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"Missa" faz qualquer um acreditar em MozartARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
Menos conhecida que o "Requiem", a "Grande Missa" em d menor a outra obra sacra fundamental de Mozart (1756-91). Todas as caractersticas do estilo tardio esto aqui: harmonia refinada, nfase no contraponto, audcia formal, dramatizao operstica. A "Grande Missa" absorve Bach e Handel e faz deles um campo novo, que se abre em Mozart para receber, mais tarde, o esprito de Beethoven.
Falar de estilo tardio em Mozart talvez seja enganoso. S "tardio" para ns, que sabemos que Mozart, aos 26, tinha apenas mais nove anos de vida. Para o compositor, essa msica uma abertura, no uma concluso.
Mesmo a simplificao de meios -melodias mais diretas, foco orquestral definido, tonalidade transparente- no representa uma visada para trs, de algum que j viu e j fez tudo, mas sim um avano: representa, isso sim, a fixao do estilo clssico, no limite de suas possibilidades.
O prprio Mozart falava na sua ambio de chegar a "um estilo afetivo mais elevado de msica sacra". Que esse estilo deixe depois suas marcas, tambm, numa pera como "Don Giovanni" (que recicla, inclusive, alguns temas anunciados na "Missa"), provavelmente um fato involuntrio, num domnio em que tanto se cruza. Mas mais interessante se no for.
No h motivo conhecido para a composio dessa "Missa", de 1782. Mozart talvez a tenha escrito para uma cerimnia votiva, por ocasio de seu casamento ( o que sugere uma de suas cartas). Ou talvez pensando num concerto para comemorar seu retorno a Salzburgo.
Nenhuma hiptese explica por que a "Missa" ficou inacabada. A segunda parte do "Credo" e o "Agnus Dei" inteiro nunca foram nem sequer esboados.
Para outras sees, s o que se tem, em alguns casos, so esboos, ou a partitura do solista. O "Gratia Agimus Tibi" se interrompe no compasso 12.

Virtudes
Entre as virtudes dessa nova gravao, regida por William Christie, uma especial foi preservar os fragmentos como fragmentos. O efeito anlogo aos "escravos" de Michelangelo: torsos saindo da pedra, imagens sem igual da passagem do nada (pedra bruta) ao tudo (pedra esculpida). A "Missa" tambm no tem igual. Ou pelo menos no a primeira parte (at o "Credo"). Dali em diante, a inspirao se abate. Mozart menos inspirado ainda mais inspirado do que a imensa maioria daquela minoria de compositores que podem ser comparados a ele; mas talvez nessa descontinuidade se encontre um motivo para o abandono da "Missa".
O que existe, de completo, no pouco. E forma, no conjunto, uma das maiores obras do perodo vienense de Mozart. Momentos como a sequncia de notas agudas, alternadas entre as duas sopranos, e monumentos como a grande fuga do "Cum Sancto Spiritu" resistem a qualquer tentativa de descrio. Muito maior do que a gente, essa msica consome as palavras, no fogo do sentido. Ela ininteligivelmente ininteligvel.
Inteligivelmente, pode-se notar a engenhosidade harmnica de construir sequncias conduzindo a msica, sem interrupo, da terra dos bemis para a dos sustenidos. Nossa sensibilidade tonal h muito perdeu o ouvido para essa conotaes, mas elas contribuem, a seu modo, e como nunca antes, para o drama da msica.
As dissonncias so mais facilmente ouvidas e tm papel semelhante, no plano da melodia.
Nada disso se faz inteligvel ou ininteligvel sem a inteligncia escolada de msicos como Les Arts Florissants. Que Christie e sua orquestra venham se voltando regularmente para Mozart uma bno. Detalhes no so detalhes para msicos to preocupados com o estudo da interpretao de poca. Mas no existem detalhes na msica: tudo msica. At a pronncia do latim tem efeito sobre as cores do canto (no caso, latim como se falava na ustria - no na Itlia).
A soprano Patricia Petibon vem sendo prestigiada por Christie h vrias gravaes e com justia. Tem a conscincia musicolgica no lugar, mas tambm tem cabea, corpo e membros. Lynne Dawson, sua parceira nessa "Missa", que virtualmente uma composio para duas sopranos, coro e orquestra, j gravara a mesma pea antes (com a Academy of Ancient Music); mas se beneficia, aqui, do contraste entre sua voz, controlada e calma, e os encantos mais ligeiros da francesa.
Comparada a outras interpretaes, que aproximam Mozart do romantismo -h uma inesquecvel de Karajan, por exemplo- essa pode soar menos comovida. Mas a "Missa" vem antes da "Missa Solemnis", de Beethoven, no depois. Se d outra impresso, aqui e ali, isso revela a medida em que Mozart, para ns, pai e filho de Beethoven. Sua msica comea a inventar Beethoven e forte o bastante para se deixar inventar por ele depois, sem deixar de ser Mozart.
No havia nada de mais alto, para Mozart, do que a msica sacra. Talvez esteja a outro motivo para o inacabamento da Missa", como do "Requiem". Compor como um deus uma coisa; compor como Deus seria pesado demais, at para ele.
Inacabada como est, a "Grande Missa" talvez no seja o bastante para fazer um ateu acreditar em Deus. Mas faz qualquer um acreditar em Mozart - o que talvez seja a mesma coisa.

