Luiza Spínola Amaral - PUC-SP
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Luiza Spínola Amaral
A MÍDIA E O JAZZ NO BRASIL: INVESTIGAÇÃO EM TORNO D A RECEPÇÃO CRÍTICA DOS FESTIVAIS DE JAZZ NA IMPRENSA
PAULISTANA
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2011
Luiza Spínola Amaral
A MÍDIA E O JAZZ NO BRASIL: INVESTIGAÇÃO EM TORNO D A RECEPÇÃO CRÍTICA DOS FESTIVAIS DE JAZZ NA IMPRENSA
PAULISTANA
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica na área de Análise das Mídias, sob a orientação da Profa. Doutora Leda Tenório da Motta.
São Paulo
2011
Luiza Spínola Amaral
A MÍDIA E O JAZZ NO BRASIL: INVESTIGAÇÃO EM TORNO D A RECEPÇÃO CRÍTICA DOS FESTIVAIS DE JAZZ NA IMPRENSA
PAULISTANA
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
A Comissão Examinadora, abaixo identificada, aprova a dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica da aluna
Luiza Spínola Amaral
Banca Examinadora __________________________
_
___________________________
___________________________
São Paulo, ___ de ____________ de 2011
Este trabalho é dedicado ao meu pai, Fernando Amaral; ao meu padrasto, Renato Maletta e ao
meu avô, Djur Spínola. Em memória de Milton Cabral Viana.
Agradecimentos:
À Eliane, Renato, Fernando, Djur e Estela pelo amor e ajuda, imprescindíveis
para a realização deste trabalho.
Ao Gustavo de Castro por ser o grande mestre a me guiar nos momentos mais
importantes desta pesquisa.
À Leda Tenório da Motta, por toda a orientação nestes dois anos.
Aos amigos e companheiros de pesquisa, Cláudia Leão, Diogo Bornhausen,
Camila Garcia, Luciane Robic e Martinho Junior.
Aos meus irmãos, parceiros de vida, Filipe e Amanda Spínola Amaral,
Guilherme e Eduardo Amaral.
À Nídia, Lígia e Flávia, pelas conversas enriquecedoras.
Aos professores Norval Baitello Junior e Helena Katz pelas aulas inspiradoras.
Ao amigo Leonardo Candian, pelas inúmeras sessões de jazz.
À Daniel Lima, amigo e irmão, pelo acolhimento sempre generoso.
À Júlia, Giordano e Daniel Pedrecal pelas deliciosas tardes de conversas.
À Augusto, pela doce companhia nas tardes de biblioteca.
Às bibliotecas da PUC-SP e da UnB.
Ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq), pelo apio.
“Aonde quer que esteja – se estiver no
encalço da sua bem-aventurança, estará
desfrutando aquele frescor, aquela vida
intensa dentro de você, o tempo todo.”
Joseph Campbell
Resumo
O objetivo desta pesquisa é levantar o registro histórico da memória da
música popular no Brasil, através de um acompanhamento da cobertura
jornalística que os festivais de jazz recebem na mídia impressa
paulistana. Trata-se também de enfocar as relações que se estabelecem
entre a crítica e a indústria cultural, mostrando como nossa memória
musical é inflexionada por certa visão sociológica a partir da qual se
enxerga o jazz como mais um produto da indústria cultural norte-
americana, e como a esta linha que diríamos marcada pela suspeição
contrapõe-se, a partir de determinado momento, à corrente dos
semioticistas, a que pertence, enquanto musicólogo, Augusto de
Campos. Metodologicamente trata-se de uma pesquisa bibliográfica e
documental. O corpus da pesquisa constitui-se no conjunto de matérias
críticas jornalísticas aqui em exame, conjunto do qual foi recortada uma
parcela de textos a analisar.
Palavras-chave: jazz, crítica musical, festivais de música, música brasileira
Abstract:
The main objective of this research is to rescue the historical memoire of
brazilian popular music through the media coverage that jazz festivals
get from São Paulo's press. It's also about focusing on the relationship
between the cultural industry and the critics, exposing how our musical
memory is smothered by a certain sociological view of jazz as just
another product of american culture and how this line of opinion,
suspicious as it is, counterpoints the semiotic stream of critics that,
among other musicologists, belongs Augusto de Campos. It's a
documental and bibliographical research. The core of the research is a
gathering of journalistic stories exposed here, establishing an analytical
overview of São Paulo's press media.
Keywords: jazz, music criticism, music festivals, brazilian music.
Sumário
Apresentação 11
Capítulo 1 - A questão das linhas críticas em tensão, o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular, a vanguarda e o desenvolvimento 17
Capítulo 2 – A História do Free Jazz 35
1985 36
1986 41
1987 48
1988 55
1989 60
A década de 1990 64
1991 65
1992 69
1993 74
1994 78
1995 83
1996 88
1997 93
1998 98
1999 102
2000 107
2001 111
Capítulo 3 – O Jazz na Mídia Impressa 115
Conclusão 128
Referências 130
Apêndices 134
10.09.1988 - Só ouvidos apurados ouvem as fivelas caindo das máscaras - Ruy Castro - O Estado de São Paulo 135
13.09.1988 - No final a síntese do que não foi um festival de jazz - Giron – O Estado de São Paulo 136
01.09.1989 - Derrotas e vitórias na roleta Free - Giron - O Estado de São Paulo 137
18.10.1994 - Jazz precisa ser sempre chato - Guga Stroeter - Folha de São Paulo 138
18.10.1994 - Puristas vivem reclamando - Carlos Calado - Folha de São Paulo 139
26.10.1994 – Miles Davis e o fusion ressuscitam com a veneração de Marcus Miller – Luís Antônio Giron - Folha de São Paulo 140
29.10.1994 – Brown fecha Free Jazz com bordel sonoro – Luís Antônio Giron - Folha de São Paulo 141
14.10.1996 – Bjõrk aponta para o futuro e mostra música globalizada aos brasileiros – Pedro Alexandre Sanches - Folha de São Paulo 142
Anexos 143
Anexo I - Entrevista Carlos Calado 144
Anexo II - Entrevista Júlio Medaglia 154
Apresentação
A proposta inicial para esta pesquisa era analisar as fotografias referentes
ao Free Jazz Festival publicadas nos jornais paulistanos Folha de São
Paulo e Estado de São Paulo. O evento, sempre lembrado pelos amantes
do gênero, teve êxito no país por reunir, a cada edição, grandes nomes da
música nacional e internacional, por dezesseis anos, com apenas uma
interrupção. O banco de imagens é enorme, e como observa Susan Sontag
(2004) no livro Sobre a Fotografia, quando discorre sobre a relação que se
estabelece entre popularidade, imagem e informação, torna-se fácil
perceber a importância que a fotografia vem adquirindo nos jornais:
A informação que as fotos podem dar começa a parecer muito
importante naquele momento da história cultural em que todos se
supõem com direito a algo chamado notícia. As fotos foram vistas
como um modo de dar informações a pessoas que não têm facilidade
para ler. O Daily News ainda se denomina ‘jornal de imagens de Nova
York’, sua maneira de alcançar uma identidade populista. No extremo
oposto do espectro, Le Monde, um jornal destinado a leitores
preparados e bem informados, não publica foto nenhuma. (SONTAG,
2004, p. 32).
A hipótese inicial era a de que as fotografias seriam capazes de contar uma
história do jazz no Brasil, a partir daquela década de 1980, que incluiu o
país na rota dos grandes festivais de música, com visibilidade internacional,
uma vez que a imagem de tais festivais estava associada às grandes
estrelas estrangeiras que traziam para o Brasil. Dessa forma, o panorama
das fotografias publicadas nos jornais, ao exibir lado a lado artistas
nacionais e estrangeiros, parecia incentivar a aproximação entre a música
popular urbana brasileira e a norte-americana, ambas marcadas pela
mistura da cultura popular e erudita.
Ora, se é certo o que disse Zuza Homem de Mello (2003), em seu livro A
Era dos Festivais: Uma Parábola, a saber, que o objetivo de um festival
deste tipo é: “oferecer, em curto espaço de tempo, a oportunidade de
acesso a novas tendências, a novas obras, ao que está em voga, ou ainda,
num sentido diametralmente oposto, revisitar a obra de artistas
amplamente consagrados” (MELLO, 2003, p. 13), parece possível pensar
que as coberturas midiáticas caminhavam no sentido de incentivar a
proposta do festival em promover o encontro de diversas tendências
musicais.
No entanto, com o avanço da pesquisa foi se tornando mais claro que a
crítica musical brasileira divergia em sua valoração do festival. Boa parte
dela vinha amparada naquela visão sociológica que encarava a indústria
cultural como alienadora e classificava o festival como exemplo da
dominação capitalista, que visa apenas fins comerciais. Dessa forma, a
discussão travada nos jornais sobre o festival de jazz não contemplava sua
importância como ambiente estimulador de trocas culturais, fundamental
para a música brasileira, como bem explicou Bernadete Silveira Moraes,
em sua dissertação de mestrado, Jazz: As Matrizes da Mestiçagem:
Com a criação desse espaço de festivais, as tendências musicais
passaram a circular entre músicos nacionais que deram início a um
processo de troca intensa com músicos internacionais. A presença do
jazz, ampliada por meio dos festivais, impulsionou a música
instrumental brasileira. (Silveira Moraes, 2000, p. 88).
A crítica, ao contrário, se preocupava em defender a música brasileira
daquilo que ela (a crítica) não aprovava, tratando o público como
consumidor enganado em relação ao que lhe era prometido e não
cumprido. Afinal, o prometido era o jazz _sinônimo de sofisticação e
refinamento_ e a presença de outros estilos visava, apenas, atrair o
consumidor. Diante disso, o melhor que podia ser visto era, então, uma
pequena parcela da crítica que priorizava o esclarecimento sobre a
constante incorporação de diversos elementos, presentes tanto no jazz
quanto na música brasileira.
Assim, embora as coberturas fotográfiacas sugerissem essa intensa troca
cultural entre os músicos, não erroneamente, são as críticas que ajuízam e
contextualizam os momentos históricos demarcados pela mídia. Com o
diagnóstico de um forte caráter xenófobo na crítica musical brasileira diante
de um festival de jazz no Brasil, o enfoque desta pesquisa foi alterado de
forma a explicitar uma questão crítica recorrente no Brasil entre purismos e
não purismos na música nacional. Algo que começou de forma marcante
no ano de 1922, com a Semana de Arte Moderna e a proposta modernista
de Mário de Andrade para a música nacional, mas que permaneceu por
longos anos nos jornais com a presença de críticos como José Ramos
Tinhorão, conhecido por seus ataques aos estrangeirismos. É claro que,
em paralelo a esse movimento, sempre houve uma outra forma de
apreensão crítica, de forma que o duelo esteve sempre presente na mídia.
Para pôr as coisas nos termos de nossa tradição musical, houve sempre
aqui um certo embate entre o nacionalismo de Mário de Andrade e o
universalismo de Oswald de Andrade, daí conviverem, dentro do mesmo
Jornal do Brasil, Tinhorão, o denunciador do caráter não nacional do jazz e
José Domingos Raffaelli, um especialista em jazz.
Com o surgimento da Bossa Nova, em finais da década de 1950, a
associação entre a música norte-americana e a batida do estilo surgido no
Rio de Janeiro encontrava apoio em vários fatores: semelhança na
sofisticação, valorização do improviso, ritmo sincopado e adoção de novas
harmonias. Inicialmente, essa modernização do samba pelos bossa-
novistas foi ignorada pela crítica musical, como nos mostra Liliana Harb
Bollos ao descrever sobre o silêncio da crítica diante da primeira
manifestação da Bossa Nova no disco Canção do amor Demais, que trazia
composições de Vinícius de Morais e Tom Jobim, arranjos deste último e a
participação de João Gilberto ao violão em duas canções do disco: Chega
de Saudade e Outra Vez:
Alguns músicos comentavam sobre a batida diferente do violão de Gilberto,
porém não houve críticas, com a exceção estampada no Suplemento Literário
do jornal O Estado de São Paulo (...), razão pela qual acreditamos que os
músicos eram os mais interessados naquele disco, e não a crítica (Bollos,
2007, p. 147).
Nessa época, críticos como José Ramos Tinhorão e todo o grupo dos
nacionalistas, tomavam o jazz como uma espécie de atentado à legítima
criação artística brasileira. O que não impedia seu sucesso, em certos
nichos musicais, como nota Júlio Medaglia em entrevista concedida para
esta pesquisa, onde observa que o jazz era uma verdadeira febre entre
compositores como João Gilberto, Carlos Lyra, João Donato, Dorival
Caymmi, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.
De fato esses compositores não ignoravam que, semelhante ao samba, o
jazz sofria a tensão entre a cultura africana e a cultura européia, o popular
e o erudito. De resto, também estavam conscientes de que o jazz, já
evoluído, havia se transformado na grande criação artística da América do
Norte.
