Lutando Pelo III Reich

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  • Lutando pelo III Reich: o caso dos Soldados Brasileiros de Hitler

    Dennison de Oliveira, Doutor em Cincias Sociais pela Unicamp; Professor dos cursos de graduao e ps-graduao no Departamento de Histria da Universidade Federal do Paran e orientador de pesquisas na rea de Histria da Secretaria Estadual da Educao do Paran.

    [email protected]

    No ano de 2001 tomei conhecimento do livro de Norberto Toedter intitulado

    ... e a Guerra continua, lanado no ano anterior. Trata-se de um texto que contm

    as memrias (e opinies) pessoais do autor, impresso por ele mesmo.1 Tendo

    nascido em Curitiba (PR) descreve o perodo 1942-45 que ele viveu na Alemanha,

    na condio de membro da HitlerJungdend, ou a Juventude Hitlerista. Apesar de

    cheio de consideraes subjetivas, seno fantasiosas, o livro trazia uma viso do

    lado de dentro da vida cotidiana na Alemanha Nazista que a mim parecia indita e

    valiosa. O contato direto com este autor me permitiu ter acesso parte do universo

    de leitores desta obra que com seu autor manteve intensa correspondncia. Foi

    graas a estes contatos, que tive acesso quele grupo que aqui denominado de

    os soldados brasileiros de Hitler.

  • A existncia desse grupo era dada como certa pelos pesquisadores da

    histria da Fora Expedicionria Brasileira (FEB).2 O intenso trfego de pessoas de

    origem ou descendncia alem entre o Brasil e a Europa no perodo anterior

    ecloso da guerra em 1939 permitia deduzir que um nmero substancial de

    indivduos do sexo masculino nascidos aqui houvessem, por diferentes razes,

    permanecido naquele pas e, eventualmente, tivessem prestado o servio militar sob

    as foras armadas que Hitler mantinha sob seu comando. Mas se tratavam de

    pessoas que se ainda vivas fossem provavelmente evitariam se expor, no

    legando posteridade seus depoimentos. Felizmente para a Histria do Brasil e

    Mundial tal no aconteceu pelo menos no que se refere ao reduzido grupo com

    quem tive oportunidade de conversar.

    1. O Estado Nacional Brasileiro e os brasileiros que viviam na Alemanha do ps-guerra

    A participao do Brasil entre as 16 naes que tomaram parte ativa nos

    combates contra a Alemanha Nazista (1933-45) durante a Segunda Guerra Mundial

    (1939-45) fez com que a recm-constituda Organizao das Naes Unidas (1944)

    deliberasse por inclu-lo entre os pases que deveriam enviar representao ao

    Conselho Aliado de Controle. Tal rgo era o responsvel pela administrao do

    territrio da Alemanha recm-derrotada (8.05.1945) naquela guerra. Em maro de

    1946 no nmero 14 da Killman Strasse, na rea de Wansee em Berlin, foi ento

    aberto um escritrio da Misso Militar Brasileira naquela cidade. Seu comandante, o

    ento coronel do Exrcito Brasileiro, Aurlio de Lyra Tavares, nos conta que, antes

    mesmo de iniciados os trabalhos, a repartio j estava recebendo volume

    1 http://2a.guerra.zip.net/index.html 2 BONALUME, R. A nossa Segunda guerra mundial: os brasileiros em combate. Rio de Janeiro, Expresso e cultura, 1995. e MAXIMIANO, C. C. Onde esto nossos heris: uma breve histria dos brasileiros na 2 Grande Guerra. So Paulo, 1995, Ed. do autor.

  • substancial de pedidos provindos de brasileiros que pleiteavam junto quele rgo

    repatriao para o Brasil.3

    Na Alemanha derrotada e destruda do imediato ps-guerra, era grande o

    nmero de pessoas que demandavam, na Alemanha, tal tipo de permisso. Por toda

    parte, pessoas que foram foradas pelas tropas de ocupao do III Reich de Hitler a

    servirem na Alemanha como trabalhadores recrutados, desejavam retornar aos seus

    pases de origem; inversamente, cidados de pases agora sob ocupao sovitica,

    demandavam sua ida para outros pases que no os de regime comunista ou, se tal

    no fosse possvel, permanecer na Alemanha. Finalmente, tanto cidados comuns

    quanto os quadros dirigentes e executores de uma variedade de polticas do

    governo alemo sob Hitler, tambm desejavam se evadir do pas ocupado. Os

    primeiros para fugirem das miserveis condies de vida, os outros porque haviam

    ordens de priso emitidas pelas autoridades aliadas que pesavam sobre si.

