ARAÇATUBA: SINÔNIMO DE DESENVOLVIMENTO E CRESCIMENTO SUSTENTÁVEL.
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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 6029
MARCAS DA MEMÓRIA INSTITUCIONAL: A CASA DO ESTUDANTE DA PARAÍBA COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO
Francisco Chaves Bezerra1
Maria Adailza Martins de Albuquerque2
Nascido em Santana dos Garrotes-PB3, desde muito fui cedo incentivado pelo meu pai a
seguir nos estudos. Nos momentos mais oportunos, especialmente no exercício das
atividades agrícolas, repetia exaustivamente: “isso aqui não dá futuro pra ninguém, se vocês
quiserem uma vida melhor, devem estudar!”. Em suas observações, deixava claro que essa
caminhada dependia da aprovação nas séries do primário, ou seja, “passar de ano na escola”
(implicitamente, não importava em que condições de aprendizagem), ir para João Pessoa
cursar o secundário e morar na Casa do Estudante como fizeram outros filhos da terra,
inclusive alguns familiares.
Na Casa, seria possível uma dedicação mais efetiva aos estudos e, assim, preparar
melhor para o vestibular ou ingressar no serviço público mediante concurso. Seguindo esses
passos, havia a possibilidade de uma vida melhor, diferentemente daquela que tínhamos na
roça. Foi dessa forma que a Casa do Estudante da Paraíba-CEP4 adentrou na minha vida em
meados dos anos de 1980. Torná-la como objeto de pesquisa do doutoramento foi, em certo
sentido, uma necessidade de compreender a minha história e a trajetória de muitos
estudantes do sertão paraibano que, para conseguir concluir os estudos, aventuravam-se à
capital com o desafio de moradia na Casa e superar as deficiências de preparação para o
vestibular. Sem dúvida, um estudo que transita no campo da afetividade pessoal, afinal de
contas, a história que interessa é “aquela que não cessa de pôr questões à própria vida”
(DUBY, 1989, pp. 119-120).
1 Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB, Professor de História no Ensino Básico da Secretaria Municipal de Educação de João Pessoa-PB. E-Mail: <[email protected]>.
2 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo-USP, Professora Adjunta no Departamento de Metodologia da Educação da Universidade da Paraíba-UFPB, Campus I. E-Mail: [email protected]
3 Município que se encontra localizado no Sertão do Estado da Paraíba, na microrregião do Vale do Piancó, a 423 km da capital João Pessoa, sendo ladeada pelos municípios de Olho D’água, Piancó, Itaporanga, Pedra Branca, Novo Olinda, Tavares e Juru.
4 A Casa do Estudante (assim os ex-residentes a tratam) encontra-se localizada na Rua da Areia, nº 567, Centro, João pessoa-PB. Permanece no mesmo endereço desde a sua criação, em 1937, no Governo de Argemiro de Figueiredo (1935-1945). O propósito era dispor de uma instituição com a finalidade de acolher estudantes do interior do Estado que não dispunham de ensino secundário em seus municípios, ou seja, quase todos.
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A Casa do Estudante foi criada em 1937, em consequência da falta de estrutura escolar
no interior da Paraíba. Em princípios da década de 1960, somente municípios no eixo da BR-
230 (Patos, Sousa e Cajazeiras) dispunham de Ensino Secundário. O sistema de Grupos
Escolares ainda estava em fase de consolidação5. De maneira que, para um jovem do Sertão,
continuar os estudos era algo de difícil operacionalização, até mesmo para os de melhores
condições financeiras.
Diante dessas condições, alcançar o grau de DOUTOR era significativo para algumas
famílias sertanejas. O curso superior Brasil – na Paraíba não era diferente – povoava
(acredito que ainda hoje tem sua valorização social) o imaginário dos mais abastados, pois a
conquista do canudo de bacharel era sinônimo de status para a própria família, como
também a possibilidade de exercer cargos públicos de relevância na burocracia estatal. Para
os mais humildes (ainda muito incipiente), representava almejar melhores condições de
trabalho e renda. Essa aspiração é tão arraigada em nossa cultura que se configurou na
construção de uma espécie de mito do “meu filho doutor” (CASTELO BRANCO, 2005).
