MAIORIDADE de Flavio Goldman - selecaobrasilemcena.com.br · 2 PERSONAGENS: DANI, na fronteira...
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MAIORIDADE
de Flavio Goldman
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PERSONAGENS:
DANI, na fronteira entre a infância e adolescência
Seu PAI
Sua MÃE
YONI, seu professor de bar-mitzvá
ALESSANDRA, sua colega
PEDRINHO, seu colega
CORONEL IVANIR, seu vizinho
Sua PROFESSORA
BETO, seu treinador de futebol
VADINHO, uma imagem saída de um filme
ÉPOCA: Em algum momento da década de 1980
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SEQUÊNCIA 1 - VOCÊ AINDA BRINCA COM ISSO?
Dani brinca com vários bonecos Playmobil. No fundo, uma música solene – a
abertura de “Tannhauser”, de Wagner. Dani vai descrevendo as cenas, bastante
tomado e numa locução impostada, artificial. Esforça-se para pronunciar
corretamente os nomes estrangeiros, com resultados irregulares.
DANI: Começam a chegar ao Castelo de Waldemarstadt, em ritmo pausado e
elegante, os convidados para o casamento da Princesa Gertrudes de Nuremberg
com Gumercindo, o herdeiro do Ducado de São Bernardo. Gumercindo aguarda a
noiva com seu traje de gala mais de gala possível, verde escuro cor de rúcula
molhada, com sua famosa capa de pele de cachorro São Bernardo, que, óbvio, é o
animal símbolo de seu Ducado. A Princesa ainda não chegou. Todos aguardam sua
chegada impactante, num vestido amarelo-ouro e vermelho-sangue-A-positivo, as
cores da bandeira do Principado de Nuremberg. Mas a grande expectativa para essa
manhã fria no Castelo de Waldemarstadt é a presença de Concepción, a rainha
viúva do pequeno mas muito estratégico Reino de Todos Los Santos y Mártires. Ela
é avó da Princesa Gertrudes. Todos sabem que a velha rainha reprova essa união e
fez de tudo para que Gertrudes se casasse com Eleutério, o príncipe católico de
Torre de los Caracoles. A maquiavélica soberana chegará ao ponto de...
À medida que vai narrando, aproxima-se por trás Pedrinho.
PEDRINHO: Tu ainda brinca com isso? (A música é interrompida bruscamente.)
DANI (Assustado): Quê? Não, não! Eu... Eu tava separando pra dar pro filho do
porteiro.
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PEDRINHO: Filho do porteiro... Tu não dá nada pra ninguém, tu é o maior judeu, que
eu sei!
DANI: Eu não brinco mais, já falei. O que você veio fazer aqui, Pedrinho?
PEDRINHO (Falso): Eu? Não, nada... Eu ia te mostrar um negócio, mas tô vendo
que tu tá ocupado, então...
DANI: Fala logo!
PEDRINHO (Tira uma revista Playboy da mochila): Não, cara, eu ia te mostrar isso,
mas...
DANI (Exaltado): Porra! Playboy com a Luiza Brunet! Como você conseguiu?
PEDRINHO: Roubei do meu pai. Mas tenho que devolver hoje.
DANI: Deixa eu ver!
PEDRINHO (Afastando-se): Nã, nã, nã, não! Tá escrito aqui, “proibido para
menores”! Tu escolhe, cara: ou Playmobil ou Playboy. As duas coisas, não dá pra
ter.
DANI: Não fode, Pedrinho!
PEDRINHO (Saindo de cena): De repente no ano que vem, mané! Vê se cresce até
lá!
DANI: Pedrinho!
Dani novamente sozinho em cena. Ele contempla os bonecos pelo chão com ar
desolado. Começa a recolhê-los, cuidadosamente, como se fossem vítimas de um
acidente. Ouve-se ao fundo uma voz masculina que canta “Tudo acabado”, de
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J.Piedade e Osvaldo Martins. É seu pai. Ele entra em cena, cantando de forma
teatral e expansiva, como uma autêntica estrela da era da rádio.
PAI: Tudo acabado entre nós, já não há mais nada... Tudo acabado entre nós, hoje
de madrugada... Você chorou, eu chorei... Você partiu, eu fiquei... Se você volta
outra vez, eu não sei...
DANI: Pai...
PAI (Vai se despindo, de forma casual, caseira): Boa noite, Dani.
DANI: Tavam no cinema?
PAI: Como toda quinta. Filme de guerra… Chato pra burro. Quando eu deixo sua
mãe escolher, dá nisso.
DANI: É sempre ela que escolhe.
PAI (Ignora o comentário. Retoma a cantoria e ameaça se afastar): Nosso
apartamento agora, vive à meia luz...
DANI: E tinha mulher pelada no filme?
PAI: Dani, era filme de guerra! Não tinha quase mulher no elenco. Mulher pelada...
DANI: E homem?
PAI (Algo intrigado, mas não chocado): Homem? Não! Quer dizer, agora que você
falou... Tinha uma cena em que os soldados apareciam tomando banho.
DANI: E aparecia tudo?
PAI: O que você quer saber, Dani?
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DANI: Aparecia o peru?
(À essa altura, o pai está de cuecas. Termina nesse nível seu desnudamento.)
PAI: Claro que não, né, Dani!
DANI: Por que não?
PAI: Porque o peru, meu filho, não pode aparecer nunca. Nunca.
DANI (Tentando continuar a conversa): Pai...
PAI (Afastando-se de vez, começa a cantar “Nunca”, de Lupicínio Rodrigues): Nem
que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim...
O pai sai de cena. Dani pensa na conversa que tiveram. Intrigado, vai abrindo livros,
revistas, numa busca ansiosa. À medida que procura e não encontra, vai dizendo:
DANI: Nada... Nada... Nada... Nada aqui também... Nem aqui... Nada... Nada!
NADA!!!! Como é que...?
Entra a mãe.
MÃE: Falando sozinho de novo? Ficou biruta de vez? O que você estava fazendo?
DANI: Nada, mãe. Não estava fazendo nada.
MÃE (Para si própria, sem olhar para o filho): Oficina do diabo... Sabe com quem eu
cruzei lá fora? Com o Pedrinho.
DANI: Veio aqui encher meu saco, pra variar.
MÃE (Para si própria): Uma beleza de garoto. Se dez por cento... Não, cinco por
cento... Por uma dádiva divina... (Dirigindo-se ao filho, mas sem olhar para ele
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diretamente. Observa o ambiente.) Você não devia falar assim, ele é seu amigo
desde o jardim de infância. Uma ótima influência. Saudável, esportivo, valente...
DANI: De onde você tirou essas coisas? Você estuda com ele?
MÃE (Como se falasse para uma plateia, ou um júri, sem se dirigir ao filho): Quando
você nasceu, eu já tinha trinta anos de idade. Trinta, meu filho! Quando você ainda
vai com a farinha... Além disso, você sabe muito bem que eu fiz dois anos de
Psicologia, eu tenho muito traquejo para observar o comportamento humano.
Pedrinho é um menino... Ele não podia ser mais... E eu aproveitei esse nosso
encontro por acaso e perguntei como você estava se saindo na escolinha de futebol.
DANI: Agora você pergunta ao Pedrinho sobre a minha vida! Por que não pergunta
direto pra mim?
MÃE: Mas é de um cinismo... Você age como... Nessa hora você parece adulto!
Você sabe muito bem o que o Pedrinho me contou.
DANI: O Pedrinho é o aluno mais burro da minha turma. Outro dia foi com uma meia
de cada cor pra escola. Deve ter falado uma porção de besteira pra você.
MÃE: Por favor, Dani, eu não vou gastar minha energia com esse tipo de joguinho...
Não sei de quem você herdou essa desfaçatez, essa capacidade quase criminosa
de dissimulação... (Vira-se para o filho, incisiva.) O Pedrinho me disse que faz três
semanas que você não põe os pés na escolinha de futebol! Você vai ter coragem de
negar isso, olhando bem na minha cara?
Dani não responde e abaixo o rosto. A mãe belisca-o com força e irritação.
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MÃE: Eu sou a mãe mais liberal do mundo, agora, a mentira! Onde é que você anda
se metendo, hein? Com quem você anda se metendo, pra faltar três sábados
seguidos à escolinha? Com essa idade, você já está se perdendo pelas sarjetas da
cidade, Deus sabe em que submundos...
DANI: Eu não me meto com ninguém em lugar nenhum. Eu não saí de casa.
MÃE: Parece que não tem limite para as suas provocações... Você acha que eu ia
ser desatenta a ponto de nem notar que você não saiu?
DANI: Acho. Você não notou mesmo.
MÃE (Desculpando-se rapidamente, para si própria): Se eu pudesse fazer
diferente... Aquela loucura de sempre, sábado de manhã... Visitar a parentada toda,
minhas irmãs, minhas tias... O esteio da família... (Virando-se para o filho) Não vem
tentar me culpar, não, Dani! Virar o jogo! A questão é que eu confiava em você.
Como é que eu ia imaginar que... Acabou! A partir de agora eu vou deixar você na
porta da escolinha. Que nem uma criança de sete, oito anos. Porque é isso que você
quer. Eu ainda lembro das aulas da faculdade... E vou te buscar na saída!
DANI: Acontece que eu não gosto da escolinha. Eu acho um saco aquilo. E eu não
gosto de futebol. Nunca gostei, e nunca vou gostar.
MÃE: Agora você se acha no direito de gostar ou não gostar das coisas! Eu sei que
você é um garoto que nem... Você quer me fazer acreditar que é especial, mas você
é igual a todo mundo! Qualquer garoto da sua idade gosta de... A originalidade não
corre no sangue da nossa família, Dani, ninguém graças a Deus nunca sofreu desse
mal...
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DANI: Aquilo não tem nada a ver comigo. Nada! Todo mundo ali é que nem o
Pedrinho, de uma burrice que... Eu gosto de... Você sabe... Eu gosto de escrever, de
desenhar, de pintar, de inventar histórias. Você sabe... E o papai também... Eu já
disse que eu queria fazer uma escola de artes. Minha turma é outra.