Anne-Sophie Mutter grava o novo velho Mozart ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHAAnne-Sophie Mutter deu seu primeiro concerto aos nove anos, tocando o "Concerto para Violino e Orquestra" de Mozart (1756-91). Estreou em disco aos 13, tocando os "Concertos" n 3 e n 5 de Mozart, com a Filarmnica de Berlim, regida por Herbert von Karajan. Chegando agora aos 30 anos de carreira, e aproveitando a ocasio -o festejado bicentenrio de nascimento do compositor, em 2006-, ela grava a integral dos "Concertos", com a London Philharmonic Orchestra regida por ela mesma.
Esse o primeiro de trs projetos de Mutter no ano Mozart. At o final de janeiro sai um CD com trs "Trios" (K. 548, 542 e 502), que ela toca com o marido, Andr Previn (piano), e o "proteg" Daniel Mller-Schott (violoncelo). E em agosto vem a integral das "Sonatas para Violino e Piano", com Lambert Orkis, seu parceiro na integral das "Sonatas" de Beethoven (lanada em 2000).
O som de Anne-Sophie: poderoso, direto, expressivo -qual a palavra menos errada para generalizar o que to particular? Virou quase lugar-comum dizer que ela tem mais regularidade do que excepcionalidade. Mas fica difcil aceitar essa opinio, quando se ouve uma linha meldica como as que ela toca no movimento lento do "Concerto n 5", ou em qualquer movimento da "Sinfonia Concertante para Violino, Viola e Orquestra", interpretada lado a lado com Yuri Bashmet, para fechar o disco.
Exemplo do que ela faz numa linha lenta: a frase cresce na direo da ltima nota, que ganha um "vibrato" especial. At a, nada de to diferente. O que distingue a violinista alem o fato de que, a caminho dessa ltima nota, eventuais notas longas recebem, cada uma, um "vibrato" diferente, ou mesmo, em alguns casos, "vibrato" nenhum, o que vira tambm um tipo de efeito expressivo.
J o que ela faz nas rpidas toda uma enciclopdia de arcadas, ataques e dinmicas, onde o que pequeno e delicado chega a extremos de delicadeza e mincia, assim como o que grande e expansivo pode ficar enorme e dramtico. Se variaes dessa ordem nem sempre so reconhecidas, deve ser por conta da sensao constante de propulso, ou confiana -essa sim, transcendentalmente regular.
Vale ressaltar que estamos muito longe, aqui, de qualquer tentativa de interpretao "autntica" da msica de Mozart. Tanto a orquestra (comparada pela violinista-regente, na entrevista "pop" do encarte, a um "automvel Porsche -vibrante e cheio de juventude"), quanto a prpria Mutter fazem um Mozart que se aproxima muito mais do repertrio gravado da primeira metade do sculo 20 do que do registro musicologicamente imaginado de fins do sculo 18.
O efeito tem algo de curioso, porque, nessa era de superauto-conscincia estilstica, tocar como um Heifetz ou Oistrakh comea a soar, tambm, como um tipo especfico de autenticidade. Assim como existe um Bach moderno dos pianistas (a essa altura, vrios Bach), existe tambm um Mozart "antigo" do sculo 20; e esse Mozart que Mutter reinventa, a seu modo, com um sentimento de adequao que, no caso dela, j d para dizer que obra de uma vida, tanto quanto a vida de uma obra.

Boris Belkin arruina Mozart em concerto para ser esquecidoARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHAO que uma platia espera de um concerto? Cada um de ns tem a chance de escutar em casa os maiores msicos do planeta, sem fazer mais esforo do que para acender a luz. O rdio e o CD nos acostumaram mal, e estamos melhor servidos de msica, agora, do que qualquer outra gerao. Nessas condies, o que sobra a um msico oferecer no palco?
Descontado o fascnio de ver algum dolo ao vivo e descontadas as diferenas de som, que no so pequenas, o concerto ao vivo ainda guarda a mstica do irrepetvel, da noite inspirada em que a msica fica maior que si mesma, e a platia e os msicos tambm.
Oxal tivesse sido uma noite dessas. Mas o concerto, tera-feira passada, do violinista Boris Belkin e a Master Chamber Orchestra, no Teatro da Hebraica em So Paulo, foi praticamente o oposto deste ideal. Neste concerto, no houve economia de erros, mas pior do que isto escutar a msica vazia, tocada de fora, para no dizer com desleixo.
Um violinista como Boris Belkin sempre se salva com a exibio, com o virtuosismo. Mas Belkin tocando Mozart parece to fora de lugar como um Robert de Niro fazendo Hamlet. Sua melhor presena musical veio tona nas cadncias, mais adequadas a Paganini do que a Mozart, mas que lhe permitiram, ao menos, mostrar o que sabe fazer com os dedos.
Nada disto salvou uma interpretao sem vigor e graa, arrogantemente alheia a tudo o que j se escreveu e tocou nesses ltimos 30 anos, no captulo da msica do perodo clssico, e confiante de que todo e qualquer estilo musical fica sempre bem quando interpretado maneira do romantismo russo. O problema que nem o romantismo russo fica bem, como se viu na ``Valsa-Scherzo" de Tchaikovski, traduzida em pea de salo.
Os mesmos problemas valem para o concerto para dois violinos, em r menor, de Bach, onde Belkin teve a companhia do spalla Mark Blekh. Agravado pelo acompanhamento frouxo da orquestra e um cravo s de cenrio. Apresentada como uma orquestra de ``mestres", com msicos ``de vrias grandes orquestras", a Master reuniu um grupo visivelmente cansado de msicos aparentemente mal ensaiados.
Sozinha, na serenata de Tchaikovski que abriu o programa, a orquestra no soou to mal, embora tenha decado bastante do primeiro ao ltimo movimento.
No sei se houve mais de um bis. Depois de escutar o terceiro movimento da ``Sinfonia Concertante para Violino e Viola" de Mozart, desfigurado a um ponto tal que at o mais tolerante dos crticos perderia a pacincia, achei que podia dar o concerto por encerrado.
um consolo, ao menos neste caso, pensar que um concerto ao vivo no se repete nunca. E um consolo, tambm, saber que, na msica, se no na vida, a gente esquece das coisas ruins com a mesma rapidez com que esquece de um mau filme. A srie da Hebraica traz maravilhas pela frente, e deste concerto eu felizmente j me esqueci.