Em suma: se hoje admitimos que muitas são as semelhanças entre a
música brasileira e a norte-americana, mesmo antes da Bossa Nova,
naquela época, a crítica cultural voltou à Bossa algumas perguntas, que
hoje consideramos datadas, sobre seu pertencimento nacional: é música
brasileira ou americana? É alienação ou vanguarda? A Bossa Nova abriu,
de forma massificada, as portas do país para o jazz, que influenciou nossa
música e trouxe sua história, que em alguns momentos muito se parece
com a do samba. Apesar disso, pouco se falou de sua trajetória em terras
brasileiras. Carlos Calado (2007) em seu livro O Jazz como Espetáculo,
coloca bem a situação do jazz dentro do Brasil:
A história do jazz no Brasil ainda está por ser escrita. Mesmo sendo
detectado já no início da década de 20, tanto através de transposição
direta (isto é, temas originais norte-americanos executados por
formações instrumentais semelhantes às desenvolvidas nos EUA)
como por influências diversas em formas da música popular
brasileira, o jazz jamais mereceu um estudo aprofundado que
determinasse sua trajetória e participação no cenário musical
brasileiro. (CALADO, 2007, p. 221).
Nessa sua apreciação, ele chega a mencionar certa xenofobia da crítica:
É bastante evidente que um dos fatores para que esse trabalho não
tenha sido feito foi o forte caráter xenófobo que marcou a crítica
musical ou mesmo os pesquisadores durante muito tempo. Ao invés
de estudar a fundo essa importante influência, optava-se por
denunciá-la como nociva e ponto final. (CALADO, Idem, ibidem).
Apesar da crítica aversiva que angariou, a Bossa Nova terminou sendo
considerada como a nova música brasileira. Sua repercussão pelo mundo
estimulou a criação artística brasileira e, desta maneira, as trocas culturais.
Seu sucesso levou a música brasileira para além dos territórios do Brasil e
foi graças a ela que a música nacional ganhou espaço no Carnegie Hall
(1962) e, mais tarde, no Festival Internacional de Jazz de Montreux (1978).
Vale notar, então, que, fazendo contraponto à corrente sociológica, atua a
corrente dos semioticistas, da qual Augusto de Campos faz parte. E é ele,
em seu Balanço da Bossa, que confirma a repercussão da Bossa Nova no
mundo: “após o êxito internacional e sua reversão ao mercado externo na
qualidade de produto de exportação, a Bossa Nova passou de ’influência
do jazz‘ a influenciadora do jazz – isso só aconteceu graças aos meios de
comunicação e sua influência na universalidade do mundo” (Campos,
1968, p. 48). Considerando os festivais também como influenciadores do
que Campos chamou de “universalidade do mundo”, visto que estimulam o
encontro de diferentes culturas, parte da mídia brasileira cedeu cada vez
mais espaço para uma crítica menos ortodoxa.
Ou seja, se por muito tempo negou-se a aproximação entre a música
popular brasileira e a norte-americana, embora com pontos em comum,
visto que surgidas num mesmo momento histórico que aproximou o popular
do erudito, criando uma nova música de caráter urbano, os grandes
festivais de música representaram um novo momento para a crítica
brasileira, que teve que se adequar diante da diversidade musical
apresentada em festivais como este. Em 1978, a relação entre a Secretaria
da Cultura, Ciência e Tecnologia de São Paulo e a organização do festival
de Jazz de Montreux, fez acontecer o primeiro Festival Internacional de
Jazz de São Paulo, com o objetivo de estimular as trocas culturais e a
revitalização de artistas já consagrados pela mídia mundial, além do
investimento em novos lançamentos no mercado fonográfico. Sessenta mil
pessoas assistiram aos espetáculos realizados no palácio das convenções
do Anhembi, durante oito noites de apresentações, em que instrumentistas
brasileiros dividiram o palco com grandes estrelas norte-americanas. Dois
anos depois, em 1980, aconteceu a segunda edição deste mesmo festival.
É a década de 80, então, que reforça a importância do Brasil no mercado
dos festivais desse tipo. Em 1985 o Rock’n’Rio chama a atenção do mundo
para um festival de rock realizado aqui. Naquele mesmo ano, São Paulo e
Rio de Janeiro assistem ao Free Jazz.
O objetivo desta pesquisa é assinalar, assim, as diferentes posições da
crítica jornalística brasileira diante do avanço da cultura de massa,
notadamente da cultura norte-americana, que exerce maior influência sobre
as demais, durante os anos em que o Free Jazz aconteceu. Mas ao seu
final, aponta, também, para os problemas da contemporânea crítica
musical brasileira, de forma a indicar que o constante fluxo de músicos
internacionais em direção ao Brasil, fortalecido justamente pelos festivais
de música, anseia por uma nova crítica, mais infensa às partilhas
nacionalistas, tanto mais que numa era globalizada. O debate em torno da
entrada de música estrangeira no país foi ainda muito forte durante a
década de 1980, mas parece ter perdido força ao longo dos anos de 1990.
A questão colocada por este trabalho é se ainda faria sentido nos anos
2000.
Capítulo 1 - A questão das linhas críticas em tensã o, o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular, a vanguarda e o desenvolvimento
No início do século XX, o Brasil foi marcado por uma busca de sua identidade
nacional. Busca, aliás, que ecoou por muito tempo no país, através das críticas
referentes ao campo artístico-cultural, que teve seu início a partir da Semana
de Arte Moderna, símbolo dessa busca por uma arte de expressão nacional.
Vale referir, aqui, a precisão trazida por Liliana Bollos em sua tese de
doutoramento, posteriormente transformada em livro: exatamente no mesmo
ano da Semana, completava-se cem anos da independência política do Brasil.
Havia nesta época, portanto, “uma necessidade de se definir o que era a
cultura brasileira, o que era o “sentir brasileiro”, quais os seus modos de
expressão próprios.” (BOLLOS, 2007, p. 49). Ainda de acordo com a autora, a
semana de 1922 pode ser considerada como o “marco zero” da elaboração de
um projeto modernista, em plano musical. Foi Mário de Andrade, um dos
intelectuais mais importantes emergidos daquela semana, quem encabeçou
este projeto musical modernista.
De fato, Mário de Andrade foi o grande idealizador dessa proposta, talvez
porque, como nota José Miguel Wisnik, entendia a música popular como “a
criação mais forte e a caracterização mais bela de nossa raça” (SQUEFF &
WISNIK, 2004, p. 134). O projeto modernista proposto por Mário baseava-se na
idéia de que a música no Brasil tinha esse poder de representar a sociedade
brasileira. Para ele, a riqueza de apropriações, seleções e sínteses criativas
que existiam na nossa música popular não deixava nada a dever para a cultura
erudita (WISNIK, 2004, p. 147).
Mário foi o grande inspirador das reflexões teóricas dos compositores da
época. E para ele, a música brasileira encontraria seu lugar nas artes quando
fizesse música de cunho erudito, atrelada a elementos da música folclórica
brasileira. Dentro dessa visão, a música de caráter nacional oscilaria entre a
música “interessada”, ou seja, aquela presente no imaginário da cultura
brasileira, como as músicas folclóricas; e a música “desinteressada”, que se
destina a fins contemplativos, como a música de concerto. É José Miguel
Wisnik quem nos aponta este panorama. E ele sintetiza de forma clara a
função deste projeto para a música popular: “o seu programa aponta para uma
música “artística” que encontre ao mesmo tempo uma nova função prática (a
conquista da expressão nacional).” (SQUEFF & WISNIK, Idem, p. 144).
Daquela semana, dentre os muitos autores que despontaram, dois mentores
destacam-se por encabeçarem duas vertentes que, embora diferentes em suas
propostas, seguiam juntas na busca da construção de um novo caráter
nacional para o Brasil. Mário de Andrade formula uma proposta voltada para a
realidade brasileira, enquanto que Oswald de Andrade assoma com um cunho
mais universalista, em que os estrangeirismos tem lugar, quando deglutidos e
digeridos, de forma a gerar uma arte, ainda assim, brasileira. Dessa forma
apresenta Liliana Bollos:
A Semana de Arte Moderna teve uma função, digamos, simbólica,
importante na identidade cultural brasileira, pois dali saiu a vertente
nacionalista, sob o comando de Mário de Andrade, que iria
desempenhar o papel de administrar nossos valores e seus
desdobramentos, mas também outra de cunho mais universalista,
cujo objetivo era também a busca de uma brasilidade múltipla, tendo
Oswald de Andrade como a figura principal dessa Antropofagia
Cultural (BOLLOS, 2007, p. 49).
É importante notar que ambos buscavam uma identidade nacional, porém cada
qual delimitando espaços diferentes para a busca de novos elementos para a
criação artística. Oswald de Andrade, como nos aponta Leda Tenório da Motta,
se mostra “mais disposto a nos ver mais como canibais do que bons
selvagens” e aponta para “a preocupação em correlacionar a produção
nacional e a estrangeira, pondo tudo, altivamente, na conta do universal.”
(MOTTA, 1998, p. 48). Leda resume as duas vertentes, então:
os homens de Mário, o “primo pobre” funcionário público, que
trabalha como administrador cultural, e os discípulos de Oswald, o
insuflador estético que é um dândi rico e “homem sem profissão””.
(Idem, p. 50).
Heitor Villa-Lobos foi um dos grandes músicos a incorporar a proposta
modernista de 22, sob a inspiração de Mário. Vale ressaltar, no entanto que,
embora defensores desse projeto nacionalista que parecia ignorar o emergente
nascimento de uma cultura popular urbana em favor da erudição do povo, tanto
Mário quanto Heitor merecem um destaque especial, uma vez que, sob os
olhos da crítica, percebemos de forma marcante a presença desse caráter
dissonante na cultura brasileira, tão evitado na proposta da música
nacionalista, como explica Wisnik:
Villa-Lobos porque se formou musicalmente no meio dos chorões
seresteiros e sambistas do Rio de Janeiro no início do século, e a sua
música, trabalhada pela sua formação erudita em processo de
atualização modernista, nasce tangenciando a mesma fonte sócio-
cultural de onde saiu a música popular urbana de mercado. (...)
Quanto a Mário, homem dividido entre um modo socrático–platônico e
um modo dionisíaco-nietzscheano, embora apresente nos seus textos
programáticos traços daquela resistência aos aspectos polimorfos da
cultura popular (resistência subjacente ao paternalismo folclorista
(...)), lança no Macunaíma o imaginário submerso do mundo
indígena-rural como dado emergente no panorama da cidade,
detonando um confronto vivo, polifônico, agônico-lancinante, que
flagra as defasagens e sintonias inesperadas entre os vários tempos
culturais de um país que vive (como encruzilhadas de destinos) num
aglomerado de relações capitalistas e pré-capitalistas. (SQUEFF &
WISNIK, Idem, p. 136-137).
A questão é que os centros urbanos estavam rápidamente se desenvolvimento
e uma forma musical de caráter urbano, também. A crescente difusão dos
meios de comunicação de massa, com o intenso fluxo de novas informações,
estrangeiras ou não, se propagava intensamente entre essa nova população
urbana e estimulava ainda mais as discussões sobre o nacionalismo no país.
Ou seja, quando a cultura brasileira começa a sofrer as primeiras influências
das comunicações de massa, todo o cenário da cultura musical no Brasil indica
uma mudança a partir de novas incorporações, principalmente as estrangeiras,
norte-americanas de onde se importava essa nova tecnologia. O mercado da
música ganha mais força, estimula a proficionalização do músico, mas traz à
tona os problemas da indústria cultural, como esclarece Jomard Britto, em seu
livro, Do modernismo à bossa-nova:
Através do rádio, não somente a difusão, mas sobretudo o maior incentivo à
criação musical: a disputa, a concorrência, a dificuldade de sobrevivência, o
inicio da profissionalização. Todos esses aspectos como faca de dois gumes:
a necessidade de expansão, de democratização cultural, e os equívocos da
comercialização, da deturpação rotineira. (BRITTO, 2009, p.131).
Diante deste novo cenário, a crítica nacionalista musical atua, então, de forma
a discutir a entrada dessas culturas estrangeiras na nossa produção musical,
facilitada pelos meios de comunicação, e prefere afastar os estrangeirismos,
principalmente o norte-americano, tido como símbolo da indústria cultural, em
favor da busca por um nacional que privilegia o Brasil com seu folclore mas, ao
mesmo tempo, a grande arte com sua música erudita, provinda das instituições
de influência européia. Neste ponto, nos debatemos com a primeira
contradição dessa crítica de cunho nacionalista. Quem nos conta é Enio Squeff
no livro: O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira:
O que se condena na crítica da época modernista será sempre, sem
dúvida, sua incompreensão em relação à música exarada da semana
de 22; mas ela não foi menos alienada por ter discutido o problema
do nacionalismo nos termos dos modelos europeus, uma síndrome
que, aliás, se prolongará também à vanguarda (...). O Brasil visto
através da Europa, eis aí um problema que nem um crítico lúcido
como Mário de Andrade conseguiu evitar. (SQUEFF & WISNIK, 2004,
p.122).
A proposta modernista parecia não contar com as mudanças impostas por uma
nova era, ditada pela mídia e pela diversidade. Aceitava a assimilação da
música erudita européia, mas negava a música popular procedente de outras
culturas, como nos mostra Carlos Calado, em seu Jazz como Espetáculo,
quando nos aponta para um fato bem comum na crítica musical dos anos 1920,
diagnosticando o sintoma daquele pensamento marioandradiano em boa parte
da geração de críticos da época: “Ao gravar quatro discos, em 1929, a
Orquestra Típica Pixinguinha-Donga era acusada pelo crítico da revista
PhonoArte, Cruz Cordeiro, de ter se aberto à influência nociva do jazz”
(CALADO, 2007, p.237). O jazz estava, então, começando a se fazer conhecer,
através do rádio.
