Macumba No Brasil 308

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Uma Macumba no Brasil Índice Decifrando Mitomanias................................................. ....................................................2 Crazy Bitch from Copacabana................................................. ..........................................3 O Fantasma de Maura Lopes Cançado.................................................... ..........................4 Resille à Chenille................................................... ........................................................... .6 A Morte de J. D. S. em Paris...................................................... .......................................8 O Fantasma da Mansão da Birmânia................................................... ............................10 Elegia PanAmérica................................................. .........................................................13 Poeta à Procura de Editor..................................................... ...........................................15 O Príncipe e o Ventríloquo................................................ .............................................17 Diário de um Ghost Writer..................................................... .........................................19 Bernardo, Cartas da Imprecisão e do Delírio.................................................... ..............21 Pequeno Concerto para Ver no Celular e Escutar no Ifone............................................24 1

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Uma Macumba no Brasil

Índice

Decifrando Mitomanias.....................................................................................................2Crazy Bitch from Copacabana...........................................................................................3O Fantasma de Maura Lopes Cançado..............................................................................4Resille à Chenille...............................................................................................................6A Morte de J. D. S. em Paris.............................................................................................8O Fantasma da Mansão da Birmânia...............................................................................10Elegia PanAmérica..........................................................................................................13Poeta à Procura de Editor................................................................................................15O Príncipe e o Ventríloquo.............................................................................................17Diário de um Ghost Writer..............................................................................................19Bernardo, Cartas da Imprecisão e do Delírio..................................................................21Pequeno Concerto para Ver no Celular e Escutar no Ifone............................................24Easy Rider Brasil.............................................................................................................26Uma Macumba no Brasil.................................................................................................34

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Decifrando Mitomanias

Eu me senti mal após ingerir o suco da sala dos professores. Estava sendo um tumultuado início de semestre. Como se não fosse bastante, naquela noite acordara em meio a sonhos intranqüilos.

Tinha alguma coisa naquele suco? Essa foi minha especulação após sentir seus efeitos. Era como se meu corpo diminuísse e encolhesse; vertigens atacavam-me o equilíbrio. Deve ter sido alguma brincadeira da equipe pedagógica. Lembrei-me da história que uma colega de faculdade contou: numa festa maluca, colocaram ácido lisérgico num ponche. Todo mundo ficou pirado. Porém, aquela equipe pedagógica parecia séria.

Sentia essas estranhas sensações na saída da escola onde lecionava, calado e fazendo associações que iam me deixando num pânico cada vez maior. Foi quando uma colega resolveu me dar uma carona. Era Ellen, uma professora de inglês que falava sem parar.--Você gostou dessa equipe pedagógica?--Mais ou menos. O supervisor usava botas de militar. E a postura era de sábio hindu, possuidor de todas as verdades...--Aquela coisa de dizer que a escola pública precisa criar uma elite que transforma. Nunca vi elite que transforma! Toda elite só quer poder. Isso é coisa de petista.--Não fale assim que você vai criar briga na escola. Naquela equipe devem existir muitos deles. Esse conceito de elite que transforma é do Lênin. O partido comunista seria uma elite que faria as transformações.--Mas você viu no que deu a pedagogia do oprimido? Deu naquelas escolas de Sem-Terra, onde as crianças gritam e aprendem a odiar as elites! Precisamos preparar as crianças para o derretimento das calotas polares, para a globalização...--Para morrer?--Uma pedagogia da morte.---Diga isso ao supervisor numa festa.

Momentaneamente passou o mal-estar. Ellen me deixou bastante próximo de minha casa. Minha mulher perguntou-me o que estava acontecendo, o motivo de minha palidez. Comecei a falar sem parar:--Alice, havia alguma coisa no suco que nos serviram durante a reunião.

Não resolvemos nada. Fiquei me sentindo mal... Coisa esquisita. Peguei uma carona com a professora Ellen. Estávamos elaborando uma nova pedagogia da morte e associando o discurso do PT com o de Lênin, debatendo se existe uma elite que transforma ou se isso é coisa de petista, sabe? Aí, aconselhei-a a dizer isso ao supervisor bêbado...--Bernardo, você está inventando...--Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!

Nessa afirmação ecoavam as discussões que eu e minha esposa andávamos tendo. Alice era psicóloga e estava fazendo um mestrado sobre mitomanias e fantasioses. Classificava os escritores em vários tipos de mitomanias. O primeiro mitômano seria Homero. Eu não aceitava essa análise, achava psicanalhice fazer isso. E afinal o que eu tinha era uma estafa e labirintite, conforme um laudo médico. Foi assim que escapei da pedagogia da morte por uns tempos.

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Crazy Bitch From Copacabana

Ele se chamava Vinícius de Morais. Gostava dos poemas de seu homônimo, mas ouvia desde criança Raul Seixas e queria ser roqueiro. Logo ele criou duas bandas, os Dead Lover´s Twisted Hearts e os Junkie Dogs. Os Dead Lover´s faziam um som mais pop, lembrando Franz Ferdinand e os Strokes, enquanto os Junkie Dogs faziam um som mais próximo de Sonic Youth e Velvet Underground. Vinícius também queria musicar uma canção que dizia, com a melodia de Se Essa Rua Fosse Minha: “Se eu tivesse, se eu tivesse muitos vícios, eu seria, eu seria o Vinícius. Se esses vícios fossem muito imorais, eu seria o Vinícius de Morais.” Vinícius queria eletrificar o folclore, achava que Caetano estava errado ao combater os nacionalistas de esquerda.

Vinícius mudou-se para Londres e foi bafejado pela sorte: a guerra do Iraque terminara havia pouco, gerando uma revolução islâmica no país. O Reino Unido não tinha mais acesso ao petróleo iraquiano. E o primeiro ministro trabalhista buscou se aproximar de Hugo Chávez para obter petróleo venezuelano. Como parte da política inglesa de conciliação, Chávez foi convidado a posar para Madame Tussaud. O convite para virar estátua de cera no Mme. Tussads lhe chegou em boa hora, pois a oposição recrudescera depois da estatização do canal Globovisión e a aceitação na Inglaterra ajudaria sua imagem interna, com certeza. Vinícius de Morais aproveitou-se desse contexto, inspirou-se numa canção do disco Autófago, de Makely Ka, onde o compositor mineiro colocou a fala de Chávez dizendo que Bush era o diabo e fez sucesso por todo United Kingdom com o rock chavista “Soy Loco por Ti, Comandante”. Passou a viver em Londres, separando-se dos Dead Lover´s e dos Junkie Dogs, seguindo uma carreira solo baseada principalmente em versões bossa-trash tais como Crazy Bitch From Copacabana, uma pop paródia da Garota de Ipanema e outras canções tais como Amor, Orgasmatron (homenagem jazzy ao Sepultura).