Buchbinder conduz obras de Mozart com talento e alegriaARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Trs anos atrs, o pianista austraco Rudolf Buchbinder esteve em So Paulo com a Orquestra de Cmara de Zurique para tocar e reger nada menos que os cinco "Concertos para Piano e Orquestra" de Beethoven (1770-1827), em duas noites. Agora voltou, com a mesma tima orquestra, para fazer trs concertos de Mozart (1756-91), numa noite s.
Comeou com o "Concerto em Sol Maior K. 453", obra-prima de 1784. um dos mais inovadores de Mozart, com um esquema harmnico incomum, que inclui um segundo tema modulante e uma dramtica descida para a submediante bemol (mi bemol menor) antes da volta para o tema principal. Isso linguagem para especialistas; mas qualquer ouvinte salta da cadeira ouvindo a mudana de harmonia, que aparece trs vezes no primeiro movimento.
No ltimo, marcado "Allegretto", Mozart compe uma srie de variaes, bem no esprito de pera cmica. A quarta delas, em modo menor, faz prodgios de cromatismo e aproveita para arrojos de orquestrao, como os primeiros violinos dobrados duas oitavas abaixo pelos fagotes, enquanto os segundos violinos so dobrados uma oitava acima pelos obos.
Exemplos assim bastam para mostrar de que msica se est falando: o paraso das aparncias sustentado pelo engenho mais sutil. Tudo isso para entender o modo ao mesmo tempo to natural e to cultivado de Buchbinder ao interpretar os trs concertos.
Ele um desses artistas que exalam domnio total da msica. No so necessariamente os maiores msicos do mundo; e os maiores nem sempre tm um domnio assim. Mas aqui e ali existe uma personalidade dessas, capaz de se situar na msica com maestria absoluta, compreendendo tudo aparentemente sem esforo, exceto uma dose de concentrao.
Ele foi o mais jovem aluno jamais admitido no Conservatrio de Viena, aos cinco anos de idade. Hoje com 60, conhecido como o intrprete da integral para piano de Haydn (1732-1809) e das 32 sonatas de Beethoven, sem falar nos 27 concertos de Mozart que ele gravou ao vivo com a Sinfnica de Viena.
A inteligncia uma virtude meio mal falada. Mas no h outra palavra para se referir a essa capacidade, racional e sensvel, de comandar repertrios inteiros dessa ordem. Que Buchbinder o faa com tamanha tranqilidade e ao mesmo tempo funda alegria - seja num concerto como o "abstrato" K. 503, em d maior, seja mesmo no "trgico" K. 466, em r menor - s aumenta nossa admirao.
A gargalhada da segunda-violinista Hiroko Takehara, logo depois do ltimo "Rond", deu bem a medida do bem-estar de todos ali, fazendo msica; era a imagem tambm de quem ouvia, do lado de c.

De certo modo, a prpria vida tornou-se mozartiana ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA O "Concerto n 8" para piano e orquestra, de Mozart (1756-91), comea com uma frase incisiva, mas simples, da orquestra em unssono. Logo em seguida, entra o piano, respondendo a essa frase. O padro de pergunta e resposta repetido e a orquestra, ento, segue em frente sozinha, trabalhando o primeiro tema do "Concerto".
um exemplo entre milhares, mas serve para demonstrar o engenho e arrojo do compositor, que aos 21 anos comandava o estilo clssico como ningum (exceto seu precursor e mestre, Haydn). Coisas que talvez passem batidas, a essa distncia no tempo, no deveriam: a comear pela entrada do piano, contraposto dramaticamente orquestra, como um ator que entra em cena frente de uma multido.
Se esse papel dramtico do piano funciona, isso se deve, tambm, e acima de tudo, compreenso da tonalidade como linguagem narrativa. Na prpria essncia do estilo clssico -grosso modo, o estilo que est entre o barroco e o romantismo-, pode-se observar essa inteligncia das foras de tenso e resoluo na msica, que agora se multiplicam, organicamente, desde um compasso isolado at um movimento ou uma composio inteira. No por acaso que a orquestra, no incio do "Concerto n 8", ataca na tnica; nem por acaso que o piano responde na dominante.
O exemplo resume, ainda, a combinao de vertentes musicais italianas e alems, empregadas de modo original por Mozart. Em outras palavras: a nova arte da pera (do sc. 18) e a velha arte do contraponto (sc. 17) se unem, no contexto criado por essa nova idia dramtica da tonalidade. O pulo-do-gato justamente a possibilidade de expressar de dentro, com meios musicais, uma ao teatral implcita. Ou mesmo explcita -que o que faz de Mozart um dos maiores compositores da histria da pera, autor de obras-primas como "Don Giovanni", "As Bodas de Fgaro" e "A Flauta Mgica".

