente que

as pessoas se sintam ludibriadas e entrem com ações e recursos contra essas

empresas. (Sr. Turin, 49).

Eu me comprometi com aquilo perante a financeira, eu sabia de quanto seria, de

quanto teria e sabia também do não cumprimento da minha parte o que poderia

arcar, com o que eu poderia arcar. E hoje eu acredito que seja interessante para eles

que eu pague e é interessante para mim que eu fique de forma idônea com eles

também. (Sr. Symbol, 34).

Esse fazer questão de "limpar pagando" ou "voltar ao normal" observado nos relatos

acima parece indicar ainda uma forte preocupação desses entrevistados em não ver a própria

imagem associada à das "pessoas" inconsequentes ou que passam por ludibriadas, descrições

próximas ao estigma social de irresponsável e autocondescendente que Livingstone e Lunt

(1992) informam acompanhar o indivíduo cuja dívida supera a capacidade de pagamento. De

certa forma, essa repulsa à imagem de "demandante de intervenção judicial" ou "acomodado"

acaba conferindo a ambas posturas o rótulo comum de inadmissível, por não configurarem a

internalização plena da responsabilidade pela solução do problema. Todavia, as famílias cujas

atitudes se assemelham a tais posturas aparentemente têm um entendimento bem distinto

sobre sua própria situação.

O segundo grupo de famílias, por exemplo, que internaliza parcialmente a

responsabilidade pela trajetória de libertação, parece entender que a degradação da situação

financeira existente à época da aquisição do carro, como consequência de eventos alheios à

sua vontade, tem o condão de suprimir a validade das condições do financiamento contratado.

Trata-se de um entendimento de que, se o contexto de vida foi mudado por razões indesejadas

e que escapam ao seu controle, nada mais justo que adequar o compromisso assumido à nova

realidade. Desse modo, para esse segundo grupo, "pagar na forma contratada" parece ser o

correto somente na manutenção da sua capacidade de pagamento. Porém, essa pretendida

adequação, que seria a forma encontrada por essas famílias para controlar seu processo de

libertação, não é recebida como razoável pela parte credora; fica então justificado o recurso a

terceiros com poder para dirimir o conflito, no caso, os órgãos judiciários. Quanto à justiça

dessa solução, é possível encontrar testemunhos indicando tanto uma crença genuína na

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mesma quanto sua conveniência para reduzir a dissonância cognitiva em relação à falta de

disposição para arcar com as consequências previstas no contrato:

Eu botei na justiça. Eu estou depositando em juízo. Botei para baixar um pouco a

parcela. E consegui. (...) Eu vi uma advogada e nós corremos atrás com a advogada

e o que acontece? Ela estudou a causa, ela viu que o carro estava com muita taxa em

cima, então nós botamos na justiça e o juiz bateu o martelo: de R$ 560, ele foi para

R$ 250. (...) No final eu posso requerer todos os documentos da justiça que eu depositei fazendo uma lei do juiz, uma decisão do juiz. (...) Eu achei essa a solução

justa. (Sr. Mégane, 46).

A gente também entrou (com ação) para não perder o carro. (...) Eles me ligam às

vezes, mas a intenção deles ainda é que a gente pague a parcela em atraso, só que a

gente não quer. Agora a gente pensa o quê? Quitar o carro. Aí a gente está juntando

dinheiro, o advogado já está estipulando mais ou menos um valor para negociação

da gente quitar o carro. (...) Só que hoje o valor não chega a R$ 25 mil, é menor. (...)

Eu não fiz uma entrega amigável porque teria salto remanescente. Então inviável

você entregar, perder o veículo e ainda ficar com uma dívida, e com meu nome sujo.

(...) O certo seria eu ter pagado o financiamento. Mas como não tive condições, e

também se eu entregasse eu ia acabar perdendo o que eu já tinha dado de entrada... (Sra. Palio I, 31).

De repente na justiça ele consegue um acordo de "Oh, vamos ficar no zero a zero?

Como é que tá o carro? Tá legal? Tá inteiro? Tá, eu te entrego o carro e elimino a

dívida". (...) Assim, não sei se seria justo para a financeira, né? (Sr. Cerato, 31).

O terceiro grupo de famílias, por sua vez, engloba aqueles casais para os quais a

ocorrência de eventos imprevistos não parece ter provocado uma mudança imediata na

identidade, pelo menos não em relação ao locus de controle. Em seus relatos, essas famílias

dão a entender que, se o seu comportamento não teve influência sobre os acontecimentos que

deflagraram a inadimplência e tampouco pôde evitá-los, não há motivo para supor que o

mesmo tenha o condão de providenciar uma solução. Isso não quer dizer que as famílias desse

terceiro grupo estejam confortáveis com a situação, mas tão somente que acreditam que o

processo de libertação depende de (e pode esperar) "tudo voltar a dar certo". Essa espécie de

"relaxamento" perante o momento vivido aparenta ainda ser alimentada por uma crença de

que não haverá um agravamento do quadro, o que pode ter relação com o fato de essas

famílias terem se aproximado bastante do final do financiamento28

. Talvez haja uma sensação

de que muito esforço não será necessário, seja por entenderem que qualquer melhora na

situação financeira já baste para regularizar o pagamento, seja por se considerarem em uma

boa posição para eventuais negociações.

Até agora a gente não se mexeu muito não. (...) Eu procurei me orientar. Era final de financiamento, são dez parcelas. Então foi o que o advogado me orientou. Ele falou:

"(Sra. Palio II), fica tranquila porque o banco não vai te botar na justiça, não é

28 As famílias que compõem esse grupo pagaram entre 79% e 85% do total de parcelas do financiamento. As

demais famílias entrevistadas saldaram entre 3% e 50% da dívida.

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interessante para eles mover uma ação contra você, por causa de R$ 5 mil, pode ficar

tranquila". Por isso que, a partir daí, eu comecei a relaxar. (Sra. Palio II, 32).

Não adianta, não vou pagar ainda. Talvez a (Sra. Classe A) possa ter consultado. Eu

não liguei ainda. Eu mesmo não procurei ainda. (Sr. Classe A, 47).

Eu pretendo pagar esse (carro) primeiro, futuramente, se tudo der certo, se agora no

final do ano eu conseguir arrumar um emprego. (Sra. Classe A, 31).