Outro importante crítico que por muitos anos trabalhou de forma a afastar a
presença da cultura norte-americana sobre nós foi José Ramos Tinhorão. Com
toda sua aversão aos estrangeirismos, concluiu que após o fim da primeira
guerra, um grande número de imigrantes europeus e asiáticos se juntou no
centro-sul-sudeste brasileiro, transformando a população nacional, que se
tornava mais aberta para as influências externas. Para Tinhorão, essa
transformação pela qual a sociedade urbana passava, prejudicou o encontro do
Brasil com o seu verdadeiro caráter nacional: “essa penetração das novidades
americanas iria ser facilitada pela ausência de identidade nacional das novas
camadas de classe média, que se formavam ao influxo das modernas
condições econômicas” (TINHORÃO, 1998, p.251).
Por sua vez, José Miguel Wisnik nos esclarece, então, como se dava o
pensamento ideológico presente na música modernista:
a plataforma ideológica do nacionalismo musical consistia justamente
na tentativa de estabelecer um cordão sanitário – defensivo que
separasse a boa música (resultante da aliança da tradição erudita
nacionalista com o folclore) da má música (a popular urbana
comercial e a erudita europeizante, quando esta quisesse passar por
música brasileira, ou quando de vanguarda radical). (SQUEFF &
WISNIK, Idem, p. 134).
O projeto nacionalista ganha mais força durante os anos de 1930, sob o
governo de Getúlio Vargas, porém, como nos esclarece José Ramos Tinhorão
na sua História Social da Música Brasileira, a proposta governamental, embora
fortalecesse a música nacionalista de Villa-Lobos, também abriu espaço para
todo tipo de música nacional, inclusive à cultura popular emergente:
No plano cultural o espírito do aproveitamento das potencialidades
brasileiras que informava a chamada nova política econômica,
lançada pelo governo Vargas, encontrava correspondente nos
campos da música erudita com o nacionalismo de inspiração
folclórica de Villa-Lobos, na literatura com o regionalismo pós-
modernista do ciclo de romances nordestinos e, no da música
popular, com o acesso de criadores das camadas baixas ao nível da
produção do primeiro gênero de música urbana de aceitação
nacional, a partir do Rio de Janeiro: o samba batucado. (TINHORÃO,
1998, p. 290).
Percebemos então que, em paralelo a este apoio do governo à música erudita
modernista de Villa-Lobos (bem separada da popular por aquele cordão-
sanitário de que fala Wisnik em citação anterior), dá-se também um apoio
crescente a toda essa nova cultura popular de origem urbana que estava
emergindo no Brasil através, principalmente, do samba. A modernidade
capitalista e seus novos meios de comunicação de massa, expandiram as
fronteiras dessa cultura emergente e invadiram todos os lares, quer através de
programas radiofônicos, quer das indústrias e do mercado capitalista em
expansão. O projeto modernista que se originou com uma proposta de música
“nacional-eudito-popular”, em que o erudito bebia nas fontes populares do
regionalismo nacional, precisou se rearticular diante da música popular urbana,
que não tinha sido prevista por ele:
A intelectualidade nacionalista não pode entender essa dinâmica
complexa que se abre com a emergência de uma cultura popular
urbana que procede por apropriações polimorfas junto com o
estabelecimento de um mercado musical onde o popular em
transformação convive com dados da música internacional e do
cotidiano citadino. Como vêem no popular distanciado um ethos
platônico, acham que ele deve retornar de forma organizadamente
pedagógica para desenvolver o caráter perdido pela cultura de
massa. (SQUEFF & WISNIK, Idem, p.148).
Wisnik assinala a origem da discussão modernista diante dessa marcante
presença da indústria – cultural, apontando que houve a “criação de um espaço
estratégico onde o projeto de autonomia nacional contém uma posição
defensiva contra o avanço da modernidade capitalista.” (Idem, p. 134). Esse
espaço estratégico, representado aqui por Mário de Andrade, pretendia, ao
rejeitar essa cultura popular emergente, defender a produção da Grande Arte
contra o avanço da música popular comercial. Objetivava, assim, uma elevação
“estético-pedagógica” do país. O governo aprovava a luta modernista e sua
busca para educar os ouvidos do povo, mas paralelo a isso abarcava, também,
o samba, proveniente dessa nova população urbana, contanto que houvesse a
exaltação do Brasil:
Durante o Estado Novo, o samba, que tradicionalmente sustentava a
apologia da Boêmia e do ócio malandro, dialoga ambigüamente com
o poder, aquiescendo muitas vezes no elogio da ordem e do trabalho.
Ganhando nesta época o tom eloqüente do samba-exaltação, ele
proclama o Brasil como usina do mundo, faiscante forja de aço do
futuro, segundo um ethos heróico pouco comum em sua história. E é
somente esse clima que torna passível de sentido essa pérola do
pleonasmo e da tautologia, incrustada na Apoteose de Ari Barroso:
entendido como uma enorme oficina que “trabalha cantando feliz”,
esse coqueiro que dá coco é finalmente o Brasil. (SQUEFF &
WISNIK, Idem, p. 190).
Percebemos, então, que a intenção governamental, pretendia, antes de tudo,
se aproveitar da música, a fim de colaborar com a sua política nacionalista.
Quem assim pensa é Tinhorão:
a música popular brasileira iria dominar o mercado durante todo o
período de Getúlio Vargas – 1930-1945 -, em perfeita coincidência
com a política econômica nacionalista de incentivo à produção
brasileira e a ampliação do mercado interno (TINHORÃO, 1998, p.
299).
Fato foi que aquela proposta modernista de Mário de Andrade para a música
nacional brasileira excluiu a crescente música popular urbana do contexto do
caráter nacional. Mas o governo de Getúlio Vargas percebeu logo que poderia
se utilizar dela para abraçar o povo e, com o domínio do rádio, atingiu toda a
população que se identificou rapidamente com aquele samba de exaltação
nacional. Afinal, aquela cultura da música erudita já estava muito distante da
realidade do povo das cidades brasileiras e, embora o avanço capitalista tenha
participado direta e indiretamente deste processo cultural urbano, pode-se
considerar que muito da força criativa dessa música foi fundamental para
demarcar sua entrada definitiva na cultura nacional. Assim, acredita Wisnik:
Como a música popular é um espaço de resistência mais forte do que
sua emulação cívico-patriótica além do que ocupando uma posição
relativamente ofensiva no cenário cultural brasileiro urbano-moderno,
o resultado não será na verdade uma conversão do “carnaval” ao “dia
da Pátria”, mas a instauração da movimentada cena da político-
chanchada populista, onde há lugar para o senador gagá dançar seu
samba (como na cena famosa de Terra em Transe) (SQUEFF &
WISNIK, idem, p. 135).
Aqui, Wisnik já está naquela fervorosa década de 1960, quando essas idéias,
até então incisivas, porém implosivas na música nacional-erudito-popular, se
tornam decisivas e explosivas na música popular de então. Quando surge a
Bossa Nova no Brasil, a demarcação dessas posições críticas fica mais
evidente. E, embora Mário de Andrade tenha influenciado a formação de uma
linha crítica purista dentro do universo da música popular brasileira, Jomard
Muniz apresenta a Bossa Nova de forma a colocá-la bem próxima daquelas
propostas modernistas, encarando a bossa não como música estrangeira
devido à utilização de elementos do jazz, mas como uma música de caráter
nacional brasileiro:
Bossa Nova, em seu desenvolvimento, reconstrói os passos da
modernidade lírica brasileira, a partir da Semana de Arte Moderna de
São Paulo, 1922. Começamos ouvindo o lirismo da sen-si-bi-li-da-de,
espontâneo, intimista, levemente irônico, que busca a poeticidade do
cotidiano por meio de uma linguagem de queixa e desabafo. (...) Em
relação a Bossa Nova, essas manifestações líricas partem do folclore,
dos sentimentos e expressões populares, revelando não uma atitude
de “regionalismo tradicionalista” mas assumindo a própria dinâmica
social. (BRITTO, 2009, p.140-141).
A Bossa Nova inovou não só por incluir na música brasileira novos conceitos
estéticos vinculados a um ritmo e a uma harmonia inusitados para a época,
como também renovou ao romper com os excessos de décadas anteriores e
quando expandiu – peço licença para usar um termo de Santuza Cambraia
Naves – a “mulatisse brasileira”, ao utilizar tanto o erudito quanto o popular nas
suas composições. A autora nos mostra que Tom Jobim e João Gilberto nos
servem como metáfora para explicar como se deu esse encontro:
É como se ambos interpretassem o momento histórico em que viviam
de maneiras diferentes: João à maneira construtivista que marcava a
década, tanto na literatura quanto na arquitetura e nas artes plásticas,
e Tom a partir do ponto de vista do modernismo musical,
representado, por exemplo, por Villa-Lobos (NAVES, 2001, p.18).
Santuza explica ainda que a concisão, a objetividade e a racionalidade
presentes na obra de João convergem com as propostas da poesia concreta de
Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari nos anos 1950, que rompem
com tradições associadas ao excesso ao se utilizarem de uma linguagem
sintética bem próxima da publicitária. Já Tom Jobim, de formação erudita,
recorre ao excesso “tanto sinfônico quanto coral” (Naves, 2001, p.19) para
representar um Brasil exuberante e rico em seus elementos físicos e culturais.
Trabalhou algumas vezes com Radamés Gnattali, incluindo na gravadora
Continental onde faziam orquestrações para composições populares. A autora
nos mostra que, dessa relação, Tom aprendeu a transitar entre os domínios do
erudito e do popular, “operando tanto no registro da simplicidade quanto na
estética do excesso” (NAVES, Idem, p.20), assim como fazia o mestre.
Tom se encantou pela Bossa e tanto ele quanto João contribuíram com a dose
certa de erudito e popular na criação do novo estilo. “João Gilberto e Tom
Jobim se complementavam, portanto, com suas contribuições específicas. João
entrou com o ritmo, a batida Bossa Nova, e Tom, com a sua harmonia
requintada.” (NAVES, Idem, p.20).
A Bossa Nova surgiu em perfeita harmonia, não só com a poesia concreta da
época, como também com os anos otimistas e dinâmicos do governo JK e com
a arquitetura moderna de Oscar Niemeyer. Mas neste momento, como nos
aponta Liliana Bollos:
havia também um Brasil aparecendo diante do mundo, com o seu
nacionalismo acentuado, que cobrava de seus artistas uma suposta
fidelidade à Pátria, como se as influências a que éramos submetidos
fossem possíveis de serem abolidas.” (Bollos, Op. cit., p. 129).
Na segunda metade da década de 1950, portanto, retoma-se a discussão do
nacionalismo perante a crítica, num universo aonde a cultura urbana das
cidades industrializadas “financiadas pelo capitalismo internacional e
destinadas a produzir para o mercado interno” (BOLLOS, 2007, p.130), convive
com a cultura popular folclórica “nos versos de João Cabral de Mello em Morte
e vida Severina (1955) e com Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas
(1956)” (BOLLOS, 2007, p.129). Jomar de Britto nos mostra em que ponto se
deu a necessidade de volta dessa discussão:
Nossa situação-momento (a partir de 1955) enfatizava o problema do
desenvolvimento; fazia-se uma análise de nosso processo de
industrialização; exigia-se, quer de mãos dadas com a burguesia
industrial ou não, autonomia nacional, luta contra o imperialismo,
planejamento setorial e global (BRITTO, 2009, p.143).
Santuza, em outro texto publicado no livro Sobre Augusto de Campos, nos
revela como Augusto contrapõe as linhas críticas que se seguiram daí, a partir
de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, apontando:
é significativo o fato de os compositores que defendem o
“tradicionalismo” se basearem em Mário de Andrade, que disse: “o
artista que procura se expressar na arte universal corre o risco de, de
repente, se surpreender fazendo arte de outra nacionalidade que não
a sua” (1993:160). (...) Lembra que, no fundo, repugnava ao próprio
Mário a “estreiteza do ideário nacionalista” (1993:160), e confirma o
antinacionalismo e a proposta antropofágica de Oswald, que
fundamentaria as posições de compositores inventivos, como
Caetano Veloso. (SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio Castañon.
Org., 2004, p. 249-250).
Conseguimos perceber, hoje, passada a euforia da invenção da Bossa Nova, o
caráter artístico de nacional brasileiro conquistado por ela. Mas o que
pretendemos esclarecer adiante é que, embora em pleno acordo com a
estética concretista e a proposta moderna do governo de JK (vale lembrar,
ambas as atitudes inovadoras, ainda não bem entendidas pela sociedade), a
nova música brasileira que marcadamente começou em 1958, com a gravação
da canção, chega de saudade (Tom e Vinícius), causou aversão à crítica,
principalmente por carregar o estigma de influência do jazz. Música feita por
norte-americanos, símbolo da dominação estrangeira sobre nossa cultura.
Com o mesmo caráter nacionalista que vinha se imprimindo sobre a cultura
brasileira desde o início do século, a crítica se comportou de forma aversiva,
relativamente às vanguardas dos anos 1950, como se a nossa nacionalidade
estivesse em risco, em face da avalanche de inovações tecnológicas e
midiáticas, que facilitavam o intenso fluxo de outras culturas no Brasil,
principalmente a norte-americana. Seria a forma de impor o seu imperialismo
sobre nós. Vejam como colocou Tinhorão: “o predomínio do modelo americano
(...), levou o plano dos costumes e do lazer urbano a um processo de
americanização destinado a atribuir a tudo o que parecesse “regional" ou
“nacional” o caráter de coisa ultrapassada” (TINHORÃO, 1998, p. 307). Para o
autor, a mudança que acontecia na música não podia ser favorável para o
Brasil, uma vez que, fruto do seu processo de industrialização, quando, para se
modernizar, assumia a entrada de capital estrangeiro (aqui a dominação!) para
a instalação de indústrias.