Enigma
Desde suas primeiras obras, fica evidente essa nova compreenso da linguagem tonal, que lhe permite desenvolver roteiros musicais com uma fluncia incrvel, nos mais variados gneros. "Concertos" para piano e orquestra como os de n 20 e 23 influenciaram geraes de compositores, desde Beethoven (no sc. 19) at Ravel (no sc. 20) e alm. Quartetos de cordas como o K. 458 ("A Caa") e o K. 465 ("As Dissonncias") e quintetos como o em d maior e o em sol menor definem essas formaes em termos instrumentais, tanto quanto em termos de possibilidade expressiva.
A "Grande Missa" em d menor e o (inacabado) "Rquiem" permanecem no topo da lista do repertrio religioso, em posio anloga das "Sinfonias" de n 39 a 41, das "Sonatas" para piano K. 330-333, da "Serenata" n 10 para sopros ("Gran Partita") e do "Concerto" K. 622 para clarinete e orquestra, entre outras obras.
Em todas elas, permanece vivo tambm o enigma maior de Mozart. Uma anlise tcnica pode iluminar as originalidades do compositor, mas ningum at hoje foi capaz de explicar por que, em frases que, no papel, parecem idnticas s de qualquer outro compositor do perodo, essa msica toca em dimenses humanas que ningum conheceria sem ela. A luz sombreia e a sombra ilumina, nessa arte que, ao mesmo tempo, da alegria e da compaixo, e que parece ver toda a vida humana, ao mesmo tempo de todos os lados. Vale dizer que, depois de Mozart, nalguma medida para todos ns, a prpria vida tornou-se mozartiana.

Douglas coloca Beethoven no mundo de MozartARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTASBarry Douglas e a Camerata Ireland abriram o concerto com Mozart (1756-91) -e no se afastaram mais dele. As qualidades do conjunto so mozartianas: controle das linhas, luminosidade, uma grande calma subjacente a tudo. As qualidades do pianista so as mesmas, levadas a outra potncia. verdade que nem sempre o conjunto consegue se manter nessa excelncia mozartiana. Mas as fraquezas a gente esquece logo, e o que fica da apresentao de anteontem uma memria boa: um bom concerto, despretensioso, bem tocado.
O "Concerto n 12 (K. 414)" foi escrito para o prprio Mozart tocar, em 1782. Isso explica o carter extraordinrio das melodias. Num concerto clssico, cada entrada do solista tem funo dramtica, equivalente s entradas de um personagem. A sequncia tonal desfia um teatro sem palavras. Mas no aqui: o nico caso em que Mozart se entrega livremente ao gnio da melodia, sem constrangimentos nem metforas.
E as melodias so tantas que nem permitem desenvolvimento, como normalmente seria o caso. Tanto melhor para Douglas, que tem um talento especial para escalas e outras figuras, que fora de Mozart no so nada e, em Mozart, so quase tudo.
Douglas regeu sentado ao piano ou pulando de volta frente do conjunto. Sua memria e fluncia so impressionantes; um msico totalmente confiante, que inspira confiana. No chega a ser um grande regente, mas nem parece ter essa ambio. Mostra-se vontade com os msicos, que esto vontade com ele. E o histrionismo dos gestos no implica histrionismo da msica. Ele se senta ao piano e a delicadeza e clareza das linhas so exemplares.
Isso fez do "Concerto n 2" de Beethoven (1770-1827) um concerto mozartiano tambm. O que faz sentido, mas no comum. Para ns, o Beethoven da primeira fase acaba influenciado demais pelo Beethoven maduro. Mas, neste concerto, escrito seis anos depois do de Mozart, o que h de notvel o surgimento de uma voz dentro da outra: a voz de Beethoven surgindo no mundo de Mozart, que agora j no s dele.
Completaram o programa duas peas para orquestra: um "Romance" breve para cordas de Sibelius (1865-1957) e a "Capriol Suite", de Peter Warlock (1894-1930). Relquia do neoclassicismo, a "Suite" no sustenta comparaes com peas como "Pulcinella", de Stravinski, ou "Le Tombeau de Couperin", de Ravel. O passado, aqui, no chega a ser matria viva do presente. Mas um bibel bonito. E a orquestra teve seu momento mais alto.
Linhas, luz e calma; brilhos e charmes; levezas e sutilezas. O que no foi tocado foi sugerido; e isso j no pouco. Barry Douglas um excelente pianista, e o concerto foi um prazer de ouvir.

