Manifesto ABECS

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contexto que muito nos preocupa a infeliz fala3 da Presidenta Dilma Roussef, em campanha para a reeleição, que afrmou que o jovem do Ensino Médio não pode ter de lidar com 12 disciplinas, incluída a Sociologia, pois tal currículo não seria atraente. Inevitável recordar o veto do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002, ao Projeto de Lei do Deputado Padre Roque, aprovado pelo Congresso Nacional e que tornaria obrigatórias as disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio, e a sua principal justificativa, de que havia falta de professores na área. Inevitável notar a superficialidade das justificativas, de ontem e de hoje. Inevitável o espanto ante o descaso com que dois presidentes, um sociólogo, outra cuja base de sustentação política advém de um projeto de esquerda, tratam disciplinas cujo potencial é o de justamente garantir um novo sentido para a educação em nível médio. Inevitável, por fim, lamentar que mesmo a complexidade de políticas e programas educacionais governamentais não conseguem superar o reducionismo que a centralidade do currículo, tomado em sentido restrito, implica quando este é tornado solução para todos os obstáculos que necessitamos resolver na área educacional.

Por um debate cientificamente embasado

Justificativas à reforma curricular do Ensino Médio brasileiro tem sido há muito divulgadas pela mídia e recebido ornamentações acadêmicas, que lhes garantem um tom universal – como se universalmente aceitas e razoáveis. No entanto, tais justificativas estão longe de serem consensuais e razoáveis, e na exata medida que não oferecem bases sólidas de sustentação. Afirma-se, a exemplo, que “o currículo do Ensino Médio está inchado” e que a quantidade de seus componentes curriculares geram obstáculos à aprendizagem do aluno, mas tais alegações não são acompanhadas de nenhum estudo comparativo ou pesquisa de maior fôlego em que se fixa em bases mais firmes o prejuízo relativo à quantidade de conteúdo e qual a medida justa e por que critério se pode determiná-la; mais que isso, por vezes tal proposição de verdade é feita com base na alegação de que o aluno “não pode gostar da escola com tantos conteúdos a estudar” ou que esse quadro incentivaria a simples “memorização de conteúdos”, ainda que tais questões sejam relativas à metodologia, não ao planejamento curricular, e que gostar ou não da escola não esteja em função de quantas e quais disciplinas ela ofereça.

Do mesmo modo, outras tantas alegações são repetidas, funcionando como chaves discursivas que elaboram e disseminam uma visão social de mundo, nos termos de Michael Löwy, e autorizam interpretações das diretrizes curriculares e até mesmo superinterpretações de textos teóricos educacionais – quando não operam mistificações de textos, dados e pesquisas. Tais ficções intelectuais não recebem o contraditório e são naturalizadas em contexto midiático, quando não materializadas em decisões governamentais.

Ocorre que decisões tão graves quanto uma reforma educacional não podem orientar-se pelo "achismo". Os significados articulados em discursos que hoje vem ganhando cada vez maior visibilidade denotam três noções a nosso ver extremamente problemáticas: que currículo é uma proposição restrita de conteúdos e disciplinas, que um ensino ruim decorre em boa medida da qualidade ruim da maioria dos professores e que o aluno não gosta da escola devido aos dois aspectos anteriores. Tais noções tem se

3 Entrevista a um jornal televisivo, no dia 22 de setembro de 2014, na qual a Presidenta afrmou: “o jovem do Ensino Médio, ele não pode ficar com 12 matérias, incluindo nas 12 matérias Filosofia e Sociologia. Tenho nada contra Filosofia e Sociologia, mas um curriculum com 12 matérias não atrai o jovem. Então, nós temos que primeiro ter uma reforma nos currículos”.

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insinuado inclusive entre especialistas na área educacional, mesmo que, posto dessa forma, todos admitam sua simplificação reducionista.

É que mesmo assumindo uma concepção crítica de currículo (presente, por exemplo, nas Diretrizes Curriculares de nossa educação), ao fim e ao cabo o debate recai na questão dos conteúdos curriculares, como se por sua materialidade formal não fosse possível nenhum outro tipo de intervenção; e na resignificação e, por vezes, distorção da teoria educacional no âmbito das decisões políticas, por parte de governos, ou no âmbito das proposições práticas, por parte de especialistas, perde-se completamente a coerência entre o discurso oficial e a prática real. Não será por constantes revisões de conteúdos curriculares, entretanto, que se garantirá a almejada qualidade de nossa educação, assim como não haverá política educacional bem sucedida que efetivamente não inclua docentes e discentes no processo decisório sobre a escola que desejamos. E se assim for, então precisamos efetivamente de um novo pacto federativo no âmbito educacional, em que maior e real autonomia seja garantida às escolas e seus sujeitos, e outros aspectos escolares e educacionais recebam igual atenção ao que é hoje dispensado à revisão curricular.

Do mesmo modo, a responsabilização exclusiva do docente pelos problemas enfrentados atualmente pela escola tem tido o efeito de impor de forma recorrente uma sobrecarga profissional nada desprezível. Isso porque a cada mudança de governo ou a cada reforma educacional novas orientações e exigências são estabelecidas para o trabalho docente, mesmo que as anteriores nem tenham ainda se consolidado. É possível que em algum grau, a dificuldade de professores em elaborar sua identidade profissional e rotinizar a sua prática em bases teóricas sólidas tenham origem aí e responsabilizar o professor pelo desempenho limitado em avaliações de proficiência, nacionais e internacionais, é mascarar o fato de que professores não desempenham seus papéis senão em contexto de infraestrutura, recursos e tempo que limitam suas possibilidades de resultado.

Fato é que a universidade brasileira é a instituição principal da formação inicial para a docência, e parece-nos estranho que a acusação, não raro engendrada de dentro das universidades, de que os docentes apresentam baixa qualidade, não implique numa profunda revisão das licenciaturas em nosso país. Neste sentido, uma verdadeira reforma da Educação Básica implica na reforma universitária, ainda não pautada devidamente na agenda pública. Porém, que não se entenda aqui uma simples crítica de fundo corporativo, pois que reconhecemos que assim como a qualidade de professores no Brasil não é função exclusiva de sua formação inicial, também os esforços que muitas universidades vem realizando no sentido de melhorarem seus cursos de formação de professores é digno de nota4. No entanto, faz-se necessária uma reforma curricular e epistemológica das licenciaturas e cursos de formação de professores que, por sua vez, deve estar inserida num contexto de reforma da instituição universitária como um todo, das relações hierárquicas estabelecidas entre áreas de conhecimento, departamentos e cursos, assim como das relações que a universidade mantém com outras instituições da sociedade.

O que propomos é uma compreensão sociológica do problema posto: a inversão do discurso que sugere que “professores ruins fazem uma escola ruim”, quando, ao contrário, uma escola desacreditada, com recursos escassos e insuficientes – quando não seletivamente distribuídos, com infraestrutura inadequada e não raro abandonada, em

4 Exemplo desse esforço é o crescente número de projetos e de investimento no âmbito do PIBID, na área de Ciências Sociais. Cabe notar o enorme desperdício de investimentos públicos como ora vigentes e os impacto altamente negativo na formação de docentes de uma possível exclusão da disciplina do quadro das obrigatórias no Ensino Médio, no contexto da atual reforma educacional.

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que o tempo e o espaço escolar seguem a lógica da exploração do trabalho para a maximização do investimento, na qual o contexto físico, social e cultural-organizacional nalguns casos estão permeados pelo descaso governamental e pela opressão política, não oferece a condição para que a qualidade docente viceje. Questão ainda por se investigar a fundo, que deixamos em aberto, é como é possível a qualidade em condições concretas bastante comprometidas do trabalho docente. Parece-nos que não existirá qualidade enquanto trabalhadores da educação se verem obrigados a lecionar em diferentes turnos e escolas, para amenizarem seus baixos rendimentos, sem recursos suficientes e não raro numa escola sucateada.