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O Fantasma de Maura Lopes Cançado

Eu não sei o que estou fazendo aqui nesse hospício em Engenho de Dentro. Hospício é não se sabe o quê, pois Hospício é Deus. Estou aqui perdendo tempo, anos comem tempo, tempo come carne. Aliás, sei o que engendro no Engenho: estou maquinando todos os mecanismos internos de minha mente, investigando-os, viviseccionando-os. Intelectualizo tudo, mas não quero sair lá para fora, da última vez que fui a Belo Horizonte estava só com a roupa do corpo e um livro do Beckett. Esperando Godot. Talvez fosse melhor não ter nascido. Eu já fui internada como louca, mas agora estou de novo aqui, sinto frio, mas escrevo com um toquinho de lápis, voltei, Deus, loucas, voltei. Cantei Puccini no pátio e chorei com outras loucas rasgadas protagonizando uma ópera insuspeitada. E as loucas respondiam presente, tocadas pela música. Cantamos, eu e outra louca musical, a Valsa da Musetta. Ao falar com o psicólogo, percebi que ele me desejava e justificava seu desejo dizendo para mim que desejos são algo absolutamente natural. Já tive caso com um psiquiatra e gastei toda minha herança. Não me preocupei com o futuro. O futuro dura muito tempo. Eu me sinto presa no quadrado de Joana. Já morei com uma moça que coletava pedras na praia, já morei com árvores, morei no centro-oeste mineiro, tentei ser piloto de avião, mas não consegui tirar brevê. Deixei o avião cair numa casa: sonhava em estar num avião caindo. Fiquei sem asas para voar. Casei-me com um moço que era também aviador, tive um filho e separei-me. Amava, na verdade, o meu sogro. Insinuei-me, ele nunca percebeu. Ele era comandante de um batalhão de polícia e era belo e jovem e sua foto até hoje está no Colégio Coronel Praxedes. Ele era o Praxedes e eu uma adolescente sem práxis que sonhava em trabalhar de espiã para a Alemanha, traindo o Brasil. Sonhei que no futuro um poeta ainda vai ser internado aqui, um poeta bêbado, incognoscível, que apareceu no meu sonho como uma sombra concreta de um nariz em linha reta. Uma sombra concreta. Meu pai morreu quando era muito jovem e deixei mamãe na fazenda. Fui para o Rio. Numa crise, matei uma enfermeira e meu namorado. Hospício são flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore frio, subitamente futuro. É uma cidade triste de jalecos brancos. Sou um anjo com vocação para demônio. Existo desmesuradamente, como uma janela aberta para o sol. Existo com agressividade. Eu gostaria que meu pai e minha mãe, ou os dois, já que ambos tinham a mesmíssima responsabilidade, houvessem refletido sobre o que estavam fazendo quando decidiram me conceber.

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Résille à Chenille ("Tecido de Seda")

Moro numa casa ensolarada, amplas varandas com floreiras, onde Miele, meu gato, gosta de tomar banho de sol. Na casa em frente, minha vizinha, a modelo Ésper, exercita-se brincando com Paco, um coelho javanês. Já pensei em contratá-la para trabalhar na área de marketing da fábrica de tecidos de minha família. Só não levei adiante essa idéia porque o marido, Ocimar, me falou do temperamento explosivo e a forte tendência à anorexia da jovem esposa.

Naquela manhã de sábado de aleluia, embalado pelos gritinhos e gemidos de Ésper, acabei dormindo na rede de crochê da varanda. Coelhos desfilavam numa ampla colcha de chenile. Paco apareceu com uma cueca de tafetá vermelha e gravata borboleta de mousseline xadrez. Meu gato não gostou nada do que viu. Enfurecido saltou sobre Paco, desnudando-lhe o traseiro. Eu tentava tirar Paco daquela enrascada, quando os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de chenile. Acordei. Anabela viu nas minhas alucinações uma premonição.

─ Você é cheia de não-me-toques, ironizei.

Foi aí que vislumbrei um vulto se esgueirando da cozinha para o jardim. Passou por baixo das alamandas e foi se esconder no roseiral. Mal pude acreditar no que vi. Miele havia matado Paco e se preparava para devorá-lo. Como iria explicar a tragédia aos meus vizinhos? Os donos do coelho certamente sofreriam um troço.

Sei lá o que me deu. Peguei o defunto coelho, removi a terra que cobria sua plumagem, saltei o muro e, com toda frieza, coloquei o cadáver bem juntinho do batente da porta. Anabela descabelou-se, esmurrou o grande urso de espuma e bradou o mantra “faraooon”.

─ Isso não vai dar certo, caramba!

─ Que vão pro meio do inferno!

Para minha surpresa, nos dias seguintes, nenhuma reação do outro lado do muro. Meses depois, nossos vizinhos se mudaram. Para dissimular a culpa, Anabela cantava para si mesma alguns versos de uma canção melancólica de Jacques Prévert: “Ceux qui flottent e ne sombrent pas/Ceux qui ne prennent pas Le Pirée pour un homme...” Naquela tarde de domingo, final da Copa América, encontrei Ocimar bebendo cerveja no boteco do Bill. Ele me contou que a saúde de Ésper piorara muito.

─ Anorexia? ─ arrisquei.

─ Não. Ficou pirada com a morte do Paco. Você se lembra daquele meu coelhinho javanês? Pois é. Paco morreu envenenado com agrotóxicos e Ésper sepultou o bichinho no jardim. No entanto, algumas horas depois, Paco ressuscitou, tentou buscar nossa ajuda, mas acabou morrendo de novo, bem no cantinho da porta do alpendre!

Lamentei a morte do bichinho, despedi-me de Ocimar e dei no pé. Aleluia, aleluia. Espero que ele não leia esse texto.

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A Morte de J. D. S. em Paris

Enfim, o sucesso. J. D. tivera seu primeiro livro lançado em Paris. J. D. chegava finalmente à França. Na juventude, em Minas, era amigo de Roberto Drummond e papeava sobre literatura em bares no bairro da Savassi, mas afastou-se de Roberto por associar sempre a sua figura à do palhaço Bozo.

Pouco depois de chegar a Paris, ele quis ir ao cinema. Primeira decepção com Paris: descobriu que Godard é contra o imperialismo cultural americano. Dégoutant. J. D. era colunista elitizado de uma revista de classe média decadente e autor de um blog de sucesso na internet: “Entre Tapas e Gargalhadas”. Ao ligar a TV em Paris, viu uma atriz da Globo entre os negros do subúrbio parisiense de Clichy, dançando e cantando o funk da pi-pi-pi-ri-gueeeete! Que abuso daquela “crioulada”, estragando suas seqüências parisienses!

Dias depois, J. D. foi ao supermercado Bon Marché. Em Paris, ele não podia pagar empregadas domésticas para irem ao supermercado para ele. Quando escutou a música que tocava, um arrepio de pavor: tocava Axé Music no Bon Marché! Ele queria descansar do Brasil, mas aquele paisinho porcaria o perseguia.

De pernas bambas, deitou no sofá em seu apartamento num dos mais chiques arrondissements e arriscou a TV novamente, sem acreditar no que estava vendo: as videocassetadas também existem na França! Doente, tossindo muito, acamado, J. D. era só ajudado por um vizinho de apartamento, o comunista Jean Phillipe Noiry. “Comunistas, gauche caviar, nem aqui estou livre dessa raça”, pensava ele, enquanto pedia para que Noiry lhe trouxesse copos d´ água e remédios. Em seu blog, J. D. jamais publicava comentários dos petistas, que ele chamava “petelhos” e “burros”, inspirado em Paulo Francis. Detestava “Marxilena Xuxaí” e se dizia arrogantemente golpista e macartista. Desesperado, ligou para a mulher, que deixara na cidade de Arapiraca:--Genalva, vem me buscar que eu estou odiando.