Les Musiciens du Louvre relem obra de Mozart para evocar o passadoARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Insuportvel!" No tom que a palavra foi dita, com os olhos faiscando e as mos batendo palmas em ritmo acelerado, ficava mais do que claro que queria dizer "sensacional!". Foi exatamente o que disse depois a bela cantora, empolgada ao final da primeira parte do concerto do Les Musiciens du Louvre, anteontem no Cultura Artstica. E era s a primeira parte.
A essa altura da vida, ningum mais sai de casa para escutar as conhecidssimas "Sinfonias" n 40 e 41 de Mozart (1756-91), a no ser na expectativa de revelaes inusitadas.
Mas no menos que isso o que se espera do conjunto do maestro Marc Minkowski, h 24 anos renovando a audio de compositores como Haendel e Rameau, sem falar no prodigioso Amadeus. Les Musiciens du Louvre esto hoje baseados no interior da Frana, em Grenoble, onde mantm, desde o ano passado, um centro de formao musical. Eles formam uma das orquestras mais vibrantes que j se viu, mesmo no contexto agora to habitualmente vibrante da msica antiga. Entre vrios trunfos, contam com quatro espetaculares contrabaixos, tocando sobre um praticvel, no fundo ao centro da orquestra. um trunfo especial, porque Minkovski se destaca como regente do contraponto, e faz ouvir linhas graves e mdias que quase nunca se escuta.

Contrastes
No primeiro tema da "Sinfonia" n 40, por exemplo, eram as violas que soavam, de imediato, vrios decibis acima do comum, o que dava uma nova agitao a tudo. O contraste com o segundo tema no poderia ser mais dramtico. Minkovski muitas vezes faz uso desse expediente: os temas mais tranqilos so tocados com dinmica baixa e notas secas, que soam mais baixas e secas ainda nos instrumentos antigos. A msica parece ter parado no ar. Soa entre esttica e etrea. Quando volta o rock'n'roll, depois, a cabea da gente explode.

Proximidades
Nisso, como em muitos outros detalhes, fica patente a proximidade dessa msica (de fins do sculo 18) com as prticas barrocas, mais do que com as convenes da msica sinfnica do sculo 19, que at bem pouco tempo serviam de base para nossa imagem do estilo clssico. A lgica da composio j era outra, mas o modo de tocar instrumentos de corda, sem falar nas flautas de madeira, trompas sem vlvulas etc. evidencia uma obviedade que tambm uma surpresa: Mozart vem do que estava s suas costas, no sua frente.
Neste retorno s origens, porm, h muito que soa como um avano. A msica cresce de dentro para fora, desautomatizada, acompanhando sua prpria razo. E esses msicos tocam tudo, tambm, com tanta gana que enchem todo mundo de espanto.
Para ficar s num exemplo: as duas violoncelistas da ltima fileira. Passaram o concerto inteiro trocando bem-humorados olhares de entendimento, reagindo com olhos e ombros s mincias da partitura, gingando na cadeira e se atirando para dentro da msica, conforme o caso. As duas, ali, compunham juntas a imagem de muita coisa: juventude, inteligncia, energia, beleza, graa.
Eram uma imagem da msica, que fica com a gente para animar os dias.