Porém, o argumento mais frágil dessa visão, ao mesmo tempo o mais difícil de ter seu fundo de erro demonstrado – pois que diretamente ancorado na percepção imediata das relações cotidianas escolares, é o que parte da falta de interesse do aluno pela escola para defender sua proposta de “solução dos problemas educacionais”, seja qual for. Certamente, não será pela atual desconstrução e esvaziamento do currículo que tornaremos a escola um “lugar interessante”. Há algo muito mais grave em curso, que impede que a escola média seja também um lugar social de construção de identidades, de sociabilidade e reconhecimento de jovens estudantes, a nosso ver muito mais relacionada ao vazio gerado entre sua orientação ao mercado de trabalho e seu papel transitório para o ingresso nos cursos superiores, que ao formato de seu currículo.

E como nos falta esse olhar mais interessado ao que Juarez Dayrel nos sugere como a condição juvenil5, assim como sobre os modos de sociabilidade juvenil e até ao direito de jovens de vivenciarem a própria juventude. Não estaria aí algumas possibilidades alternativas ao caráter de formação para o mercado de trabalho ou para a universidade, que tem marcado a crise do Ensino Médio? Talvez a contribuição das Ciências Sociais para uma reforma dessa etapa da Educação Básica se desse na proposição de um outro olhar, em que ao invés de partirmos de uma definição do Ensino Médio em direção à reflexão sobre como envolver os estudantes, partitíamos da compreensão desse sujeito, coletivo, heterogêneo e vivo, para uma definição do que essa etapa da escolarização poderia signficar e implicar a esses sujeitos. Um Ensino Médio para as juventudes, não para o mercado nem como o preço a pagar para o ingresso à universidade, significaria verdadeira revolução nas relações com as e nas escolas.

Um reforma do Ensino Médio, ao nosso ver, depende muito mais de um novo pacto orientado à condição juvenil do que de medidas simplificadoras, sejam estas a redução dos componentes curriculares ou a flexibilização de sua oferta. Neste sentido, a reforma do Ensino Médio atual poderia ser a oportunidade de construção de uma nova escola e de um novo processo de escolarização e, partindo do fomento de um profícuo diálogo com os sujeitos envolvidos e implicados na escola, sobretudo os alunos, poderia levar a repensar as práticas escolares e pedagógicas, os conteúdos dos componentes curriculares e dos livros didáticos, assim como a ocupação do espaço e do tempo da escola, e a própria infra-estrutura das instituições escolares, e reconstruí-los a partir de um novo paradigma, orientado às juventudes.

A Sociologia mais uma vez ameaçada

No ano de 2008 a Sociologia recuperou o seu status de disciplina obrigatória do Ensino Médio, por força de lei6, após um século de marcada intermitência e de anos de construção e demanda por parte da comunidade dos cientistas sociais, desde ao menos a redemocratização. Compreendemos que não há garantias de que assim permaneça e a existência da disciplina no quadro das que são acolhidas tradicionalmente na matriz

5 “Por uma Sociologia da Juventude”, Ensino de Sociologia: desafios teóricos e pedagógicos para as Ciências Sociais, Luiz Fernandes de Oliveira (org.), Edur UFRRJ, 2013, p. 33.6 Lei n° 11.684, de 2 de junho de 2008, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11684.htm

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disciplinar para o Ensino Médio ainda demandará intervenções da comunidade científica e sensibilidade do poder público, para que a disciplina não seja somente obrigatória, porém legítima7.

Sabemos, a partir de diversos estudos que abrangeram a história da disciplina, desde o artigo de Celso de Souza Machado8, passando por tantos outros estudos, sobretudo por dissertações e teses acadêmicas defendidas em diversas universidades brasileiras, que o ensino da Sociologia deixou de ser obrigatório a partir de 1942, com a Reforma Capanema, assim permanecendo até 2008, com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases de 1996. Portanto, desde antes do golpe de 1964 e mesmo após a redemocratização a gerações foi negado o direito à formação científica para a compreensão das relações sociais, mesmo que durante o período, a disciplina tenha sobrevivido nos cursos secundários para o magistério, como Sociologia da educação, e em cursos na universidade.

Relembremos essa história9, sucintamente, que nos autoriza como razoável admitir que novas ameaças no plano legal se anunciam para a disciplina: em 1882 a disciplina foi proposta num projeto de reforma, por Rui Barbosa; em 1891, ela foi apresentada no projeto de Benjamin Constant, tendo sido criada a cátedra “Sociologia e Moral”, no ensino secundário; na Reforma Epitácio Pessoa, de 1901, deixou novamente de ser obrigatória no currículo da escola média, mas até esse momento não havia sido efetivamente oferecida em todo o sistema; em 1925, com a reforma do ministro Rocha Vaz, ela retornou ao ensino secundário, período em que começa a ser lecionada no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e foi ratificada pela Reforma Francisco Campos, de 1931; em 1942, com a Reforma Capanema, ela deixou de ser obrigatória mais uma vez e deste período até a sanção da Lei 11.684, de 2 de junho de 2008, que a tornou obrigatória, ocorreram debates em torno de sua pertinência nas décadas de 1940 e 1950; finalmente, a partir de 1982 emergiram os movimentos pela (re)inclusão da disciplina, em diversos estados brasileiros, nalguns casos, normatizados em Constituição Estadual. Se no plano legal a disciplina de fato foi intermitente, sempre existiu, mesmo timidamente e de modo acentuadamente disperso, nos sistemas de ensino, seja como disciplina da formação em nível médio para o magistério, seja no ensino superior. Porém, nunca foi garantida à disciplina a plena realização de seu potencial educacional.

A considerar a intensidade e marcha ascendente de uma visão social de mundo de cunho conservador, como temos acompanhado hoje em todas as redes sociais e, principalmente, reverberada a exaustão por uma mídia igualmente conservadora, em que misturam-se pensamentos homofóbicos, misóginos, racistas ou xenofóbicos a proposições golpistas antidemocráticas, mascarações de dados de realidade e incitações à violência como valor e comportamento desejável até mesmo por aqueles que na qualidade de servidores públicos deveriam prezar pelo sistema democrático, e, em especial, a adesão a tais discursos por número considerável de jovens, podemos afirmar a gravidade com que o letramento cientifico em ciências sociais deveria receber a atenção de educadores preocupados com a formação de nossas futuras gerações e com o futuro de nossa democracia. Pode-se perceber claramente a falta que faz o letramento sociológico nos discursos de “analistas” midiáticos, mas principalmente entre as

7 “Perspectivas políticas e científicas acerca do ensino da Sociologia”, A. Miglievich-Ribeiro & F. Sarandy, Sociologia na sala de aula: reflexões e experiências docentes no Rio de Janeiro, Luiz Fernandes de Oliveira et all

(org.), 2012.8 “O ensino da Sociologia na escola secundária brasileira: levantamento preliminar”, Revista da Faculdade de Educação, USP, vol. 13, nº 1, 1987.9 O resgate da história da disciplina pode ser encontrado, dentre outros estudos, em: Erlando da Silva Rêses, “...E com a palavra: os alunos. Estudo das representações sociais dos alunos da rede pública do Distrito Federal sobre a sociologia no ensino médio”, Dissertação de Mestrado, Brasília, UnB, 2004.

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manifestações de parcela significativa da juventude brasileira. Essa aparente emergência da visão de mundo conservadora, não somente dispersa na sociedade brasileira, mas em nível global, assim como a presença dos efeitos dos anos de ditadura militar recente na história de nosso país sobre instituições, determinados estratos sociais, sujeitos políticos e sistemas de nossa sociedade, que ainda constituem barreira à conquista efetiva de relações políticas simétricas e inclusivas, exige uma postura intelectual grave com relação à aprendizagem dos valores e práticas republicanas e democráticas por parte de educadores e governantes.

Uma possível contribuição da Sociologia para o Ensino Médio

Os cientistas sociais, e a Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), querem participar dos debates sobre o novo Ensino Médio. O debate sociológico (ou socioantropológico), da mesma forma que está presente em todas as áreas de formação de educadores (História, Biologia, Geografia, Matemática, Filosofia, Língua Portuguesa etc) pode ser o eixo estruturante dessa nova proposta para o Ensino Médio. Como bem observa Rodrigo Rosistolato10,

Enquanto as outras disciplinas dividem, a Sociologia tende a juntar e por mais

que ela tenha muitas especializações e subcampos, a presença de uma

Sociologia geral na formação de professores é absolutamente consensual. Se

ocorre assim com a formação de professores, por que não ocorreria na

formação dos jovens no Ensino Médio? Nós, cientistas sociais, formamos

professores de todas as áreas, e podemos formar os jovens educandos também,

porque se essa formação é tão importante para a educação, que é obrigatória

para o docente, porque não o seria para o discente?