    Uma vez abertas as atividades da Misso, grande nmero de pessoas j l se

    encontrava para pleitear pessoalmente a permisso de retorno ao Brasil, mantendo

    filas permanentes de interessados em torno do prdio. O coronel Tavares registra

    que em 83% dos casos os pedidos diziam respeito a brasileiros que haviam entrado

    na Alemanha entre 1938 e 1939 ou, no que se refere conjuntura da poca, entre a

    anexao da ustria (que os alemes se referem como sendo o Osterreich)

    conhecida como o Anchluss e o incio da guerra, quando o trnsito entre os dois

    pases drasticamente afetado, at se encerrar definitivamente com a declarao de

    guerra do Brasil Alemanha em 22.08.1942.

    Para alm do exame dos antecedentes polticos, pr-requisito para a

    liberao de qualquer indivduo que desejasse se retirar da zona de ocupao

    Aliada, Lyra Tavares se refere a um outro problema: como encaminhar a anlise de

    pedidos de brasileiros que haviam, com toda evidncia, prestado servio militar s

    foras armadas (Wermacht) alems em tempo de guerra? De um ponto de vista

    3 TAVARES, A. L. Quatro anos na Alemanha ocupada. Rio de Janeiro, BIBLIEX, 1951.

  • legal, ele reconheceu de imediato que estes indivduos tinham dupla nacionalidade,

    estando portanto sujeitos aos imperativos da cidadania alem, enquanto vivessem

    no territrio do III Reich, agora extinto. Do ponto de vista da jurisprudncia brasileira,

    so considerados como tal todos que nasceram em territrio nacional. Por outro

    lado, segundo a jurisprudncia alem, so considerados assim todos os

    descendentes de alemes. Finalmente, no deixou de considerar o coronel que a Lei

    do Servio Militar Alem de 1937 impunha a todos eles, em tempo de guerra, a

    obrigao de prestar este servio na Wermacht.

    Ao fim do primeiro semestre de 1949, o coronel Tavares podia relatar que

    cerca de trs mil brasileiros haviam sido repatriados de volta para c, nmero que

    acabou se elevando para cinco mil, uma vez que o plano de repatriao inclua

    tambm os membros alemes (isto , assim considerados pela lei brasileira, uma

    vez que eram nascidos l) das famlias. Navios brasileiros faziam nesse perodo trs

    viagens anuais entre os dois pases num esforo de dar conta da demanda. Ao fim

    das atividades da Misso em dezembro de 1949 ainda restaram embarcar cerca de

    1.200 pessoas, das quais quase mil eram constitudos de brasileiros. Ao final dos

    onze embarques sob sua responsabilidade, Lyra Tavares havia contabilizado o envio

    para o Brasil de 2.445 brasileiros e 2.752 estrangeiros.

    Talvez jamais se saiba com exatido quantos destes eram do sexo masculino

    e se encontravam no grupo etrio recrutvel para o servio militar pelo regime de

    Hitler. Contudo, se levarmos em conta que o ingresso na Juventude Hitlerista havia

    se tornado compulsrio em 1935, bem como o fato de que essa organizao foi

    chamada ao fim da guerra para exercer papel de auxiliar das foras armadas

    alems, s se pode concluir que aqueles que no se envolveram no servio militar

    sob qualquer forma certamente constituem excees.

    Presumo que vrias centenas de brasileiros lutaram na Segunda Guerra

    Mundial sob a bandeira da Alemanha Nazista. No se pode descartar at mesmo o

    fato de que indivduos nascidos aqui tenham combatido entre si, levando em conta

  • os dez meses de participao da FEB na Campanha final da Itlia contra a

    Wermacht naquela guerra, embora at o momento inexistam evidncias a respeito.

