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    BARBRIE E TRAGDIA

    RESUMOAs tribos ps-modernas fazem parte, agora, nos diasatuais, da paisagem urbana. Isso, aps terem sido ob-jeto de uma conspirao silenciosa das mais estritas quanta tinta elas fizeram correr! Tudo de uma vez, pararelativiz-las, marginaliz-las, invalid-las depois dedenegri-las. Coloquemos uma questo simples. Essastribos, no so elas a expresso da figura do brbaroque, regularmente, retorna a fim de fecundar um cor-po social, um pouco debilitado?

    PALAVRAS-CHAVEBarbrieHumanoTribos ps-modernas

    ABSTRACTPostmodern tribes are part now, today, the urban lan-dscape. This, after having been the object of a silent

    conspiracy of the strictest - how much ink they didrun! All at once, to relativize them, marginalize them,invalidate them after denigrating them. Lets put a sim-ple question. These tribes, they are not the expressionof the figure of the barbarian who regularly returns tofertilize a social body, a little cranky?

    KEYWORDSBarbarismHuman

    Tribes postmodern

    Michel MaffesoliProfessor da Sorbonne Institut Universitaire de France/FR

    A barbrie em face do humano: as tribos ps-modernas*

    O que h de certo quando uma forma do lao social se satura e queuma outra (re)nasce isso se faz, sempre, com temor e va-cilao. o que faz com que certas boas almas se cho-quem por essa renascena, porque ela desloca um pou-co a moral estabelecida. Do mesmo modo, certas belasalmas podem se ofuscar, pois essas tribos no fazemseno privilegiar a primazia do Poltico.

    Eu o disse, em textos anteriores. Poltica ou Jogo. Ea prevalncia deste ltimo (Jogo) to evidente que aPoltica, ela mesma, se teatralizou e tornou-se objetoda des-razo: resumindo foi contaminada pelo ldico.

    Qual seja, e qualquer que seja o sentimento que aelas se atribua, essas tribos ps-modernas esto l. E, amenos que as exterminem todas, o que corre o risco deser difcil, pois nossas crianas so ingnuas, precisofaz-lo com a acomodao de suas maneiras de ser ede aparecer, com os seuspiercings e tatuagens diver-sas, de seus curiosos rituais, de suas msicas barulhen-tas: em poucas palavras, a nova cultura, da qual elasso seguidoras advertidas de uma seita e dinmicas.

    Certo que a (re)emergncia dessas novas manei-ras de estar junto no lhes falta ser desconcertantes.Ela no menos compreensvel. Com efeito, como isso

    se passa pelo indivduo, traduz um simples processode compensao. Progressivamente, esquecendo-se dochoque cultural que lhe deu nascimento, a civilizaomoderna se homogeneizou, se racionalizou ao extre-mo. E sabe-se que o enfado nasceu da uniformidade.A intensidade de ser se perdeu quando a domestica-o se generalizou.

    De onde e quando, um ciclo acaba o mecanismo dacompensao. Pouco a pouco, a heterogeneidade ga-nha terreno. No lugar de uma razo soberana, o senti-mento de pertencimento retoma direito de cidade. E,

    confront-la a uma enfadonha segurana da existn-cia, o que denominava a efervescncia, como elemen-to estruturante de toda comunidade, retorna com for-a sobre o que se tem diante da cena social. O gosto dorisco, de maneira difusa, reafirma sua vitalidade, oinstinto domesticado tende a se mostrar selvagem; empoucas palavras, sob formas mltiplas, a barbrie serefere a nossa boa lembrana.

    Mas em uma palavra, pode ser preciso lembrar deonde vem esta tenaz e constante inquietao de do-mesticao prpria tradio judaico-crist, ou me-lhor dizendo, ideologia semtica. Tudo simplesmen-te decorre da certeza da natureza corrompida do ser

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    Michel Maffesoli

    humano. isto que funda a moral e o que retorna aomesmo assunto, a poltica da modernidade.

    No lento processo de secularizao, a Igreja, depoiso Estado, cujo brao armado a Poltica e a Tecnoestru-tura, tm por funo essencial corrigir o Mal absoluto e

    originrio. Trata-se de uma misso, na qual se ver maisadiante a hipocrisia, que sob nomes diversos vai conti-nuamente irrigar a vida publica ocidental.