Compreendemos que o projeto intelectual e político de construção da disciplina nos currículos escolares não é decorrente duma necessidade inerente ou essencial à escola ou à existência das ciências sociais nos cursos universitários; não decorre daí a obrigação de sua transposição à escola. Porém, se não nos colocamos sob uma visão essencialista e missionária, estamos convictos da necessidade de nossos educandos acessarem um tipo de percepção e processo cognitivo que nenhuma outra disciplina lhe pode oferecer. Um tipo de aprendizagem que guarda também seus próprios desafios, como nos sugerem A. Miglievich-Ribeiro e L. Eras11,

A perspectiva de um aprendizado científico a partir da Sociologia apresenta

dois desafios: a) apresentar ao aluno que é necessário compreender e

problematizar a gênese dos fenômenos sociais de modo que apreendam a

dinâmica das estruturas, dos processos e de si mesmos nas configurações

societárias; b) expor ao aluno que este se torna sujeito do conhecimento na

medida de sua própria socialização na produção de conhecimentos e de

sentidos para os mesmos, sentidos estes em aberto, indefinidos, portanto,

possibilidades e oportunidades.

10 Docente da Faculdade de Educação da UFRJ, em comunicação pessoal, 2014.11 “O Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (PISA): a Sociologia e o aprendizado científico”, Ensino

de Sociologia: desafios teóricos e pedagógicos para as Ciências Sociais, Luiz Fernandes de Oliveira (org.), Edur UFRRJ, 2013, p. 138.

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Defendemos que ser exposto às Ciências Sociais é garantia do direito do

aluno à construção de uma atitude cognitiva distinta, que lhe permite compreender

o mundo social ao qual está inserido e do qual participa, no mesmo nível de

compreensão e apreensão de conhecimentos e cognição que tem por direito ao

estudar os fenômenos naturais, pois que o conhecimento científico da estrutura de relações sociais é fundamental para que sujeitos operem e naveguem na complexidade do mundo atual. Com a afirmação acima não estamos tornando equivalentes processos de construção do conhecimento científico de áreas muito distintas, em nível metodológico e epistemológico, mas tão somente indicando que tais discursos científicos são comparáveis em sua capacidade explicativa de eventos e relações e em sua complexidade teórica e conceitual, exigindo igual tratamento e seriedade da parte dos gestores educacionais. Mais que isso, estamos aqui sugerindo que o acesso ao conhecimento científico das Ciências Sociais é um direito do aluno, no mesmo sentido que o é o acesso às Ciências da Natureza. Aliás, a perspectiva naturalizadora das relações sociais, de valores e de categorias que são socialmente construídas, a exemplo de gênero ou raça, já está garantida por anos de exposição a um tipo de visão que desconhece processos sociais e históricos de construção da realidade social, em anos de educação formal escolar ou de exposição aos discursos rasos da mídia, sendo frenquentemente necessário um longo trabalho de desconstrução por parte do professor de Sociologia para que o aluno acesse outras perspectivas científicas e mobilize novos meios cognitivos. E, neste sentido, o conhecimento em Ciências Sociais está muitos graus acima em relevância e profundidade com relação às demais ciências, pois que a adequada compreensão dos discursos científicos também é função da compreensão de sua produção social.

Segundo a perspectiva histórico-cultural de Vygotsky e Davydov, tanto a apropriação de conceitos científicos quanto o desenvolvimento da capacidade de pensamento está em função de um processo de escolarização que pressupõe a assimilação da produção cultural da humanidade, pelo “domínio do conhecimento teórico, ou seja, o domínio de símbolos e instrumentos culturais disponíveis na sociedade, obtido pela aprendizagem de conhecimentos das diversas áreas do conhecimento”, conforme nos sugere José Carlos Libâneo12, pois que para esse pensamento educacional as funções mentais não são inatas, mas dispostas como modelos sociais. E como modelos sociais, são aprendidas e apreendidas no contato com tais modelos em realização, logo, na interação com outros sujeitos a operarem tais modelos, os especialistas. Daí que uma crítica radical ao modelo disciplinar de ensino e de aprendizagem em geral implica em nadar sobre águas rasas.

Ainda Libâneo sugere que “apropriar-se desses conteúdos – das ciências, das artes, da moral – significa, em última instância, apropriar-se das formas de desenvolvimento do pensamento. Para isso, o caminho é a generalização conceitual, enquanto conteúdo e instrumento do conhecimento”13 o que necessariamente nos leva ao ponto de questionamento sobre a relevância do ensino disciplinar. Defendemos a relevância do ensino conceitual, especializado e disciplinar, ao lado de outras formas, interdisciplinares, transversais e orientadas ao desenvolvimento das capacidades de pensamento, mas compreendemos que o desenvolvimento mental e cognitivo é um processo único, como “forma e conteúdo”, já sugeriu Davydov, em que o acesso das gerações a conteúdos específicos da produção cultural de nossa sociedade seja garantido

12 “A didática e a aprendizagem do pensar e do aprender: a Teoria Histórico-Cultural da Atividade e a contribuição de Vasili Davydov”, Revista Brasileira de Educação, 2004, p. 12.13 ibid., p. 12.

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como direito inalienável, a um só tempo, apreensão de conteúdos e trabalho sobre esses, de modo que esse enlace permita a construção das capacidades cognitivas desejadas.

Neste sentido, conteúdos de componentes curriculares disciplinares são fundamentais para a construção de novos meios cognitivos, de novas modalidades de pensamento, de distintas visadas discursivas, de capacidades intelectuais, e isto à medida que tais conteúdos sejam acessados e mobilizados em operações intelectuais orientadas. Trabalho que demanda o professor especializado na área o tempo adequado e os recursos necessários.

A Sociologia é relevante justamente para a compreensão das relações sociais, para a superação da percepção e do pensamento naturalizante dessas relações. Algo que somente pode ser garantido pelo contato com a especialidade e com especialistas de um campo científico próprio, com tempo suficiente para que o trabalho do ensino produza resultados.

De fato, espera-se mais da escola que ensinar somente a ler, a escrever e a contar, e os recentes episódios em que adolescentes são capturados por discursos reacionários e conservadores, de conteúdo racista, misógino, fundamentalista ou xenófobo, demonstram o quão imprescindível é a perspectiva das ciências sociais para a formação para a democracia e para uma consciência científica em novas condições de socialização de nossa juventude.

Reconhecemos a centralidade do conteúdo no ensino disciplinar, mas observamos cotidianamente as reações de espanto e curiosidade ou as mudanças sutis de percepção e linguagem produzidas nos jovens que já tiveram o privilégio do contato com as Ciências Sociais. Isso porque, mesmo por um ensino disciplinar não tem predominado a memorização de teorias sociais e temos observado quão importante se torna para os alunos a descoberta sobre como nossa vida é perpassada por representações, identidade, posição na estrutura social, símbolos e recursos de poder etc. Pois que, como nos sugere Bauman14,

Em face do mundo considerado familiar, governado por rotinas capazes de

reconfirmar crenças, a Sociologia pode surgir como alguém estranho, irritante

e intromedito, Por colocar em questão aquilo que é considerado inquestionável,

tido como dado, ela tem o potencial de abalar as confortáveis certezas da vida,

fazendo perguntas que ninguém se lembra de fazer.

As percepções e capacidades são função dos conteúdos com os quais os alunos se veem confrontados e da operação mental com esses conteúdos: os conceitos sociológicos, políticos, econômicos e antropológicos.