4.5.3 Desafios e experiências comuns

Independentemente do grau de responsabilização que assumam pela trajetória de

libertação, as famílias entrevistadas parecem compartilhar experiências assemelhadas na

"prisão do devedor". Ao contrário do que se poderia imaginar, por exemplo, o forte intuito de

limpar o nome e recuperar o orgulho, observado nas famílias do primeiro grupo, não parece

colocá-las em melhor situação para escapar da situação de descontrole financeiro. A esse

respeito, Mattoso e Rocha (2005) já haviam destacado que as formas para buscar a

adimplência eram percebidas quase sempre como inatingíveis pela classe mais popular.

Talvez essa percepção decorra do fato de "limpar pagando" depender de renegociações da

dívida junto ao banco, à financeira ou à agência de cobrança. Nesse sentido, algumas

entrevistas são mais críticas e sugerem que tais instituições credoras tendem a impor

condições eventualmente consideradas injustas, que acabam por desencadear sentimentos de

impotência, resignação e acuamento:

(Seria mais justa) Uma renegociação com menos juros, né. Os juros de lá é muito

agressivo. E outra coisa, aquilo ali que você já pagou, aquilo ali morre, isso que eu

acho errado. Aquilo ali é como se fosse nada, você renegocia de novo uma nova

parcela e aquilo ali que você pagou não entra, eu não entendo. (...) Você pode

aumentar (o prazo). Assim, eles fazem assim: vamos supor, eu pagava R$ 672. Mas, se eu quiser pagar R$ 500,00, (ficam) R$ 500 em 82 (parcelas). Então, pô... irreal

isso aí, acho ridículo isso. Não acho certo. (Sra. Fox, 33).

Sinceramente? Eu... (tempo refletindo) não acho injustiça (a renegociação), né?

Porque juros é juros e, infelizmente, a gente não tem como combater uma coisa

como essa. (Sra. Celta, 43).

Na realidade, não são apenas as circunstâncias de renegociação que fazem surgir

sentimentos desse gênero. Os testemunhos dão a entender que os contatos dos credores para

cobrar o pagamento da dívida costumam ser bastante incômodos e constrangedores, o que

também havia sido observado no estudo de Hill (1994). Além disso, tais interações são

capazes de fazer os entrevistados sentirem como se estivessem sendo coagidos por agiotas ou

como se fossem bandidos.

Eles ligam noite e dia, é uma situação constrangedora, você se sente um bandido, um

ladrão. (Sra. Palio II, 32).

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Eu fiquei até meio aborrecido "Caramba, quinze dias atrasado, já estão ligando".

Você se sente até meio impotente, né? Nós que quisemos essa aquisição e tal e agora

está acontecendo isso. (Sr. Siena, 40).

A gente já fez essa renegociação duas vezes, mas aí começa pagar de novo e, tipo

assim, parece agiota isso. (Sra. Fox, 33).

Aparentemente, toda essa opressão característica da "prisão do devedor" e as

dificuldades inerentes à trajetória da libertação testam duramente a resiliência das famílias e

podem deflagrar um eventual desejo de alívio imediato, que se traduz pela vontade de se

livrar da responsabilidade pela dívida, passando-a adiante juntamente com o veículo. O

curioso é que essa solução instantânea parece ser cogitada por famílias dos três diferentes

grupos, isto é, mesmo aqueles que afirmam fazer questão de pagar na forma contratada têm

seu momento de "desespero", ainda que não o admitam abertamente:

Cara, eu penso que isso tinha que ser mais planejado, pra que a gente não passasse

isso agora, né, não estivesse na situação que está agora. É uma situação desesperadora? Não, não é. Porque você tem a opção de passar para terceiros, de

devolver, e é aquilo... (Sra. Turin, 44).

Entretanto, apesar de muito aventada, essa transferência da dívida para terceiros não

foi efetivada por nenhum dos casais estudados. Como reportam não haver forma de passar

completa e legalmente a dívida para outra pessoa, os entrevistados temem a configuração de

um cenário no qual permanecessem com a dívida em seu nome, porém sem a posse do carro,

o que é um risco correlato ao de "emprestar o nome"29

, conforme observado por Mattoso e

Rocha (2005). Se empreendida a contento, porém, tal prática poderia ser compreendida como

um "empréstimo tardio e reverso de nome falso": "tardio" porque o automóvel é recebido pelo

destinatário final em momento posterior ao da compra; "reverso" porque a ajuda vem daquele

que aceita pagar o financiamento, e não de quem assinou o contrato, cujo nome poderá ser

limpo; e "falso" por que o inadimplente não tem mais um nome para emprestar.

A gente já até pensou em (...) passar o financiamento pra terceiros, que eu não acho

viável, não confio... Só se tivesse um outro método que tirasse totalmente o nome

dele da jogada. (...) Porque (se o terceiro não quitar) ele estaria sem o carro e com o nome sujo. Então isso eu não acho muito viável. (Sra. Turin, 44).

O carro tá alienado no meu nome, eu não posso passar ele para outra pessoa, só se

ele estivesse quitado. (...) Quer dizer, eu acho até que tem gente que faz. Eu não

faria. Se eu não me engano, tem gente que pega, vamos supor, você é meu amigo e

você está com o carro. "Então tá, deixa o carro comigo, eu vou pagando... vou

pagando pra você", mas sei lá (...) Você não tem como fazer um contrato, sei lá

como se chama, um documento passando a responsabilidade total praquela pessoa.

(Sra. Cerato, 29).

29 Ver nota 24, à pág. 108.

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Ocorre que esse temido cenário, contra toda lógica, parece poder se estabelecer a

despeito da manutenção da posse do automóvel pela família inadimplente. Isso ocorre quando

se tem o carro, mas não se pode usá-lo por receio de um mandado de busca e apreensão30

impetrado pela instituição credora. O caso do casal Cerato talvez seja o mais emblemático

nesse sentido, pois o veículo está escondido tal qual uma vítima de sequestro, sob a

justificativa de que é "a única coisa que se tem" para manter aberta a possibilidade de

negociação. Essa situação parece fazer com que a família se sinta na clandestinidade,

"sabendo o que pode acontecer", já que "a lei está aí pra isso":

Por isso que eu tenho muito medo de perder o carro, por isso que eu quase não uso

ele, porque o carro na verdade é a única coisa que eu tenho pra poder negociar. Se

alguém vem aqui, algum oficial de justiça vem aqui, pega o carro e leva, a financeira

vai falar "Meu irmão, já recuperei o carro. Mas aqui, sua dívida é essa daqui, se

vira". Então ela manda carta até hoje para renegociação. (Sr. Cerato, 31).