MÃE: Como se fosse um adulto, com livre arbítrio... Sua turma é outra... O que você
quer me dizer é que sua turma é... A turma dos artistas! Ou seja, a turma dos porra
loucas, das bichas e dos maconheiros... É essa a gente que você quer procurar?
Você pode, Dani. Mas só depois de passar por cima do meu cadáver carbonizado e
esquartejado! Você está na idade de viver em ambientes sadios! Se depois, quando
for adulto, você quiser se misturar com a bandalheira, você se mistura, faz o que
bem entender da sua vida. Eu vou sentir um desgosto... (Procura a palavra
adequada e encontra, apontando para sua barriga) Visceral. Mas não vou poder
fazer nada. Adultos fazem essas coisas. Mergulham em poços sem fundo. Só que...
Enquanto estiver sob a minha responsabilidade, você vai continuar indo naquela
escolinha de futebol, todos os sábados! Ainda tem quase um ano de matrícula, e
você vai ficar lá até terminar. Isso não é negociável.
DANI (Quase derrotado): O papai disse que não tinha nada demais, eu fazer uma
escola de artes, de desenho...
MÃE (Começa a se afastar): Sábado que vem, às dez em ponto, a gente sai. O
assunto... (Nem termina a frase.)
A mãe sai de cena. Dani, furioso, atira os bonecos Playmobil em sua direção, ao
som de “God Save the Queen” dos Sex Pistols. Blecaute.
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SEQUÊNCIA 2- É A ORDEM NATURAL DAS COISAS
Elevador. Dani entra vestido para ir para a escola e lá encontra seu vizinho, o
Coronel Ivanir.
CORONEL: Bom dia, Dani.
DANI (Distante): Bom dia, Coronel.
CORONEL: Por que você me chama de coronel?
DANI: Meus pais chamam o senhor assim.
CORONEL: Mas nós somos amigos. Pode me chamar de Ivanir. Além disso, eu já
passei para a reserva. Faz mais de um ano que eu não ponho os pés num quartel.
Essa história de coronel, de comando... Agora eu sou um homem livre. Sem títulos.
Dani e Ivanir. De igual para igual.
DANI (Constrangido): Tá bom.
O Coronel Ivanir estende a mão para Dani, que aperta relutantemente. Saem do
elevador. Dani começa a se afastar.
CORONEL: Dani! (Dani se volta.) Não precisa ter medo de mim, ouviu? Nós somos
amigos. Mesmo!
O Coronel sai de cena. Dani começa a andar rápido e depois a correr. Mudança de
luz. Ele está na sala de aula. Barulho de algazarra de crianças. Senta-se ao lado de
Pedrinho, que está de pé, atirando bolinhas de papel nos colegas. Entra a
Professora, acompanhada de Alessandra.
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PROFESSORA: Meninos, silêncio! Silêncio! SILÊNCIO! (O ruído diminui e faz-se
silêncio.) Eu quero apresentar a vocês a Alessandra, nossa nova colega.
Dani fica de alguma forma impactado por Alessandra. Não consegue tirar os olhos
dela.
PEDRINHO (para Dani): Baranga.
PROFESSORA: Eu quero que vocês recebam muito bem a Alessandra. Que ela seja
acolhida como se estivesse estudando com vocês desde o início do ano. Vocês
precisam aprender a se colocar no lugar dos outros! A Alessandra morava antes em
São Paulo e ainda não conhece ninguém na cidade. Ela tem que se sentir em casa,
aqui. Com vocês.
PEDRINHO: Na minha família dizem, “paulista, nem a prazo, nem à vista”.
PROFESSORA: Pedrinho! Que modos são esses? Quer levar outra suspensão?
PEDRINHO: Foi mal, fessora. Brincadeirinha.
PROFESSORA: Brincadeira fora de hora, como sempre! Alessandra, agora vai
sentar ao lado do Daniel, aquele menino ali. Ele é um rapaz muito educado e gentil...
PEDRINHO (Debochado): Ui-ui-uiiiii....
PROFESSORA (Ignorando): ...E vai ser uma boa companhia para você nesses
primeiros dias.
Alessandra senta-se ao lado de Dani. Os dois se olham, entre estranhamento e
interesse. Ouve-se em off a voz do pai de Dani cantando a canção em íidiche “Bai
Mir Bistu Shein”. A Professora e Pedrinho saem de cena. Dani e Alessandra
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continuam se examinando. O pai entra em cena, mas fica no fundo. À medida que se
aproxima, Alessandra deixa a cena.
PAI: Bai mir bistu shein... Bai mir hos tu hein ... Bai mir bistu einer oif der velt... Bai
mir bistu shein... Bai mir hostu hein... Bai mir bistu taierer fun gelt... Fil sheine
meidlekh hobn gevolt nemen mir...Un fun zei ale oisgeklibn hob ikh nor dikh.
(Tradução aproximada: Para mim, você é linda; Para mim, você é charmosa; Para
mim, você é única no mundo; Para mim, você é linda; Para mim, você é charmosa;
Para mim, você vale mais do que o dinheiro; Muitas belas garotas me queriam como
marido, mas entre todas elas escolhi somente você).
Dani observa a cantoria do pai, entre enlevado pelo conhecimento de Alessandra e
entretido com a performance.
PAI: Dani, a gente precisa conversar sério. Senta aqui.
DANI: Eu já levei um monte de bronca, não precisa vir...
PAI: Sossega e ouve, garoto! Não é nada de bronca... (Atrapalha-se) É um
assunto... Coisa de pai para... Ouve bem, meu filho... Dani, você não é mais
criança...
DANI: Como não sou mais criança, pai? Eu sou o quê, então?
PAI: Você ainda não é adulto, com certeza, nem exatamente um adolescente... Não
sei bem dizer, mas criança você já deixou de ser.
DANI: Ah, é? Quando? Que dia?
PAI: O fato, Dani, o fato incontestável é que, não demora muito, você vai completar
treze anos.
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DANI: Demora muito sim! É só no ano que vem!
PAI: Você sabe muito bem que nós somos judeus muito liberais, pouco praticantes...
DANI: Pouco praticantes? Nós somos uns esculhambados! A gente come carne de
porco dia sim, dia não! Pai, a gente come feijoada... No sábado!
PAI: Não é isso que mede o vínculo de uma pessoa com sua religião, sua cultura,
Dani. Nós não somos os judeus mais ortodoxos do mundo, mas tem certas coisas
que é importante respeitar. Meu filho, no ano que vem você completa sua
maioridade religiosa. É uma data muito importante, muito simbólica, e você precisa
se preparar para isso...
DANI: E quem disse que eu quero ter maioridade? Eu tô muito bem do jeito que eu
tô!
PAI: Você sabe muito bem que não é uma questão de escolha, Dani. Com treze
anos, você passa a ser considerado um adulto para a religião judaica, com direitos e
deveres.
DANI: Eu só vou ser maior com 18 anos, que nem todo mundo.
PAI: Escuta, meu filho... É porque você foi criado muito longe da religião, então você
não sabe... O bar-mitzvá é uma cerimônia muito bonita, a gente vai convidar toda a
família, todos os amigos... Vão colocar você numa cadeira e te carregar, como um
príncipe!
DANI (Algo mexido): Como um príncipe?
PAI: Nesse dia, você vai ser mais do que um príncipe, vai ser o centro de todas as
atenções. E vai ganhar muitos presentes, os presentes mais legais que você já
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ganhou na vida! Tudo o que você sempre sonhou, você vai ganhar nesse dia. Pelo
menos, quase tudo...
DANI: E eu preciso fazer o quê?
PAI: Nada! Aí é que está, Dani, você não precisa fazer praticamente nada! Você só
precisa aprender a ler uns troços em hebraico, que você vai decorar... Você vai ter
mais de um ano para se preparar, é muito fácil. A gente vai arrumar um professor
bacana pra você. E é só isso, você lê esses troços na sinagoga e depois a gente faz
uma baita festa, você pega os seus presentes e volta para casa. E com isso você
vira um adulto, para a nossa religião.
DANI: Não! Pai, não dá! Como é que eu vou virar adulto com treze anos?
PAI: Qual é o seu problema, Dani? Todo mundo passou por isso! Eu passei, os seus
avôs passaram, os seus tios passaram, os seus priminhos vão passar daqui a
alguns anos... É a ordem natural das coisas!
DANI: Não tem nada de natural em virar adulto com treze anos, pai! Eu não quero!
PAI: Meu filho, você não vê que o tempo está passando, que o seu corpo está se
transformando... (Toca no buço de Dani) Olha aqui, já começam a aparecer os fios
do seu bigode! Isso é coisa de criança, por acaso?
DANI (Afastando a mão do pai): Pai, para! Eu não quero ter que jogar minha infância
toda no lixo, de uma vez!
PAI: Ninguém joga nada fora, meu filho, a gente sempre guarda muita coisa... Você
vai ver. A vida vai passando, a gente vai queimando etapas, algumas coisas ficam,
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outras a gente deixa de lado, tem coisas novas que a gente ganha... (Quase
amargo.) Todo dia. A gente morre um pouco, mas também renasce um pouco...
DANI: Não, pai! Eu não quero morrer nada! Nem um pouco!
PAI: E o bar-mitzvá também entra nesse grande fluxo da nossa vida. É um rito de
passagem muito civilizado, que não dói, não arranca pedaço...
DANI: Claro! O que tinha pra arrancar, vocês já arrancaram quando eu tinha oito
dias!
PAI: Todo mundo espera que, nessa idade, você já possa assumir algumas
obrigações... Por exemplo, você sabia que qualquer cerimônia judaica só começa
com um minian, com o quórum de dez homens que já tenham feito bar-mitzvá? Você
passa a contar, Dani! Consegue entender a dimensão disso? É um troço bacana,
bacana pacas!
DANI: Pai, quantas vezes por ano você vai à sinagoga?
PAI: Eu? Olha, depende...
DANI: Depende nada! Você só vai à sinagoga em casamento!
PAI: Em bar-mitzvá também.