A disciplina Sociologia tem ainda a virtude de fazer pensar a liberdade, com liberdade, sobretudo no Ensino Médio, etapa da vida em que identidades são reelaboradas e consolidadas, pois é bastante desejável que esta forma de autoconsciência social que é o conhecimento sociológico, como nos sugere Peter Berger, seja oferecido aos alunos do Ensino Médio, jovens e adultos. Para que os vínculos estabelecidos com o nosso meio e que constituem a nossa sobrevivência e existência, como explica Nobert Elias, possam ser compreendidos naquilo que os produzem, e por isso mesmo possam ser alterados em direções melhores. Aprender Sociologia é, portanto, um exercício de liberdade, como nos fazem pensar as imagens e as metáforas produzidas por P. Virton15, que comparava a coação social à gravidade dos

14 Zygmunt Bauman, Aprendendo a pensar com a Sociologia, 2010, p. 24.15 Maurice Angers, A Sociologia e o conhecimento de si, Instituto Piaget, 2008, p. 187.

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objetos físicos e ressaltava que a despeito de concebermos máquinas que voam a gravidade física não deixara de existir, mas as possibilidades abertas permitiam a liberdade de decisão sobre tais coações.

As Ciências Sociais podem colaborar para a superação do vazio de significados que tem se tornado o Ensino Médio em nosso país. E pode fazer isso exatamente porque permite essa conexão entre biografias e história a que aludiu Charles Wright Mills16 ao referir-se ao termo imaginação sociológica: produzindo compreensão sobre as conexões entre a experiência pessoal vivida e as instituições sociais, o lugar e o destino de cada um na História e as possibilidades de mudanças que quase sempre estão invisíveis ao olhar imediato. Promover tal imaginação nas gerações futuras pode implicar permitir-lhe a compreensão de – e a intervenção sobre - os processos de construção de identidade, as relações de produção e trabalho, o comportamento político.

De modo ainda mais sistemático, vale lembrar a sugestão de Luiz de Aguiar Costa Pinto17, para quem a disciplina Sociologia deveria:

1) dar conhecimentos positivos e estabelecer conceitos fundamentais sobre a

vida social, suas bases, sua organização, seus processos e seus produtos; 2)

tomar essas informações e conhecimentos científicos sobre a vida social como

pontos de partida e como materiais para gerar e elaborar no educando

atitudes, estados de espírito e formas de comportamento capazes de dar caráter

ativo e consciente à sua participação e integração na sociedade e na cultura.

O lugar da Sociologia na reforma educacional

Aprendemos com Young, Apple, Goodson e outros que o currículo não é um conceito, porém uma construção cultural e um ato de poder, que fundamenta o modo de organizar uma série de práticas educativas que vão muito além da delimitação de componentes curriculares e da própria sala de aula, servindo ao empoderamento dos sujeitos tanto quanto à sua dominação.

O mantra pedagógico dos liberais18 dos anos 1990 e início dos anos 2000, que aponta para uma suposta – ainda que desejável – aprendizagem ao longo da vida, não se faz sem bases científicas e culturais sólidas, pois ainda não foi facultado aos humanos o espontaneismo da divina criação. O caráter de emancipação, autonomia e empoderamento do processo de escolarização é função do conhecimento acessado, das capacidades desenvolvidas na manipulação daquele conhecimento e do sentido e direção impingidas às capacidades e conhecimentos desenvolvidos pelos sujeitos implicados.

António Nóvoa19 nos sugere que “a ciência sem as artes, sem as humanidades, não é nada. É cega. É inútil. Transforma as sociedades do conhecimento em sociedades da ignorância”. Em outra entrevista, em resposta à questão “Como saber o que é essencial?” (a ser ensinado na escola), Nóvoa20 responde:

16 A imaginação sociológica, 1959.17 “O ensino de Sociologia na escola secundária”, 1947, Tese de concurso à Livre Docência apresentada à Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, Rio de Janeiro.18 Os quatro pilares da educação conforme o Relatório da ONU organizado pelo Delors (2010), http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf, aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a

conviver e aprender a ser, têm sua base de sustetanção no aprender a aprender, espécie de “aprendizagem superior” e objetivo último da educação, por sua vez forjado na esteira do pensamento piagetiano.19 “Entrevista com o Prof. António Nóvoa”, Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 119, p. 633-645, abr.-jun. 2012, p. 642.20 http://gestaoescolar.abril.com.br/aprendizagem/antonio-novoa-fala-conteudos-devem-ser-prioritarios-escola-574267.shtml

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Há um pensamento notável de Olivier Reboul, filósofo francês (1925-1992). Ele

diz que deve ser ensinado na escola tudo o que une e tudo o que liberta. O que

une é aquilo que integra cada indivíduo num espaço de cultura, em determinada

comunidade: a Língua, as Artes Plásticas, a Música, a História etc. Já o que

liberta é o que promove a aquisição do conhecimento, o despertar do espírito

científico, a capacidade de julgamento próprio. Estão nessa categoria a

Matemática, as Ciências, a Filosofia etc. Com base nesse princípio, podemos

selecionar o que é mais importante e o que é acessório na Educação das

crianças.

Podemos demonstrar que os conteúdos das Ciências Sociais constituem os únicos a empreenderem o duplo propósito, de unir e libertar, pois que promove a compreensão do que permite a existência de uma sociedade ao mesmo tempo que estimula um tipo de racionalidade científica refinada que, nos dizeres de Bourdieu, emancipa de todas as adesões primárias. O acesso ao conhecimento de áreas científicas e tecnológicas, incluindo-se aí o acesso ao conhecimento científicos das relações sociais das quais participam a ciência e a tecnologia e por meio das quais os sujeitos elaboram e reelaboram suas identidades e motivações, deve ser garantido em que definição curricular obtivermos de um consenso público, pois que é o fundamento para que a aprendzagem de todos os demais conteúdos ganhem significados sociais amplos. Acompanhando António Nóvoa, a Sociologia une porque oferece o conhecimento das estruturas fundamentais que significam falar uma lingua, participar de uma identidade nacional, regional e comunitária, partilhar de uma História e destino comuns, estar implicado em processos decisórios de alcance público; a Sociologia liberta porque oferece o conhecimento de tais inserções, pertenças, partilhas e implicações não tem o mesmo peso e o mesmo efeito para os sujeitos que ocupam diferentes e desiguais lugares sociais.

Recordemos que na perspectiva de Paulo Freire, a leitura de mundo precede a leitura da palavra, situação que potencializa a imaginação sociológica e promove os conteúdos do campo das ciências sociais como ferramentas que oportunizam a problematização do conhecimento imediato das vivências (o senso comum ou "o saber de experiência feito"). Partir do senso comum não significa ficar nele, mas reconhecer e valorizar a experiência social e a realidade que condiciona as percepções dos jovens.

Por isso, ainda com Paulo Freire21,

não importa em que sociedade estejamos, em que mundo nos encontremos, não

é possível formar engenheiros ou pedreiros, físicos ou enfermeiras, dentistas ou

torneiros, educadores ou mecânicos, agricultores ou filósofos, pecuaristas ou

biólogos sem uma compreensão de nós mesmos enquanto seres históricos,

políticos, sociais e culturais; sem uma compreensão de como a sociedade

funciona. E isto o treinamento supostamente apenas técnico não dá.

Em tempos de preocupação com avaliações quantitativas internas e internacionais, com resultados educacionais insatisfatórios de testes de proficiência, e consequente reducionismo do pensamento educacional, deve-se considerar que o letramento científico, em Sociologia, é requisito imprescindível para o desenvolvimento das competências e habilidades para a escrita, a leitura e o cálculo matemático, dado que 21 Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 15. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 134.

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tais somente podem ser conquistadas plenamente se conectadas ao mundo social do qual adquirem sentido e significado, e do qual participam em estruturas de relações sociais. Como ainda nos sugerem A. Miglievich-Ribeiro e L. Eras22, “o precário resultado nesta avaliação [PISA] de nossos alunos em seu letramento científico aponta, é nossa hipótese, para uma possível subestimação do papel central das disciplinas não nominadas no PISA”, e a expectativa do programa em torno do papel da escola no letramento científico, que na edição de 2015 terá como o ensino de ciências, exige uma ressignificação do universo escolar, para a qual as Ciências Sociais são mais que uma promessa23.