No entanto, um som alto de música breganeja soava ao fundo, impedindo que ele ouvisse o que Genalva estava dizendo. Genalva, livre dele, escutava o que não podia escutar a seu lado. Suas piores suspeitas foram confirmadas. Bateu o telefone: lágrimas de esguicho.

Quando parava de soluçar, sentiu uma vertigem terrível e tombou fulminado. O raio de seu amigo comunista colocara um disco, não da Internacional Comunista, mas dos Mamonas Assassinas, que ele “conhecera numa revista francesa quando eles morreram”. Naquela noite, o Paris Connection teve todos seus integrantes trajando luto. E foi o mais formal deles, um mineiro, quem deu o boa noite, dizendo: “adeus, José Duarte!”

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O Fantasma da Mansão de Birmânia

O beco onde ficava a antiga mansão era no centro de São Paulo. Lá vivia um casal de idosos: Majela e Birmânia. Eu tinha de pesquisar algumas anotações numa parede da casa; dizia a lenda que Oswald de Andrade vivera ali no final de sua vida e deixara aquelas frases anotadas.

As frases estavam quase ilegíveis e uma só passagem pela casa não foi suficiente para decifrar quase nenhuma. O casal era muito simpático, fui me familiarizando com eles, pois lembravam meus avós.

Logo eu estava chamando Birmânia de mãe e ela me segredou que a casa era assombrada; seu marido costumava ver os fantasmas. Ela acreditava em tudo, tinha um ufoporto, um canto no jardim para gnomos e recitava um mantra: “Laaaraaaas”, em meio a exercícios onde buscava levitar. Majela dizia que ela era “eclética”: acreditava que Jesus voltou reencarnado num brasileiro chamado Inri Cristo e chorava vendo os padres e missas da Rede Vida. O mantra, explicou-me ela, era para quando o Hercólubus chegasse. Um planeta cinco vezes maior que Júpiter, disse ela, estava se aproximando da Terra. Hercólubus, o planeta vermelho, era a verdadeira causa das mudanças climáticas: seu profeta, um índio chamado V. M. Rabolu.

Numa noite, depois de ter enfim conseguido decifrar quase toda a pilastra, eu entrava na cozinha para me despedir de Birmânia e vi Majela conversando com um espectro translúcido, apenas um manto fluorescente sem rosto. Saí apavorado, sem me despedir dos dois.

Quando retornei à mansão, no dia seguinte, Birmânia tocava um mesmo acorde de forma obsessiva em uma linda harpa. O som me atormentou. Eu queria apenas agradecer a atenção que me fora dada nos últimos dias, mas Birmânia respondia-me apenas com monossílabos e leves gestos com a cabeça. De repente, deixei cair um exemplar do livro Torquatália, do jornalista piauiense Kenard Kruel, biografia do poeta Torquato Neto. Ao pegá-lo no chão, lembrei-me: ele desenvolveu uma estranha teoria sobre o suicídio de Torquato Neto. Existiria uma frase apagada no bilhete deixado por Torquato Neto que explicaria tudo. O livro se abrira justamente na página em que Kenard resgatava a suposta frase: “os arpejos de mamãe me levaram ao suicídio”. Saí pela última vez da casa. Fiquei pensando: e se Majela e Birmânia forem os fantasmas de Oswald de Andrade e esposa?

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Elegia PanAmérica

Abri hoje os jornais e li: morre José Agrippino de Paula. Fiquei com essa notícia na cabeça. Preciso ir até o Retiro do Chalé, onde meus pais têm um terreno, para pagar o condomínio. O Retiro fica perto de Belo Horizonte e é um lugar paradisíaco: um belo lago onde se pode pescar, restaurante, clube com piscinas, cachoeira. Marcos Valério também possui uma casa lá. Mas me fecho em meu quarto e penso somente em Zé Agrippino, Zé Agrippino e seu romance interminável: Os Desfavorecidos da Madame Estereofônica.

Coloquei um CD e o rock dos Beatles existiu. Gosto de Across the Universe com Fiona Apple e com a banda eslovena Laibach. A banda eslovena incluiu um coral de camponesas e meninos uniformizados. Depois voltei a ouvir a voz de John Lennon enquanto imaginei planetas, luzes e astros, céus e estrelas, sóis. Ouvi a voz grave de Agrippino me falando que mal folheou a dissertação que eu mandei, de autoria de Carlos Henrique Bento, sobre ele mesmo, Zé Agrippino. A capa de Sergeant Pepper´s tinha Hitler escondido lá atrás, fiquei sabendo. Junto com Marlon Brando, Buda e Jesus-Hitler. Porque alguém ficou na frente de Hitler, por isso ele não apareceu: supus que fosse Jesus. Mautner em Deus da Chuva e da Morte falou em Jesus-Drácula. Numa outra revista, li que o marido de Elke Maravilha a faz rir ao sair do banho com uma toalha na cabeça e cantando Carmen Miranda. Os filmes de Agrippino: Hitler Terceiro Mundo, Rito do Amor Selvagem.

Reflito: a região do Retiro, próxima de Belo Horizonte, era a antiga Serra do Rola-Moça, gerou uma canção popular coletada por Mário de Andrade e musicada por Teca Calazans. Sergeant Pepper´s foi lançado no mesmo ano do primeiro disco dos Doors. John Lennon e George Harrison curtiram o orientalismo indiano, Jim Morrison preferiu o xamanismo, Castañeda, o deserto. Os livros de Agrippino: Lugar Público, PanAmérica.

Deitado em meu quarto, escureceu. Cochilei: imagens me vinham à cabeça: Zé Agrippino, Inri Cristo. O som, ao fundo, Ray Connif. Vestido como um profeta bíblico, mandava mensagens telepáticas: “quando menos se espera a paz nos penetra”. Outras frases chegavam sem sentido. Estática: Ariano Vilar Assassino careca, a onça Caetano... Filosofia penetral, Penetrália. Resolvi também mandar uma mensagem. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio. Subimos numa duna: estávamos numa praia do Ceará. De longe via o mar azul. Zé Agrippino entrou lentamente no mar: “a paz invadiu meu coração”, foi a mensagem que veio. O mar abriu-se entre algas vermelhas, tentei seguir Zé Agrippino, mas o mar arrebentou-se em mim. Ele sumiu. Na altura tudo era paz. Acordei com o final da canção de Teca Calazans nos lábios: “e a Serra do Rola-Moça, Rola-Moça se chamou...”

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Poeta à Procura de Editor

Belo Horizonte, tarde da noite. Um rapaz andava furtivo pelas ruas do Centro, entre as criaturas que circulavam na região: michês, vagabundos, boêmios, travestis, funcionários de bares e boates.

De repente, um spray. Gesto felino, Picasso dando uma pincelada num quadro, escrevia um poema na parede de um prédio ou casa. Para exercer aquele seu talento, o jovem jornalista André Duarte, que usava o sucinto pseudônimo de Spider, precisava ser rápido e ter olho de lince: a qualquer momento poderiam surgir gangues de pichadores que disputavam com ele o território. Se o pegassem escrevendo, a surra era certa. Ele só julgava que duas gangues faziam pichações interessantes, mais próximas das grafites: os Leiloeiros e os Falsários. Ele implicava com Leiloeiros: apreciava mais os Falsários. Os Leiloeiros faziam estranhas garatujas gestuais, como se pintassem quadros de Pollock ou Basquiat. Por não gostar desses dois pintores, Spider os desprezava e às vezes pichava: “fora os Leiloeiros, viva os Falsários” em algum canto de muro, muito discretamente, buscando evitar represálias. Os Falsários tinham como referência não a pintura ocidental, mas sim os ideogramas chineses e japoneses; assim como os alfabetos árabe e cirílico. Mas, principalmente, Spider era fascinado pelo aproveitamento que eles faziam do alfabeto georgiano, como na pichação transcrita adiante: “ანოტაციების მსოფლიო ცენტრი 34 ენაზე!”