DANI: Você e a mamãe são dois judeus de araque! Nunca me ensinaram nada
sobre a religião, nunca seguiram nenhum costume... E agora querem me enfiar
goela abaixo essa história de maioridade!
PAI: Dani, você não gostou da ideia de ser o centro das atenções, de dar uma festa
de arromba...
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DANI: Eu quero ser o centro das atenções como um escritor ou um pintor ou um
desenhista, mas não porque eu decorei uns troços em hebraico e porque de uma
hora pra outra todo mundo vai achar que eu virei... (Não completa a frase.)
PAI: Meu filho, você sabe que eu nunca impus nada a você. Por mim, se você não
quiser fazer o seu bar-mitzvá, não é um problema. Você pode até fazer mais tarde,
se quiser... Agora, você fique sabendo que a sua mãe, e o resto da família...
DANI: Pai, eu não quero saber disso agora. Eu tenho outras coisas na cabeça.
Posso contar contigo?
O pai olha longamente para Dani. Levanta-se e sai cantando trechos de “O Mundo é
um Moinho”, de Cartola.
PAI: Ainda é cedo, amor... Mal começaste a conhecer a vida... Já anuncias a hora de
partida... Sem saber mesmo o rumo que irá tomar... Ouça-me bem, amor... Preste
atenção, o mundo é um moinho... Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos... Vai
reduzir as ilusões a pó.
Blecaute.
SEQUÊNCIA 3- VOCÊ NÃO TEM ESCOLHA
Alessandra está sentada sozinha, comendo um sanduíche. Dani aproxima-se.
Carrega também um lanche.
DANI: Posso sentar com você?
Alessandra indica com os ombros e a cara que tanto faz.
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DANI: Você prefere que te chamem como? Alê ou Sandra?
ALESSANDRA: Meu nome é Alessandra.
DANI: É comprido.
ALESSANDRA: Em São Paulo todo mundo conseguia pronunciar.
Silêncio.
DANI: Minha mãe disse que São Paulo é o lugar mais feio que ela já viu na vida.
Silêncio.
ALESSANDRA: Onde eu morava não era feio. Era uma casa, grande. Tinha verde.
Tinha flor. Ficou tudo lá. Aqui a gente mora num apartamento. Com vista pra outro
apartamento.
DANI: Por que você veio pra cá?
ALESSANDRA: Trabalho do meu pai.
DANI: Você não tá gostando então...
ALESSANDRA: De nada. Da cidade, da escola, dos colegas...
DANI: Caraca! Mas você acabou de chegar...
ALESSANDRA: Já deu pra sacar... E eu ouvi o que aquele garoto que senta do seu
lado falou.
DANI: Não liga pro Pedrinho não. Ele só é um pentelho babaca.
ALESSANDRA: Então, por que você é amigo dele?
DANI: A gente estuda juntos desde o jardim de infância.
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Silêncio.
ALESSANDRA: Você veio falar comigo porque tem pena de mim?
DANI: Eu tenho um pouco de pena de você. Mas não foi por isso que eu vim.
Silêncio.
DANI (Oferece um chocolate): Quer?
ALESSANDRA: O que é isso?
DANI: Um chocolate novo. Lollo. Você não viu a propaganda?
ALESSANDRA: Não... Não quero.
Silêncio. Dani levanta-se.
DANI: Eu tô indo então.
ALESSANDRA: Tá bom.
Dani começa a se afastar.
ALESSANDRA: Daniel!
Dani se volta.
ALESSANDRA: O meu chocolate preferido é o Prestígio.
Silêncio.
DANI: Todo mundo me chama de Dani.
Afasta-se. Alessandra sai de cena. À medida que caminha, Dani começa a esboçar
um sorriso. Está nesse estado quando se encontra novamente com o Coronel Ivanir.
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CORONEL: Oh! Bom dia, Dani, que boa surpresa te encontrar!
DANI: Bom dia.
CORONEL: Qualquer dia desses, eu não te reconheço mais! Você está crescendo
muito rápido.
Dani não reage.
CORONEL: Já começam a aparecer os pelinhos do bigode... E daqui a pouco vão
aparecer pelos em muitas outras partes do corpo... Se é que já não apareceram!
(Dani cada vez mais contrariado.) É assim mesmo, enquanto o homem não evoluir,
vão continuar aparecendo pelos no nosso corpo. Pra gente não esquecer que
descende dos macacos. Mas, Dani, não precisa ter vergonha de mim, de jeito
nenhum! Eu passei mais de quarenta anos no Exército, a coisa que eu mais vi nessa
vida foi homem pelado. (Mais constrangimento, alguma perturbação com a
referência.) De todos os tipos que você possa imaginar. Olha, essa é uma fase em
que a gente fica muito confuso, às vezes acontecem coisas que a gente não
entende muito bem, com o nosso corpo, com a nossa cabeça... E, claro, a gente tem
vergonha de falar com os outros! Com os pais, então, imagina! Por isso, se você
tiver qualquer questão, qualquer dúvida... Por exemplo, alguma alteração no seu
corpo que você não esperava... Quando eu tinha mais ou menos a sua idade, eu me
lembro que... (Toca os próprios mamilos) Os mamilos. Ficaram duros. Parecia que
tinha um caroço aqui. Eu não entendia nada, porque aquilo acontecia comigo... Só
depois eu descobri que era normal. Nessa idade, mudam muitas coisas mesmo, e
muito rápido! Quando acontecer com você, Dani, pode falar comigo, viu? Pode me
mostrar o que você quiser, sem nenhum constrangimento. Mesmo que seja... Numa
parte muito íntima. Onde nem você mesmo tenha coragem de olhar... Ou de tocar.
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Eu conheço muito bem o corpo masculino. E a gente é amigo de verdade! Não
precisa ter vergonha. Estamos combinados?
Dani não responde nada e se afasta.
CORONEL (Rindo): Ele ainda tem vergonha! É natural... Não se preocupa, não, isso
vai ser o nosso segredo. Não é bom ter um segredo, que a gente esconde dos pais?
Só nosso? Hein, Dani?
Dani corre. A trilha sonora é “Primary”, do The Cure. Está agora em seu quarto. Abre
a caixa com seus Playmobil. Chega a segurar alguns bonecos, mas coloca-os de
lado. Tira a camisa e para diante de um espelho. Examina seus mamilos. Está nisso
quando entra sua mãe.
MÃE: Dani! Quer pegar um resfriado? Coloca sua camiseta, tá fazendo 19 graus
hoje!
DANI: Já te disse pra não entrar no meu quarto assim!
MÃE: Até parece que tem alguma coisa demais aí pra eu ver. Mas você tem razão...
Você tá virando homenzinho, a coisa começa a ficar um pouco diferente... Aliás, é
sobre isso mesmo que eu vim conversar com você.
DANI: Iiiiiiih...
MÃE: Eu vim aqui em missão de paz, Dani. Trouxe até uma bandeira branca (Tira
um lenço branco do bolso).
DANI: Putz...
MÃE: Eu vim te dizer que na próxima segunda-feira você começa suas aulas de
preparação para o bar-mitzvá.
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DANI: Eu já falei disso com o papai. O assunto tá encerrado.
MÃE: Ah, claro, se a Suprema Corte diz que o assunto está encerrado, quem sou eu
para... Dani, você quer enganar a si próprio? É isso? Você sabe muito bem que... Na
verdade, o seu pai cometeu um erro grave, dando a entender a você que isso era
uma questão de escolha.
DANI: Não, mãe. Chega! Chega de me obrigar a fazer coisas que eu não quero!
Escolinha de futebol, agora essa bosta de aula de religião...
MÃE: Pode falar palavrão, meu filho, minha geração não se importa mais com isso...
Mas vamos ser precisos. Não é uma aula de religião. Ninguém vai impor nenhuma
educação religiosa a você, até porque você sabe que eu e seu pai... É outra coisa
que está em jogo. É a preparação para um ritual, uma cerimônia, que vai acontecer
uma vez na sua vida e basta. E essa cerimônia é importante para mim, para minha
família... E é importante para você também.
DANI: Não tô interessado.
MÃE: Você não tem nenhuma margem de escolha, Dani. Esse vai ser seu primeiro e
único contato com a religião. Depois disso, você vai ser maior e pode fazer o que
bem entender. Até se converter a outra religião, a uma seita, o que você quiser.
DANI: Vou me converter agora mesmo. Acabar logo com esse pesadelo.
MÃE: Dani, eu passei os últimos dias atrás de um bom professor, aliás, de um
professor sob medida pra você. Eu tenho certeza que você vai gostar dele. Ponho
até minha mão no fogo.
DANI: Pode enfiar a cabeça junto.
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A mãe perde a paciência e belisca Dani com toda a força.
MÃE: Era isso que você queria? Me tirar do sério? Pois conseguiu! Eu cheguei aqui
na maior calma, na maior diplomacia, tentando me entender com você, e o que você
faz? Hein?
DANI: Eu odeio você! Odeio!
MÃE: A gente sempre odeia quem quer o nosso bem! Isso é mais velho do que
andar pra frente. Hoje você me odeia, quer que eu enfie a cabeça no forno, mas
daqui a uns vinte anos, você vai me agradecer. E no dia em que eu morrer, ah, Dani,
você vai sentir tanta culpa! Mas tanta culpa! Segunda-feira às quatro o professor
vem aqui. E faz favor de tratar ele direito, é um rapaz muito educado, muito fino.
DANI: Rapaz?
MÃE: É, Dani, eu arrumei um professor jovem, moderno, com uma cabeça arejada
pra você! Eu podia ter me contentado com aqueles sujeitos arcaicos, com a barba
até o joelho, aquela roupa escura, fedendo a azedo, com uma visão de mundo bem
rígida, aqueles métodos de ensino medievais, ah, Dani, um daqueles sujeitos que
iam te tratar com a dureza que você merece! Mas não, eu me dei ao trabalho de
catar um professor prafrentex, porque eu sabia que se não fosse assim você ia
espernear, e resistir, e transformar a vida de todo mundo nessa casa num inferno
ainda maior do que ela já é! E qual é a recompensa? Você diz que quer me ver
morrendo queimada! Queimada! Como na Inquisição!