A Sociologia e a integração curricular

Questão importante do pensamento educacional hegemônico é a que diz respeito à interdisciplinaridade. Compreendemos a dificuldade de organizar-se um trabalho interdisciplinar, afinal, a sua construção e implantação na escola demanda tempo e não tem sua eficácia garantida apenas por foça de lei. Há muito essa orientação vem sendo pautada nas diretrizes educacionas para o Ensino Médio. Senão, vejamos, a Resolução n.º 3/1998, em seu artigo 8º, afirma que

[...] I - a Interdisciplinaridade, nas suas mais variadas formas, partirá do

princípio de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente com

outros conhecimentos, que pode ser de questionamento, de negação, de

complementação, de ampliação, de iluminação de aspectos não distinguidos;

[...] IV - a aprendizagem é decisiva para o desenvolvimento dos alunos, e por

esta razão as disciplinas devem ser didaticamente solidárias para atingir esse

objetivo, de modo que disciplinas diferentes estimulem competências comuns, e

cada disciplina contribua para a constituição de diferentes capacidades, sendo

indispensável buscar a complementaridade entre as disciplinas a fim de

facilitar aos alunos um desenvolvimento intelectual, social e afetivo mais

completo e integrado; [...]

Do mesmo modo, encontramos nas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, sobretudo na Resolução CNE 2/2012, em seu artigo 8º, § 1º, encontramos que “O currículo deve contemplar as quatro áreas do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a contextualização e a interdisciplinaridade ou outras formas de interação e articulação entre diferentes campos de saberes específicos.” Já no Parecer CNE/CBE 5/2011, a interdisciplinaridade “é, assim, entendida como abordagem teórico-metodológica com ênfase no trabalho de integração das diferentes áreas do conhecimento.” Por fim, nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica24, referenciados pelo Parecer CNE/CEB 5/2011, temos que

[…] A interdisciplinaridade pressupõe a transferência de métodos de uma

disciplina para outra. Ultrapassa-as, mas sua finalidade inscreve-se no estudo

disciplinar. Pela abordagem interdisciplinar ocorre a transversalidade do

22 “O Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (PISA): a Sociologia e o aprendizado científico”, Ensino de Sociologia: desafios teóricos e pedagógicos para as Ciências Sociais, Luiz Fernandes de Oliveira (org.), Edur UFRRJ, 2013, p.142.23 ibid., p. 141.24 Parecer CNE/CEB nº 7/2010 e Resolução CNE/CEB nº 4/2010.

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conhecimento constitutivo de diferentes disciplinas, por meio da ação

didáticopedagógica mediada pela pedagogia dos projetos temáticos […]

Sendo, por sua vez, a transversalidade definida no mesmo documento como

[…] A transversalidade é entendida como forma de organizar o trabalho

didático-pedagógico em que temas, eixos temáticos são integrados às

disciplinas, às áreas ditas convencionais de forma a estarem presentes em todas

elas […]

A importância da interdisciplinaridade como paradigma a orientar o trabalho escolar é, neste sentido, exemplo do ato discursivo (e a um só tempo, político e intelectual) em que assume-se um (inexistente) mínimo comum de entendimento sobre um conceito amplo, ambíguo e sujeito a disputas teóricas. A exemplo, poderia-se questionar em que real medida a abordagem transversal de conteúdos propicia uma aprendizagem mais efetiva? Como já se afirmou neste documento, o debate que subsidia atualmente a proposta de reforma curricular, constitui-se de afirmações que são apresentadas e defendidas sem base em pesquisa científica e acadêmica substantiva.

Ora, a orientação decidida de um trabalho interdisciplinar necessita de um programa flexível, porém, uma proposta assim somente é possível se os docentes encontrarem condições para trabalhar interdisciplinarmente, ou seja, se a disposição a superar as fronteiras de campos de conhecimento específicos para a construção de um campo comum, mais abrangente, encontrar as condições concretas, materiais e operacionais que viabilizem tal proposta.

Evitar as compartimentações e fragmentações do conhecimento é importante na medida em que corresponde a uma compreensão mais coerente sobre a realidade social. No contexto dessa discussão, entretanto, muitas palavras surgiram e pouco esclarecimento se alcançou: pluri, multi, trans ou interdisciplinaridade. O fato é que a ciência não prescinde do “rigor disciplinar”, conforme nos alerta Elisa Reis25, para quem “a própria natureza racionalizante da ciência implica uma percepção da postura metódica e disciplinar como recurso analítico”, ou seja, a análise implica necessariamente algum grau de especialização e de fragmentação. A despeito disso, sabemos que as fronteiras entre as ciências sociais são muito frágeis e sutis, mesmo entre as ciências em geral. As ciências sociais, desta forma, possuem um caráter de transdisciplinaridade, exatamente por sua pouca distinção entre elas mesmas e entre elas e as demais áreas de conhecimento, científico ou não. Nenhum cientista social consegue realizar seu ofício de pesquisa retirando uma parte da realidade social e isolando-a de seu contexto, para então proceder a sua análise. A crítica à fragmentação do saber é mais justa se dirigida ao campo científico, com suas disputas por capital simbólico dentro dos quadros institucionais em que se constitui. E o que ninguém parece querer ver é que isso escapa a um planejamento curricular.

Segundo Pierre Bourdieu26, os conflitos epistemológicos são sempre conflitos políticos. As relações entre campos de saberes, científicos ou não, se dão por meio de disputas sobre o que o sociólogo francês denomina “capital simbólico”. Estas relações são necessariamente relações de forças, onde são mobilizados interesses, estratégias e recursos na busca de seus lucros. É um grande desafio pensar em fronteiras fluidas entre os campos científicos, seja no âmbito da pesquisa seja no âmbito do ensino. E uma

25 “Reflexões transversas sobre transdisciplinaridade e ensino de ciências sociais”, As assim chamadas ciências

sociais, Bomeny e Birman (orgs), Rio de Janeiro, Remule-Dumará, 1991, p. 245.26 O Campo Científico, 1976.

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grande utopia se não se der por um esforço coletivo, com tempo e recursos de qualidade. Tais dificuldades levaram o filósofo Edgar Morin27, que opõe à interdisciplinaridade a transdisciplinaridade, a afirmar que “cada disciplina pretende primeiro fazer reconhecer a sua soberania territorial e, à custa de algumas magras trocas, as fronteiras confirmam-se em vez de se desmoronarem”. De certa forma, a interdisciplinaridade atualiza identidades ao invés de dissolvê-las.

Longe de negarmos importância ao tratamento interdisciplinar na ação pedagógica, chamamos a atenção para a superficialidade dos sentidos atribuídos, a começar pela compreensão dicotômica da interdisciplinaridade, passando pela acusação implícita da ciência (disciplinar) como produtora da “fragmentação do saber” e pela noção de que a interdisciplinaridade resolve-se no plano do desenho curricular, até a ausência de considerações sobre os limtes eventuais da proposta.

Tais confusões geradas em discursos normalmente enunciados atualmente ocultam diferentes contradições, pois que a interdisciplinaridade, que não se confunde com adisciplinaridade, por vezes é apresentada como “algo novo” para a prática docente. Talvez fosse mais relevante discernir – e aqui isso deve ser entendido como proposta teórica provisória, em que medida é possível falarmos em interdisciplinaridade em sentido forte e em interdisciplinaridade em sentido fraco; isto é, talvez se desinflacionarmos a própria noção de interdisciplinaridade pudéssemos melhor compreender suas possibilidades e limites na ação pedagógica. Por que, se por um lado é possível pensarmos o trabalho científico como interdisciplinar ou transdisciplinar, por outro, o trabalho pedagógico talvez ofereça pouca condição para uma real interdisciplinaridade (em sentido forte). Mais uma vez, a questão demandaria investimento de pesquisa científica para que se pudesse alcançar maior clareza.