A gente já não pode mais passear, não pode ficar dando sopa com o carro. (...) É um

receio. Porque é aquilo, a lei está aí para isso, a gente já sabe o que pode acontecer,

já que nós, por enquanto, preferimos segurar, pra talvez renegociar isso, enfim, ver

no que vai dar. A gente tem que se privar, ele tá lá e a gente aqui. (Sra. Cerato, 29).

(Não poso usar o carro) Porque ele está com atraso e estou com medo de entrar em busca e apreensão e eu deixo ele na minha mãe. (...) Isso é um incômodo, eu me

sinto muito incomodada, ter e não ter, eu tenho e não posso usar. (Sra. Classe A, 31).

O temor da busca e apreensão pode ainda gerar outras reações, como a devolução

amigável do veículo, para evitar a "vergonha" da situação de se ver abordado em casa, aos

olhos da vizinhança, ou o empenho para "nunca deixar" acontecer:

Com três meses diz que dá busca e apreensão. E nós já entregamos um carro quando

fez três meses. (...) Então eu nunca deixo juntar três. (...) Foi assim. Juntou três

meses. A gente não conseguia acertar de jeito nenhum. Aí ele falou que dava busca e

apreensão, que batia em casa e tudo. A gente não queria passar por essa vergonha, aí

foi lá e devolveu. Eu não sei como funciona. (Sra. Siena, 41).

Mas também não vou pegar o carro e esconder porque deu busca e apreensão. (...) Se desse busca e apreensão, eu sou o primeiro a levar. (...) Eu mesmo faço. (Sr. Turin,

49).

Ademais, as entrevistas dão a entender que viver na "prisão do devedor" gera grande

desconforto pela necessidade de fazer escolhas, priorizar gastos. Nesse sentido, sobressai a

importância dada às despesas do cotidiano familiar, especialmente às voltadas para a

educação ou lazer dos filhos, que "não podem ser cortadas de jeito nenhum". A presença da

dívida em aberto, portanto, parece não justificar "abrir mão da vida que se tem", como esforço

para saldá-la, o que está em sintonia com o entendimento de Bernthal, Crockett e Rose (2005)

30 O objetivo da ação de busca e apreensão, decorrente de contrato de alienação fiduciária, é ver apreendido o

bem objeto do contrato e visa garantir o pagamento do saldo devedor em aberto.

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de que as práticas de enfrentamento das consequências financeiras visam postergar/evitar a

alteração dos padrões correntes de consumo:

E não vou tirar de uma prioridade que é casa, que é a escola por causa disso. (Sra.

Cerato, 29).

Eu não mexi no orçamento da família. Não vou fechar as portas, "Não, olha, vamos

parar tudo, vamos fechar tudo que a gente vai pagar isso aí". Não. Eu até perco o

carro, mas eu não abro mão do que minha família tem e não pode perder. (Sr. Turin, 49).

Como a situação ficou muito ruim, eu falei "Eu não vou deixar de pagar colégio pro

meu filho, curso de inglês pro meu filho, pra pagar o carro". Eu tenho que pagar,

porque a prioridade é o meu filho. Então eu dei prioridade às coisas do meu filho e

deixei o carro para depois. (Sra. Palio II, 32).

No final do ano passado falei "Pô, a gente vai ter que começar... vai ter que

escolher". E logicamente foi o carro. (...) As despesas de casa, o colégio do garoto e

tal acabam consumindo quase tudo. (Sr. Classe A, 47).

A Sky é uma coisa que não pode cortar de jeito nenhum, o Cauã (filho) é viciado em

televisão. Ele (o marido) também é viciado, mas, se não tiver, não tem. O Cauã não

entende que não tem. (Sra. Siena, 41).

Ainda no âmbito dessa relutância em modificar os padrões de consumo, aparece a

recorrência ao crédito alheio como forma de viabilizar a aquisição de bens e serviços cujo

valor extrapole o orçamento mensal, inviabilizando o pagamento à vista. Nesse caso, pedir um

"empréstimo de nome" não somente implica depender de amigos ou familiares, situação já

destacada por Mattoso e Rocha (2005), como também aparenta determinar uma prioridade de

pagamento. Com efeito, os discursos parecem indicar uma maior preocupação em não sujar o

nome do amigo ou parente do que em buscar a limpeza do próprio nome.

Então o que eu faço? Quando eu compro, eu compro no cartão da minha irmã, no

cartão de um amigo e essa compra é prioridade. Por quê? Porque não é meu. Então

às vezes eu pago até antes. (Sr. Siena, 40).

Na verdade eu priorizei pagar as contas que não estavam no meu nome, por

exemplo, a geladeira foi comprada no cartão de crédito da minha mãe, por isso dei

prioridade a pagar. (Sra. Classe A, 31).

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo exploratório teve como principal objetivo investigar a experiência

de dificuldades financeiras vivida por famílias que contraíram dívida para a aquisição de um

automóvel. No entanto, é interessante dar mais um passo atrás e lembrar as razões que

motivaram esta pesquisa em seu estágio mais embrionário. Na literatura, dois tópicos de

interesse podem ser destacados nas pesquisas sobre endividamento: identificar fatores que

levam algumas pessoas a usarem o crédito mais intensamente que outras; e identificar fatores

que fazem alguns indivíduos entrarem em situações de dificuldade de pagamento, com a

possibilidade de acúmulo de dívidas até níveis impagáveis. Em princípio, a presente pesquisa

se insere no segundo tópico, mas cabe destacar que teve como inspiração inicial a

possibilidade mais ampla de vislumbrar oportunidades para iniciativas de educação financeira

e que podem se traduzir em contribuições para consumidores, empresas e também políticas

públicas.

O endividamento, per se, não é visto aqui como algo ruim; contrair dívidas não

implica necessariamente problemas para saldá-las. Pelo contrário, o crédito pode ser

importante ferramenta para o alcance de estilos de vida diversos e apoiados pelo consumo.

Portanto, quando se menciona educação financeira, a ideia subjacente não é combater o

endividamento, mas capacitar o consumidor para a gestão da dívida, favorecer o uso

consciente do crédito pelas famílias, em um ambiente no qual é possível observar

consumidores deixando de poupar dinheiro para compras futuras e passando a antecipar novas

aquisições por meio de endividamento. Tal capacitação se torna especialmente importante no

contexto brasileiro, cujo modelo de desenvolvimento econômico aparenta ser ancorado no

estímulo ao consumo e que observa uma crescente participação de famílias de classe média

baixa no universo de consumo, com todas as oportunidades e riscos a ele associados.