Tinhorão faz parte daquela crítica de cunho nacionalista, que Liliana Bollos
chamou de nacionalista ortodoxa, uma vez que pretendia preservar os gêneros
autênticos da música popular brasileira e não admitia influências estrangeiras
na música nacional. Para o autor, esse processo de incorporação estrangeira
cria não uma cultura popular urbana, mas a massa popular e a “subordinação
do artístico ao comercial” (TINHORÃO, 1998, p.248) e que isso explicava:
não apenas a crescente transformação da música popular em
fórmulas fabricadas para a venda (depois de obtida a massificação,
basta produzir “o que o povo gosta”), mas a progressiva dominação
do mercado brasileiro pela música importada dos grandes centros
europeus e da America no Norte, sedes também das gravadoras
internacionais e da moderna indústria de aparelhos eletrônicos e de
instrumentos de alta tecnologia (TINHORÃO, 1998, p. 248).
Com a crescente presença da economia estrangeira no país, Tinhorão se
munia de argumentos de cunho sociológico, para esclarecer sobre as
desvantagens dessa presença estrangeira no Brasil, que caracterizou, para ele,
a perda de nossa original identidade brasileira. Além disso, a proximidade da
nossa música com o jazz trazia embutida a fórmula para a criação das massas
urbanas, uma vez que ela era a “nova música de consumo norte-americana”
(TINHORÃO, 1998, p.253). Aceitar essa música significava, então, um estado
de dominação, de colonialismo cultural:
nas nações em que a capacidade de decisão econômica não
pertence inteiramente aos detentores políticos do Poder, como é o
caso de países de economia capitalista dependente – e entre eles o
Brasil em estudo - a própria cultura dominante revela-se uma cultura
dominada. (...) Esta cultura dominante não é sequer nacional, mas
importada e, por isso mesmo, dominada. (TINHORÃO, 1998, p. 10).
Os nacionalistas preferem, então, se fechar contra o processo capitalista
criador da indústria da cultura e do entretenimento, mantendo a devida
distância entre o produto cultural e a grande arte brasileira. Pensamento, aliás,
dominante no cenário crítico brasileiro, como apontou Liliana Bollos: “Em meio
a tanta discussão, poucos foram os que debruçaram o suficiente sobre o
assunto para inserir a Bossa Nova na história da nossa música popular, o que,
evidentemente, ainda naquela data [1962] era difícil de perceber, uma vez que
poucos tinham o discernimento de perceber o quanto aquela música já era
representativa, ainda mais por ser reconhecida internacionalmente” (BOLLOS,
2007, p. 208). Esta linha, marcada pela suspeição, contrapõe-se, a partir de
determinado momento, à corrente dos semioticistas, à qual pertence, enquanto
musicólogo, Augusto de Campos. Esta corrente mantém uma postura otimista
com relação à cultura de massa e, como nos conta Santuza Naves, “traz para a
cena musical um referencial estético que rompe com o modernismo há muito
instaurado, que se fundamentava em Mário de Andrade” (in. SÜSSEKIND,
Flora; GUIMARÃES, Júlio Castañon. Org., 2004, p. 255). E ela continua: “o
referencial estético mencionado é “moderno” e não mais modernista. “Moderno”
no sentido construtivista do termo que pressupõe uma atitude universalista,
cosmopolita, objetiva e funcional” (in. SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio
Castañon. Org., 2004, p. 255). Campos, juntamente com os outros poetas
concretos, incentivam a assimilação não somente da cultura nacional, como da
estrangeira, contanto que se faça uma análise do elemento incorporado, de tal
forma que não seja apenas uma aceitação de algo imposto a nós. E Santuza
conclui:
O modernismo é portanto revisitado a partir da perspectiva de Oswald
de Andrade, recém-retirado do ostracismo a que fora relegado nas
décadas anteriores. Assim, Oswald passa estrategicamente por uma
releitura construtivista e sua proposta antropofágica se converte na
fórmula ideal para se pensar a canção popular brasileira e um projeto
cultural para o Brasil. (in. SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio
Castañon. Org., 2004, p. 255 - 256).
Percebemos assim, duas linhas fortes que divergem entre si. Na visão dos
nacionalistas, o universal e o moderno nada mais eram do que uma cruel
“realidade de dominação econômica” (TINHORÃO, 1998, p.13). Assim coloca
Tinhorão:
ao envolver a idéia de modernidade e universalidade (quando se
sabe que o que se chama de universal é o regional de alguém
imposto para todo mundo), o som importado leva os consumidores
nacionais ao desprezo pela música de seu próprio país, que passa
então a ser julgada ultrapassada e pobre, por refletir naturalmente a
realidade de seu subdesenvolvimento. (TINHORÃO, 1998, p. 13).
Nessa visão, aceitar a influência não levaria à construção de uma cultura
nacional moderna, porém a um complexo de subdesenvolvimento que levaria a
população
a uma progressiva perda ou desestruturação da identidade cultural, o
que desemboca no ridículo de, ao procurarem tais consumidores
colonizados apresentar-se como modernos, só conseguirem aparecer
como estrangeiros dentro de seu próprio país. (TINHORÃO, 1998, p.
13).
Ainda assim, foi a Bossa Nova a primeira a relativizar as fronteiras entre o
erudito e o popular, tão problemática naquela cultura de caráter urbano, que
começou a despontar no início do século no Brasil. E coube à corrente dos
semioticistas, tidos como “eruditos”, a função de críticos da música popular,
que deram um igual valor para as músicas popular e erudita, até então
“separadas nas colunas críticas dos jornais pelos antigos critérios de ‘elevado’
e ‘baixo’” (in. SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio Castañon. Org., 2004, p.
251). Como nos coloca Santuza, a palavra “inovação” passou a ser o valor
fundamental para se fazer a crítica musical do momento. E o fato foi que, levar
procedimentos da música erudita de vanguarda para a música popular, facilitou
a assimilação de informações restritas ao público erudito, para uma ampla
gama da população.
Campos ironiza os purismos dos que não aceitam a incorporação da cultura de
massa e rompe com o nacionalismo musical, adotando uma posição
universalista e antropofágica para a criação da nova música popular, uma vez
que “torna bastante difícil, segundo ele, frear a entrada no país de informações
advindas de várias partes do mundo.” (Idem, p. 253). E Naves conclui:
Na avaliação de Campos, esse processo teria ocorrido com o futebol
brasileiro, com a poesia concreta e com a bossa-nova, que teriam
deglutido as técnicas estrangeiras de maneira racional e criativa,
resultando no desenvolvimento de novas tecnologias e produtos
artísticos e culturais altamente exportáveis (Idem, Ibidem, p. 254).
Dessa forma, a música brasileira não se converteria em mero elemento exótico,
quando vista por olhos estrangeiros, mas estaria atualizada e sintonizada com
a produção moderna e urbana do Brasil e do mundo, assim como a proposta
concretista propunha. Dessa forma, os artistas estariam encarando as
influências como uma ação positiva sobre novas criações. Apresentado por
Augusto de Campos no Balanço da Bossa, Brasil Rocha Brito, em 1960,
divulgou na página literária “Inversão” do Jornal O Correio Paulistano,
Não se trata de um regionalismo estreito, armado de preconceitos
contra o que se possa adotar de culturas musicais estrangeiras.
Segundo o conceito de bossa-nova, a revitalização dos
característicos regionais de nosso populário se faz sem prejuízo da
importação de procedimentos tomados a outras culturas musicais
populares ou ainda à música erudita. É necessário, apenas, que da
incorporação de recursos de outra procedência possa resultar uma
integração, garantindo-se a individualidade das composições pela
não-diluição dos elementos regionais. (CAMPOS, 1993, p. 24).
De todo modo, nem só o jazz influenciou a bossa-nova. Em um depoimento
concedido à Santuza Cambraia Naves, para o livro Da bossa-nova à tropicália,
Carlos Lyra aponta diversas outras influências sobre a bossa, como o bolero
mexicano, o impressionismo de Ravel e Debussy, além do jazz feito por
Gershwin, Cole Porter, Richard Rodgers, Larry Hart, dentre outros. Além
dessas várias formas estrangeiras, incorpora-se o samba, o xaxado e a valsa
brasileira. Por sua vez, Liliana Bollos chega a questionar a autenticidade das
várias formas musicais encontradas no Brasil, apontando a influência como
ação benéfica para o amadurecimento da produção musical de um país e
explica:
As polcas européias, quando chegaram ao Brasil com a corte
portuguesa, sofreram influências de vários ritmos populares que
estavam aqui se constituindo, por conta das diferentes culturas e
raças que aqui estão se formando, transformando-se em maxixe e
logo em choro. A mesma polca rumou para a América do Norte e lá,
em contato com outros ritmos, converteu-se em ragtime. O swing,
presente na canção americana e big bands da primeira metade do
século XX, mais especificamente nos anos 1930, chegou ao Brasil e,
em contato com ritmos daqui, inclusive com o samba, impôs uma
estrutura formal própria da canção americana (estrutura com duas
partes, 32 compassos), mas recebeu um novo ritmo, a canção-fox, ou
samba-canção, que em contato com ritmos latinos converteu-se em
samboleros. (BOLLOS, Op. cit., p 135).
Com esse ponto de vista, Liliana considera as influências não somente como
parte do processo da criação musical, mas como “ascendências” necessárias
para a criação da música. E aponta o jazz como mais uma dessas
ascendências das quais a Bossa se utilizou.
No entanto, sendo as propostas concretistas muito novas, no âmbito da crítica
musical brasileira, o novo estilou musical feito no Brasil se firmou pelo estigma
que carrega, de ser influência do jazz, uma vez que aquela visão nacionalista
marioandradida já estava a quase quarentas anos em voga no país. O jazz, por
sua vez, também carrega o fardo de representante da política econômica
capitalista-imperialista estadunidense. O estilo evoluiu sempre na companhia
do rádio, ao lado da evolução capitalista e tecnológica, e rapidamente se
proliferou pelos meios de comunicação e atingiu o mundo todo. No Brasil, como
nos conta Tinhorão no seu livro Música popular: um tema em debate, havia um
grande interesse nos jovens brasileiros pelo estilo, mas isso se dava em
conjunto com todos os outros produtos estrangeiros que nos eram impostos
através do imperialismo americano:
o ideal da juventude representante das camadas médias das
populações urbanas passou a ser, no campo da técnica, a profissão
de aviador (nascia a FAB), no da elegância, o uso dos óculos rayban,
blusões de couro e calça blue-jeans e, no das diversões, o cultivo do
Jazz e a realização de reuniões dançantes ao som dos blues que
chegavam às centenas, mensalmente, como parte de um programa
de reciprocidade falso e desfavorável para o Brasil. (TINHORÃO,
2001, p. 57).
Tinhorão resiste a essa influência estrangeira, por relacioná-la diretamente com
a política de dominação-americana, que se difunde rapidamente pelos meios
de comunicação. Ele também nos aponta que, com a eleição de Getúlio em
1951, e sua “pressa de promover uma “solução nacionalista” para a exploração
do petróleo e sua insistência em beneficiar os minérios brasileiros para reduzir
sua exportação in natura” (TINHORÃO, 1998, p. 308) colocou o governo em
choque com os interesses dos Estados Unidos. Isso teria levado a derrota das
propostas presidenciais e ao seu suicídio em 1954, depois de assinar “um
decreto que regulava a remessa de lucros e dividendos das empresas
estrangeiras para o exterior” (TINHORÃO, 1998, p. 308). Dessa forma,
Tinhorão delimita aquele momento em que a entrada da cultura estrangeira,
principalmente a norte-americana, se deslancha no país. Com isso, adota uma
postura que renega toda essa cultura exterior, justamente porque ela carrega
toda a ideologia estrangeira, desfavorável para a formação da nossa cultura
nacional.
Liliana Bollos nos aponta, então, para duas tendências presentes na recepção
crítica da Bossa Nova, demarcadas mais fortemente na década de 1960, pelas
duas primeiras publicações sobre o estilo: “Música popular: um tema em
debate, de José Ramos Tinhorão, pelo que sabemos, de 1966, é o primeiro
livro de críticas sobra a Bossa Nova que se tem notícia. Balanço da Bossa, de
Augusto de Campos, é de 1968” (BOLLOS, Op. cit., p.240). E ela continua: “a
primeira abraça uma postura nacionalista, embasada em estudos sociológicos,
enquanto que a segunda defende a autonomia dos fenômenos artísticos e em
contato com grupos de vanguarda” (BOLLOS, Op. cit., p.241).
Tinhorão pode ser referido, desta forma, à crítica de cunho sociológico, que
tem como um de seus mestres o filósofo alemão Theodor Adorno, oriundo da
escola alemã de Frankfurt. Trata-se de um crítico acerbo da indústria cultural,
que a toma, inteiramente, como cúmplice da ideologia. Percebe-se a
convergência do pensamento tanto de Adorno quanto de Tinhorão, quando o
assunto é jazz. Adorno, em seu texto: O Fetichismo na Música e a Regressão
da Audição, aponta também para o efeito massificante desta música:
A música, com todos os atributos do etéreo e do sublime que lhe são
outorgados com liberdade, é utilizada sobretudo nos Estados Unidos,
como instrumento para a propaganda comercial de mercadoria que é
preciso comprar para poder ouvir música. [...] Todo o movimento do
jazz, com a distribuição grátis das partituras às diversas orquestras,
está orientado no sentido de a execução ser usada como instrumento
de propaganda para a compra de discos e de reduções para piano.