Certa feita, o “poeta à procura de editor”, como ele se intitulava, escreveu na parede de um consultório de dentista, bem próximo à Rua da Bahia: “remédio contra a cárie: poesia”. Na parede de uma peixaria, lascou: “o peixe existencialista: nada”. Um dia revelou à grande imprensa que o “poeta à procura de editor” era ele. Pouco depois, obteve grande sucesso editorial, não com a poesia, mas com o best-seller educativo “Docência e Insanidade” e o clássico da Administração: “Quem Cuspiu no Meu Chope?”. Mas isso foi antes que ele enlouquecesse. Foi internado num subúrbio da cidade de Barbacena. Eu o visitei no manicômio e esqueci de tirar o meu brinco. Ele me entregou uma rosa e, apontando para a própria orelha, disse: “eu não sou bicha não, mas você, hein...” Devido à qualidade de seus escritos literários, jamais reunidos em livro enquanto André Duarte, digo, Spider, ainda tinha lucidez, reproduzo aqui o início do conto Vindima, que faz parte do livro Parafernália Teratoscópica (agora sou eu quem está em busca de editor!): “Por mais que eu deseje descer ao Inferno, as luzes estão apagadas, não há ninguém em casa e amanhã todos ainda estarão bêbados demais, incapazes de me receber”.

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O Príncipe e o Ventríloquo

Numa festa chique em Petrópolis, o príncipe João de Orleans e Bragança estava rodeado do que lhe restava de sua corte. A imprensa presente buscava avidamente obter alguma notícia que pudesse gerar uma manchete ligada à realeza luso-brasileira.

A namorada do príncipe João, Priscila, no último janeiro, partiu sozinha numa turnê pelo Nordeste. Um repórter resolveu interpelar o príncipe João mais diretamente:--Quando Vossa Majestade pretende casar-se com Priscila? Quais são suas intenções para com ela?O príncipe, entediado, respondeu:--Depois de minha viagem ao Iraque, respondeu com ênfase.

Flashes espoucaram, exclamações de admiração, rostos estupefatos. Finalmente os herdeiros da monarquia brasileira produziam uma notícia polêmica, um gesto voluntariamente ousado. A notícia do alinhamento do rapaz no esforço de guerra norte-americano, de forma independente, varreria o País como um rastilho de pólvora, comentavam em todas as mesas da festa. Vários convidados tomavam porres, repórteres e políticos presentes ligavam frenéticos para o embaixador norte-americano, que alegou não estar sabendo de nada.

Alheio à polêmica, o príncipe continuava bebendo à larga e comendo fartamente. Lá pelas tantas, um outro repórter, invejoso do furo obtido pelo colega, lembrou-se de perguntar:--Mas, Sr. João, quando é sua viagem ao Iraque?--Não pretendo ir ao Iraque, disparou o rapaz, num esgar de tédio.

Percebendo-se logrados, os jornalistas presentes deram urros de fúria. Vituperaram contra o príncipe, chamando-o fraco, mentiroso, galhofeiro, ridículo. Ao ouvir, em meio ao generalizado ranger de dentes, a exclamação do nome de Maria Antonieta, o príncipe levantou a voz indignado:--Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo.

Nova onda de indignação entre os presentes. A coisa toda teria sido obra do tio do príncipe, Barão de Itaguaí, presente à festa e iniciado nas artes do ventriloquismo! Seria ele o responsável pela frase que, segundo o príncipe, não passou de uma brincadeira.

A coisa toda ficou afinal reduzida a uma nota no Correio da Cidadania, de autoria do meu amigo Laerte Braga. No contexto em que estava inserida, era um ataque à futilidade dos políticos presentes na tal festa, entre os quais o controverso e “malufístico” prefeito Alberto Bejani, de Juiz de Fora, além de Martius das Chagas, representante daquilo que, nas irônicas palavras de Laerte, chamou de “ala monarquista do PT”.

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Diário de um Ghost Writer

Eu estava em casa de meu pai, contando que atribuíram a mim um livro sobre segurança pública que ele escreveu, quando um rapaz ligou da padaria. Sassá Mutema (ele afirmou usar esse nome artístico e ter vindo da Bahia para Minas) era um negro de longos cabelos bem cuidados e olhos azuis artificiais. Chegou desesperado, precisando de um trabalho sobre Misticismo na Internet, mas revelou estar traumatizado com a rede. O trabalho era para o dia seguinte, mas topei assim mesmo.

6 de abril

Sassá Mutema chegou com um casaco bege, imitando pele de jaguatirica, falando fluentemente a língua da Tabatinga, um quilombo aqui de Bom Despacho. Ao receber o trabalho, suas lentes celestes se iluminaram. Ele afirmou ser um pai de santo, só não fazia aquele tipo de trabalho, mas fazia trabalhos de descarrego, curava mal olhado, benzia cobras, desenfeitiçava e jogava búzios. Colocou-se à disposição, se precisasse. Eu quis puxar assunto, dizendo que já sabia de vários centros de candomblé e umbanda que estavam atendendo pela Internet; enfim, podia-se falar na Webcam, prontamente, com um preto velho ou uma pomba gira, que baixavam on line. Sassá nada disse; ao sair, despediu-se com um “muito obrigada”.

7 de abril

Hoje vários alunos de uma faculdade privada local me procuraram para que eu os ajudasse com as resenhas de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber. Fiquei o dia inteiro fazendo um coquetel teórico, misturando comentários tirados do Meira Penna (Opção Preferencial pela Riqueza). Acrescentei uma pimentinha marxista para contrabalançar, ficou no ponto.

Pediram uma monografia de História Local a respeito da antiga ferrovia que unia nossa pequena cidade a Belo Horizonte e que foi desativada há trinta anos. O foco devia ser um episódio de um acidente na ferrovia, quando o gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um pio. As ferromoças (o equivalente das aeromoças de hoje) fizeram questão de tranqüilizar todos logo a seguir. O aluno frisava o papel da mulher na construção da ferrovia. Um trabalho de micro-história. Falei da decadência das ferrovias a partir do governo JK e cheguei ao específico.

8 de abril

O telefone hoje não parou. Uma aluna que fez Pós numa cidade litorânea me trouxe seu caderno de anotações. Aparentemente, ela ficou o tempo todo na praia, pois as anotações não tinham pé nem cabeça. Meu olhar experiente me levou a pensar que ela copiou as anotações de alguém que as fez em código, para entendimento próprio. Só consegui esclarecer que trabalhos a donzela deveria fazer, contatando os professores dela na tal cidade litorânea. Para justificar o atraso, inventei uma doença rara, a síndrome de Münchausen. Um dos mestres, condoído, respondeu errando o nome da aluna: “Eu já te respondi isso, Maria Aparecida!” E ainda desejou melhoras no

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tratamento da doença rara. Quando eu fizer minha Pós em Literatura, pretendo escrever sobre o divertido trabalho do escritor fantasma.

