Fichamento do livro Como Funciona a Democracia de Marcio Goldman

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Como funciona a democracia - Uma teoria etnográfica da política Marcio Goldman Prólogo - Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos Peter Gow - “Qual é a explicação? Por um lado, creio que Tânia esteja certa. Isso é realmente fazer trabalho de campo: essas experiências emanam de outras pessoas. Mas há mais. Acho que é significativo que tenha sido música o que ouvimos nos dois casos. É possível que, em estados de alta sensibilização, padrões complexos, mas regulares, de sons do mundo, como rios correndo ou uma noite tropical, possam evocar formas musicais que não temos consciência de termos considerado esteticamente problemáticas. Na medida em que estamos aprendendo esses estilos musicais sem o saber, nós, sob determinadas circunstâncias, os projetamos de volta no mundo. Assim, você ouviu tambores de candomblé, eu, música de flauta. Penso que um processo semelhante ocorre com as pessoas que estudamos. Porque eles obviamente também ouvem essas coisas. Mas eles simplesmente aceitam que esse é um aspecto do mundo, e não se preocupam com isso. Todavia, continua sendo impressionante e o mistério não é resolvido por essa explicação. O que imagino é que devemos repensar radicalmente todo o problema da crença, ou ao menos deixar de dizer preguiçosamente que ‘os fulanos crêem que os mortos tocam tambores’ ou que ‘os beltranos acreditam que os espíritos do rio tocam flautas’. Eles não ‘acreditam’: é verdade! É um saber sobre o mundo (Gow 1998). [p. 15, 6] “Os tambores dos vivos e os tambores dos mortos fazem parte da mesma experiência global, e foi certamente o fato de eu ter sido afetado pelos primeiros que abriu a possibilidade de ouvir os segundos. Em outro sentido, contudo, foi talvez necessário ter escutado os tambores dos mortos para que os dos vivos passassem a soar de outra forma, já que, nesse momento, vivi uma experiência que, sem ser necessariamente idêntica à de meus amigos em Ilhéus, tinha com ela ao menos um ponto de contato fundamental: o fato de ser total e de não separar os diferentes territórios existenciais que habitamos. Como me escreveu Peter Gow, era mesmo a noção de crença que deveria ser posta em questão, na medida em que é uma das grandes responsáveis pelas falsas distinções que buscam separar a ‘realidade’ daquilo que em geral se denomina ‘imaginário’ e que, na verdade, deveria simplesmente ser chamado de ‘real’, na medida em que a realidade é sempre o efeito de

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Fichamento do livro Como Funciona a Democracia do antropólogo Marcio Goldman.

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Como funciona a democracia - Uma teoria etnogrfica da polticaMarcio Goldman

Prlogo - Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos

Peter Gow - Qual a explicao? Por um lado, creio que Tnia esteja certa. Isso realmente fazer trabalho de campo: essas experincias emanam de outras pessoas. Mas h mais. Acho que significativo que tenha sido msica o que ouvimos nos dois casos. possvel que, em estados de alta sensibilizao, padres complexos, mas regulares, de sons do mundo, como rios correndo ou uma noite tropical, possam evocar formas musicais que no temos conscincia de termos considerado esteticamente problemticas. Na medida em que estamos aprendendo esses estilos musicais sem o saber, ns, sob determinadas circunstncias, os projetamos de volta no mundo. Assim, voc ouviu tambores de candombl, eu, msica de flauta. Penso que um processo semelhante ocorre com as pessoas que estudamos. Porque eles obviamente tambm ouvem essas coisas. Mas eles simplesmente aceitam que esse um aspecto do mundo, e no se preocupam com isso. Todavia, continua sendo impressionante e o mistrio no resolvido por essa explicao. O que imagino que devemos repensar radicalmente todo o problema da crena, ou ao menos deixar de dizer preguiosamente que os fulanos crem que os mortos tocam tambores ou que os beltranos acreditam que os espritos do rio tocam flautas. Eles no acreditam: verdade! um saber sobre o mundo (Gow 1998). [p. 15, 6]

Os tambores dos vivos e os tambores dos mortos fazem parte da mesma experincia global, e foi certamente o fato de eu ter sido afetado pelos primeiros que abriu a possibilidade de ouvir os segundos. Em outro sentido, contudo, foi talvez necessrio ter escutado os tambores dos mortos para que os dos vivos passassem a soar de outra forma, j que, nesse momento, vivi uma experincia que, sem ser necessariamente idntica de meus amigos em Ilhus, tinha com ela ao menos um ponto de contato fundamental: o fato de ser total e de no separar os diferentes territrios existenciais que habitamos. Como me escreveu Peter Gow, era mesmo a noo de crena que deveria ser posta em questo, na medida em que uma das grandes responsveis pelas falsas distines que buscam separar a realidade daquilo que em geral se denomina imaginrio e que, na verdade, deveria simplesmente ser chamado de real, na medida em que a realidade sempre o efeito de um ato de criao. E no deixa de ser curioso observar, de passagem, que Lvy-Bruhl [...] um crtico radical da noo de crena, propondo sua substituio pelo conceito de experincia. Na verdade, a prpria distino que no possui alcance universal, uma vez que depende de uma definio da experincia inconteste entre ns aps um longo trabalho secular de crtica que desqualificou e excluiu da experincia vlida as experincias msticas (Lvy-Bruhl 1949:161-162). [nota 6 - Dizemos que eles crem que o mundo mtico foi real, e que o sempre [...]. De fato, em todos os casos desse gnero, eles no tm conscincia de crer, mas de sentir, de experimentar a realidade do objeto, no menos do que quando se trata dos seres e acontecimento do mundo que os rodeia (Lvy-Bruhl 1938:127-128). Ou, como escreveu, em linguagem bem mais contempornea, Paul Veyne (1983:103-104): O que quer dizer imaginrio? O imaginrio a realidade dos outros, da mesma forma que, conforme uma expresso de Raymond Aron, as ideologia so as ideias dos outros [...], um julgamento dogmtico sobre certas crenas de outrem. [p. 22]] [p. 19]

Introduo - Antropologia da poltica e teoria etnogrfica da democracia

... como lembrou h tempos Jos Guilherme Magnani (1986:129-130), desde 1916, Malinowski no apenas criticava o insustentvel pressuposto de existncia de uma opinio nativa [nota 4 - nunca se d o caso de que os nativos - assim, no plural - tenham alguma crena ou ideia: cada um deles tem suas prprias ideias (Malinowski, apud Magnani 1986: 130). p. 48], como revelava que justamente a diversidade de opinies que permite ao etngrafo reconstituir o que denominava fatos invisveis (Malinowski 1935, vol. 1:317). A noo de representao de fato problemtica (Magnani 1986:127-128) e o trabalho de campo sobretudo uma atividade construtiva ou criativa, pois os fatos etnogrficos no existem e preciso um mtodo para a descoberta de fatos invisveis por meio da inferncia construtiva (Malinowski 1935, vol. 1:317). Nesse sentido, se a histria se escreve, como quer Paul Veyne (1978: cap. 8), por retrodico - ou seja, por meio do preenchimento a posteriori das lacunas de informao possibilitado por novas descobertas e por comparao -, a etnografia malinowskiana seria, antes, da ordem de uma espcie de entredico: o etngrafo deve articular os diferentes discursos e prticas parciais (no duplo sentido da palavra, parcelares e interessadas) que observa, sem jamais atingir nenhum tipo de totalizao ou sntese completa. [...] De toda forma, sempre assim que as coisas se do no campo: nosso saber diferente daquele dos nativos, no por ser mais objetivo, totalizante ou verdadeiro, mas simplesmente porque decidimos a priori conferir a todas as histrias que escutamos o mesmo valor.Essa entredico, contudo, no significa que, no campo, possamos, ou mesmo que devamos tentar, estabelecer o mesmo tipo de relao com todos. Se, como veremos, o movimento negro de Ilhus marcado pela segmentaridade, o mesmo parece ocorrer com as relaes que fui capaz de construir com seus militantes. [p. 25]

Ao lado de coisas como o relativismo absoluto ou a autoridade do antroplogo sobre o grupo que estuda, a ideia de um identificao total do etngrafo com seus nativos parece ser uma dessas figuras muito evocadas e jamais vistas na histria da disciplina. E se o tema de fato frequentemente mencionado - seja para assinalar um risco mortal para um disciplina com pretenses cientficas, seja para celebrar os mritos de um empreendimento humanista -, ele nunca acompanhado por exemplos concretos. No obstante, o problema central aqui no tanto que virar nativo seja impossvel ou ridculo, mas que, em todo caso, uma ideia ftil e plena de inutilidade.As reflexes de Geertz, como tambm se sabe, dirigem-se a Malinowski e sua observao participante. Penso, contudo, que seria preciso reconhecer que essa noo no assim to clara quanto costuma parecer. [...] ao converter a antiga antropologia de varanda (Stocking Jr. 1983) em trabalho de campo efetivo, Malinowski parece ter operado na antropologia um movimento em tudo semelhante ao de Freud na psiquiatria: em lugar de interrogar histricas ou nativos, deix-los falar vontade. A observao participante significa, portanto, muito mais a possibilidade de captar as aes e os discursos em ato do que uma improvvel metamorfose em nativo. E como este ltimo, em geral, e ao contrrio da histrica, no procura nem levado ao gabinete do antroplogo, o trabalho de campo torna-se uma necessidade. [p. 27]

