MARCAS DA MEMÓRIA INSTITUCIONAL: A CASA DO … · conquista do canudo de bacharel era sinônimo de...

12
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 6029 MARCAS DA MEMÓRIA INSTITUCIONAL: A CASA DO ESTUDANTE DA PARAÍBA COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO Francisco Chaves Bezerra 1 Maria Adailza Martins de Albuquerque 2 Nascido em Santana dos Garrotes-PB 3 , desde muito fui cedo incentivado pelo meu pai a seguir nos estudos. Nos momentos mais oportunos, especialmente no exercício das atividades agrícolas, repetia exaustivamente: “isso aqui não dá futuro pra ninguém, se vocês quiserem uma vida melhor, devem estudar!”. Em suas observações, deixava claro que essa caminhada dependia da aprovação nas séries do primário, ou seja, “passar de ano na escola” (implicitamente, não importava em que condições de aprendizagem), ir para João Pessoa cursar o secundário e morar na Casa do Estudante como fizeram outros filhos da terra, inclusive alguns familiares. Na Casa, seria possível uma dedicação mais efetiva aos estudos e, assim, preparar melhor para o vestibular ou ingressar no serviço público mediante concurso. Seguindo esses passos, havia a possibilidade de uma vida melhor, diferentemente daquela que tínhamos na roça. Foi dessa forma que a Casa do Estudante da Paraíba-CEP 4 adentrou na minha vida em meados dos anos de 1980. Torná-la como objeto de pesquisa do doutoramento foi, em certo sentido, uma necessidade de compreender a minha história e a trajetória de muitos estudantes do sertão paraibano que, para conseguir concluir os estudos, aventuravam-se à capital com o desafio de moradia na Casa e superar as deficiências de preparação para o vestibular. Sem dúvida, um estudo que transita no campo da afetividade pessoal, afinal de contas, a história que interessa é “aquela que não cessa de pôr questões à própria vida” (DUBY, 1989, pp. 119-120). 1 Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB, Professor de História no Ensino Básico da Secretaria Municipal de Educação de João Pessoa-PB. E-Mail: <[email protected]>. 2 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo-USP, Professora Adjunta no Departamento de Metodologia da Educação da Universidade da Paraíba-UFPB, Campus I. E-Mail: [email protected] 3 Município que se encontra localizado no Sertão do Estado da Paraíba, na microrregião do Vale do Piancó, a 423 km da capital João Pessoa, sendo ladeada pelos municípios de Olho D’água, Piancó, Itaporanga, Pedra Branca, Novo Olinda, Tavares e Juru. 4 A Casa do Estudante (assim os ex-residentes a tratam) encontra-se localizada na Rua da Areia, nº 567, Centro, João pessoa-PB. Permanece no mesmo endereço desde a sua criação, em 1937, no Governo de Argemiro de Figueiredo (1935-1945). O propósito era dispor de uma instituição com a finalidade de acolher estudantes do interior do Estado que não dispunham de ensino secundário em seus municípios, ou seja, quase todos.

Transcript of MARCAS DA MEMÓRIA INSTITUCIONAL: A CASA DO … · conquista do canudo de bacharel era sinônimo de...

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6029

MARCAS DA MEMÓRIA INSTITUCIONAL: A CASA DO ESTUDANTE DA PARAÍBA COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO

Francisco Chaves Bezerra1

Maria Adailza Martins de Albuquerque2

Nascido em Santana dos Garrotes-PB3, desde muito fui cedo incentivado pelo meu pai a

seguir nos estudos. Nos momentos mais oportunos, especialmente no exercício das

atividades agrícolas, repetia exaustivamente: “isso aqui não dá futuro pra ninguém, se vocês

quiserem uma vida melhor, devem estudar!”. Em suas observações, deixava claro que essa

caminhada dependia da aprovação nas séries do primário, ou seja, “passar de ano na escola”

(implicitamente, não importava em que condições de aprendizagem), ir para João Pessoa

cursar o secundário e morar na Casa do Estudante como fizeram outros filhos da terra,

inclusive alguns familiares.