    Projeto prometeano, se ele o , sobre o qual no sedir jamais o suficiente, que encontrar sua fonte nainjuno bblica de submeter a natureza(Gense.ch.1.,v.28) em seu aspecto envolvente; faunae flora, mais igualmente fundante do indivduo e dosocial. , seguramente, em uma tal lgica da domina-o que vai se elaborar o mito do Progresso e do igua-litarismo, que o seu corolrio. Para diz-lo em ter-

    mos mais familiares, o trip de um tal projeto eram ohigienismo (ou o risco zero), a moral e a sociedadeNickel.

    preciso acrescentar e isto no negligencivel, aespecificidade cultural dessa tradio que foi o Uni-versalismo. De So Paulo, do ponto de vista teolgico,s Luzes de uma perspectiva filosfica, ao que tenhasido o apangio de algumas tribos nmades do Orien-te Mdio, depois o que foi peculiar de um pequenocanto do mundo, a Europa, deveria servir de critriopara o mundo em sua totalidade.

    Notemos que houve fanatismo numa tal pretenso.Mas esse fanatismo, que ao final do Sculo XIX per-mitiu que esses valores especficos se tornassem valo-res universais. E desde que o imperador Meiji abriusuas portas aos navios europeus ou desde que o Brasilinscreveu na sua bandeira a clebre frmula de Au-gusto Comte: Ordem e Progresso, se pode dizer que ahomogeneizao do mundo alcanou um apogeu ataquele momento desconhecido.

    Mas no se pode ignorar que existe tambm umapatognese de certa pulso dominadora. Sem falar dosestudiosos e outros genocdios culturais. No ser intil

    de se lembrar o lao existente entre o mito do Progres-so e a filosofia das Luzes de um lado, e os campos deconcentrao (em nome da pureza da raa ou da clas-se) e as guerras enraivecidas e suicidas do Sculo XXde outro lado.

    A inocncia do devenirColocando o acento sobre a moral, do que o lembro

    repousa sobre uma lgica do dever-ser e se acaba emexcessos no previstos. Isso se chama htrotlie. Ob-tm-se o contrrio do que se desejava. Por exemplo, atentativa de domesticao do animal humano o con-

    duz a ser bestial. Isto o que testemunham os diversoscampos egoulag do sculo passado. Efeito perverso seo , mas bem na lgica da pesquisa da perfeio. Hainda a sabedoria popular, que vem depois de BlaisePascal, que pode nos ser de alguma utilidade, remar-

    cando fortemente ao que se diz quem quer fazer oanjo, faz a besta.

    Indicarei aqui sob forma de aluso, mas h a doisvcios na abordagem dos detentores do universalismoou o que retorna da mesma maneira nos protagonistasa filosofia da Luzes: a hipocrisia e o auto-engano. As-sim R. Roselleck (La rgne de lacritique, 1979) fez bemem chamar a ateno de que isso se dava, sempre, emnome da moral, de uma nova moral, que queria go-vernar no lugar daqueles que governam. Assim, falarem nome da Humanidade e da Razo particularmen-

    te prfido, pois isso mascara (de leve) o fato de que amotivao real de todos esses moralistas , pura esimplesmente, o poder.

    Essas tribos, no so elas aexpresso da figura do brbaro

    que, regularmente, retorna a fimde fecundar um corpo social, um

    pouco debilitado?Poder econmico, poder poltico, poder simblico,

    tais so, a finalizao normal da filosofia da histria edos filsofos moralistas. E sempre em nome do Bem,do Ideal, do Humano, da classe e outras entidades abs-tratas que se cometem as piores Torpezas. H a sem-pre no moralista um homem ressentido que est ador-mecido!

    Eis de onde se vem. Eis o que constitui o crebro

    venal do homem moderno, e que fica no fundamentodas formas de pensamento estabelecido e das institui-es sociais. Mas essa bela construo, em aparnciaque no sofre danos, fissurada em todas as partes. E de uma tal porosidade que as tribos ps-modernasso todas, ao mesmo tempo, a causa e o efeito.