Uma teoria etnogrfica, no ponto de vista do Malinowski de Coral gardens and their magic, no se confundiria nem com uma teoria nativa (sempre cheia de vida, mas por demais presa s vicissitudes cotidianas, s necessidades de justificar e racionalizar o mundo tal qual ele parece ser, sempre difcil de transplantar para outro contexto), nem com o que Malinowski viria a denominar mais tarde uma teoria cientfica da cultura (cuja imponncia e alcance s encontram paralelo em seu carter anmico e, em geral, pouco informativo). Evitando os riscos do subjetivismo e da parcialidade, por um lado, e do objetivismo e da arrogncia, por outro, Malinowski parece ter descoberto o soberbo ponto mediano, o centro. No o centro, ponto pusilnime que detesta os extremos, mas o centro slido que sustenta os dois extremos num notvel equilbrio (Kundera 1991: 78). importante no se equivocar aqui. A diferena entre teorias nativas, etnogrficas e cientficas no repousa sobre uma repartio judiciosa de erros e verdades nem sobre uma suposta maior abrangncia das ltimas, mas sobre diferenas de recortes e escalas, de programas de verdade, como diria Paul Veyne - que diz tambm que tudo se resume a uma escolha entre explicar muito, porm mal, ou explicar pouca coisa, porm muito bem (Veyne 1978:118), ou seja, entre a explicao histrica ou humana (sublunar, nas palavras de Veyne), que na verdade uma explicitao, e a cientfica ou praxiolgica. [nota 8 - a explicao histrica tem um sentido banal de compreenso, ou seja, pretende apenas mostrar o desenvolvimento da intriga, fazer compreend-lo, enunciar o resumo da intriga (Veyne 1978:67-68). p. 48] Uma teoria etnogrfica, consequentemente, pretende explicar (no sentido de explicitar) muita coisa, e o mximo a que se pode aspirar que isso seja feito razoavelmente bem.Uma teoria etnogrfica tem, portanto, como objetivo central elaborar um modelo de compreenso de um objeto social qualquer (linguagem, magia, poltica etc.), qual, mesmo produzido em e para um contexto particular, possa funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contextos. Nesse sentido, permite superar os conhecidos paradoxos do particular e do geral, assim como, talvez, os das prticas contra as normas ou das realidades em oposio aos ideais. Isso porque se trata sempre de evitar as questes abstratas a respeito de estruturas, funes ou mesmo processo, e dirigi-las para os funcionamentos e as prticas. [nota 9 - ou, nas palavras de Jacques Donzelot (1976:172), trata-se de deixar de perguntar o que a sociedade, pois isto abstrato e no leva alm de um conceito geral. Pergunta-se antes: como que ns vivemos em sociedade? Esta uma questo concreta: onde vivemos? Como ocupamos a terra? Como vivemos o Estado?. p. 48]Assim, se o objetivo ltimo deste livro esboar uma teoria etnogrfica da poltica ou da democracia, no porque se limita a uma cidade em particular, suas eleies e seus movimento negros, deixando de lado os nveis mais gerais ou abstratos. Uma teoria etnogrfica procede um pouco moda do pensamento selvagem: emprega elementos muito concretos coletados no trabalho de campo - e por outros meios - a fim de articul-los em proposies um pouco mais abstratas, capazes de conferir inteligibilidade aos acontecimentos e ao mundo. [nota 10 - como escreveu Lvi-Strauss (1954:398-399), em antropologia trata-se sempre de atingir um nvel em que os fenmenos conservem uma significao humana e permaneam compreensveis - intelectual e sentimentalmente - para um conscincia individual que no encontra jamais em sua existncia histrica objetos como o valor, a rentabilidade, a produtividade marginal ou a populao mxima. A esses conceito certamente poderamos acrescentar independente, a escolha ou a democracia ideal. p. 48, 9] Trata-se aqui, assim, de uma tentativa de elaborao de uma grade de inteligibilidade que permita uma melhor compreenso de nosso prprio sistema poltico. Para isso, recorre-se certamente a acontecimentos muito concretos, mas tambm a teorias nativas muito perspicazes e a formulaes mais abstratas quando estas se mostram teis. [p. 28, 9]

Seguindo Lvi-Strauss, ... so as prprias caractersticas epistemolgicas da disciplina que exigem a experincia de campo. Enquanto a sociologia se esfora em fazer a cincia social do observador, escreveu Lvi-Strauss (1954:397), a antropologia procura, por sua vez, elaborar a cincia social do observado. A sociologia, prossegue, estreitamente solidria com o observador, e, mesmo quando toma por objeto uma sociedade diferente, adota o ponto de vista daquela do observador; ainda quando pretende falar da sociedade em geral, do ponto de vista do observador que amplia sua prpria perspectiva. A antropologia, ao contrrio, elaboraria a cincia social do observado, adotando o ponto de vista do nativo ou o de um sistema de referncia fundado na experincia etnogrfica [...], independente, ao mesmo tempo, do observador e de seu objeto (ibidem). nesse sentido que Lvi-Strauss pde tambm escrever que a distino entre histria e antropologia se deve menos ausncia de escrita nas sociedades estudadas pelos antroplogos do que ao fato de que o etnlogo se interessa sobretudo pelo que no escrito, no tanto porque os povos que estuda so incapazes de escrever, como porque aquilo por que se interessa diferente de tudo o que os homens se preocupam habitualmente em fixar na pedra ou no papel. [nota 11 - como observa Fravet-Saada (1981:336), essa talvez seja a sina do historiador, uma vez que, nos arquivos, o povo falado mais do que fala, aparecendo como o objeto do discurso administrativo, no como sujeito de um discurso autnomo. E talvez seja preciso, como pregava Michelet, perscrutar - mas como? - os silncios da histria, pois mutaes essenciais se produzem e no so registradas nos arquivos (idem: 354). p. 49] A antropologia teria desenvolvido, desse modo, mtodos e tcnicas apropriados ao estudo de atividades que permanecem [...] imperfeitamente conscientes em todos os nveis em que se exprimem (Lvi-Strauss 1949:32-33). por isso que o trabalho de campo no poderia ser considerado apenas um objetivo de sua profisso, nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem tcnica. Representa um momento crucial de sua educao (Lvi-Strauss 1954:409). Representaria para o antroplogo, enfim, o que a anlise didtica costumava representar para o psicanalista: a nica forma de operar a sntese de conhecimentos obtidos de forma fragmentada e a condio para a justa compreenso at mesmo de outras experincias de campo.Tal concepo do trabalho de campo como uma espcie de processo (ou trabalho, no sentido psicanaltico do termo) aponta para duas questes em geral deixadas de lado tanto pelos etngrafos, quando refletem sobre sua experincia, quanto por aqueles que os criticam sem nunca ter passador por esta. A primeira que o etngrafo tambm , ou deveria ser, modificado por ela. Limitar-se, ento, a comentar a posteriori os efeitos de sua presena sobre os nativos, tecendo comentrios abstratos sobre seu trabalho de campo, parece revelar uma certa sensao de superioridade: invulnervel, o antroplogo atravessa a experincia etnogrfica sem se modificar seriamente, acreditando-se ainda capaz de avaliar de fora tudo o que teria ocorrido. Melhor seria ouvir a advertncia levistraussiana: no jamais ele mesmo nem o outro que ele [o etngrafo] encontra ao final de sua pesquisa (Lvi-Strauss 1960:17).Essa perspectiva a respeito do trabalho de campo e da etnografia parece articular-se muito estreitamente com a ideia estruturalista de que cada sociedade atualiza virtualidades humanas universais e, portanto, potencialmente presentes em outras sociedades. O nativo, nesse sentido, no mais pensado simplesmente como aquele que eu fui (como ocorre no evolucionismo), ou mesmo como aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalismo): ele o que eu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, claro).Ora, se adotarmos um ponto de vista um pouco diferente, podemos talvez ser mais diretos e dizer que o trabalho de campo e a etnografia deveriam deixar de ser pensados como simples processos de observao (de comportamentos ou de vista do outro), ou como uma espcie de transformao substancial (tornar-se nativo). Fazer etnografia poderia ser entendido, antes, sob o signo do conceito de devir - desde que, claro, sejamos capazes de entender bem em que poderia consistir esse devir-nativo.Tentando definir de forma breve o conceito de devir, que cunhou com Deleuze, Guattari escreveu que este um[...] termo relativo economia do desejo. Os fluxos de desejo procedem por afetos e devires, independentemente do fato de poderem ser ou no rebatidos sobre pessoas, imagens, identificaes. Assim, um indivduo antropologicamente etiquetado masculino pode ser atravessado por devires mltiplos e, em aparncia, contraditrios: devir feminino coexistindo com um devir criana, um devir animal, um devir invisvel, etc (Guattari 1986:228)Isso significa que o devir no da ordem da semelhana, da imitao ou da identificao; no tem nada a ver com relaes formais ou com transformaes substanciais: no nem uma analogia, nem uma imaginao, mas uma composio de velocidades e de afetos (Deleuze e Guattari 1980:325). O devir, na verdade, o movimento pelo qual um sujeito sai de sua prpria condio por meio de uma relao de afetos que consegue estabelecer com uma condio outra. Estes afetos no tm absolutamente o sentido de emoes ou sentimentos, mas simplesmente daquilo que afeta, que atinge, modifica: um devir-cavalo, por exemplo, no significa que eu me torne um cavalo ou que eu me identifique psicologicamente com o animal: significa que o que acontece ao cavalo pode acontecer a mim (idem: 193), e que essas afeces compem, decompem ou modificam um indivduo, aumentando ou diminuindo sua potncia (&: 310-311). nesse sentido que existe uma realidade do devir-animal, sem que, na realidade, nos tornemos animal (idem:335).Mas preciso compreender, tambm, o estatuto das duas condies, aquela da qual se sai e aquela por meio da qual se sai. S possvel sair, ou fugir, de uma maioria; esse termo no designa, contudo, uma quantidade relativa maior, mas um estado ou um padro em relao ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores sero ditadas minoritrias (idem: 356). EM outros termos, Deleuze e Guattari buscam distinguir a noo meramente quantitativa de maioria daquela, normativa e valorativa, do maior ou majoritrio. [nota 13 - em geral, complementa os autores, assume-se o ponto de vista da maioria, o que pode ser visto em todas as operaes, eleitorais ou outras, em que se concede o poder de escolha, com a condio de que a escolha permanea conforme aos limites da constante (Deleuze e Guattari 1980:80). [p. 49] De forma correlata, a minoria no se confunde com o minoritrio, e, enquanto a primeira apenas uma quantidade menor, o segundo aquilo que escapa, que foge do padro, que devm: preciso no confundir minoritrio enquanto devir ou processo, e minoria como conjunto ou estado (ibidem). nesse sentido que devir-nativo, por exemplo, no significa tornar-se nativo, o que, se fosse possvel, redundaria simplesmente em sair de um estado (de maioria) para cair em outro (de minoria). Mas tambm nesse sentido que percebemos que s se escapa dos estados maiores por meio das minorias, uma vez que, por desviar do maior, toda minoria comporta um devir-minoritrio, ainda que as minorias propriamente ditas sejam, principalmente, apenas germes, cristais de devir, que s valem enquanto detonadores de movimentos incontrolveis e de desterritorializao da mdia ou da maioria (idem: 134).Um devir-nativo, portanto, implica um duplo movimento: uma linha de fuga em relao a um estado-padro (maioria) por meio de um estado no-padro (minoria), sem que isso signifique reterritorializar-se sobre uma minoria como estado (idem:357), mas, bem ao contrrio, ser capaz de construir novos territrios existenciais onde se reterritorializar. O devir, assim, o que nos arranca no apenas de ns mesmos, mas de toda identidade no fato de que o devir tambm afeta o meio: aquilo que se dvem - ou, para ser mais preciso, aquilo por meio de que um devir se constitui - devm tambm outra coisa, o que significa que o devir-nativo est relacionado a um devir-outro do nativo. [nota 16 - este processo - que os autores denomiam dupla-captura (Deleuze e Parnet 1977:8), duplo-devir (Deleuze e Guattari 1980:357;470;644) ou bloco de devir (idem:360) - talvez sirva para lanar mais luz sobre as complexas relaes entre etngrafo e nativos do que os lugares-comuns repetido, tanto acerca da objetividade cientfica quanto da autoridade etnogrfica. p. 49]. [p. 30-32]

Fravet-Saada - Participar significa a necessidade de o etngrafo aceitar ser afetado pela experincia indgena [...] significa, sobretudo, deixar-se afetar pelas mesmas foras que afetam o nativo, no se colocar em seu lugar ou desenvolver em relao a ele algum tipo de empatia. No se trata, portanto, da apreenso emocional ou cognitiva dos afetos dos outros, mas de ser afetado por algo que os afeta e assim poder estabelecer com eles uma certa modalidade de relao, concedendo um estatuto epistemolgico a essas situaes de comunicao involuntria e no intencional (idem:9). E justamente por no conceder estatuto epistemolgico a essas situaes que a observao participante mais um obstculo que uma soluo. [p. 32,3]