Acredita-se que a discussão de resultados realizada no capítulo anterior trouxe

respostas para as perguntas de pesquisa e propiciou o conhecimento de diversos aspectos

relativos às formas de utilização do crédito e de tratamento da dívida pelas famílias

entrevistadas. Dessa forma, o presente estudo exploratório contribui para a área de

comportamento do consumidor, tendo em vista que analisou um grupo de famílias que

vivencia esse momento de ampliação da experiência consumista e, ao mesmo tempo em que

tenta concretizar seus sonhos de consumo, também enfrenta os aspectos difíceis do

endividamento. Além disso, os achados desta pesquisa trazem várias implicações para

políticas públicas e podem servir como fonte de informação útil não somente para ações de

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educação financeira das famílias, mas também para a atuação de todos os agentes envolvidos

direta ou indiretamente nas experiências de dificuldades financeiras estudadas, entre os quais

se destacam as empresas montadoras de automóveis, os estabelecimentos concessores de

crédito, as instituições de proteção ao crédito, os órgãos de proteção ao consumidor e as

entidades reguladoras. As perguntas de pesquisa e os principais achados que elas

proporcionaram são retomados a seguir, como forma de fomentar a reflexão sobre a

contribuição deste estudo para os agentes acima relacionados.

Quais são os principais significados e sentimentos envolvidos na compra do carro?

Para as famílias pesquisadas, a compra do automóvel parece registrar uma evolução da

condição socioeconômica ou um "upgrade na vida". O carro aparece assim como um luxo

necessário, pois, ao mesmo tempo em que sinaliza o pertencimento dessas famílias a um

grupo social com o qual desejam se identificar e ser identificadas, também marca a

diferenciação em relação àqueles "sem nenhuma condição financeira". Os carros funcionam

como marcadores de um estilo de vida idealizado e aspirado pelas famílias entrevistadas. Daí

suas referências à aquisição do carro como a realização de um sonho, mas um "sonho de

consumo parcelado", uma vez que o pagamento à vista não é reconhecido por esse grupo

como alternativa. Esse significado idealizado e deslocado dos automóveis faz com que

modelos mais básicos e baratos, que talvez coubessem com mais folga no orçamento, sequer

sejam lembrados entre as opções de compra, por não serem considerados sinalizadores do

estilo de vida sonhado.

Em meio a esse cenário de realização de sonho, o carro ainda simboliza um patrimônio

em formação ou uma opção de investimento, já que a sua posse é percebida como a

materialização de uma soma, de um valor monetário que, de outra forma, não conseguiria ser

acumulado pelos casais entrevistados. Sendo assim, os sentimentos positivos de satisfação,

felicidade e orgulho que o automóvel suscita nas famílias contribui para que não antecipem

dificuldades financeiras e incapacidade de pagamento. Fica a impressão de que, para os

entrevistados, o carro e a dívida contraída para sua compra não pertencem à mesma realidade,

conforme ilustra a Figura 4 a seguir:

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Figura 4: Sentimentos Associados ao Automóvel.

Como é a participação da família na aquisição do veículo?

Nos processos de compra estudados, o espaço para a interação familiar parece se abrir

quando um dos cônjuges manifesta ao outro o desejo por um automóvel. A reação do

companheiro pode ser favorável ou contrária à ideia proposta, o que pode tornar necessário

que o proponente convença ou ignore o parceiro. Nessas situações, o componente financeiro

aparece como determinante, já que o valor de prestação deve "caber no bolso" da família. Foi

possível observar, entre os casais pesquisados, que o engajamento financeiro de cada um

aparenta ser determinado mais por necessidade que por voluntariedade. Chamou atenção

também o fato de algumas famílias aparentarem ocultar a dependência da contribuição

financeira da mulher para a compra do carro, por meio do rearranjo do acordo firmado sobre o

orçamento doméstico: ao invés de aplicar diretamente seus recursos no automóvel, a mulher

passa a assumir uma parcela maior de outras despesas da casa e concede ao homem o papel de

provedor do carro, que é um símbolo da ascensão social da família.

Como as famílias lidam com os custos inerentes ao automóvel?

As famílias admitem "só ter pensado na parcela" antes da compra e as falhas de

planejamento sugerem que o financiamento do carro deixou o orçamento doméstico "no

limite", logo, sem espaço para o recebimento de todas as despesas do veículo. Surpresa? Eles

falam de várias estratégias que vão da busca por driblar custos relativos ao carro até abrir mão

de outras despesas do cotidiano familiar, de diferentes naturezas tais como a moradia, a escola

dos filhos ou mesmo gastos supérfluos.

A despeito de todas as indicações de que as parcelas do carro e os outros custos não

esperados afetaram seu orçamento e cotidiano, as famílias estudadas atribuem a outros

grandes eventos alheios à sua vontade, como perda do emprego ou problemas de saúde, a

Automóvel Dívida

Satisfação Bem-estar

Felicidade

Orgulho

Prazer

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situação financeira desfavorável que estão vivendo. Dessa forma, elas preservam o "objeto de

desejo" automóvel dos infortúnios também narrados a partir de sua posse.

Como as famílias veem o recurso ao endividamento para a aquisição de bens?

Pagamento parcelado é rotina e a "cultura do parcelamento" parece estar tão arraigada

que alguns testemunhos revelaram um "desejo de parcelar a parcela", em meio às dificuldades

de pagar o carro. Os relatos fornecem pistas sobre possíveis causas para o consumo via

endividamento e descrevem uma espécie de círculo vicioso, conforme Figura 5 a seguir: o

desejo de consumir mais e agora leva a uma dificuldade de poupar, que é apoiada pela ampla

oferta de crédito fácil no mercado, que, por sua vez, leva ao desejo de consumir mais e agora.

Figura 5: Rotina de Parcelamento.

O planejamento dos entrevistados parece se limitar ao presente, isto é, sua

preocupação se restringe a conseguir pagar a prestação no momento da compra. Em outras

palavras, as famílias pesquisadas querem saber que valor de prestação "cabe no bolso", o que

quase sempre significa "o máximo que poderiam pagar". O orçamento desse grupo de famílias

estava "no limite" e esse limite foi ultrapassado com gastos excepcionais, inclusive relativos

ao carro, mas que haviam sido ignorados no planejamento da compra.

Quais são os principais significados, sentimentos e experiências originados das

dificuldades financeiras?