    Por razes bvias a todo leitor informado, a experincia de vida desses

    indivduos, suas memrias e vivncias, ficaram at recentemente silenciadas. O tabu

    contra os indivduos que prestaram servio militar sob a bandeira do inimigo, bem

    como a revelao ao fim da guerra do real significado do projeto nazista (genocdio,

    escravismo, racismo, totalitarismo, etc.) trabalhou para que a apario desse tipo de

    relato permanecesse praticamente impossvel. Contudo, a validade do exame e

    preservao desse tipo de memria sempre foi amplamente reconhecida: o

    testemunho daqueles que viveram, trabalharam e neste caso lutaram pelo III

    Reich pode nos fornecer pistas importantes para o entendimento de uma srie de

    eventos que tornaram o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial possibilidades

    histricas.

    2. Cidadania e nacionalidade na Alemanha e no Brasil

    Conceitos como cidadania e nacionalidade, bem como as prticas a eles

    associadas, so sempre o resultado de um processo de construo histrica. No

    caso dos imigrantes de origem alem que vieram ao Brasil, bem como seus

    descendentes, tal processo foi vivido de maneira contraditria, seno conflituosa. Na

    base do conflito est a disjuno entre os princpios fundantes destes conceitos que,

    no caso alemo, priorizam a origem familiar do indivduo. Em termos jurdicos, ele

    entendido como o juz sanguinis. J o caso brasileiro se prende ao local do

    nascimento, em se tratando de definir a cidadania e a nacionalidade do indivduo.

    Juridicamente, esta prtica conhecida como o juz solis.

    Sucessivos autores tem se dedicado interpretar os conflitos que da

    advieram para os imigrantes de origem alem e seus descendentes, em especial na

  • conjuntura da grande nacionalizao (1935-45) desencadeada no perodo Vargas

    (1930-45).4 Contudo, no se tem dado nfase este conflito luz da mais

    importante das obrigaes cvicas que recai sobre os indivduos do sexo masculino,

    ou seja, o servio militar em tempo de guerra. Nossa pesquisa tambm foi dedicada

    ao entendimento da experincia histrica de indivduos oriundos de famlias de

    origem alem que, tendo nascido aqui no Brasil, se viram sob diferentes

    circunstncias recrutadas para lutarem nas foras armadas alems (Wehrmacht)

    durante a Segunda Guerra Mundial. Aqui o foco da pesquisa recai sobre o

    entendimento do processo de definio da nacionalidade e cidadania destes

    indivduos a partir do seu engajamento na Wehrmacht (1939-45) at a regularizao

    de suas obrigaes militares perante o Exrcito Brasileiro (1946-1949).

    Certificado de reservista do Exrcito Brasileiro de um dos entrevistados (1948)

    4 LESSER, J. Imigrao e mutaes conceituais da identidade nacional, no Brasil, durante a Era Vargas. In: Revista Brasileira de Histria, So Paulo, ANPUH/Marco Zero, 1994, vol. 28, pp. 121-150. Ver tbm: SEYFERTH, G. Construindo a nao: hierarquias raciais e o papel do racismo na poltica de imigrao e colonizao. In: MAIO, M. & SANTOS, R. (orgs.) Raa, cincia e sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz/Centro Cultural do Banco do Brasil, 1996. pp. 41-58 ________, Os paradoxos da miscigenao: observaes sobre o tema imigrao e raa no Brasil. In: Estudos afro-asiticos, no. 20, 1991, pp. 165-184.

  • Foram tomados at agora na pesquisa o depoimento de cinco indivduos que,

    nascidos no Brasil, lutaram pela Alemanha, bem como o de um irmo de um deles

    que havia nascido na Europa, fixando-se posteriormente no Brasil, totalizando seis

    indivduos. Embora toda a histria de vida deles seja de interesse, o foco dos

    depoimentos recai naturalmente sobre sua experincia durante a vigncia do III

    Reich. Nela, o ingresso no servio militar obrigatrio, entendido como momento

    privilegiado de anlise por ser onde se manifesta de forma aguda o carter tenso e

    contraditrio vivido por estes indivduos de dupla nacionalidade e que se vem

    forados a encarar os deveres inerentes ao exerccio da cidadania.