Da mesma forma, a criação tardia dos Grupos Escolares e, posteriormente, do ensino
secundário que dificultava os estudos no interior, também, não deve ser desconsiderado o
perfil político do governo Argemiro de Figueiredo que se destacava pela centralização,
reordenação e conciliação dos interesses políticos no estado, como também pela a cooptação
das forças sociais e proteção assistencialista e, nesse sentido, a criação da Casa do Estudante
atendia ainda aos interesses da elite remediada do interior, uma vez que Argemiro sabia da
força política que os pais de muitos desses jovens exerciam em suas localidades e, com essa
medida, os pais se sentiam agraciados por disporem de mais um instrumento de
favorecimento político.
Esse texto, portanto, apresenta algumas considerações a respeito da Casa do Estudante
da Paraíba como espaço de formação não escolar que, no meu entendimento, começa antes
mesmo de adentrá-la como residente. Não tendo preservado seu vasto arquivo documental,
pois a documentação produzida ao longo de sua história foi extraviada, optei investigar essas
experiências formativas a partir de livros de memórias escritos por ex-residentes. Trata-se de
Nos tempos de Pedro Américo, de Paulo Soares Loureiro (1989) e Casa do Estudante –
memória, de Napoleão Moreno (2011). Essas narrativas mnemônicas não se limitaram
5 Segundo levantamento de Pinheiro (2002, pp. 182-183), até 1930 nenhum município do Vale do Piancó dispunha de Grupo Escolar estadual. Em 1949, data limite de seu estudo, o quadro começava a ser alterado lentamente, apresentando o seguinte resultado: Piancó-02, Conceição-01, Itaporanga-01. É um número irrisório se levar em consideração a extensão territorial da região.
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apenas à década de 1950, momento que residiram na Casa, todavia relatam experiências
posteriores que se estenderam até o fim da década de 1970 e início da década de 1980.
O percurso teórico metodológico, por conseguinte, não poderia deixar de considerar
alguns referenciais como “lugares de memória” que se trata de lugares transitados e
habitados pelos sujeitos em estudo e que são aportes de memórias (NORA, 1993). Desde o
município de origem dos estudantes no interior, onde eram adquiridas suas primeiras
experiências de vida, de cultura e educação. Em João Pessoa, novas representações foram
sendo elaboradas gradativamente, com a inserção de elementos a constituir um sujeito que
não é inteiramente novo, porque uma memória anterior não quer e não pode ser apagada
imediatamente. Por fim, a própria Instituição como espaço de novas relações de convivência,
de um aprendizado diferente que se define na relação com as normas, as práticas e a
convivência em um cotidiano de coletividade diversa.
Escarafunchando essas memórias, percebi que além do cotidiano institucional, o
ambiente social, no qual se encontrava inserida, era crucial para entender o papel da
Instituição na formação desses sujeitos. Tal fenômeno se expressava nas relações de
convivências entre sujeitos de várias regiões do estado e, notadamente, na inserção em um
novo espaço sociabilidade, o centro da cidade.
Quando se trabalha com memórias é fundamental perceber que o indivíduo tem uma
forma particular de lembrar o passado e essa singularidade faz de cada memória uma
instância única nesse conjunto no qual se encontra inserido socialmente. É uma experiência
individual, portanto, pois é ele quem recobra o passado, porém as situações vividas
acontecem em um palco com outros sujeitos sendo impossível, portanto, lembrar o passado
sem trazer a coletividade à baila. O indivíduo não se desvencilha do coletivo, porque
(inclusive) é responsável pela sua constituição. Também é coletivo, porque tem como
especificidade a capacidade de manter relações, de maneira que os seus atos parecem mais
significativos nos momentos em que se estabelecem esses encontros relacionais. Não há ato
de lembrar, portanto, sem a presença do outro que está na cena relatada. Assim,
“acreditamos na existência de outrem porque agimos com ele e sobre ele e somos afetados
por sua ação” (RICOEUR, 2007, p. 139).
