MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de...

48
159 156. Francisco: Domar cavalos, o senhor tem certeza, é assim mes- mo, tão importante? Há uma im- propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- rem assim, quando soltos. Ora, se o cavalo estiver preso, como poderá correr? Logo, a expressão "quando soltos" é descuidada. SF: Veja: O bicho correndo de lado, olhando para trás, ora de um lado, ora do outro. É bonito. Era de lua, no descampado, cheia. No trote li- geiro, a cara de banda, rasgando o vento, o jegue garanhão. Só os equi- nos correm assim, quando soltos. A expressão "quando soltos", em se tratando dos equinos, há de ser entendida como em estado de Na- tureza, porque há duas modalida- des em que não estão soltos mas continuarão correndo do mesmo jeito, ou até mais. Sem balançar a cabeça para os lados, nem retesar nas curvas. Na primeira, o cavalo está preso ao rodete, que é aquele moirão central, com uma corda de bom tamanho, o domador ali, con- trolando, incentivando, freando, aprumando. O cavalo correndo, tro- tando, chouteando os 360 graus do transferidor inteiro, sem parar. Evi- dente que ele não está solto, por- que preso a um cabresto de cabo longo. 157. Francisco: Cabresto de cabo longo? SF: Isto mesmo, preso, uma opera- ção de rara sensibilidade! O cabresto está amarrado, é certo, uma volta livre em torno do moirão. Mas, en- tre o torno-moirão e a cara do cava- lo há um um pulso-mão. Aliás, uma mão de pulso, que é de leve, extre- mamente leve, mas, ao mesmo tempo, excessivamente forte. For- te e gentil, anote aí, por favor. Gen- til e forte! Entenda, se for possível, uma coisa quente e fria, no mes- mo tacho, ao mesmo lance. A mão do domador. Leve, levíssima sobre o relho, um relho que pode bater mas não bate; um cabresto apenas. 158. Francisco: O senhor exagera! De onde essa mística? Não seria um cabresto comum? SF: Apenas um cabresto comum, é certo. Melhor que seja uma corda de cabelos, artesanal; o domador, ele mesmo fazendo-a. Enquanto UMA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI , A PE- NÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAMBÉM É FRANCISCO

Transcript of MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de...

Page 1: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

159

156. Francisco: Domar cavalos, osenhor tem certeza, é assim mes-mo, tão importante? Há uma im-propriedade nesta resposta de hápouco, aqui está: Só os equinos cor-

rem assim, quando soltos. Ora, se ocavalo estiver preso, como poderácorrer? Logo, a expressão "quandosoltos" é descuidada.SF: Veja: O bicho correndo de lado,olhando para trás, ora de um lado,ora do outro. É bonito. Era de lua,no descampado, cheia. No trote li-geiro, a cara de banda, rasgando ovento, o jegue garanhão. Só os equi-nos correm assim, quando soltos.A expressão "quando soltos", em setratando dos equinos, há de serentendida como em estado de Na-tureza, porque há duas modalida-des em que não estão soltos mascontinuarão correndo do mesmojeito, ou até mais. Sem balançar acabeça para os lados, nem retesarnas curvas. Na primeira, o cavaloestá preso ao rodete, que é aquelemoirão central, com uma corda debom tamanho, o domador ali, con-trolando, incentivando, freando,aprumando. O cavalo correndo, tro-tando, chouteando os 360 graus do

transferidor inteiro, sem parar. Evi-dente que ele não está solto, por-que preso a um cabresto de cabolongo.

157. Francisco: Cabresto de cabolongo?SF: Isto mesmo, preso, uma opera-ção de rara sensibilidade! O cabrestoestá amarrado, é certo, uma voltalivre em torno do moirão. Mas, en-tre o torno-moirão e a cara do cava-lo há um um pulso-mão. Aliás, umamão de pulso, que é de leve, extre-mamente leve, mas, ao mesmotempo, excessivamente forte. For-te e gentil, anote aí, por favor. Gen-til e forte! Entenda, se for possível,uma coisa quente e fria, no mes-mo tacho, ao mesmo lance. A mãodo domador. Leve, levíssima sobreo relho, um relho que pode batermas não bate; um cabresto apenas.

158. Francisco: O senhor exagera!De onde essa mística? Não seriaum cabresto comum?SF: Apenas um cabresto comum, écerto. Melhor que seja uma cordade cabelos, artesanal; o domador,ele mesmo fazendo-a. Enquanto

UMA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA

FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI, A PE-NÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA E CONVERSA

COM UM CERTO SF QUE TAMBÉM É FRANCISCO

Page 2: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

160

colhe e recolhe pelos, crinas, rabose cabelos mil, ele, secreto, já aman-sa, em mão e gesto, todos os potrosdo mundo. Pastam inteiros os ca-valos selvagens naquele pêlo-cou-ro, que não é couro, nem é pêlo; écoro, é canto, um cantochão; afago,voz e maciez. O cavalo correrá, emuito, mas não olhará para trásnem murchará as orelhas... Desdequê... a pedra, o sal, a estátua.

159. Francisco: Desde que o quê?Olhar para trás? Orelhas? Haveriauma a outra hipótese em que o ca-valo estaria a correr, porém preso?SF: Muito simples! É quando ele,exemplo único em toda Natureza,se funde com o Homem num únicoanimal. Claro que ele não está sol-to, posto que sobre si há um outrobicho, o Homem... mas os dois sãoum só, o centauro!

160. Francisco: Isto é apenas umavelha lenda indígena, os povos doMéxico, que não conheciam o ca-valo e, quando pela primeira vez oviram, imaginaram seria um sóanimal. Assombraram-se e perde-ram a guerra para os espanhóis.SF: É um mito antigo, muito realporém. E, por isto mesmo, válido. Omito do centauro, quem o entendeuinteiro foi o poeta Franz Kafka. Já ofilósofo Thomas Hobbes perdeu umabela oportunidade de exemplificaro pacto social em cima do cavalo.

161. Francisco: Devagar, senhor!Não misture as coisas, por favor.Kafka, poeta?! Contista e romancis-ta!? Paciência! Poeta, não! Nuncafoi! Hobbes, a comandar uma caval-gada no pacto social?!

SF: Poeta, sim! Cuidemos de Kafka,em primeiro. Quando a poesia éverdadeira, poucos percebem-na.Tomemos este poema que ele apre-senta como um conto, que tambémé conto, mas, e sobretudo, poesia.Alta Poesia:

O desejo de tornar-se um pele-vermelha. Se ao menos fôsse-mos um índio, ao mesmo tempovigilante e montado a cavalo, in-clinando-nos contra o vento, con-tinuando palpitantes a agitar-nos sobre o solo trepidante atéabandonarmos as esporas poisdelas não precisávamos; largan-do as rédeas, porquanto nãoeram necessárias; e mal perce-bêssemos que a terra à frentejá estava despojada de vegeta-ção, o pescoço e a cabeça do ca-valo já teriam desaparecido...[Franz Kafka, A Colônia Penal,Nova Época Editora, tradução deSyomara Cajado]

162. Francisco: Algo a ver com cen-tauros?!SF: O senhor acha pouco?! Um ín-dio, de ar-livre; o cavalo ali, pulsan-te. O índio em cima — montado evigilante — que, de tão integral,melhor hifenizá-lo: montado-e-vigi-lante, índio. Fremem ambos, cava-lo e índio. Chispam, inexplicáveis,contra o vento. Inclinam-se contrao horizonte. O chão estremece.Contudo, o chão está ali, bem quie-tinho. [Quem estremece, lá na pla-nície terrível — um dia poderá es-tremecer de verdade —, é a Falhade Santo André, línguas de fogo dedentro da Terra. Há estupendas eterríveis profecias, o Big One!]Quem, pois, estremece quando pas-

Page 3: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

161

sa um índio trajado de cavalo?Quem estiver a vê-lo, é claro! O es-tremecimento é de quem olha.Nem precisa "ouvir" nada, que dápara sentir perfeitamente na cai-xa do peito. E, por favor, nunca per-maneça próximo por demais de umaparelha de índio e cavalo, ambos emdisparada! Ainda que numa distân-cia segura das patas dos animais,que o de cima também se transfor-ma em patas!

163. Francisco: O tremor?SF: Isto mesmo! Há o tremor paraquem está em cima, para quemestá embaixo, cavalo e cavaleiro,agora em peça única. Ambos sabemque o planeta inteiro treme. Pul-sam. Indague dos outros cavalos,que, ao frêmito da dupla, retesamas crinas. Indague das feras do dia.Atestarão que sim. Pois agora tudotremido, cavalo e cavaleiro, talcomo ar que também treme no pin-go do meio dia neste calorão daqui,sertão do Ceará. Aqueles matinhosdo chão vão-se sumindo à velocida-de dos olhos de quem olha de cima,cavalo e cavaleiro, se é que olham,que a velocidade é tanta...! Nem dátempo a nada! Riscos... só riscos,pedras, paus, matos, buracos, sali-ências, umbigos. A terra... Subsu-mem-se coisas dantes, ao veloz!Oblíquos. Rédeas? Quem falou emrédeas?! Esporas? Para quê?! E,num cresceeeendo... endo... moen-do... endo...! Pronto. Sumiu.

164. Francisco: Um animal, umacoisa mágica?SF: É mágico, sim! Havia, por de-baixo do pele-vermelha, um animalinteiro, o antigo cavalo, agora umcavalo em «ex», algo retirado daque-

le cavalo primitivo que estava alisob o índio, ambos até há pouco tãocalmos. A cabeça e seu pescoço, docavalo, súbito, são apenas cabeça epescoço do pele-vermelha. Se esti-car a têmpera para mais um pou-co, daquela nova massa, cavalo ecavaleiro, só um clarão ao infinito,varando o vermelho da planície es-tonteada. Um frio na cara, as per-nas tremendo... Se romperem vi-vos do outro lado. Ambos! O animalhá de ser contido, senão o risco demorte. O cavaleiro. Também!

165. Francisco: Há ferramentas?Comandos?SF: Comandos? Tudo no âmbito dapré-linguagem. Interjectivos. Pala-vras curtas, que nem palavras são,com a força porém de imprecaçãode longo alcance, às orelhas do ani-mal, no ponto justo. Com os joelhos,aliás; com todo o corpo; aliás, com avontade, só isto: vontade! Mas o ca-valo também está danado para cor-rer, louco por uma corrida! Estilha-çando os cascos. Um joy stick, ape-nas uma manopla imaginária, tão-só de dentro, como quem joga noolhar. É coisa do conhecimento se-creto. Ela jogava-me nos olhos. Emeus olhos se consumiam ao seuolhar. Domava-os aos seus olhos.

166. Francisco: Orelhas? Conheci-mento secreto? O senhor falou an-tes que os equinos correm de lado?SF: Secreto, sim, mas não há se-gredo algum. Apenas o intuitivo. Aeducação é pela pedra, disse o poe-ta, mas é pelo cavalo, digo eu, quepassa o domínio do humano. Há umintenso jogo de orelhas. Quandomurchas, saia de perto, é coice, ésalto, é estranheza. As orelhas es-

Page 4: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

162

tão direcionadas à frente e em pé,em dupla ou alternadas. O doma-dor tem que jogar o som lá na fren-te, no momento em que as orelhasapontam para frente, de modo queo som não venha de trás, como sefosse a fera a perseguir o animal.Claro que isto o senhor não vai lerem nenhum manual, nem mesmoperguntando aos melhores cavalei-ros. Por sobre os cavalos também:há um momento de falar, há ummomento de silêncios. Ritmos. Amão. Você, em cima do cavalo, équem dá-lhe as ordens9, mas or-dens hão de vir de frente, e não detrás. Como seria possível ordenspela frente, se você, no lombo do ani-mal, está atrás dos ouvidos da mon-taria? Aí é que está o passe de má-gica: as palavras são lançadas àfrente num ângulo de grau exato,de modo que o cavalo, à medida quecorre, vá colhendo-as... e... quantomais corre, mais ligeiro você joga

palavras novas mais adiante. Atétombarem exaustos. Senão mortos.

167. Francisco: E a corrida de lado,o que é?SF: Há um único bicho valente-to-tal em toda a Natureza: o cavalomontado ou o homem a cavalo, tan-to faz, que são apenas um bichoúnico. No estado selvagem, o cava-lo é um bicho reconhecidamentemedroso. O cavalo é animal de pre-sa, de fuga, o oposto do predador, aonça, o tigre, o leão, a malta de lo-bos. Milhares de vezes por dia, ocavalo, quando pasteja na campina,levanta a cabeça a vigiar contra ospredadores. Pronto para disparar. Nabaia, não. Ele confia. Da mesmaforma, ele corre quando solto de suaparelha, o Homem: a cabeça se al-terna à esquerda e à direita, porbaixo das pernas e por cima do lom-bo, a olhar de lado e para trás. Veja:

Os poldros soltos — retesando as curvas, —

Ao galope agitando as longas crinas,

Rasgam alegres — relinchando aos ventos —

[Castro Alves, O São Francisco,

in A Cachoeira de Paulo Afonso]

168. Francisco: A valentia do ca-valo, fale sobre ela.SF: Do cavalo, não! Nem do ho-mem. Veja o Blake, esse mágico

monumental, William Blake, o quetem ele a dizer sobre a coragemdo cavalo-e-cavaleiro:

Page 5: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

163

169. Francisco: Um quadro as-sombroso! Diga mais sobre a va-lentia do cavalo.SF: Por favor, volto a repetir, docavalo, não! Você já viu uma tou-

rada a cavalo? Num certo texto, ajustaposição da mão do artífice àpedra, que até parece estaria eu afalar de Michelangelo:

[...] trazia ele no gesto o gesto;

à eloqüência de sua mão de pedra

à pedra se entregava — 

[Os Cantares de Pulso, in Salomão]

Page 6: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

164

170. Frandisco: ?SF: Assim esta dupla: homem ecavalo; cavalo e homem. Ninguémpode dizer que o cavalo do quadrode Blake esteja com medo. Nem ocavaleiro! Ele está de braços aber-tos. Rédeas? Para quê? Na toura-da a cavalo, o cavalo enfrenta otouro no mais absoluto destemor.O cavalo, um bicho reconhecida-mente medroso, mas, se de pare-lha com o Homem, transforma-sena "máquina". O Homem, tão mi-údo, por sua vez, ganha um portede monumento! Veja agora emBenjamin West. É certo: cavalo-e-cavaleiro não tem medo de nada.As feras selvagens fogem do fogo.O cão, dos estampidos; o homem,ele mesmo, tem medo de qualquercoisa, até de fantasmas, vide osguardas do príncipe Hamlet. Nemse diga que cavalo e cavaleiro, deBlake e West, quadros do mesmonome [Death on a pale horse], se-riam do 4º Selo [apocalipse 6, 7-8].Medo, de que haveriam eles deter?! Não! Medo nenhum, veja.