    Um exemplo extremo se refere ao entrevistado nascido em So Paulo em

    1925 que adotou o pseudnimo de Der Amerikaner, literalmente o americano

    para conversar conosco. Ele e a famlia haviam viajado para Alemanha passeio e

    para rever parentes, l chegando pouco antes da guerra comear, o que os impediu

    de voltar ao Brasil como contavam fazer. Em 1943, ocorre sua convocao para o

    servio militar. Tendo atingido a idade para alistamento ele compareceu diante da

    junta do servio militar local. Sua primeira inspirao foi alegar a condio de

    brasileiro (brasilianer), nascido em So Paulo, como demonstravam seus

    documentos de identidade. Em resposta teria ouvido a seguinte pergunta do

    alistador: Mas se voc tivesse nascido na frica isso faria de voc um negro?.

    Desconcertado, respondeu que no, ouvindo em seguida a deciso de que ele teria

    de se alistar, uma vez que era de famlia de origem alem. De fato, tratava-se da

    imposio da lgica do princpio do jus sanguinis, em contraposio quela do jus

    solis que ele imaginava que nesse caso deveria prevalecer.

  • Trs irmos nascidos no Brasil que estavam de alguma forma engajados no esforo de guerra do III Reich: esquerda de quem olha na foto Peter, com uniforme do exrcito; o prprio Martin ao meio, j como tenente (leieutnant) e Fritz (nosso entrevistado), ainda usando o uniforme do exrcito com uma braadeira da Hitlerjudeng (indicativo das circunstncias em que estudantes se iniciavam no servio militar). Medalhas da esquerda para a direita: Cruz de Ferro, Medalha do Primeiro Inverno na Frente Oriental (1941) e de Ferido em Combate de outro entrevistado. A Medaille Wintershlacht Im Osten (1941-42) que tambm era conhecida como OstenFrontMedaille concedida a todos que combateram na Rssia naquele inverno. interessante se notar que essa condecorao tambm era conhecida jocosamente como Grefierfleisch Orden (ou ordem da carne congelada). Finalmente, ele tambm recebeu o distintivo de ferido em combate (Verwundeten Ahzeichen) na cor negra, concedido queles que tivessem sido feridos at duas vezes em ao.

    Foto a esquerda, Der Amerikaner (ao centro na foto) e dois de seus colegas de escola, trajando uniformes de diferentes foras armadas alems (SS e Exrcito). Posteriormente ambos foram mortos em combate. direita, carto de 21o aniversrio de "Der Amerikaner" quando detido pelos Aliados no

  • campo de prisioneiros suspeitos de serem nazistas perigosos em Hammelburg. Desenhado pelos colegas (1946), com referncias ao aniversariante e ao Brasil. O entrevistado aparece acima caracterizado como um macaco de culos, comendo uma banana e sentado sobre uma palmeira, ladeado por um papagaio e uma girafa (!). Na parte de baixo do desenho uma imagem suave do campo onde estavam detidos.

    Um segundo momento revelador das contradies inerentes ao seu processo

    pessoal de definio da nacionalidade ocorreu quando da sua incorporao

    unidade de combate pela qual seria levado linha de frente. No dia do embarque

    para a linha de frente todos estavam fardados, armados, identificados e barbeados

    em forma no ptio da escola de treinamento de sargentos que ele havia cursado

    quando finalmente foi sabido o destino final: o front italiano.

    Naquele estgio da Segunda Guerra Mundial na Itlia j estava lutando ali

    uma Fora Expedicionria Brasileira que, segundo se divulgava pelo servio de

    propaganda das rdios norte americanas, seria composta de trs divises de

    infantaria e que j estaria treinando no norte da frica. Sabendo, pois, que uma

    fora militar composta por brasileiros estaria chegando em breve na Itlia, ele

    ponderou que no poderia ser enviado para a frente italiana.

    To logo pde o nosso sargento comunicou reservada e pessoalmente ao seu

    capito que no poderia ir, uma vez que, como artilheiro no poderia ser obrigado a

    atirar sobre seus patrcios. Certamente ele imaginava que seus colegas de escola

    na capital paulista deveriam estar formando a maioria dos combatentes da FEB.