Considerando os caminhos da memória, o destino do estudante era João Pessoa, mas a
partir da Casa do Estudante que suas novas experiências de lugar começavam a ganhar
forma, posteriormente, a cidade era desvendada. Não era que o sujeito encontrava-se
vendado literalmente, não enxergando a cidade, contudo os olhos estavam abertos muito
mais para as experiências anteriores do que para o novo formato que se apresentava. Dessa
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forma, quando se chegava de imediato, o indivíduo não tinha noção do que estava
acontecendo de fato, mas à medida que se começava a convivência com os mais veteranos e a
circulação pelos espaços da cidade, formulando uma nova acomodação dos sentidos.
Ler não é tanto um exercício óptico, e sim um processo que envolve mente e olhos, um processo de abstração, ou melhor, é extrair o concreto de operações abstratas, como identificar sinais característicos, reduzir tudo que vemos a elementos mínimos, reuni-los em segmentos significativos, descobrir ao nosso redor regularidades, diferenças repetições, exceções, substituições, redundâncias (CALVINO, 2006, p. 145).
Perceber a cidade era muito mais amplo do que simplesmente direcionar o olhar e ter
em sua frente pessoas circulando apressadamente, perceber o barulho perturbante dos
motores e buzinas dos carros, caminhar pelo emaranhado de ruas e vielas, ver a imponência
de alguns prédios como o 18 Andar (na época o edifício mais alto da cidade), o Edifício Regis
e mais um ou dois na lagoa. Na verdade, tratava-se de uma percepção tátil em que se aprende
a tocar em apetrechos diferentes que a nova realidade apresentava (fazer ligação de orelhão,
passar por uma escada rolante, apertar o botão do elevador, passar na roleta do ônibus,
esperar a vez no semáforo etc.).
Era uma acomodação da escuta, pois os sons intensos do trânsito deixam de ser
perturbador para adquirir o sentido de deslocamento e referências para se passear no centro.
A novidade urbana, portanto, ganha um novo contorno visual com apreciação de uma
paisagem exuberante que se apresenta com suas cores, formas e cheiros. Nesse sentido, “a
cidade é o lugar do estranho, do diferente, do não rotineiro, da mudança, do combate e do
distanciamento das manifestações tradicionais da cultura. [...]. Espaço da confusão de cores,
de gentes, de cheiros, de muito ruído” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 95).
De fato, o que estava em jogo era a construção das relações com um novo lugar onde
não havia elementos de referência de identidade, sentimento relacional e conhecimento
histórico. Sem esses laços de identidade, afetividade e histórico cultural; de fato o lugar
caracterizava-se como um não lugar. Algo que não permitia relacioná-lo de imediato às
experiências do lugar de origem que eram os lugares de memória “estes, repertoriados,
classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam aí um lugar circunscrito e
específico” (AUGÈ, 2012, p. 73). E essa organização do novo espaço e a constituição de um
novo lugar somente era possível no interior do grupo social e no lugar institucional que estar
sendo inserido (CERTEAU, 2012).
Os lugares de memória que se apresentava não era algo confortável, pois as referências
da memória ainda estavam vinculadas ao interior. Em João Pessoa,
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Cheguei brabo como todo sertanejo. Meio acanhado, bisonho, e como é natural, com saudades de tudo que dizia respeito às minhas origens. Pouco tendo saído de casa, o novo mundo que estava abraçando me indicava que deveria espremer o raciocínio para adaptar-me nesse novo pago, na obrigação de me traquejar em novos hábitos, no vestir e no comer (MORENO, 2011, p. 165).
Sair do interior era deixar a segurança do lugar de origem e as incertezas de um lugar
que ainda não existe enquanto espaço de memória e de convívio social e cultural. Nada era
bem arrumada na cabeça dos jovens e de suas famílias. Ao menos, a maioria trazia o desejo
de se estabelecer na cidade grande, nem que fosse por algum período. As inúmeras
expectativas com um meio urbano mais próspero (conseguir um trabalho, arrumar uma vaga
na Casa do Estudante, ir ao cinema, conhecer o mar, passar no vestibular etc.) e a intensidade
desses sentimentos eram motivadas por interesses e perspectivas distintos, da
particularidade de cada sujeito.