A incapacidade de pagar a dívida contraída para obter o desejado carro é descrita

como um "fracasso", uma "decepção", acompanhada de "tristeza", "frustração", "depressão" e

"preocupação". Os sentimentos negativos estão associados à dívida e parecem separados do

carro nos relatos dos entrevistados, conforme ilustra a Figura 6 a seguir:

Rotina de

Parcelamento

Dificuldade de

Juntar Dinheiro

Imediatismo

do Consumo

Facilidade

de Crédito

"Desejo de

Parcelar a

Parcela"

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Figura 6: Sentimentos Associados à Dívida.

Para algumas famílias, pagar a dívida pode significar "resgatar o orgulho perdido".

Para outras famílias, buscar reduzir o valor devido, até por uma ação judicial, pode ser uma

saída apropriada para "uma realidade indesejada". Mas também foi possível observar famílias

mais conformadas e que consideram ser possível esperar um momento melhor para saldar a

dívida.

Independentemente de como se comportam em relação à situação de endividamento,

as famílias entrevistadas parecem vivenciar experiências comuns na "prisão do devedor",

quando estão sujeitas a credores incômodos e constrangedores ou quando vivenciam o receio

de um mandado de busca e apreensão do veículo.

5.1. "ME ENGANO QUE EU GOSTO"

De uma forma geral, os achados desta pesquisa sugerem que, desde a compra do carro

até o descontrole financeiro, as famílias pesquisadas vivem diversas experiências que podem

ser vistas como autoengano, um processo pelo qual "a mente da pessoa consegue de alguma

forma manipular-se e iludir-se a si própria" (GIANNETTI, 1997, p. 17). O autoengano

aparece quando falam da necessidade de ter o carro e o modelo não parece ser adequado à

situação econômico-financeira, como no caso do Sr. Turin, que, mesmo estando inadimplente,

explica que uma família de classe média não compra um Corsa, e sim um carro melhor. O

autoengano aparece também quando falam do valor da prestação que imaginam poder pagar,

considerando que tudo ao redor irá permanecer constante: "A gente estava estabilizado, tanto

eu quanto ela... tinha condições para isso".

O autoengano das famílias pesquisadas não permite que elas pensem nas "surpresas da

vida", embora os prazos dos financiamentos estudados sejam iguais ou superiores a 48 meses.

Dívida Carro

Fracasso Desengano

Tristeza

Frustração

Decepção

Preocupação

Depressão

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Como enxergar além e reconhecer os riscos associados ao financiamento do automóvel diante

da sedução exercida por sua posse no presente? Na condição de objeto de desejo na

sociedade, o carro parece ocupar uma posição privilegiada em relação a outras categorias de

consumo, que talvez não suscitem o mesmo fascínio, a mesma devoção, a mesma "animação",

a mesma vontade de "embarcar na loucura" ou a mesma "empolgação que faz esquecer as

coisas".

Considerando que a atração exercida por um objeto está associada ao seu potencial em

contribuir para a construção de relações e aceitação no grupo social, o significado de inclusão

social do automóvel descrito pelas famílias parece torná-lo irresistível.

Embora essa dimensão simbólica do carro, tão abordada pela literatura em

comportamento do consumidor, tenha sido encontrada no discurso dos entrevistados, vale

lembrar que muitas justificativas oferecidas por eles para a compra do veículo contraindo

dívidas se encontram no plano racional, mais cognitivo, aparentemente retratando um esforço

para continuar qualificando suas decisões como acertadas, o que reitera a ideia de autoengano.

Nesse sentido, destaca-se a caracterização do automóvel como necessidade para superar as

dificuldades decorrentes do transporte público ou a dependência da ajuda de terceiros em

possíveis situações de emergência. O curioso dessa situação é que, para reforçar a percepção

da necessidade do carro, os entrevistados conseguem antecipar eventuais ocasiões de risco, o

que não ocorre com relação aos perigos da dívida.

O autoengano se mantém quando os entrevistados afirmam que repetiriam a compra,

se pudessem voltar no tempo, quando não admitem ter superestimado sua capacidade de

pagamento, quando não reconhecem falhas de planejamento e quando não aceitam que a

possibilidade de eventos excepcionais deveria ter sido considerada antes da compra parcelada.

Quando, porém, a justificativa para a compra do carro é racionalizada mediante seu

enquadramento como uma opção de investimento, as reflexões ultrapassam o autoengano e

apontam para a carência de políticas públicas de educação financeira. De fato, alguns relatos

indicam uma fé sincera na adequação do carro a essa finalidade de investimento, tornando

difícil saber até que ponto tal percepção decorre de um autoengano muito eficiente ou de

noções muito equivocadas sobre o que vem a ser um investimento. Afinal, os custos do

financiamento naturalmente fazem com que os entrevistados despendam um volume de

recursos superior ao valor do carro comprado, que, por sua vez, ainda sofre considerável

depreciação ao longo do tempo. Via de regra, portanto, um automóvel não contribui para

aumentar a riqueza do proprietário (sendo utilizado basicamente para passeio) e não deveria

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ser percebido como uma forma de investimento tal qual um imóvel, bem com que o carro

parece ser comparado em alguns discursos. Dessa forma, acredita-se que lacunas de

conhecimentos financeiros tão elementares como esses possam colaborar para o problema do

endividamento e deveriam ser objeto de programas educacionais.

Outro tipo de consideração relacionada a políticas públicas e que foi suscitado pela

presente pesquisa diz respeito ao modelo de desenvolvimento adotado pelo governo

brasileiro, que parece fazer do estímulo ao consumo a base para o crescimento da economia.

Tendo em vista a citada deficiência de educação financeira da população e a crescente

participação de classes menos favorecidas no universo de consumo, quão sustentável ou

temerária pode ser para a sociedade essa política que parece fomentar um modelo consumista,

baseado no uso ampliado do crédito e do parcelamento para antecipar a capacidade de

consumo dos cidadãos? Do mesmo modo que os consumidores podem acreditar que estão

melhorando de vida, sem perceber ou evitando refletir sobre a ampliação da sua exposição aos

riscos do endividamento, talvez a ânsia do crescimento econômico também possa estar

levando o País a algum tipo de autoengano quanto à sustentabilidade do seu modelo de

desenvolvimento.