    Que exprimem elas, seno o que de um modo pre-monitrio, Nietzsche denominava a inocncia do deve-nir. Aceitao do amor fati. Consenso nesse plano aesse mundo. Esse ltimo, ao encontro da doutrina ju-daico-crist, no encontra sua origem numa criao quevem do nada, mas ele est ali, tal como um dado

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    A barbrie em face do humano: as tribos ps-modernas

    com o qual convm tanto para o bem como para o mal,concordar. Eis o que o brbaro um pouco pago seempenha em nos lembrar!

    Certo, tudo isso no conscientizado, nem mesmoverbalizado enquanto tal. Mas amplamente vivido no

    retorno s tradies, religiosas ou espirituais, no exer-ccio da solidariedade no quotidiano, na revivescn-cia, digamos, das foras primitivas. Isto conduz (re)valorizao dos instintos, das ticas, das etnias.

    O que induz essa nova sensibilidade, se poderiadizer esse novo paradigma, um poderoso imanen-teismo. Isso pode tomar formas das mais sofisticadase mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, ojogo das aparncias, o presentesmo esto a tanto comopontuao daquilo que no um ativismo voluntaris-ta, mas tambm como expresso de uma real contem-

    plao do mundo.Ou, para dizer em outros termos, a aceitao de ummundo que no o cu sobre a terra, que tambm no o inferno sobre a face da terra, mas, sim, a terra sobrea terra.

    Com tudo o que isso comporta de trgico (amorfati) mas tambm de jbilo. Deixai fazer, deixai vi-ver, deixai ser. Eis o que poderiam ser as palavras cha-ve dessas tribos inocentes, instintuais, um poucoanimais e, certamente, bem vivas.

    A experincia tribalA modernidade terminante em seu estrito sentido

    desinervou o corpo social. O higienismo, a securiza-o, a racionalizao da existncia, as interdies detodas as ordens, tudo isso foi agregado ao corpo indi-vidual ou ao corpo coletivo a capacidade de emitir asreaes necessrias na sua sobrevida. Pareceria, pararetomar uma expresso de Georg Simmel, que se as-siste, com a ps-modernidade, a uma intensificaoda vida nervosa.

    O instinto, o primitivismo, encontra seu lugar nosnervos. Isto considerar que o peculiar da natureza

    humana no se resume somente ao cognitivo, ao raci-onal, mas bem um complexio oppositorum que se po-der traduzir como uma assemblage, uma tecelagem decoisas opostas.

    Tudo isso que convm saber ver na efervescnciatribal contempornea. Algumas dessas manifestaespodem, eu o disse, nos desgostar ou nos ofuscar. Elasexprimem, por vezes de uma maneira desajeitada, aafirmao que ao encontro do pecado original, que oposio da corrupo estrutural, existe uma bondadeintrnseca ao ser humano. E que no cofre no qual esseltimo se situa, a terra, ela igualmente desejvel.

    Mas um tal imaneteismo acaba por murchar a pol-tica. Ou antes, ao que essa, estando de alguma formatransfigurada, se inverte em domstica, torna-se eco-logia. Domus, oikos, termos designando a casa comumque convm proteger dos saques aos quais a moderni-

    dade nos fez habituar. As maquinaes deste homemmestre e possuidor do universo segundo a expres-so de Descartes, acabaram na devastao que se sabe.As tribos, mais prudentes, mais precavidas tambm,se empregam a menos maquinar os outros e a natu-reza, e isto que faz sua inegvel especificidade. igualmente a recusa da maquinao poltica que estna origem do seu receio, que inspira essa nova manei-ra de estar junto. Receio, que engendra as muitas fal-tas cometidas pelas brbaras tribos, em particular nascidades e diversas periferias urbanas. A imprensa

    de todas as peles, e no somente aquelas direciona-das ao sensacionalismo fez sua escolha sem obter re-sultado. E numerosos so os foliculares que se utili-zam disso para fazer chorar Margot. No frangls con-temporneo, isso se chama a pesquisa do scoop.

    A expresso habitualmente utilizada para estigma-tizar o fenmeno tribal o termo comunitarismo.Como toda estigmatizao oriunda do medo daquiloque , uma forma de preguia pela qual se pode pa-gar caro.

    Tique de linguagem amplamente distribudo, tan-to esquerda como direita. Isso tambm uma for-ma de tolice. Com efeito, no se resolve o que postoem questo suprimindo-o ou denegando-o.