Na Casa, seria possível uma dedicação mais efetiva aos estudos e, assim, preparar

melhor para o vestibular ou ingressar no serviço público mediante concurso. Seguindo esses

passos, havia a possibilidade de uma vida melhor, diferentemente daquela que tínhamos na

roça. Foi dessa forma que a Casa do Estudante da Paraíba-CEP4 adentrou na minha vida em

meados dos anos de 1980. Torná-la como objeto de pesquisa do doutoramento foi, em certo

sentido, uma necessidade de compreender a minha história e a trajetória de muitos

estudantes do sertão paraibano que, para conseguir concluir os estudos, aventuravam-se à

capital com o desafio de moradia na Casa e superar as deficiências de preparação para o

vestibular. Sem dúvida, um estudo que transita no campo da afetividade pessoal, afinal de

contas, a história que interessa é “aquela que não cessa de pôr questões à própria vida”

(DUBY, 1989, pp. 119-120).

1 Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB, Professor de História no Ensino Básico da Secretaria Municipal de Educação de João Pessoa-PB. E-Mail: <[email protected]>.

2 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo-USP, Professora Adjunta no Departamento de Metodologia da Educação da Universidade da Paraíba-UFPB, Campus I. E-Mail: [email protected]

3 Município que se encontra localizado no Sertão do Estado da Paraíba, na microrregião do Vale do Piancó, a 423 km da capital João Pessoa, sendo ladeada pelos municípios de Olho D’água, Piancó, Itaporanga, Pedra Branca, Novo Olinda, Tavares e Juru.

4 A Casa do Estudante (assim os ex-residentes a tratam) encontra-se localizada na Rua da Areia, nº 567, Centro, João pessoa-PB. Permanece no mesmo endereço desde a sua criação, em 1937, no Governo de Argemiro de Figueiredo (1935-1945). O propósito era dispor de uma instituição com a finalidade de acolher estudantes do interior do Estado que não dispunham de ensino secundário em seus municípios, ou seja, quase todos.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6030

A Casa do Estudante foi criada em 1937, em consequência da falta de estrutura escolar

no interior da Paraíba. Em princípios da década de 1960, somente municípios no eixo da BR-

230 (Patos, Sousa e Cajazeiras) dispunham de Ensino Secundário. O sistema de Grupos

Escolares ainda estava em fase de consolidação5. De maneira que, para um jovem do Sertão,

continuar os estudos era algo de difícil operacionalização, até mesmo para os de melhores

condições financeiras.

Diante dessas condições, alcançar o grau de DOUTOR era significativo para algumas

famílias sertanejas. O curso superior Brasil – na Paraíba não era diferente – povoava

(acredito que ainda hoje tem sua valorização social) o imaginário dos mais abastados, pois a

conquista do canudo de bacharel era sinônimo de status para a própria família, como

também a possibilidade de exercer cargos públicos de relevância na burocracia estatal. Para

os mais humildes (ainda muito incipiente), representava almejar melhores condições de

trabalho e renda. Essa aspiração é tão arraigada em nossa cultura que se configurou na

construção de uma espécie de mito do “meu filho doutor” (CASTELO BRANCO, 2005).

Da mesma forma, a criação tardia dos Grupos Escolares e, posteriormente, do ensino

secundário que dificultava os estudos no interior, também, não deve ser desconsiderado o

perfil político do governo Argemiro de Figueiredo que se destacava pela centralização,

reordenação e conciliação dos interesses políticos no estado, como também pela a cooptação

das forças sociais e proteção assistencialista e, nesse sentido, a criação da Casa do Estudante

atendia ainda aos interesses da elite remediada do interior, uma vez que Argemiro sabia da

força política que os pais de muitos desses jovens exerciam em suas localidades e, com essa

medida, os pais se sentiam agraciados por disporem de mais um instrumento de

favorecimento político.