(ADORNO, 1996, p. 77 ).
Essa crítica renega, então, toda essa cultura nascente nas cidades,
classificando todas elas como produto de massa. Augusto de Campos não
nega a veracidade desse fator, mas aponta um caminho de inclusão:
A expansão dos movimentos internacionais se processa usualmente
dos países mais desenvolvidos, para os menos desenvolvidos, o que
significa que estes, o mais das vezes, são receptores de uma cultura
de importação. Mas o processo pode se reverter, na medida mesma
em que os países menos desenvolvidos consigam,
antropofagicamente – como dirá Oswald de Andrade – deglutir a
superior tecnologia dos supradesenvolvidos e devolver-lhes novos
produtos acabados, condimentados por sua própria e diferente
cultura. (CAMPOS, 1993, p. 60).
O musicólogo afirma que não basta recusar essa cultura emergente, propondo
uma volta ao passado, ou uma atitude “saudosista”, porque a universalidade
está cada vez mais presente na vida urbana mundial:
A intercomunicabilidade universal é cada vez mais intensa e mais
difícil de conter, de tal sorte que é literalmente impossível a qualquer
pessoa viver a sua vida diária sem se defrontar a cada passo com o
Vietnã, os Beatles, as greves, 007, a Lua, Mao ou o Papa. Por isso
mesmo, seria inútil preconizar uma impermeabilidade nacionalística
aos movimentos, modas e manias de massa que fluem e refluem de
todas as partes para todas as partes. (Idem, ibidem).
E classifica a música estrangeira também como um elemento folclórico, porém
das cidades, do contexto urbano: “a música estrangeira também popular, mas
de outro folclore não artificial nem rebuscado, o “folclore urbano”, de todas as
cidades, trabalhando por todas as tecnologias modernas e não envergonhando
delas” (CAMPOS, 1993, p. 62). Augusto revitaliza a nova criação brasileira e
justifica o seu êxito quando nos coloca no patamar de exportadores de
produtos acabados e não apenas como exportadores de “matéria prima do
primitivismo nacional, sob o fundamento derrotista de que “o povo” é incapaz
de compreender e aceitar o que não seja quadrado e estereotipado”
(CAMPOS, 1993, p.61). Assim ele coloca:
E foi justamente por não temer as influências e por ter tido a coragem
de atualizar a nossa música com a assimilação das conquistas do
jazz, até então a mais moderna música popular do Ocidente, que a
bossa-nova deu a virada sensacional na música brasileira, fazendo
com que ela passasse, logo mais, de influenciada a influenciadora do
jazz, conseguindo que o Brasil passasse a exportar para o mundo
produtos acabados e não mais matéria-prima musical (ritmos
exóticos), “macumba para turistas”, segundo a expressão de Oswald
de Andrade. (Idem, p. 143).
O concerto de músicos brasileiros no Carnegie Hall em 1962; a presença de
músicos brasileiros em bandas de jazz norte americanas (como o caso do
percussionista Airto Moreira que gravou com Miles Davis em Bitches Brew de
1968); o encontro de Tom Jobim com Frank Sinatra em 1967 para gravar o
álbum: "Francis Albert Sinatra e Antônio Carlos Jobim"; dentre muitos outros
exemplos, corroboram a afirmativa de Campos.
O Tropicalismo encabeçado por Caetano Veloso e Gilberto Gil segue
acreditando que, nas palavras de Caetano, trazidas por Augusto de Campos,
“só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para
selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com
frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema”
(CAMPOS, Op. cit., p.63). E a partir daí, “do modernismo às bossas do pós-
tudo” (BRITTO, Op. cit., p.153).
Tinhorão mantém sua posição, por pensar que as diferenças de classe
continuam demarcando a existência de uma cultura nacional oposta àquela dita
moderna:
Já chegando aos meados da década de 1970, os compositores e o
público continuavam procurando um novo denominador musical
comum, enquanto incorporava sem cessar aqueles novos dados que
a cultura de massa seguia atirando diariamente ao mercado
consumidor sob a forma de bossas, ondas, modas e tendências de
vanguarda.
E isso enquanto o povo, tranquilo na sua permanente unidade
cultural, estabelecida pelo semi-alfabetismo, e social, determinada
pela pobreza e falta de perspectivas de ascensão, continuava a criar
e a cantar alegremente os seus sambas de carnaval, malhando no
bumbo em seu vigoroso compasso 2/4. (TINHORÃO, Op. cit., p. 235).
De todo modo, o jazz, enquanto estilo, só vai se tornar notícia de forma mais
massificada e, desta forma, se abrir irreversivelmente para o contato com
outras formas musicais, com o advento dos festivais de música. Já havia no
Brasil, desde a década de 60, a tradição de tais festivais, mas até então eram
festivais de caráter competitivo. Em 1978, no entanto, acontece o Primeiro
Festival Internacional de Jazz de São Paulo, com o objetivo de estimular as
trocas culturais e a revitalização de artistas já consagrados pela mídia mundial.
Em 1985 acontece o Rock’n’Rio, festival internacional de rock realizado aqui no
Brasil. Neste mesmo ano nasce o Free Jazz em São Paulo e no Rio de Janeiro
e coloca o Brasil na rota dos mais importantes festivais de jazz do mundo. É
neste momento, então, que percebemos uma crítica que vem marcada pela
índole das diferentes plataformas críticas e não mais, uma predominância dos
tradicionalistas.
Capítulo 2 – A História do Free Jazz
A história do Free Jazz começa em outro festival que já se produzia nos
Estados Unidos, chamado Kool Jazz Festival. Duas irmãs, Monique e Sylvia, e
um terceiro produtor e amigo, Paulo Albuquerque, em meados de 1984,
assistiram a diversos shows de jazz e arrepiaram-se ao som de Wynton
Marsalis e Bobby McFerrin. Tanto que se puseram a pensar sobre como
apresentá-los aos brasileiros, sem ter que esperar vinte anos para isso. O fluxo
de músicos estrangeiros no Brasil, embora existisse, era ainda silencioso. Não
mudo, pois já haviam ocorridos dois grandes festivais de jazz em São Paulo,
em 1978 e 1980, patrocinados pela Secretaria de Cultura do estado em
parceria com o Festival de Montreux, na Suíça. Mas eram eventos caros e
difíceis de manter. E, embora shows de música importada ocorressem, não
duravam mais do que poucos dias na mídia, de forma a diminuir o impacto da
discussão no país. Pois bem, Monique Gardenberg descobriu como apresentar
as grandes estrelas midiáticas do jazz para um Brasil ainda ingênuo na
recepção da música estrangeira.
Durante sua viagem, Monique percebeu que, colocando junto novas
descobertas jazzísticas com músicos mais conhecidos do grande público
brasileiro, poderia obter a presença de ouvintes necessária para produzir um
festival. Ela, que começou sua carreira como produtora do Djavan, nos meses
seguintes após o Kool Jazz Festival, fechou contrato com diversos músicos
para shows no Brasil em julho de 1985. Na lista estavam: o guitarrista Joe
Pass, o gaitista Toots Thielemans, o guitarrista Pat Metheny, o saxofonista
Sonny Rollins, o trompetista Chet Baker, entre outros. Foi uma atitude corajosa,
talvez fruto da energia dos vinte e poucos anos, visto que as irmãs não tinham
ainda um patrocinador para o evento. Talvez porque o jazz no Brasil seja
encarado como música instrumental, a idéia inicial para o nome do evento era:
Festival Internacional de Música Instrumental.
Apostando em uma boa apresentação do projeto para convencer os
patrocinadores, levaram três meses até que, em Maio de 1985, apresentaram
para a Souza Cruz, empresa de cigarros, e pediram o primeiro ano de
patrocínio. A empresa topou, mas não aceitou o curto prazo que precedia o
evento (propôs para Outubro), nem a curta duração do patrocínio, propondo um
investimento de cinco anos para o projeto. Também não aceitou o nome inicial
do festival, e exigiu a presença do evento na capital paulista, uma vez que a
proposta inicial englobava apenas o Rio de Janeiro. Das quatro exigências, a
única que não poderia mudar era a primeira, uma vez que os contratos dos
músicos já estavam assinados e com data marcada. Uma semana depois da
primeira negociação, no entanto, a empresa aceitou fazer o festival no início de
agosto, mudaram o nome para Free Jazz (de forma a aproximar o estilo
jazzístico da marca de cigarros Free) e incluíram São Paulo no roteiro do Free
Jazz Festival.
1985
Talvez por isso a parte paulista do 1º Free Jazz tenha se sentido prejudicada
em relação ao Rio. Nesta época, os jornais paulistas, Folha de São Paulo e O
Estado de São Paulo, costumavam enviar correspondentes de seus jornais
para o Rio, de forma a conseguir, em primeira mão, as críticas dos shows.
Garantiam assim a corrida contra o tempo, grande objetivo da mídia
contemporânea. Mas neste ano, de fato, o Rio foi privilegiado com workshops
ministrados por grande parte das estrelas que o evento trazia. As aulas práticas
foram dirigidas por Joe Pass, Pat Metheny, Toots Thielemans, além dos
saxofonistas Moacir Santos e Ernie Watts, do tecladista Rique Pantoja e do
bateirista Pascoal Meireles. O evento paralelo ao festival aconteceu no Museu
da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Além disso, alguns importantes
instrumentistas do jazz se apresentaram somente na capital carioca, foi o caso
do trompetista Chet Baker e dos saxofonistas Sonny Rollins e Ernie Watts.
O primeiro Free Jazz em São Paulo foi sucesso de crítica, mas não de público.
Com base em matérias publicadas no ano de 1985 sobre o festival,
percebemos que o evento não lotou o Anhembi em nenhum dia. E muitas
foram as suposições para isso. Talvez pelo alto preço dos ingressos (de Cr$50
a Cr$100 mil), ou talvez devido à divulgação ineficiente, visto que em São
Paulo a produção do festival foi elaborada em apenas 70 dias. Podemos supor
ainda, que o público não estivesse familiarizado com a música instrumental,
uma vez que neste ano o único cantor do evento era Bobby McFerrin que,
embora com dois LPs gravados, “Bobby McFerrin” de 1982 e “The Voice”
gravado ao vivo na Alemanha em 1984, nenhum deles existia ainda no Brasil.
César Castanho, diretor de produção do evento disse, no entanto, que o
problema de público do festival se deu devido às férias escolares que
impediram um bom público de estudantes com alto poder aquisitivo a
comparecer ao evento. Ainda assim, o primeiro Free Jazz chegou cheio de
novidades musicais para os brasileiros. Privilegiando os músicos
instrumentistas, trouxe para a capital paulista 12 atrações nacionais e
internacionais, que tocaram no Anhembi e no Palace de 2 a 6 de agosto de
1985. O quadro da programação ficou assim:
Data Local Atrações
02.08.1985 – Sexta-feira Anhembi
Bobby McFerrin Gilson Peranzzetta/ Ricardo Pontes Joe Pass Egberto Gismonti
03.08.1985 – Sábado Anhembi
Zimbo Trio Joe Pass Grupo D’Alma Toots Thielemans Sivica
04.08.1985 – Domingo Anhembi
Pau Brasil Toots Thielmans Bobby McFerrin Toninho Horta
05.08.1985 – Segunda-feira Palace Pat Metheny
06.08.1985 – Terça-feira Palace Pat Metheny
A grande novidade deste ano foi, sem dúvida, Bobby McFerrin. Completamente
desconhecido do grande público brasileiro, mas presente em grandes festivais
de jazz pelo mundo, o músico se tornou a grande sensação da música
improvisada quando trocou o piano pelos sons que fazia com o próprio corpo.
Os improvisos criados com sons extraídos de partes do corpo como língua,
caixa toráxica, dedos dos pés e das mãos e garganta, além de sua completa
consciência da respiração exata e afinação impecável, surpreendeu a todos os
críticos neste ano, de forma unanime. Ele foi, sem dúvida, a grande estrela
neste 1º Free Jazz Paulistano.
Joe Pass também entrou para a lista dos melhores. Não era exatamente um
estreante como McFerrin, mas passou alguns anos em relativa obscuridade
devido ao excesso no uso de drogas. Antes, porém, chegou a se apresentar
com Dizzy Gilespie e Charlie Parker, com Coleman Hawkins e também com Art
Tatum, o que lhe rendeu um currículo jazzístico para ninguém botar defeito. Em
1973, com o pianista Oscar Peterson e o contrabaixista dinamarquês Niels
Pedersen, Pass gravou o LP The Trio, que rendeu o Grammy de Melhor
Performance de Jazz por um grupo, em 1975. Quando veio para o Free Jazz,
portanto, já era uma das grandes estrelas do jazz.
O guitarrista tocou standards do jazz como Summertime, músicas de sua
autoria como Blues in G, e até músicas brasileiras como Tarde, de Milton
Nascimento e Aquilo que eu Sei, de Ivan Lins. Zuza Homem de Mello aprovou
o repertório fino do guitarrista e disse que o músico trouxe a tônica do bom
gosto para o festival. Aprovado pelo público: “Sua delicadeza no tratamento à
guitarra elétrica é tal que se tem a impressão de estar ouvindo um violão
acústico. Joe Pass prefere ir, no máximo, a um mezzo forte, mesmo quando a
satisfação dos aplausos espontâneos ocorridos em seu solo do Blues em Sol o
deixa empolgado.” (MELLO, Zuza Homem de. "Anhembi sob o domínio do bom
gosto". In: Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 06/08/1985). Seu show
foi tão emocionante que um fotógrafo que estava cobrindo o evento, chegou a
deixar a máquina na boca do palco para aplaudir.