    Atitude infantil, igualmente, que a de encanta-o: se repetem as palavras, a maioria delas vazias desentido, e se pensa assim resolver um problema. Maspara alm do medo, da preguia, da tolice do infan-tilismo de fato do que se trata?

    Foi a especificidade da organizao social da mo-dernidade no que pretendeu reduzir toda coisa uni-dade. De evacuar as diferenas. De homogeneizar asmaneira de ser. A expresso de Auguste Comte: redu-

    tio ad unum, resume bem um tal ideal, o de uma Rep-blica Una e Indivisvel. E no se pode negar que setrata aqui de um verdadeiro ideal cujos resultados cul-turais, polticos, sociais foram inegveis. Mas, na lon-ga durao, as histrias humanas nos ensinam quenada eterno. E no a primeira vez que se observa asaturao desse ideal unitrio. Imprios romano, inca,azteca, se poderia, ao infinito, multiplicar os exemplosde formas organizacionais centralizadas, reunidas noossrio das realidades.

    Realidades que nos foram a constatar, como indi-quei sob a forma de aluso, que a heterogeneidade est

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    de volta. aquilo a que Max Weber dava o nome depolitesmo dos valores. Assim, a reafirmao da dife-rena, os localismos diversos, as especificidades daslnguas e culturais, as reivindicaes tnicas, sexuais,religiosas, as mltiplas coisas parecidas em torno de

    uma origem comum, real ou mitificada.Tudo serve para celebrar um estar junto, cujo fun-

    damento menos a razo universal que a emoo par-tilhada, o sentimento de pertencena. assim que ocorpo social se difrata em pequenos corpos tribais. Oscorpos, em sua teatralidade, se tatuam, se furam. Ascabeleiras se eriam ou se cobrem de lenos, de kipas,de turbantes ou de outros acessrios, tal como griffeHerms.

    Em breve, no incandescido cotidiano, a existnciacom manchas prpuras de cores novas traduz assim a

    fecunda multiplicidade das crianas dos deuses. Por-que se sabe que aqui existem muitas casas na moradado Pai.

    Eis o que caracteriza o tempo das tribos. Sejam se-xuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, e atpolticas, elas ocupam o espao pblico. uma cons-tatao que pueril e irresponsvel de negar. No levaa nada as estigmatizar.

    Ser mais bem inspirado, fiis com isso a uma ime-morial sabedoria popular, acompanhar uma tal muta-o. E isto, para evitar que ela se torne perversa, de-pois totalmente incontrolvel. Aps tudo, por que noenfocar a res publica, a coisa pblica que se organiza apartir do ajustamento, a posteriori dessas tribos eleti-vas? Por que no admitir que o consenso social, maisperto de sua etimologia (cum sensualis) possa repousarsobre a partilha de sentimentos diversos?

    Desde que elas esto ali, por que no aceitar as di-ferenas comunitrias, ajudar a encaix-las e apren-der a compor com elas? O jogo da diferena, longe deempobrecer, enriquece. Aps tudo uma tal composi-o pode participar de uma melodia social, ao ritmotalvez um pouco mais coaligido, mas no menos

    dinmico. O ajustamento dos diversos teclados damsica techno traduz, tambm, uma forma de cultu-ra.

    Resumindo, perigoso, em nome de uma concep-o um pouco retrgrada da unidade nacional, noreconhecer a fora do pluralismo. O centro da uniopode se viver na conjuno, a posteriori, de valores opos-tos. harmonia abstrata de um unanimismo, digamos,de fachada, est se sucedendo, por meio de mltiplosensaios-erros, um equilbrio conflitual, causa e efeitoda vitalidade das tribos.

    Internet: a iniciao a uma nova ordem comunicativaNo h mais lugar para ser velhos rabugentos, ofus-

    cados pelos bons velhos-tempos de uma Unidadefechada sobre si mesma. O que os filsofos da IdadeMdia denominavam unicidade, exprimindo uma co-

    erncia aberta, poderia ser uma boa maneira de com-preender uma ligao, um lao social fundado sobre adisparidade, o policulturalismo, a polissemia. O que,certamente, se denomina de uma audcia intelectual.Essa de saber pensar o verdor de um ideal comunit-rio em gestao.