Bernardo, Cartas da Imprecisão e do Delírio

Eu acordei naquela manhã de sonhos intranqüilos, liguei o computador e escrevi uma carta, por e-mail, esculhambando o Bernardo, escritor amigo meu:

Olá, seu escrevinhador infame que escreve com tintas um painel de sangue e merda. Fico muito feliz em saber que você é o sádico e eu o masoquista. Queria parodiar seus livros, fazer comédia na Globo com eles, zorra total. Você é um resenhista de merda, um escrevinhador reacionário, não é um escritor talentoso como eu. Morra de inveja! Queria pisar em você pior do que o Mainardi pisa no Brasil, queria te esmagar como uma barata. Você fica com essa bichice mal resolvida de cantarolar que de cada pensador eu herdarei só o cinismo... Ah, vá caçar quem te jante! Não concordo com seus gatafunhos! Não me ridicularize pelo fato de eu morar no interior, daí eu não te ridicularizo por morar na Bahia e não ser zen, não ter nascido e sim estreado, dentre outras cositas más. Não me mande mais suas cocadas, digo, seus rabiscos mal escritos.

Atenciosamente,

Raimundo Periquito

Depois dessa purgação, senti-me melhor, fiz café, abri outro e-mail, fui trabalhar, etc. Quando retornei à noite, criei coragem para ouvir a resposta de Bernardo. Li o e-mail que veio em resposta:

Raimundo, feio de cara e bom de bunda: isso não foi uma rima nem uma solução nem eu me chamo Raimundo, meu poeta irmão, o nome de que meu cu arde e faz alarde é Carlos Drummond de Andrade. Nome que invejo a fundo. Espero que meus poemas telegráficos não te aborreçam. Você não deveria ter casado. Sua mulher anoréxica é psicopata. Eu me recuso a ir visitar vocês ou responder seus e-mails, ou deve dizer emelhos. Não, não gosto de vocês gordos. Porque, afinal, ninguém tem culpa do seu sobrepeso. Nem da sua vida ruim. Vá trabalhar, vagabundo, vai. E pare de mamar nas tetas do seu pai e da sua mãe. Você já é adulto. Pare de me mandar correntes com anjos e boatos de que Lula está para lançar o socialismo populista. Chega, chega, chega. Não se esconda atrás da web e de pseudônimos. Não ataque o conceito de LPB, literatura popular brasileira ou algo assim. Existe a literatura prá pular brasileira? Ou seja: factóide ou não, esse conceito vende livros, abre portas abertas, etc, etc. E não me venha com essa de copa da literatura brasileira que futebol e literatura não tem nada a ver. Vendo futebol é que você engordou doze quilos diante da televisão. E de tanto ver TV, você desanimou de votar em Dilma e Lula. Mas foi a doutrinação da TV contra eles, coisa do PIG. Sacou? PIG. Partido da Imprensa Golpista. Não temos culpa se o avião caiu. Não me importa também que a mula manque, o que eu quero é rosetar. Não me importo com você e suas neuroses, reacionário é a mãe, tá. Quem é Diogra Mainardi, sua sogra? Eu uso aquela revista, sim, aqui tem dela, pois tá faltando Personal. Me deixe resenhar. Sou feliz assim. A esperança venceu o medo e sou um escritor, enfim.Abraços do Bernardo.

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Baqueado, lavei o rosto e fui tentar dormir. O Bernardo tinha me dado um soco verbal, uma porrada no queixo. Adormeci de madrugada. No outro dia, de manhã, fui conferir meus dois e-mails. Decidi nunca mais utilizar o nickname de Raimundo Periquito.

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Pequeno Concerto para Ver no Celular e Escutar no Ifone

“A chuva dá de beber aos mortos”, como já disse Walter Campos de Carvalho. Um belo dia musical encontrei na Praça da Liberdade o líder pacifista Eriuch Itzak Rabin, fazendo campanha contra uma aliança política do governador mineiro. Suas palavras eram música para meus ouvidos, música adocicada de Mozart. Eu lhe falei sobre Villa-Lobos, Stockhausen e ele imediatamente começou a reger uma sinfonia. Eu perguntei a ele se tinha ficado louco e ele me disse que não, que era médium e estava regendo uma peça fantasma, uma peça espírita, um pequeno concerto ali no coreto.

Imaginei que, ali na Praça da Liberdade, poderíamos facilmente ser atingidos pelos mísseis do Hamas, mas logo dos alto-falantes da Praça veio a voz de Lula, como se fosse uma lua vindo da Ásia: “foguete não resolve o pobrema de ninguém”. Imediatamente, Eriuch acusou o governador e um tocador de violão cabeludo que estavam no portão do palácio de ecléticos, santas e rapaduras. O governador reclamou dizendo que tinha sido guerrilheiro na Itália e tinha extraditado a Dama das Camélias e o ator Paparabadas. O cantor cabeludo passou logo a dar com o violão na cabeça da Dama das Camélias corrigindo o seu português, enquanto Paparabas os perseguia, acusando o cantor cabeludo de cometer preconceito linguístico, no que tinha total razão.

Eriuch e eu fomos imediatamente então para o cemitério Père Lachaise, em Paris. Olhamos nossos passaportes e havia ali um zero muito grande, um zero em lógica, mas foi tudo ilusão idiótica. Eriuch, com a casaca toda rasgada, queria visitar o túmulo de Chopin, mas eu o levei ao de Chico Xavier que eu nem sabia que estava enterrado ali, no lugar do túmulo de Kardec. Passeamos por entre as lápides e logo escutamos uma canção dos Doors e algumas passagens de Proust, além da conversação de Oscar Wilde. Chico Xavier, que na verdade era Simão Pedro reencarnado, estava fazendo uma preleção a seus fiéis, que alegremente atiravam flores pelo cemitério, dançando alegres & risonhos & ressuscitados. Chico, eufórico pelo fato de um médium canadense ter descoberto, em meio à Ópera H, de Gerald Thomas e John Hemingway, a senha para poder, enfim, reencarnar como Simão Pedro, enfiava as flores em suas chagas petrificadas, enquanto retirava algodão e farinha das narinas.

No entanto, diante dessa cena no cemitério eu adormeci e acordei diante do velho oceano de vagas de cristal e minha barriga suja de areia. Eriuch estava morto ao meu lado. Ao ver seu cadáver nu quis vendê-lo à faculdade de Engenharia Metalúrgica, pois descobri que Eriuch era um robô-maestro. Chico Xavier saiu do mar com livros para me vender, andando sobre as águas e o pior, trazia de enfiada uns quadros de Portinari que acabava de pintar. Eu lhe disse que queria ser médium e escritor, mas observei que Portinari desaprendeu a pintar no além. A partir daí, Eriuch ressuscitou e me contou que seu nome verdadeiro era Zínia Gasparzin. Ele estava todo vestido com flores, andando num carro novo e cantando a canção hippie Happy Together. Amando os The Turtles, pensei então em pescar truta na América com Gerald Thomas, Caio Blinder, Adam Sandler e outros judeus cultos, mas Eriuch me disse que eu devia ser médium e converter gays ao espiritismo heterossexual. Partiria, então, imediatamente numa missão católica para converter os gays do Irã. No entanto, lembrei-me que um dia escutei o presidente Ahmadinejad, do Irã, dizendo que lá não existiam gays. Ao saber que ficaria ocioso, imediatamente desisti da viagem.