... no se trata simplesmente de relativizar, nem de crer ou no crer na democracia. Como bem observou Velho (1995:172), o lugar de crtica do relativismo parece bastante limitado e talvez seja mesmo necessrio relativizar essa pretenso. Na verdade, trata-se de no ser ingnuo ou apologista demais, nem antroplogo de menos, e reconhecer que, sendo um sistema poltico como outro qualquer, o nosso tambm passvel de uma anlise crtica. Porque, por um lado, o melhor elogio que pode ser feito democracia mesmo o velho adgio segundo o qual ela o pior sistema poltico existente, com exceo de todos os demais (conhecidos). Por outro lado, isso no modifica nada se pretendemos analis-la como antroplogos, cabendo, ento, simplesmente, a busca do melhor meio para faz-lo, pois evidente que essa anlise antropolgica da democracia pode ser efetuada de diferentes modos. [p. 35]

... uma pesquisa realmente antropolgica sobre poltica desenvolvida ao movimento negro em Ilhus no deveria consistir tanto no estudo desse movimento em si ou da poltica na cidade, nem mesmo no estudo das relaes entre ambos, mas em uma anlise da poltica oficial na cidade orientada pela perspectiva ctica que o movimento negro tem a seu respeito. O que pode parecer simples nuana , na verdade, uma questo fundamental, uma vez que se apia em opes metodolgicas e epistemolgicas cruciais - ainda que inicialmente algo involuntrias -, as quais abriram outras perspectivas para a compreenso da prpria poltica como um todo e em seu sentido mais oficial. [p. 35]

... Latour denuncia o erro da antropologia de nossa sociedade em imaginar s poder estudar o primitivo em ns: o grande repatriamento, diz ele, no pode parar a e seria preciso passar a estudar as dimenses centrais. Centrais para quem? [seguindo Latour poderamos pensar central no sentido em que uma estao ferroviria central simplesmente por possuir um maior nmero de conexes em uma rede [nota 21] Assim, para permanecer fiel ao ponto de vista nativo, ser preciso, ento, renunciar capacidade de conferir uma inteligibilidade mais global? Ou, para atingir uma tal inteligibilidade, ser necessrio tratar a perspectiva nativa como simples parte do objeto e explic-la a partir do nosso ponto de vista tido como superior?. [....] Parece-me, assim, que uma outra possibilidade para a chamada antropologia das sociedades complexas seria a manuteno do foco tradicional da disciplina nas instituies tidas como centrais e a busca, por meio de uma espcie de desvio etnogrfico, de um ponto de vista descentrado. Ou seja, se, como pretende Herzfeld (2001:3-5), a caracterstica da antropologia a investigao daquilo que marginal em relao aos centros de poder, preciso admitir que uma tal marginalidade poderia localizar-se no apenas nos prprios fenmenos, mas tambm, e talvez principalmente, na perspectiva sobre eles. [p. 36,7]

... no caso especfico da poltica, uma razo suplementar poderia ser invocada a favor da valorizao das teorias nativas. Como observou Michel Foucault, uma das grandes novidades que apareceram a partir da dcada de 1960 foi o que ele denominou insurreio dos saberes dominados (Foucault 1976:163), seja no sentido da memria de certas modalidades de resistncia que as formalizaes tericas tendem a mascarar em benefcio do que consideram as nicas lutas verdadeiras [...] seja naquele da existncia de saberes locais que tendem a ser desacreditados pelo saber oficial. O acoplamento entre o saber sem vida da erudio e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das cincias permitiria, assim, a reativao dos saberes locais - menores, diria talvez Deleuze - contra a hierarquizao cientfica do conhecimento e seus efeitos intrnsecos de poder (idem:164-165).

Em lugar de abordar a poltica em si mesma e por si mesma, trata-se, pois, nos termos de Foucault (1980:101-102), de tentar decodific-la por meio de filtros oriundos de outros campos sociais. De certa forma, esse trabalho de decodificao poderia ser a prpria definio de uma antropologia poltica em sentido estrito, embora a expresso venha conotando h muito tempo coisas bem diferentes. [p. 38, 9]

... na medida em que a antropologia nascente se atribuiu como objeto justamente as sociedades no polticas, deve-se sublinhar que foi a partir desse isolamento do poltico (no duplo sentido de que este delimitado e obliterado) que a antropologia construiu seus objetos preferenciais: o parentesco, contraface do poltico nas sociedades sem Estado; a religio, derivada do parentesco por meio da exogamia e do totemismo; e, pouco mais tarde, a economia primitiva, deduzida da exogamia por meio da troca e da reciprocidade. Mais tarde, a antropologia poder, desse modo, reencontrar o poltico, mas definindo-o primeiramente apenas por suas funes e, depois, por sua disperso.No primeiro caso - que se passa por ser funo de uma antropologia poltica -, temos uma definio substantivista, no sentido de que a poltica um domnio, ou um subsistema, social especfico. A crtica a esse modelo no tardou e na segunda metade da dcada de 1950 a ideia da poltica como rea especfica das relaes sociais substituda pelo princpio formalista [...] de que a poltica um aspecto de qualquer relao social. Essa crtica, sem dvida, possibilitou novas abordagens da poltica, efetuadas de um ponto de vista antropolgico e sem o pressuposto de que existiria algum tipo de particularidade na poltica como subsistema social especfico.por outro lado, o carter em geral microscpico dessa concepo de poder no deixou de produzir estranho efeitos. Em primeiro lugar, um certo risco de, ao ser aplicada sobre qualquer relao social, perder de vista o carter estruturante da poltica. Ou, afim de evitar essa armadilha, um afastamento da perspectiva antropolgica e a busca de refgio nos modelos macroscpicos da sociologia e da cincia poltica - de quem a antropologia seria assim uma espcie de auxiliar menos.Mais srio do que isso, entretanto, so os riscos gerados pelo carter potencialmente tentacular de uma concepo formalista de poltica: como observou Georges Balandier (1969:25-26), ela tende quase que inevitavelmente a se tornar maximalista, o que significa confundir o poltico e o social (ou seja, tudo o que os seres humanos fazem). O efeito dessa confuso paradoxal: enquanto as concepes substantivistas da poltica sempre buscaram relacionar o que concebiam como um domnio da sociedade com suas outras dimenses (economia, parentesco, religio etc.), o formalismo poltico tem a m tendncia de reduzir todas essas dimenses s relaes de poder e, desse modo, a no investigar a experincia total da qual a poltica, assistimos assim, h algumas dcadas, a uma reificao sem par do poltico. [p. 39, 40]

... abordar a poltica a partir do ponto de vista nativo no significa ficar aprisionado nas elaboraes locais, mas produzir teorias etnogrficas que possuam, ao menos, trs objetivos. O primeiro livrar-se das questes extrnsecas colocadas seja por reformadores sociais, seja por revolucionrios ou cientstas polticos - j que se conhece bem a relao de interdependncia que parece existir entre a cincia poltica e o nosso sistema poltico, em especial a democracia representativa, com suas eleies e votaes. Como a economia, a cincia poltica nunca conseguiu resolver o dilema de ser um conhecimento terico e crtico ou uma simples tcnica de interveno e engenharia social. Alm disso, do ponto de vista nativo, aquilo que pode ser definido como poltica est sempre em relao com o restante das experincias vividas pelos agentes, o que evita a tentao da substancializao e literalizao do poltico. Finalmente, pode-se ao menos tentar evitar o uso normativo ou impositivo de categorias, projetando sobre os contextos estudados questes que no so a eles pertinentes. Nosso problema de traduo, no de imposio, e isso, parodoxalmente, complica-se quando pesquisamos na lngua que falamos e na sociedade em que vivemos. Poltica, por exemplo, parece ser, simultaneamente, um objeto (ou uma categoria nativa) e um conceito. Na verdade, no se trata, ao menos em estado puro, de nenhuma das duas coisas, mas de um dispositivo histrico que permite recortar, articular e refletir, de maneiras diferentes, prticas e experincias vividas. Nossa tarefa consiste, assim, no apenas em abordar abstratamente as conceptualizaes nativas, mas em apreend-las em ato, ou seja, no contexto em que aparecem e segundo as modalidades concretas de sua atualizao e utilizao, levando o esforo de restituio das dimenses micas das noes at as ltimas consequncias.Em segundo lugar, uma antropologia da potica deve evitar cuidadosamente as abordagens efetuadas em termos negativos - aquelas que privilegiam as faltas, ausncias, ideologias e manipulaes. Muitas vezes, imaginamos que a poltica ou deva ser algo, e nos surpreendemos porque essa definio ou concepo no partilhada com os agentes, atribuindo-nos, assim, a tarefa de analisar uma realidade tida como estranha simplesmente porque foi mal recortada. Tudo se passa como na reao de Marx aos neo-hegelianos que no conseguiam compreender como o mundo real podia no obedecer aos modelos de Hegel: crticas tericas ou ideolgicas contra o estado emprico das coisas, ou contra supostos preconceitos e esteretipos, no podem levar ao abandono do real. Como observou Chtelet (1975: 33-34), ao enfatizar o carter etnogrfico do O Capital, a nica soluo para aqueles que no acreditam que a histria pode no ter razo a observao direta das atividades concretas dos seres humanos e a elaborao de etnografias. Trata-se, em suma, de reencontrar a dimenso (micro)sociolgica da poltica e a dimenso (micro)poltica da sociologia, escapando tanto de uma cincia poltica que d as costas para as relaes sociais concretas, quanto de uma sociologia que evita encarar de frente as relaes de poder.Finalmente, uma verdadeira antropologia da poltica recusa, como vimos, a falsa distino entre o central e o perifrico. Para isso, submete essa dicotomia perspectiva nativa, procedendo por meio da ampliao do campo de anlise e fazendo a entrar o que normalmente se exclui da poltica: os faccionalismos, as segmentaridades, as redes sociais, certamente; mas tambm o parentesco, a religio, a arte, a etnicidade etc. No para desvendar supostas relaes entre subsistemas relativamente autnomos; tampouco para revelar que atrs de tudo isso estariam ocultas relaes de poder que ao mesmo tempo motivariam os seres humanos e seriam a explicao de tudo o que eles fazem. A tarefa mais modesta: evitar, como adverte Jos Carlos Rodrigues (1992:52, gripo do autor), que as teorias sobre o poder se transformem em teorias de poder; elaborar teorias etnogrficas capazes de devolver a poltica quotidianidade, essa espcie de tdio universal existente em toda cultura (Veyne 1996: 248-250); reinseri-la na vida e evitar cuidadosamente as sobreinterpretaes e literalizaes que, em ltima instncia, so as armas dos poderes constitudos; finalmente, ao menos tentar vislumbrar aquilo que, por vezes de modo silencioso, escapa sempre a essa mesma quotidianidade. [p. 41,2]

Cap. 1 - 2002: Memorial da Cultura Negra de Ilhus

nota 15 - Como demonstrou Paul Veyne [...] a subjetividade parte integrante da vida poltica, e os humanos, ao obedecerem ou ao se recusarem a obedecer, pensam algo de si mesmos, de seus senhores e das relaes entre ambos: o indivduo atingido no corao pela potncia pblica quando atingido em sua imagem de si, na relao que tem consigo mesmo quando obedece ao Estado ou sociedade (Veyne 1987:7). E se existem diferenas de classe nos modos de subjetivao poltica (idem:10-11), eu arriscaria dizer que, ao menos em Ilhus, o desejo de reconhecimento parte constitutiva desses processos, que no so nem ideologias, nem simples simbolismos, nem mesmo puros princpios de legitimao, constituindo, ao contrrio, um enjeu particular e uma dimenso de luta especfica, ao lado da economia ou do poder (idem: 14-15). [p. 91]