    Na presena do major e do capito, sempre privadamente, o nosso

    entrevistado insistiu em suas alegaes e usando da palavra ainda teve a presena

    de esprito de acrescentar uma alegao mais plausvel do ponto de vista da tica

    militar que regia a guerra total na qual a Alemanha havia mergulhado: ... e tem

    mais: j pensaram se eles me pegam prisioneiro? No mnimo me passam vivo pelo

    moedor de carne!. E acrescentou: ... no me nego a ir ao front mas no contra

    meus patrcios brasileiros!

    O que o salvou foi a interveno de um outro major. Este indivduo havia

    nascido na Nambia (antiga frica Oriental Alem at 1918), filho de pais alemes, e

  • provavelmente sabia melhor do que ningum o que um indivduo com estas

    caractersticas passa ou sofre nestas circunstncias. Tendo ouvido o que se

    passava teve tempo de se inteirar dos fatos e intervir. Por expressa recomendao

    sua o sargento foi declarado doente. Alis, extremamente doente, portador de

    doena altamente contagiosa, recentemente contrada, a qual curiosamente - no

    havia sido diagnosticada em nenhum dos exames que precedeu o embarque. Ele

    deveria ficar de cama em repouso absoluto durante uma semana, sem poder se

    levantar. Sem mais delongas ele foi metido em pijamas e posto numa ala com outros

    trs doentes tendo ao seu lado um penico. Afinal de contas, o novo paciente tinha

    ordem expressa de permanecer de cama, sendo proibido at mesmo de ir ao

    banheiro. Entre o sbito diagnstico desse major mdico e o internamento do

    sargento no se passou nem meia hora

    bvio que o fim do nosso depoente s foi evitado pela providencial

    interveno desse major mdico. A respeito desse personagem duas consideraes

    parecem ser indispensveis: primeiro o fato de que seu maior dever quela altura

    dos acontecimentos da guerra para a Alemanha era precisamente detectar os casos

    de fingimento de doena para viabilizar evaso do servio no front; o segundo que

    na sua folha de servios constava a experincia de ter lutado na campanha da frica

    Ocidental Alem (atual Nambia) onde, dado o emprego tanto de tropas nativas

    quanto de alemes raciais ele certamente deve ter tomado conhecimento de todo

    tipo de conflito de ordem pessoal no que se refere questo da

    nacionalidade/identidade nacional. Compreende-se, pois, que ele tenha se

    solidarizado com o depoente e se identificado com seu drama ntimo, resolvendo-se

    a arriscar incorrer numa violao das determinaes tica e legais vigentes para

    permitir ao sargento evadir-se do front com uma falsa doena.

    Uma semana depois, o trem que levava seu batalho j deveria estar longe,

    rumo aos Apeninos Italianos, isso se a guerrilha Tcheca no sabotasse os trilhos ou

    atacasse o comboio. Seu destino seria o de embarcar num trem na direo oposta

    para enfrentar os guerrilheiros (partizans) nos Montes Crpatos. Depois de uma

  • extensa folha de servios na frente oriental, foi finalmente capturado pelos britnicos

    ao trmino da guerra. Sua filiao Juventude Hitlerista lhe causou problemas com

    as autoridades aliadas de ocupao e ele s foi liberado das investigaes a que foi

    submetido dois anos depois.

    O retorno ao Brasil se deu em fevereiro de 1948 num navio que zarpou de

    Hamburgo no Reveillon de 1947-48. Chegando aqui nosso entrevistado teve de

    enfrentar uma outra dificuldade de ordem formal: para exercer qualquer atividade no

    servio pblico ou na iniciativa privada era indispensvel apresentar o Certificado de

    Quitao das Obrigaes Militares, obrigatrio para todo maior de 18 anos nos

    termos da lei brasileira desde 1906. Contudo, o entrevistado no chegou a se alistar

    no Brasil, uma vez que quando chegou idade legal para alistamento, j estava h

    anos na Alemanha.

    Um bom advogado e contatos familiares na burocracia militar contornaram

    essa objeo e ele foi declarado insubmisso, isto , apenas e to somente um

    cidado que perdeu o prazo de alistamento, no o tendo feito na poca devida.