Eriuch ainda me deu um folheto a respeito e eu e o subitamente ressuscitado Kardec lemos atentamente. O folheto era, na verdade, uma partitura e Eriuch cantou maravilhosamente sua sinfonia aos espíritos másculos para nós. Embevecido, mas

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mesmo assim realista, Kardec disse a Eriuch que ser médium e converter gays dava intenso formigamento no ânus, vagina e pênis. Chico Xavier, então, desistiu prontamente deixar de investigar a cura dessas práticas contra a natureza. Ele passou a pesquisar a possibilidade de ressuscitar Evita Perón e Tancredo Neves. No entanto, ao som de Joan Baez, encontrou a essência que transformaria tudo em ouro, mas perdeu-a. Ah, as misturas alquímicas! O governador mineiro deu todo apoio ao projeto de ressurreição de Tancredo Neves, mas só colocou uma exigência: deveria ser no dia vinte e um de abril.

Diante de toda essa conversa, Eriuch nos convidou a irmos a uma Igreja católica recentemente restaurada. Chegando lá, ele nos contou que era maçom e nos mostrou sua rosa cruz entre as pernas, bimbalhando entre canções natalinas onde ele citava um maestro cabeludo e alegre que sempre anima a Rede Vida. Ele era todo música, mas a Igreja estava em ruínas, não fora restaurada de forma alguma. Eriuch passou então a só aceitar ser chamado de Zínia e a partir daí passou a andar de terno sem calças e se dizendo uma nuvem de calças. Ele entrou numa de Maiakóvski e passou a assobiar Shostakóvich.

Numa cena violenta, o escritor Campos de Carvalho, rebatizado Walter Oak Fields, apareceu de dentro de um cocô da praia, que na verdade era a cabeça de sua mãe, agarrou as pernas de Eriuch e começou a mordê-las, arrancando sangue. Eu me assustei, imaginando subitamente se aquela agressão não se devia aos meus espíritos obsessores e também devido ao fato de que médium baiano muito bem dotado ter aparecido num filme e me ensinado, à distância, no escuro do cinema, a baixar espíritos de luz on line.

Eu já tinha mesmo me convertido ao budismo de novela e cultuava um deus elefante quando Eriuch partiu para Israel, agora um território ocupado por russos, iranianos, árabes e sírios. Ele me disse que iria se martirizar tocando Wagner por lá. Tentei dissuadi-lo, mas não consegui. Dias depois, vi um extremista judeu assassinar Eriuch Itzak Rabin na televisão, em meio a um discurso em um kitbuzim sitiado por palestinos do Hamas. Eriuch propunha trazer um médium do Brasil que ia ressuscitar Benazir Butto, quando o extremista o achou por demais ensandecido e matou-o a coronhadas de fuzil diante de um mundo que sempre foi bárbaro, segundo Oak Fields.

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Easy Rider Brasil

Ainda vestido de Capitão América, Dennis Hooper voltou do sambódromo cansado. Naquele domingo, seu amigo Peter Fonda vinha visitá-lo, vindo da missa dominical. Os dois ex-hippies ainda mantinham a amizade, mesmo morando no Rio de Janeiro desde 1970. No ano anterior, os dois tinham sofrido um ataque dos rednecks após o Mardi Gras em New Orleans. Após uma longa recuperação, que durou um ano, os amigos resolveram ir assistir ao carnaval no Rio de Janeiro. Gostaram bastante, planejavam voltar. No entanto, souberam que o FBI os estava processando por tráfico de cocaína nos Estados Unidos. Foram ficando pelo Rio de Janeiro, para evitarem o processo e a prisão.

Agora, nos anos 2000, quando os dois estavam em torno dos sessenta anos, o Capitão América ainda permanecia bastante boêmio, enquanto Fonda convertera-se ao catolicismo que tanto o impressionara em New Orleans. Hopper vivia quase que sempre sozinho num apartamento em Copacabana, enquanto Fonda estava casado com uma brasileira e praticante da renovação carismática. Fonda não praticava o catolicismo carismático, mas simpatizava com aqueles cultos que lembravam os ritos protestantes norte-americanos, dos quais, no entanto, nunca participara.

Ambos continuavam com a mesma paixão por motocicletas e bandas de rock, especialmente as da época, do final dos anos 60: Steppenwolf, the Byrds, Eletric Prunes, Jimi Hendrix, Bob Dylan, entre outras. Fonda sempre repetia a frase de Max Weber que dizia que “aquele que vê o mundo aos 50 anos da mesma forma que via aos 20, desperdiçou 30 anos de sua vida”. Hooper, sempre muito crítico, gostava de comparar ele e Fonda com a dupla Wood & Stock, de Angeli.

Fonda ainda lembrava-se muito daquele dia em que foram alvejados pelos caipiras do sul, os reacionários de lenço vermelho, god damn racistas que discriminavam gays, comunistas e cabeludos. Hooper preferia esquecer que sua motocicleta voara longe, aos pedaços, e ainda assim conseguira ajuda com um caminhoneiro, salvando a si mesmo e ao amigo.

Muito tempo depois de terem se recuperado, Fonda ainda fazia todo ano um ritual místico para homenagear as duas motocicletas: reunia as duas máquinas danificadas no réveillon de Copacabana, cantava e dançava a noite inteira, banhando de ervas e flores as duas. Fonda cultuava muito a Harley Davidson do amigo e a sua. Hooper, cético, nunca participou. Certa passagem de ano, Fonda cobriu as motos de cremes e ungüentos cheirosos e escondeu um punhado de cânfora no tanque de sua Harley. Era uma forma de agradecer especialmente à sua alquebrada motocicleta tudo o que tinham passado. Ele talvez temesse, internamente, que uma tivesse ciúme da outra.

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Uma Macumba no Brasil

Diário

2/07/01

Albert chegará hoje aqui em casa com dois amigos, Jean-Luc e Bernard. Todos vindos de Toulouse, França. Daqui iremos para Cidade do Sol, cidade próxima, onde eles, com formação em antropologia, querem ver a festa de Reinado e visitar um Centro Espírita Umbandista, algo que nós conhecemos como terreiro de macumba. Albert veio rever uma moça que namorou na França, uma franco-brasileira chamada Julie.

3/07/01

Saímos de carro. Jean-Luc foi dirigindo com a carteira francesa mesmo, pois é muita burocracia que existe para traduzir a carteira para o português, além de ser caro. Antes, vamos passar em Congonhas e Ouro Preto. Bernard morou muito tempo em Paris e se considera parisiense. Albert e Jean-Luc detestam Paris. “Lá vive uma super-elite. Paris, “faisse la gorge!”, diz Albert, que seria algo como “Paris, todo mundo com cara de bunda”. Albert não suporta, especialmente, o fato dos parisienses chamarem os demais departamentos de “province”. A discussão entre Paris e province se prolonga interminavelmente e eu fico um pouco à parte na discussão. Para encerrá-la, improvisou um verso com uma canção francesa antiga: “Douce France, Il y a beaucoup de conflits entre Paris et la province”. Bernard ri, os outros ficam sérios. Há muito eu não tinha notícias de Julie, que é filha de um barão francês que se mudou para Belo Horizonte. Agora que Albert chegou, soube que Julie namora Albert e um argentino pelo computador, usando uma tecnologia chamada I seek you. A tecnologia se desenvolve e as fofocas se internacionalizam. Estou lendo um livro de contos chamado L´Exile et le Royaume de Albert Camus.