Orpheus faz Mozart soar como a primeira vez ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Faz dois sculos que a msica de Mozart virou adjetivo. Mas dizer que ela mesma "mozartiana" no ajuda ningum a entender o que se passa nas sinfonias, sonatas, concertos, quartetos e peras daquele que, para muita gente, o maior compositor da nossa tradio. O "tom" de Mozart um mistrio, algo que a palavra "mozartiano" s conota para quem j no precisa dela.
H um momento na "Sinfonia n 40" que ilustra bem esse ponto. Logo aps a exposio do primeiro tema, depois que a orquestra toca seus acordes de dominante, os fagotes sobressaem, com um pedao de escala descendente, em teras, contra o qual os violinos retomam o soluo do tema.
Descrito assim, ou mesmo consultado na partitura, no poderia ser mais simples: s uma cadncia. Mas o efeito uma das emoes da vida e parece conjugar tragdia e bno, fatalidade e recompensa, de uma forma que metfora alguma d conta. O incio da "Sinfonia n 29" outro exemplo: ali o prprio tema que parece cair no mundo como uma revelao, simultaneamente com o contra-tema, outra verdade rara.
Que o autor dessa msica tivesse, na poca, s 18 anos um milagre menor. O grande milagre que exista msica assim (que qualquer um, de qualquer idade tenha sido capaz de imaginar essas frases). uma outra lngua da humanidade, to acessvel compreenso que, frente a ela, as palavras se retraem.
De E.T.A. Hoffmann, Schumann e Kierkegaard, no sculo 19, at o telogo Karl Barth ou, em escala menor, mas para ns significativa, o crtico Otto Maria Carpeaux e o poeta Murilo Mendes, a avaliao de Mozart como gnio supremo da cultura segue um padro constante, mas por motivos diversos.
A mesma "Sinfonia n 40" era descrita por Hoffmann como expresso do "puro romantismo" e por Schumann, como exemplo insupervel de "graa, placidez, contentamento: as verdadeiras marcas da arte da Antiguidade".
Os dois tm razo, sem dvida; e a contradio dos juzos s serve para mostrar que Mozart era, e sempre ser muito maior do que seus intrpretes. Provavelmente no vai se saber nunca como definir o que "mozartiano", exceto apontando de volta para a msica e nos fazendo ouvir.
O novo CD da Orpheus Chamber Orchestra consegue fazer mais do que isso: faz ouvir como pela primeira vez -ou quase. Tocando sem regente (a Orpheus no tem maestro e os msicos se alternam nas posies principais), a orquestra atinge um nvel de integrao maior, no menor, que o habitual.
Comparaes servem para revelar qualidades: de uma audio comparada da "Sinfonia n 29", tocada por eles e pela London Chamber Orchestra (gravao da Virgin lanada h algum tempo no Brasil, com preo convidativo), salta aos ouvidos a energia dos americanos e a definio impressionante de contornos, acentos, fins de frase.
uma orquestra que continua soando incrivelmente jovem, 25 anos depois de criada e mesmo mantendo boa parte dos msicos esse tempo todo.
Mozart nunca fcil de tocar, a despeito do que possa pensar um ouvinte casual. Tudo fica exposto, no h onde se esconder. Leveza e gravidade se combinam, muitas vezes na mesma frase ou compasso. O "tom mozartiano" no para qualquer um. Com obras mais abertamente dramticas, como a "Sinfonia n 40" (em sol menor, a tonalidade trgica em Mozart), ou a "n 29", cuja claridade sempre filtrada pelos cromatismos, a dico da msica se d, virtualmente, por si.
Mas em peas mais abstratas, como a "Sinfonia n 33", o classicismo preserva suas sombras sob a superfcie, como esculturas perfeitas, que s insinuam o terror de dentro.
Livre do peso das grandes orquestras tradicionais, um peso que no apenas questo de volume, a Orpheus est a meio caminho entre os hbitos antigos de interpretao e a interpretao da msica antiga segundo os novos hbitos. Acertadamente, eles no fazem nenhuma tentativa de imitar as orquestras de especialistas em msica antiga, no mudam o estilo das arcadas ou da articulao, no tocam com instrumentos originais, no alteram andamentos (o primeiro movimento da "Sinfonia n 40" soa rpido, mas a indicao de tempo "molto allegro", e ele s tocado mais lento por concesso ao "romantismo" do tema).
O compromisso dessa orquestra consigo mesma e eles j se tornaram uma referncia pela bravura e limpidez, que parece especialmente apropriada a essas sinfonias. De bnus, oferecem os melhores sopros em atividade: at as flautas ganham um vu sobrenatural nessa gravao, muito distante do infantilismo de costume ou da nostalgia pastoral.
Para Karl Barth, que j no fim da vida lhe dedicou um livro, a msica de Mozart tem "a textura exata" do mundo, uma ordem intimamente assimilada, e no, como em Bach, uma "mensagem". Mozart tambm no faz confisses, como Beethoven; ele encarna a "divindade viva" de que Barth fala em seus tratados. A msica de Mozart "nos d permisso para viver". Quando se pensa nele, nosso sentimento uma mescla de alegria e gratido, mas uma gratido impessoal, pela simples existncia dessa msica.
A gratido por esse disco mais dirigida: orquestra nova-iorquina, que andou passando por uma crise, mas parece ter se recuperado em grande estilo. Se a memria fosse uma musa mais generosa, cada um de ns lembraria quando ouviu a "Sinfonia n 40" pela primeira vez. A reaudio da reaudio da reaudio nunca tem o mesmo impacto; mas dessa gravao, pelo menos, ningum agora vai esquecer.
A boa notcia que ela faz parte de uma srie. Nem tudo no mundo desastre; ao que tudo indica, vamos ter outras sinfonias em breve, para nos fazer respirar.

Peter Gay derruba Mozart no div ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