Essa acomodação dos sentidos operava uma nova configuração que não se assenta
uniformemente, porque se tratava de um grupo constituído de sujeitos com experiências
próprias de representação de mundo, com formas específicas de agir e com maneiras
particulares de recobrar suas memórias. Por outro lado, tornava-se imprescindível considerar
o intervalo temporal da pesquisa que abrangeu um período histórico marcado por momentos
de lutas, tensões e de acomodação de interesses, em que as mudanças não são apenas
vivenciadas, mas representavam um fim. As permanências se entrelaçam no cotidiano que se
movia lentamente nas ações e nas memórias dos agentes das operações. E, acima de tudo, um
arquétipo que ia se moldando e acomodando como fenômeno social e, assim, esse
contingente de estudantes vai adquirindo forma ao longo desse período, contudo não se
tratava apenas de uma constituição física, mas também de uma conformação relacional, uma
configuração de ritos e uma formatação de um coletivo de memória.
Ao se deparar com a capital, estavam em evidência também, as “aventuras” no centro
histórico da cidade e as novas imagens de um novo cotidiano urbano que se apresentava em
contraste à “vida pacata” ainda definidora das práticas e dos gestos, mesmo transeunte de
uma nova arena: “um verdadeiro mergulho no desconhecido”. Exigia atribuições que cobrava
do indivíduo nova postura. A submissão ao pai (uno) dava lugar à imposição institucional
com normas internas que eram acompanhadas por um conjunto hierárquico de pessoas
(Diretoria administrativa, Conselhos administrativo e fiscal, cozinheiras, porteiros, serviços
gerais, entre outros) que determinavam as normas mesmo sendo estas definidas pelos
próprios estudantes.
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O desejo de ampliar os conhecimentos (escolar, da cidade, da vida), de imediato
incrementava um novo cabedal mnemônico motivado pelos encantamentos das novidades da
capital (omitindo e aumentando). E os estudantes chegavam às suas cidadezinhas falando
dos benefícios de morar na Casa do Estudante, pois essa possibilidade trazia-lhes a
oportunidade de conhecer maravilhas distintas, como:
Do banho de mar com os homens mergulhando no mesmo local das mulheres, da água salgada que só pia, do cinema sem intervalo na projeção para a troca do rolo do filme, do bonde elétrico correndo nos trilhos sem burro a puxá-lo, dos prédios mais altos do que a torre da igreja, dos cantores que vinham do sul do país, dos professores que falavam três línguas, das namoradas que beijavam na boca, da iluminação às vinte e quatro horas por dia, do telefone sem manivela e das coisas que as mulheres faziam na zona (LOUREIRO, 1989, p.47).
Não resta dúvida de que o resultado dessas experiências proporcionavam novas
configurações de aprendizagem, fomentadas por uma cultura comum do cotidiano, sob a
manipulação desses sujeitos ordinários que operavam num terreno do não próprio,
apropriando-se de elementos culturais de feições formativas múltiplas. Uma atividade não
assinada, não legível, contudo exigia habilidade e astúcias nas ações, sendo conceituadas
como táticas do consumo cultural, “engenhosidade dos fracos para tirar partido do forte,
desembocar então em uma politização das práticas cotidianas” (CERTEAU, 2014, p. 44).
Nessa extensão dos residentes (da Casa à urbe), ganha notoriedade o papel exercido
pelos espaços de prostituição na Rua Maciel Pinheiro (antiga Rua das Convertidas).
Recorrente nas lembranças dos que passaram pela Casa do Estudante, a experiência na
“zona” e a convivência com as mulheres contribuíram para uma formação amadurecida dos
jovens estudantes. Sendo assim,
Naqueles encontros, protagonizamos, presenciamos e ouvimos situações que se tornaram histórias [...]. O tempo nos mostrou, ensinando muitas coisas que, somadas aos acontecimentos adquiridos na Universidade, muito contribuíram para o exercício de nossas futuras profissões. E vimos o quanto aprendemos com aquelas mulheres, as quais a sociedade daquela época, direta ou indiretamente, não as aceitando, confinava em setores específicos da cidade (LOUREIRO, 1989, p. 225).