Sendo assim, a sedução que o carro exerce sobre as famílias entrevistadas parece

atingir também o governo brasileiro, tendo em vista a importância estratégica que este confere

à indústria automobilística para o crescimento econômico ancorado no consumo, como se

percebe nas reiteradas reduções de IPI incidente sobre o setor. Ocorre que tal sedução pode

abrigar armadilha semelhante à contida no folclórico canto da sereia, quando o marujo,

seduzido pela irresistível melodia, acaba chocando seu barco contra os rochedos. Os

entrevistados, tendo a visão de futuro embaçada pela expectativa presente de "realizar o

sonho", ignoram os riscos do endividamento. O País, avesso ao modelo trabalhoso de

poupança e investimento, prefere o caminho dos subsídios fiscais e creditícios e do incentivo

ao consumo, sem maior preocupação com os efeitos dessas medidas sobre a produtividade, a

inflação e sua própria sustentabilidade. Em ambos casos, não aparentam ser irrelevantes os

riscos de se ver o barco colidindo contra os rochedos.

5.2. A EXPERIÊNCIA COM AS FAMÍLIAS

A experiência de estudar as famílias, e não o consumidor individual, também gerou

aprendizados importantes. A abordagem de entrevistas com casais, sendo cada cônjuge

entrevistado de cada vez, parece contribuir para um conhecimento mais completo acerca da

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situação estudada. Essa percepção decorre não somente da riqueza de detalhes que a

complementação de dados proporciona, uma vez que são duas pessoas informando e

lembrando os acontecimentos, mas também da possibilidade de captar diferentes visões,

algumas vezes contraditórias, sobre um mesmo fato.

Nos casos estudados, a abordagem da família propiciou algumas reflexões

interessantes, principalmente, para instituições concessoras de crédito e de proteção ao

crédito. Os achados deste estudo indicam que a família, pelo menos do ponto de vista

financeiro, deveria realmente ser analisada como uma unidade. Independentemente de

informarem fundos conjuntos, individuais ou uma combinação de ambos no gerenciamento do

orçamento doméstico, as famílias pesquisadas parecem depender de todos os rendimentos

gerados por seus membros – nesse caso, os filhos que trabalham também podem ser

convocados a contribuir – e vivenciar conjuntamente as dificuldades financeiras.

Portanto, quando a assinatura de um contrato de financiamento é atribuída a

determinado cônjuge pelo fato de o outro estar com o "nome sujo", por exemplo, já é sabido

que naquela família há uma ou mais dívidas em atraso. Dessa forma, a renda do cônjuge com

"nome limpo" parece ser comprometida pela inadimplência do seu companheiro: se os

recursos não forem usados diretamente para ajudar na dívida em aberto, provavelmente serão

gastos em outras despesas, para compensar uma menor contribuição do cônjuge com débito a

liquidar. Então se pergunta: esse tipo de circunstância não deveria ser levada em consideração

pelos órgãos de proteção ao crédito, que identificam os mal pagadores, e pelas instituições

concessoras de crédito, que analisam a capacidade de pagamento do consumidor?

Situação correlata ocorre quando há um "empréstimo de nome" na contratação do

financiamento do veículo porque a família compradora não tem renda suficiente para obter o

crédito necessário. Nesse caso, parece razoável se questionar: o fato de a família não auferir

rendimentos que demonstrem a capacidade de pagar a dívida que pretende contrair não

conteria indícios claros de que ela terá problemas com o pagamento? Tal circunstância sugere

uma espécie de autoengano coletivo: a família compradora acredita que vai conseguir pagar

um valor que analistas financeiros informaram ser incompatível com sua capacidade de

pagamento; o parente ou amigo que "empresta o nome" acha que está apenas ajudando o casal

a superar uma burocracia irrelevante; e, por último, o concessor do crédito, junto com a

empresa que produz o carro, parecem acreditar que a história termina com o empréstimo e

com a compra, mesmo tendo informações de que o cliente poderá ter problemas no futuro.

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Outra circunstância observada no presente estudo, por si só, suscita reflexões acerca da

atuação e da responsabilidade de praticamente todos os agentes envolvidos nas experiências

de dificuldades financeiras estudadas. Foi possível observar famílias que, não conseguindo

pagar o financiamento do carro, acionaram judicialmente a instituição credora pela cobrança

de juros abusivos e obtiveram do juiz uma "batida de martelo" para baixar a prestação devida

(de R$ 560,00 para R$ 250,00, por exemplo). À primeira vista, uma decisão desse gênero

parece responsabilizar a instituição financeira pelos altos juros cobrados e isentar a família da

responsabilidade por ter concordado com o pagamento previsto No entanto, um olhar mais

crítico pode desencadear diversos questionamentos a respeito de experiências como essa.

Tendo em vista um cenário com crescente demanda da sociedade pela

responsabilidade social e ambiental das empresas, é preciso trazer essa preocupação com a

responsabilidade também para o crédito dirigido ao consumo, tanto da parte do concessor

quanto da parte do tomador. Nesse sentido, aproximar-se do cliente, seja para conhecer sua

realidade e então oferecer um crédito compatível, seja para não propor soluções "absurdas"

quando ele apresenta dificuldades de pagamento, pode ser um caminho a ser seguido pelas

empresas. No que se refere ao consumidor, as entrevistas realizadas indicam que há um grupo

de cidadãos carentes de uma educação para o consumo que os habilite a gerenciar melhor sua

vida financeira e a tomar decisões mais conscientes sobre oportunidades e riscos.

5.3. OUTRAS CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO

As situações descritas apontam para a importância de as empresas, principalmente as

financeiras, "irem até o contexto" onde seu cliente está para entender mais da sua vida e de

seu comportamento de consumo. Os relatos falam do distanciamento, mas também sugerem

uma aproximação:

Eu nunca tive acesso a nenhuma empresa, financeira. Nunca fizeram nenhum

trabalho de pergunta nem nada. (...) Porque ninguém virá aqui pra me perguntar

"Como é que está sua vida aí pra pagar esse carro? A gente pode te ajudar?" (Sr.

Turin, 49).

Essa aparente inacessibilidade, impessoalidade ou desinteresse que alguns

entrevistados percebem nas empresas das quais são clientes parece ter contribuído para

estimular a conversa com o pesquisador e proporcionar situações inesperadas, como o

agradecimento em forma de desabafo do Sr. Fox ao final da entrevista:

Obrigado. E é bom falar sobre isso porque quando você conversa com um atendente,

a pessoa que liga para cobrar, dificilmente a gente consegue expor esse tipo de

situação, entendeu? Explicar qual é a circunstância, o que se pode fazer, o que não

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pode. Assim, eu não deixei de pagar o carro por "Ah, não paga, deixa aí, deixa

tomar, deixa vir pegar", não deixei por isso. Eu quero pagar, sempre tive meu nome

limpo, entendeu? (Sr. Fox, 33).