Cremos que um trabalho interdisciplinar – dialógico e problemático por definição – não se constrói de um dia para o outro, mas é o resultado de pesquisa, reflexão e verificação objetiva, portanto, de uma práxis. E, como práxis, parte da relação dialética entre teoria e prática, pesquisa e ensino, investigação empírica e investigação teórica, trabalho em grupo e trabalho individual, conteúdos e processos, unidades programáticas e temáticas de pesquisa, orientação do professor e produção dos alunos. Enquanto práxis, prevê ainda o diálogo constante entre áreas do conhecimento e, sobretudo, entre disciplinas. Em todo o caso, não um cenário disciplinar oposto a outro, interdisciplinar, assim como a fragmentação do saber não será superada por disciplinaridade ou interdisciplinaridade no ensino, dado que tal fragmentação é do âmbito do fazer científico.

Um trabalho interdisciplinar não se define apenas por uma cooperação entre professores ou pela adequação entre unidades programáticas e muito menos por justaposição de conteúdos de diferentes disciplinas. Trabalho em equipe não é suficiente para denotar um caráter de interdisciplinaridade.Também não há interdisciplinaridade tão somente com a eleição de temas transversais, sendo a transversalidade como método, assim definida nos documentos normatizadores da Educação Básica, a possibilidade de uma interdisciplinaridade em sentido fraco. A transversalidade disposta no marco legal seria, assim, a institucionalização de esforços há muito realizados por professores. No entanto, só haverá um trabalho realmente interdisciplinar, em sentido forte, multidisciplinar ou mesmo transdisciplinar se os profissionais das diferentes áreas encontrarem condições concretas para elaborar juntos metodologias, currículos, programas, conteúdos e práticas que sejam efetivamente compostos, referenciados e informados por disciplinas distintas. A construção resultante de um longo processo

27 Ciência com consciência, 2005.

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como esse poderia implicar uma revolução no ensino, mas é justamente aí que toda a reforma educacional esbarra: pois criar condições efetivas de trabalho deste tipo demandaria um investimento por parte de governos na educação exponencialmente maior do que o que se tem feito até hoje no Brasil.

Daí que compreendemos (aqui, provisoriamente) a interdisciplinaridade como articulação substantiva entre conteúdos, conhecimentos, métodos de trabalho, categorias de pensamento, atitudes cognitivas e perspectivas de análise, algo sempre limitada e somente possível dadas as necessárias condições materiais concretas em termos de tempo e outros recursos.

E aqui chegamos ao último aspecto da ideologia da interdisciplinaridade, tal como tem sido construída no discurso especialista, pois que acompanhamos o sociólogo inglês Michael Young28, para quem cabe separarmos currículo e pedagogia em artigo no qual defende um currículo constituído por disciplinas. Em linhas muito gerais, o argumento de Young segue o seguinte caminho: currículo precisa ter uma finalidade própria, que é o desenvolvimento intelectual do estudante. Este, por sua vez, é baseado em conceitos (objeto do pensamento especialista), isto é, o conhecimento do currículo está calcado no conhecimento de especialistas, e tais conteúdos não encontram lugar num currículo não centrado em disciplinas. O texto do sociólogo inglês provê a desconstrução de alguns equívocos discutidos por nós, à medida que segundo Young, não cabe ao currículo o que é do âmbito pedagógico: o tratamento interdisciplinar de conteúdos por estratégias de intermediação do conhecimento que eliminem a introjeção de uma concepção fragmentada do saber, pois que professores, e não formuladores de currículo, é que devem e podem preocupar-se com interdisciplinaridade, mediação, aprendizagem, motivação, engajamento do aluno, relação às experiências cotidianas vividas pelos alunos. A orientação à interdisciplinaridade, no entanto, não pode ser garantida simplesmente por sua afirmação em lei, nem por um redesenho de componentes curriculares, mas tão somente no ato pedagógico construído por uma intencionalidade específica na prática docente. O que Young alerta é para a relevância do conhecimento específico de áreas do saber, em que defende que esses conhecimentos apenas encontram seu lugar no processo de escolarização se oferecidos por um currículo disciplinar.

A gestão da política educacional para o Ensino Médio e a Sociologia

Faz-se necessário que os poderes públicos constituídos cessem a orientação empresarial da gestão educacional29, como se tem visto em diferentes sistemas estaduais, cujo foco tem sido um pretenso controle da prática docente por mecanismos de cooptação ou imposição, aliado a uma gestão do currículo restrito à simples normatização de seus conteúdos arremedos de qualificação continuada, com o agravante da ausência de processos efetivamente participativos e de transparência. A escola precisa de muito mais que isso!

28 “O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplina”, Revista Brasileira de Educação, vol. 16, set-dez 2011. Notamos que até mesmo este artigo de Young tem recebido “releituras” de especialistas que, por um processo de superinterpretação textual, tem sido mobilizado erroneamente para a defesa do que no texto é justamente criticado.29 A orientação empresarial da gestão educacional aqui discutida não se confunda com os interesses econômicos privados sobre o setor, ainda que com esses guarde afinidade e lhe seja vantajoso. Exemplo da presença dessa lógica e dos interesses que defende pode ser encontrado no Todos pela Educação (http://www.todospelaeducacao.org.br/), movimento empresarial que pressionou fortemente o governo com o "pacto pela educação", este ponto embrionário do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) em detrimento do Plano Nacional de Educação (PNE). Sobre isso, há um excelente debate em: SAVIANI, Dermeval. PDE – Plano de desenvolvimento da educação: análise crítica da

política do MEC. Campinas: Autores Associados, 2009.

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Uma vez mais, é António Nóvoa30 que nos chama a atenção que “se a sociedade as forçar à ditadura do imediato, a uma lógica produtivista e de rendibilidade, se as constranger à adopção de medidas de puro oportunismo gestionário, desumanizadoras, tornar-se-ão, a prazo, instituições inúteis e dispensáveis”.

A lógica produtivista está ancorada na suposta eficiência de padrões didáticos fixos e preestabelecidos que precisariam ser reproduzidos pelo conjunto dos professores, na otimização da jornada de trabalho e no desempenho comparativo de todos os discentes e docentes, como se o processo educacional fosse comparável à linha de produção fordista-taylorista.

No entanto, a escola não deve ser tratada como espaço de repetição de receitas, mas sim como ambiente de produção de conhecimento. Ensino e pesquisa devem andar juntos nas escolas, e fruir de suficiente liberdade. E o ensino de Sociologia no Ensino Médio é fundamental para despertar o senso crítico dos estudantes neste processo de construção de conhecimento. Se não se cultivar a liberdade de criação, de crítica, de desenvolvimento de pesquisa no Ensino Médio, estaremos reduzindo a escola a um ambiente passivo tanto externa, quanto internamente. Propugnamos que a escola produzirá maior ganho social e cognitivo quanto mais ela for compreendida como não produtora de resultados quantificáveis, medíveis e pré-fixados. A escola necessita de livre criação, tempos e espaços de liberdade, assim como de trabalho dirigido, atividade orientada ao estudo, mobilização de conhecimento. Mas, definitivamente, não é a escola uma fábrica de “qualificados e credenciados”, a ser gerida como a uma empresa.

A sobrecarga de trabalho enfrentada pelos docentes em grande parte está relacionada ao aumento da quantidade de turmas em função da diminuição da carga horária de disciplinas como Filosofia e Sociologia e, em muitos casos, relacionada também ao aumento do número de escolas que os professores precisam estar vinculados para completarem sua jornada de trabalho.

A equivocada gestão da política educacional tem se refletido na redução da carga horária das disciplinas Filosofia e Sociologia nas matrizes curriculares de redes estaduais de ensino, a exemplo do que fez a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro – SEEDUC/RJ que em 2012 ofertou essas disciplinas em apenas um tempo semanal de aula nas duas primeiras séries do ensino médio regular e nas séries do EJA31.

Temos conhecimento de que tal medida não se configura como uma ação isolada por parte da SEEDUC/RJ, pois outras redes de ensino, públicas e privadas, em todo o país, em resposta à obrigatoriedade determinada pela Lei nº 11.684/2008, têm apresentado configurações semelhantes na formatação das suas matrizes curriculares. No caso das escolas privadas, temos notícias, inclusive, do não cumprimento da Lei citada, com as disciplinas de Filosofia e Sociologia sendo substituídas por outras de caráter genérico, que não mantêm qualquer relação com os conteúdos oferecidos por essas disciplinas, assim como, consequentemente, não garantem a contratação de docentes com formação qualificada.