Os códigos masculinos se alteram com o tempo, porém novas configurações se
estabeleceram mantendo elementos das bases anteriores, embora muitas vezes com outra
face, ou com outras formas de se dizer. As práticas têm se alterado bastante, porém naquele
momento a mulher paraibana ainda era costumeiramente classificada em duas categorias
bem definidas: as que são para casar e as provedoras de diversão numa vida noturna cheia de
prazeres e paixões (ALBUQUERQUER Jr., 2013). Nos bares, pensões ou cabarés da Maciel
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Pinheiro como eram díspares nominadas, as mulheres exercia essa função de iniciar os mais
jovens, apaixonar os solteiros e ser alternativa amorosa para os casados. Para os padrões
masculinos da época, esses espaços tornavam-se um ato de afirmação de virilidade e diversão
masculina, contudo o que esses não vislumbravam era o papel protagonista dessas mulheres
nesses espaços de convivência social e, acima de tudo, da contribuição na formação da
personalidade intelectual dos jovens residentes.
O cotidiano da Casa era propalado por esses espaços de convivência no centro da
cidade (nos bares, nas casas de prostituição, no Ponto de Cem Réis, no Cinema, nos Clubes de
festa etc.): as crises e farturas, eleições e embates, brigas e amizades, alimentação e estadia,
lutas e disputas, derrotas e vitórias, sonhos e esperanças, segredos e confissões, festas e
eventos, aprovações e reprovações no vestibular, notas nas escolas e estudos na Casa,
dinheiro recebido e dívidas, jogatina de cartas e futebol, namoros e chamegos, saúde e
segurança (LOUREIRO, 1989). São as marcas do lugar social que devem ser consideradas,
tornando essas múltiplas experiências e práticas mais um elemento decisivo na formação
forjada no interior da Casa do Estudante.
No que tange aos aspectos da formação no interior da Casa do Estudante, procurei
identificar e discutir algumas situações que expressavam as práticas formativas que,
obviamente, não se encontravam desvinculadas desse cotidiano simbólico cultural do que era
vivenciado no restante da cidade. Tratava-se de um conjunto de relações e circunstancias que
ampliaram o raio de ação da Instituição, tornando-a um espaço diversificado de formação
não formal. O que estava em questão era a percepção das diferentes formas de convivência
dos estudantes, suas estratégias para a construção dos preceitos normativas e a fomentação
das práticas que orientavam as ações do coletivo no referido espaço e fora dele.
Os procedimentos legais para terem acesso à Casa, por exemplo, foram crucias para
definir a postura do residente naquele cotidiano. Esse primeiro contato dimensionava certas
formas de se portar para conseguir o acesso, comumente avalizado por um apadrinhamento
de uma liderança política ou por um amigo já residente, ou seja, logo cedo, se lançava mão do
artifício de troca de favores, ainda muito presente na política local. Outro aspecto a ser
considerado nessa teia de interesses e necessidades era processo eleitoral (realizado
anualmente) que garantia a condução administrativa e o controle dos privilégios dos
vencedores. Por meio dele, os grupos políticos formados no interior da Casa utilizavam de
vários mecanismos para se conquistar e se manter no poder. Diante de toda essa agitação,
não se pode esquecer que esse era um espaço de estudos. Cada um à sua maneira, ali
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acontecia as diferentes formas de estudar e aprender, um instigante partilhar de
experiências, num espaço complexo de conciliação e divergências.
A Casa do Estudante da Paraíba, portanto, era um espaço institucional de formação de
sujeitos, bem como de uma mentalidade cotidiana ou de uma cultura estudantil que vão além
de um simples espaço moradia. Nosso desafio foi identificar como uma Instituição não
escolar, que dispunha de uma atividade social fora das normas da educação formal, exercia
uma função formacional a partir de experiências não convencionais, muitas vezes captadas
naquilo que não foi dito.
Em síntese, percebendo que a Casa do Estudante se investia de um leque abrange no
que tange essa ação formativa, atinei por delimitar os aspectos de formação no processo de
ingresso dos estudantes, nas normas de convivência, nas práticas cotidianas, nas articulações
políticas e nas formas de aprender. Não deixei de levar em consideração as imposições do
discurso hegemônico que perpassa as décadas em avaliação e que influenciaram as narrativas
mnemônicas, valorizando muito mais as táticas de superação deste.