No que concerne às montadoras de automóveis, as famílias pesquisadas não fizeram

ligação entre elas e as dificuldades financeiras enfrentadas, o que pode estar relacionado à

separação que os entrevistados parecem estabelecer entre seus carros e a dívida contraída para

adquiri-lo. Tal constatação, contudo, não deveria indicar ausência de motivos de preocupação

para essas empresas. Pelo contrário, as fabricantes de carros deveriam pensar que essa

associação ainda não é feita, mas que as novas, gratuitas e rápidas mídias sociais disponíveis

já representam um aumento do poder dos consumidores em expor suas insatisfações,

decepções e angústias. Assim, recomenda-se que as montadoras se mantenham atentas às

experiências de endividamento de seus clientes após comprar o produto que elas oferecem.

Afinal, as instituições que concedem o crédito ao consumidor, muitas vezes um banco ou uma

financeira coligada à fabricante, com a mesma marca no nome, não foram poupadas de

críticas:

Eu acho que as empresas de financeiras deveriam ser mais sinceras só com o seu

cliente porque ela vende dinheiro e ela recebe dinheiro em troca, então ela não

precisa colocar o dinheiro que ela ganha como resultado escondido, pra evitar

justamente que as pessoas se sintam ludibriadas e entrem com ações e recursos

contra essas empresas. (Sr. Turin, 49).

O maior sinal de alerta para as montadoras, todavia, vem do tratamento que seus

clientes têm recebido a partir do momento em que a cobrança da dívida é transferida para

agências especializadas. Os relatos dos consumidores acerca dos contatos com as agências de

cobrança trazem expressões muito fortes e alarmantes. Alguns entrevistados chegam a dizer

que parecem estar lidando com agiotas ou sendo tratados como bandidos ou ladrões.

5.4. SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS

Diversos aspectos observados ao longo deste estudo exploratório poderiam ser objeto

de investigação em pesquisas futuras e são aqui apresentados em forma de perguntas de

pesquisa:

a) Que significados estão relacionados à responsabilidade pelo pagamento do carro?

b) Quais são as associações entre a marca do carro e a contração de dívida?

c) Como a família lida com decisões autônomas de seus membros a respeito de

recursos ou bens coletivos?

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d) Como as famílias gerenciam os espaços de diferentes categorias de produto no

orçamento doméstico?

e) Como autoengano e locus de controle externo se relacionam ao acúmulo de

dívidas?

f) Que associações existem entre a contração de dívida para a compra de bens de alto

valor e a formação de poupança?

g) Como o modelo teórico de Bernthal, Crockett e Rose (2005) se aplica a dívidas não

originadas do uso do cartão de crédito?

h) Como é a experiência de recorrer a órgãos de proteção ao consumidor ou

judiciários em virtude de dívidas contraídas para o consumo?

i) Como é a experiência de famílias que superam as dificuldades financeiras?

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ANEXO 1 – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS

1. APRESENTAÇÃO E INÍCIO DA PESQUISA

Bom dia / boa tarde / boa noite, [Nome do(a) entrevistado(a)]. Meu nome é Marcelo

Franca, sou pesquisador do COPPEAD/UFRJ e estamos desenvolvendo um estudo com

famílias cariocas sobre compras financiadas.

Esta entrevista não deve chegar a 1 hora de duração. A ideia é que seja um bate-papo

informal: não existe resposta certa ou errada. O importante é que você seja sincero e conte

tudo o que lembrar sobre suas experiências de compra: o antes, o durante e o depois. Quanto

mais espontâneo você conseguir ser, mais reais serão os resultados e melhor ficará a pesquisa.

Gostaria de lembrar que o áudio da entrevista está sendo gravado. Tudo bem? Assim,

não precisamos ficar parando nossa conversa para eu tomar notas nem corremos o risco de

deixar passar detalhes importantes. Para garantir a sua privacidade, em nenhum momento seu

nome será divulgado. Você tem alguma dúvida que gostaria de tirar antes de começarmos?

(6) Pra começar, queria que você lembrasse que compras financiadas você está

pagando agora. Que mais?

2. EXERCÍCIO PROJETIVO: "FAMÍLIAS ALMEIDA E FERREIRA"

Vamos fazer um exercício de imaginação! Eu gostaria que você considerasse duas

famílias, que nós vamos chamar aqui de Almeida e Ferreira. A Família Almeida é formada

por um casal com [X] filho(s), mora aqui em(no)(na) [bairro próximo ao do(a)

entrevistado(a)] e eles não têm carro. Já a Família Ferreira acabou de comprar seu primeiro

carro zero. Com base nessas informações, eu gostaria que você me ajudasse a imaginar essas

famílias com maiores detalhes. Primeiro, a família sem carro: a Família Almeida.

(7) Por que você acha que eles não têm carro?

(8) Como você imagina que é a casa deles?

(9) Você acha que eles costumam comprar produtos financiados? Quais? Por quê?

"Me" explica melhor...

(10) O Sr. Almeida trabalha onde? E a esposa?

(11) Você acha que eles estão planejando comprar um carro? Por quê?

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Agora a família Ferreira. Então, essa segunda família que estamos imaginando tem um

carro zero, também mora no bairro de(o)(a) [mesmo dos Almeida] e tem [X] filhos.

(12) Você acha que o Sr. Ferreira trabalha onde? E a mulher dele?

(13) Como você imagina a casa deles? O que tem lá? De que tamanho é? É própria?

(14) Você acha que eles costumam comprar produtos financiados? Quais? Por quê?

(15) Que carro você acha que eles compraram? [Caso a pessoa não consiga

especificar um modelo, perguntar sobre preço, tamanho, opcionais etc.] Por quê?

(16) Como compraram? Por que eles recorreram a um financiamento para comprar

esse carro? / Por que eles compraram à vista?

(17) O que significou para eles a compra desse carro?

(18) O que você acha que eles sentiram ao comprar esse carro zero?

(19) O que você acha que os vizinhos pensaram ao ver o novo carro da Família

Ferreira?

Agora imagine que se passaram dois anos da compra do carro zero da Família

Ferreira.

(20) Como você vê essa família? O que aconteceu?