DANI: Eu não falei isso...
MÃE: Ah, agora tá se sentindo culpado, é? Pelo menos isso... Chega de conversa
mole, já perdi tempo demais com você. (Para si própria.) Pedagogia! Da próxima
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vez... (Volta-se para Dani.) E vê se veste logo essa camiseta, que eu não quero
comprometer nosso orçamento apertado desse mês gastando remédio com você.
A mãe sai de cena. Dani pega seus bonecos Playmobil e ameaça jogá-los
novamente na direção da mãe, como na cena anterior. Mas detém-se. Constata que
a mãe deixou cair o lenço branco. Ele coloca os bonecos dentro do lenço e prepara
um embrulho, como se fosse uma grande mortalha. Dirige-se a um canto da cena,
como se fosse jogar fora o embrulho, mas hesita. Ouve-se a voz de seu pai,
cantando o trecho final de “Segredo”, de Herivelto Martins:
PAI: Quando o infortúnio nos bate à porta... E o amor nos foge pela janela... A
felicidade para nós está morta... E não se pode viver sem ela... Para o nosso mal,
não há remédio, coração... Ninguém tem culpa da nossa desunião... (Já em cena,
percebendo a presença de Dani) Ah, você está aí, Dani? Que embrulho é esse?
DANI: Lixo.
PAI: Me dá que eu coloco na lixeira. Estou de saída.
DANI: Não precisa.
PAI: Que cara é essa, meu filho?
DANI: Você me traiu, pai. Eu confiei em você, e você me traiu. Eu disse que não
queria essa história de bar-mitzvá e você não fez nada pra convencer a mamãe.
PAI: Muito pelo contrário, Dani. Eu fiz tudo o que estava ao meu alcance. E eu não
prometi nada a você. Eu avisei que ia ser difícil.
DANI: Por que você é tão banana, pai? Por que a sua opinião não conta pra nada,
nunca?
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PAI: Se eu mesmo soubesse qual é a minha opinião... Meu filho, você está fazendo
uma tempestade num... Olha. Escuta. Eu conheci o seu professor. Eu duvido que
você não vá gostar dele. Não tem como. Vai por mim. Alguma vez eu menti pra
você? No final das contas, você vai achar um troço bacana pacas. E vai nos
agradecer por a gente não ter cedido a esse seu capricho de criança mimada
(Aproxima-se de Dani e beija sua testa.) E põe sua camiseta, que está batendo uma
brisa bem fresca por aqui.
DANI: Aonde você vai?
PAI: Quinta-feira, Dani. Esqueceu? Ela escolheu um filme policial, deve ser uma
chatice daquelas... Por mim eu ficava em casa, hoje vai passar “Dona Flor e seus
Dois Maridos” na TV!
DANI: Que filme é esse?
PAI: Dani! Você nunca ouviu falar? Aquele filme com a Sônia Braga! A Dona Flor,
ela era casada com um sujeito muito malandro, muito boêmio, aí o sujeito morre de
repente e ela casa de novo com um cara super quadradão, o oposto do primeiro
marido... Só que o fantasma do primeiro reaparece e passa a perturbar a vida dela!
DANI: Pô, história boba pra caramba...
PAI: E o fantasma só aparece pelado. E Só a Dona Flor consegue ver.
DANI: Mas vão mostrar ele pelado na televisão?
PAI: Ah, meu filho, hoje em dia esse negócio de censura não é mais como
antigamente... Deixa eu ir lá, senão me atraso. A mamãe deixou seu jantar na
geladeira, é só esquentar, como eu te ensinei.
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DANI: Tá bom...
Dani espera o pai sair, guarda o embrulho com seus Playmobil e liga a TV, bastante
ansioso. Ele assiste ao que passa, com bastante impaciência, muda de posição
várias vezes, vai reagindo às cenas. A trilha sonora é “One Way or Another”, de
Blondie. De repente a música para e Dani arregala os olhos. Atenção máxima. Entra
em cena, passando na frente de Dani, uma representação de Vadinho, um homem
nu, cobrindo as partes com as mãos. Ele canta só o verso “O que será, que será... O
que será, que será...”, de “À Flor da Pele”, de Chico Buarque, repetidamente, até sair
de cena. Dani acompanhará seus movimentos, tentará ver seu sexo coberto pelas
mãos, inutilmente. O homem sai de cena.
DANI (Para o público): Nada...
Blecaute.
SEQUÊNCIA 4- COMEÇA UMA VIAGEM IMPORTANTE
Dani está sentado, comendo seu lanche. Aproxima-se Alessandra e senta-se a seu
lado. Não fala nada.
DANI: Você não come nada?
ALESSANDRA: Já comi. Eu como pouco. Tô controlando meu peso.
DANI: Você não é gorda.
ALESSANDRA: Mas eu era. Eu era baranga mesmo.
DANI: Hoje você não é mais.
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ALESSANDRA: Você acha isso de verdade, ou é porque você é um carinha legal?
DANI: De onde você tirou que eu sou um carinha legal?
ALESSANDRA: Dá pra ver.
DANI: E não dá pra ver também que eu não acho você baranga?
ALESSANDRA (Silêncio): Desculpa. Eu não tô acostumada.
DANI: Nem eu.
ALESSANDRA: Também dá pra ver. (Silêncio.) Você já beijou alguém?
DANI: Você quer dizer na boca?
ALESSANDRA: Lógico.
DANI: Claro! Que não...
ALESSANDRA (Sorri contidamente): Eu já imaginava. (Silêncio) Quer me beijar
agora?
DANI: Aqui?
ALESSANDRA: Não, Pedro Bó. A gente vai ser teletransportado pruma ponte em
Paris.
DANI: Aqui não dá. Tem gente olhando.
ALESSANDRA: E daí? Você tem medo? Ou é vergonha?
DANI: Vai dar confusão. Vão falar. No cinema? Começou um filme que dizem que é
legal, do Indiana Jones.
ALESSANDRA: No cinema? Que nem uma piranha?
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DANI: Caraca! De onde você tirou essa?
ALESSANDRA: Eu quero beijar de luz acesa, ao ar livre... Não quero esse negócio
de escuro, não preciso me esconder de ninguém. É agora ou nunca, meu filho.
DANI: Você é difícil assim, sempre?
ALESSANDRA: E você é crianção assim mesmo ou só finge, pra eu ficar ainda mais
interessada em você?
Levanta-se.
ALESSANDRA: Bye, bye, baby boy.
DANI: O quê?
ALESSANDRA: Achei que você tivesse pelo menos noções básicas de inglês. Tô
indo.
DANI: Peraí. (Tira um chocolate Prestígio do bolso.) Trouxe pra você.
ALESSANDRA: Hoje, não.
DANI: Putz...
Alessandra parte. Dani algo perplexo. Mudança de luz. Ouve-se a voz de sua mãe
em off.
MÃE (Off, continuando uma conversa): E pra piorar, minha família toda tem histórico
de diabetes e de problemas cardíacos. E esse médico que me indicaram... A
questão é que ele é jovem demais, não inspira confiança, sabe? (Entra em cena,
sozinha.) Dani, você tá vestido? Queria te apresentar ao Yoni, o seu professor de
bar-mitzvá. Entra, Yoni, por favor.
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Yoni entra em cena. É um homem jovem e muito bonito, usando um discreto quipá.
Dani fica impressionado e surpreso.
YONI: Olá, Dani. Muito prazer.
DANI: Prazer...
MÃE: O Dani é muito questionador, quer saber o porquê de tudo... Acho que, pelo
seu perfil, vocês vão se dar bem. Se fosse um daqueles professores tradicionais, ia
se irritar com ele logo na primeira aula.
YONI: Você pode perguntar o que quiser, Dani. Questionar faz parte da melhor
tradição judaica. Aliás, é muito comum um judeu responder a uma pergunta com
outra pergunta.
DANI: E por quê?
MÃE: Olha, não falei? Dani, não vai esgotar todas as energias do professor de uma
vez! Eu vou deixar vocês aqui, ainda tenho muito o que fazer.
YONI: Pode ficar tranquila.
(A mãe sai de cena. Os dois ficam frente a frente. Dani entre desconfiado e
impressionado com Yoni.)
DANI: Você se chama Yoni? Pra mim, isso era nome de mulher...
YONI: Yoni é meu apelido. Meu nome é Yonatan.
DANI: Nunca tinha ouvido.
YONI: Em português seria Jônatas. Você já deve ter ouvido pelo menos a versão em
inglês, que é Jonathan.
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DANI: Já. O cara do “Casal 20” se chama Jonathan Hart.
YONI: Yonatan, Jônatas ou Jonathan é um personagem da Bíblia, da história
judaica. Pelo que seus pais me contaram, você não sabe muita coisa sobre esses
assuntos...
DANI: Eu tô estudando História na escola, mas ninguém me ensinou nada sobre
isso.
YONI: Nem vão ensinar. Pelo menos não nessa escola onde você está... Yonatan
era filho de Saul, o primeiro rei dos judeus, e foi o grande amigo do Rei David. Um
belo exemplo de lealdade, de companheirismo, de dedicação ao próximo... Segundo
o livro de Samuel, Yonatan amava a David como a si próprio.
DANI: Tanto assim?
YONI: Amar ao próximo como a si próprio é um dos preceitos da nossa religião,
Dani. Está bem claro no Vaicrá, o Levítico. E quando Yonatan morreu, David compôs
uma elegia dizendo que o amor que sentia por ele era mais maravilhoso que o amor
das mulheres.
DANI (Intrigado): Pô... Isso tudo tá na Bíblia?
YONI: Sim, tudo isso está no livro de Samuel. Faz parte de um conjunto chamado
Neviim, os livros dos profetas. E você deve saber, pelo menos, que seu nome
também é de um herói da Bíblia?
DANI: Tão burro assim eu não sou... Sabe que meu pai queria que eu me chamasse
David... Era o nome do avô dele. Mas minha mãe preferia Daniel e aqui em casa
quem manda é ela... Já percebeu, né?