Toots Thielemans tampouco era um completo desconhecido no Brasil. Já havia
participado de um dos Festivais de Jazz de São Paulo, além de ter gravado
com Elis Regina o disco “Aquarela do Brasil”, lançado em 1969. Em entrevista
para a Folha declarou, ao falar sobre ele e Joe Pass: “só tocamos o que
queremos e gostamos, nenhuma concessão, e fazemos as pessoas chorar.
Pass me fez chorar. É isso que importa na música. Essa energia que arrepia a
pele. Aliás, na música e na vida. O resto não interessa.” (COURI, Norma. "Três
noites mágicas no Anhembi". In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura.
05/08/1985). Nesse clima emocionante, Fred Hersh, ao piano; Marc Johnson
no contrabaixo e Joey Baron na bateria; aqueceram o palco para o gaitista
belga entrar. Quando a platéia já estava enfeitiçada ele apareceu tocando
poucas notas, como num clima de blues. Com um show bem construído e
conciso, o grupo foi contagiante, principalmente nos improvisos onde os
músicos dialogavam de uma forma que Toots chamou de “conversa a quatro”.
No repertório, Velas Içadas de Ivan Lins, Blues in Green, em homenagem a
Elis Regina e a Bill Evans; Palavras, da pianista brasileira Eliane Elias; Days of
Wine and Roses; um standard de Miles Davis, All Blue; além de seu carro
chefe, Bluesette. Sucesso absoluto de crítica, principalmente quando junto com
Sivuca, tocaram Vai Passar, de Chico Buarque e Luz do Sol, de Caetano
Veloso. O show foi tão empolgante que um afoito gaitero, Aloisio Becker, subiu
ao palco para tocar no microfone de Sivuca, mas foi arrancado dali pela
segurança da casa de espetáculos. Sivuca, radiante, mandou o seu recado
para as gravadoras: “O som da harmônica foi feito para tocar Luz do Sol. E
embora as gravadoras prefiram tocar rock, vão reconhecer que isso aqui virou
festa.” (COURI, Norma. "Três noites mágicas no Anhembi". In: Folha de São
Paulo. Caderno de Cultura. 05/08/1985).
Pat Metheny era o mais novo da turma neste Free Jazz. Com apenas 30 anos,
já havia gravado 12 LPs e conquistado três prêmios Grammy, além de estar na
lista dos mais vendidos pela revista Billboard, neste ano. Já havia se
apresentado no Brasil, em 1980, no Rio Monterey Festival, possuía alguns de
seus discos disponíveis no mercado nacional e tocara com Naná Vasconcelos
por dois anos. Era, portanto, a grande revelação da nova geração influenciada
pelo jazz. Como ele mesmo disse, nasceu em meio à parafernália eletrônica e
descobriu a guitarra colocando uma tomada no interruptor. Natural, então, que
seu som passeasse por outras dimensões musicais que iam desde o jazz,
passando pelo rock, até a utilização de sintetizadores. Para tanto, trouxe 3,5
toneladas de bagagem para o Free Jazz. Com duas noites exclusivas para ele
e sua banda, fizeram dois shows de mais ou menos três horas de duração,
apresentando um fusion que a crítica, diante de tantos prêmios e discos,
preferiu elogiar. Logo depois do Free Jazz, Metheny gravou no disco
“Encontros e Despedidas” de Milton Nascimento, por quem o músico tem
enorme admiração.
É interessante notar que, sendo, excepcionalmente, maioria neste primeiro
Free Jazz Paulista, os músicos brasileiros foram os mais atacados pela mídia.
Com exceção do grupo Pau Brasil, que mereceu destaque por sua releitura de
Bye Bye Brasil de Chico Buarque, além de ser considerado por João Marcos
Coelho, crítico da Folha, como referência entre os músicos brasileiros. Bem à
vontade no palco, o grupo apresentou uma mistura de baião com blues,
chamada “Baionete”. Segundo Sion, saxofonista do grupo, a descoberta foi
feita no Rio Grande do Norte quando, na segunda guerra, nordestinos e
americanos se encontraram numa base militar instalada por lá. O Grupo
D’Alma, recém-chegado de uma turnê no Canadá, onde se apresentou nos
festivais de jazz de Montreal, Quebec e Otawa, mostrou um show mais maduro
na opinião de Zuza Homem de Melo. Ainda assim, João Marcos Coelho chegou
a colocá-los na sua lista dos piores do festival, dizendo que o grupo foi vítima
de seu produtor, que não providenciou um bom esquema de palco para eles.
O pianista Gilson Peranzzetta ao lado do saxofonista e flautista Ricardo
Pontes, também dividiu a crítica do evento. Enquanto para a crítica do Estadão,
Ana Maria Ciccacio, foi um show impecável, com um repertório que os
brasileiros já estão habituados diante desses músicos, para João Marcos
Coelho, crítico da Folha, o show de Gilson e Ricardo murchou a platéia depois
de Bobby McFerrin. Com o Zimbo Trio parece ter acontecido o mesmo. Embora
elogiado, principalmente pela versão de Palco de Gilberto Gil, que segundo
João Marcos, significou a boa forma do grupo, para Zuza Homem de Melo,
crítico do Estadão, o Zimbo precisava de uma revisão em sua dinâmica. Ainda
assim, o trio arrancou muitos aplausos da platéia mais cheia desta edição, com
o Anhembi quase lotado. Sivuca, que tocou na mesma noite, declarou: “não
tem estrangeiro aqui que faça sombra aos brasileiros. Ninguém aqui é melhor
que o Zimbo Trio.” (COURI, Norma. "Três noites mágicas no Anhembi". In:
Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 05/08/1985). O público gostou e
aplaudiu de pé o trio que, neste ano, já estava há 21 fazendo boa MPB. Tanto
foi que durante a apresentação alguém na platéia gritou: “Viva o Brasil!”
Sivuca foi quem encerrou a segunda noite do festival, sem muito sucesso de
crítica. Ao que tudo indica, sua banda era muito grande, com músicos inferiores
ao que se esperava, embora Norma Couri, também da Folha, tenha
classificado como um show perfeito. Foi salvo, no entanto, ao dividir o palco
com Toots Thielemans, com quem, neste ano, gravou no Rio de Janeiro o
disco “Chico’s Bar”, que seria mixado na Suécia. Até João Marcos Coelho, que
incluiu Sivuca entre os piores do festival, teve que se render a beleza do
encontro, que chamou de simpática parceria.
Os shows de Egberto Gismonti e Toninho Horta, no entanto, foram bem menos
elogiados. O primeiro por incluir diversos aparelhos eletrônicos em sua
apresentação, de acordo com Zuza Homem de Mello, se perdeu no meio de
tanta parafernália de sintetizadores. Teve uma única parte do show elogiada:
quando tocou Bachianas Brasileiras n° 5 de Villa Lobos. Talvez tenha
agradado, porque o músico começou acompanhado somente do piano, para
depois entrar com os sintetizadores, ou talvez tenha sido uma homenagem
mais que procedente, como colocou Ana Maria Ciccacio. Já Toninho Horta foi
quem fechou a terceira noite do festival. Erro grave, segundo João Marcos
Coelho: “Encerrar com grupos brasileiros – por melhores que sejam – é
convidar a platéia a ir embora.” (COELHO, João Marcos. "Abaixo das
expectativas". In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 06/08/1985).
Começou sua apresentação com a música Gershwin, mas não convenceu a
crítica em nenhum momento do show. Chegou a ser publicado na Folha, no dia
13 de Agosto, que faltou ensaio para o músico e sua banda. Ficou na lista dos
piores, para João Marcos Coelho: “e de homenagem em homenagem e
desencontros lamentáveis, sem arranjos pré-estabelecidos (guitarra, flauta e
flugelhorn tocando em uníssono), foi trôpego até um final infinitamente tedioso.”
(COELHO, João Marcos. "Abaixo das expectativas". In: Folha de São Paulo.
Caderno de Cultura. 06/08/1985). Foi a única dissonância do festival, na
opinião de Ana Maria Ciccacio. Para ela, não foi surpresa perceber que o
público começou a deixar o Anhembi, antes do fim da apresentação.
1986
Em 1986, mais do que divulgar os shows do Free Jazz, a mídia impressa
paulistana começou a discussão sobre os purismos no jazz, a partir de novas
correntes musicais que o festival abraçava, como no caso do saxofonista David
Sanborn e do guitarrista Larry Carlton, que iam além do jazz, ao incorporar
elementos do pop e do rock em suas músicas. Paralelo a isso, o crescimento
do público foi notável. Três das cinco noites tiveram ingressos esgotados mais
de uma semana antes de seu início na capital paulista, no dia 27 de agosto de
1986. Duas dentre as noites contavam com Ray Charles na programação.
Como já era conhecidíssimo por aqui, devido a três outras vindas ao Brasil,
torna-se fácil associar sua presença à venda notável de ingressos.
A questão sobre os purismos já começa antes mesmo do festival, quando
Matinas Suzuki Jr., na matéria: “Festival para saciar ouvidos com apetite de
jazz internacional”, publica na primeira página da Ilustrada no dia de abertura
do evento:
“O jazz não é mais o mesmo. Anos de convulsão e interferência, além do uso
indiscriminado da etiqueta, levaram a uma ampliação tão abrangente do
conceito de jazz que, nas suas fronteiras mais generosas, abriga fenômenos
musicais inclusive antagônicos. Os festivais de jazz tornaram-se uma das
instâncias que permitiram a desterritorialização deste tipo de existencialismo
musical, os promotores do esvaziamento da idéia original. Para encher sua
programação, do Newport a Montreaux, vale Dizzie Gillespie até Elba Ramalho.
“All is jazz”, nada é jazz.” (SUZUKI JR, Matinas. “Festival para saciar ouvidos
com apetite de jazz internacional”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.
27/08/1986, pág. 1).
No ano anterior tal questão não foi abordada, muito provavelmente devido à
presença exclusiva de músicos instrumentais no festival. Mesmo McFerrin,
considerado o único cantor do evento, não ficou tão dissonante do restante dos
artistas, visto que fez de seu próprio corpo instrumento para improvisação.
Além disso, a novidade proposta pelo festival tinha mais valor noticioso do que
a discussão do jazz no Brasil, uma vez que o intenso fluxo de tal presença
estava ainda em seu começo. A partir de 1986, como veremos, a discussão se
torna bem mais aparente. Matinas Suzuki Jr., na mesma matéria citada acima,
continua a explicação:
“Os festivais passaram a se comportar também como feiras turísticas. Eles
estão ligados à grande crise de criatividade atual do jazz. Este é o estágio onde
pode-se vislumbrar claramente as críticas do musicólogo e pensador alemão
Theodor W. Adorno ao gênero. Os improvisos, que despontaram como a marca
de um fluxo livre das paixões, estão automatizados. Haja saco para agüentar
as longas sessões de improviso que hoje, anos 80, apresentam-se mais como
o fluir da padronização do que da espontaneidade.” (SUZUKI JR, Matinas.
“Festival para saciar ouvidos com apetite de jazz internacional”. In: Folha de
São Paulo. Ilustrada. 27/08/1986, pág. 1).
Embora aberto para artistas que fundiam jazz com outros gêneros musicais, o
Free Jazz Festival de 1986 permanecia ainda bem mais voltado ao jazz do que
a qualquer outro estilo musical, como veremos a seguir. As atividades paralelas
também continuaram neste ano, mas agora tanto no Rio quanto em São Paulo,
com workshops dos músicos internacionais e uma conferência com Leonard
Feather, famoso crítico de jazz. O festival foi gravado e exibido pela rede
Manchete. Vejamos, então, como ficou a programação de shows neste 2º Free
Jazz em São Paulo:
Data Local Atrações
27.08.1986 – Quarta-feira Anhembi
Turíbio Santos Larry Carlton João Donato Wynton Marsalis
28.08.1986 – Quinta-feira Anhembi Marcos Ariel Stanley Jordan David Sanborn
29.08.1986 – Sexta-feira Anhembi Manhattan Transfer Paulo Moura Gerry Mulligan
30.08.1986 – Sábado Anhembi Ricardo Silveira Stanley Jordan Ray Charles
31.08.1986 – Domingo Anhembi Dirty Dozen Brass Band Cesar Camargo Mariano Ray Charles
Na sexta-feira, 29.08.1986, quando voltamos ao jornal para saber sobre as
críticas da primeira noite neste 2º Free Jazz, lá está Carlos Calado dizendo
logo na manchete de sua matéria para a Ilustrada: “Na primeira noite, o jazz
andou na corda bamba”. Calado não comunga com essa linha crítica dos
puristas, mas aponta para os problemas desta primeira noite. O último a se
apresentar nesta quarta-feira foi Wynton Marsalis, um trompetista de apenas 24
anos que já carregava consigo o prêmio de melhor trompetista e músico de
jazz, pelos leitores da Downbeat de 1982, além de ser o único músico a
conquistar dois Grammy em áreas opostas: música erudita e jazz. Quando
menino estudou música clássica, o que lhe rendeu uma sólida formação
musical, de forma a aproximar o seu jazz da música erudita. Depois de ouvir
Clifford Brown e Charlie Parker, ficou apaixonado pelo jazz e aí fez uma
carreira de sucesso. Tocou com o baterista Art Blekey e seus Jazz Messengers
e também com a antiga sessão rítmica de Miles Davis, composta por Herbie
Hancock no piano, Ron Carter no baixo e Tony Williams na bateria. Já havia
gravado cinco discos à frente de sua nova banda, nem todos disponíveis nas
prateleiras brasileiras.