171. Francisco: Na modernidade,o que teria de proveito?SF: É um jogo mortal. O cavalo podematar. Coice, queda, brutalidades.Também pode morrer. Um campode violência, mas, domador verda-deiro jamais espancará o animal.Há uma linguagem secreta. A vi-agem quase impossível, a aquisi-ção de um domínio: Não espanca-rás! Moisés espancou.

172. Francisco: Moisés?!SF: Equitação, melhor que fossecurricular. A patente maior: doma-dor de cavalos! Sim, Moisés! O for-te é perceber que pode e deve es-

pancar, mas não espanca; que oremédio mais rápido e eficiente éespancar, mas não espanca; quesabe e pode torturar, mas não tor-tura. Não espancarás! A pedra. Odeserto. Água. Sede! A vara. Pafo-pafo-pafo! Moisés a espancar! Bas-tava o toque, a pedra ter-lhe-iaaplacado a sede do mesmo jeito.Veja, toda a pregação daquele filó-sofo de grandes bigodes, ainda queele diga que não, leva ao espanca-mento. Quando o presenciou reale autoritário, agarrou-se com ocavalo. Aos gritos, aos berros, aopranto. Imaginemo-lo emAuschwitz-Bikernau!? Louco! Es-tava louco. Irremediavelmentelouco. O caminho possível é o damisericórdia. O Homem é infini-tamente maior que o cavalo. Ocavalo é infinitamente maior queo Homem. Ambos em misericórdia.Não espancarás. Precisamos dizeristo, como um segredo, aos jovens.

Page 7: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

165

* Death on apale horse,William Blake,UK, 1757-1827

** Death on apale horse, Ben-jamin West,USA, 1738-1820.

[Comentários,pag. 177]

Page 8: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

166

Minha versão

Behrens, que também é Ana,me disse: "Ela* me olhou pela vezprimeira quando eu ainda dava au-las. Há quase dez anos. Encontreiseu rosto na capa do livro de Ciên-cias que eu usava na escola. [...] 

"Hoje de tarde subi a ladeiri-nha e até chegar em casa, pronunci-ando a mesma palavra espantada.Nossa!! Nossa!! E o êmbolo cres-cendo tanto quanto a ladeira, quenunca me pareceu tão imensa. O ca-minho habitual não me traria nenhu-ma banca de revista, muito menosum pôster. O que o tempo quer denós?" 

Que, também Ana, a madrinha, um dia de tarde, aprontou a tábua emcima da pia da cozinha e disse que estava a fazer alfenins. Antes que noscheguem os alfenins, chega-nos o puxa, e todo mundo sabe disto. Água, atábua molhada. E, sobre a leve lâmina d'água, o mel fez-se véu e torrente.Quase quente. Acalmou-se, tomando forma de coisa que espalha e preenche.

Antes, no fogo, borbulhara, quente. Espesso.Vulcano.

Noutro dia, também de tarde, desta veza mãe, quando retirava o ar da seringa, no altoda agulha aquela gota a se explodir depois deencher completamente todo o espaço de umagota. 

Page 9: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

167

O bucho do compadre, negro, branco como uma mão-de-cal, a ma-drinha já lhe lambuzara o álcool. No pé, também duas gotas. Eram vermelhas.Explodidas de sol e brilho, mas eram morte.Repara bem embaixo, no canto inferior direito,o canto da boca, o delineio do lábio de cima. Amãe disse que eu fosse fechar a porta e ficassebotando sentido lá longe, que ninguém chegas-se nem falasse alto que o compadre... 

Sabe-se que uma voz de agoiro podematar. Eram de cobra, os dois buracos no pé.Seria de justo nepotismo colocar os olhos damãe aqui. Brilhavam, sim. Cheios, plenos, explodidos. Da cobra? Os dela? Eporque não?! Ninguém disse nada. Na barriga do negro, compadre Totonho,a primeira dose do polivalente do Butantã.

Atalhei os chegantes. Disse-lhes que havia um “ofendido”. Isto basta,sabemos que sim, por lá. Um leve desmaio nosolhos brancos. Mais outra dose, com muita,muita… calma. Repara agora na penumbra daface, nessa viagem magistral entre rosto e cos-tas.

Lá, bem no canto do olho – despreza apupila se puderes –, mas vê, para trás, viajan-do em mão de seguir, há luz de sombras.

Minha mãe falava num choque. Destesde quando vemos...? Vemos o quê, meu Deus?! Não! Ela falava do momentode dosar os soros... Anafilá...

E eram os olhos do finado. Rodantes. O brilho linear do aparelho diziaque era zero o cérebro, mas os olhos clamavam. E o cheio do lábio, emcantos vivos — desce, leitor, agora, do olho à boca. Vê, bem dentro, entrelábio e lábio. Falariam? A placidez daquela tábua de mel faz contorno, agora,no pousio da boca. Só quem sabe como é, équem perdeu. O amigo. Juracy. O negro esca-pou. 

Contava para quem quisesse ouvir quequando puxara a enxada com o rolo de mato,ela, de quase dois metros veio junto. Saltara-lhe os olhos de bote e boca. Abaixo de Deus, a

Page 10: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

168

comadre!, ele dizia e sebenzia. Então, os alfenins a ca-minho, mas carreguei antes asmãos de puxa. 

O suficiente para nãoqueimar. Entre um puxão e ou-tro, por entre os dedos, porentre as mãos, da porta da co-zinha, era uma casa alta, o paredão da serra. Ali, nem ver de menos, o soldesabava para o outro lado. Meia banda de sol. O suficiente para faiscar osbrilhos dos olhos dEla, muito jovem. Este eu, uns poucos meses mais, à beirado rio. Um rio seco. 

Igual a Soledade, de JoséAmérico de Almeida, aportara porlá, filha de Fausto. Esquece osolhos. Que seja cega, pois. Vê ovolume em noites sobre a testa. Re-

para como se trançam, eles. Os de junto da testa ali ganham reflexo! Um diafalaremos disto. Pobreza de pobre, absoluta, era Valéria, filha de Fausto. 

Os panos eram nus. Não queestivesse nua. Não! Doutra vez foio braço de Jorge. Acho que dumaespingarda, como no pé, do Meni-

no — Uma tragédia no mar — An-tônio. Saberia eu, sozinho, contro-lar tanto sangue? Havia um serrote.Álcool e uma lâmina de fogo. 

Desiste dos olhos, porfavor. Vê este contorno agora. Re-para como tangencia ao alto a linhada direita, face, sobre um contornoem negro que também ascende. Nosescuros do pano. E nada mais queaplacasse a dor. Rét-rét-rét e todoo osso. Explodia-se a dor nos olhosde Jorge em desprezo do braço depuro espanto, podre. 

Page 11: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

169

E toda a dor do mundo,presumo. Cortado. 

E, mais uma vez eram osolhos da mãe. Então Jorge co-toqueava aquele toco e diziaque, abaixo de Deus, a comadre. E se benzia. Desiste dela em carne-e-ossoe olhos! Porque já eram os jacintos boiantes no rio cheio quando se encheu

de ausências. Ajunta-te

aos panos. Àsdobras, às cores,aos leves e aosensaios de es-conder. O justoolhar por sob.Hóspedes da oi-ticica do rio.Não, não!, nãosei. Depois da-queles olhos, eraa retirante do rioseco, Valéria, fi-lha de Fausto,"aceito", sem en-tender, todas asviolências da re-produção. O queo tempo quer demim?! Umavida?

* A Menina Afegã, foto de Steve McCurryin National Geographic

Fortaleza, noite alta, 30.04.2002,comentários, pág. 213

Page 12: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

170

PSI, A PENÚLTIMA: Esse livro, essaave, que pelo nome se supõe tran-qüilo, na verdade é um traquinas quese diverte em transformar-se magi-camente em várias outras coisas. E épássaro, brinquedo, menino, cavalodisparado, árvore em dia de chuva,sertão... (como é sertão, teu livro,Soares !) Eu, matuta e meio avessa a

esse ad-mirávelmundon o v oque é ainformá-tica, mer e n d iencan-tada aom o d oc o m ovocê ot r a n s -t o r n o ude liris-mo. Bo-nito de-m a i s ,poeta! Fizg randeamigose n t r eteus po-e m a s :B a l a n -ç a n d oDevaga-r i n h o ,PoltronaF-6, oTrem e oCordei-ro, Per-didos eA c h a -d o s …sempreque pos-s í v e l ,p r o -seamos.

Você não parece lutar com a palavra,o que para mim é um espanto. Elasfluem, se aninham. Quisera eu essatranqüilidade. Ah! ia esquecendo: teulivro tem os sons das abelhas, dochocalho da vaca Rainha e da águaacordando na cacimba clara. Escutei.Micheliny Verunschk .

Page 13: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

171

Fui eu*, de Valdir Rocha

Ah, madeira!Pó, pólens, o ourodos jatobás. Mas amadeira precisavir de antes. Umpau-marfim seriaquase suficiente,mas não tem adureza nem otravo da justa cor.O mulungu, sim,cairia na cor,mas, madeiraarrepiada, nãocaberia nas raiasdo contrato.Pereiro, ditopiquiá, deamarelo e duro:no tanto! Porqueera assimmesmo:disponível, sefosse pau, queidéias não lhefaltariam.Mulungu? Àsgaiolas!, de fácilde furar, de bom

de enfiar; que pau-marfim nem daqui é; donde, melhor que se fique.E caçarola, que também dizemos “frigideira”. Mas tem que terpolimento! Nisto, das asas das borboletas, amarelas, é claro. O pólen,mais a maciez do jatobá.

E, com um cavaco da própria madeira, madeira contra madeira,arte contra a arte, vapt!, faça-se-lhe um olho, primeiro oesquerdo, papaia, uma semente fértil de papaia, seca,mas não muito, quase no ponto de planta. Disseste quefértil — como sabes do fértil? Claro que sim! Vê, acima docentro do globo, um micro salto-e-sulco, porque ali ogérmen. E luz. Muita luz.

Page 14: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

172

Claro que sei de gérmens. Escrevo de ouvido e tacto.O navegador Vasco da Gama, bem dentro da cavilha doolho, e seu turbante, tudo na mesma escala, a sementede papaia e o navegador feroz, mas não faz mal, que isto

de escalas é coisa dedesenhistas.

O problema é que o navegador estálá no alto, bem no beiral da panela-de-tampa, mas pelo lado de fora, olhandopara a esquerda. Peixes, na cuia dafrigideira, depois eu mostro. 

Vê, é bem no meio, apontando oarcabuz para a esquerda, mas hácentenas de outros em sub. O que maisqueres ver? Debruça-te sob um tecto.Tanto faz que de céus. [De telhas, depalha, ou de olhos fechados]. Miríadesde luzes te escorrerão de dentro dosolhos, ainda que cegos. Apalpa! É lá. 

Repara outra vez: onavegador está no olho, nocanto direito, com a caravoltada para a semente-

gérmen. A borda do turbante e sua barba espessa.As bordas em 45 graus, um pouco menos, entre

testa e olho, e as de entre face e venta, hão de ser polidas.Magnificamente polidas! Nisto, a Arte! Repara no lusco-luz do Artista! 

Agora sobe, sobe um pouco, volta-te à imagem de lá da cozinha,na parede, fixa num prego. Mas era preta. Ou então, tisnada, que, lá,não era... [Repara ligeiro, bem no canto,a barba do Gama…]. Não seria a fáciesde Da Vinci? Ou do cantor de rock?

O utensílio estava ali, lavado.Depois, era só ensaboar as mãos decinza, úmidas, uma pasta de cor…?Cinza, cor cinza, é claro! Aspergir,colando, pintando, como se, por fora,porque isto de cozinhar a gás, agora tãonatural, era à lenha. Fuligem e tisna aevitar nas peças da bateria. Entrenarinas e risca do olhar, o cabo. Da BoaEsperança? Sim! Também.

A cada manhã, consultava os oráculos, os dedos da madrinhadesenhados em cinza-cal: a que apontariam os arabescos? Eis a cruelatração pelo divino: ora, uma sombra-luz; ora, o rastejo de uma formiga,à esquerda ou à direita; essas coisas nunca escritas — mas estavam

Page 15: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

173

lá! — me diziam de como encontrá-La numa noite despojada deroupas. A quem não dizem? 

Um dia, houve shampoo. De marca Elizabeth e ovo. Que eramduas: a Arden e a outra, a dos olhos, La Burton. Para cabelos oleosos.Tão brilhos, o que sabes tu de brilhos?:

As iluminações. Neon, sol-dia, essas luzes de picolé — sob cadaqual, mais outra luz, qualquer luz, não sei bem qual, nem como, sequerlhes sei o nome — leituras. Melhor queas entranhas das aves. Debruça-tesobre o teu horizonte e ouve! Entre sonsapenas trêmulos, tácteis e superfícies— viagens e iluminuras neste yellow.Um polimento, pois, aos dedos,tactilmente tácteis. Zeus? Sim! Repara,bem no centro, em cima, o Deus feroz,mas não tanto, encaracolado, dispara.Então, Ela me pegou a cabeça e, comalguma força, nunca bruta, escangotou-a para trás. A água me escorreu pela nuca. Os cheiros do shampoo epele. Enxergarias sem o tacto? Esta, a minha visão. Soares Feitosa.Fortaleza, noite muito alta, 29.3.2002

[quem já abriu um jatobá,  bem amarelinho por dentro,sabe, é puro ouro,  das asas, borboletas — pó, amarelas elas também]**

* Este quadro, FUI EU, de Valdir Rocha, foi objeto de análise por 41 poetas. SoaresFeitosa, convidado, não participou porque a correspondência fora remetida para oantigo endereço baiano. Contudo, escreveu, a partir dele, NÃO É AQUI NÃO.** Fragmento de Antífona, neste livro

Page 16: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

174

FERNANDO HENRIQUE: Olha,muito brevemente: precisarei deum "dicionário nordestino" parapoder entender esse seu bonecopascoal. O engraçado é que, nãodesde agora, mas já há algum tem-po, quando seu livro li, achei queprecisaria passar um tempo emsua terra para poder abstrair al-guns sabores, cheiros, coisas maispara tocar e ver... Como podereisaber quão macio é o jatobá? E asborboletas de asas amarelas, o quetão raramente em Curitiba se dá,como perceber o que são, como são,e de que cores podem vir a tomarse aqui só o verde, o cinza e o azuldo céu!? É... será difícil entender,mas a beleza de suas palavras, ahessas... essas, sim, poderei guar-dar.