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YONI (Sorri): Eu também fui criado por uma mãe judia. Mas às vezes as aparências
enganam, Dani. É possível exercer outras formas de poder, menos visíveis... E às
vezes mais eficientes.
DANI: Quem dera... Foi ela quem me empurrou essa história de bar-mitzvá.
YONI: Eu sei das suas resistências. Mas no final do seu aprendizado, eu tenho
certeza que você vai gostar e vai até agradecer à sua mãe por ter insistido.
DANI: Então, eu vou poder escolher qualquer pedaço da Bíblia para ler no dia? Tipo,
posso escolher a história de David e Yonatan, se eu quiser?
YONI: Não, Dani, para início de conversa, você vai ter de ler um trecho da Torá, um
dos cinco primeiros livros do Velho Testamento. A história de David não faz parte
dela. Depois, você não pode escolher o trecho que você vai ler. Tem que ser a
porção que corresponde ao período do seu aniversário.
DANI: Saco...
YONI: Não reclama, você deu sorte. Na época do seu bar-mitzvá, a parashá, a
porção semanal de leitura da Torá, vai ser uma história muito interessante. Você vai
ler um pedaço do segundo livro, que se chama Shemot. Em português, Êxodo.
DANI: Peraí, pô, é muito nome de uma vez só!
YONI: A gente vai ter tempo, fica calmo. O importante é você saber que vai ler um
pedaço da história de Moisés e da peregrinação do povo judeu do Egito para Canaã,
a Terra Prometida. É a viagem mais importante da nossa História, onde nasceram
nossas principais leis, nossos mandamentos. Você também está começando uma
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viagem importante na sua própria vida, Dani, a viagem rumo à sua maioridade, então
vai ser muito inspirador para você poder ler e entender esse texto.
DANI: Você é bom de lábia, né, Yoni? Convenceu minha mãe e agora quer me
convencer também...
YONI: Eu sei que você é um rapaz muito inteligente e sensível. Não vai ser uma
pregação no deserto.
DANI: E você sabe aonde eu vou chegar nessa tal viagem?
YONI: Eu acho que toda viagem tem um componente de imprevisível. A gente vai
descobrindo as coisas pelo caminho. A única coisa que eu posso te garantir é que
vou estar do seu lado nesse percurso. Fechado?
Yoni estende a mão para Dani, que a aperta sem responder nada, intrigado com
essa nova presença em sua vida. Blecaute.
SEQUÊNCIA 5 – UMA ABOMINAÇÃO
Dani e a Mãe entram no elevador. Ali está o Coronel Ivanir.
MÃE (Entusiasmada): Ah, bom dia, Coronel Ivanir!
CORONEL: Bom dia, Dona...(Disfarça que não lembra ou sequer sabe do nome dela
e emenda rápido com o cumprimento a Dani.) Bom dia, Dani.
Dani não responde nada. Está obviamente incomodado com a presença do Coronel.
MÃE: Responde, garoto! Que falta de educação é essa?
DANI: Bom dia.
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MÃE: O senhor me desculpe, Coronel, às vezes ele fica tímido... Coisas da idade!
CORONEL: Não precisa se preocupar. O Dani e eu nos entendemos bem. Se eu
tivesse um filho, queria que fosse igualzinho a ele. Mas a providência divina encheu
minha casa de mulheres... Três filhas e agora nasceu minha primeira neta.
MÃE: Ah, que alegria, Coronel! Parabéns! E é muita gentileza sua dizer que gostaria
de ter um filho como o Dani. Quem sabe ele não se inspira no senhor e resolve
seguir carreira militar? Imagina só, que orgulho, ter um coronel, um general na
família...
CORONEL: Quem sabe... Não é, Dani? A senhora sabe que eu estou sempre à
disposição.
MÃE: Ah, Coronel, que bom ouvir isso...
O elevador chega ao destino. Despedem-se com sorrisos, cada um vai para o seu
lado.
MÃE: Que negócio é esse de ficar de cara feia pro Coronel?
DANI: Eu não gosto dele.
MÃE: Ah, agora você se acha no direito de gostar ou não gostar das pessoas? Me
diz uma coisa: quando chegar a hora, você vai querer servir ao Exército?
DANI: Óbvio que não.
MÃE: E quem você acha que vai ser o nosso pistolão pra te tirar de lá? Hein?
Porque eu não conheço ninguém, e seu pai muito menos! A gente tem muita sorte
de ter o Coronel como vizinho, e mais ainda dele simpatizar com você. Mas, claro, o
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principezinho tem os seus caprichos, se dá ao luxo de gostar ou não gostar das
pessoas assim, aleatoriamente... Anda, corre pra escola, que você já está atrasado!
Dani corre. A mãe sai de cena. Mudança de luz. Na escola. Alessandra está
sentada, com cara de tédio. Dani aproxima-se.
DANI (Entregando-lhe um papel): Toma. Trouxe pra você.
ALESSANDRA: Que desenho bonito! Foi você que fez?
DANI: Não, Pedro Bó, peguei todo o dinheiro da mesada e fui numa galeria comprar
pra você.
ALESSANDRA: Palhaço. Não sabia que você desenhava tão bem.
DANI: Eu queria fazer uma escola de artes pra desenhar ainda melhor, mas minha
mãe não deixa.
ALESSANDRA: Sua mãe é que nem meu pai. Gosta de mandar. Seu pai faz o quê
da vida?
DANI: Corretor de imóveis.
ALESSANDRA: Só?
DANI: E cantor frustrado. Por quê? Seu pai faz o quê?
ALESSANDRA: Engenheiro, com pós graduação nos Estados Unidos.
DANI: Grandes merdas. Na hora de morrer vai virar pó, que nem meu pai.
ALESSANDRA: Tá cheio de respostinhas hoje.
DANI: Você fica provocando. E eu ainda trouxe um presente pra você.
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ALESSANDRA (Olhando o desenho): Ele é lindo. (Pega na mão de Dani.) Obrigada,
Dani. Adorei.
DANI: Você é esquisita.
ALESSANDRA: Eu sei. Você viu como a escola tá vazia hoje?
DANI: Claro, amanhã é feriado. Todo mundo enforcou. Só os manés que nem nós
apareceram.
ALESSANDRA: Agora não tem ninguém aqui. Ninguém tá vendo a gente.
DANI: Eu sei.
ALESSANDRA: Então...
DANI: Então o quê?
ALESSANDRA: Qual é a sua desculpa pra não me beijar?
Dani e Alessandra aproximam os rostos e trocam um beijo de boca fechada, muito
desajeitado.
DANI: E aí?
ALESSANDRA: Mais ou menos. E você?
DANI: Também.
ALESSANDRA: A gente deve ter feito alguma coisa errada.
DANI: Muito ruim também não foi.
ALESSANDRA: Pra mim, não valeu.
DANI: Vamos tentar de novo. Acho que tem que abrir mais a boca. Enfiar a língua.
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ALESSANDRA: Eca! Mas você acabou de comer aquele sanduíche horrível que
você traz de casa.
DANI: E daí? Isso não tem nada a ver.
ALESSANDRA: Lógico que tem. Vai passar toda aquela nojeirada pra dentro da
minha boca. Por hoje chega, então. Já foi emoção demais pra mim.
DANI: Pra mim não.
ALESSANDRA: Não adianta. Hoje não dá mais. (Levanta-se.) Trouxe o meu
chocolate?
DANI: Não, da última vez você não quis!
ALESSANDRA: Em francês, isso se chama um faux pas.
Sai, deixando Dani perplexo. Ao fundo, seu pai aparece cantando “Arranha-Céu”, de
Sílvio Caldas e Orestes Barbosa:
Cansei de esperar por ela... Toda noite na janela... Vendo a cidade a luzir... Nestes
delírios nervosos... Dos anúncios luminosos... Que são a vida a mentir... E cada vez
que subia...O elevador não trazia... Essa mulher, maldição... E quando lento gemia...
O elevador que descia... Subia o meu coração...
O Pai sai de cena. Mudança de luz. Aula com Yoni.
YONI (Entoa a oração musicada hebraica diante de um gravador): Baruh atá Adonai,
elohenu meleh haolam, asher natan lanu torat emet, vehayei olam natá beitoheinu,
baruh atá Adonai, noten hatorá. (Desliga o gravador.) Pronto, com isso você pode
estudar as rezas antes e depois de ler a Torá. Você vai ouvindo, repetindo, até que
uma hora você vai saber isso até de cor.
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DANI: Não preciso nem repetir. Eu já guardei como é.
YONI: Ah, é? Então me mostra.
DANI lê um papel e repete a oração exatamente como Yoni.
YONI: Bravo, Dani! Bravíssimo! Você é impressionante! Tem um ouvido excelente, e
canta muito bem! Você podia fazer carreira cantando na sinagoga.
DANI: Devo ter puxado ao meu pai. Ele passa o dia inteiro cantando, alguma coisa
eu acho que aprendi...
YONI: Para um aluno que nem queria fazer bar-mitzvá, você está se saindo muito
melhor do que a encomenda.
DANI: E você também. (Yoni sorri. Dani observa sua mão.) Ué! Não tinha visto esse
anel na última aula. Você casou agora?
YONI: Não, eu fiquei noivo. Vou me casar daqui a um ano, na mesma época do seu
bar-mitzvá.
DANI: Cada um com a sua cruz.
YONI: Não, Dani. Cada um com a sua mitzvá, com a sua obrigação diante de Deus.
Vai chegar o momento em que você também vai conduzir sua esposa ao altar e
formar uma família, e vai ser tão bonito e especial como foi com o seu bar-mitzvá.
DANI: Sei lá. Uma coisa de cada vez. Nem engoli direito essa história do bar-mitzvá.
(Tempo.) Yoni, você disse que eu posso te perguntar qualquer coisa. Isso é pra valer
mesmo?
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YONI: Claro, Dani. Não sei se eu vou ter a resposta, mas você pode perguntar o que
quiser.