"H uma dimenso na msica que impede o conhecimento ltimo e se defende ou se desvia dos nossos hbitos cognitivos mais reverenciados. como se estivssemos na crista de uma onda de compreenso que j deixou a natureza para trs. (...) Mas continuamos to ignorantes do fundamental quanto qualquer ser humano."
Este o romancista Saul Bellow, falando da msica de Mozart (1756-1791). Conhecimento e ignorncia so temas que se repetem na tradio de comentrios, fadada a repetir esse gesto de autocancelamento. Repetem-se, de outro modo, no conhecimento e na ignorncia de cada biografia, como a nova breve vida de Mozart por Peter Gay.
A obra explica a vida, mais do que a vida a obra; e mesmo dessa perspectiva o que se inexplica tende a ser mais forte. A tentao do bigrafo, naturalmente, o contrrio. E um bigrafo de inspirao psicanaltica -historiador e intrprete da psicanlise, autor de uma renomada biografia de Freud- tem nos elementos da vida de Mozart um prato cheio para refletir sobre o poeta e a fantasia, luz do romance familiar.
No causa espanto, assim, que o livro venha propor "o conflito pai-filho" como a "obsesso... mais profunda", que "guiou as foras criativas de Mozart". Que Leopold Mozart foi "professor, colaborador, conselheiro, enfermeiro, secretrio, empresrio, relaes-pblicas e o principal membro da claque" do filho mais do que sabido; e o conflito edipiano foi exaustivamente estudado antes por Maynard Solomon, em "Mozart: A Life" (1995).
Tambm no chega a ser uma novidade salientar "a preocupao de Mozart com o nus e os produtos anais"; e ningum discorda de que "isso no revela muito acerca de Mozart", embora nem todos vo to longe a ponto de afirmar que "ele se rendia mais prontamente do que muitos ao impulso regressivo das fixaes anais". Descries como essa acabam fazendo mal biografia e psicanlise: o livro se entrega seduo da explicao e a psicanlise vira pronturio. Nesses momentos, a msica parece to distante da vida quanto a vida do texto. Felizmente, so excees e no a regra, numa prosa que no brilha muito, mas tem bastante informao para oferecer, resumindo o trabalho de geraes de bigrafos.
O menino-prodgio, que tocava piano e compunha aos 5 anos, aprendeu violino sozinho com 7, escreveu sinfonias com 9 e passou a infncia e a adolescncia encantando as cortes da Europa; o homem crescido, entre gnio melanclico e bufo; as intrigas com o libretista libertino Da Ponte e com o rival Salieri; a rapidez proverbial para escrever msica proverbial recebida com proverbial admirao (e/ou incompreenso); a abundncia e a falta de dinheiro; o envolvimento com a maonaria; a encomenda annima do "Rquiem", escrito supostamente para si mesmo: todas essas lendas, ou quase-lendas, so recolhidas e, sempre que possvel, diminudas por Gay, que um autor comedido e ctico.
Tanto desejo de acerto acaba minado, em parte, pela traduo, que contm desde erros factuais (a "Sinfonia K. 200" a n 28, no 29) at deslizes ("Bastien und Bastienne" uma pera em um ato, no "para um ator") e aberraes musicolgicas ("por oito compassos" vira "para oito medidas", e "mudanas de tonalidade" vira "alternncias de claves"). uma pena que a reviso no tenha corrigido essas gafes, que incomodam, mas no chegam a comprometer o livro. Tanto mais porque a discusso sobre a msica em si mnima e superficial.
A curiosidade sobre Mozart no tem fim. Quem no quer saber algo mais da vida do homem que escreveu "Don Giovanni", a "Sinfonia n 40" e a "Sinfonia Concertante"? A msica "se defende" e "se desvia"; mas a ignorncia uma nsia e o conhecimento no se cansa da prpria obtusidade. Cada biografia, ento, a seu modo -essa tambm- vem sublinhar o que h de inatingvel em Mozart, produto de uma vida igual s outras, convertida em msica como nenhuma outra.

Sviatoslav Richter transporta Bach e Mozart para outras esferasARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHATem coisas que eu gostaria de fazer todos os dias e, por um motivo ou outro, acabo no fazendo: ler um bom poema, passear com as crianas, ficar quieto, ouvir Sviatoslav Richter.
A integral do "Cravo Bem Temperado" de Bach, gravada por Richter em 1973 e relanada em CDs pela RCA , na minha opinio (e na do professor Francisco Achcar, na qual confio mais que na minha), uma das melhores coisas que a espcie produziu neste sculo de barbrie e matana.
Taciturno, recatado, Sviatoslav Richter o pianista dos pianistas, mais idiossincrtico do que Horowitz, mais inimitvel do que Michelangeli, mais cheio de sabedoria do que Rubinstein.
Toca numa dico toda sua e num tempo prprio: nas suas mos, a msica se traduz para uma outra esfera. H uma espcie caracterstica de distanciamento, ou velamento da interpretao que s ele sabe controlar; e h fogos e exploses tambm.
No ano passado, para comemorar os 80 anos do pianista, a Philips lanou uma volumosa coleo de gravaes "autorizadas" (as piratas so igualmente numerosas).
Mais recentemente, lanou tambm uma seleo, "The Essential Richter" (5 CDs), com alguns dos melhores momentos da coleo, incluindo um famoso recital em Sfia, de 1958, com os "Quadros de uma Exposio" de Mussorgski, e peas diversas de Beethoven, Brahms, Liszt e outros.
Ao vivo
Agora a vez da Teldec lanar a gravao ao vivo de um recital de Richter, em Parma, de 1993. So dois concertos de Bach (transcritos pelo prprio compositor da verso original para violino), mais o Concerto n 25 para piano e orquestra de Mozart. Richter acompanhado pela Orquestra di Padova e del Veneto, regida por Yuri Bashmet.
No preciso ser especializado em msica antiga para estranhar a interpretao dos concertos de Bach. Richter permanece indiferente s invenes e descobertas da musicologia, aos estudos de ornamentao e frascado que tanto tm marcado a performance da msica barroca nas ltimas duas dcadas.
E ainda bem: a ltima coisa que se quer Richter tocando de alguma forma que no seja a sua. A musicologia democrtica, uma educao para todos: tocar como Richter para quem pode -alis, s para ele.
A dois teros do primeiro movimento do Concerto em r h uma passagem que define tudo. A orquestra se cala e o pianista tem uma cadncia, antes da orquestra retomar o tema. A cadncia convencional, dois compassos levando de volta tnica. Mas Richter faz algo injustificado e extraordinrio, toca num outro tempo, bem mais lento e especialmente num outro registro emocional, distante de tudo o que passou.
A msica se despede, numa outra msica e desaparece em dois segundos de silncio. Depois comea de novo -mas nunca mais ser a mesma.
Richter dobra, na mo esquerda, o baixo contnuo da orquestra (que inclui, estranhamente, um cravo). um Bach, para nossos ouvidos, pesado, anacrnico. um Bach maravilhoso, tambm, idiossincrtico e inesquecvel. O Mozart, em comparao, decepciona (menos o segundo movimento); em parte, sem dvida, pela orquestra, que no est altura do convidado.
A Teldec anuncia ainda um CD com sonatas de Mozart, acrescidas de um "acompanhamento livre" composto por Grieg, e interpretadas por Richter e Elisabeth Leonskaja. uma curiosidade e mais que uma curiosidade. uma viso de iluminaes e felicidades futuras, mais um disco de Richter, que algum dia -ou todos os dias- espero ter a chance de ouvir.