RICARDO ALFAYA: Um projetomuito interessante, 41 poetas es-crevendo a respeito. Sua visão énotavelmente original, conse-guindo pontilhar de lirismo, numaboa, a máscara-carranca, cujo tí-tulo "Fui eu" a torna evocaçãomortuária, plena de um expressi-onismo barroco-contemporâneo. Aideia de recortá-la no ritmo do tex-to foi ótima, deu ao trabalho umadimensão de fato poética. Alémdisso, ocorreu ainda um enrique-

cimento das possibilidades de lei-tura, em virtude do deslocamentodo foco da análise da forma do ob-jeto para o material com que foirealizado, permitindo-nos umanova leitura. Gostei do conjunto.Vale notar que é interessante de-mais esse título "Fui eu". O objetoartístico, afinal, diz do seu autor,mesmo quando este se encontraausente. O objeto *representa* oautor. Nesse ponto, criador e cri-atura se confundem. Por outro lado,ao mesmo tempo, o objeto em siparece negar aquilo que afirma,posto que sua excessiva rigidez demáscara mortuária na verdadenão sugere tanto aquilo que o seucriador tenha sido, mas sim no quese transformou, ou melhor, pode-ria ter vindo a transformar-se,uma vez que ele realizou o traba-lho enquanto vivo. Em verdade pro-vavelmente aquele objeto nunca"foi ele", embora, paradoxalmente,pela razão primeira apontada, defato o tenha sido. Em última aná-lise, na verdade o objeto serve demetáfora a todo o objeto artísticoexistente, uma vez que cada umtem a capacidade ambígua de, aum só tempo, presentificar o au-tor, ao mesmo tempo em que, con-traditoriamente, frisa a sua au-sência.

Page 17: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

175

HANNA, SUAS VERSÕES AO PASSADO*

Quando Teófilo abriu o estabelecimento, lá estava, por baixo da

porta, uma gravura. Quem a botara ali? Recuou-se ele, desde

a infância, àquelas professorinhas a quem os meninos de en-

tão, eletambém, chamavam “fessora”. Não. Não era.

— Apenas uma foto de currículo, senhor. O vento. Quem

sabe, algum retrato que vazou do cesto – disse a auxiliar das

pastas.

O vento. Isto mesmo! O que fazem as empresas

com os currículos que lhes chegam aos montes? Afinal,

não se sabe de alguém que tenha tomado currículo de

volta. As cartas, as fotos, sim. Mas não era uma foto.

Nem carta. Um quadro, com aparência de coisa fina:

oil on canvas – e, no verso, ilegíveis os nomes, do quadro

e do autor.

— Não é fotografia! – disse Teófilo.

A secretária deu o dito pelo não dito. Bem

que o assunto poderia ter morrido ali mesmo. Con-

tam que Teófilo pegou a gravura e, cuidadosamen-

te guardou-a.

Contam que

ele, todos os dias,

colocava-a sobre

uma mesa imensa, de tampo de vidro, e

botava-lhe lupa. Examinava-a repetida-

mente. Quando entendia que o tamanho

estava bom, retocava-a em vermelhos,

tudo a partir de um lápis de cor, desses

de marcar CD’s, que ele antes utilizava

para avivar os rótulos do estabelecimen-

to. Pior, mal chegava um freguês, lá esta-

va ele a indagar se conhecia aquela jovem.

Page 18: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

176

Muitos, de tão repetidos os interroga-

tórios, antecipavam-se e, antes mesmo

de regatear preços, esclareciam que não.

— Bem que o amigo poderia tê-la

visto na quermesse... não?!

Na quermesse! Como se as jovens

de hoje fossem à quermesse. Não; nin-

guém sabia. Não fora encontrada. Ou-

tros garantem que o retrato nada teria

de misterioso e muito menos a ver com

um suposto vendaval, mesmo porque

o vento, ali, as janelas fechadas, seria ne-

nhum.

Teria sido assim, de uma outra versão: Teófilo, um dia restaurou

um sonho e rascunhou-o no ar. Aliás, “riscou-o” em cima da perna, mal

acordara. Correu com

toda pressa para o es-

tabelecimento, botou o

sonho em papel e reme-

teu-o, mediante gorda

retribuição, a uma soci-

edade de pintores. Até

abriu concurso. Deu

instruções, assim e assa-

do. Quando chegou o

quadro, um amigo ob-

jetou que não havia, na-

quela pintura, nenhuma

referência sobre a par-

te de baixo. Realmente,

olhando-o, não dá para

garantir que a jovem te-

nha algo abaixo cintura.

«Claro que deve ter!»,

dizia ele ao amigo. Re-

Page 19: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

177

almente, não

existe pessoa só

do peito para

cima. E o res-

to? Como have-

ria de ser o res-

to? Contam que

Teófilo, do alto

de suas muitas

exigências, não

teria reclamado

da equipe de

pintores, mes-

mo porque as

indicações do

sonho a nada

mais abrangiam

que as partes su-

periores, tal

como está. Di-

zem que Teófi-

lo padecia do

medo pânico

de exigir algo a mais, digamos, um novo quadro, de corpo inteiro, pois

lhe assaltava o terror de jamais “encontrá-la” se acaso aparecesse nesse

novo formato, dos pés à cabeça. Afinal, no sonho, era-lhe somente aquela

parte, a de cima. Mostrava-se ela também de lado, mas

nem tanto. Sim, a outra manga da blusa, onde estaria a

outra manga? Não dá para ver – os cabelos são-lhe lon-

gos e espessos. Muito estranho, não?!

Até que um belo dia, um caixeiro viajan-

te deu notícia de um pintor, um certo Allan

R. Banks, norte-americano, nascido em 1948.

O quadro? Justo aquele da gravura: Hanna. Nada a ver, por-

tanto, com o sonho, aliás, com o pesadelo de Teófilo. O problema é que

Page 20: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

178

* HANNA, Oil on canvas, 24 x 20 inches (60.96 x 50.80 cm) Private collection, by Allan R.Banks, USA, 1948- www.gandynet.com/art/Masters/Allan_Banks, leitura de Soares Feitosa.Comentários, pág. 147

ninguém acreditou.

Leitor, por obséquio, não me pergunte sobre desfecho. Isto

pertence ao passado, algo totalmente inacessível até mesmo aos

senhores historiadores. De fato, se dois historiadores se encontram, igual

aos críticos de Literatura, desentendem-se imediatamente. O que, pois,

dizer dos muitos boateiros que balanceavam dia e noite a vida de Teó-

filo e seu quadro misterioso?! Sobre o futuro, não! Isto é assunto calmo,

o futuro.

Todos nós

sabemo-

lo. Experi-

mente co-

locar qual-

quer per-

gunta no

m o d o

“acontece-

rá”, e a res-

posta será

imediata.

Por isto

mesmo é

que os fei-

ticeiros e

adivinhos

estão to-

dos de-

semprega-

dos. Inclu-

sive Teófi-

lo.

Page 21: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

179

ABILIO TERRA JUNIOR: Poeta So-ares, você nos traz uma fantásticaviagem pelos significados da cava-laria. Cavalaria, aqui entendida noseu sentido metafísico, de homeme cavalo como uma entidade úni-ca, que se torna um outro ser, ca-paz de bravuras e coragens de queseparados, seriam incapazes. Opele-vermelha/cavalo, então, é osímbolo maior desta entidade, poisque traz instinto, experiência e sa-bedoria em uma pureza absoluta,de que só mesmo os seres em con-tato íntimo e permanente com anatureza são capazes de exem-plificar. E a força que salta do qua-dro de Blake: cavalo e cavaleiro seatiram em um impulso único paraa batalha mortal, enquanto o anjoprepara a mortalha e um ser danatureza os ampara, como o instin-to de sobrevivência e luta, a bravu-ra, com seu cavalo negro que soltafogo pelas ventas. Já no quadro deWest, os cavaleiros negros monta-dos em seus cavalos ruços esma-gam os mortais em uma dançaempolgante, que envolve monstros,entes, humanos, em uma singularanalogia com os nossos tempos. Etudo entrelaçado pela sua originale única prosa poética, que costuraestes mitos, transes e significadoscomo só você sabe fazer.

ALCINA MARIA AZEVEDO: Seuspersonagens e sua forma de dizeras coisas, são sempre cheias desímbolos. Uma arte difícil de escre-ver e um estilo diferente. Em umapequena lição de centauromaquia,fiquei deslumbrada pelos lindosquadros, principalmente pelo qua-dro de Blake onde cavalo e cavalei-ro sublinham a força e a coragem.Feitosa, em seu lindo texto, vc co-loca cavalo e cavaleiro como sendouma única pessoa, e o tremor estátanto para um, como para outro. "Oplaneta inteiro treme", vc diz. Euentendi, que cavaleiro e cavalo jun-tos são capazes de grandes bravu-ras, mas sozinhos nada consegui-rão. E que nada adianta o cavaleirodar chibatadas no cavalo, pois estenão o obedecerá e mais irritado fi-cará. Assim também é o homem,ele só consegue progredir e ter su-cesso, quando não é pisoteado. Nãosei se entendi direito o que vc quisdizer, pois como já disse, a sua for-ma de escrever é difícil e simbóli-ca, dando a cada leitor uma inter-pretação diferente.

AFONSO LUIZ CORNETET: Sabe,SF, às vezes fico aqui me pergun-tando como pode alguém ser tãocriativo. Uma beleza este texto.Tive até a petulância de parar omeu trabalho e dedicar-me a estasaborosa e nutritiva leitura. Umafonte de saber este texto, não te-nha dúvida. Nele se aprende, cres-ce, evolui, etc, etc, etc... pérolas delição extraídas e assimiladas: [...]há um único bicho valente total emtoda a Natureza: o cavalo montadoou o homem a cavalo, tanto faz, quesão apenas um bicho único. No es-tado selvagem, o cavalo é um bicho

Uma pequena lição decavalaria - comentári-

os, continuação dapágina 164

Page 22: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

180

reconhecidamente medroso. [...]Mas, domador verdadeiro jamaisespancará o animal. Há uma lin-guagem secreta." "A educação épela pedra, disse o poeta, mas é pelocavalo, digo eu, que passa o domí-nio do humano. Há um intenso jogode orelhas. Quando murchas, saiade perto, é coice, é salto, é estra-nheza. As orelhas estãodirecionadas à frente e em pé, emdupla ou alternadas. O domador temque jogar o som lá na frente, nomomento em que as orelhas apon-tam para frente, de modo que o somnão venha de trás, como se fosse afera a perseguir o animal. Claro queisto o senhor não vai ler em ne-nhum manual... Brilhante SF, umprimor.

ANDERSON BRAGA HORTA: vocênão é bom apenas de poesia, tam-bém sua prosa é ágil e forte.

ANTERO BARBOSA: “Uma peque-na/grande lição de cavalaria”. Há ocavalo na terra, no campo de terra.Construído de músculo e carne epêlo e formas. Pastando a erva. Ounos caminhos, ou na serra, galgan-do, vestido de apetrechos: o cabres-to, a cela, a espora. Das lendasmitológicas, que engendraramPégaso, cavalo com asas, filho dePoseidon e de Medusa, capturado porBelerofonte, já pouco resta: porque,quando o herói tentou montar ocavalo de novo, ele corcoveou, ati-rou Belerofonte longe e subiu paraos céus. Portanto, de toda essa len-dária teia tecida e desdobrada, hojeapenas podemos vislumbrar umasimples constelação. O cavalo nocampo da terra e o cavalo no campodo céu. Mas há um outro, formidá-

vel, no campo literário. De facto,quando Ramos Rosa, no livro a quechama “Ciclo do Cavalo”, dedica to-dos os poemas do volume a esteanimal, não é ao animal, do campoou do céu, que liminarmente serefere. É um outro cavalo, limado,interiorizado, possuído e trabalha-do pelo senso do homem, é a suasombra e o seu fluido que se desti-lam na página depois de filtrado pelamente no decorrer de muitos sé-culos. É também o que acontece em“Uma pequena lição de cavalaria”.Onde a palavra escrita se deixa ca-valgar por essa imagem vital. Pro-curando mais que a desenvolturaa síntese. Do cavalo, de todos oscavalos, de suas exponenciais bio-grafias. E o faz, designadamente, detrês formas. Diluindo o cavalo nohomem e vice-versa, aplaudindo afórmula do centauro. Onde um serde dois sublima a força da meta-morfose. Porque nesse ser novo seconjugam duas forças, a animal ea humana, e se renegam os defei-tos. O animal perde receios e o ho-mem torna-se veloz. Apelando aoponto intermédio da pintura. Comefeitos sobrenaturais. O cavalo,montado, assombra por mar e ares.Subsistindo em nosso olhar umaimagem de poder absoluto: ele éapenas a seda da pelagem, a audá-cia da fronte, o soerguer de patas ecaudas, o domínio do tronco. Tudo omais desaparece: não tem vísceras,nem órgãos, nem sangues ou suo-res, nem carece de comer mais for-ragem ou água beber. Mas é sobre-tudo na transmutação para a escri-ta que o portento se produz. Porqueessa é a dificuldade aqui superada.Com letras e signos e fonemas, pôro cavalo de pé na página, colocá-lo

Page 23: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

181

íntegro e inteiro, fazê-lo respirar eviver. E possibilitando a quem lêfazer coincidir o reflexo de seus ca-valos com os cavalos do texto.

ANTONIO PALMEIRA: A geniali-dade humana, domando as feras,consegue integrar a si, à sua figu-ra, qualquer ser que estiver ao al-cance. Assim é que o homem e suamontaria fundem-se no talcentauro; com um touro resulta ocomplexo minotauro (que o digaBorges), com um cão, conduzido naguia, numa figura de perfeita har-monia: caça, guarda ou mesmo sócompanhia... Tal fera pode até serum objeto originalmente inanima-do como a antiga pena de ganso,hoje substituída pelo teclado domicro, que atuando juntos produ-zem coisas magníficas como o seutexto. Soares, você sabe domar obicho teclado...!

BERNADETTE LYRA: CaríssimoSF, estou aqui, aqui, na beira domar capixaba, onde li a lição de ca-valaria. Vim em busca de refresco,saindo do sufoco de cimento e me-tal de São Paulo. Olha, desde umapequena frase de VladimirVladimirovich Nabokov sobre o sen-so dos cavalos, nada no assunto metocou tanto. Aí incluída a ternuraque sinto pelo Rocinante. Pensei:oh, céus! Quem é esse senhor Soa-res Feitosa escondido nos confinsdo mapa? Será que ele existe mes-mo, em carne, unha e osso? Seráuma miragem que o sol do Cearáfaz nas areias movediças da net?Será um desses profetas metido emsua gruta, da qual sai de vez emquando para alumiar os viventescom a candeia da poesia? Confesso

que penso em você como é umadaquelas criaturas que grava men-sagens no ar e depois some pelosertão, de que me falava minha vóparaibana. Obrigada, pela lindezaforte do texto e pelo prazer de reno-var o contato.

CARLOS FELIPE MOISÉS: Agorasim, agora fui no rumo certo da suaefusão equina, a desabalada carrei-ra do poeta “quando solto” – umabeleza!

CARLOS ROBERTO LACERDA:Para uma definição poético-exis-tencial-antropomórfica sobre o ca-valo (cuja beleza plástica não perdenem para o tigre), ver "Uma peque-na lição de cavalaria", de SoaresFeitosa. Com o poema é que seaprende mais sobre as artimanhasdo sagrado e do demoníacocoexistentes no corcel. Só a poesiaé capaz de eviscerar, digamos as-sim, o espírito da beleza. A isso, éque dou o nome de Estética.