O garoto prodígio do trompete veio para este Free Jazz trazendo de sua banda
original somente o baterista Jeff Watts. Os outros eram: Vernon Hammond no
sax, Marcus Robert no piano e Robert Hurst no baixo. Calado sentiu falta do
irmão de Wynton, o saxofonista Brandfornd Marsalis, mais aberto para
diferentes sonoridades. O grupo tocou poucos standards, embora tenham
apresentado uma versão mais acelerada de April in Paris, terminando o show
com um blues. O show mais sóbrio de jazz, neste festival, ficou por conta deste
garoto revelação. Mas isso só percebeu que ficou até o final e conseguiu
escutar o jazz mais genuíno desta abertura.
Os shows foram longos, quando Marsalis entrou já passava de uma da manhã
e a maioria do público já estava cansado. A noite começou com o violinista
brasileiro, Turíbio Santos. O músico fez uma homenagem a Villa-Lobos, mas
não convenceu a crítica quando chamou quatro integrantes da orquestra de
violões do Rio de Janeiro para a execução de Trenzinho Caipira. Para Carlos
Calado, os cinco violinistas soaram desconjuntados, como se não tivessem
ensaiado.
Larry Carlton foi a segunda apresentação da noite. Fez sua vida profissional
transitando com maior frequência pela música pop, tanto que, como músico de
estúdio tocou com Quincy Jones, Michael Jackson e até Ray Charles, músicos
expoentes da música pop norte-americana. Dentro de um festival de jazz e no
Brasil, a presença de tal estilo não era bem vista pela crítica que chegou a
classificar o guitarrista como preguiçoso, produto da indústria cultural: “é um
desses produtos de supermercado que as gravadoras têm nas prateleiras para
agradar a certo tipo de ouvinte pouco exigente.” (“Larry Carlton e Wynton
Marsalis, atrações de hoje”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 27/08/1986, pág.
1). Carlos Calado nos conta que embora o alto volume de sua apresentação
tenha esquentado a platéia do Anhembi, o fusion apresentado pelo guitarrista
exibiu poucas doses de jazz, valorizando mais o rock e o pop, embora o swing
funk tenha aparecido no som do baixista John Pena, e no solo frenético do
percussionista Alex Acunã que caracterizou o momento menos pasteurizado da
apresentação. A banda tocou temas do último disco do guitarrista, “Alone, but
never alone” (gravado em 1986), como: Smiles and Smiles to Go e High
Steppin, além do blues I’ve Gotta Right to Love my Woman que, segundo
Calado, foi tratada de forma semelhante ao restante do repertório, fato que
demonstra a falta de feeling do blues, pelo músico.
Depois de Carlton foi a vez de João Donato, pianista brasileiro que teve seu
nome associado ao jazz por praticar o estilo durante os quatorze anos que
morou nos EUA. Um fato irônico caracterizou a apresentação do músico: ele
estava nitidamente bêbado quando subiu ao palco e, por isso, cometeu
diversas gafes durante sua apresentação. A mais estranha delas foi quando
Donato anunciou uma de suas músicas mais conhecidas, A Rã, e tocou Speak
Low (Kurt Weill/Ogden Nash), deixando a banda que o acompanhava sem
entender nada. Aliás, para Calado, o show só conseguiu chegar até o fim
graças à competência dos músicos acompanhantes: Mauro Senise (sax e
flauta), Luis Alves (contrabaixo) e Robertinho Silva (bateria), que conseguiram
segurar a apresentação, sem interrompê-la antes do fim.
Na segunda noite do festival, a grande estrela foi, sem dúvida, o guitarrista
Stanley Jordan. O rapaz, com apenas 27 anos, começou tocando piano e
transpassou a técnica para a guitarra. Dispensava a palheta e utilizava todos
os dedos das mãos para tocar seu instrumento. Dessa maneira parecia tocavar
duas guitarras ao mesmo tempo. Em 1984 ainda tocava nas ruas de Nova York
para garantir sua subsistência, mas depois de participar do Kool Jazz Festival
se tornou uma das novas descobertas do jazz. Com o disco “Magic Touch”
bateu recorde de permanência no primeiro lugar entre os mais vendidos pela
revista Billboard. Neste Free Jazz foi comparado a Bobby McFerrin, não
somente porque ambos começaram como pianistas, nem tampouco por
transitarem entre standards do jazz, baladas, música pop até clássicos do rock
como os Beatles. Na verdade, tanto McFerrin quanto Jordan foram revelações
apresentadas pelo Free Jazz. Revelações que mostravam maneiras
verdadeiramente originais de tocar seus instrumentos (McFerrin com seu corpo
e Jordan com a guitarra). E tocaram sozinhos no palco. Jordan começou com
Stolen Moments, passou para All the Children e aí bastava fechar os olhos para
ouvir as duas guitarras. O som do instrumento não parou nem para os
aplausos, foi passeando por várias músicas dentre as quais, Georgia on My
Mind (um hit de Ray Charles), Autumn Leaves (de Joseph Kosma), My One
and Only Love, All Blues (de Miles Davis) dentre outras. No bis a música
escolhida levou a outro bis. Qual música? Stairway To Heaven, do Led
Zeppelin.
Concedendo aos apelos da crítica do ano anterior, nenhum músico brasileiro
fechou as noites do festival em 1986. Nesta quinta-feira, a abertura da noite
ficou por conta do tecladista brasileiro, Marcos Ariel. Com um repertório de
músicas brasileiras numa estética fusion, demonstrou sintonia com a banda,
alternando sons mais pesados com a leveza de um solo de piano acústico,
ofereceu ao público melodia original, mas teve bem menos espaço na crítica
jornalística, visto que o foco midiático estava sobre as grandes estrelas
internacionais.
Para terminar, o saxofonista David Samborn, alvo das críticas que precediam o
festival. Fez um show que surpreendeu, principalmente pelo guitarrista que o
acompanhou, Hiram Bullock. Samborn faz parte daquela turma de músicos que
transita entre vários estilos. Já tocou com Stevie Wonder, James Taylor, David
Bowie, Paul Simon e até Rolling Stones. Ou seja, certo caráter pop faz parte do
seu repertório e isso criava uma aversão a críticos de jazz. Seu guitarrista, no
entanto, agradou pela presença de palco: exibia sua guitarra sem fio
caminhando entre os músicos de forma debochada. Dançou e sentou na beira
do palco para tocar Bluesete (de Thielemans) misturada com Samba de Uma
Nota Só. A extravagância do músico foi destaque da crítica, embora relutante
com Samborn e seu tratamento funk para o repertório do show.
O primeiro show da sexta-feira, 29.08.1986, seria o de Keith Jarret, referência
no improviso com piano, mas devido a exigências que não puderam ser
resolvidas pelo festival, como a de um piano Steinway Hamburgo D, foi
substituído pelo grupo vocal, Manhattan Transfer. Criado em Nova York em
1972, o grupo era formado por quatro vocalistas: Tim Hauser, Janis Siegel,
Alan Paul e Cheryl Bentyne, que exibiam durante suas apresentações não
somente o canto, como pequenos happenings. Foram escolhidos para vir ao
festival, provavelmente devido ao recém-lançamento (na época) do disco
“Vocalese”, onde o grupo mostrava novas versões de clássicos do bep-bop,
recriando com a voz os solos originais. Fizeram um show surpreendente,
principalmente pela perfeita execução de arranjos complexos de clássicos
jazzísticos que iam desde o swing até o bop, sem deixar as canções pop de
fora. De acordo com Calado, ouvi-los ao vivo, sem as estratégias de estúdio,
revelava a alta qualidade do trabalho do grupo.
Paulo Moura, compositor, arranjador, saxofonista e clarinetista brasileiro, foi
quem fez o segundo show desta noite, com mais oito músicos no palco. Já
velho conhecido do público paulistano devido a sua constante presença nas
noites da cidade, quer em gafieiras ou concertos eruditos, foi sucesso, talvez
pela sua capacidade de transitar entre diversos estilos musicais. Ainda assim,
não teve tanto espaço na mídia, possivelmente por ser um músico já conhecido
dos brasileiros. Moura esquentou o palco para que entrasse o também
saxofonista, Gerry Mulligan.
Mulligan, assim como Marsalis, também envergou para a música erudita,
ambos caminham pelas trilhas mais clássicas do jazz moderno e trazem como
núcleo central do trabalho as referências dos anos de 1950. Representaram,
então, a parte mais sóbria do festival. Com apenas um disco lançado no Brasil
até então (o “Summit”, gravado com Astor Piazzolla), o saxofonista não foi
exatamente apresentado aos brasileiros pelo Free Jazz, pois já estivera
presente no Brasil em 1978. Foi um inovador na história do jazz quando, na
década de 50, formou um quarteto que dispensava o piano; além disso, junto
com Miles Davis, elaborou o nascimento do cool jazz. Para seu show no Free
Jazz trouxe Bill Mays ao piano, Michael Formanek ao baixo e Richard de Rosa
na bateria. No Rio de Janeiro ainda teve tempo para um passeio no Jardim
Botânico, junto com seu amigo, Tom Jobim.
No sábado, 30.08.1986, quem abriu a noite foi Ricardo Siveira, guitarrista
carioca, juntamente com o seu grupo, High Life. Fizeram um show baseado no
fusion. Nesta noite, mais uma vez tocou Stanley Jordan, para depois subir ao
palco o músico mais esperado deste festival, o grande Ray Charles. Ele
dispensa apresentações. Os ingressos para os dias que ia se apresentar foram
os primeiros a acabar e seu show foi sucesso não apenas de público, como
também de crítica. Carismático, o rei transitou por todos os tipos da música
negra norte-americana, blues, country, rhythm and blues, sem esquecer o jazz.
Veio com uma big band de 28 músicos, incluindo as back vocals, mais
conhecidas como Raelettes. Ganhou o público quando fez um gesto
característico de sua apresentação, levantando-se do piano e abraçando o ar,
como quem abraça toda a platéia. Mas a sensação de receber tal abraço é algo
indescritível e aí, só quem foi pode relembrar.
A última noite do festival começou com o Dirty Dozen Brass Band. Grupo de
metais composto por: Greg Tate e Efrem Towns nos trompetes, Kevin Harris no
sax – tenor, Roger Lewis no sax-barítono e soprano, Charles Joseph no
trombone, Kirk Joseph na tuba, Jenell Marshall no tarol e vocais e Benny Jones
no bumbo e pratos. Com uma formação típica das bandas de desfile de New
Orleans, fizeram um show animado que trouxe boas surpresas para o público
brasileiro, uma vez que a banda não possuia nem um disco lançado por aqui.
Os músicos animaram a platéia que se divertiu com um fusion de jazz e funk,
mas também de jazz e ritmos latinos. A energia alegre da Dirty Dozen Brass
Band contagiou o Anhembi e deixou o público quente para que então entrasse
o pianista brasileiro César Camargo Mariano e depois, mais uma vez, Ray
Charles.
1987
No ano de 1987, o fusion apareceu com mais força na programação do festival.
A partir daqui se torna mais evidente as diversas posturas críticas: de um lado
os puristas, caracterizando a opção mercadológica do festival, os instrumentos
eletrônicos e os adeptos do fusion, como prejudicial à elaboração da música de
alta qualidade; por outro, uma postura crítica mais aberta para a discussão em
torno das novas influências no jazz, determinando caminhos que podem
funcionar, embora nem sempre apostando em tais novidades.
Neste ano tivemos apenas um artista brasileiro fechando a penúltima noite
neste 3º Free Jazz, o multi-instrumentista Hermeto Pascoal, também conhecido
como bruxo, que já vinha sendo aclamado pela crítica como presença
necessária ao festival, desde 1985. O músico já tinha se apresentado no
Festival Internacional de Jazz de São Paulo em 1978 e também no Festival de
Montreux, na Suíça, em 1979. Depois disso, fez diversas apresentações pela
Europa e tocou até no Japão. Referência da música instrumental brasileira no
mundo, teve um espaço privilegiado neste festival, principalmente devido ao
sucesso adquirido no exterior. Seu reconhecimento no cenário da música
internacional levou o festival a colocá-lo como última apresentação na noite de
sábado, encerrando a penúltima noite do Free Jazz, onde ainda tocaram Chick
Corea e Bill Evans. Vamos, então, às atrações que passaram pelo Anhembi,
neste ano.