Uma nota de viola evoca a sabedoria de Mozart ARTHUR NESTROVSKI
EM PARIS Todas fazem assim? uma pergunta clssica do repertrio libertino, que Mozart responde com ambiguidade e humor. A montagem em cartaz no Thtre des Champs Elyses, em Paris, sob a regncia de Ren Jacobs, acrescenta sua prpria dose de ambivalncia a essa histria de duplicidade amorosa, atualizada com acentos de orientalismo.
Mas faz soar, subjacente a tudo, uma nota que equilibra o desassossego. uma confiana nova, que mostra Mozart como um primeiro romntico, no o ltimo dos libertinos.
Composta em 1789, "Cos Fan Tutte" a terceira pera de uma trilogia escrita por Mozart (1756-91) em colaborao com o libretista Lorenzo da Ponte (as outras so "Le Nozze di Figaro" e "Don Giovanni"). Aqui, em particular, a msica se instala no universo de "ligaes perigosas" de autores como Laclos e Marivaux. Quem d as cartas um filsofo, embaralhando corpos com um ceticismo alegre. Os homens testam sua seduo, custa da fidelidade; as mulheres testam sua liberdade, custa da autodeterminao. Todos saem perdendo. A comdia faz rir para no chorar.
No ano passado, Ren Jacobs lanou uma gravao brilhante de "Cos" (CDs + CD-ROM, Harmonia Mundi), com a mesma orquestra. A montagem parisiense estreou em julho, no festival de Aix-en-Provence, e traz seis cantores de destaque da nova gerao.
No h, a rigor, um papel principal: so seis solistas que se revezam e combinam, seguindo musicalmente um esquema de permutaes que j do domnio da libertinagem. Mas, em cena, quem leva a noite a soprano canadense Alexandra Deshorties, recm-chegada de um primeiro papel no Metropolitan (em "Ada"), para encenar uma Fiordiligi ao mesmo tempo recatada e sexy, a mistura favorita do Marqus de Sade.
Sua primeira cena arrebatadora: um dueto, com a irm Dorabella (a argentina Bernarda Fink), as duas deitadas na grama (de mentira), ao lado de um lago (de verdade). Estamos num vero ideal, que as "chinoiseries" do cengrafo Chen Shi-Zeng na verdade isolam de qualquer tempo e lugar. Que recursos da pera chinesa -como os auxiliares de cena mudos ou a nfase em gestos estilizados- possam fazer sentido em Mozart nos diz menos sobre Mozart do que sobre as platias cosmopolitas e irnicas do ano 2000.
Cenrio: jardim chins, imutvel, mas que muda o tempo todo, por obra da luz (Andr Diot). Um cenrio-luz, concentrado sobre uma regio demarcada por fitas, literalmente uma quadra onde vo-se dar os jogos amorosos.
E os homens? timas vozes, mas um pouco mais presos teatralidade rasa que continua sendo a sina da pera. No chega a causar incmodo aqui, onde as personagens carecem de densidade psicolgica. teatro do sculo 18, no 19. Mais um motivo para justificar o artificialismo autoconsciente da cenografia.
Mesmo a msica, afinal, carrega uma carga de conveno que ela vai contestar de dentro, em momentos cruciais. Num certo sentido, essa pera isso: a histria da msica rompendo seus prprios e maravilhosos disfarces, para fazer soar algo mais. Fora de contexto, seria impossvel dizer se a msica que est sendo cantada uma expresso sincera ou falsa. A msica a mesma, quer os amantes estejam falando como eles mesmos ou dramatizando um papel. Chorar para no rir seria o comentrio de poetas da gerao seguinte, mas Mozart ainda mais sbio.
E Ren Jacobs, no por acaso, escolhe, de dentro da orquestra, uma voz em particular para assumir tanta sabedoria. a viola, instrumento favorito do compositor, explorada de modo nico. H um momento das violas que vale a montagem. Em pleno trio da despedida ("Soave sia il vento"), em meio s ondas do mar, figuradas pelo resto da orquestra, as violas tm uma nota longa. Normalmente, mal se escuta, mero recheio da harmonia. Jacobs traz a nota para a frente: e incrvel escutar esse som sustentado, um ponto de apoio perfeito, em meio a tudo o que vacila.
A ltima cena deixa os seis personagens reconciliados, mais consigo mesmos do que propriamente uns com os outros. Cada cantor isolado, de braos abertos. a imagem politicamente correta para uma montagem astuta e antichauvinista. Mas no faz eco (nem pode fazer) ao que a msica foi capaz de nos dar.
A pera acaba, e a gente sai do teatro cheio de Mozart. A Place d'Alma linda, com a Torre Eiffel iluminada ao longe. A cidade brilhante e ctica fervilha ao redor. Mas o que a gente escuta, afinal, pelo resto da noite, e com sorte pelo resto dos dias, aquela nota da viola.
A tragdia curta. A comdia passa. A viola fica.