    Trata-se da categoria mais branda dos crimes da lei militar que considera em nvel

    ascendente de gravidade tambm as categorias dos refratrios (isto , que se

    alistaram, mas no compareceram para prestar o servio militar), os desertores

    (que compareceram e depois de algum tempo se evadiram) e os traidores (que se

    evadiram para lutar sob bandeira de pases inimigos).

    O pagamento de uma multa e uma cerimnia de fidelidade s foras armadas

    brasileiras resolveram o problema. Assim que, depois de ter alegado sua condio

    de brasileiro para evitar servir s foras armadas do III Reich, quase ter sido

    executado por se recusar a combater brasileiros e ter sido tratado como alemo

    perigoso pelas autoridades aliadas de ocupao na Alemanha, nosso entrevistado

    viveu a experincia singular de jurar defender e honrar a bandeira brasileira numa

    singela cerimnia realizada no ptio de um quartel em So Paulo, cidade onde vive

    at hoje, tendo recebido o certificado de reservista de 3a. categoria. Conflitos deste

  • tipo, isto , com rgos recrutadores da Alemanha e do Brasil permeiam a

    lembrana de todos os demais entrevistados.

    Concluso: histria e memria entre os Soldados Brasileiros de Hitler

    Caracterstica distintiva das memrias destes indivduos o seu carter crtico

    das interpretaes dominantes sobre a guerra, seno francamente revisionista. Veja-

    se, por exemplo, a forma pela qual encaram o incio da guerra. Aqui importante

    destacar que foi justamente a promessa de garantir a integridade territorial da

    Polnia contra Hitler que levou a Inglaterra a declarar guerra Alemanha em 1939.

    Contudo, a guerra foi declarada apenas contra a Alemanha. Nada se fez contra a

    URSS, a qual coube mais ou menos a tera parte do territrio polons aps a

    destruio do seu exrcito. Compreensivelmente meus entrevistados insistiam

    sempre em me chamar a ateno para o que lhes parecia quela poca (como ainda

    hoje) ser uma total incoerncia da Inglaterra em declarar guerra apenas contra a

    Alemanha, j que sob essa alegao caberia tambm fazer o mesmo URSS.

    Outra crtica recorrente dos indivduos entrevistados, s verses correntes

    sobre a guerra, diz respeito aos ataques areos. Esta ltima lembrana, embora

    revestida dos atrativos da divulgao da manifesta superioridade das mquinas e

    (no final da guerra) dos pilotos aliados, era constrangida pela memria das centenas

    de milhares de vtimas civis nos bombardeios Alemanha. No surpreende o

    interesse que desperta na Alemanha, ainda hoje, o estudo e a preservao da

    memria dos ataques areos terroristas anglo-americanos sobre aquele pas. Menos

    surpreendente a recorrncia com que meus entrevistados se referem aos ataques

    areos terroristas perpetrados contra o povo alemo: eles prprios sofreram com

  • estes bombardeios, neles perderam amigos e familiares e, finalmente, foram

    chamados a participar da defesa area de suas cidades.5

    Finalmente, cabe mencionar ainda o lugar ocupado pela memria do

    genocdio nazista entre os entrevistados. Nenhum deles revela ter tido conhecimento

    do processo de sistemtico genocdio das minorias indignas de viver sob o III Reich

    e, ou de suas origens, todos eles duvidam que o mesmo tenha acontecido, pelo

    menos no na escala ou com a intencionalidade que hoje reputamos ao processo.

    Esta postura compreensvel. Estudos recentes tm enfatizado o carter

    excepcional da formao e recrutamento dos elementos envolvidos com o

    planejamento e execuo das atividades genocidas do III Reich. Confrontando-se

    diretamente com interpretaes que enfatizam o carter dos alemes comuns que

    teriam se engajado como perpetradores do genocdio, estudos recentes tm

    destacado o carter peculiar, de um ponto de vista social e psicolgico, dos

    elementos mais destacados nas tarefas de extermnio, bem como o considervel

    esforo desenvolvido pelas elites nazistas tanto para legitimar a matana, quanto

    viabiliz-la mentalmente entre os perpetradores. Hoje sabemos que o assassinato a

    sangue-frio de famlias inteiras como rotina diria apresentava desafios mentais e

    comportamentais incomuns aos seus executantes, levando a uma srie de doenas

    psicolgicas e comportamentos socialmente desviantes que a elite nazista teve de

    enfrentar. 6

    Em tempos mais recentes, publicaes mais radicais chegaram a propor que

    praticamente cada alemo adulto tinha conscincia do genocdio e com ele

    concordava.