Cap. 2 - 1996: Pesquisa

... se a poltica uma atividade invasiva, mesmo aqueles que no so polticos podem, s vezes, pratic-la - e isso no se aplica apenas no sentido de poltica partidria ou oficial. Quando se suspeita de que algum est tentando uma manobra no interior de um bloco afro ou de um terreiro de candombl visando ampliar sua esfera de influncia, conquistar uma posio de maior prestgio ou obter algum tipo de vantagem material, pode-se acus-lo de estas fazendo poltica. Do mesmo modo, deixe de (fazer) poltica (quer dizer, seja sincero, claro, direto) no uma expresso incomum em Ilhus.Foi Moacir Palmeira quem chamou a ateno para o fato de que uma investigao antropolgica da poltica em nossa prpria sociedade deve, necessariamente, levar em conta a multiplicidade de concepes e significados de que se reveste o termo. Isso no significa, claro, que basta sustentar o carter polissmico de poltica para que nossos problemas se resolvam. Seria preciso compreender essa polissemia em um sentido mais sociolgico ou sociopoltico e reconhecer que diferentes concepes de poltica esto sempre em coexistncia, interpretando-se e opondo-se em um espao social hierarquizado. Assim, os eleitores em geral tendem a conceber a poltica como uma atividade transitria (que comea e termina a cada dois anos, por exemplo), transcendente (uma vez que pensada como exterior e superior ao grupo de referncia) e poluente (j que contamina as relaes sociais com manipulaes e falta de sinceridade) - disruptiva, em suma. Por outro lado, quando nos aproximamos do domnio institucionalmente designado como poltica, ou quando nos deparamos com agentes sociais que tendem a considerar sua ao como poltica, defrontamo-nos com uma concepo mais substancialista e moralmente neutra, definindo a poltica como uma esfera ou domnio idealmente permanente e contnuo, imanente e positivamente valorado.Ora, o fato de a poltica, de acordo com a primeira concepo isolada, possuir idealmente uma temporalidade prpria - uma vez que, na prtica, claro que as relaes entre os polticos e seus eleitores so permanentes, ainda que com graus de intensidade variados [...] - remete ao que Palmeira e Heredia denominaram tempo da poltica. preciso observar, contudo que essa noo parece funcionar melhor quando se limita a transcrever uma concepo nativa dos eleitores, a qual tende a enfatizar o carter temporrio de seu envolvimento na atividade poltica - o que faz com que esta, de seu ponto de vista, praticamente se confunda com o processo eleitoral. No se trata, pois, de uma realidade em si mesma - j que, como se sabe, as transaes polticas ocorrem o tempo todo -, nem de uma representao nativa genrica - uma vez que se desdobra, em funo das diferentes concepes de poltica presentes em qualquer cenrio concreto. Em outros termos, existem sempre muitos tempos da poltica em conexo e/ou competio: o dos polticos em geral; o dos candidatos, seus assessores e cabos eleitorais; o dos eleitores comuns e o dos mais engajados [...]. Essas temporalidade parcialmente heterogneas se interpenetram de forma fundamentalmente assimtrica, pois uma coisa aproveitar as eleies para obter, taticamente, digamos, pequenas vantagens ou empregos em geral transitrios; outra desenvolver estratgias para o controle de posies e cargos socialmente tidos como muito importantes. E no h dvida de que aquilo que vlido para o tempo no o menos para o espao (ver Barreira 1998:13). [p. 119-121]

Moacir Palmeira (1991: 119-121; 1992: 27; 1996:45-46) estabeleceu uma importante distino entre o voto enquanto escolha (de carter, em tese, individual, dependendo, portanto, da elaborao de critrios prvios) e o voto enquanto adeso (coletivo e dependente de certas lealdades assumidas por meio de compromissos). Creio que a distino tem, sobretudo, um valor idealtpico. Por um lado, como adverte Palmeira, porque o voto-adeso no supe, absolutamente, a fatalidade de algumas lealdades primordiais, j que cada um est envolvido em mltiplas redes de lealdades e obrigaes, podendo invoc-las alternativamente, o que faz com que as adeses sempre impliquem escolhas e confere ao sistema uma grande flexibilidade. Por outro, porque claro que o voto-escolha no supe a existncia de um eleitor inteiramente livre e independente (o que contrariaria qualquer anlise verdadeiramente sociolgica ou antropolgica), suas escolhas envolvendo sempre adeses prvias. Assim, essas duas modalidades correspondem mais a imagens do voto do que a tipos empiricamente existentes, e entre elas escalona-se toda a variedade de processo de deciso eleitoral que a observao etnogrfica campaz de atingir )e s quais retornaremos).Essas modalidades parecem relacionadas, ademais, a diferentes formas de avaliar a poltica. Uma, de carter, digamos, dedutivo, tende a partir de grandes questes e valores transcendentes para chegar at, por exemplo, um voto para vereador; a outra, indutiva, parece tomar como ponto de partida as experincias mais imediatas - experincias que, como observou Herzfeld (1985:260), tendem a gerar pouca f no processo democrtico em geral -, procedendo, ento, por alargamentos progressivos de seu campo de apreciaes. E, como pode rapidamente ser comprovado por meio do contraste entre as grandes obras da cincia poltica e a leitura das sees de poltica de qualquer jornal, a democracia pode ser abordada tanto pela via de seus registros macroscpicos (seus grandes ideais, a liberdade, a igualdade, a representao etc.), quanto em seu microfuncionamento (as negociaes, os acordos, as barganhas). [nota 36 - Nesse ltimo caso, tudo parece passar-se como na descrio das operaes capitalistas feita por Deleuze e Guattari (1972:314): como a coisa, o capitalismo, que o inconfessvel comea: no h uma operao econmica ou financeira que, traduzida em termos de cdigo por hiptese, no faria explodir seu carter inconfessvel. p. 134] [p. 123,4]

Cap. 3 - 1992: Centro Afro-Cultural

Territrios existenciais (Guattari, 1989:29) - resultado de investimentos criativos que, certamente, podem estar articulados a bases espaciais, mas tambm a uma infinidade de outras relaes. por constituirem territrios existenciais, que os territrios negros, no Brasil, no so jamais exclusivamente negros. por isso, tambm, que a africanidade que se costuma invocar para defini-los no diz respeito a uma frica real, imaginria ou simblica, no sentido usual desses termos, mas a uma experincia existencial na qual frica funciona como um ritornelo - um refro que, incessantemente acionando, traa um territrio e [...] se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (Deleuze e Guattari 1980:397), criando territrios existenciais e erguendo barreiras contra as foras do caos (idem: 382. [p. 139, 140]

nota 8 - As ideias no morrem. No que elas sobrevivam simplesmente ttulo de arcasmos. Mas, em um momento, elas puderam atingir um estgio cientfico, e depois perd-lo, ou ento emigrar para outras cincias [...]. As ideias, elas sempre voltam a servir, porque elas sempre serviram, mas segundo os mais diferentes modos atuais (Deleuze e Guattari 1980: 287). [p. 184]

Goldman busca, sobre o conceito de segmentaridade, assinalar os deslocamentos necessrios, visando uma generalizao do conceito ou, para ser mais preciso, as transformaes que facilitem a migrao desse conceito. Para isso, creio, preciso primeiramente recusar a falsa dicotomia entre ideologia e prtica (ou princpio ideal e organizao real, ou como se quiser denominar) e aceitar, com Lienhardt (1958:106, 114), que a segmentaridade , sobretudo, e no sentido forte do termo, uma teoria poltica nativa, que serve, simultaneamente, para explicar e orientar a prtica poltica. Nesse sentido, ela informa e d sentido ao, sem que tenha que corresponder ponto por ponto ao que agentes e antroplogos crem observar empiricamente. [nota 9 - por isso que Jeanne Fravet-Saada pod sustentar que uma disposio para a segmentao mais importante que a segmentao propriamente dita, e que um sistema segmentar parece repousar menos sobre a oposio dos segmentos do que sobre a repartio das oposies sobre um certo nmero de nveis ou de encaixamentos ordenados uns em relao aos outros (Fravet-Saada 1966: 109-110). p. 184]Em segundo lugar, estritamente necessrio libertar o conceito de seu vis sociologizante ou culturalizante, e repetir que a segmentaridade no se confunde com um determinado tipo de sociedade (ou mesmo com as linhagens) [nota 10 - a teoria da linhagem e a segmentao no so a mesma coisa; de fato, elas representam dois diferentes tipos de antropologia. O primeiro trata de sequncias de eventos no plano da observao (e em particular com a aparncia dos grupos), enquanto o segundo trata de relaes formais que caracterizam os tipos de eventos possveis (Dresch 1986:309)], nem constitui uma particularidade cultural qualquer (Herzfeld 1992:66). Contudo, liberar a segmentaridade desse vis sociologizante significa igualmente liber-la do tipologismo, da grande diviso que aprisiona o conceito, a oposio entre sistemas segmentares e sistemas estatais. Os segundos, na verdade, so to segmentares quanto os primeiros (Deleuze e Guattari 1980: cap. 9; Herzfeld 1992), ao menos a partir do momento em que passamos a nos interessar mais pelos processos do que pelas formas, moviemento que permite que nos afastemos do morfologismo, o outro grande fantasma que espreita a teoria da segmentaridade.Aconteceria, ento, segmentaridade o mesmo que ao totemismo. Encarada como instituio, s pode conduzir a uma iluso, contribuindo para exotizar e exorcizar formas de vida social consideradas incompletas por no possurem o Estado (Herzfeld 1987: 156) - servindo, assim, por contraste, para reforar certa ideia de identidade europia (idem: 165) -, e, mais do que isso, por operarem com princpios dificilmente assimilveis ideia de identidade dominante no Ocidente. Encarada como processo, ao contrrio, a segmentaridade pode aparecer como fenmeno universal, o que basta para afastar toda tentao tipolgica: a segmentao at recentemente era tratada como um tipo extico em vez de um aspecto universal da vida poltica (idem: 158 - grifos do autor). Na verdade, a segmentao representa um dos modelos de relatividade social acionados em qualquer sociedade: a segmentao o arranjo relativo das alianas polticas de acordo com critrios genealgicos, ou outros, de distncia social entre grupos em disputa (idem: 156 - grifos meus). apenas a presena de uma ideologia substancialistam tpica dos Estados nacionais, que faz com que, em algumas sociedades, o grau de reconhecimento da segmentaridade seja menor do que em outras. E a presena dessa ideologia no interior da reflexo antropolgica que faz com que noes como estrutura social ou mesmo organizao social acabem sendo compreendidas em uma acepo puramente morfolgica, no funcional ou processual. A segmentaridade , portanto e sobretudo, uma perspectiva - uma viso segmentar do mundo, como diz Herzfeld (1985:116) - a partir da qual tambm o antroplogo deve observar a realidade social, ao menos quando realmente deseja ser livre de todo atomismo e de todo subtancialismo. Em suma, trata-se de reconhecer que - assim como o princpio de reciprocidade significa, em ltima instncia, que dar e receber so um e a mesma coisa - princpio de segmentaridade significa apenas que oposio e composio formam sempre uma totalidade indecomponvel. [p. 143,4]