Temos clareza de que o Conselho Nacional de Educação, por intermédio da sua Câmara de Educação Básica, normatizou a oferta das referidas disciplinas, através dos Pareceres CNE/CEB nº 38/2006 e nº 22/2008, portanto, desde antes da nova Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio. Desta feita, o CNE32 determinou que

30 “Entrevista com o Prof. António Nóvoa”, Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 119, p. 633-645, abr.-jun. 2012, p. 640. O discurso é sobre as universidades, mas aplicamos o mesmo raciocínio às escolas.31 Publicado no Diário Oficial do estado, em 01 de dezembro de 2011.32 Parecer nº 22/2008, Análise do Mérito, II, p. 3. Grifos ausentes no original.

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[...] os sistemas de ensino de todos os entes federativos devem fixar normas

complementares e medidas concretas para a oferta desses componentes

curriculares em todos os anos de duração do Ensino Médio. Devem, ainda,

zelar para que haja sua efetivação, coibindo atendimento meramente formal

ou esparso e diluído, garantindo aulas suficientes para o desenvolvimento

adequado de estudos e atividades desses componentes, com a designação

específica de professores qualificados para tanto.

O voto33 do Relator Conselheiro Cesar Callegari, reiterando o disposto acima, entre outras medidas relativas ao prazo e ao caráter de implantação obrigatória desses componentes curriculares, indicou que

[...] as escolas têm autonomia quanto à concepção pedagógica e à formulação

de sua correspondente proposta curricular, desde que garantam sua

completude e coerência, devendo dar o mesmo valor e tratamento aos

componentes do currículo que são obrigatórios, seja esse tratamento por

disciplinas, seja por formas flexíveis, com tratamento interdisciplinar e

contextualizado.

Visando ao cumprimento imediato da Lei 11.684/2008, o Relator apresentou ainda o Projeto de Resolução34 que, em seu artigo 3º, reiterou as indicações apresentadas no documento:

Os sistemas de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos

referidos componentes, garantindo-se, além de outras condições, aulas

suficientes em cada ano e professores qualificados para o seu adequado

desenvolvimento.

Temos pleno entendimento, portanto, que a garantia do efetivo cumprimento da Lei nº 11.684/2008, com a oferta dos componentes curriculares de Sociologia somente poderá ser possível com a garantia não só da presença de professores qualificados na área e devidamente concursados, mas de uma quantidade mínima de aulas suficientes

para o desenvolvimento adequado de estudos e atividades – pré-requisito que subentende a inclusão nas matrizes curriculares de todos os sistemas de ensino de, pelo menos, a carga semanal de dois tempos consecutivos de aula em todas as séries do Ensino Médio. Somente dessa forma a Sociologia não seria ofertada de forma diluída

ou esparsa, tornando praticamente sem efeito os objetivos em que se basearam os legisladores quando aprovaram a referida Lei que modificou a LDB, determinando a obrigatoriedade desse componente curricular. Neste sentido, as instituições particulares de ensino e as redes estaduais que não ofertam a disciplina ou não contratam profissionais qualificados ou que mantém tratamento desigual para a disciplina, comparativamente às demais, descumprem preceito legal.

As novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, Resolução nº 2/2012, normatiza que o currículo é uma proposta de ação educativa constituída pela seleção de conhecimentos construídos pela sociedade, expressando-se por práticas escolares que se desdobram em torno de conhecimentos relevantes e pertinentes, permeadas pelas relações sociais, articulando vivências e saberes dos estudantes e

33 Parecer nº 22/2008, II – Voto do Relator, item 3. Os grifos não constam do original.34 Parecer nº 22/2008, Projeto de Resolução, Art. 3º. Grifos ausentes no original.

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contribuindo para o desenvolvimento de suas identidades e condições cognitivas e socioafetivas. Em seu Art. 8º, a Res. 2/2012 aborda as áreas do conhecimento e refere-se à interdisciplinaridade, porém ressaltando que a mesma não dilui nem exclui os componentes curriculares relacionados. Estes, por sua vez, estão previstos no Art. 9º da referida resolução, incluída aí a Sociologia como componente curricular em igual condição às outras que são obrigatórias para a matriz curricular atual. Podemos perceber que as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, notadamente o Parecer 7/2010 e a Resolução 4/2010, tratam a interdisciplinaridade como aquilo que assegura a transversalidade, que por sua vez é definida como uma transferência de métodos de uma disciplina a outra, como forma de organizar o trabalho didático-pedagógico em que temas são integrados às disciplinas, fazendo-se presentes em todas as áreas. Os equívocos tem início no momento em que se as diretrizes são interpretadas para por-se em dúvida o modelo disciplinar de currículo, a presença de algum componente curricular específico ou a distinção entre o que é da ordem do currículo e o que é da ordem da didática, ou seja, quando a referida transferência de método e abordagem de temas por todas as disciplinas, como posto nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, é substituído pela idéia de diluição de uma dada disciplina.

A disciplina de Sociologia exige tempo adequado e de qualidade para que seus benefícios possam fazer-se notar, pois não se confundem com o mero “debate sobre temas da atualidade”. Há que se trabalhar o pensamento do aluno a fim de que o mesmo apreenda o tipo de raciocínio próprio à disciplina, pois que os seus modelos discursivos implicam na superação de uma visão naturalizante do mundo social e humano, como exposto neste documento.

A implantação da Sociologia em todas as escolas, privadas e públicas – inclusive às pertencentes à Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica –, não pode assumir um caráter “secundarizado”, ferindo o princípio da paridade de tratamento que deve ocorrer entre todas as disciplinas e contribuindo para a precarização do trabalho docente, como se percebe nos relatos de diversos professores que são obrigados a ministrar os conteúdos dessas disciplinas para adolescentes e jovens em apenas um tempo de aula, às vezes de quarenta ou quarenta e cinco minutos, dependendo da rede de ensino. Apenas Filosofia e Sociologia têm carga horária de um único tempo semanal, o que por si só caracteriza tratamento diferenciado em prejuízo das duas disciplinas. Os efeitos da redução da carga horária que as disciplinas vêm sofrendo em diversas redes de ensino ainda se estendem e se desdobram noutras disciplinas, pois docentes são obrigados a ministrar aulas em disciplinas para as quais não foram formados, por vezes orientados pelas próprias secretarias de educação, a fim de completarem a jornada de trabalho.

A suposta valorização da atividade docente subordinada ao desempenho comparativo dos diversos estudantes ligados a uma mesma Secretaria de Educação oculta a lógica empresarial dos gestores do Estado. A criação de uma classificação de instituições de ensino baseada somente no desempenho das escolas reflete a estratégia empresarial de desconsiderar a diversidade de trajetória dos estudantes, as diferenças regionais e as necessidades específicas de cada escola. Tratar todas da mesma maneira e supostamente valorizar apenas alunos e professores que demonstram determinado desempenho significa limitar a escola a uma espécie de linha de montagem que só precisa se preocupar com a reposição de peças obsoletas e motivar supostos “clientes” a consumirem Educação como mercadoria. O quadro fica ainda mais chocante quando a gestão é maquiada em seus próprios pressupostos, valores, metas e mecanismos, gerando uma espécie de duplo engano: dos pressupostos e finalidades, e dos mecanismos adotados para efetivá-los; e quando nem a ideologia da gestão empresarial

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da educação logra construir mecanismos que a tornem algo mais que uma miragem, apenas temos o desperdício do dinheiro público, com contornos de perversidade.

Nem a política educacional pode ser gerida como uma empresa, nem a definição de seus runos pode ser dada por um pequeno círculo de mentes iluminadas, e por isso mesmo necessitamos dar o passo decisivo em direção à inclusão de todos os sujeitos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem para um amplo debate da sociedade brasileira sobre o futuro de nossa educação.

Cabe ao poder público, sobretudo ao Ministério da Educação, pautar um debate aprofundado das condições reais das escolas brasileiras, em que tem se dado o ensino das novas gerações, instando por mecanismos admitidos em nosso pacto federativo os poderes estaduais a priorizarem a educação dentro de seus projetos de governo.