    Sim, h momentos onde importante pr em mar-cha um pensamento de longo curso que seja capaz deaprender as novas configuraes sociais. E por isso nose pode ficar satisfeito com esses conceitos autistas,rarefeitos, fenmeno a que, em italiano, se d o nome,

    bem adequadamente, de concetti, vistos do esprito. Emresumo, no se pode, o que o pecado mignon do inte-lectual, criar o mundo do que se quer que ele seja.

    Audcia, portanto, permitindo entender que, emoposio solidariedade puramente mecnica que foia marca da modernidade, o ideal comunitrio das tri-bos ps-modernas repousa sobre o retorno de umaslida e rizomtica solidariedade orgnica.

    Porque, paradoxo que no menos considervel,esta velha coisa que a tribo, e estas antigas formas desolidariedade que so vividas no cotidiano, exercidaso mais prximo, nascem, se exprimem, se confortamgraas s diversas redes eletrnicas. Da a definioque se pode dar ps-modernidade: sinergia entre oarcaico e o desenvolvimento tecnolgico.

    Lembrando certamente que o arcaico, no seu senti-do etimolgico, o que o primeiro, fundamental, vdesdobrados seus efeitos pelos novos meios de comu-nicao interativa. A imagem do que foi a circunave-gao na madrugada dos tempos modernos, navega-o sendo a causa e o efeito de uma nova ordem domundo (o que Carl Schmitt denomina o Nomos daterra), certos socilogos mostram bem em que a cir-

    cunavegao prpria Internet est na iminncia decriar novas maneiras de ser, de mudar, em profundi-dade, a estrutura do lao social1.

    No necessrio ser perdidamente apaixonado poressas novas tecnologias interativas para se compreendera importncia do que se convencionou denominar, jus-tamente, de sites comunitrios.My Space,Facebook, quepermitem aos internautas tecer os laos, trocar idias esentimentos, paixes, emoes e fantasmas. Do mesmomodo You Tube favorece a circulao do vdeo, da msi-ca e de outras criaes artsticas. E, mais ultimamente,

    Lively tenta liderar a vida on line de seus usurios.

    Michel Maffesoli

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    A expresso mestra, se declinando at no ter maissede, a da vida comunitria. E ali onde se v que omedo do comunitarismo bem o fantasma de umaoutra poca, e totalmente defasado em relao aomundo real daqueles que constituem a sociedade, j

    hoje, num golpe certo de amanh.

    Procurar o essencial noinaparente das aparncias.Estas da vida cotidiana. Estasdesses prazeres midos e de

    pouca importncia,constituindo o humano ondecresce o estar-junto.

    Graas Internet, com efeito, uma nova ordem co-municativa se coloca. Quem favorece os encontros, ofenmeno dosflashmob como testemunho; onde, a pro-psito das coisas fteis, srias ou polticas, as mobili-zaes se fazem e se desfazem no espao urbano e vir-tual. D-se o mesmo com o streetbooming, permitindoque nas grandes megalpolis contemporneas, nessasselvas de pedras que favorecem o isolamento, ao seconectarem a Internet as pessoas se encontram, se fa-lam, se conhecem, criando assim uma nova maneirade estar junto, fundada sobre a partilha da criativida-de.

    Tais redes sociais on line, assim como os fenmenosde encontros a que isto induz, devero nos tornar aten-tos a uma sociedade especfica, onde o prazer ldicocomporta a simples funcionalidade. Alis, interes-sante notar que se utiliza, cada vez mais, os termos

    dos iniciados para caracterizar os protagonistas des-ses sites de encontro.

    Iniciao sob novas formas de generosidade, desolidariedade em minsculo, que no tm mais nadaa ver com o Estado providncia e sua viso defor-mada. Se, como indica Hlne Strohl, uma boa conhe-cedora deste problema, Ltat social ne fonctionne plus(Albin Michel, 2008), isto bem porque a base, noquadro comunitrio, graas s tcnicas interativas, quese difundem, mutuamente, sob todas as forma. Retor-no curioso a uma ordem simblica que se acreditavaultrapassada.