Por sermos tão habituados tomar a escola como o único espaço de aprendizagem, Illich
(1985) assevera que, muitas vezes, nos surpreendemos com o fato de que quando
questionadas a respeito do que aprenderam ao longo de suas vidas, as pessoas dificilmente
atribuem o que sabem à escola. Associam-nas ao aprendizado fora da escola, apontando
como instrumentos de aquisição do que sabem às relações de amizade, às conversas na rua,
ao hábito de ouvir rádio ou assistir televisão, à convivência nos espaços de relações amorosas,
aos exemplos de colegas ou indivíduos que se portaram de determinada maneira, ao
momento das festas, à troca de experiências nas feiras, aos encontros na praça, entre outros.
Usando o conceito de “aprendizagem automotivada”, o autor destaca que os indivíduos
necessitam vivenciar experiências em que são oferecidas novas relações com o mundo e não
apenas à submissão ao controle verticalizado do professor. Em argumentação, o autor
pondera que
As coisas são recursos básicos para a aprendizagem. A qualidade do meio ambiente e o relacionamento de uma pessoa com ele irá determinar o quanto ela aprenderá incidentalmente. A aprendizagem formal requer acesso especial às coisas comuns, por um lado, e acesso fácil e seguro as coisas especiais, feitas para fins educativos, por outro (ILLICH, 1985, p. 90).
Tornou-se imprescindível perceber que diferentes aspectos apontaram para um
ambiente de contradições e conflitos, a pensar pelo tratamento diferenciado que era
estabelecido em função de três elementos significativos: o lugar de origem, o ingresso e a
categoria de social a qual estava inserido. O interior da Casa do Estudante era um espaço que
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se configurava pela diversidade, culminando com a pulverização daquela coletividade em
várias células dotadas de interesses conflitantes. A imagem de uniformidade de interesses
construída e reproduzida pelos próprios ex-residentes não se confirma quando a investigação
avança e o que não era dito começa a aparecer. Apesar dessa visível heterogeneidade, como
diria Illich (1985), os residentes acessavam “coisas comuns” que eram especiais aos objetivos
por eles almejados.
Essa disparidade já colocava o residente numa condição institucional diferenciada que
certamente ainda é intensificada por inúmeras dificuldades enfrentadas naquele ambiente e
levava os residentes a situações de conflito. De forma sucinta, tais dificuldades podem ser
sintetizadas nas palavras de Loureiro (1989, p. 66) que destaca o “pouco dinheiro (ou
nenhum)6, alimentação deficiente, falta de orientação e do carinho dos paternos, deficiência
de livros (a Biblioteca Pública quebrava o galho), inexistência de ambiente social e falta
indumentária”. Ou, simplesmente, pelo fato de “muitos não suportavam a convivência com
alguns colegas”.
Narrar as experiências desse cotidiano é uma teia que se entrelaça e as múltiplas
facetas traçadas não permite uma única versão. Após discorrer a respeito das situações de
ingresso e das categorias hierárquicas que segmentava os residentes por critérios econômicos
e, consequentemente, tendo reflexos nas relações políticas e cotidianas no interior da Casa,
chega o momento de pensar sobre as regras de controle que estipulam um modelo de
convivência refletido nas práticas e nas falas, como também nas diferentes formas de burlar
tais determinações. Creio que a preocupação se concentrava em manter o controle sobre os
conflitos relacionais que poderiam incidir de diferentes situações e ocasiões.
Penso que a permanente recorrência à memória dos ex-residentes contribuiu para a
construção de uma tradição de uma identidade da Casa do Estudante. Essa postura fora
evidente ao longo das décadas, tendo como propósito o fortalecimento de uma narrativa
dominante que se alimentava de um passado grandioso, inspirando as gerações posteriores.