Esse texto, portanto, apresenta algumas considerações a respeito da Casa do Estudante

da Paraíba como espaço de formação não escolar que, no meu entendimento, começa antes

mesmo de adentrá-la como residente. Não tendo preservado seu vasto arquivo documental,

pois a documentação produzida ao longo de sua história foi extraviada, optei investigar essas

experiências formativas a partir de livros de memórias escritos por ex-residentes. Trata-se de

Nos tempos de Pedro Américo, de Paulo Soares Loureiro (1989) e Casa do Estudante –

memória, de Napoleão Moreno (2011). Essas narrativas mnemônicas não se limitaram

5 Segundo levantamento de Pinheiro (2002, pp. 182-183), até 1930 nenhum município do Vale do Piancó dispunha de Grupo Escolar estadual. Em 1949, data limite de seu estudo, o quadro começava a ser alterado lentamente, apresentando o seguinte resultado: Piancó-02, Conceição-01, Itaporanga-01. É um número irrisório se levar em consideração a extensão territorial da região.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6031

apenas à década de 1950, momento que residiram na Casa, todavia relatam experiências

posteriores que se estenderam até o fim da década de 1970 e início da década de 1980.

O percurso teórico metodológico, por conseguinte, não poderia deixar de considerar

alguns referenciais como “lugares de memória” que se trata de lugares transitados e

habitados pelos sujeitos em estudo e que são aportes de memórias (NORA, 1993). Desde o

município de origem dos estudantes no interior, onde eram adquiridas suas primeiras

experiências de vida, de cultura e educação. Em João Pessoa, novas representações foram

sendo elaboradas gradativamente, com a inserção de elementos a constituir um sujeito que

não é inteiramente novo, porque uma memória anterior não quer e não pode ser apagada

imediatamente. Por fim, a própria Instituição como espaço de novas relações de convivência,

de um aprendizado diferente que se define na relação com as normas, as práticas e a

convivência em um cotidiano de coletividade diversa.

Escarafunchando essas memórias, percebi que além do cotidiano institucional, o

ambiente social, no qual se encontrava inserida, era crucial para entender o papel da

Instituição na formação desses sujeitos. Tal fenômeno se expressava nas relações de

convivências entre sujeitos de várias regiões do estado e, notadamente, na inserção em um

novo espaço sociabilidade, o centro da cidade.

Quando se trabalha com memórias é fundamental perceber que o indivíduo tem uma

forma particular de lembrar o passado e essa singularidade faz de cada memória uma

instância única nesse conjunto no qual se encontra inserido socialmente. É uma experiência

individual, portanto, pois é ele quem recobra o passado, porém as situações vividas

acontecem em um palco com outros sujeitos sendo impossível, portanto, lembrar o passado

sem trazer a coletividade à baila. O indivíduo não se desvencilha do coletivo, porque

(inclusive) é responsável pela sua constituição. Também é coletivo, porque tem como

especificidade a capacidade de manter relações, de maneira que os seus atos parecem mais

significativos nos momentos em que se estabelecem esses encontros relacionais. Não há ato

de lembrar, portanto, sem a presença do outro que está na cena relatada. Assim,

“acreditamos na existência de outrem porque agimos com ele e sobre ele e somos afetados

por sua ação” (RICOEUR, 2007, p. 139).

Considerando os caminhos da memória, o destino do estudante era João Pessoa, mas a

partir da Casa do Estudante que suas novas experiências de lugar começavam a ganhar

forma, posteriormente, a cidade era desvendada. Não era que o sujeito encontrava-se

vendado literalmente, não enxergando a cidade, contudo os olhos estavam abertos muito

mais para as experiências anteriores do que para o novo formato que se apresentava. Dessa

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6032

forma, quando se chegava de imediato, o indivíduo não tinha noção do que estava

acontecendo de fato, mas à medida que se começava a convivência com os mais veteranos e a

circulação pelos espaços da cidade, formulando uma nova acomodação dos sentidos.

Ler não é tanto um exercício óptico, e sim um processo que envolve mente e olhos, um processo de abstração, ou melhor, é extrair o concreto de operações abstratas, como identificar sinais característicos, reduzir tudo que vemos a elementos mínimos, reuni-los em segmentos significativos, descobrir ao nosso redor regularidades, diferenças repetições, exceções, substituições, redundâncias (CALVINO, 2006, p. 145).