3. O PROCESSO DE DECISÃO DE COMPRA DO AUTOMÓVEL

Agora vamos deixar de lado as famílias Almeida e Ferreira e falar da sua família.

(21) Quantas pessoas moram na sua casa? O que vocês gostam de fazer juntos? Como

é a rotina de vocês?

(22) Vocês dois trabalham? O que você faz? E sua esposa / seu marido?

(23) Onde seu(s) filho(s) estuda(m)?

(24) Que produtos você diria que mais fazem parte da sua vida em família? Por quê?

(25) [Se não falar espontaneamente] E o carro?

Bem, agora vamos falar da compra do carro zero da sua família.

(26) Quem aqui na sua casa foi o primeiro a levantar o interesse em comprar um

carro zero? O que ela / você falava?

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(27) Quais eram as suas principais razões para querer comprar um carro zero? E para

não comprar um carro zero?

(28) Agora eu faço as mesmas perguntas que tinha feito sobre a Família Ferreira:

- O que significou pra vocês comprar esse primeiro carro zero?

- O que vocês sentiram?

- O que você acha que os vizinhos falaram?

(29) Você gosta de falar sobre carro? Por quê? "Me" explica melhor...

(30) "Me" fala o que você sente quando dirige esse carro.

(31) E mais alguém contribuiu nesse pontapé inicial? O que falava? Que motivos

dava para a compra do carro?

(32) [Caso não tenha surgido espontaneamente] Qual foi a sua participação nesta

etapa da compra?

(33) Houve algum episódio específico que determinasse a decisão pela compra?

Quanto tempo levou?

(34) O que vocês levaram em consideração na hora da escolha do tipo de carro a ser

comprado? O que não podia faltar nesse novo carro? Para quem isso era mais

importante? Por quê?

(35) Como essas coisas afetaram o preço do carro? [Explorar: Encareceu a entrada,

a parcela, o IPVA, o seguro etc.?]

(36) De quem foi a palavra final sobre o carro a ser comprado? Por que foi essa

pessoa que teve a palavra final?

4. O MOMENTO DA COMPRA

Agora vamos falar sobre o dia da compra do carro.

(37) Você consegue se lembrar do dia da compra do carro? Descreva esse dia, por

favor.

(38) Quem de vocês ficou à frente das negociações com a concessionária? Como foi?

(39) Quem fechou, efetivamente, o negócio? Por quê?

(40) E o que foi decisivo para que a compra se concretizasse?

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(41) Como ficou acordado o pagamento do carro? Houve entrada? Quantas parcelas?

[Explorar se o valor da parcela caber no orçamento foi preponderante.]

(42) Vocês haviam se informado antes sobre as opções de financiamento disponíveis

(leasing, CDC etc.) ou foram informados na hora? Pensaram em poupar para

comprar à vista?

(43) Quem pagou, quem ficou responsável pelo pagamento? Apenas uma pessoa da

família ou mais? Se mais de uma, como se deu a divisão?

5. CUSTOS ASSOCIADOS

(44) Como você vê hoje os gastos associados ao seu carro? Quais são eles? [O que

não falar espontaneamente, induzir e explorar, em especial com relação ao peso

no orçamento doméstico e ao condicionamento do uso do carro.]

- Você tem garagem?

- Você tem seguro?

- E o combustível?

- E a manutenção?

- E os impostos (IPVA, licenciamento, etc.)?

- E multas?

Falamos dos principais gastos com o carro.

(45) Vocês pensaram neles antes de comprar o carro?

(46) Qual deles surpreendeu vocês?

(47) Quais são mais complicados de pagar?

6. ORÇAMENTO FAMILIAR E ENDIVIDAMENTO

Agora vamos falar um pouco sobre o orçamento familiar e como o pagamento do

financiamento pode modificar ou não outros gastos da família.

(48) Quando o carro entrou no orçamento da família, o que mudou? [Explorar: Qual

o efeito desses gastos em relação aos outros gastos da família?]

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(49) E aquelas outras parcelas que a família paga além do financiamento do carro.

[Citar as compras financiadas respondidas na pergunta 1] Tem mais alguma?

Eletrodomésticos? Financiamento imobiliário? Cartão de crédito? Crediário de

lojas? Crédito consignado?

(50) A compra do carro afetou o pagamento dessa outras parcelas? Ou elas afetam o

pagamento do carro e seus gastos? [Explorar: Há uma escala de prioridades?]

(51) O que vocês estão fazendo para resolver esse problema (da dívida)?

(52) Se você pudesse voltar no tempo, você ainda compraria o carro? Por quê?

(53) O que não foi possível prever ou planejar?

(54) Qual você acha que seria uma solução mais justa para essa situação?

(55) Você pensou em vender o carro? Por quê?

(56) O que você sente quando pensa na sua dívida por causa do carro, quando olha

para os boletos do financiamento?

(57) O que você sente quando pensa hoje no seu carro zero?

(58) Quando você pretende trocar de carro?

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gostaríamos de agradecer a sua participação nesta pesquisa. Muito obrigado por sua

disponibilidade e pelas suas opiniões. Tenha um bom dia / uma boa tarde / uma boa noite.

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ANEXO 2 – CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO ECONÔMICA BRASIL

SISTEMA DE PONTOS

Posse de itens

Quantidade de Itens

0 1 2 3 4 ou +

Televisão em cores 0 1 2 3 4

Rádio 0 1 2 3 4

Banheiro 0 4 5 6 7

Automóvel 0 4 7 9 9

Empregada mensalista 0 3 4 4 4

Máquina de lavar 0 2 2 2 2

Videocassete e/ou DVD 0 2 2 2 2

Geladeira 0 4 4 4 4

Freezer (aparelho independente ou parte da geladeira duplex) 0 2 2 2 2

Grau de instrução do chefe de família

Nomenclatura Antiga Nomenclatura Atual

Analfabeto/ Primário incompleto Analfabeto/ Fundamental 1 Incompleto 0

Primário completo/ Ginasial incompleto Fundamental 1 Completo / Fundamental 2 Incompleto 1

Ginasial completo/ Colegial incompleto Fundamental 2 Completo/ Médio Incompleto 2

Colegial completo/ Superior incompleto Médio Completo/ Superior Incompleto 4

Superior completo Superior completo 8

CORTES DO CRITÉRIO BRASIL

Classe Pontos

A1 42 – 46

A2 35 – 41

B1 29 – 34

B2 23 – 28

C1 18 – 22

C2 14 – 17

D 8 – 13

E 0 – 7

Fonte: ABEP (2012).