Propostas da ABECS para o Ensino Médio

O propósito da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) é agregar professores da educação básica àqueles das Universidades que estejam interessados ou preocupados com o ensino das ciências sociais, em todos os níveis educacionais. Além de criar canais de comunicação entre estes professores, propõe-se realizar uma ponte entre ensino básico e universidade. Não há nenhuma organização brasileira que trate especificamente desta questão e ao mesmo tempo integre todos os professores de todos os níveis educacionais. Por isso, a ABECS foi fundada35 como sociedade de ensino da área, de caráter não partidário e não sindical, porém como entidade acadêmica e profissional, tal qual similares associações de ensino existem para praticamente todas as áreas disciplinares. Como associação de âmbito nacional, a ABECS vem constituindo regionais em estados e regiões, para que possa efetivamente ser representativa dos que têm construído no cotidiano das escolas brasileiras a Sociologia como disciplina na Educação Básica.

Intuimos que a reforma educacional atualmente debatida será realizada com êxito e o será em moldes não muito diferentes do que se tem visto até hoje, cuja lógica predominante perpassa por decisões não transparentes e informadas por um restrito núcleo de intelectuais convidados à condução de todo o processo. Intuimos que a reforma implicará alterações curriculares que talvez mudem a face do Ensino Médio, sem porém garantir-lhe a necessária qualidade. Intuimos que no contexto atual a disciplina de Sociologia está mais uma vez ameaçada pelo desconhecimento e pelo descaso.

Uma reforma da educação brasileira efetiva deve propor-se a debater questões relevantes como a escola em tempo integral, as fontes de financiamento da educação, o montante real necessário de investimento direto nas escolas, o impacto da estrutura federativa sobre a gestão pública educacional, o subsídio, mesmo indireto, às escolas particulares, a formação profissional oferecida pelas universidades, o piso salarial nacional dos professores, as condições concretas existentes em nossas escolas, do grande centro urbano ao do interior do sertão, passando pelas escolas em áreas florestais. Assim como os conhecimentos eleitos como essenciais, o currículo formal e o currículo oculto, a cultura escolar e a prática pedagógica – decisões antes políticas que técnicas, ou meramente técnicas. Sem esquecermos que uma reforma da educação básica passa necessariamente pela reforma na formação docente realizadas nas universidades. Decorre disso que o debate sobre o novo currículo do ensino médio, necessita iniciar pelo debate sobre a universidade brasileira. Por outro lado, um debate que artificialmente separe e trate distintamente esses aspectos, em geral aligeirado em concluões

35 Assembléia de Fundação realizada no Colégio Pedro II, no campus do Humaitá, Rio de Janeiro, em maio de 2012.

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apressadas, tomadas como insights de verdade, não logrará entregar à sociedade brasileira soluções de futuro para a qualidade de nossa educação.

A ABECS compromete-se com uma verdadeira reforma da educação brasileira e essas são propostas que oferecemos ao debate:

1. As Ciências Sociais podem contribuir para o avanço da Educação no Brasil e para a definição de um Ensino Médio que realize as esperanças nele depositadas pela sociedade brasileira;

2. A Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) está interessada e qualificada para intervir nesse processo;

3. A Sociologia, como disciplina do Ensino Médio (e considerando as suas possibilidades para o Ensino Fundamental), constitui-se um “lugar curricular” privilegiado para a reaproximação do jovem à escola, dada a sua contribuição para a compreensão dos processos de construção identitária e inserção no meio social, assim como para repensar-se a própria escola;

4. A Sociologia, na forma de disciplina do Educação Básica e compreendendo as três áreas de conhecimento que constituem as Ciências Sociais no Brasil (Antropologia, Ciência Política e Sociologia), é fundamental para o necessário letramento sociológico de uma sociedade complexa e democrática, e realização do direito ao acesso a um tipo de conhecimento e a um tipo de perspectiva científica que nenhum outro componente curricular pode oferecer e que, ao mesmo tempo, é imprescindível à resignificação social dos demais conteúdos;

5. A disciplina Sociologia na Educação Básica é fundamental para que seja superada a visão naturalizante das relações sociais, condição necessária para uma sociedade verdadeiramente laica em que dogmas, fundamentalismos e visões sociais conservadoras cedam lugar a uma compreensão racional fundada em bases mais razoáveis em que as perspectivas antropológica, política e sociológica fundamentem a consciência e a ação dos sujeitos;

6. A existência das Ciências Sociais como componente curricular não implica em rejeição à orientação para a interdisciplinaridade e a integração curricular. Essas podem ser garantidas pela identificação de categorias de pensamento comuns à diferentes disciplinas e áreas de conhecimento, e, principalmente, por trabalho pedagógico na escola, em condições objetivas que garantam processos de ensino e aprendizagem efetiva, e por estratégias pedagógicas apropriadas. Tais condições materiais concretas em que se produz o ensino, tal como temos hoje nos sistemas estaduais de ensino, no entanto, estão longe de serem satisfatórias, necessitando a urgência de revisões que permitam a permanência do docente numa única instituição escolar, carga horária suficiente para disciplinas que tem recorrentemente recebido tratamento desigual a outras, casos da Sociologia e da Filosofia, e investimento financeiro em nível muito mais elevado do que se tem praticado. Pois que a proposição da interdisciplinaridade sem o devido equacionamento das condições objetivas do ensino na escola, restrita a um desenho curricular reformado, é receita certa para o um novo fracasso na história das políticas educacionais no Brasil;

7. Uma reforma educacional, mesmo considerando a estrutura federativa, deve ir além de revisão de ofertas de conteúdos, tímido financiamento de infraestrutura escolar, formação continuada aligeirada e avaliação e gestão empresarial de resultados, mas deve incluir, sobretudo, o diagnóstico e a intervenção sobre planos de carreira, percepção salarial digna, carga horária que permita tempo de qualidade para o trabalho pedagógico, fixação do trabalhador na escola, recursos disponíveis suficientes, apoio institucional e governamental, participação em todos os processos decisórios de todos os

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níveis, com efetiva autonomia da escola, e demais condições materiais para a viabilização dos objetivos da própria reforma, quais sejam, a elevação da qualidade de nossa oferta de serviços educacionais, a contenção da evasão escolar, principalmente identificada no segmento médio do ensino, e a melhoria dos resultados em avaliações, nacionais e internacionais. Deve, portanto, ser assmida como política de Estado e não política de governo.

Apoiamos o debate acerca de currículo porque as Ciências Sociais têm efetivamente uma contribuição a oferecer, mas desde que o debate seja fundamentado em pesquisa substantiva, a uma concepção curricular alargada e aliado ao equacionamento de suas condições de viabilidade.

A Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais vem conclamar o Ministério da Educação a cumprir as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em especial o que fixa a Resolução CNE Nº 2/2012, artigos 8º, parágrafo segundo, e 9º, que apresentam as áreas de conhecimento e seus componentes curriculares: as disciplinas, com a Sociologia inclusa entre essas, e os temas transversais. E que a nova etapa do Pacto Nacional para o Fortalecimento do Ensino Médio em que ingressamos não se torne meramente a oportunidade de exclusão da disciplina Sociologia - com todo o prejuízo que tal medida poderia causar à formação dos alunos do Ensino Médio. E, ainda, que se dê voz a todos os sujeitos interessados, discentes, docentes e pesquisadores, de todos os segmentos escolares e áreas de conhecimento nas discussões pertinentes, porém não em calendários apertados pela lógica dos resultados e que mascare o processo verdadeiramente democrático.

Que o respeito às DCNEM se dê também por interpretações que não sejam deturpadoras do sentido exposto no texto da norma, nem por manipulações discursivas da teoria educacional, que impliquem na obstrução ao direito de todo o cidadão brasileiro em acessar um tipo de conhecimento e de desenvolver uma atitude cognitiva que somente as Ciências Sociais está em condições de lhe oferecer em bases científicas consolidadas. Do contrário, mais uma vez teremos a história se repetindo, agora não mais como tragédia, porém como farsa.

Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 2015.

Diretoria da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS)

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