Perceber a cidade era muito mais amplo do que simplesmente direcionar o olhar e ter

em sua frente pessoas circulando apressadamente, perceber o barulho perturbante dos

motores e buzinas dos carros, caminhar pelo emaranhado de ruas e vielas, ver a imponência

de alguns prédios como o 18 Andar (na época o edifício mais alto da cidade), o Edifício Regis

e mais um ou dois na lagoa. Na verdade, tratava-se de uma percepção tátil em que se aprende

a tocar em apetrechos diferentes que a nova realidade apresentava (fazer ligação de orelhão,

passar por uma escada rolante, apertar o botão do elevador, passar na roleta do ônibus,

esperar a vez no semáforo etc.).

Era uma acomodação da escuta, pois os sons intensos do trânsito deixam de ser

perturbador para adquirir o sentido de deslocamento e referências para se passear no centro.

A novidade urbana, portanto, ganha um novo contorno visual com apreciação de uma

paisagem exuberante que se apresenta com suas cores, formas e cheiros. Nesse sentido, “a

cidade é o lugar do estranho, do diferente, do não rotineiro, da mudança, do combate e do

distanciamento das manifestações tradicionais da cultura. [...]. Espaço da confusão de cores,

de gentes, de cheiros, de muito ruído” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 95).

De fato, o que estava em jogo era a construção das relações com um novo lugar onde

não havia elementos de referência de identidade, sentimento relacional e conhecimento

histórico. Sem esses laços de identidade, afetividade e histórico cultural; de fato o lugar

caracterizava-se como um não lugar. Algo que não permitia relacioná-lo de imediato às

experiências do lugar de origem que eram os lugares de memória “estes, repertoriados,

classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam aí um lugar circunscrito e

específico” (AUGÈ, 2012, p. 73). E essa organização do novo espaço e a constituição de um

novo lugar somente era possível no interior do grupo social e no lugar institucional que estar

sendo inserido (CERTEAU, 2012).

Os lugares de memória que se apresentava não era algo confortável, pois as referências

da memória ainda estavam vinculadas ao interior. Em João Pessoa,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6033

Cheguei brabo como todo sertanejo. Meio acanhado, bisonho, e como é natural, com saudades de tudo que dizia respeito às minhas origens. Pouco tendo saído de casa, o novo mundo que estava abraçando me indicava que deveria espremer o raciocínio para adaptar-me nesse novo pago, na obrigação de me traquejar em novos hábitos, no vestir e no comer (MORENO, 2011, p. 165).

Sair do interior era deixar a segurança do lugar de origem e as incertezas de um lugar

que ainda não existe enquanto espaço de memória e de convívio social e cultural. Nada era

bem arrumada na cabeça dos jovens e de suas famílias. Ao menos, a maioria trazia o desejo

de se estabelecer na cidade grande, nem que fosse por algum período. As inúmeras

expectativas com um meio urbano mais próspero (conseguir um trabalho, arrumar uma vaga

na Casa do Estudante, ir ao cinema, conhecer o mar, passar no vestibular etc.) e a intensidade

desses sentimentos eram motivadas por interesses e perspectivas distintos, da

particularidade de cada sujeito.

Essa acomodação dos sentidos operava uma nova configuração que não se assenta

uniformemente, porque se tratava de um grupo constituído de sujeitos com experiências

próprias de representação de mundo, com formas específicas de agir e com maneiras

particulares de recobrar suas memórias. Por outro lado, tornava-se imprescindível considerar

o intervalo temporal da pesquisa que abrangeu um período histórico marcado por momentos

de lutas, tensões e de acomodação de interesses, em que as mudanças não são apenas

vivenciadas, mas representavam um fim. As permanências se entrelaçam no cotidiano que se

movia lentamente nas ações e nas memórias dos agentes das operações. E, acima de tudo, um

arquétipo que ia se moldando e acomodando como fenômeno social e, assim, esse

contingente de estudantes vai adquirindo forma ao longo desse período, contudo não se

tratava apenas de uma constituição física, mas também de uma conformação relacional, uma

configuração de ritos e uma formatação de um coletivo de memória.