DANI: Eu fiquei meio boiando com aquela história que você contou outro dia, do
David e do Yonatan. Era uma parada meio confusa... Afinal, eles eram... O quê?
YONI: O que você quer saber exatamente, Dani?
DANI: Eles eram tipo... Tipo assim... Namorados?
YONI (Grave, abre sua pasta, tira um livro e entrega-o a Yoni): Vaicrá. O Levítico. O
terceiro livro da Torá. Importantíssimo. Muitas normas que orientam a nossa conduta
de todos os dias, que organizam a nossa sociedade, que nos permitem nos sentir
puros diante de Deus. (Procura alguma coisa e aponta-o para Dani.) Aqui, o número
22. Lê em voz alta, por favor.
DANI: “Não te deitarás com um homem como se faz com uma mulher: é uma
abominação”.
YONI: Mais claro impossível. O amor de Yonatan e David não tinha nada de
pecaminoso, não era uma abominação. Era edificante. Uma forma pura de amor,
abençoada por Deus. Porque Yonatan foi capaz de reconhecer que o espírito de
Deus é que animava David, e por isso ele seria o sucessor de seu pai como rei dos
judeus. Estamos falando aqui de um amor sublime, do único tipo de amor que pode
nascer da amizade entre dois homens, que não tem... Que não pode ter qualquer
relação com a carne. Não pode, Dani. É o amor que está nas relações entre dois
irmãos. Ou... Entre professor e mestre. Ficou bem claro pra você?
DANI (Atropelado por um trem): Acho que ficou.
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SEQUÊNCIA 6- MOMENTOS DE MAGIA
Na escola. Ruído de aplausos. A Professora de pé e Pedrinho e Alessandra
sentados, assistindo.
PROFESSORA: Mais palmas! Ele merece! (Falando para alguém que estaria
deixando o palco.) Muito obrigado, João Felipe, excelente performance! E dando
continuidade à Feira de Talentos do Colégio Ordem e Progresso, chamamos ao
palco Daniel Segall, da 6ª. Série –B! Uma salva de palmas pra ele!
Dani entra no palco e posiciona-se ao lado da professora. Aplausos.
PROFESSORA: Então, Dani, você vai fazer o quê? Número de mágica, declamar
um poema, representar?
DANI: Eu vou cantar.
PROFESSORA: Muito bem! A gente estava precisando mesmo de um cantor por
aqui. Pode começar!
Dani começa a cantar “Que Será”, de Marino Pinto e Mario Rossi, no mesmo estilo
de interpretação antiquado e passional de seu pai.
DANI: Que será, da minha vida sem o teu amor... Da minha boca, sem os beijos
teus... Da minha alma, sem o teu calor... Que será, da luz difusa do abajur lilás... Se
não voltares a iluminar, outras noites iguais...
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Gargalhadas na plateia, incluindo Pedrinho, que debocha ostensivamente do colega.
Alessandra assiste concentrada. A professora fica perturbada com as reações na
plateia.
PROFESSORA (Cutucando Dani, que insiste em cantar): Dani... Para um
pouquinho... Para, meu filho, é melhor você parar!
DANI: Eu ainda não acabei a música!
PROFESSORA: A plateia está agitada demais, Dani, não vai dar para continuar. De
onde você foi tirar essa música, meu filho?
DANI: Aprendi com meu pai.
Pedrinho ri mais ainda.
PROFESSORA: Ah, Dani... Vamos encerrar por aqui, vai ser melhor para todos. Na
próxima feira você tenta de novo... Aí, vê se você canta uma música mais atual, do
Lulu Santos, do Guilherme Arantes... Do Ritchie, que está fazendo um tremendo
sucesso... (Alto, para a plateia) Vamos agradecer a participação do Daniel Segall, da
6ª. Série-B!
Dani afasta-se, acabrunhado. Luz só em Alessandra, que se levanta e aplaude
freneticamente. A Professora e Pedrinho saem de cena.
ALESSANDRA: Cambada de ignorantes! Não sabem reconhecer um verdadeiro
artista quando ele está em cena! Bando de medíocres! Idiotas fracassados! Vocês
não entenderam nada, nada!
Dani aproxima-se dela. Ela pega em sua mão.
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ALESSANDRA: Fiquei muito orgulhosa de você.
DANI: Sério?
Ela puxa-o pela mão e o conduz até um canto do palco. Beija-o vigorosamente na
boca, e ele responde à altura. A trilha sonora é “Like an Animal”, do The Glove.
Blecaute.
Dani em seu quarto. Pega o embrulho com os Playmobil e abre-o. A trilha sonora é o
Adagio do Concerto para Violino de Brahms.
DANI (Examinando os bonecos): Princesa Gertrudes de Nuremberg... Gumercindo,
Duque de São Bernardo... Rainha Concepción de Todos los Santos y Mártires...
Eleutério, Príncipe de Torre de los Caracoles... General Strogonoff... Embaixador
Lamborghini della Vespa... Cheguei até aqui com vocês. Agora, a gente se
despede... Eu nunca vou esquecer nenhum de vocês, nem os momentos de sonho e
de magia que a gente viveu juntos. Embaixador, o senhor vai na frente e organiza
por favor o cerimonial da despedida. (Coloca-os de novo no embrulho, no lenço
branco, e aproxima-se de um canto da cena, para jogá-los fora, como na cena
anterior com seu pai. Entra sua mãe, entusiasmada.)
MÃE: Dani! Adivinha quem eu encontrei lá fora?
DANI: O Pedrinho.
MÃE: Como é que você sabe?
DANI: Se você tivesse encontrado o Pelé, o Figueiredo ou até o Papa na rua, não ia
dizer nada. Agora, o Pedrinho...
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MÃE: Meu filho, hoje nem as suas provocações podem me privar da minha alegria.
O Pedrinho já me deu a grande notícia! Porque se eu fosse esperar você me
contar...
DANI: O Pedrinho não pode te dar nenhuma notícia, nem grande nem pequena,
porque ele não sabe nada da minha vida!
MÃE (Cantarola um trecho de “Explode Coração”, de Gonzaguinha): Chega de tentar
dissimular e disfarçar e esconder, o que não dá mais pra ocultar... Dani, eu já sei de
tudo. O Pedrinho me contou que você está namorando!
DANI: Puta que pariu!
MÃE: Sim, é isso mesmo, meu filho: puta que pariu! É a única expressão capaz de
traduzir toda a minha gama de sentimentos nesse momento! Meu filho arrumou a
primeira namorada! Eu... Estou nas nuvens, carregada por um cortejo de querubins,
ou serafins, sei lá, enfim, é...
DANI: Você não tem vergonha, uma mulher da sua idade, dando bola pras fofocas
de um moleque babaca que nem o Pedrinho?
MÃE: O Pedrinho pode até ser um moleque babaca, mas ele tem uma qualidade: é
um informante infalível. Só dá bola dentro! (Abraça o filho, à sua revelia.) Ah, meu
filho, por que você vai ficar bravo com isso? É uma coisa maravilhosa, ter uma
namorada! Imagina que coisa linda, daqui a um ano, você dançando a valsa com a
menina no seu bar-mitzvá! Um homenzinho completo! Alessandra, não é isso? Ou é
Alexandra?
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DANI (Desvencilhando-se da mãe): Ela não é minha namorada porra nenhuma! Eu
não tenho namorada, é tudo fofoca daquele escroto! Eu só... (Para.) Não é da sua
conta! Minha vida não é da sua conta!
MÃE (Ignorando e afastando-se): Pode ficar tranquilo, Dani, eu não vou interferir em
nada no seu namoro, viu? Quando você estiver preparado, traz a menina aqui pra
gente conhecer. Depois, se precisar de algum conselho, essas coisas de homem,
você fala com seu pai. (Pensa melhor e se volta.) Aliás, melhor falar com o Tio
Rubem, ou com o Isaac Balofo, eles têm mais jeito pra essas coisas...
DANI: Vai embora daqui e me deixa em paz!
MÃE (Saindo, cantarola um trecho de “Fascinação”): Os sonhos mais lindos,
sonhei... De quimeras mil, um castelo ergui...
Dani olha para o embrulho com os Playmobil. Desiste de se desvencilhar dele e
coloca-o novamente na mesma gaveta. Ele pega o gravador e ouve, pensativo e
intrigado, a voz de Yoni com as orações em hebraico. Blecaute.
SEQUÊNCIA 7- A LIBERDADE É ASSUSTADORA
Aula com Yoni. Enquanto ele fala, Dani se perde, olha para os olhos, as mãos, os
braços de Yoni, examina-o em detalhe e com atenção e se perde em seus
pensamentos.
YONI: Você é um predestinado, Dani. Todas as partes da Torá são importantes, e
trazem ensinamentos fundamentais para o nosso povo, mas você vai ter a sorte de
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ler uma porção muito especial. No seu bar-mitzvá, vai ser o momento da leitura da
parashá Beshalach. É aqui que aparece um dos milagres mais famosos, mais
espetaculares e com maior significado da história do judaísmo: o momento em que
Deus, através de Moisés, fez as águas do Mar Vermelho se abrirem para que os
judeus pudessem atravessar com segurança e escapar da perseguição dos
soldados egípcios. Você vai ver que o caminho até lá foi muito tumultuado, muitos
judeus já começavam a duvidar da liderança de Moisés. Tinha gente até que preferia
voltar para a escravidão no Egito! Porque a liberdade, Dani, pode ser algo muito,
muito assustador... No Egito, eles tinham uma vida muito sofrida, mas a realidade do
cativeiro era, pelo menos, previsível. Você pode imaginar o que é se encontrar de
repente em liberdade, no meio do deserto, rumo ao desconhecido absoluto? A
liberdade sem Deus não deixa de ser um cativeiro. Nós viramos reféns de nossas
pulsões, de nossos instintos, de nossos desejos sem freios, e dessa forma a
convivência humana seria insuportável. Impossível. Só mesmo a presença divina, a
aliança com o sagrado, pode dar sentido a essa peregrinação, à imensa travessia
que foi o êxodo do Egito e que é, no fundo, a travessia diária de nossas vidas. A
certeza de que existe alguma força muito poderosa, que nos alimenta e nos
protege... Nós vamos ver então que... Dani, você está prestando atenção no que eu
estou falando?