    A partir de um limitado nmero de evidncias, chegou-se mesmo a proclamar-

    se que a adeso de alemes comuns ao programa do genocdio como

    perpetradores das matanas e torturas, seria resultado de um ato voluntrio,

    resultado da crena amplamente disseminada de que os judeus eram realmente

    5 FRIEDERICH, J. O incndio: como os aliados destruram as cidades alems. Rio de Janeiro, Record, 2005. 6 RHODES, R. Mestres da morte, Rio de Janeiro, Zahar, 2003.

  • seres nocivos e perigosos, e por isso acreditava-se que seria no s necessrio

    como urgente que eles desaparecessem.

    No se pode, absolutamente, descartar que em algum grau alguns

    indivduos tenham aderido voluntariamente ao programa de extermnio e dele

    participado, em suas diversas e sucessivas fases, embora generalizaes desse tipo

    sejam sempre arriscadas. Calcula-se que cerca de 40.000 indivduos estiveram

    diretamente envolvidos no extermnio de seres humanos durante a vigncia do III

    Reich. Nmero talvez igual a esse de pessoas eram necessrias para as atividades

    de apoio ao genocdio e, por extenso, tambm era altamente provvel que

    soubessem das finalidades ltimas de seu trabalho. Contudo, deve se levar em

    conta que a progressiva transformao das tcnicas de extermnio visava tanto

    aliviar o fardo emocional que tinha de ser carregado pelos perpetradores, quanto

    garantir o sigilo da operao. Estas providncias parecem ter sido bem sucedidas,

    em especial nos dois ltimos anos da guerra. Mesmo nessa poca o extermnio em

    escala industrial promovido pelo nacional-socialismo ainda era objeto de franca

    descrena, tanto por parte da maioria das suas vtimas (como por exemplo, das

    centenas de milhares de judeus hngaros arrebanhados quase que sem esforo

    para uma ltima grande leva de prisioneiros rumo a Auschwitz em 1944) quanto da

    opinio pblica mundial que precisou esperar o fim da guerra para ser convencida

    da extenso do genocdio nacional-socialista.

    Outra evidncia neste sentido apresentada pelo livro de Riggs7 dedicado

    aos homens de ascendncia judia nas foras armadas alems. Mesmo entre os

    militares alemes que tinham parentes judeus, o grau de conhecimento da poltica

    genocida do regime era quase nulo. E, mesmo quando evidncias manifestas do

    processo de extermnio de judeus e outras raas inferiores eram conhecidas, tendia-

    se a encarar tais fatos como excepcionais, e no como parte de um projeto mais

    amplo de erradicao das raas indignas de viver.

    7 RIGG, Bryan Mark. Os soldados judeus de Hitler. Rio de Janeiro, Imago, 2003.

  • No impossvel que a maioria do povo alemo ignorasse a inteireza do

    horror que encerravam os campos, mas certamente alimentava no mnimo -

    enorme indiferena com relao ao destino dos seus internos. O debate a respeito

    do grau maior ou menor de responsabilidade dos alemes comuns, longe de se

    intensificar, parece estar aumentando, indicando que talvez o povo alemo tenha

    perdido a oportunidade histrica de ajustar as contas com seu prprio passado.

    Em tempo de guerra, a maioria das pessoas se dedica a cuidar da sua prpria

    sobrevivncia, prestando muito pouca ateno ao restante do mundo. Tal fato deve

    ser levado em considerao ao pensarmos sobre as possveis atitudes do povo

    alemo ao programa do genocdio, a fim de que as motivaes para dele participar,

    ou ignorar seus resultados, no se resuma a uma correlao automtica entre

    adeso a uma determinada viso de mundo e subseqente engajamento em

    determinada ao coletiva. O correto entendimento da experincia histrica do

    genocdio, e das experincias humanas relacionadas com a Segunda Guerra

    Mundial ainda vai continuar por muito tempo a desafiar os poderes de explicao do

    historiador.

    _____________________________