Ao se deparar com a capital, estavam em evidência também, as “aventuras” no centro

histórico da cidade e as novas imagens de um novo cotidiano urbano que se apresentava em

contraste à “vida pacata” ainda definidora das práticas e dos gestos, mesmo transeunte de

uma nova arena: “um verdadeiro mergulho no desconhecido”. Exigia atribuições que cobrava

do indivíduo nova postura. A submissão ao pai (uno) dava lugar à imposição institucional

com normas internas que eram acompanhadas por um conjunto hierárquico de pessoas

(Diretoria administrativa, Conselhos administrativo e fiscal, cozinheiras, porteiros, serviços

gerais, entre outros) que determinavam as normas mesmo sendo estas definidas pelos

próprios estudantes.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6034

O desejo de ampliar os conhecimentos (escolar, da cidade, da vida), de imediato

incrementava um novo cabedal mnemônico motivado pelos encantamentos das novidades da

capital (omitindo e aumentando). E os estudantes chegavam às suas cidadezinhas falando

dos benefícios de morar na Casa do Estudante, pois essa possibilidade trazia-lhes a

oportunidade de conhecer maravilhas distintas, como:

Do banho de mar com os homens mergulhando no mesmo local das mulheres, da água salgada que só pia, do cinema sem intervalo na projeção para a troca do rolo do filme, do bonde elétrico correndo nos trilhos sem burro a puxá-lo, dos prédios mais altos do que a torre da igreja, dos cantores que vinham do sul do país, dos professores que falavam três línguas, das namoradas que beijavam na boca, da iluminação às vinte e quatro horas por dia, do telefone sem manivela e das coisas que as mulheres faziam na zona (LOUREIRO, 1989, p.47).

Não resta dúvida de que o resultado dessas experiências proporcionavam novas

configurações de aprendizagem, fomentadas por uma cultura comum do cotidiano, sob a

manipulação desses sujeitos ordinários que operavam num terreno do não próprio,

apropriando-se de elementos culturais de feições formativas múltiplas. Uma atividade não

assinada, não legível, contudo exigia habilidade e astúcias nas ações, sendo conceituadas

como táticas do consumo cultural, “engenhosidade dos fracos para tirar partido do forte,

desembocar então em uma politização das práticas cotidianas” (CERTEAU, 2014, p. 44).

Nessa extensão dos residentes (da Casa à urbe), ganha notoriedade o papel exercido

pelos espaços de prostituição na Rua Maciel Pinheiro (antiga Rua das Convertidas).

Recorrente nas lembranças dos que passaram pela Casa do Estudante, a experiência na

“zona” e a convivência com as mulheres contribuíram para uma formação amadurecida dos

jovens estudantes. Sendo assim,

Naqueles encontros, protagonizamos, presenciamos e ouvimos situações que se tornaram histórias [...]. O tempo nos mostrou, ensinando muitas coisas que, somadas aos acontecimentos adquiridos na Universidade, muito contribuíram para o exercício de nossas futuras profissões. E vimos o quanto aprendemos com aquelas mulheres, as quais a sociedade daquela época, direta ou indiretamente, não as aceitando, confinava em setores específicos da cidade (LOUREIRO, 1989, p. 225).

Os códigos masculinos se alteram com o tempo, porém novas configurações se

estabeleceram mantendo elementos das bases anteriores, embora muitas vezes com outra

face, ou com outras formas de se dizer. As práticas têm se alterado bastante, porém naquele

momento a mulher paraibana ainda era costumeiramente classificada em duas categorias

bem definidas: as que são para casar e as provedoras de diversão numa vida noturna cheia de

prazeres e paixões (ALBUQUERQUER Jr., 2013). Nos bares, pensões ou cabarés da Maciel

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6035

Pinheiro como eram díspares nominadas, as mulheres exercia essa função de iniciar os mais

jovens, apaixonar os solteiros e ser alternativa amorosa para os casados. Para os padrões

masculinos da época, esses espaços tornavam-se um ato de afirmação de virilidade e diversão

masculina, contudo o que esses não vislumbravam era o papel protagonista dessas mulheres

nesses espaços de convivência social e, acima de tudo, da contribuição na formação da

personalidade intelectual dos jovens residentes.