4/07/01

Ouro Preto foi um caos. Julie disse estar ocupada com um trabalho sobre o português de Cabo-Verde e não nos acompanhou até Ouro Preto. Minha namorada, Ludmila, amiga da Julie, ficou enciumada com minha atenção aos franceses e negou-se a viajar para Cidade do Sol, cidade onde ela já foi e detesta, pois lhe faz lembrar da infância proletária na periferia de uma cidade do interior. Ela curte filósofos franceses pós-modernos, frente aos quais se sente insegura (Derrida, Deleuze, Barthes), jazz e bossa nova. Albert me alerta que Julie e Ludmila tomam banho juntas e me pede para que as impeça. Eu respondo que não quero brigar com Lúdi, pois já ficamos noivos e desfizemos a relação. Albert se espanta. Eu próprio me espanto em ter continuado a namorar alguém sem projeto, mas Lúdi está tratando uma depressão e eu tenho esperanças que ela melhore. Nesse meio tempo, nosso namoro esfriou. Falar nisso, em Ouro Preto passamos frio e Bernard está espirrando muito e tossindo. A variação de temperatura parece que acabou com ele. Fora que a viagem foi complicada por meu francês: eu confundo as direções. “Droit” é direita, “tout droit” é “em frente”, “gauche”, esquerda. Quando Jean-Luc fala rapidamente, só escuto o “droit?” E ele de fato está me perguntando se devemos ir pela direita, respondo que sim, mas muitas vezes ele quer

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perguntar é se devemos ir em frente. Com isso, erramos o caminho muitas vezes. Eu nem sabia que havia um show gratuito do Skank em Ouro Preto. O resultado é que nem vimos o show, chegamos atrasados à cidade, no momento exato em que muitos carros, saindo ao mesmo tempo da Praça Tiradentes, quase nos sufocaram com sua fumaça. “Cyclon B”, disse Bernard, referindo-se aos gases tóxicos de Auschwitz. Ele é judeu, sua infância foi no Marrocos, é um pied noir: todos os três o são. Num bar da estrada, peguei um pé de boi preto, um souvenir que eles vendem por aqui e apresentei-lhes: “voici un vrai pied noir”. Rimos. Jean-Luc começa um longo papo sobre a revolta da base de Krondstadt e os bolchevistas. Em Ouro Preto, nos sentamos numa cachaçaria chique. Conversamos somente em francês. Uma mesa de brasileiros ao nosso lado começa a nos criticar. Minutos antes, tolerei sem reclamar um papo nojento que eles estavam tendo, aos gritos, sobre alguém que fez sexo anal e terminou com pedaço de couve envolto no pênis. Voltando a atenção para nós, em voz alta, uma brasileira enfezada comenta que na França eles não falam Português com a gente. “Que complexo de inferioridade nacional mais chato!” comenta Albert, que sabe português, em voz alta. Ouro Preto pesadelo: sem uma cerveja sequer nos bares, sem lugar onde dormir, sem comida, tinha recebido mais gente do que o número total de habitantes. Voltamos a BH, pois o lugar que arranjamos para dormir tinha um teto rebaixado kafkiano e os rapazes não quiseram passar noite de processo.

5/07/01/iiiii

Chegamos à Cidade do Sol em plena festa do Reinado. Os rapazes tiram fotos, entrevistam os capitães dos grupos que dançam (que aqui são chamados cortes), tudo a muito custo, pois não falam português e eu tenho que ficar como intérprete do francês. Bernard gosta de escutar um cantor francês chamado Bernard Lavillers. O cantor foi caminhoneiro no Brasil e depois virou cantor francês de certo sucesso. Ele diz que Nanard realmente foi muito corajoso em ser caminhoneiro aqui e eu concordo, foi muito gosto pela aventura mesmo. Lavillers descobriu e imitou a bossa nova, pois faz chanson française com influências do jazz. Eu falo com Bernard sobre o Manu Chao, o Lavillers da nossa geração, trazido por um francês chamado Paco Pigalle para tocar até em Belo Horizonte & comer bife de fígado & beber cerveja no Mercado Central. Os rapazes já o conhecem da fama na França: Manu Chao, que antes tocava na Manu Negra, toca no rádio direto na França. Albert me pediu para evitar falar tanto sobre filósofos franceses e que a sociedade francesa é piramidal, não tendo eles acesso ao topo da pirâmide: esses conhecidos são muito elevados. Conto a eles o que ouvi falar sobre o filme Weekend, do Godard. Eu não vi, mas gostaria de ter visto esse filme. Comento Romance X, um da Caterine Breillat com Rocco, ator pornô. Albert toma a palavra e me disse que o filme foi ruim, cheio de estereótipos, mas Rocco e a atriz transaram mesmo. Eles dizem que Godard é “abscons” (absconso, obscuro) e não viram Weekend, não. Eu provoco: “Maio de 68 foi o caminho francês para a América?” Eles dizem que não, o fato é que os partidos e sindicatos eram uma merda. E que o Partido Comunista Francês, como não podia dominar a rebelião, não a apoiava. Eu me saio até bem lembrando alguns nomes importantes em 68: Geismar aderiu a um governo recente, Débray virou gaullista, uma vergonha, Cohn-Bendit, um palhaço.

6/07/01

Na manhã seguinte, os rapazes contam-me como foi a viagem ao Rio, de onde chegaram há pouco. No caminho para o Corcovado, subiam a pé para ver a vista, mas

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de repente encontraram, na trilha, um casal transando. Voltaram para trás e deram um tempo. Pouco depois, recomeçaram a subida e encontraram o casal lá em cima, no mirante, também admirando a vista. Conversaram amigavelmente. Esse país não é sério, repete a respeito do episódio o Jean-Luc, que é o que tem o estopim mais curto dentre os três. Jean-Luc fica horas no chuveiro tomando banho. Eu o ironizei: “arrête le branlet, Jean-Luc”. É uma frase grosseira que peguei numa conversa deles sobre a polícia de lá, a CRS, que eles falam que é meio facistona. Seria algo como: “vamos parar com a punheta!” Jean-Luc não gostou nada. Só Albert tem namorada aqui no Brasil, os outros falam somente um pouco de espanhol e seus flertes são um desastre. Eu converso por telefone com Lúdi, mas ela me faz pensar em Caroline Says, aquela canção fria de Lou Reed. Nessa noite fomos ao Centro Espírita. A dona do centro umbandista, Tia Tilde, me pareceu simpática e esclareceu que sou filho de Ogum. Ao entrar, repeti interiormente, como um personagem de Dostoiévski: apesar da tradição de séculos, charlatanismo e absurdo. Contei posteriormente isso aos franceses, que me disseram somente: quem decide sobre um país são suas classes dirigentes. Eles são trotsquistas, mais do que antropólogos. Acharam que meu sentimento foi coisa de pequeno-burguês intéllo, gíria que quer dizer algo como intelectualóide. Tia Tilde é gentil, o centro é muito bonito, decorado com bandeirolas coloridas, cheio de imagens de pretos velhos ao lado de cristais e velas multicores. No entanto, ao abrir uma porta, Dona Tilde deixa cair pequenas caveiras de plástico, velas pretas e vermelhas e outros acessórios um tanto quanto macabros. Ela me fala para escrever o nome de meus inimigos num papel para que ela queime uma vela sobre ele, afastando os invejosos. Eu o faço. Mais tarde, à noite, tomando cerveja num bar, fomos abordados por um psicólogo da cidade: ele, já chumbado, perguntava aos franceses se o sol poderia fazer alguém matar, “como no romance O Estrangeiro de Camus”. Bernard, ao ouvir minha tradução em francês pourri da conversa psicanalítica-maluca do psicólogo, tem praticamente uma crise de riso diante do recém-chegado, que imediatamente o rotula de louco histérico. Bernard então entende, mas continua rindo. Eu desconverso e peço a conta, pois ele é amigo da família de minha mãe.