DIEGO DE CARVALHO: Interes-sante como conseguiste domar oexcesso de símbolos. O texto estáperfeitamente construído. Comodiria um amigo: Tens a pena!

EDNA MENEZES: "Um cavalo éinfinitamente maior que um ho-mem", apenas esse fragmento. Ocavalo é maior, pois se livre, corre,"voa", flecha viva rumo à liberdade;se preso, domado, cabresteado,apascenta-se, aceita, espera commoscas a rodear-lhe as crinas queum dia se agitaram ao vento. Ohomem... Ah! O homem; se livrenão sabe correr nem voar, não sabeo que fazer com a "tal" liberdade; se

Page 24: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

182

preso inquieta-se, angustia-se elacrimeja sangue pelo voo que ja-mais terá e assim, sente-se comoo ser de Kafka: "Se ao menos fôsse-mos um índio, ao mesmo tempo vi-gilante e montado a cavalo, incli-nando-nos contra o vento, continu-ando palpitantes a agitar-nos sobreo solo trepidante até abandonarmosas esporas pois delas não precisá-vamos; largando as rédeas, por-quanto não eram necessárias; emal percebêssemos que a terra àfrente já estava despojada de vege-tação, o pescoço e a cabeça do ca-valo já teriam desaparecido..."[Franz Kafka, A Colônia Penal, NovaÉpoca Editora, tradução de SyomaraCajado] Que grande contradição !!

EDSON BUENO DE CAMARGO: Osárabes do deserto costumam dizerque Alah, o Único Deus, quis queos homens tivessem um vislumbreda sua perfeição, e criou o cavalo.Olhe que não sou ginete coisa ne-nhuma, sou citadino até debaixodas chuvas torrenciais que caemem minha pequena cidade (pareceque as vezes a chuva quer afogar arefinaria de petróleo, suas chami-nés que cospem fogo e nuvens defumaça preta). Mas o animal é es-pantoso pela sua capacidade de en-ganar o homem que continua aacreditar se o ser humano desteplaneta. Tento imaginar o encantode Kafka em sua Viena velha e bo-lorenta, a imaginar peles verme-lhas nas pradarias americanas.

FÁTIMA IRENE PINTO: Acho quejá disse isto a você. Você tem umjeito único de poetar. Suas poesiasnão se parecem com as de nin-guém, nem do passado, nem do pre-

sente. Adoro o seu poetar. Adoromesmo!

GILDEMAR PONTES: Feitosa, po-eta dos rebuliços e das gravurasassombrosas que saltam do nada,no meio da cara, refazendo no olhoo olhar ingênuo. O Francisco é umrapaz bom, viajador, conhecedor demato e de palavras, reconhece asestradas e a geografia maior, en-tende a memória e a história queficou. Entrevistou o poeta e adivi-nhou o contador de histórias gran-des, romanceiras, pra ouvir da tar-dinha à lua alta, vigiada pela coru-ja e pelos olhos dos meninos nomato, esperando o bicho que vem agalope. O poeta conhece dos cava-los e suas plumagens e impaciên-cias. Vez por outra lembra meu avô,agarrado naquele roupão de cáqui,teimando o céu com os olhos azuis.A gente menino só fazia confirmaros bichos e criar outros mais me-donhos que os dele, desenhados nasnuvens. Eu tinha medo de cavalo,o bicho era grande e difícil de su-bir. Já o jumento para nós era umtolo, acabrunhado, parado ali espe-rando uma cipoada pra girar o mun-do. Nesse eu "amuntava em riba"da cangalha que saia com omucumbu doendo. Ia buscar águano olho perto do rio de pouca vista.A nossa diferença, Feitosa, é quetu nasceste perto do mato e sabedos feitiços do mato; quanto a mim,nasci na beira do mar e ia pro mato,de vez em quando, visitar meu avôe suas histórias mateiras. Qual-quer dia eu conto histórias de mar,que é bicho medonho, de engolirgente e falar pelo vento coisas bo-nitas e misteriosas.

Page 25: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

183

GUSTAVO DOURADO: Cavalgampelos pastos os cavalos de Francis-co. Cavalhomens do infinito sertãode mil travessias. Tropeiam céleresos cavalos de Rosa na busca daséguas do Cariri... Jagunços... Can-gaceiros e sereias no Raso daCatarina coriscam pelas pradariasde Jeremoaobo: Saudades da Serrado Teixeira e dos tombadores daChapada Diamantina até os desfi-ladeiros da Borborema... Franciscoe seus cavalos pastoreiam ovelhas-palavras... Jumentos-pastores emu-lam-se nas cabeceiras do Rio de SãoFrancisco: Rosa e Francisco galo-pam, esquipam, perfilam-se vian-dantes no sertão das setestrelas.

IVO BARROSO: Caro Poeta, eu játinha lido (por seu envio) a centau-romaquia, que me deixou engasgadocom sua erudição a propósito deequinos e que tais! Lembrei-me domelhor Guimarães Rosa, quandoele descreve os tipos de chifres debois (em Sagarana, se não me en-gano), mas sua sapiência vem demais longe, sinto o sertão euclidea-no em sua prosa. Meus parabéns!E também me diverti bastante comas biografias do Conselho editorialdo Jornal de Poesia, a começar como merecido sono (sonho?) de seufundador.

JOSÉ DO VALE: Da oferenda aoconsumo um intervalo do tempo sefoi, puxado como um balde decacimbão, das jornadas interminá-veis dos grandes centros urbanos.Afinal não peregrinei apenas nanotícia do e-mail que enviaste, bus-quei a raposa fustigada pela vigi-lância epidemiológica, assim comoa mesma fustigada da Catuana à

cidade pela sede do saber. Um sa-ber clássico, das ordens católicas,em que se fundem a narrativa tribalde Israel, o vasto mundo grego e ainstituição romana. No entanto,corre nele uma vertente ibérica,hípica, ou seja, árabe. De qualquermodo nos dois momentos: primeiroo peregrino do saber é um ser dossertões, dos ermos, dos mandacaruse da luta solitária como rito de pas-sagem aos 15 anos. No segundomomento é reflexão intelectual, odomador de cavalos. O soberano hí-brido, centauro, o matuto a pé, ago-ra fundido sobre o corpo das patasque rompem horizontes e chega àfrente do sol. Iluminado o pensa-mento complexo, oposto da jornadanoturna quando nem lanterna apilha havia. Quer dizer, SF, um sersui generis, um pé no mundo rurale um outro na cidade. É o penúlti-mo espécime ainda a compreendero quão diferentes foram estes doismundos: o arcaico e a pós-moder-nidade. Depois, só existirão, com aforça da realidade e da verdade, osseres urbanos, únicos e não híbri-do como SF que ainda corre paravencer o sol.

LUÍS MANOEL PAES SIQUEIRA:Belo ensaio poético. Maravilha dedescrição. Cavalos sempre me fas-cinaram. Principalmente os olhostristes. Já percebestes como sãotristes os olhares dos equinos?Além do mais são animais muitosensíveis. Lindo o desenho doBlake. Não conhecia. Eu conheçomais os seus poemas.

LUIZ PAULO SANTANA: Foi umabela, mítica, histórica cavalgada.Inflamou os campos, moveu os ares

Page 26: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

184

em grandes ventanias, despertoupoetas, fez suspirar o leviatã — quenão se atreve porque o caos é apa-rente — na hora mesma em quepele vermelha e cavalo frementes,hifenizados no "montado-e-vigilan-te" chispam, causando tremores noolho de quem olha e sem piscar lêaté o fim. E tem cavalo e homemantes da "transfusão": o cavalo nocabresto em círculo, o cavalo nabaia confiado, o cavalo e suas ore-lhas sinais e códigos. E tem cavalosolto, selvagem: "...a cabeça se al-terna à esquerda e à direita, porbaixo das pernas e por cima do lom-bo, a olhar de lado e para trás." Etem o segredo das palavras que sejoga adiante, de modo que o cavalo,digo, o leitor, digo ainda, o centauroem que nos transformamos as re-colha à galopada. É cavalgada de pa-lavras que passam ligeiras no es-paço de todos os tempos, modos econjugações. Acabo de ler, acabo dever e é assim. Ainda há poeira noar.

MARIA DA PAZ RIBEIRO DANTAS:fiquei suspensa com a leitura deseu texto (terei montado o cavalode Blake ?...). Você é um mágico. Eeu só teria a lhe dizer que o tempotodo me vinha à mente o verso dopoema de Joaquim Cardozo A cons-tante vitória: Na grande curvaalém, o que é mais do que um so-nho? (Releia-o no Contemporâneodo futuro)

MARY SILVEIRA: Sua forma de di-zer as coisas, seu estilo diferenteme deixa deslumbrada. A parte fi-nal é surpreendente: "O caminhopossível é o da misericórdia". Ca-valo e cavaleiro fica me parecendo

uma única pessoa. E, de repente,volto a galopar na minha infância,desde criança percebi que osequinos correm de lado.

NICOLAU SAIÃO: Para já, o abraçofirme que se endossa aos amigos,aos da cavalgada perene no tempoque nos foi dado viver. É isso, o tem-po. Que como minha mãe costuma-va dizer, "é um cavalo". Que salta erevoluteia, que corre infrene comoum ginete na Andaluzia, um cor-cel nos campos rasos do Nebraska,um garrano nos pastos de Alter doChão deste meu Alentejo. Os cava-los... Quando vi eu pela primeira vezum cavalo? Não guardo de isso me-mória exacta, mas teria sido na vilade Monforte onde nasci, provavel-mente uma montada da GuardaRepublicana quando da visita dealgum oficial ao posto que o meupai comandava, ou então de algumlavrador das imediações com está-bulo porventura dentro da vila. Noentanto, pensando bem, creio queo primeiro cavalo que vi (ou seriaégua, para o caso tanto faz...) esta-va atrelado a um charabã - que sómais tarde soube ser o parisiense"char-à-bancs" das/dos elegantesdos Champs-Elisées de outrora.Conduzido por uma senhora, por umcavalheiro? Parece-me que opasseante seria, se a lembrançame não falha, um médico que usa-va esse meio de transporte querpara visitar seus pacientes querpara efectuar suas voltas e volti-nhas nos momentos de lazer. Já sepercebe que nessa altura era eubem pequeno. Mais tarde, vi cava-los nos prados e campinas de mui-tos lugares: nos plainos de Espanha,nos vergéis da "Grand Prairie" fran-

Page 27: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

185

cesa, nas ruas de Lisboa e dePortalegre quando era dia de festanacional, transportando agentesmilitarizados, nas quintas doOntário ao longo da estrada que vaide Toronto a Otawa, na "rota índia"americana. Tive mesmo ensejo decavalgar algumas vezes em camposabertos - essa emoção absoluta dedescendente de antigos cavaleirosaldeões - e, quando calha, na her-dade de um amigo dado às cavalga-das e falcoarias (o conde JoséAntónio Valdez, que é o fidalgo deantiga nobreza lusitana mais ple-beu e saudavelmente terra-a-ter-ra que existe - faço a minhaperninha como razoável "calção"como tradicionalmente se usa ape-lidar. E que dizer dos cavalos vistosna arte: na pintura, na escultura,no cinema, nos livros dequadradinhos da minha infância eadolescência de leitor encartado?As cavalgadas, no papel, de índios ede cóbois, desde os apaches deJerónimo aos oglalas de Sitting-Bulle de Nuvem Vermelha até ao, nou-tro registo, cavalgar em estilo "feio,forte e formal" do John Wayne? E oar hierático de Gary Cooper ou doJames Stewart ? (Que, aqui entrenós, sempre me pareceu ter umrosto um pouco cavalar...). Todasestas coisas me foram suscitadaspelo texto do Poeta. Será necessá-rio dizer que Feitosa, como bomginete, ultrapassa as barreirascomo um galhardo cavaleiro e nosfaz cavalgar através do texto comoum alazão de crinas ao vento? Umabraço, meu Poeta - e que galope apreceito assim pela vida durantemuito tempo e nos enleve sobera-namente com o seu estro tão velozcomo apropriado e fecundo. Um

abraço firme, à guisa de cavaleirode antanho, do seu NS

NILTO MACIEL: Este diálogo deFrancisco com Soares Feitosa é ple-no de ensinamentos. Nele se veemfilósofos, poetas, ficionistas e, parailustrar, quadros famosos. Muitogosto de ler essas coisas de cavalose cavaleiros, de índios, de centau-ros, de lendas e mitos. Se fosse pos-sível juntar ao escrito um contomuito interessante de nosso Jua-rez Barroso, intitulado "Joaquimbralhador", o leitor mais curiosopoderia se perguntar: onde esseSoares Feitosa vai buscar tantoassunto?

PAULO GONDIM: Sempre a nossurpreender com sua grandiosa téc-nica da escrita. Escreves muitobem! Cavalo lembra viagem, liber-dade, força, beleza, mansidão. Seutexto nos faz refletir sobre a belacomposição que você fez do homemcom o cavalo: - Um só bicho! Mas aparte final é deslumbrante, poéticade extrema sensibilidade. "O cami-nho possível é o da misericórdia"!!!!Não espancarás! Tão belo quanto osol, "no pingo do meio dia" - Sertãopuro, Soares!!!

REGINA SANDRA BALDESSIN: Mi-tos, Kafka, Hobbes. E o poeta amar-rando as pontas soltas da história,ressignificando a lenda e trazendoà memória lições que já deveríamoster aprendido. Diante do seu texto,poeta, quase acredito que existeresgate para a nossa insuficiência.O meu abraço afetuoso e encanta-do.

Page 28: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

186

RAY SILVEIRA: “Literatura é a lin-guagem carregada de significadosaté o máximo grau possível” (E.Poud) Poetamigo, Se Ezra Pound nãoandou conversando "arisia", acabasde cometer um texto literário semadjetivos à altura. Mas, para queserve a literatura? Saramago res-ponde com outra pergunta e umaconclusão: “Para que serve umaflor? Para nada”. Eu só acrescenta-ria: não servem também para coi-sa alguma: a música, as belas ar-tes, a poesia, enfim, qualquer ex-pressão cultural. E já há adeptosfanáticos dessa doutrina. Ontem lium artigo cuja tese central rezaque o ato de escrever (única formade se alcançar alguma literatura)seria não apenas inútil, como tam-bém altamente nocivo. Então, nãoseria o caso de reconsiderares esteteu escrito? Não teria sido muitomais proveitoso se estivesses teempanturrando de dulcíssimasmusses italianas de chocolate. Ou,quem sabe, de salsichões austría-cos regados a excelente cervejabávara?

RICARDO ALFAYA: Muito bonito,muito poético esse texto, mais umavez em contraponto com imagens.Nunca havia pensado nesse sim-bolismo da união cavaleiro-cavalo,resultando num terceiro e podero-so animal. Mesmo a figura mitoló-gica já a tendo visto tantas vezesantes, nunca me detive a meditarno possível significado. Gosto de tex-tos que mexem com a minha cabe-ça, que criam atritos de significa-do, que redimensionam símbolos eimagens, como você faz. Valeu apena conhecer.