O cotidiano da Casa era propalado por esses espaços de convivência no centro da

cidade (nos bares, nas casas de prostituição, no Ponto de Cem Réis, no Cinema, nos Clubes de

festa etc.): as crises e farturas, eleições e embates, brigas e amizades, alimentação e estadia,

lutas e disputas, derrotas e vitórias, sonhos e esperanças, segredos e confissões, festas e

eventos, aprovações e reprovações no vestibular, notas nas escolas e estudos na Casa,

dinheiro recebido e dívidas, jogatina de cartas e futebol, namoros e chamegos, saúde e

segurança (LOUREIRO, 1989). São as marcas do lugar social que devem ser consideradas,

tornando essas múltiplas experiências e práticas mais um elemento decisivo na formação

forjada no interior da Casa do Estudante.

No que tange aos aspectos da formação no interior da Casa do Estudante, procurei

identificar e discutir algumas situações que expressavam as práticas formativas que,

obviamente, não se encontravam desvinculadas desse cotidiano simbólico cultural do que era

vivenciado no restante da cidade. Tratava-se de um conjunto de relações e circunstancias que

ampliaram o raio de ação da Instituição, tornando-a um espaço diversificado de formação

não formal. O que estava em questão era a percepção das diferentes formas de convivência

dos estudantes, suas estratégias para a construção dos preceitos normativas e a fomentação

das práticas que orientavam as ações do coletivo no referido espaço e fora dele.

Os procedimentos legais para terem acesso à Casa, por exemplo, foram crucias para

definir a postura do residente naquele cotidiano. Esse primeiro contato dimensionava certas

formas de se portar para conseguir o acesso, comumente avalizado por um apadrinhamento

de uma liderança política ou por um amigo já residente, ou seja, logo cedo, se lançava mão do

artifício de troca de favores, ainda muito presente na política local. Outro aspecto a ser

considerado nessa teia de interesses e necessidades era processo eleitoral (realizado

anualmente) que garantia a condução administrativa e o controle dos privilégios dos

vencedores. Por meio dele, os grupos políticos formados no interior da Casa utilizavam de

vários mecanismos para se conquistar e se manter no poder. Diante de toda essa agitação,

não se pode esquecer que esse era um espaço de estudos. Cada um à sua maneira, ali

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6036

acontecia as diferentes formas de estudar e aprender, um instigante partilhar de

experiências, num espaço complexo de conciliação e divergências.

A Casa do Estudante da Paraíba, portanto, era um espaço institucional de formação de

sujeitos, bem como de uma mentalidade cotidiana ou de uma cultura estudantil que vão além

de um simples espaço moradia. Nosso desafio foi identificar como uma Instituição não

escolar, que dispunha de uma atividade social fora das normas da educação formal, exercia

uma função formacional a partir de experiências não convencionais, muitas vezes captadas

naquilo que não foi dito.

Em síntese, percebendo que a Casa do Estudante se investia de um leque abrange no

que tange essa ação formativa, atinei por delimitar os aspectos de formação no processo de

ingresso dos estudantes, nas normas de convivência, nas práticas cotidianas, nas articulações

políticas e nas formas de aprender. Não deixei de levar em consideração as imposições do

discurso hegemônico que perpassa as décadas em avaliação e que influenciaram as narrativas

mnemônicas, valorizando muito mais as táticas de superação deste.

Por sermos tão habituados tomar a escola como o único espaço de aprendizagem, Illich

(1985) assevera que, muitas vezes, nos surpreendemos com o fato de que quando

questionadas a respeito do que aprenderam ao longo de suas vidas, as pessoas dificilmente

atribuem o que sabem à escola. Associam-nas ao aprendizado fora da escola, apontando

como instrumentos de aquisição do que sabem às relações de amizade, às conversas na rua,

ao hábito de ouvir rádio ou assistir televisão, à convivência nos espaços de relações amorosas,

aos exemplos de colegas ou indivíduos que se portaram de determinada maneira, ao

momento das festas, à troca de experiências nas feiras, aos encontros na praça, entre outros.

Usando o conceito de “aprendizagem automotivada”, o autor destaca que os indivíduos

necessitam vivenciar experiências em que são oferecidas novas relações com o mundo e não

apenas à submissão ao controle verticalizado do professor. Em argumentação, o autor

pondera que

As coisas são recursos básicos para a aprendizagem. A qualidade do meio ambiente e o relacionamento de uma pessoa com ele irá determinar o quanto ela aprenderá incidentalmente. A aprendizagem formal requer acesso especial às coisas comuns, por um lado, e acesso fácil e seguro as coisas especiais, feitas para fins educativos, por outro (ILLICH, 1985, p. 90).