Tudo se passa, na verdade, como se fosse preciso, digamos, desnuerizar a segmentaridade. Pois parece ser o modelo nuer que faz comque os antroplogos s percebam a forma piramidal da estrutura segmentar - forma que, nos termos de Deleuze e Guattari, poderia ser denominada arborescente. As linhagens dinka, ao contrrio, apresentam um aspecto muito diferente, aproximando-se do que esses mesmos autores denominam rizomtica (Deleuze e Guattari 1980). [nota 15 - conectividade, heterogeneidade e multiplicidade, bem como o carter a-significante, no estrutura e no generativo, constituem os seis princpios do rizoma, em oposio rvore (Deleuze e Guattari 1980:15-25)]. A segmentao no pode, assim, ser oposta em bloco ao Estado, no apenas porque o Estado est por ela permeado, como tambm porque existem modalidades distintas de segmentao - e isso mesmo nas chamadas sociedades segmentares. [p. 145]

... um antroplogo no poderia deixar de lembrar que, h muito tempo, Lvi-Strauss (1955: 1962) revelou que a distino entre histria e mito muito menos ntida do que imaginamos ou gostaramos. nesse sentido que estou convencido de que a melhor abordagem antropolgica sobre a histria de Ilhus deveria proceder de uma investigao de todas as narrativas encontradas (de todas as verses da histria de Ilhus, diria certamente Lvi-Strauss), efetuada com o auxlio do mesmo mtodo elaborado por esse autor para a anlise dos mitos. Encontraramos, desse modo, certamente, a srie de oposies em torno das quais a histria local parece ser construda, compreendida e instrumentalizada: entre um passado selvagem e pobre e um presente civilizado e rico; entre outro passado, glorioso, e um presente algo medocre; entre a regio, por um lado, e o Estado, o pas e o mundo, por outro; entre a natureza prdiga, mas difcil e inspita, e a cultura; e assim sucessivamente. [p. 148]

nota 20 - a histria no , pois, nunca a histria, mas a histria-para (Lvi-Strauss 1962:341). [p. 186]

Trata-se aqui, por um lado, de fornecer ao leitor os elementos que inevitavelmente intervm na anlise propriamente etnogrfica e antropolgica que constitui o objetivo deste trabalho; por outro, trata-se de reconhecer que, se um contexto existe, ele s pode, ou s deve, ser apreendido por um antroplogo do ponto de vista de seus informantes, o que faz com que a histria local - e mesmo Ilhus - sejam, fundamentalmente, o que se convencionou designar categorias nativas. [p. 150]

Temas como compra de votos, promessas eleitorais e a fraqueza das instituies democrticas no Brasil, so abordados a partir de perspectivas inteiramente negativas, em um duplo sentido: condenam, explcita ou implicitamente, as prticas analisadas, e tentam explic-las a partir de noes problemticas (as mesmas, alis, que as elites costumam acionar), como alienao, privao material, ignorncia ou logro. [...] o principal problema dos antroplogos costuma ser uma tendncia a subordinar as prticas e ideias muito concretas com que se defrontam em campo a princpios gerais que supostamente serviriam para dar conta do que observado. Assim, a compra de votos poderia ser explicada em funo do papel dominante que valores clientelistas e relaes de reciprocidade desempenhariam em certas camadas da populao. As promessas eleitorais se tornariam inteligveis porque, afinal de contas, estaramos s voltas com um universo social regido por relaes pessoais. E mesmo o ceticismo e a falta de participao poltica poderiam ser atribudos pouca adeso aos valores democrticos caracterstica de culturas no individualistas.O problema que, como todas as abordagens culturalistas, as explicaes que privilegiam a chamada cultura poltica tendem a ser circulares [...] operando por meio de uma curiosa sindoque: o etngrafo atinge o que considera valores centrais a partir da observao emprica de um nmero necessariamente limitado de comportamentos e ideias e, em seguida, busca extrair desse material algum princpio abstrato, que ele aplica indiscriminadamente a qualquer comportamento ou ideia observveis, os quais, por sua vez, passam a funcionar como simples confirmao de que o valor isolado mesmo determinante.Essa circularidade, por sua vez, instaura uma confuso, apontada por Pierre Clastres [...] entre o emprico e o transcendental. Pois, se bvio que a compra de votos ou as promessas eleitorais so prticas e representaes empiricamente observveis, isso no diz nada acerca do valor moral e de verdade a elas atribudo, os quais constituem um espao aberto para a divergncia, o conflito, a negociao e a mudana de opinio. Ao converter aes e smbolos muito concretos em categoriais, valores ou padres, corremos o risco de eliminar todo esse campo de variao, transmutando a troca, por exemplo, em uma espcie de razo transcendental do voto. Ao faz-lo, perdemos de vista tanto a polissemia sociolgica dos termos com que trabalhamos, quanto a dinmica social que devemos tornar inteligvel. Finalmente, como observou Richard Graham (1997:19-21), fatores culturais no constituem determinantes exteriores, prontos a serem acionados quando se deseja explicar o clientelismo, o autoritarismo ou a inflao: o que se denomina cultura o resultado de um processo em contnua elaborao, no um dado extrnseco e supostamente objetivo.Em contraste com noes desse gnero [...] creio ser mais prudente operar por meio de uma espcie de pluralizao nominalista das categorias. Como demonstrou Paul Veyne (1976: 81-82), preciso substituir grandes e vagas noes, como reciprocidade ou redistribuio, por uma terminologia mais cuidadosa e mais afinada com a realidade: se dom, presente, troca, escambo, homenagem, prestao, endividamento, investimento, compra e venda etc. inegavelmente fazem parte de um campo sociossemntico comum, um absurdo subsumir todas essas variedades de relao em uma categoria como reciprocidade. Ao contrrio, trata-se de usar a diversidade terminolgica como instrumento destinado a dar conta da diversidade dos usos da reciprocidade, elaborando, assim, mais uma pragmtica sociolgica que uma semntica ou uma sintaxe.Assim, a compra de votos, por exemplo [...] faz parte de um modo de viver e pensar a poltica, e apenas sua condenao moral prvia que impede a percepo dessa obviedade antropolgica. [p. 167, 8]

... se do ponto de vista do movimento negro, o trabalho na campanha e a construo do Centro Afro-CUltural podem, de fato, ser encarados como os elementos de uma troca, digamos, restrita, o mesmo no ocorre quando encaramos o fenmeno do ponto de vista dos candidatos e polticos. Para estes, o compromisso de construo do Centro Afro-Cultural aparece, antes, como uma espcie de dvida, cuja quitao pode ser adiada ou rolada. Na verdade, o que ocorreu que ela foi cuidadosamente postergada at o momento em que pde ser inscrita em uma nova transao eleitoral. Esta, por sua vez, j fazia parte de um novo ciclo de transaes, inserido em outras eleies. por isso que, em certo sentido, esse tipo de dvida no pode nunca ser pago: seu carter aberto a garantia da continuidade dos fluxos de relaes e votos. [nota 40 - nos termos de Deleuze (1990:221-222), os eleitores esto sempre entre a quitao aparente (ou seja, imaginam que saldaram sua dvida, mas ela, certamente, ainda ser cobrada mais uma vez) e a moratria ilimitada (quando se posterga o pagamento, mas se mantm a obrigao). [p. 188]

... tanto as formas de reciprocidade quanto as estruturas de mercado so capazes de fornecer modelos alternativos, que no apenas servem para a ao, como podem ser retoricamente acionveis por quaisquer das partes envolvidas em uma determinada relao. [p. 170]

... uma promessa eleitoral no identificvel por caractersticas que lhe seriam prprias. o contexto, o debate e a negociao que fazem com que uma proposio seja uma promessa, um compromisso, uma mentira ou qualquer outra coisa. [...] Em segundo lugar, preciso observar que todos esperam que polticos faam mesmo promessas, e que preciso saber lidar com elas. [...]Ora, como demonstraram, h bastante tempo, alguns filsofos da linguagem (Austin 1961; 1962; Searle 1969), as promessas no se justificam por um referente objetivo que lhes seria exterior e em relao ao qual sua veracidade poderia ser medida. So, nesse sentido, ilocutrias, o que significa que istauram aquilo mesmo a que se referem [...] No entanto, se seguirmos uma distino de Austin (1962:101-102), as promessas so tambm, e talvez sobretudo, perlocutrias, na medida em que produzem efeitos e consequncias sobre os sentimentos, pensamentos ou aes da audincia, do falante ou de outras pessoas [...] [nota 43 - como sugeriu Tambiah (1984:33), preciso combinar a ideia do performativo da filosofia da linguagem com a de performance como atuao - e isso no apenas no sentido de atuao teatral, mas naquela de atuar sobre, influir, o que tornaria quase intil a advertncia de Bourdieu (1982: 95-96) de que a eficcia simblica das palavras se exerce apenas na medida em que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como podendo exerc-la de direito. Pois no h quem no saiba que a fora ilocutria das expresses, seu poder instituinte, no pode ser buscada nas prprias palavras, mas no carter institucional da linguagem, na autoridade de quem a utiliza. p. 188] Uma promessa, em suma, uma palavra de ordem, no feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer, no te nada a ver com a verossimilhana ou com a veracidade e demonstra uma total indiferena [...] em relao a qualquer credibilidade (Deleuze e Guattari 1980:95-96). No se trata nunca, portanto, de mentira, uma vez que esta supe ainda certa relao com a verdade e, mesmo, algum respeito por ela, j que, ao mentir, em geral deseja-se a crena de outrem. [nota 44 - crena que, claro, no se confunde com outras, na medida em que existem, como sustenta Veyne (1976:624), diferentes modalidades de crena, dotadas de sabores diferentes: crenas-assertiva, crena-delkiberao, ato de f, crena-promessa, lgica ideolgica etc. (nfase minha). A crena-promessa, alis, j ilustra com preciso o que Mannoni (1973) considera a estrutura bsica das crenas em geral, a qual pode ser resumida na famosa formulao eu sei, mas mesmo assim.... p. 183] Ao contrrio, o regime discursivo de que fazem parte as promessas no tem qualquer relao com a verdade e com a mentira, pois nelas, de acordo com a terrvel frase de Goebbels, no falamos para dizer alguma coisa, mas para obter um determinado efeito (apud Santos 1989: 148).Palmeira e Heredia (1995: 47-48, 72-74; ver tambm 1973) tm, pois, toda a razo em aproximar as promessas (e os programas, dos quais as primeiras parecem s se distinguir retoricamente) [nota 45 - Garrigou (1992: 237-238) a poltica democrtica um mercado de promessas batizadas de programas (acrescentando, em nota, que isso no uma perverso, mas a prpria substncia da democracia eleitoral.) p. 189] das acusaes, o outro gnero que povoa a maior parte dos discursos polticos: [nota 46 - Barreira (1998:49) contrasta as promessas com os acordos, sublinhando que as primeiras so pblicas e tendem a no ser cumpridas, enquanto os segundos costumam ser restritor e, via de regra, cumpridos. p. 189] ambas so performticas (ilocutrias e perlocutrias), ainda que as primeiras sejam mais dirigidas a coletividades e as segundas a reputaes individuais; ambas instauram circuitos de comunicao e estabelecem vnculos envolvendo subjetividades, ainda que as promessas estejam ligadas ao futuro e as acusaes ao passado e ao presente. Como vimos no captulo anterior, o abandono do privilgio da sintaxe e da semntica em benefcio de uma pragmtica que permite evitar os falsos problemas colocados pelas promessas eleitorais. Em lugar de insistir na busca de sua lgica ou de seus referentes, trata-se, simplismente, de assinalar que promessas e acusaes exigem muito mais aceitabilidade do que credibilidade (ver Herzfeld 1982: 645-646, 657) e que, para isso, devem ser formadas seguindo formas e adotando categorias convencionais, que garantam sua legitimidade.[p. 171-3]