ROBERTO PIRES: Excelente! Con-segui cavalgar nesta junção ho-mem-Roberto Piresanimal animal-homem! Sob as rédeas da caneta,Sf-francisco - Francisco-Sf criouum terceiro animal! Homem-Cava-lo-Escritor-Leitor! Cavalguei comgosto montado no texto! Parabéns,mestre!

RODOLFO LOPES: Estive a viajarno tempo, lembrando dos idos decavalgadas e integração cavalo-ca-valeiro. Seu texto descreve magis-tralmente essa magia da criação doanimal mitológico advindos destamesclagem.

RODRIGO PETRONIO: Franciscoquerido, Me diverti imenso, comodizem os portugueses, com suahipomaquia! Essa união com Kafkae com a bela gravura do Blake, ali-ada a toda a doideira desse diálogoentre Francisco e Soares foi umacoisa impagável! Também me di-verti muito com as referências li-terárias. Já o filósofo ThomasHobbes perdeu uma bela oportuni-dade de exemplificar o pacto socialem cima do cavalo. Ou com essasdivagações filosóficas, entremeadasà loucura geral da cavalgada: Co-mandos? Tudo no âmbito da pré-lin-guagem. Uma beleza homem! Pa-rabéns. Logo em seguida entrei poracaso no domínio da equipe de rea-lização do JP. Quando deparo com osenhor Francisco na rede! Dormin-do! Dava até pra ouvir o ronco dotrabalho! E confesso que fiqueimuito emocionado com as fotos desua família, querido. Avós, fotos decasamento, toda a estória, não co-nhecia essa página do JP. Gostei

Page 29: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

187

muito de conhecê-la. Parabéns pelacavalgadura humana, mestre.

SÉRGIO CASTRO PINTO: Poeta,não é uma pequena, mas umagrande lição de cavalaria. E de poe-sia!

SOLANGE STOPIGLIA: Encho-meem deleite com teus dizeres e figu-ras do homem, criatura pura, an-tes de ser moldado neste mundo dediabruras. Tanto homem quandoanimal (neste caso irracional) sãofrágeis em sentimentos, podem tera força física dos músculos firmes,mas seus instintos são como doispequenos bebezinhos, que ao soarde um ruído rompem a chorar. Ouquando assustados empinam o cor-po pesado nas patas traseiras, der-rubando a pequena segurança hu-mana por terra. Acabou a guerra!Dois iguais, tão fortes por fora, tãofrágeis por dentro. Desalento quesinto. Mas encontro em tuas pala-vras as verdades internas de duascriaturas, tão puras e singelas.Quando não são manipuladas e for-jadas pela sociedade. Mais umavez parabéns, tuas palavras me sãoinspiração para criação.

URARIANO MOTA: Soares, Poeta,filósofo, ou "simplemesnte" bomescritor? Gostei muito do seu alvocerteiro que viu Kafka como umpoeta. O grosso da gente acha quea poesia reside apenas no poema,no verso. Desconhecem até a poe-sia do primeiro beijo.

VASSIA SILVEIRA: Impressionan-te a viagem proporcionada por Umapequena lição de cavalaria. Gostomuito da imagem dos centauros,

me remetem a um tempo-espaçoonde a razão é desprovida do cetroque nós, ocidentais e herdeiros docristianismo, a entregamos. Gostode me perder por brumas e labirin-tos, acompanhada de figuras ima-ginárias. E talvez isso explique arespiração suspensa pela leitura deseu texto e os caminhos que per-corri a galope, sem crina ou rédeaspara me segurar. Não era mais afigura do cavalo que eu via. Nem ado cavaleiro em seus trajes típicos.Andei em várzeas, montanhas e flo-restas de palavras. E o animal queme carregava era a página embranco. Eu, pobre amazona à pro-cura de domar um dos mais belos eariscos animais selvagens: a poe-sia. "Isto mesmo! Há o tremor paraquem está em cima, para quemestá embaixo, cavalo e cavaleiro(...). Ambos sabem que o planetainteiro treme. Pulsam. Indague dosoutros cavalos, que, ao frêmito dadupla, retesam as crinas. Indaguedas feras do dia.". E, de repente, fez-se noite meu galopar: "Por sobre oscavalos também: há um momentode falar, há um momento de silên-cios". E o meu rebelde cavalo para,negando-me a descoberta daquelelugar que ainda não conheci. En-tão me vem novamente a pequenalição de cavalaria: "Você, em cimado cavalo, é quem dá-lhe as ordem,mas ordens hão de vir de frente, enão de trás. Como seria possívelordens pela frente, se você, no lom-bo do animal, está atrás dos ouvi-dos da montaria? Aí é que está opasse de mágica: as palavras sãolançadas à frente num ângulo degrau exato, de modo que o cavalo, àmedida que corre, vai colhendo-as...e... quanto mais corre, mais ligeiro

Page 30: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

188

você joga palavras novas mais adi-ante (...)". Parando o cavalo, mostracansaço também a amazona, numsimulacro de aquiescência. Poetae poema. Cavalo e cavaleiro: "Atétombarem exaustos. Senão mortos".Tudo com uma pequena lição decavalaria.

VICENTE FRANZ CECIM: Lição deCentauro. Mano Francisco, teu di-álogo com o Soares Feitosa, nestatua Pequena lição de cavalaria, éuma maravilha: pensássemos queestarias falando realmente de ca-valos, mas todo o tempo estás fa-lando do humano, e, a partir disso,da hipótese do Centauro adormeci-da em nós. O Centauro: Franciscosobre Soares, ou o inverso? Um es-critura sobre o Encanto, que medeixou e mantém jubilosamenteencantado. Coisa para jamais es-quecer. Belos Sortilégios, ao longodela. E a Imagem de Blake: e asoutras - as recorrências a Kafka eaos Selos do Apocalipse de João dePatmos. Tudo Ouro Puro que cinti-la, primeiro para olhos cegos. Só melembro de ter encontrado coisa as-sim pelo Nordeste em GuimarãesRosa e, também, lá em Suassuna.A Idade Média Europeia persistecomo fantasmagoria no Sertão. MeuAbraço e minha Alegria, muitamen-te, teu Franz da Floresta Sagrada.

VICENTE FREITAS: Lendo seumonólogo, ou melhor, seu diálogoconsigo mesmo, sobre lição de ca-valaria, me senti, de repente, en-cantado, ou seja, de início, acheimesmo que eu não passava de umcavalo, depois estive meditando, e,como cavalo não medita, acho, che-guei à conclusão que sou, no míni-

mo, um centauro; afinal, todos nóstemos um pouco de centauro, nãoé mesmo? E já que estamos come-morando os quatrocentos anos do D.Quixote. E como D. Quixote é, naverdade, um centauro, pois nãoexiste D. Quixote sem parte de ho-mem e parte de cavalo, assim comonão existe D. Quixote sem SanchoPança. Mas antes da personagemgenial de Cervantes vamos matutarum pouco sobre os centauros... Namitologia grega, eram eles a perso-nificação das forças naturais.Centauro era um animal fabulosoque habitava as planícies daArcádia e da Tessália. Seu mito foi,possivelmente, inspirado nas tribossemi-selvagens das zonas agrestesda Grécia. Segundo a lenda, era fi-lho de Ixíon e de Nefele, deusa dasnuvens, ou então de Apolo e Hebe.A estória mitológica dos centaurosestá quase sempre associada a epi-sódios de barbárie. Convidados parao casamento de Pirito, rei doslápitas, os centauros, enlouqueci-dos pelo vinho, tentaram raptar anoiva, desencadeando-se ali umaterrível batalha. O episódio está re-tratado nos frisos do Partenon e foium motivo freqüente nas obras dearte pagãs e renascentistas. Oscentauros também teriam lutadocontra Hércules que os teria expul-sado do cabo Mália. Contudo, nemtodos os centauros apareciam ca-racterizados como selvagens. Umdeles, Quirão, foi instrutor e profes-sor de Aquiles, Heráclito, Jasão eoutros heróis, entre os quaisEsculápio. Entretanto, enquantogrupo, foram eles notórias personi-ficações da violência, como se vêem Sófocles. Já os cavalos, quandode carne e osso, não têm nada de

Page 31: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

189

mitológicos. Mas existem cavalospara todos os gostos, inclusive ca-valo de pau – o de Tróia – como cons-ta n’A Ilíada, um dos épicos deHomero, e que narra a guerra quecausou a destruição da cidade, umdos mais ricos e extensos sítios ar-queológicos do mundo antigo. A len-da do conflito entre aqueus etroianos pela posse da cidade for-neceu o argumento da Ilíada eobras posteriores. No século IV d.C.,desapareceram completamente osvestígios históricos de Tróia. Páris,filho do rei Príamo, raptara Helena,esposa de Menelau, rei de Esparta,famosa por sua beleza. Para se vin-gar, Menelau formou um poderosoexército comandado por Agamenon,no qual se destacaram Aquiles eUlisses. O cerco de Tróia foi mar-cado por feitos heróicos de ambosos lados, até que, sob inspiração deUlisses, os gregos construíram umgigantesco cavalo de madeira e oabandonaram nas portas de Tróia.Apesar dos presságios de Cassan-dra, os troianos levaram para den-tro dos muros da cidade o cavalo,que trazia em seu interior os guer-reiros de Ulisses. Abertas as por-tas, os gregos saquearam e destru-íram Tróia. O herói troiano Enéias,filho de Vênus, escapou com algunspartidários e, depois de muitasaventuras, se instalou no Lácio. Osdescendentes desse grupo deramorigem ao povo romano. É quasecerto que a lenda tenha um núcleode verdade, mas é impossível pro-var-lhe a historicidade. Uma inter-pretação de documentos favoreceua hipótese de que os aqueus fossemum povo pré-helênico originário daEuropa. Na época de Tróia, osaqueus, teriam se espalhado pelo

Egeu e formado colônias de mice-nianos, de onde mais tarde saíramconquistadores de Tróia. O cavalode madeira teria sido uma inven-ção de Odisseu, o guerreiro maissagaz da Ilíada e personagem daOdisséia. Quanto a D. Quixote e seucavalo Rocinante, Cervantes criou,na verdade, com seu engenhosoFidalgo de La Mancha, o embrião doromance moderno, uma das perso-nagens mais populares da históriada literatura e ainda deu vazão aosurgimento do termo, de uso uni-versal, “quixotesco” que define ocomportamento de alguém comosonhador, ingênuo, romântico e tra-palhão. Aclamado como a maiorobra de ficção de todos os tempos,numa eleição promovida pelo Ins-tituto Nobel da Noruega – tido, ini-cialmente, como uma sátira às no-velas de cavalaria – o livro tornou-se, com o passar dos séculos, umadas obras mais significativas da li-teratura universal, reveladora desentimentos, paixões, fraquezas egrandezas do ser humano. A inva-são de novas edições de D. Quixote,talvez se justifique, como uma es-pécie de comemoração dos 400 anosdo livro, publicado em 1605. NosEstados Unidos, acabou de sair vas-ta biografia de Cervantes, que, aocontrário de seu famoso contempo-râneo Shakespeare – pastorador decavalos – é bem mais conhecido.Cervantes nasceu em Alcalá deHenares, na Espanha, em 1547, fi-lho d’um cirurgião e uma nobreempobrecida. Na adolescência, tra-balhou como camareiro para o car-deal italiano Acquaviva. Ainda jo-vem alistou-se nas tropaspontifícias para lutar contra os tur-cos que ameaçavam a Europa, o

Page 32: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

190

que lhe custou a perda da mão es-querda. Tempos depois, durante vi-agem de retorno ao território espa-nhol, foi capturado por turcos e pas-sou cinco anos preso na Argélia.Saindo da prisão e desiludido davida militar, retorna à Espanha ese dedica com afinco à literatura.Para sobreviver, assume o cargo decomissário de abastecimento e de-pois passa a trabalhar como coletorde impostos. Acusado injustamen-te de desviar verbas, é levado à pri-são em Sevilha, onde escreve a pri-meira parte de D. Quixote. A críticade Cervantes às histórias da épo-ca, surge envolta com humor e com-paixão pela figura do cavaleiro, quese atirava às cegas à propagandada cavalaria. No prefácio da obra, oautor conversa com seus leitores eaté justifica sua personagem:"Acontece, muitas vezes, ter um paium filho feio e desengraçado, maso amor paternal lhe põe uma ven-da nos olhos para que não veja aspróprias deficiências, antes, as jul-gue como discrições e lindezas, efique sempre a contá-las aos ami-gos, como agudezas e donaires. Po-rém eu, que ainda não pareço pai,não sou contudo senão padrasto deD. Quixote”. Um escritor que temconfessado inspiração – que elechama “obsessão” – em Cervantese seu D. Quixote é ArianoSuassuna. Quaderna, figura prin-cipal de A Pedra do Reino, foi com-parado a personagem do Miguel. Emum dos seus depoimentos,Suassuna, no entanto, ressaltouque há semelhanças, sim, mas aprincipal diferença entre sua cria-tura e a do escritor espanhol estáem uma certa lucidez na hora desonhar: "Eu noto uma diferença

entre D. Quixote e Quaderna, dizAriano. É que D. Quixote enlouque-ce lendo os livros de cavalaria eacredita neles. Quaderna, não. Apersonagem apresenta bem clara-mente a diferença – “Minha vidacinzenta, feia e mesquinha de me-nino sertanejo, reduzido à pobrezae à dependência pela ruína da fa-zenda do pai”. Quer dizer, ele sabeque a vida é triste, dura, feia, áspe-ra, e lança mão do folheto e dos es-petáculos populares como defesa.Mas tudo lucidamente. O mesmonão se pode dizer em relação a D.Quixote”. Veja, Francisco, lendo sualição de cavalaria, passei a sonharcom cavalos, centauros e D.Quixotes. Afinal, D. Quixote é umhomem de todas as épocas e de to-das as regiões do mundo, e cadaqual o identifica e entende, logo seaperceba de que o drama do pobrecavaleiro louco é o drama de todosos homens que sabem o que é umsonho ou alguma vez o acalenta-ram. É que todos nós temos um pou-co de centauros, cavalos eQuixotes... Será?

Page 33: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

191

ANA BEHRENS: Francisco, "Nessaviagem magistral entre rosto e cos-tas". Não pude deixar de reler issomuitas vezes.

ANA PELUSO: O texto como sem-pre adensa floresta sanguínea e fazum bum-bum no peito, daqueles,dos diabos. Tu brincas com as pala-vras e cria clima de história nanarrativa que poderia ser simplese torna-se um amontoado de ques-tões que é pra colocar a cachola dopovo pra funcionar. É por isso quete recomendo como medicamentocontra insanidade da alma, contraavareza da calma, contra todo equalquer mal... "Anafilá...". Sim,tomemos o soro da vida, feito empoesia, em prosa poética, na veiaque ainda (res)sente algum movi-mento de vida. Tomemos Feitosaem doses homeopáticas e cartá-ticas. E, penso, estaremos permi-tindo o pensamento quebrar a or-dem do tempo, porque tu vens dofuturo, ó profeta!