DANI: Claro que sim.
YONI: Então me conta, o que foi que eu acabei de dizer?
DANI: Você disse... Que era uma abominação. Não foi isso?
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Yoni observa Dani em silêncio. A trilha sonora é o primeiro movimento da sonata
para violino e piano de César Franck. Blecaute.
Dani está vestido com uniforme de futebol. Desce o elevador com seu pai. Entra o
Coronel Ivanir.
CORONEL: Ah, bom dia, Seu... Bom dia, Dani.
PAI: Bom dia, Coronel.
O pai percebe que Dani não respondeu ao cumprimento e que está evidentemente
incomodado com a presença do Coronel. Este, por sua vez, fica constrangido com a
falta de resposta de Dani. O trio segue em silêncio, mas o pai não para de observar
a situação. O elevador chega a seu destino. O Coronel vai para a esquerda, o pai e
Dani para a direita, em silêncio e sem se despedir. O pai decide então parar e se
voltar para o Coronel.
PAI: Coronel!
O Coronel se volta e para. Não fala nada.
PAI: Fique longe do meu filho.
O Coronel não reage. Dani olha para seu pai, surpreso. Blecaute.
Dani continua com seu uniforme de futebol. Agora caminha, ao lado de Pedrinho,
também uniformizado. Voltam da escolinha.
PEDRINHO: Pô, cara, então tu tá namorando firme mesmo a paulistosa?
Dani em silêncio.
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PEDRINHO: Tá gamadão mesmo! De onde a gente menos espera... Agora, tu podia
conseguir coisa melhor, né? Pô, todo mundo sabe que a Gisele é a fim de você...
Sabe a Gisele, a irmã do Esquilo Sem Grilo? Aquela lourinha da 6ª. A? Dá o maior
mole! Pô, ela é dez mil vezes melhor do que a paulistosa!
Dani em silêncio.
PEDRINHO: Pelo menos a galera parou de falar de você. Sabe como é que é, né,
ficavam com aquele papo de que tu é meio frutinha... Pegava mal pra mim também,
né, pô, sou teu amigo desde moleque... Ainda mais agora, que tem o câncer gay! Tu
não viu ontem no Fantástico? Os viadinhos tão tudo morrendo...
Dani em silêncio.
PEDRINHO: Tu já fez o que com ela? Já comeu e tudo? Ou é só namorinho de
frescura, pegar na mãozinha, bitoquinha? Já pegou nos peitinhos dela? Porque ela é
baranga, mas pelo menos tem mais peito do que qualquer outra garota da nossa
turma. Ela já tem regra? Tem toda cara de que tem. Já tem pentelho?
Dani em silêncio.
PEDRINHO: Pô, cara, tu não vai falar nada não?
DANI: Eu só tenho uma coisa pra te falar, Pedrinho. Ouve bem, cara, porque acho
que não vou querer repetir tudo isso aqui. Pedrinho, eu só queria te dizer que você é
o cara mais babaca, mais escroto, mais burro e mais pentelho que eu já conheci na
vida. Eu detesto você. Nunca vem nada, mas nada de bom de você. Você só sabe
encher o saco, falar merda e fazer fofoca da minha vida pra minha mãe. Você se
preocupa tanto em não parecer frutinha, mas no fundo você tem alma de manicure,
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sabe aquelas manicures que passam o dia inteiro falando da vida das clientes? Eu
te vejo assim, Pedrinho. Juro. Eu te imagino com o cabelo pintado de acaju e
uniforme verde água, sentado no fundo de um salão bem fuleiro, esperando a
próxima cliente. Se eu pudesse, Pedrinho, eu nunca mais via você em toda minha
vida. Mas eu tenho a desgraça de estudar contigo desde o jardim de infância, e de
olhar pra essa sua cara de cu todo santo dia, e a cada ano que passa você só fica
pior, mais babaca, mais escroto, mais pentelho e mais burro. A minha esperança é
que, estúpido do jeito que você é, você não vai passar na mesma escola que eu no
segundo grau, e eu aí vou poder me livrar de você de uma vez por todas. Dá licença,
Pedrinho, meu caminho é esse aqui... (Afasta-se.)
PEDRINHO (Estarrecido e genuinamente triste): Pô, Dani! E eu pensava que a gente
era amigo...
Blecaute. Mudança radical de luz, a sugerir um delírio. Dani está deitado no chão,
ainda vestido com seu uniforme de futebol, de olhos fechados. Parece esgotado. No
canto direito da cena, aparece Alessandra, de calcinha e sutiã. Ela murmura a
melodia de “À Flor da Pele”, e aos poucos começa a cantar apenas o verso “O que
será, que será”, como a aparição de Vadinho anteriormente. Dani abre os olhos.
Alessandra caminha em sua direção, sempre cantando baixinho esse mesmo verso.
Aproxima-se dele e começa a abraçá-lo. Ele se agarra a ela, num misto de
sensualidade e desamparo. Do canto esquerdo da cena, entra Yoni. Está de cueca e
sem quipá. Ele canta os versos de “À Flor da Pele”, e quando começa a cantar,
Alessandra volta ao murmúrio, mas seguindo o mesmo ritmo dele.
YONI: O que será que será... Que dá dentro da gente e que não devia... Que
desacata a gente, que é revelia... Que é feito uma aguardente que não sacia... Que
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é feito estar doente de uma folia... Que nem dez mandamentos vão conciliar... Nem
todos os unguentos vão aliviar... Nem todos os quebrantos, toda alquimia... E nem
todos os santos, que será que será... O que não tem descanso, nem nunca terá... O
que não tem cansaço, nem nunca terá... O que não tem limite.
A partir do momento em que Yoni entra em cena, Dani voltará seu olhar para ele,
enquanto Alessandra continua agarrando-o. Yoni vai caminhando pela cena, passa
bastante próximo a Alessandra e Dani, que faz menção muito tímida de tocá-lo, mas
recua. Yoni sai de cena. E Dani termina a canção, sozinho, do ponto em que Yoni
parou, sempre com Alessandra a acariciá-lo e a murmurar a melodia, sem cantar.
DANI: O que será que me dá... Que me queima por dentro, será que me dá... Que
me perturba o sono, será que me dá... Que todos os tremores me vêm agitar... Que
todos os ardores me vêm atiçar...Que todos os suores me vêm encharcar...Que
todos os meus nervos estão a rogar...Que todos os meus órgãos estão a clamar...E
uma aflição medonha me faz implorar...O que não tem vergonha, nem nunca terá...O
que não tem governo, nem nunca terá... O que não tem juízo.
Blecaute.
SEQUÊNCIA 8- A MAIORIDADE JÁ CHEGOU
Aula com Yoni.
YONI: Estamos avançando bem, Dani. Você aprende tudo muito rápido, vai fazer
bonito no dia do seu bar-mitzvá. Eu já não me preocupo tanto com o seu
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desempenho na cerimônia, mas sim com a nova vida de responsabilidades que
começa a partir daí.
DANI: Yoni, eu não quero saber dessa conversa. Minha mãe disse que isso aqui ia
ser só uma aula de bar-mitzvá. Aprender a dizer aquele monte de coisas, e acabou.
YONI: Você está me interpretando mal, Dani. Não quero doutrinar você, não quero
impor nenhuma obrigação. Mas você precisa entender que... Você começa uma
longa caminhada a partir do seu bar-mitzvá. Um verdadeiro êxodo para um novo
mundo, uma terra nunca antes visitada. Isso não é fácil para ninguém, mas algumas
pessoas podem ter uma trajetória um pouco mais difícil, mais tumultuada do que as
outras. Pode ser que você esteja nesse grupo... Pode ser que não.
DANI: Você não sabe nada da minha vida pra ficar dizendo essas coisas.
YONI: Eu não sei mesmo, e nem quero saber. Não quero me meter na sua vida.
Mas, como uma pessoa que te acompanha numa jornada espiritual importante, é
minha obrigação te dizer que... Para qualquer problema, qualquer dúvida, qualquer
inquietação que você venha a ter, você pode encontrar respostas na religião. Você
faz parte de uma comunidade, que pode te acolher num momento de necessidade.
Quando você sentir que está diante de uma encruzilhada e que os dois caminhos
parecem perigosos e difíceis. Isso acontece com todo mundo. Com todo adulto.
Você não precisa carregar sozinho os pesos que vão inevitavelmente aparecer na
sua vida. Por exemplo, você pode se aconselhar comigo. Ou com outra pessoa que
conheça bem a nossa religião. Ninguém vai jamais impor nada a você. Mas podem
te ajudar a encontrar um caminho, Dani. Um caminho de paz.
Silêncio.
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DANI: Caminho de paz... Isso existe mesmo, Yoni?
Blecaute. Mudança de luz. Dani e Alessandra, sentados de mãos dadas.
ALESSANDRA: Eu tenho um negócio pra te contar. Vou voltar pra São Paulo.
DANI: O quê? Pô, mas você acabou de chegar!
ALESSANDRA: A empresa do meu pai resolveu fechar a filial daqui. Negócio nesse
país, só em São Paulo mesmo, meu filho. Não tem o que fazer.
DANI: Putz... E aí? O que vai acontecer com a gente?
ALESSANDRA: Vai acontecer o seguinte: a gente vai ficar triste na hora de se
separar. Depois, eu me vou esquecer de você, e você se vai esquecer de mim.
DANI: Caraca! Como você pode dizer uma coisa dessas? Eu nunca vou esquecer
você!
ALESSANDRA: Dani, eu já mudei quatro vezes de cidade por causa do trabalho do
meu pai. Quatro. Eu sempre achei que nunca ia esquecer as pessoas, só que... A
gente esquece. Precisa esquecer.
DANI: Mas eu sou diferente daquelas pessoas todas... Ou não sou?