[...] h mltiplas definies de faces, mas entre os antroplogos h um certo consenso de que se trata de unidades de conflito, cujos membros so arregimentados por um lder com base em princpios variados. Em geral, esto em jogo conflitos considerados polticos (envolvendo o uso do poder pblico). As faces no so grupos corporados (via de regra os autores pensam-nas como quase-grupos didicos no corporados, etc.) (Palmeira 1996:54, nota 5)Isso significa, parece-me, que o conceito descritivo e morfolgico, enquanto a noo de segmentaridade, como observei anteriormente, destina-se, sobretudo, a caracterizar processos, no grupos. [...] preciso frisar ainda - e esse ponto crucial - que a aplicao do conceito de segmentaridade nas sociedades com Estado no consiste, de forma alguma, na simples transposio de tipologias que funcionavam entre sociedades ou culturas para um plano intra-social ou intracultural qualquer. Ou seja, no se trata de supor que, no interior de sociedades estatais, o Estado funcione de modo inteiramente centralizado, enquanto pequenas aldeias, grandes famlias, blocos afro ou terreiros de candombl obedeam a princpios segmentares. Ainda que a estrutura segmentar do Estado seja em geral uma segmentao dissimulada (Herzfeld 1992: 104), ela existe; ao mesmo tempo, unidades segmentares so continuamente cooptadas pelo aparelho de Estado, passando a obedecer a uma lgica da centalizao. Entre segmetaridade e Estado as relaes tambm so de oposio e de composio, e preciso reconhecer o carter necessariamente segmentar de, virtualmente, qualquer Estado-Nao (Herzfeld 1992: 63 - grifo do autor).[p. 174,5]

... se, nas sociedades dotadas de linhagens, o processo de segmentao parece transcorrer sobre um plano diacrnico irreversvel, e se, por outro lado, o conjunto das operaes de segmentao e fuso est inteiramente dado, como possibilidade, a cada instante, no caso das formaes segmentares em sociedades de Estado tudo parece passar-se sobre um eixo diacrnico reversvel, que permite que segmentos separados se renam para se dissolver mais adiante e, eventualmente, se reunir de novo.Alm disso, a politizao da noo de segmentaridade permite perceber que nem sempre a lgica do famoso provrbio rabe eu contra meus irmos; meus irmo e eu contra meus primos; meus primos, meus irmo e eu contra o mundo (Salzman 1978:53; Fravet-Saada 1966:108) realmente posta em prtica. [...] em poltica no incomum que alianas que cortam o espao segmentar sejam efetuadas. [p. 177]

Os principais ganhos metodolgico, terico e, eventualmente, poltico obtidos com a aplicao de um conceito plural de segmentaridade nossa prpria sociedade talvez seja, na verdade, o aumento de nossa capacidade de tornar inteligveis mecanismos por meio dos quais se d a articulao entre segmentos polticos e unidades derivadas de outros processos de segmentao. Pois, ao contrrio do que poderia ocorrer ao confrontarmos sociedades distintas, o fato de estarmos s voltas com diferentes lgicas sociais no pode aqui ser reduzido a uma simples questo de alternativas culturais - nem, muito menos, a uma espcie de jogo de soma zero no qual essas lgicas apenas se equivaleriam. Trata-se, na verdade, de mecanismos complementares assimtricos, que, longe de simplesmente se oporem ou exclurem, articulam-se entre si, na medida em que so alternativamente acionados, de diferentes maneiras, por agentes especficos que atuam em contextos precisos. Os resultados sociopolticos derivados do confronto e interpretao desses mecanismos tendem a infletir-se mais na direo de alguns deles do que de outros. [p. 177,8]

Deleuze e Guattari (1980), sobre segmentaridade, partem da noo proposta pelos africanistas britnicos em 1940 e procedem mediante ampliaes sucessivas do alcance do conceito. Em primeiro lugar [...] enumeram trs modalidades de segmentaridade, binrias, circulares e lineares (convm, talvez, repetir que essas modalidades, ou modulaes da segmentaridade, no constituem, de forma alguma, tipos: elas apresentam, ao contrrio, um carter dinmico, de tal forma que se passa, incessantemente, de uma a outra, como j veremos). EM seguida, em uma manobra apenas provisria, tratam de distinguir uma segmentaridade primitiva e uma de Estado: se, no primeiro caso, subsiste certa flexibilidade, no segundo, temos uma segmentaridade dura (idem: 255). E, se a segmentaridade primitiva flexvel, isto se deve ao fato de que os diversos centros de cada domnio de segmentao (territrio, parentesco, idade etc.) jamais coincidem - o melhor exemplo disso a impossibilidade de adequar completamente genealogia e territrio, impossibilidade com a qual se chocaram quase todos os que trabalharam com a segmentaridade. Por outro lado, justamente o Estado que deve ser concebido como o espao de ressonncia de todas as segmentaes, as quais se tornam, desse modo, duras:[...] a segmentaridade torna-se dura, na medida em que todos os centros ressoam [...]. O Estado central no se constitui pela abolio de uma segmentaridade circular, mas por concentricidade dos crculos distintos ou por uma ressonncia dos centros [...]. As sociedades com estado comportam-se como aparelhos de ressonncia, elas organizam a ressonncia, enquanto as primitivas a inibem (idem: 257).Em suma, a vida moderna no destituiu a segmentaridade [...], ao contrrio, a endureceu singularmente (idem: 256). somente a caixa de ressonncia do Estado que pode fazer com que divises binrias sejam continuamente reproduzidas sem modificaes profundas, que os vrios crculos que a todos envolvem paream ter apenas um centro, e que as diferentes atividades ou instituies com que todos estamos envolvidos tendam para uma forma nica ou uma unidade transcendente. No se trata aqui, contudo, repito, de supor uma nova tipologia: no h distino emprica possvel entre as segmentaridades flexvel e dura; elas esto sempre juntas, interpenetrando-se e transformando uma outra em todas as partes (idem: 260-261). [p. 178, 9]

[...] aos mecanismos de captura e conjugao respondem sempre, e incessantemente, as conexes, resistncias e linhas de fuga. Pois as formaes segmentares mantm com o Estado (ele tambm cortado pela segmentao) uma relao semelhante postulado por Pierre Clastres (1974; 1980) para a chefia indgena sul-americana: nos dois casos, trata-se, ao mesmo tempo, de uma prefigurao do Estado (j que segmentos e chefia podem funcionar como plos de unificao e centralizao) e de uma conjurao (na medida em que a chefia indgena impotente e que as formaes segmentares se desfazem e refazem ininterruptamente).Tudo se passa entre o clebre adgio atribudo a Maquiavel, dividir para governar, e sua aparente contestao por parte das tribos em que, como escreveu Gellner,[...] a segmentaridade [...] a consequncia do estado de dissidncia [...] e pode-se exprimir seu princpio contrariando o adgio: Dividir-vos para no serdes governados (apud Favret-Saada 1966: 107 - grifos da autora).O problema que, em um regime de segmentaridade dura, tudo ressoa no (ou na direo do) Estado, e a capacidade de diviso dos segmentos tende a deixar de ser um mecanismo contra-Estado para passar a funcionar como ponto de encaixe para a cooptao e a dominao. Pois, se, como costuma ser dito, a democracia parece, de fato, estar voltada para a administrao de conflitos, esta no se d no sentido em que usualmente entendida, ou seja, como acordos e pactos que, de algum modo, devem distribuir as vantagens entre o maior nmero possvel de agentes. Trata-se antes, creio, de um processo de distribuio dos prprios conflitos, jogando conflitos contra conflitos de modo a controlar e impedir a ecloso de outros, supostamente mais graves, que ameaariam a estabilidade e a permanncia do sistema. [p. 180,1]

... como observou Herzfeld (1996: 77), o Estado procura sempre imprimir sua prpria forma aos grupos com que entra em relao - e isso inclui aqueles que a ele se opem, bem como os movimentos que, voluntria ou involuntariamente, dele tentam escapar. O segmentvel, como ainda Herzfeld (1992: 63), simultaneamente, o unificvel, e a segmentaridade, ao contrrio do que se costuma imaginar, no consiste na diviso de uma suposta unidade primeira em entidades discretas, mas na converso de multiplicidades em segmentos, ou seja, em unidades simultaneamente divisveis e unificveis, de acordo com mltiplas estratgias, que vo da represso resistncia, passando pela manipulao e pa cooptao. [p. 182]

Cap. 4 - 2000: Eleies

... assim como ocorre com outros princpios da democracia participativa, estamos aqui s voltas com variaes locais em torno de temas tidos como centrais tanto pela ideologia democrtica quanto por muitos analistas do processo eleitoral. O que no significa, tampouco, que tais variaes sejam simples desvios ou deturpaes: o voto consciente em Ilhus to consciente como em qualquer outro lugar ou grupo, apontando, no final das contas, para a importncia do estabelecimento de relaes mais duradouras e menos imediatistas. [p. 192]

... o que Foucault (1984: 32-33) revelou para a tica antiga tambm parece ocorrer na poltica: nesta, como naquela, no existem apenas normas ideais e comportamentos reais, mas tambm modos de subjetivao ajustando esses dois planos. De fato, no mesmo sentido em que Foucault fala da constituio de um sujeito ou de uma conscincia moral, poderamos falar da objetivao de um sujeito poltico e de uma conscincia poltica, pois, como lembra Veyne (1987: 7), as relaes de mando e obedincia passam necessariamente pela conscincia dos agentes, o que converte a subjetividade em uma dimenso especfica, como a economia ou a poltica em sentido restrito. Essa subjetividade no deve, entretanto, ser confundida com nenhum tipo de sujeito originrio: trata-se, antes, de componentes de subjetivao (Guattari 1989: 24), que articulam modos de relao consigo e com os outros. O que denominamos sujeitos so apenas terminais em relao a esses processos de objetivao.Assim, a democracia, como qualquer sistema poltico ou social, composta por normas, mas tambm depende dos comportamentos efetivamente levados a cabo para funcionar. [p. 200]