Tornou-se imprescindível perceber que diferentes aspectos apontaram para um

ambiente de contradições e conflitos, a pensar pelo tratamento diferenciado que era

estabelecido em função de três elementos significativos: o lugar de origem, o ingresso e a

categoria de social a qual estava inserido. O interior da Casa do Estudante era um espaço que

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6037

se configurava pela diversidade, culminando com a pulverização daquela coletividade em

várias células dotadas de interesses conflitantes. A imagem de uniformidade de interesses

construída e reproduzida pelos próprios ex-residentes não se confirma quando a investigação

avança e o que não era dito começa a aparecer. Apesar dessa visível heterogeneidade, como

diria Illich (1985), os residentes acessavam “coisas comuns” que eram especiais aos objetivos

por eles almejados.

Essa disparidade já colocava o residente numa condição institucional diferenciada que

certamente ainda é intensificada por inúmeras dificuldades enfrentadas naquele ambiente e

levava os residentes a situações de conflito. De forma sucinta, tais dificuldades podem ser

sintetizadas nas palavras de Loureiro (1989, p. 66) que destaca o “pouco dinheiro (ou

nenhum)6, alimentação deficiente, falta de orientação e do carinho dos paternos, deficiência

de livros (a Biblioteca Pública quebrava o galho), inexistência de ambiente social e falta

indumentária”. Ou, simplesmente, pelo fato de “muitos não suportavam a convivência com

alguns colegas”.

Narrar as experiências desse cotidiano é uma teia que se entrelaça e as múltiplas

facetas traçadas não permite uma única versão. Após discorrer a respeito das situações de

ingresso e das categorias hierárquicas que segmentava os residentes por critérios econômicos

e, consequentemente, tendo reflexos nas relações políticas e cotidianas no interior da Casa,

chega o momento de pensar sobre as regras de controle que estipulam um modelo de

convivência refletido nas práticas e nas falas, como também nas diferentes formas de burlar

tais determinações. Creio que a preocupação se concentrava em manter o controle sobre os

conflitos relacionais que poderiam incidir de diferentes situações e ocasiões.

Penso que a permanente recorrência à memória dos ex-residentes contribuiu para a

construção de uma tradição de uma identidade da Casa do Estudante. Essa postura fora

evidente ao longo das décadas, tendo como propósito o fortalecimento de uma narrativa

dominante que se alimentava de um passado grandioso, inspirando as gerações posteriores.

Quando Paulo Soares Loureiro propôs construir um relato de suas memórias sobre a Casa,

ele vai à procura desse movimento de inspiração que estabeleceu no presente essa essência de

luta e de vitórias plantada no passado. Dessa maneira, mostrou como procedeu na sua

prática:

6 As crises financeiras na Casa do Estudante eram tão frequentes que, segundo Loureiro (1989), no orçamento havia uma observação: “na falta de recursos, é só fazer uma passeata, ir ao Governador e pedir ajuda”. Além das mencionadas atividades beneficentes como rifas, bingos, desfiles com as moças da sociedade, shows com artistas e festas sociais com lanches e bebidas.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6038

Conversei com muitos deles. Com os que encontrei. Contaram-me as estórias da Casa. O que fizeram, repetindo o que fizemos, trilhando os mesmos caminhos, pisando nos nossos rastros. Mudavam o tempo e os personagens. Vi, com alegria, que os meninos estão botando a cabeça de fora (LOUREIRO, 1989, p. 106).

Tornar-se morador da Casa do Estudante da Paraíba era ser inserido em um espaço

institucional de normas práticas e discurso que têm papel fundamental na formação desses

sujeitos. Uma conformação que, aos poucos, outra postura vai sendo constituída por meio de

diferentes demandas. Por essa razão, as experiências acumuladas até o momento do ingresso,

ganham novos contornos e uma nova realidade fazia logo perceber que as necessidades de

sobrevivências eram outras. Agir nesse espaço institucional exigia planejamento, articulação

e astúcias para se conseguir o mínimo de funcionalidade.