    Mas para bem compreender uma tal ordem, impor-ta colocar a mo na massa no com pensamento crtico,i.e., judicativo, mas um questionamento bem mais radi-cal, tendo de apreender os arcanos da socialidade. H,aqui, com efeito, no corao mesmo do desenrolar his-

    trico, como ao poltica, um princpio secreto que preciso saber descobrir. Nesse ponto que nos diz averdade, na sua origem grega: aletheia, o que desvela oescondido? Ainda preciso que se saiba respeitar o ve-lado! Estranho paradoxo do pensamento radical: saberdizer claramente o que complicado, aceitando total-mente reconhecer que as pregas do ser individual oucoletivo permanecem uma realidade intransponvel. esta a lio de coisas que, continuamente, nos d a exis-tncia. isto aqui que constitui o mistrio da vida.

    Procurar o essencial no inaparente das aparnciasNo desprezo do romantismo, desde o surrealismo,os situacionistas, nos anos sessenta do sculo assado,partiram procura dessa mtica passagem do noroes-te abrindo sobre os horizontes infinitos. E para fazerisso, colocaram em marcha uma psicogeografia, ouderiva, lhes permitindo descobrir, para alm da sim-ples funcionalidade da cidade, que existe um labirintodo vivido, contrariamente mais profundo e asseguran-do, invisivelmente, os fundamentos reais de toda exis-tncia social.

    Pode-se extrapolar um tal questionamento poti-co-existencial e os arcanos da cidade podem ser teispara compreender uma estrutura tcita que, em certosmomentos assegura a eternidade da vida em socieda-de. Tcito: que no se exprime verbalmente, que tudo subentendido. Implcito: que vai se alojar na dobrado mistrio e do inconsciente coletivo.

    Jean Baudrillard, no seu tempo, tornou-se muitoatento a esta sombra das maiorias silenciosas, a esteventre mole do social. Da minha parte, de diversasmaneiras, analisei a centralidade subterrnea, a socia-lidade obscura e outras metforas, pontuando a reti-

    rada do povo sobre seu Aventino. Orfandade da tra-dio mstica, retornando, subrepticiamente, ao gostodo dia!

    Um tal tecido repregueado frequente nas histori-as humanas E ele sempre o indicador de uma de-manda de reconhecimento. Contra o patriciado roma-no, o povo se refere a seus direitos. Isso se d igual-mente em nossos dias. E a demanda implcita, silenci-osa, que tem dificuldade em se formular, necessita quese saiba fazer uma espcie de geologia da vida social.E, na maneira de ser, uma pesquisa das estruturas he-terogneas que a constituem.

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    Mas fiquemos nesta ambivalncia. Esta bipolarida-de entre isto que retrado e o que se mostra. Aindamais hermtico que em evidncia. Salvemo-nos aquido comentrio que fez Lacan do conto de Edgar Poe,a carta roubada. porque ela est aqui, sob o manto

    da chamin que o comissrio que est sua procurano a v. E como em eco, ouamos o conselho de Gas-ton Bachelard: no h cincia fora do obscuro.

    Dizendo com clareza esse escondido nos arrunaos olhos. E por pouco que se tome seriamente a teatra-lidade do fenmenos, este theatrum mundi, de antigamemria, se saber a ver os novos modos de vida emgestao. Para alm de nossas certezas e convices:polticas, filosficas, religiosas, cientficas, convm sepor em acordo simplesmente, humanamente, ao quese d a ver. Procurar o essencial no inaparente das

    aparncias. Estas da vida cotidiana. Estas desses pra-zeres midos e de pouca importncia, constituindo ohumano onde cresce o estar-junto. No ser isso a cul-tura? Os aspectos os mais importantes para ns esto

    escondidos por causa de sua banalidade e de sua sim-plicidade (Wittgenstein).

    Talvez a partir de um tal principio de incerteza seser capaz de fazer um bom prognstico. Quer dizer,ter a intuio dos fenmenos, esta viso do interior,

    fazendo tanta falta parania to freqente nas elites.A partir do olhar penetrante nos ser permitido ver oncleo ftico das coisas.

    Fatco, porque nos falta ser mestres. Isso vem de bemlonge, e no se deixa dominar pela pequena razo ins-trumental peculiar modernidade. Ncleo arquetpico,no qual importante localizar a fecundidade FAMECOS

    NOTAS

    * Traduo Maria Clara Schiefler da Cunha Forster.1 Disponvel em: . Gretech,grupo de pesquisa sobre a tecnologia, direoStphane Hugon.

    Michel Maffesoli

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