EDUARDO DIATAHY BEZERRA DEMENEZES: Don Francisco, meucaro amigo: Que página de impres-sionante poética! Que dores aludi-das no mergulho das memórias!Não sei por que evocações ou asso-ciações, lembrou-me a Balada daMoça do Miramar, do Vinícius. Umabraço imenso de admiração.

ERORCI SANTANA: É tudo muitodenso e abissal, os olhos como na-

valha e cintilância e a palavra comolâmina e serpente, com muitosrefolhos, coalescências, sinuosida-des: um cinema, como é de seu fei-tio, muito “lindro”.

EURIVO RIBEIRO DA CRUZ: O tex-to forte como a gente do nordeste,de lâmina afiada e contundente quefere a alma a fundo e dilacera asentranhas. Nada resiste às en-chentes de imagens e palavras.

FOED CASTRO CHAMAS: A foto deexcelente cromatismo e o texto so-bre a menina afegã são primorosos.

EURIVO RIBEIRO DA CRUZ: O tex-to forte como a gente do nordeste,de lâmina afiada e contundente quefere a alma a fundo e dilacera asentranhas. Nada resiste às en-chentes de imagens e palavras.

FRANCISCO PERNA FILHO: Osolhos estendem os passos da alma:às vezes dilacerada pela luzincandescente da áspera solidãoque nos abriga. Senti, no seu en-saio, os olhos do nosso tempo, umtempo de imagens e perplexidades.

FRED SOUZA CASTRO: CaroFeitosa: muito bonito seu trabalhosobre a afegã da capa da Geogra-phic. Você importou aquele rostopara um cenário de memória mui-to tocante e significativo. Costuroucom mão de mestre cada pequenotraço da pele, cada nuance do olho,

A menina afegãcomentários, continuação da pági-

na 168

Page 34: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

192

cada palavra que pode(ria) escapardaqueles lábios. Você é um poetaarretado, meu bom.

GERANA DAMULAKIS: Todo autorde sensibilidade deixa-se seduzirpor um retrato para dele criar umtexto. O seu foi magnífico. Tenhovontade de fazer cópias para queLuísa, minha filha, lembra?, levepara a escola e possam ler em clas-se. Preciso da autorização do autor.Parabéns pelo sentimento e pelaarte dele advinda.

HEBE LOPES DE ALMEIDA: Soa-res, venho parabenizá-lo pelo textosobre a menina afegã; dá-me a im-pressão que suas imagens poéticase aqueles olhos grandes da meni-na viajam lado a lado por lugaresigualmente trágicos e fantásticos;a dor e o belo se entrelaçam em seutexto e buscam a foto da menina; amenina como que também escutae compreende a sua historia…ambos permeando encontros. Paramim, a face da menina vai decla-rando assim: Errar um ser em for-mação ou secar as águas das fon-tes é um erro grande demais paraser pronunciado. Não há palavras,só o espanto.

IVO BARROSO: Caro Feitosa, seutexto é tão penetrante quanto osolhos dessa afegã dos quais a gentenão consegue se afastar; leituraintegral, corrente, aliciante.

JOÃO FILHO: Estava agora mesmolendo lotes e mais lotes de poesiafescenina, grotesca. GlaucoMattoso foi uma leitura que tiveque retornar com mais juízo. E en-tão deparo-me com este menina

afegã. A foto é conhecida, tudobem, mas como o Sr. consegue ti-rar tanta densidade, lirismo dosmais aguçados desta foto!!?? E o piorde tudo é que eu estava/estouinebriado com umas in-des-cober-tas. Isto foi o que me levou a escre-ver este e-mail. Conseguiu mesmoabrir/criar uma parêntese nestemeu lado fescenino. Dou a mão apalmatória.

JOSÉ FELIX: Um belo ensaio, caroSoares Feitosa. Um outro olhar so-bre o tempo, antes do tempo, depoisdo tempo. O interseccionismo tem-poral que busca no meio em quevive «o mesmo olhar».

MANOEL H. A. SORIA: Hoje, recebiseu magnífico ensaio poético sobrea menina afegã, que saboreei, pri-meiro em largos bocados, porquesou impaciente, e depois com cau-tela, prazer e espírito crítico. Gos-tei muito. Gosto de imagens, todas:em tela, impressas, em ideias, empoesia, prosa, canto... principal-mente as atávicas, que nos vierampor sentidos que não controlamos,lembranças que perfuram as cama-das racionais e as cautelas do ho-mem moderno.

JOSÉ LIRA: Puxa! E você disse quenão tinha vírus. Mas tem o vírus dapoesia, esse texto, que é tal oanafilá, deixa a memória comple-tamente randomizada. Pega de jei-to e mega e bite, bite, bite.

LEONTINO FILHO: Antes de maisnada, espero que tudo esteja bemcom você e toda a sua família. Quebom receber notícias suas. Eu ain-da por estas bandas, com vontade

Page 35: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

193

de voltar, ficar no meu cantinhoquieto, vendo as coisas, não meconformando com o que se passa aoredor e escrevendo os meus poe-mas. Tão logo eu conclua este cur-so, já jurei para mim mesmo, vouarrumar um canto para morar eneste canto demorar um longo pe-ríodo. Bem, mas vamos ao que in-teressa, O QUE O TEMPO HÁ DEQUERER? Que texto primoroso!Quantas lições de vida você soubecaptar desse profundo, melancóli-co, angustiado e inconformado olharda menina afegã. Tantas coisas otempo nos cobra e muitas vezes nãonos oferece nada em troca, a nãoser a sua tresloucada passagempelas nossas retinas. Quantas ve-zes o tempo trai a nossa confiançacomo traiu escandalosamente oolhar de verde-seca dessa envelhe-cida menina. Mas o tempo olha den-tro do nosso olho e prescruta a nos-sa alma silenciosa. Ele vai sorra-teiramente nos levando a doce es-perança, mesmo assim, lá longe,conseguimos acertar os ponteirosdas estações, e por isso, sabemosque ainda resta um alento, e talalento vem sob o manto verde deum olho que nos desarma e que noscoloca de novo em sintonia com aprópria vida. Esse olhar pode muitobem ser, e, certamente, é, o dessagarota que insiste em desafiar amisteriosa armadilha dos anos.Você, como exímio poeta, olhou pro-fundamente a menina, como seconvivesse com ela há muitos emuitos anos, e desnudou o espíritosolitário de alguém, que na bata-lha da existência, só requereu apartilha de carinho e de afeto quelhe coube/cabe no incomensurávellatifúndio da ganância. Por isso,

podemos afirmar, sem medo de er-rar: um poeta olha diferente porquesente diferente, a prova está nesteseu precioso texto.

MARCIA THEÓPHILO: A fotografiada menina afegã que inspirou o seubelo conto, eu também a tenhoguardada. O seu conto é feito deemoção, simbiose dramática, sen-sibilidade e invenção criativa. Oseu olhar de homem se transfigu-ra e se dilata nos olhos da meninaafegã . É de dentro dessa luz doolhar que nasce o texto - teatro deexperiências, vivencias. Eu semprepenso que a visão da imagem fe-minina vista por um homem è umreconhecimento do sentir femini-no e através do seu texto nós foto-grafamos de novo essa imagem quenos causou tanta impressão.

MARCO POLO GUIMARÃES: Vocêrecria a imagem nas palavras e aamplia num movimento ondulan-te. Recentemente foi publicadauma foto daquela menina na atua-lidade, enfeada pela vida ásperadaqueles desertos e montanhasafegãos. Mas nesta foto antiga e noseu texto ela vai permanecerintocada, perfeita em sua bela in-tensidade.

MARIA APARECIDA TORNEROS:Feitosa, que olhar hein? mais queolhar, que afago de afegã assusta-da com a vida, com o mundo injus-to e com a incerteza de sobreviverna alma dos que a podem observar...Menino, que lindo o seu texto...mais que lindo, que sentimento deprofundidade na tal alma humanatão perdida na loucura da guerra...Obrigada por ter me proporcionado

Page 36: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

194

esse instante de ser mais genteainda.. através da imagem e da re-flexão sobre o que você criou... Bei-jo de afago no poeta que habita emseu instinto sensível de produzir aPaz, em plena sandice que é a lutaarmada pelo poder e pelocolonialismo...

MAURICIO MATOS: Pôr em pala-vras os olhos e, através deles, o bri-lho do olhar desta afegã, o canto Amenina afegã, de Steve McCurrydesenhado de sua boca, como o dequem está para, através dos lábios,dar ao mundo o canto de seu olhar,é coisa para Soares Feitosa. Paraalém disso, o que o tempo haveriade querer? Parece-me que é a vidao que está nestes cantos... escrita.

MICHELINY VERUNSCHK: Ondevocê aprendeu a escrever assim?

ORIANA ALMEIDA: Querido Soa-res, eu adorei esse seu ensaio. Liduas vezes. Adorei também esseestilo de ensaio que você faz. Acre-dite ou não, estou saindo para umaconferência de um dia sobe poesiaem Oxford. Eu nunca pensei queaqui tivesse gente tão interessadaassim no tema. Meu chefe de pes-ca não está entendendo porque eunão vou trabalhar para ir ver umaconferencia de poesia. Ficou achan-do graça.

RAFAEL MONTANDON: Você estácomeçando a pegar gosto por estaestória de escrever sobre imagens,não é mesmo? Meu preferido, atéagora, foi o texto sobre o "Fui eu!",mas este da menina afegã tambémficou muito bom. Você é o memoria-lista por excelência e sem conces-

sões. Qualquer mínimo estímulo,mesmo que completamente alheio,desencadeia o fluxo das reminis-cências e te transporta para o uni-verso mítico da tua infância. Mas ointeressante é que as imagens nãosão meros pretextos para estetransporte. Você transita com mui-ta habilidade e sem qualquerartificialismo entre os elementosplásticos dos quadros (ou foto) e osflashes da mitologia particular, e asduas coisas terminam por seinterpenetrar e se tornar uma só.É um jogo fascinante. Você poderiapublicar um livro inteiro só comescritos deste tipo. Esta meninanão deixa mesmo ninguém impu-ne. Tão telúrica e ao mesmo tem-po tão supra-terrena.

RITA BRENNAND: Bebi de um golesó. Escutei seu grito. Penetrei na-quele olhar. Meu Deus! Francisco,tomei um susto! Você nem me dei-xou respirar. Não estou preparadapara desmaiar de alegria. É, tentopintar com você esse olhar e essaexpressão da boca. Busco fazer eco-ar esse grito. A pororoca veio che-gando e arrastando tudo o que esti-vesse em seu caminho. Encontroferoz de águas. Desencontro ferozde homens. Renovação da nature-za? O caos por si só se organiza.Francisco, luzes e sombras. Você éum pintor, ao me fazer entrar nosescuros... percebi a virgindade da-quela boca, a menina... Um únicoolho, insistentemente repetido, milolhos, vi, da humanidade, que so-mos. Ainda preciso me acostumar.O seu pique, nem bem... você já!Francisco, assim que você me pas-sou o site da menina afegã, abrisem medo, mas fiquei um bom tem-

Page 37: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

195

po, enfeitiçada, viajando com você.De vez em quando, numa pincela-da de claro-escuro — o olho. Fiquei,como diz o matuto — abestada. Vocêquer me matar? Isso acontece di-ante do inesperado. Ontem dei umaespiada na página do JP e fui dor-mir depois das 2h, fico hipnotizada,é o termo certo. Me encontro tãodescaradamente impregnada des-sa terra, os trejeitos de falar, mevejo cruzando com você, sem saberque só meio século —- de Ésquilo?Francisco saiba que estou atenta otempo todo, tenho em você o meuponto de referência. O JP é umaviagem, é um mapa, muito mais doque Múndi. É uma cartografia deintensidades, de afetos, de sonhos.Repare as mãos, o gesto. Vejo comoum fruto arrancado antes do tempoAinda traz a terra nas unhas. faís-cam os olhos. O rosto, a luz, o Sol...dia e noite... olhos, os olhos, só osolhos... grite, grite por ela, Francis-co. Não nos deixe sem defesa... Re-pare o mesmo gesto, as mãos... asunhas enfeitadas de terra-Brasil;repare a burca feita da palha, só queverde... verde pendão da... desespe-rança. O olhar de mormaço, varouo tempo. Francisco nada li das re-portagens para não escutar. Não,não quero escutar, quero ficar aten-ta apenas a sua poderosa poesia,que espero. Sempre vou esperar.Estou ainda zonza. Agora mesmo fizum gesto, com minhas mãos, qua-se sem perceber que estava escon-dendo meu rosto, abaixei a cabeça,e lá no fundo do coração, choro pornós. Francisco, onde? onde? onde?o amor?

RONALDO CASTRO: A narração emsuspensão contínua vai nos levan-

do para um texto que não se com-pleta e assim se faz até agora.

VICENTE FRAZN CECIM: Francis-co, não consegui escrever uma li-nha sobre a Menina Afegã: aquelalâmina no olhar dela cortou minhalíngua para sempre.

RICARDO ALFAYA: Olhei, reolhei,li, reli, fiquei muito impressiona-do. Você pegou a menina afegã, ti-rou do cruel deserto de lá e trouxepara a cruel seca de cá. Sim, há umgosto de dor e de morte. De corte dafotografia, acompanhado por umaação paralela de corte de filme queacaba resultando também em cor-te do personagem em sua histó-ria. Você faz uma simbiose de nar-rativa com ensaio, em paralelo aoensaio com história que há na foto.A foto conta uma história. E vocêconta uma história ao mesmo tem-po contando a foto. A história é cor-tada, como a foto é cortada. São frag-mentos, um jogo de calidoscópio.Um dos momentos mais impressi-onantes é quando você estabelecea comparação textual falando nofogo e a gente inclina a cabeça parao texto e sente uma espécie de bri-lho de fogo gélido, uma luz estra-nha que vem do olho da menina eatinge o canto do nosso olho, provo-cando uma sensação geral de es-tranheza, desencadeando uma cer-ta indecisão. Afinal, ficamos no tex-to ou nos deixamos hipnotizar peloolho de mar que nos espreita? Emresumo, mais do que uma simplesleitura, diria que foi um contato,uma experiência. Uma experiênciasensorial, afetando tanto a mentequanto o corpo. Ah, outro aspectointeressante é que você faz um

Page 38: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

196

movimento de câmera sobre a foto,subindo e descendo pelo rosto,transformando-o numa paisagem...árida, como árido é o deserto e o solocalcinado pela seca. Sina Severina,dessa afegã menina.

*****

WEYDSON BARROS LEAL: O Rosatem primo, irmão. Tem equivalen-te. Seu texto sobre a menina, a co-bra, a vida, é lindo. Declino sempreante seus textos.