Impor regras a uma coletividade com intensões variadas, tudo chancelado em reuniões

que adentravam pela madruga, era um meio de pensar as táticas reivindicatórias. Com a

pauta devidamente discutida, nem sempre em tom cordial, colocava-se em ação o plano de

reivindicação que se apresentava com um leque variado de chamar a atenção da sociedade e

pressionar os políticos. Entre os mecanismos de cobrança mais evidenciados na mídia e

narrados pelos memorialistas, destacavam-se as greves de fome, os “panelaços” no Centro

Administrativo Estadual e as caminhadas no centro da cidade munidas de cartazes e palavras

de ordem.

Tomando como referência minha experiência, assim como as narrativas memorialistas

aqui apresentadas, tenho o entendimento de que a Casa do Estudante da Paraíba exercia uma

função formativa mesmo antes de ser um residente. A partir do momento que a família

(geralmente o pai) tomava a decisão de enviar o seu filho para continuar os estudos na

capital, muitas vezes munidos de informações de outros conterrâneos ou parentes que lá

estavam, havia toda uma mobilização com os preparativos que colocava o jovem estudante

em compasso de espera, ansiedade e especulações.

Logo na viagem à João Pessoa o desconhecido já começava a ser desbravado, tudo era

novidade. Bater à porta da Casa do Estudante exigia astúcia dos sujeitos que adentravam em

outro campo de operações bem diferente do que vivenciara até aquele momento de suas

vidas, sendo fundamental abandonar referenciais da vida no interior, apropriar-se de novos

códigos de convivência e assumir uma postura de adequação a essa nova realidade que era

essencial para dá sequência nos estudos.

Procurei demonstrar nesse texto que há diferentes maneiras de aprendizagem na Casa

do Estudante. Moreno (2011, p. 65) relatou de forma pertinente o imediatismo da adaptação

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6039

do jovem do interior, mostrando que aprender conviver com a nova situação de moradia

exigia uma adaptação imediata à Cidade grande, “captando modos e comportamentos dos já

traquejados, principalmente do seu protetor, imitando-lhe os gestos, movimentos e os

mínimos trejeitos”. Essa passagem expressava muito bem o papel das relações novatos-

veteranos como fenômeno formativo.

Encerro lembrando ainda que os estudantes não se limitavam apenas ao espaço físico

da Casa para estudar e aprender. Esse movimento transpunha os muros da Instituição e

ganhava forma em outros espaços do centro da cidade, seja nos passeios, nas festas, nas

conversas, no cinema ou na praia. Mais as experiências de leitura na Bica (Parque Arruda

Câmara), na Biblioteca Pública, na casa de colegas de escola e na própria Casa. Esse modelo

de formação certamente trouxe mais autonomia ao jovem, diversidade de conhecimento e

novos valores que definiram suas posturas pessoais e profissionais ao longo de suas vidas.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordeste: invenção do “falo” – uma história do gênero masculino (1920-1940). 2ª Edição. São Paulo: Intermeios, 2013. AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia Pereira. 9ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2012. CALVINO, Ítalo. A palavra escrita e a não-escrita. AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta (Org.). Usos e abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. pp. 139-147. CASTELO BRANCO, Uyguaciara Velôso. A Construção do Mito do “Meu Filho Doutor”: fundamentos históricos do acesso ao Ensino Superior no Brasil-Paraíba. João Pessoa: UFPB/Ed. Universitária, 2005. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. ________ A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 22ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. DUBY, Georges. O prazer do historiador. In: NORA, Pierre (org.). Ensaios de ego-história. Tradução de Ana Cristina Cunha. Lisboa: Edições 70, 1989. pp.109-138. LOUREIRO, Paulo Soares. Nos tempos do Pedro Américo. João Pessoa: Grafset, 1989. MORENO, Napoleão. A Casa do Estudante: memória. 3ª Ed. Sem Editora: João Pessoa, 2011.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6040

NORA, Pierre (org.). Ensaios de ego-história. Tradução de Ana Cristina Cunha. Lisboa: Edições 70, 1989. PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba. Campinas, SP: Autores Associados, São Paulo: Universidade São Francisco, 2002. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2007.