Ora, se, por um lado, o estabelecimento e o exerccio dos sistemas polticos ditos democrticos sempre dependeram da criao e do acionamento simultneos de uma srie de tcnicas disciplinares e de controle, por outro, claro que a ao e a margem de manobra dos agentes esto, at certo ponto, constrangidas pelas regras de funcionamento do sistema. Em suma, se a democracia formal depende de certas formas de poder, ela tambm uma das condies reais para que prticas na aparncia muito diferentes do ideal democrtico sejam efetivamente postas em ao.Nesse sentido, no cabe discutir o que seria uma verdadeira democracia, nem se este ou aquele Estado especfico (o brasileiro, por exemplo) ou no democrtico. Trata-se apenas de tentar conferir um mnimo de inteligibilidade a processos muito reais que em contextos de sociedades nacionais organizadas, ao menos em parte, sobre princpios democrticos. Pois, se concordarmos, por um instante, em denominar Estado democrtico aquele[...] que apela aos princpios da democracia poltica, cujo governo procede de eleies livres (no sentido de que os cidados podem efetivamente escolher entre candidatos ao poder realmente diferentes), que pratica uma certa separao entre as ordenes legislativa, executiva e judiciria, que em um plano mais geral reconhece serem os conflitos constitutivos da existncia social e, pelo menos em princpio, afirma que a negociao o melhor meio para resolv-los, e que admite ser a fundao do Direito a de garantir a liberdade das pessoas (e de seus bens) e sua igualdade perante a lei. (Chtelet e Pisier-Kouchner 1983: 170),no precisaremos de muita imaginao para adivinhar que uma organizao molar dessa natureza exige todo um trabalho molecular de objetivao. E foi provavelmente Foucault (1975: 4 capa) o primeiro a sublinhar com a devida nfase essa dependncia, ao demonstrar a existncia de um certa modalidade de poder que tornou possvel a democracia como forma poltica: sem dvida, o sculo XVIII inventou as liberdades; mas ele lhes forneceu um subsolo profundo e slido - a sociedade disciplinar, da qual ainda somos um produto. Trata-se aqui, como sustenta Pizzorno (1988: 244), da hiptese de que os regimes democrticos modernos liberais s so possveis devido a um longo trabalho prvio de disciplinarizao de seus cidados. [nota 17 - Deleuze (1990) sugeriu ainda que a anlise foucaultinana do processo de substituio das sociedades da soberania pelas sociedades disciplinares entre os sculos XVIII e XX deveria ser complementada, hoje, pela anlise de uma nova transio que, politicamente, corresponderia implantao de uma outra modalidade de capitalismo no plano econmico, com a consequente necessidade de transportar os mecanismos disciplinares - criadores, desenvolvidos e operados nos espaos fechados e limitados das fbricas, prises, escolar e hospitais - para os espaos abertos e potencialmente sem limites do mundo como um todo. estrutura constituda, ou definida, por essa operao que Deleuze d o nome de sociedade de controle, e com esse pano de fundo que as anlises do funcionamento real dos sistemas democrticos contemporneos deveriam ser conduzidas. p. 239]Assim, quando Michel Offerl (1993: 147) chama a ateno para o fato de que a democracia representativa sempre pareceu uma monstruosidade jurdica, na medida em que conjuga um ideal da democracia direta (a participao eleitoral) e outro do governo de notveis (os efetivos responsveis pelo funcionamento do sistema), ele nos pe na pista de uma soluo para o velho problema das relaes entre prticas e ideais, comportamentos e normas, ou como se quiser denominar. Pois tudo se passa, tambm entre ns, como na anlise da democracia grega conduzida por Paul Veyne, que demonstra que o regime poltico grego estava apoiado sobre a coexistncia e a alternncia de dois modelos bem diferentes: um militante, exigindo a participao de todos os cidados, e um mais realista, o governo de uma minoria ativa que conta com certa passividade generalizada em relao vida poltica (Veyne 1984: 58-60).Da mesma forma - mesmo sabendo que, entre a democracia grega e aquela que emerge do sculo XVIII, apenas o nome permanece (idem: 57-8) -, no difcil perceber que a democracia representativa se apoia sobre uma outra ambiguidade constitutiva: de um lado, a representao poltica; de outro, a profissionalizao dos polticos. A representao poltica moderna, como o militantismo para os antigos gregos, um de nossos semi-ideais, como diria Veyne: mais que um ideologia, j que no se trata de simples falsificao da realidade ou de uma mentira til, no chega a constituir uma prtica, uma vez que sua concretizao infletida sem cessar por mecanismos econmicos, comunicacionais, de controle e outros. A profissionalizao dos polticos, caracterstica da poltica moderna, por sua vez, funciona determinando a esfera dos que efetivamente tm possibilidade de participar da vida poltica, bem como limitando as possibilidades de ao (Bourdieu 1989). [nota 19 - Considerava-se a militncia como ns consideramos a democracia ou os direitos do homem: no era exclusivamente uma ideologia nem imediatamente uma prtica (Veyne 1984: 58); a Antiguidade pensava a poltica em termos de militncia to naturalmente quanto a pensamos em termos de democracia e no podia conceb-la de outra maneira. Tal o equvoco da palavra ideologia: apologia, mas tambm preconceito. p. 240]No se trata, pois, de imaginar que os ideais e as normas simplesmente se oponham s prticas e aos comportamentos. Ao contrrio, apenas sobre o pano de fundo do semi-ideal da democracia representativa que tais prticas podem funcionar e fazer sentido. Do mesmo modo, apenas se apoiando sobre prticas dessa natureza que o ideal da democracia pode sobreviver e continuar a ser sustentado contra todas as evidncias do cotidiano. [p. 203-5]

Nos sistemas eleitorais um poltico de sucesso aquele capaz de, nos termos de Deleuze e Guattari, capturar e sobrecodificar candidatos movidos por interesses, clculos e apoios excessivamente locais ou pontuais, variados demais para garantir uma eleio. [nota 21 - Chamamos captura essa essncia interior ou essa unidade de Estado (Deleuze e Guattari 1980: 531); a sobrecodificao, esta a operao que constitui a essncia do Estado (Deleuze e Guattari 1972: 236). Ou, nas palavras de Guattari (1986: 289), [...] o termo sobrecodificao corresponde a uma codificao de segundo grau. Exemplo: sociedades agrrias primitivas, funcionando segundo seu prprio sistema de codificao territorializado, so sobrecodificadas por uma estrutura imperial, relativamente desterritorializada, impondo a elas sua hegemonia militar, religiosa, fiscal etc. p. 240] Da mesma forma, o poltico bem-sucedido sobrecodifica em seu benefcio os diferentes cdigos que fazem com que uma famlia divida os votos de seus membros entre vrios candidatos aos quais sente dever algo ou nos quais deposita alguma esperana; ou aqueles que levam um bloco afro a apoiar um candidato visando obter vantagens que os demais blocos no tero; ou os que fazem uma vizinhana se inclinar na direo de algum que, supostamente, trar melhorias para sua vida cotidiana. Canalizando as mltiplas lgicas em ao, as diversas motivaes pessoais, as oposies e conflitos locais, o poltico de sucesso os orienta a todos esses elementos e processos, e fazendo com que conjuntos muito heterogneos de votos se somem e garantam sua eleio. [p. 206]

nota 26 - ... o fato de os nativos poderem interpretar a presena do antroplogo da maneira que acharem mais convincente - no importando o que ele diga ou o que ache que est fazendo no campo - impede que a mera explicitao de intenes ou o consentimento informado possam ser utilizados como desculpas para possveis deslizes ticos do pesquisador. Trata-se sempre, pois, de interpretaes, jamais de ignorncia ou simples desconhecimento. [p. 240]

... o abandono de perspectivas sintticas e semnticas em benefcio de uma pragmtica - tambm advogado por Fry (1995: 125-126) - parece ser a condio de possibilidade de uma compreenso mais sofisticada, no s do racismo, mas de alguns correlatos, como as noes de raa, etnicidade, identidade etc. desse ponto de vista que John Galaty (1982) props a substituio das anlises semnticas da etnicidade - preocupadas com a identificao dos grupos denotados pelos marcadores tnicos - por uma perspectiva pragmtica, que no apenas leve em considerao os contextos cambiantes de ao e as posies neles ocupadas pelos agentes, mas, sobretudo, parta delas. Nesse sentido, os marcadores tnicos funcionam como os shifters lingusticos, conotando categorias cujas fronteiras so mveis e instveis. O que no significa, evidentemente, que tudo seja possvel, mas apenas que os limites de incluso e excluso no so fixos e no podem ser conhecidos antes da investigao emprica (idem: 16). claro que, em cada contexto pragmtico, um, ou alguns, dos marcadores tende a predominar; mas esse predomnio, local e mutvel, no se confunde, de forma alguma, com a funo de sobrecodificao que, em regimes especficos, um marcador pode exercer sobre os demais. Nos termos de Deleuze e Guattari (1972), seria preciso, talvez, distinguir modos de classificao, e mesmo racismos, selvagens e despticos. No primeiro caso, estaramos s voltas com cdigos polvocos acionados alternadamente; no segundo, com uma sobrecodificao desses cdigos por parte de um significante tido como privilegiado. Que este seja a cor da pele, a genealogia, a herana gentica ou mesmo o patrimnio cultural importa pouco perante essa funo de sobrecodificao.Tanto as classificaes selvagens quanto as despticas so segmentares: algum negro, em determinada situao, sempre com, para e em oposio a outrem. Nesse sentido, no h distino entre sistemas descontnuos e contnuos, mas, sim, entre as duas modalidades da segmentaridade. Do ponto de vista da flexvel, os cdigos que permitem decidir se A est com B em oposio a C, ou A est em oposio a B e C, so de muitas naturezas e encontram-se em estado de variao contnua. [nota 32 - Como escrevem Deleuze e Guattari, a segmentariedade primitiva , ao mesmo tempo a de um cdigo polvoco, fundado nas linhagens, suas situaes e suas relaes, e a de uma territorialidade itinerante, fundada em divises locais emaranhadas. Os cdigos e os territrios, as linhagens de cls e as territorialidades tribais organizam um tecido de segmentaridade relativamente flexvel (Deleuze e Guattari 1980: 255). por isso, tambm, que Pierre Clastres (1974) tem toda razo em recusar a imagem banal de um etnocentrismo universal, e distinguir o etnocentrismo selvagem, que julga sua cultura superior a todas as outras sem se preocupar em sustentar um discurso cientfico sobre elas, do nosso, que deseja situar-se de uma s vez no elemento da universalidade sem se dar conta de que permanece sob muitos aspectos solidamente instalada em sua particularidade (idem: 16). Pois, onde h Estado, assiste-se sempre tentativa de supresso mais ou menos autoritria das diferenas socioculturais (Clastres 1980: 54). p. 241] Os sistemas duros, por sua vez, so to segmentares quanto os outros, mas neles, para usar a expresso de Herzfeld (1992: 104), a segmentaridade est como que dissimulada e se apresenta como oposio fixa. Esse um dos processos que Herzfeld (1996) denomina literalizao: pertencimentos, que, nos idiomas locais, so mais estilos que identidades, operando claramente como shifters (eu, que sou eu para mim, mas sou voc para voc, tambm posso ser branco para algum e no para outrem), tendem a ser cristalizados na forma de identidades tnicas ou nacionais (idem) - as quais, longe de serem o solo sobre o qual se constroem as formaes estatais, so um dos resultados das mesmas. [nota 33 - Essa a condio, tambm, para que deixemos de pensar a diferena no sentido identitrio (representao das caractersticas particulares de cada indivduo ou grupo) e passemos a pens-la como devir, um diferir, inclusive, e talvez especialmente, de si mesmo: o conceito de diferena [...] justamente o que nos arranca de ns mesmos e nos faz devir outro (Rolnik 1995). p. 241]Sublinhemos, novamente, que no se trata aqui de uma oposio entre formas ideolgicas ou sociais individualizadas, mas de processos instveis em regime de variao contnua. Nesse sentido, os antroplogos, que, por vezes, gostam de imaginar que seu papel a desreificao do que os agentes sociais reificariam, deveriam ser mais modestos, uma vez que, frequentemente, o contrrio que ocorre. A antropologia, de fato, deve lutar contra a literalizao, mas sua arma no pode ser a denncia do que os nativos pensam estar fazendo. Ao contrrio, como etnografia das prticas e como pragmtica, a disciplina s pode apoiar-se, precisamente, sobre o carter flexvel das classificaes cotidianas, a fim de enfrentar o aparente enrijecimento operado pelo Estado e por outras instituies. E apenas isso que podemos denominar contextualizao e relativizao. [p. 234-6]