Quando Paulo Soares Loureiro propôs construir um relato de suas memórias sobre a Casa,
ele vai à procura desse movimento de inspiração que estabeleceu no presente essa essência de
luta e de vitórias plantada no passado. Dessa maneira, mostrou como procedeu na sua
prática:
6 As crises financeiras na Casa do Estudante eram tão frequentes que, segundo Loureiro (1989), no orçamento havia uma observação: “na falta de recursos, é só fazer uma passeata, ir ao Governador e pedir ajuda”. Além das mencionadas atividades beneficentes como rifas, bingos, desfiles com as moças da sociedade, shows com artistas e festas sociais com lanches e bebidas.
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Conversei com muitos deles. Com os que encontrei. Contaram-me as estórias da Casa. O que fizeram, repetindo o que fizemos, trilhando os mesmos caminhos, pisando nos nossos rastros. Mudavam o tempo e os personagens. Vi, com alegria, que os meninos estão botando a cabeça de fora (LOUREIRO, 1989, p. 106).
Tornar-se morador da Casa do Estudante da Paraíba era ser inserido em um espaço
institucional de normas práticas e discurso que têm papel fundamental na formação desses
sujeitos. Uma conformação que, aos poucos, outra postura vai sendo constituída por meio de
diferentes demandas. Por essa razão, as experiências acumuladas até o momento do ingresso,
ganham novos contornos e uma nova realidade fazia logo perceber que as necessidades de
sobrevivências eram outras. Agir nesse espaço institucional exigia planejamento, articulação
e astúcias para se conseguir o mínimo de funcionalidade.
Impor regras a uma coletividade com intensões variadas, tudo chancelado em reuniões
que adentravam pela madruga, era um meio de pensar as táticas reivindicatórias. Com a
pauta devidamente discutida, nem sempre em tom cordial, colocava-se em ação o plano de
reivindicação que se apresentava com um leque variado de chamar a atenção da sociedade e
pressionar os políticos. Entre os mecanismos de cobrança mais evidenciados na mídia e
narrados pelos memorialistas, destacavam-se as greves de fome, os “panelaços” no Centro
Administrativo Estadual e as caminhadas no centro da cidade munidas de cartazes e palavras
de ordem.
Tomando como referência minha experiência, assim como as narrativas memorialistas
aqui apresentadas, tenho o entendimento de que a Casa do Estudante da Paraíba exercia uma
função formativa mesmo antes de ser um residente. A partir do momento que a família
(geralmente o pai) tomava a decisão de enviar o seu filho para continuar os estudos na
capital, muitas vezes munidos de informações de outros conterrâneos ou parentes que lá
estavam, havia toda uma mobilização com os preparativos que colocava o jovem estudante
em compasso de espera, ansiedade e especulações.
Logo na viagem à João Pessoa o desconhecido já começava a ser desbravado, tudo era
novidade. Bater à porta da Casa do Estudante exigia astúcia dos sujeitos que adentravam em
outro campo de operações bem diferente do que vivenciara até aquele momento de suas
vidas, sendo fundamental abandonar referenciais da vida no interior, apropriar-se de novos
códigos de convivência e assumir uma postura de adequação a essa nova realidade que era
essencial para dá sequência nos estudos.
Procurei demonstrar nesse texto que há diferentes maneiras de aprendizagem na Casa
do Estudante. Moreno (2011, p. 65) relatou de forma pertinente o imediatismo da adaptação
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do jovem do interior, mostrando que aprender conviver com a nova situação de moradia
exigia uma adaptação imediata à Cidade grande, “captando modos e comportamentos dos já
traquejados, principalmente do seu protetor, imitando-lhe os gestos, movimentos e os
mínimos trejeitos”. Essa passagem expressava muito bem o papel das relações novatos-
veteranos como fenômeno formativo.
Encerro lembrando ainda que os estudantes não se limitavam apenas ao espaço físico
da Casa para estudar e aprender. Esse movimento transpunha os muros da Instituição e
ganhava forma em outros espaços do centro da cidade, seja nos passeios, nas festas, nas
conversas, no cinema ou na praia. Mais as experiências de leitura na Bica (Parque Arruda
Câmara), na Biblioteca Pública, na casa de colegas de escola e na própria Casa. Esse modelo
de formação certamente trouxe mais autonomia ao jovem, diversidade de conhecimento e
novos valores que definiram suas posturas pessoais e profissionais ao longo de suas vidas.
Referências
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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 6040
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