8/07/01

Lúdi e Julie chegaram a Bom Despacho e nós nos deslocamos da casa dos meus pais, no centro, para o sítio, para que todos pudessem ficar alojados confortavelmente. O sítio, no entanto, está um caos, graças ao desleixo de meus pais. Julie tem gostos e exigências enormes e fica horrorizada com a piscina cheia de enormes sapos e alguns ratos mortos. Ela canta: “ó minha rana baby...” Elas chegaram até com seus maiôs, coitadas. Numa outra casa, Lúdi resolveu fazer camarão na moranga. Julie uniu-se a ela na cozinha, trouxe vinho, tudo parece encaminhar-se para o melhor. A governanta de meus tios negou-se a ajudá-las, pois para ela comer camarão é como comer uma barata. Eu a dispensei. No entanto, um enxame de abelhas invadiu a cozinha em busca da amarela moranga de Lúdi. Pavor e choque. Consolei Lúdi: as abelhas só enxergam bem a cor amarela. Ela explode e me acusa de ser negligente como meus pais. Talvez ela tenha razão, mas não tenho voz ativa junto a meus pais. Para melhorar a situação, a cozinha também conta com um estoque de lagartixas e o banheiro está equipado com pequenas pererecas. As garotas gritam a cada novo encontro com um bicho, apavoradas. A comparação com o sítio de Julie em Tiradentes é inevitável e me deixa morrendo de vergonha. Resolvemos mudar para outra das casas do sítio, mas nela encontramos uma caixa de marimbondos do tamanho de uma bola de discoteca pendendo da sala. Albert,

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Bernard e Jean-Luc não querem deixar o Brasil antes de passarem num acampamento de Sem-Terra numa cidade vizinha daqui, Pompéu.

9/07/01

Hoje Albert, Jean-Luc e Bernard saíram de novo a campo para terminarem de recolher o material da pesquisa sobre o Reinado. Estou escrevendo cansado, mas o que mais me aborreceu é que as meninas já voltaram para Belo Horizonte. Durante a noite, elas me acordavam pedindo que retirasse o vaga-lume que estava dentro do quarto. Estavam temendo os bichos e não dormiram. Quando o dia já tinha amanhecido e eu já tinha me levantado umas dez vezes, descobri que o tal vaga-lume era a luz verde do celular da Lúdi. Após isso, Julie foi tomar banho na casa do caseiro, quem sabe esperando que ela estivesse mais limpa e civilizada. Mas não: quando Julie entrou no chuveiro, saíram formigas do ralo, numerosas como num filme de cinema catástrofe. Lúdi queria tomar banho com a amiga, mas vetei. Lúdi parece estar numa crise. Julie e Albert também não estão bem.

11/07/01

De volta a Belo Horizonte. Julie me liga para dizer que terminou com Albert e que ele bateu nela. Eu tento tranqüilizá-la. Vou falar com Albert, que esteve em casa dela nos últimos dois dias. Ele diz que foi um jogo sexual entre ambos e que Julie é obcecada com o estupro. Ambos fingiam um estupro quando a mãe de Julie os pegou aos berros. A solução de Julie diante da mãe ultra-feminista foi atacar Albert. Isso me parece verdade. Para amenizar o papo barro pesada, digo a Albert que Jorge Amado escreveu, em seu primeiro romance, que alguém só se sente brasileiro quando bate na mulher e dança o carnaval. E que Albert já tinha feito o mais difícil. Albert fica angustiado e diz: “então você acredita nela”? Eu digo a ele que perco o amigo, mas não perco a piada.

13/07/01

Julie combinou uma saída comigo e com Lúdi, mas logo que nos encontramos elas anunciam a ruptura de Julie com Albert, agora excomungado. E Julie me apresenta Joaquín, argentino belo, alto e com longos cabelos. Albert dançou, mas eu me recusei a apoiar a troca de Julie. Afinal Albert é meu amigo.

16/07/01

Minha relação com Ludmila desmoronou após uma noite em que ela dormiu assistindo Os Fuzis, filme de Rui Guerra. Recebi uma ligação com uma proposta de trabalho: querem que eu dê aulas numa universidade que está começando aqui em Cidade do Sol. Eu topo porque o diretor lá será o psicólogo que conversou conosco na noite anterior. Eu e ele conversamos longamente sobre Oswald de Andrade, autor do qual ele já leu Serafim Ponte Grande e Memórias Sentimentais de João Miramar.

18/07/01

Rompidos com Lúdi e Julie, fazemos uma grande festa no sítio de meus tios na Cidade do Sol. Fomos a um bar combinar a ida ao acampamento do Movimento Sem

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Terra. Na verdade, nesse lugar, em Pompéu, cidade vizinha de Cidade do Sol, eles já foram assentados. Existe risco quando ainda é acampamento, pois, por vezes, os fazendeiros chegam atirando e com muitos capangas, indiferentes à presença de velhos, mulheres e crianças. Eles só invadem fazendas grandes e improdutivas, como era essa fazenda de Pompéu que visitamos. Eu só não gosto muito do discurso moralista católico contra a bebida que um dos sem-terra nos impôs e do ritual de mística que eles fazem, dizendo palavras de ordem e erguendo os punhos em gestos comunistas. Achei teatral demais. O moralismo caiu como uma luva para nós, que viramos a noite bebendo e chegamos ao acampamento de manhã. Jean-Luc adorou e os achou verdadeiros “gauchistes”.

20/07/01

De volta a Belo Horizonte, fomos tomar cerveja em um bar, mas quando chegou a hora de pagar, ninguém tinha trazido dinheiro. Acontece que todos estavam fazendo gentileza uns para os outros nos dias anteriores. Eu ia me levantar para conversar com o dono do bar e perguntar se ele aceitava meu cartão. Nesse momento, um carro desceu a rua numa grande velocidade. Atrás, o carro da polícia desceu atirando. Todos no bar se levantaram e nós deixamos nossa mesa sem pagar: os moradores da favela, furiosos com os consumidores de cocaína que, segundo eles, se reuniam naquele bar, desceram revoltados, mas só chegam a dizer algumas palavras agressivas a Albert, que conseguiu acalmá-los falando que é gringo, mas é ateu marxista, estudante de antropologia, coisa e tal.

25/07/01

Fizemos uma grande festa de despedida para os franceses aqui em minha casa em Belo Horizonte. Eles viajam amanhã de avião. Em setembro irei começar a lecionar numa pequena faculdade em Cidade do Sol. Reuni meus amigos de Belo Horizonte, bebemos muito e até tarde. Eu combinei de visitar a França em breve e ficar em casa deles.

11/09/01

Vi o desastroso atentado terrorista nas Torres Gêmeas. O horizonte de New York, esfumaçado, ferido, parecia anunciar o dia do juízo final. Ao ver aquilo, foi como se muitos anos se passassem. E eu nunca fui à França.

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