HANNA, suas versões ao passadocomentários,

continuação da página 176

ABÍLIO TERRA JR: um rosto femi-nino com uma beleza intrigante,vastos cabelos, um olhar de jovemque enxerga além do momento umsonho distante, lábios a espera deum beijo: um quadro que Teófilonunca esqueceu, que cresce aosnossos olhos nos encantando, e queprovoca você, nobre Poeta, a inda-gar dos sonhos de Teófilo, que pro-jetaram um quadro, a tecer um po-ético texto e até descobrir que o au-tor desta maravilha foi um certo Mr.Allan Banks e que Hanna é o nomeda mulher que neste momentotambém me fascina.

ADRILES ULHOA PINTO: Li, gostei.Reli, gostei mais ainda! Incrível afacilidade com que você escrevesobre temas tão díspares, com igualbeleza. Este conto da figura da moçaque chegou ao escritório do Teófilopor debaixo da porta e que tanto re-boliço causou é fascinante. E olheque só chegou a metade! O desen-rolar da história vai num crescen-do (como as ampliações que o Teó-filo fazia) que até parece estarmos

ouvindo o Bolero de Ravel. Só nãogostei do chato do caixeiro viajantedescobrir e vir revelar o nome dapersonagem e do autor da obra. Pre-feria que tivesse ficado para a ima-ginação de cada leitor o seu nome,como ficou a descoberta de comoseria o resto do seu corpo. [Aindabem que ninguém acreditou!]. Des-de o começo da leitura eu a vi decorpo inteiro. E, com aqueles cabe-los, aquele olhar, aquele colo...o res-to é detalhe! Chamei-a de... Bem,deixa pra lá que a moça é sua.

ALEILTON FONSECA: Ler sua pro-sa é sempre uma aventura mágicapara o leitor. Você opera com a su-gestão, imbrica o texto com a ima-gem, cria uma sinestesia estonte-ante. Cresce a sensação narrativa,as palavras vão palpitando, crescea imagem da musa em rouge. E,nesse compasso, já amamos Han-na, de Allan R. Banks, mais que seupróprio pai. Ela se torna a nossanova Gioconda, tão bela e enigmá-tica quanto a diva de Da Vinci. Dá

Page 39: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

197

ASTRID CABRAL: Hanna é uma lin-da figura em claro-escuro barroco:a noite dos cabelos, o dia na faceiluminada. Mas o pincel de Bankssó nos dá o visível. Em que pensaHanna por baixo da bela cabeleira?Por quem ou por que bate seu cora-ção atrás do belo busto? Que veemseus olhos? O invisível, amigo, só apalavra, muito além do pincel, podenos dar. Assim a história de Teófilovai além da figura de Hanna... Co-nhecemos de Teófilo bem mais quea máscara de Hanna. Dele temos ointerior, a emoção; dela a pele, aaparência. Afinal, Soares Feitosanos diz mais que Banks... Quem es-creverá a história do ponto de vistade Hanna, penetrando a esfinge?Você fica nos devendo o outro ladoda história, amigo.

AUGUSTO NESI: Fiquei impressi-onado com o "conto" sobre a pintu-ra que parece foto... fiquei assusta-do como o Teófilo.... e como ele, apai-xonado pelo semblante representa-do na pintura. Adorei.

CARLOS FELIPE MOISÉS: Gosteidemais dessa Hanna e acho queentendo bem o drama do Teófilo. Poruma "fessora" dessas, quem nãovoltaria a ser aluno?

CARMEN ROCHA: Que importa pin-tura ou gravura, inteira ou semi?Que importa o resto de Hanna, sejá basta o rosto? O que importa é otexto de arte em sonho. Sim, ali-viou.

CIDA SEPULVEDA: O estar prontonão significa que estamos acaba-dos, mas significa ter atingido umatal volatilidade de imagens que as

vontade de gritar: "Hanna, meuamor, sai de ti mesma, liberta-teda moldura, e me abraça com teuscabelos".

ALEXANDRE FORTE: Li o conto.Parece conto. E espiando o quadromais de perto, no sítio do próprioBanks, a impressão que se tem éque se trata de imagem viva. Comoescritor, amante das artes plásti-cas, por diversas vezes já destesprova da rara capacidade de captaro sentido e os múltiplos significa-dos estampados numa tela, trans-pondo-os criativamente para a for-ma textual, fazendo da imagem po-esia. E assim a interligação entreliteratura e pintura, numa interfa-ce entre a poesia visual e a canto-ria.

ANDRÉ SEFFRIN: Que belo texto!Um texto que só pode ter a sua as-sinatura. Você, como sempre, dásustos na gente.

ANTONIO MARIANO: Soares Feito-sa, gosto de sua prosa, onde muitovislumbramos as lições de mestrescomo Machado, Gracialiano, Rosa,Carmo Bernandes, Bernardo Elis.Este Um quadro e suas versões aopassado vem reafirmar seu talentode contador de histórias reais ouinventadas. Aqui, constatamos umtalento especial para prender o lei-tor do início ao desfecho do caso.Você deveria investir mais em pro-jetos de maior fôlego.

ANTONIO PALMEIRA: Quem nun-ca foi um Teófilo ou quem nuncateve uma Hanna que atire a primei-ra estrofe...

Page 40: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

198

palavras perdem suas cinéticas ori-ginais, transmutam-se em algo quevai muito além do que podem ima-ginar as bocas que as geram.

EDNA MENEZES: O sonho e a rea-lidade se entrecruzam no ato de seforjar a arte. Ah! Abençoada Arte!Esse texto confirma as palavras deSanto Agostinho, em outro contex-to, mas que encaixam muito bemaqui,Edna Menezes o passado e ofuturo não existem, só o presenteexiste, pois quando se fala do pas-sado é presente e quando se fala nofuturo é presente. A arte é o eternopresente. E se sonhada, inspiradaou imaginada é sempre a represen-tação do mundo sensível. E tambémgostei do estilo "machadiano" dechamar o leitor para o interior dotexto. Metalinguagem pura, e cons-ciência de que o leitor é conformeJauss co-partícipe do texto, diacrô-nica e sincronicamente.

EDUARDO DIATAHY BEZERRA DEMENEZES: Chico, gosto de sua po-ética narrativa: você tem o dom e otalento da coisa. E esse recurso queacompanha o texto de ir ampliandoo quadro é maravilhoso e torna aexpectativa mais intensa.

IZACYL GUIMARÃES FERREIRA:Seu poema em prosa é tambémuma demonstração de que essa coi-sa de poesia visual (sic) tem muitoo que aprender com quem sabe jun-tar palavras e usar o visual comodevido: crescendo no espaço e den-tro do contemplador.JOÃO DE MORAES FILHO: Li Umquadro e suas versões ao passadocom o gosto de quem pinta a me-mória com as cores dos olhos e com

aquela interrogação de quem rece-be um bilhete de amor sem assi-natura. Lembrei-me dos versos deNarlan Matos, a poesia que há em*Theatro* é o susto das correspon-dências diárias, surto dos currícu-los e do tique-taque do corre-corredesse início de século: *Por baixoda porta/ chegam mais contas quesoluções / o preço do pão é o preçoda vida. / E não há nenhum mila-gre marcado para segunda feira.Será* que Teófilo descobrirá uasversões ao passado a tempo? A his-tória se constrói imediata com suascenas e diálogos bem delineadoresda emoção que os personagenstransmitem e elevam a um ambi-ente contemporâneo, sem os exa-geros do realismo travestido. Masaquele olhar de quem está entre afronteira da criação e da realidadeé a mais valia desse Quadro e suasversões. Narrar é mais que contar.É mais que um conceito. Aqui ouçoum ritmo, a voz de um poeta*. So-bre o futuro, não! Isto é assuntocalmo, o futuro.* Serão as próximasversões do presente que lerá pas-sado e futuro nesse misterioso eter-no retorno. Fechadas as portas e asjanelas*: Como haveria de ser oresto? *Será realmente silêncio*?*Como foi dito, (não é mesmo?) oautor não foi encontrado para ob-termos as respostas imediatas!

JOAQUIM SAIAL: Primeiro: aqui obicho por detrás do ecrã do compu-tador, não é poeta. Apenas meroprofessor de História da Arte, sim-ples conferencista, algo escritor eforçado director de revista de cul-tura, para além de destemido artí-fice de 1001 outras coisas. Mas nãopoeta, apesar de uma ou outra vez

Page 41: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

199

poetar. E digo-o sem auto-desdémou outro tanto para os meus cole-gas destas coisas que antes disseque sou. É que ser poeta é ser mui-to acima de mais. Como muito bemdisse a minha conterrânea (porquede Vila Viçosa), Florbela Espanca,«Ser poeta é ser mais alto, é sermaior do que os homens!» Daí que,estamos conversados, nunca maisme chame poeta, coisa que nuncapoderei ser, dado que sou simples eirrevogável homem. Segundo: En-via-me uma short story que medeixa de água na boca. Acho queisso é vingança do destino, dado quemuitos me têm dito o mesmo acer-ca de longo conto que escrevi, situ-ado na ilha de S. Vicente, Cabo Ver-de, em que a personagem princi-pal, Fernando Desamparado da LuzSpinelli, acaba esborrachada naparede do mercado municipal (ou‘plurim de verdura’, como ali se diz)quando o leitor está à espera deoutras desgraças e não da morte dodito cujo. Mas deixemos isso, quenão se trata aqui de falecimento degente mas de uma woman in red,não da vulgar femme fatale, mas deum ser coberto de fogo intenso queenche a tela de labaredas. Diabo,essa de fogo persegue-me. Há dias,eu que ali acima disse que não soupoeta, enviei versos sobre fogo aopoeta (esse sim!) Ruy Ventura, emcontexto de incêndios que estão afazer desaparecer as últimas duasou três árvores que ainda existemem Portugal… Mas lá estou eu afugir da mulher de vermelho. O quese passa é que a partir de agora,quem ler o seu texto há-de semprever essa misteriosa ‘Hanna’ demeio corpo junto ao seu conto evice-versa. Um ficou definitivamen-

te fundido no outro, como uma mes-ma e só entidade. O quadro, da Gan-dy Gallery, em Creekwood Court,McDonough, Geórgia, não tem odesgraçado veneno social do ‘Fado’,de José Malhoa, mas há aqueleombro escondido na penumbra queme remete para a Adelaide da Fa-cada, figura feminina da tela ma-lhoana, que o pintor quis retratarcom a alça da camisa descaída, coi-sa que ela não deixou (disso ficoualiás um pequeno quadro de estu-do). Miséria também tem os seuspruridos… Terceiro: As coisas noBrasil não vão bem, mas onde é queelas vão bem? Olha, Feitosa, aquite envio o (quase) poema e o conto,para aliviar um pouco, que essa‘Hanna’ e sobretudo o seu conto fo-ram o melhor deste dia. Um forteabraço aqui da Cova da Piedade (Al-mada) para si,

JORGE PIEIRO: téofilo é de pana-plo, sim. a jovem também. pois quejá osJorge Pieiro mirei, embeveci-do em andanças por aquele caos por-tátil, quando chorava pedras sen-tindo a solidão. eu pensei que os ha-via perdido para sempre, mas eisque de relance uma recompensapela esperança, e encontro-os. empalavras, em imagens cada vezmais próximas. seria seu esse meunovo delírio? pois que o seja. e obri-gado por mostrar a pista novamen-te.

JUAREZ LEITÃO: A pintura... estamulher que, da montanha, se igua-la às nuvens e, de singela e triste,se faz tarde ou manhã, os seios,certamente ávidos das mesmasmãos que destilaram FEMINA e secondenaram eternamente a trans-

Page 42: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

200

pirar essências. Esta mulher é onosso pecado mais sagrado, aqueleque guardamos no melhor alforjedas estimações, como a farinha-com-rapadura dos comboieiros,para meter a mão e enchê-la de umbom bocado a saciar a fome. A fomenordestina de mil anos, a fome ar-dente dos seminaristas. Aquelesque fomos e ainda somos. O poemae a moça vêm em boa hora para asolidão desta madrugada.

LUIS MANOEL PAES SIQUEIRA:Será que se a gente colocasse umanuncio num jornal, aparecia al-guém parecido com ela, hein Fei-tosa, que achas? Linda mulher.Apaixonei-me por uma assim, re-trato de formatura antigo, num cor-redor do Colégio Agnes Erskine noRecife. Ela era de uma turma demoças formadas em 1920. Nome:Argentina. Belíssima. Que negóciomágico esse negócio de beleza demulher. Já assististe MALENA, deTornatore O mesmo diretor de CI-NEMA PARADISO. Assista. O nomeda sereia é Monica Belucci. E voulogo lhe avisando: Eu me apaixoneiprimeiro. Só um conto bonito comoesse teu pra gente esquecer umpouco a merda que o PT anda fa-zendo e envergonhando o Brasilinteiro. Vou copiar e guardar namemória o retrato da moça. E nãosofro de priapismo!

MARCO AQUEIVA: apreciei muitís-simo está comovente parábola daimagem primordial e cara, doloro-samente fugaz e que por isso mes-mo tentamos reencontrar. Doloro-samente embalde. Tentativa dereencontro com o sonho. A infân-cia não só são ruínas. O seu texto o

prova, transcendendo muito a ex-tensão da tela.

MARIA DO CARMO FERREIRA:Sua formatação, sua "letra", sem-pre instigante, novidadosa, inven-cionista, ritmo-em-prosa e, sobre-tudo, o quadro. Dá vontade de gritarplágios: Per ché non parla? Para-béns em dobres & redobres!!

MARIA DA PAZ RIBEIRO DANTAS:Sobre seu conto, a chave dele estánaquele final, quando se chega àsuposta identidade da figura pinta-da no quadro: chegando-se à suaorigem no tempo, chega-se ao au-tor do quadro; chegando-se a este,tem-se o nome da personagem. Sãodados que satisfazem o lado realis-ta (utilitarista) da grande maioriados seres humanos. Mas há umoutro hemisfério do ser que escapaa essa instância: é o sonhado. Vocêmostra que Teófilo ressonhou aque-la figura - que alguém, por sua vezjá havia sonhado, pelo pincel do pin-tor... E por que Hanna, embora te-nha a mesma aparência da ima-gem retocada por Teófilo, nada tema ver com o sonho dele? Simples-mente porque há um conflito inso-lúvel entre sonho e realidade. Cadasonho é único. É feito de camadasde intimidade, de imaginação."Freud explica", sim. Mas no fundo,a busca da realidade ( no sentido deconflito, de neurose) através da psi-canálise, que o desmascara (e quepode ser um pesadelo) implica amorte do sonho. Por isso não dá pradizer o que vem depois... Seu textoé um insigt de tudo isso. Sobretudoda relação da arte com o real.