... o racismo, mais ou menos que um preconceito ou uma ideologia, , sobretudo, uma prtica e, mais precisamente, uma forma de poder:[...] o que faz a especificidade do racismo moderno no est ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Est ligado tcnica do poder, tecnologia do poder (Foucault 1997)Ora, esse racismo moderno de que fala Foucault , sem dvida, um racismo de Estado. No no sentido de que s praticado por Estados, mas porque possui uma forma-Estado, forma que, como vimos acima, procede por meio de uma espcie de domesticao do racismo selvagem (no sentido levistraussiano dos termos), sobrecodificando seus cdigos e submentendo-o ao imprio de um valor ou critrio central. Ocorre que, ao mesmo tempo que enrijece os cdigos locais, essa operao os torna, no mais flexveis, certamente, mas bem mais dceis:O racismo europeu como pretenso do homem branco nunca procedeu por excluso nem especificao de algum designado como Outro [...]. O racismo procede por determinao das variaes de divergncias, em funo do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excntricas e retardadas os traos que no so conformes, ora para toler-los em determinado lugar, ora para apag-los no muro que jamais suporta a alteridade [...]. Do ponto de vista do racismo, no existe exterior, no existem as pessoas de fora. S existem pessoas que deveriam ser como ns, e cujo crime no o serem (Deleuze e Guattari 1980).Submetido a um processo de axiomatizao, o racismo pode tornar-se at mesmo diferencial, apelando, por exemplo, mais para a noo de cultura do que para a de raa. No porque a primeira, como s vezes se finge imaginar, sofra de um defeito congnito que, necessariamente, a faa ser utilizada com o mesmo terrvel papel da segunda. Estamos s voltas, na verdade, com diferentes modos de tratar a raa ou a cultura, e a luta trava-se precisamente em torno desses modos de tratamento. O racismo de base cultural apenas o resultado de uma sobrecodificao pela natureza. No deixa de ser verdade, contudo, que a cultura parece mais bem dotada para o processo de axiomatizao, fazendo com que existam posies desiguais no sistema, mas com que esse racismo contemporneo no opere mais em termos de divises binrias e de excluses, mas como estratgia de incluso diferenciada (Hardt e Negri 2001), e que a excluso racial geralmente aparea como resultado da incluso diferencial (Hardt 2000). [p. 236, 7]

Captulo 5 - 1998/1999: Carnaval

Em um trabalho fundamental, Richard Graham (1997) demonstrou que o verdadeiro sentido das eleies, frequente e ininterruptamente realizadas ao longo de todo o Segundo Reinado no Brasil, era menos o de responder pela efetiva escolha dos governantes por parte do povo (j que os resultados eleitorais eram quase sempre objeto de manobras fraudulentas ou alvo do uso aberto da violncia) do que funcionar como uma espcie de teatro em que os participantes usavam a linguagem da estratificao social para, mais que excluir os votantes, diferenci-los (idem: 150), ou seja, para exibir e ratificar uma ordem social extremamente estratificada e elitista. Aps a reforma de 1881, esse teatro das eleies teria deixado de funcionar e o autor apenas levanta a questo do destino dessas prticas de ostentao de status, voltadas para distinguir claramente os poucos que dirigiam as eleies dos muitos que apenas votavam (idem: 158). Creio que, longe de terem desaparecido, essas prticas se dissolveram nas relaes cotidianas entre polticos e eleitores, tornando-se particularmente visveis nos momentos de campanha. Em outros termos, se pode ser verdade que o tempo da poltica abre ou intensifica canais de comunicao entre diferentes camadas sociais, preciso reconhecer, igualmente, que isso no significa necessariamente uma maior permeabilidade entre tais camadas. Bem ao contrrio, pode representar uma ocasio extremamente adequada para a exibio de status e para reafirmao de todas as hierarquias sociais.Nesse sentido, ao estabelecerem, de dois em dois anos, o espao onde so encenados esses dramas, que mesclam participao e excluso, as eleies constroem de fato a dominao, mas no da forma como se imagina que fazem. Pois no se trata nem da simples instituio de uma soberania legtima, nem da mera legitimao de formas de domnio preexistentes. Trata-se de mais um mecanismo de poder, no sentido material ou foucaultiano da expresso (no no burgus ou marxista). Nas eleies e na poltica, h muito mais do que poltica: h poderes, subjetividades e agncias, elementos que uma antropologia da poltica no pode deixar de lado. [p. 258, 9]

.... no difcil perceber que a cultura - termo que serve de denominador comum s formas de sociabilidade aqui em questo - parece fazer parte do arsenal de aparelhos de captura de que dispem os Estados e os poderosos. Conceito cunhado por Deleuze e Guattari (1980), aparelho de captura designa basicamente os dispositivos de apropriao das aes humanas heterogneas e em variao contnua e de sua converso em atividades homogneas, regulveis e mutuamente comparveis. [nota 16 - mesmo fazendo a ressalva de que a distino efetuada em termos somente descritivos, Deleuze e Guattari (1980) sustentam que agenciamentos seriais, itinerantes ou territoriais, operando por meio de cdigos polvocos, so capturados e convertidos em agenciamentos sedentrios, de conjunto ou de Terra, que operam por sobrecodificao. p. 283] dessa forma que a converso de territrios de explorao em terras de produo (tornando os primeiros comparveis e apropriveis) um aparelho de captura que. simultaneamente, possibilita a renda fundiria e correlato da objetivao da propriedade e do proprietrio (idem). Do mesmo modo, o trabalho e a moeda so aparelhos de captura da ao livre de variao contnua e troca, objetivando o trabalhador, o lucro e o imposto (idem).Como evidentemente no h razo para supor que a lista dos aparelhos de captura seja finita, podemos aplicar o conceito a qualquer dispositivo que opere de forma homloga queles concretamente isolados por Deleuze e Guattari. Na verdade, so os prprios autores que chamam a ateno para o fato de que o Estado, em bloco, que poderia ser considerado o aparelho de captura por excelncia, atuando sempre por meio de converses das foras que captura e utilizando, para isso, uma grande variedade de dispositivos especficos do quais a renda, o trabalho e a moeda so apenas trs casos particulares que parecem, alis, funcionar com mais fora no momento de constituio histrica do capitalismo do que em suas fases mais avanadas. Se acrescentarmos a isso o fato de que por Estado no se pretende meramente designar uma instituio, mas um modo de funcionamento e uma forma de poder, compreendemos por que chamamos captura essa essncia interior ou essa unidade do Estado (idem). Ou seja, compreendemos que no existem um Estado que captura, mas que a captura o Estado e vice-versa - o que significa que, deste ponto de vista, a diferena entre o aparelho de Estado propriamente dito e as chamadas organizaes no governamentais, por exemplo, absolutamente irrelevante. Observemos, finalmente, que Deleuze e Guattari (idem) tambm isolaram o que denominam os dois plos do Estado, uma vez que este opera tanto por captura mgica quanto por contrato jurdico. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que, se a organizao legal , sem dvida, um dos braos do Estado, a capacidade de atrair, prometer, seduzir, o outro; e, em segundo, que a oscilao contnua e permanente entre os cdigos explcitos e os ardis e trapaas inconfessveis o modo mesmo de funcionamento desse tipo de poder. [p. 264,5]

nota 18 - Em outro contexto, Paul Veyne (1987) observa que, do ponto de vista da experincia individual das pessoas comuns, a realidade do Estado dupla: [...] os impostos a pagar, as multas de estacionamento, um sentimento geral de obrigao social, de dever, cujos limites com a moral propriamente dita permanecem incertos [...]. De outro lado, existe um experincia bem diferente, quando o Estado aparece por inteiro e nos solicita de um modo completamente diferente [...]. O Estado toma a palavra na televiso para um dilogo com seus sditos, dilogo no qual sua prerrogativa, alis, a de monologar. [p. 283]

[...] o conceito de cultura profundamente reacionrio. uma maneira de separar atividades semiticas [...] em esferas [...]. Tais atividades, assim isoladas, so padronizadas, institudas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotizao dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades polticas (Guattari 1986).Em termos etnogrficos, a definio das prticas tiruais executadas por uma me-de-santo, ou das msicas de um bloco afro, como cultura tem a capacidade de, simultaneamente, capturar essas aes, isolando-as da vida dos envolvidos, e eliminar a fora (religiosa ou esttica) que as caracterizam, convertendo-as em atividades homogneas e comparveis a um sem-nmero de outras, fazendo com que possam, dessa forma, ser oferecidas em um mercado generalizado: assim como o capital um modo de semiotizao que permite ter um equivalente geral para as produes econmicas e sociais, a cultura o equivalente geral para as produes de poder (idem). [...] Como Guattari tambm demonstrou, os trs sentidos da cultura - cultura valor, cultura-alma coletiva e cultura-mercadoria (idem - podem muito bem ter aparecido sucessivamente ao longo do tempo, mas isso no significa que no funcionem em bloco e ao mesmo tempo. Desse modo, em Ilhus, a cultura negra (enquanto cultura-alma coletiva) s pode desenvolver-se (ou seja, atingir o estatuto de cultura-valor) ao se transformar em cultura-mercadoria (ou seja, ao passar a funcionar de acordo com as regras do equivalente geral para ser exposta e, literalmente, vendida em um mercado). A cultura , ao mesmo tempo, uma palavra-cilada (idem) e um aparelho de captura, possivelmente um dos mais bem adaptados s exigncias da sociedade de controle que caracteriza o capitalismo contemporneo.Essa tambm parece ser a concluso de Michael Herzfeld (1992;1996), quando sugere que seria prprio das formaes estatais promoverem uma espcie de translao do social ao cultural, acionando mecanismos semiticos-polticos que convertem as relaes indxicas locais (ou propriamente sociais, uma vez que envolvem conhecimento direto mtuo, produzem finas distines entre pessoas r grupos e dependem em alto grau de sua contextualidade) em relaes icnicas ou culturais (que tendem a literalizar os smbolos, desvinculando-os de seus contextos pragmticos). Uma imagem de unidade cultural parece obscurecer a relatividade social; o genrico parece se superpor ao genealgico. nesse sentido que o Estado nada mais do que o conjunto de operaes voltadas para a essencializao, naturalizao e literalizao de experincias sociais sempre mltiplas e polifnicas: a ningum permitido possuir mais que uma religio, um pertencimento local, uma etnia ou uma cor; estilos, sempre mveis e contextuais, convertem-se em identidades, que so cristalizadas em etnicidades, que, por sua vez, tendem a se enrijecer como nacionalidades (1996); a labilidade semntica dos valores locais, que faz com que pertencimentos familiares, grupais, tnicos e mesmo nacionais funcionem como verdadeiros shifters (idem) tende a ser eliminada ou limitada pelo Estado. Ao mesmo tempo, uma vez substancializadas, essas variveis (doravante valores ou mesmo coisas) retornam vida social cotidiana e alimenta dios, discriminaes e massacres. Desse ponto de vista, possvel observar que a democracia no necessariamente sinnimo de tolerncia e de um menor grau de essencializao: o contrrio pode ocorrer, na medida em que a diversidade tambm pode ser condenada em nome da igualdade (idem). [p. 264-6]

Sobre o processo explicitado por Fry (1977) de converso de smbolos tnicos em smbolos nacionais Goldman afirma que o que no parece evidente que a feijoada, o candombl, o samba ou a msica afro possam sel a