ALESSANDRA: Você é um carinha bacana. Um fofo. Um artista. Um gostoso. Só
que você vai ficar aqui, e eu vou morar em São Paulo.
DANI: Você pode vir me visitar.
ALESSANDRA: Imagina se meu pai vai deixar...
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DANI: Pelo menos, você tem que vir pro meu bar-mitzvá. É a minha maioridade!
(Murcha.) Putz... Nem acredito que eu falei isso.
Alessandra observa-o atentamente. Pega sua mão e, para sua surpresa, a conduz
para seu peito, por dentro da blusa.
ALESSANDRA: Você consegue sentir?
DANI: Eu... Eu não tinha percebido que ele já tava grande assim!
ALESSANDRA: E vai crescer ainda muito mais. Dani, não adianta você ficar fugindo
da maioridade. Ela já tá aqui. Isso que você tá tocando. A maioridade já chegou e
está por todos os lados. Acabou.
Blecaute.
SEQUÊNCIA 9- A GRANDE HORA, O GRANDE DIA
Dani vestido com uniforme de futebol. Desenha deitado no chão. Entra sua mãe,
carregando uma toalha e uma muda de roupa.
MÃE: Tá pronto?
Dani faz que sim com a cabeça, sem parar de desenhar e sem olhar para a mãe.
MÃE: Então levanta, tá na hora. Você sabe que hoje é seu último dia de escolinha,
né?
DANI (Voltando o olhar para mãe): Hoje? Por quê?
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MÃE: Sua matrícula foi por um ano, e acaba hoje. E como você deixou mais do que
claro que não gosta de lá, a gente achou que não era o caso de renovar. Não faz
sentido impor esse tipo de coisa pra um rapaz da sua idade, prestes a fazer bar-
mitzvá. A maioridade também tem suas vantagens, Dani. Eu avisei... Na semana
que vem o seu pai vai te levar pruma escola de artes, como você queria. (Para si.)
Às vezes as coisas precisam mudar para continuarem como estão, isso era o quê
mesmo? Ah, essa memória miserável... (Volta-se para Dani.) Sim, escola de artes. A
gente encontrou um lugar de gente aparentemente séria, com ambiente
aparentemente sadio. Ninguém ali tem jeito de bicha, nem de maconheiro. Vamos
ver no que dá... E aí, não era o que você queria? Você não parece contente.
DANI: É que... Eu não tava esperando. Agora.
MÃE (Entregando a toalha e a muda de roupa): Toma. Coloca isso na sua mochila.
Hoje você vai ter que tomar banho e sair trocado de lá. A gente vai direto almoçar na
casa da Tia Ruth.
DANI: Eu não quero tomar banho ali.
MÃE: E vai chegar todo sujo e fedorento na casa da sua tia? Ainda mais a Tia Ruth,
que é toda chique, tem até empregada com uniforme? Vai tomar banho sim! Olha,
Dani, homem que é homem não pode ter vergonha de ficar pelado na frente dos
outros não, que negócio é esse, agora?
DANI: Não é vergonha, é que ali é um lugar horrível, todo sujo e apertado.
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MÃE: Vamos indo, Dani. Não tem o que discutir. E vê se entra no chuveiro de
chinelo, não vai me pegar uma micose no pé! O orçamento desse mês não prevê
tratamento dermatológico.
Dani enfia a toalha e a muda de roupa em sua mochila e também seu desenho,
muito contrariado. Sua mãe sai de cena. Mudança de luz. Dani vai para o fundo do
palco e senta encostado na parede. Seu pai aparece na frente do palco, cantando
“Nature Boy”, de Eden Ahbez. Sua interpretação aqui é bem mais suave e contida
do que as anteriores.
PAI: There was a boy… A very strange enchanted boy… They say he wandered very
far…Very far, over land and sea… A little shy and sad of eye… But very wise was
he… And then one day… A magic day, he passed my way… And while we spoke of
many things, fools and kings… This he said to me… The greatest thing you'll ever
learn...Is just to love and be loved in return.
À medida que o pai canta, Dani despe-se lentamente, preparando-se para o banho,
até ficar de cueca. Seu pai observa-o de longe ao concluir a canção e sai de cena.
Entra em cena, assoviando, Beto, o treinador da escolinha de futebol.
BETO: Oi, Dani! Resolveu tomar banho hoje aqui?
DANI (Surpreso e alterado): Oi, Beto. É... Eu... Eu vou ter que ir direto prum almoço,
hoje. Em geral, eu tomo em casa mesmo.
BETO (Despindo-se com naturalidade, até ficar também de cueca): Lógico, o
chuveiro daqui é uma merda. (A fala de Beto vai ficando intercalada diante de Dani,
que ouve apenas palavras soltas.) Pressão nenhuma. Esse vestiário... Um chiqueiro,
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nunca vi.... Banho aqui nunca... Mas hoje... Sair com minha noiva... Você que é
feliz... Ainda... Esses compromissos... Namorada, noiva... É foda! Gente tem que se
arrumar... Nos conformes... Depois que casa... Ligar o foda-se... Qualquer coisa...
Com mulher é assim... Vai aprendendo.
Beto, de frente para Dani e de costas para a plateia, tira sua cueca. Luz apenas em
Dani, que tenta disfarçar o impacto da imagem. A trilha sonora é o início do Concerto
no 1 para Piano de Prokofiev, em volume alto. Dani fecha os olhos e tira a cueca,
tapando seu sexo com as mãos. Liga o chuveiro e permanece todo o tempo com
olhos fechados e com o sexo coberto, como se estivesse febril. No escuro, Beto faz
os movimentos de um banho e sai de cena. Blecaute.
Dani está de cueca e vai vestindo uma roupa formal. É o dia do seu bar-mitzvá.
Enquanto se veste, ouve-se uma gravação com a voz de Yoni, lendo o início da
parashá em hebraico, e depois sua tradução em português (Êxodo, 13,17).
YONI (off): Vayehi beshalach Par'oh et-ha'am velo-nacham Elohim derech erets
Plishtim ki karov hu ki amar Elohim pen-yinachem ha'am bir'otam milchamah
veshavu Mitsraymah. Vayasev Elohim et-ha'am derech hamidbar yam-Suf.
Quando o Faraó deixou o povo partir, Deus não os conduziu pelo caminho do país
dos filisteus, embora esse fosse o trajeto mais curto. Deus considerava que se o
povo encontrasse resistência armada, poderia se arrepender e retornar ao Egito. Por
isso, Deus os fez contornar o caminho do deserto, em direção ao Mar Vermelho.
Quando termina a gravação, Dani já está vestido, faltando apenas colocar sua
gravata. Ele abre a gaveta onde ficavam seus bonecos Playmobil e olha para dentro.
Não dá para ver se a gaveta está vazia ou se os bonecos ainda estão ali. Ao longo
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da cena, manterá postura grave. Entra seu pai. Aproxima-se dele e bate nos seus
ombros.
PAI: Chegou o grande dia, Dani. Já aprendeu a dar nó na gravata ou quer que eu
faça isso pra você?
DANI: Dá você.
PAI (Enquanto dá o nó na gravata no pescoço de Dani): O Yoni me disse que você
vai dar um verdadeiro show hoje. Chegou a dizer que você é o melhor aluno que ele
já teve, que pegou tudo muito rápido. Ah, e disse também que você aprendeu a
cantar bonito comigo! Fiquei danado de orgulhoso... Você viu, meu filho? Tão
preocupado com essa história de maioridade, e no final das contas vai tirar tudo de
letra.
DANI: Eu tenho medo, pai. Do que vem depois.
PAI: Medo? (Se perde em pensamentos.) Quando eu fiz o meu bar-mitzvá, Dani, eu
só tinha um sonho na vida: me tornar um astro da Rádio Nacional. O rádio era a
minha vida, acordava e dormia com ele, conhecia todos os cantores, todas as
músicas, colecionava as revistas. Eu queria ser o novo Sílvio Caldas, o novo
Francisco Alves... (Cantarola um trecho de “Chão de Estrelas”, de Orestes Barbosa)
Eu vivia vestido de dourado, palhaço das perdidas ilusões... Aí eu me olhava no
espelho. E o que eu via era um rapaz... Feio... Desengonçado... Suburbano... Cadê
a coragem para inventar outro destino? Eu nunca cheguei nem perto de concretizar
meu... Minha vida é muito, muito diferente daquilo que eu fantasiava quando tinha
sua idade... Nem tudo é ruim, não, não, longe disso! Eu nunca imaginei, por
exemplo, que eu ia ser pai... Pai de um artista. Porque é isso que você é, meu filho.
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Você tem estrela. Você não precisou passar pelos apertos que eu passei. Um ano
depois do meu bar-mitzvá, eu tive que começar a trabalhar, como office-boy... E não
parei mais. Medo? Ninguém vive sem medo. Mas algumas pessoas fazem o que tem
que ser feito, apesar do medo... Conseguem... (Tenta recuperar o controle.) Isso não
é conversa pra hoje. Hoje é dia de festa! Escuta, a Alessandra vem, afinal?
Dani entrega um papel ao pai.
PAI: Mandou um telegrama? Mas essa menina! Então não vai ter jeito, meu filho,
você não escapa de dançar a primeira valsa com sua mãe.
DANI (Sem perder a gravidade, estende as mãos para o pai, como convidando-o a
dançar): Ela não precisa saber que aquela vai ser a segunda valsa do dia.
PAI (Inicialmente surpreso, mas depois compenetrado, preparando-se para a valsa):
Não, ela não precisa saber. (Posiciona-se para dançar a valsa com o filho e começa
a cantar “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”, de Lamartine Babo) Eu sonhei que
tu estavas tão linda, numa festa de raro esplendor...
DANI: Não, pai. Hoje não...
PAI: Como você quiser. Hoje é o seu dia, Dani.
O pai estala os dedos e começa a tocar uma valsa vienense. Dani inicia a valsa no
mesmo tom de gravidade do resto da cena, mas aos poucos vai esboçando um
discreto sorriso. Pai e filho rodopiam pelo palco, enquanto a luz vai se apagando aos
poucos.
FIM