Page 43: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

201

MIGUEL CARNEIRO: O mistério serevela em grandeza no rosto puerile belo que nos reporta a essa ima-gem perdida em lembranças quetambém nos reporta a estampas desabonete Eucalol e figuras impres-sas em latas de metal de biscoitosimportados. Só um rosto e aqueledesejo de vê-la nua, de corpo intei-ro, para que nossa curiosidade sedesvele e esse desejo se concretizepor inteiro. Por si só "Hanna" nosremete a pronunciar em silênciosaboreando cada som emitido. Oconto é belo! E a tua pena magis-tral vai aos poucos nos conduzindopelos meandros da beleza e do de-sejo. Quem dera, nobre Bardo cea-rense e universal que a gente ti-vesse uma "Hanna" dessas em nos-sa cama ao menos uma vez no anoaliviava a obrigação cotidiana deengolir sapos ao amanhecer.

MANTOVANI COLARES: Agradeçoa viagem literária proporcionada noinstigante texto. Ele tem o sabor dovento, das quermesses, das pálidasfotografias moldadas pelo tempo, emcontrate com a pintura de Hanna,avivada por cores e sabores imagi-nados. Você recusa um desfecho.Pensando melhor, des-fecho é anegação (des) do fecho. O prefixo nostrai. Daí que um desfecho é quan-do se deixa algo aberto, como emsua bela crônica, a nos causar asensação do gosto na boca jamaisexperimentado, daqueles carnudoslábios da gravura que se fez encai-xe sob a porta de quem há muitoesperava um chamado do destino.

NICODEMOS SENA: Li o teu "Umquadro e suas versões ao passado",que me fez refletir sobre uma ques-

tão presente em boa parte da me-lhor Literatura, em todas as línguas,desde "As mil e uma noites" até"Jardins de caminhos que se bifur-cam", do J. Luís Borges: a questãodos limites entre o sonho e a cha-mada "realidade". Intrigante é que,no teu conto, a decifração do enig-ma não veio da "realidade", poisninguém a quem o narrador per-guntou soube informar algo sobrea jovem retratada no quadro. Tam-pouco no sonho ele encontrou ex-plicação, pois, ao garatujá-lo quan-do retornou à vigília, o sonho sedesenhou incompleto, com a partede baixo da mulher se recolhendonas brumas de seu esquecimento,onde o homem costuma refugiar-se para não enlouquecer. Afinal, foia intrigante figura do caixeiro via-jante - esse prestidigitador do tem-po, capaz de estar em todos e emnenhum lugar -que revelou o enig-ma: tratava-se do quadro Hanna, donorte-americano Allan Banks, nas-cido em 1948. Mas alguém é capazde discernir o que é verdade e o queé mentira nas mil histórias que umcaixeiro viajante vai recolhendo emsuas andanças? Apesar disso, poronde ele passa, todos o inquiremavidamente; e é assim que a "men-tira" converte-se em "verdade", e apalavra adquire o status de arte!NICOLAU SAIÃO: O texto cresce ea foto cresce - e nós crescemos comeles, com aquela foto de uma lindamorena, de uma jovem que - com-passivamente - nos remete para alembrança do nosso amor: não sei,mas cá comigo foi assim, sobre oseu rosto pousou o rosto da mulheramada. Por um passe de mágica,decerto, ou por mansa loucura, en-cantadora loucura, de coração ena-

Page 44: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

202

morado. Ou pela magia do pintor?Hum!, que os pintores têm por ve-zes destas prestidigitações, ilusio-nando-nos com o pincel de tal ma-neira que tudo passa a ser verdadeverdadinha mais verdadeira que aoutra. Ouço alguém dizer do lado:"Pois, seu Nicolau: são como os po-etas, não o sabia? Olhe por exem-plo o Soares Feitosa: começa a es-crever, digamos que vindo do norteou do sudeste e, daí a bocado, pelamagia do seu verbo, já está no gran-de sul, no sudoeste e ao pé do mar,lá vai ele subindo aquela monta-nha, ei-lo que bordeja aquele bos-que, agora repousa sob aquela ár-vore benfazeja.". (E aqui um peque-no detalhe: tempinho atrás, man-dou-me o nosso Poeta uma delíciade escrita sobre a questão das an-danças, das paisagens passeadas -e eu prometera escrever a propósi-to. Mas, já se sabe, um homem põee as circunstâncias da vida dis-põem... Já é caso velho, tributado earquivado - este de se querer e de-pois... Digamos que o pedaço de es-crita, que ficou ali mesmo atrás,epigrafa o gosto que tive de o ler semter podido corresponder). Mas nãoquero alongar-me. Digo para finali-zar que a escrita e a pintura, verbigratia quando se nos apresentamassim, nos comunicam novas ale-grias. Novas sabedorias, quero eudizer. E não foi isso que o Francisconos buscou dizer na sua saborosa einimitável maneira?

PAULO REZENDE: Você está cadavez mais íntimo das palavras, es-tão todas "comendo na sua mão".Sonho de qualquer escritor. Muitoboa a história da Hanna, mais queisto, muito bem contada.

RAFAEL BARRETO: o ensaio-con-to é fantástico, a eterna perquiri-ção acerca do belo, uma das cons-tantes angústias do humano.

RICARDO ALFAYVA: Não farei co-mentários técnicos desta vez, direiapenas que chei delicioso o texto.Muito sabor. A moça é linda, e vocêconduz bem o suspense, aprovei-tando os recursos de ampliação gra-dativa da imagem até que a pintu-ra, excelente, apareça diante denós em todo esplendor, o que nosleva a compreender e compactuarcom o sentimento experimentadopelo personagem principal. Ah, sim,desculpe somente ter dado retornoagora. Esta mais recente edição deNozarte foi um processo muito difí-cil, absorvendo muito tempo. Hojefinalmente pude ir até lá com cal-ma. Faz já algum tempo, li um com-pêndio de psicologia, no qual o au-tor mencionava que sempre nosapaixonamos por um ente idealiza-do, que nunca corresponde ao real.Ele demonstra os processos psíqui-cos inconscientes envolvidos, quefazem com que durante o que cha-ma de "período do encantamento" oenamorado apenas perceba no ob-jeto de seu amor aquilo que se achadisposto ou interessado em ver. Écurioso, pois a partir dessa leiturae revendo minhas próprias paixõesao longo da vida, concluí, um tantochocado, que na verdade semprenos apaixonamos por uma... ima-gem.

RODRIGO MAGALHÃES: Conheçoas suas artimanhas. Isto não é umconto. Aliás, isto até zomba da pre-tensão de contar do conto. Fizesteum ensaio, um ensaio-conto. Ago-

Page 45: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

203

ra, um ensaio sobre o quê? Sobre onosso universo senhado? Sobre ateoria da melhor estória, que deveser a melhor contada? Sobre a pe-renidade do instante-belo, sem pas-sado e sem futuro? Sobre o que éser um Teófilo, um homem à caçada beleza, um Quixote?

ROSANE VILLELA: Você é um "pa-rabolista" de primeira, um equili-brista de significantes ocultos nacorda bamba dos significados daspalavras. "Um quadro e suas ver-sões ao passado" foi outro texto queme levou a indagar se, além da di-versão, do prazer que sua leituranos dá, há um outro sentido. E, comosonhadora ambulante, achei quevocê, através de seu texto, queriametaforizar a importância do sonhona vida das pessoas, mas não o so-nho que se cumpre, pois o desejode "estar a sonhar" supera muito ofato dele "estar a se concretizar". Narealidade, o presente só importaquando o sonho não desmancha-se,isto é, quando o "estar sonhando"continua, e é acalentado, aumen-tado até, através de uma lupa, "re-tocado" de vermelho e, aqui, pode-se notar a escolha vocabular do "re-tocado" que implica uma volta con-tínua ao sonho, corroborada na au-sência da parte de baixo do corpo damulher e da nebulosidade de umdos lados de sua imagem, o que lhepermite divagar sobre ela, não cor-rendo, assim, o risco de "encontrá-la". O mesmo acontece com o pas-sado. Ninguém quer acreditar naprocedência do quadro, pois não éisso o que importa; todos queremcontinuar "sonhando" e o futurosobre ele também é insignificantequanto ao seu real valor, que é o de

ele estar sempre a se construir.Daí, adivinhos e feiticeiros virema estar sempre desempregados, in-clusive Teófilo... Enfim, a maneiracomo a gravura chegou às mãos deTeófilo. Ela simplesmente surgiu,sem explicação. E sonhos podemsurgir assim também, trazidos pelovento ou "restaurados" e "rascunha-dos no ar". Se Hanna veio pelo ven-to, ela veio sem dono, livre comoqualquer sonho.E se foi restaura-do, já existia e nunca, realmente,findara. Esta é a ideia que perpas-sa todo o texto: a sua atemporalida-de e liberdade, e a sua importânciana vida humana. (daí as várias ver-sões).

SILAS CORREIA LEITE: Benza-Deus. Moinhos e velcros? Que des-véu é esse? O Feitosa, na prosa,quer pegar a gente pelo colarinhoda palavra? Onde já se viu isso?Onde há fumaça há salvos de in-censos? Adorei o conto com técni-ca meio borgiana que ora conta, oradesmonta, ora joga bruma, depoissapeca introjetando ensaio, feitoestúdio de descombros, enlivra odizer e joga água palavrática na fer-vura. Já pensou? Ah, a repeito doFeitosa, há outra contação, é claro,sem tirar nem pôr. Soares Feitosa,tudo o que se dizer dele é pouco. Eleé magnânimo. Tem um site boni-to, faz uns agitos legais, coloca aalma no que faz, escreve bem parcaramba, coloco-o junto com o Eror-ci Santana e mais outros/algunscomo um dos melhores da poesiabrasileira contemporânea, pouco oconhecemos no táctil/ presencialmas o temos como se fosse, perdão,alma gêmea - bem aquilo que can-tou o Rei Soares Feitosa é "um

Page 46: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

204

amigo de fé um irmão camarada.Ele é uma alma generosa no mun-do às vezes frio-bruto da web. Dá noso Palco Iluminado do JP e ali todoscaem feito um chão de estrelas.Nesse mundo da net, ele, certamen-te, tem estrela própria, luz próprio,aura e halo próprios. Fino, huma-nista, inteligente e verdadeiro, co-loca inteligência cult na Internet,abre páginas, semeia poesias, fazdas tripas chips e assim vai o bole-ro-blues-baião. Um agitador-promo-tor lítero-cultural. Fora de série oufora do sério. Citando o saudosoGonzaguinha, ele é exatamentegente mais maior de grande. Te-nho-o em grande valor, é de ótimoquilate, saca os lances, pinta e bor-da, o site dele, aliás, já entrou prahistória. Já pensou? Soares Feito-sa faz falta quando eventualmentedá um chá de sumiço, queremossaber quais as últimas dele, lemos/vemos/cremos nele, é rotineiroseu estar conosco, seu site é refe-rencial, o indicamos para amigos,parentes, alunos, colegas, e todosdizem, aleluia, o JP é dez! JP é sig-no ficante e Soares Feitosa em seucanteiro faz brotar o que melhor es-peramos nas nossas relações: hu-manismo, ética, a arte como liber-tação, para citar Bandeira. E não éisso que esperamos todos, das pes-soas com as quais nos relaciona-mos, muito mais ainda quando de-positamos nossos criames nasmãos-tabuleiros delas? Às vezes aliteratura é clube de egos, panelas,bueiros, esgotos góticos, mas como Soares Feitosa é uma no cravo eoutra na iluminura. Ele divulga,detona, alumbre, viça, bate o pênal-ti, cabeceia pro gol e ainda veste anúmero um. Sorte nossa. Não exis-

te gente fina assim na web, é joiarara, coisa rara. Soares Feitosa énota mil em verso e prosa.

SOLANGE STOPILIGIA: Agora cedo,na calma da manhã deste meu sin-gelo local de trabalho, li calmamen-te teu texto e digo-lhe ao mesmoque indago: O que esperar de talquadro? Das palavras firmes e en-volventes de tal mistério? Cadaqual em seu íntimo, cria a sua ver-são fantasiosa em prosa sobre talhistória. Ou seria em poesia? Tam-bém claro que poderia. Bem Se-nhor, "coronel" assim chamado porum rapaz que deixou recado; creioser um dos melhores textos a melevar a longos devaneios.

TERESA SCHIAPPA: Desta vez,contudo, a advertência não se diri-ge à jovem e sim aos curiosos lei-tores da história, que desejariamsaber mais (demais ...) sobre a per-sonagem do quadro, cativa dos so-nhos de Teófilo. Do encanto da pin-tura às encenações fotográficas queo projectam em dimensões cres-centes - embora nunca de corpo in-teiro - sobressai a recusa do "modoacontecerá", a poética do carpediem ("colhe o dia") onde o olhar dapersonagem e a vontade do seu po-eta nos deixam. Mas será que feiti-ceiros e adivinhos estão mesmo to-dos no desemprego? Um abraço gratopor este momento de "vidência"!

VICENTE MONTEIRO: Sabe, umadas coisas que mais me impressi-onou no site foi o jogo com as ima-gens. Espetacular, já roubei várias.Quanto ao texto, me deixou um va-zio doloroso como um fim de um fil-

Page 47: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

205

me com continuação. Só tenho issoa dizer. Vazio.

WALDIR BARCELOS: Permita-medizer que o seu trabalho é belíssi-mo. Encontrar na internet algo tãomaravilhoso somente nos leva acrer que, mesmo que o mundo e arealidade caminhem em sentidocontrário, a esperança de que tudopossa ser diferente evidencia-se.Sou professor de literatura. Visitoconstantemente seu site e o indi-co aos meus alunos. Sei que isso épouco para um trabalho tão imen-so quanto o seu. Porém, peço-lheque considere que cada visita querecebe tem um valor imensurável,possui um mínimo do grande amorque você dedica à vida.

WEYDSON BARROS LEAL: ótimoo conto, o quadro, o Teófilo, a escri-ta. Você, com todo esse conhecimen-to de religião e filosofia - não admi-ra o nome "Teofilo" - acrescido detodo seu conhecimento de Kafka,criou um conto dos bons. Podia atéser mais longo, que você tem fôlegopra isso. Não sei se todo leitor lheacompanha. Enfim, coisa boa, comotudo feito por você.

WLADIMIR SALDANHA: Depois da-queles joelhos com mel, só mesmoestes ombros - o que se vê e o quese imagina - para devolver-nos osonho, a doçura possível. A outramanga? Seu texto é um laço ver-melho, mais para ver que desatar.

*****

Page 48: MA PEQUENA LIÇÃO DE CAVALARIA - jornaldepoesia.jor.br · Há uma im-propriedade nesta resposta de há pouco, aqui está: Só os equinos cor- ... Veja: O bicho correndo de lado,

206

“Grita, para ver se alguém te responde” (Jó, 5,1)

Sim,a porteira do caminho do rioainda era a mesma.

A direção do rio também;presumo não tenham mudado o rio.

O benjamim,disseram, morrera na Seca do 93;arrancaram-no pelo tronco.

Não replantaram sombra,nem pássaro.

O banco de aroeira,racharam-no em lenha de fogo;O curral das vacas,também racharam-no.

O chiqueiro das ovelhas,à esquerda da casae o dos bodes,à esquerda do das ovelhas,sumiram todos.

O batente da porta-da-frente,e abaixo dele, outro batente,

Réquiem em sol da tarde