Data Local Atrações
09.09.1987 – Quarta-feira Anhembi Laurindo de Almeida Jim Hall e Michael Petrucciani Philip Glass Ensemble
10.09.1987 – Quinta-feira Anhembi Dominguinhos Spyro Gyra Sarah Vaughan
11.09.1987 – Sexta-feira Anhembi Nivaldo Ornelas Art Blakey e The Jazz Messengers Sarah Vaughan
12.09.1987 – Sábado Anhembi The Chick Corea Elektric Band Gil Evans Orchestra Hermeto Pascoal
13.09.1987 – Domingo Anhembi Cama de Gato Lee Ritenour King Sunny Adé
A primeira noite do festival vinha sendo anunciada como a mais clássica do
evento, principalmente devido à presença de Laurindo de Almeida,
homenageado nesta edição (anunciado como Laurindo de Oliveira, por uma
voz em off que o chamou ao palco). Prometeu tocar Debussy, Villa-Lobos e
Mozart. O violinista brasileiro quase desconhecido no Brasil, visto que morou
por mais de 40 anos nos EUA, foi premiado com um Oscar, cinco Grammy,
além de mais de 120 discos gravados por lá, nenhum lançado no Brasil até
então. Chegou para o festival com a promessa de um show mais erudito e,
dizem, falando português com sotaque de americano. Não agradou aos mais
xenófobos, que o considerava um produto da indústria cultural norte-
americana. Petrucciani, que tocou logo em seguida, também demonstrou sua
tendência para os clássicos, mas os clássicos jazzísticos. Um pequeno notável
do piano, na época com 24 anos e apenas um metro de altura devido a uma
doença rara que impedia seu crescimento, se considerava um tradicionalista;
tanto que, em entrevista para o Estadão anunciou seus mestres: Bill Evans,
Oscar Peterson e Herebie Hancock. Neste ano estava há 20 tocando piano e já
preparava seu 16º disco. Foi considerado pela crítica do Estadão, como um
dos herdeiros da tradição clássica do jazz, fato que agradava. Para o festival,
tocou acompanhado do guitarrista Jim Hall e juntos foram a revelação
apresentada pelo Free Jazz neste ano. Durante o show, demonstraram
perfeição na arte do improviso. Hall mais contido e Petrucciani invadindo seu
piano com o pequeno corpo. O show sóbrio e clássico apresentado pela dupla
agradou aos jazzófilos mais ortodoxos, mas foi considerado frio e profissional
em demasia pelo crítico do Estadão, Luís Antônio Giron. No repertório muitos
standards do jazz como: Lover Man e All the Things You Are.
O grande destaque desta noite ficou, entretanto, com o assim chamado “Verdi
da era eletrônica”, Philip Glass. Considerado por Giron como o não-jazz dessa
abertura do festival, fez uma música em que o maestro, Dan Dryden, era o
responsável pela mixagem de som ao vivo. Com uma banda que incluía três
sintetizadores (tocados por Glass, Michael Riesman e Martin Goldray), além da
vocalista Dora Ohrenstein que também controlava o coro gravado digitalmente
em um sampler emulador, e do trio de metais Jon Gibson (sax-soprano e
flauta), Jack Kripl (sax-soprano e flauta) e Richard Peck (sax-soprano, tenor e
alto); o grupo causou uma sensação de hipnose no Anhembi, que enfeitiçou
todo o público, já que manteve a intensidade do som sempre igual, com várias
repetições de estruturas musicais, durante toda a apresentação. Rotulado
como músico minimalista pela mídia (título que não agrada ao musico), tocou
trechos de suas óperas, como: Einstein On the Beach (que fez junto com o
diretor teatral, Bob Wilson), Satyagraha e Akhnaten, além de trilhas de filme
como a de Koyaanisqatsi. Falou em português com a plateia e teve uma
recepção carismática por parte da mídia, que destacou o caráter evolutivo e
inventivo presente em sua obra.
A segunda noite neste festival foi a mais polêmica devido às diferenças
marcantes entre os trabalhos dos artistas que tocaram neste dia. Muito
atacado, Dominguinhos fez uma fusão entre forró e jazz, contando com a
presença de Amilson Godoy no piano, Heraldo do Monte na guitarra, Dirceu
Simões na bateria e Arismar Espírito Santo no baixo. Entrou acompanhado
somente do irmão Waldomiro Moraes no triângulo e do zabumbeiro Boréu,
tocando Lamento Sertanejo, para depois entrarem os outros músicos que o
acompanharam. Juntos tocaram: Pedacinho do Céu, Asa Branca, Triste (de
Tom Jobim) dentre muitos outros clássicos da música brasileira. O público se
divertiu, mas o crítico do Estadão, Luís Antônio Giron, destacou que o trabalho
do músico está mais voltado para o folclore do que para os fraseados
jazzísticos, questionando, assim, a participação do sanfoneiro no festival.
Mas Dominguinhos não foi o mais atacado, a banda Spyro Gyra com sua
música pasteurizada, acabou sendo eleita como uma das piores presenças no
festival. Teve seu trabalho caracterizado como descartável, principalmente por
não mostrar uma evolução no repertório que parecia sempre o mesmo, uma
mistura de jazz, pop, rhythm &blues, salsa e funk, exibindo um aspecto de
música velha, que nunca se renova. Liderada pelo saxofonista, Jay
Beckenstein, a banda tocou músicas de seu último disco, como From the Heart,
num formato rumba-jazz bastante criticado. Talvez por já ter tocado no 1º
Festival de Jazz de São Paulo e por isso ter diversos discos disponíveis no
mercado brasileiro, foi eleita a melhor atração da noite por 57% dos 415
entrevistados pelo DataFolha neste ano.
O longo show do Spyro Gyra levou Sarah Vaughan a entrar no placo depois de
uma hora da manhã. Quem conseguiu ficar até o final, apreciou a grande dama
do jazz numa apresentação que deixou a crítica extasiada com seu primoroso
sentido rítimico e toda sua potência vocal, além dos deboches típicos da
cantora. Ela foi a grande diva nesta 3º edição do festival e na memória do Free
Jazz só restaram elogios. Vejam como a descreve, Giron: “ela é quem valoriza,
amplia e identifica o conceito de jazz como um gênero de música negra que
visa à expansão dos limites ditados pelas leis consagradas dos sistemas
musicais” (GIRON, Luis Antônio. “Bebop com forró com fusão". In: O Estado de
São Paulo. Caderno de Cultura. 10/09/1987). Veio acompanhada de George
Geffrey no piano, Andy Simpkins no contrabaixo e Harold Jones na bateria e
juntos apresentaram um repertório repleto de standards como My Funny
Valentine e um pout-porri de Gershwin (Our Love is Here to Stay, But Not for
Me, Embraceable You, Someone to Watch Over Me), foi do clássico ao bop,
passando pela Bossa Nova, mas quando cantou sem acompanhamento,
Summertime (também de Gershwin), deixou o público arrepiado. Neste ano já
tinha 62 de vida e 43 de carreira que lhe renderam 90 LPs lançados no exterior,
alguns deste já no Brasil.
José Arbex, jornalista da Folha, publicou a 15.09.1987, que durante o show de
Sarah, boa parte da plateia já havia saído, talvez pelo atraso, talvez pela
preferência pelo fusion da banda anterior, mas fez uma constatação grave para
o Brasil: “Os assentos vazios e a movimentação incessante do público do
Spyro durante a apresentação de Sarah Vaughan eram a demonstração mais
acabada de um insuportável terceiro-mundismo, do consumismo irrefreável e
mal-educado de uma audiência certamente destituída de tradição musical”
(ARBEX, José. “Quem nasceu para Spyro nunca vai chegar a Sarah". In: Folha
de São Paulo. Caderno de Cultura. 15/09/1987). A musa parece não ter se
importado, fez um show com 90 minutos de duração, cantou 17 canções e até
tocou no piano a canção Once in a While. Foi aplaudida de pé, no fim da
apresentação. Terminou com a frase: “Eu amo vocês!”
Para Giron, esta noite da diversidade agradou ao público, porém colocou em
jogo o próprio conceito do jazz, assim como o show de Philip Glass. E para
colocar a questão, ele foi ao Aurélio buscar o significado do que é o jazz:
“Música profana, vocal ou instrumental, dos negros norte-americanos, que se
tornou progressivamente, depois da I Guerra Mundial, uma forma de expressão
quase universal.” (GIRON, Luis Antônio. “Bebop com forró com fusão". In: O
Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 10/09/1987). Giron destaca que
está nesse quase universal o problema encontrado no conceito do jazz
estabelecido pelos organizadores do evento, pois com este viés abriu-se o
espaço para uma “confusão” de ritmos.
Já o terceiro dia do festival rendeu bons comentários. É o próprio Giron, mas
agora em matéria para a Folha, quem define, já na manchete, o terceiro dia de
festival: “A grande noite do ritmo e da sedução” (GIRON, Luis Antônio. “A
grande noite do ritmo e da sedução”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.
13/09/1987). Aqui, não somente Ella, como o brasileiro Nivaldo Ornelas e o
baterista Art Blakey com os seus Jazz Messengers, proporcionaram a noite
considerada mais jazzística deste festival
Blakey junto com Ms. Vaughan formaram o time de clássicos do jazz neste
festival. E fizeram a terceira noite do evento brilhar. O baterista foi um dos
responsáveis pela criação do ritmo bepbop e a mídia brasileira só lhe rendeu
elogios. Não era pra menos, nasceu em 1919 e conseguiu acompanhar quase
toda a evolução do jazz, com uma carreira de sucesso, onde tocou com Charlie
Parker e Dizzy Gillespie, com Miles Davis, Keith Jarret, Lee Morgan, Waine
Shorter, Wynton Marsalis dentre muitíssimos outros. Veio para o Brasil
acompanhado de seus mensageiros: Benjamim Green, pianista de apenas 22
anos, responsável por metade dos arranjos apresentados no Brasil; Peter
Washington no baixo; Mark Romero na percussão; Javon Jackson no sax;
Robin Eubanks no trombone e Terence Blanchard, que chegou a ser
comparado a Wynton Marsalis, no trompete.
O grupo, considerado como a face mais genuína do jazz neste festival, fez um
show longo com mais de duas horas de duração. O virtuose da bateria,
comparado a um preto véio na aparência, dirigiu um show vigoroso, coeso e
recheado de pulsação rítmica, contrastando compassos de marcha militar, com
batuques africanos. Antes dele, Nivaldo Ornelas, saxofonista e flautista
brasileiro, apresentou um fusion de qualidade onde jazz e música brasileira
(principalmente ritmos populares) se uniram de forma primorosa. Agradou até
os mais ortodoxos! Esta foi uma noite caracterizada como de rituais
primorosos.
A noite de sábado começou com o alto volume do Chick Corea e sua Elektric
Band. Para Carlos Calado foram eles que apresentaram um fusion de
qualidade neste festival, muito provavelmente porque Corea faz parte daquele
time dos que transitam por várias correntes jazzísticas. Seu swing latino pode
ser explicado pelas vezes que tocou com Mongo Santamaria, percussionista
cubano, mas também pela presença dos brasileiros Airto Moreira e Flora Purim
(respectivamente percussão e vocais) na formação de seu grupo mais ilustre, o
Return to Forever. Também passou pela Bossa Nova ao tocar com João
Gilberto e Stan Getz. Fora isso, trabalhou em três discos com Miles Davis, o
“Filles de Kilimanjaro”, “In a Silent Way”, além do “Bitches Brew”, álbuns
históricos no fusion jazz-rock.
Corea, que alternou por algum tempo trabalhos elétricos e acústicos, veio para
o Brasil junto de sua Elektric Band, para apresentar um show onde os
sintetizadores já apareciam em primeiríssimo plano para os brasileiros. Os
elektrics eram: Eric Marienthal no saxofone, Frank Gambale na guitarra, David
Weckl na bateria e John Patitucci no baixo. Com o apelo massivo do alto
volume sonoro, fizeram um show com fusão eletrificada de pop e jazz, onde o
diferencial encontrava-se na bagagem carregada de homogeneidade e alto
nível técnico dos músicos. Além disso, utilizaram recursos visuais para garantir
a atenção do público, quer com os músicos imitando robôs, quer com o gelo
seco que proporcionava um ambiente esfumaçado para o show. As estratégias
funcionaram. Dos 393 entrevistados pelo DataFolha, 74% do público, neste dia,
elegeram o show da banda como o melhor desta noite.
Depois dele foi a vez de Gil Evans Orchestra. O senhor de 75 anos liderou uma
orquestra que contava com a participação de excelentes músicos como:
George Adams (sax e flauta), Chris Hunter (sax), Lew Soloff (trompete), Delmar
Brown (teclados), Mark Egan (baixo), Hiram Bullock (guitarra), Danny Gottlieb
(Baterista) e Airto Moreira (percussão). Evans mostrou uma nova roupagem
para a já tradicional linguagem das big bands, apresentando o show mais free
desta edição do festival. Adicionou à sua orquestra, teclados eletrônicos, além
de instrumentos menos usuais como a tuba e a trompa. Em seu currículo
encontramos trabalhos importantes na evolução do jazz, principalmente
quando trabalhou com Miles, compondo arranjos para gravações em “Miles
Ahead”, “Porgy and Bass”, “Sketches of Spain”, dentre outros. A parceria
Davis-Evans foi uma das mais extraordinárias na história do jazz,
principalmente pela criação impressionista de Evans, que desconhecia a
monotonia e a repetição, fazendo de Miles um interprete ideal. Seus arranjos
ousados fizeram do show um marco na história do Free Jazz.
Depois de tantas feras veio Hermeto Pascoal com toda sua inovação para a
música instrumental brasileira. Já passavam das 2h30 da manhã quando subiu
ao palco e, embora com o público cansado, a banda chegou para continuar o
clima quente da noite, esbanjando criatividade na articulação de músicas
populares brasileiras, fato que fez a crítica vibrar: “característica de um músico
autoconfiante, que recicla memória e tradição, sem absorver influências
externas” (SMIRKOFF, Marcos. “Hermeto Pascoal atrapalha sono do público
de sábado". In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 14/09/1987).
No domingo, além da noite no Palácio das Convenções do Anhembi, Chick
Corea fez um show de graça na Praça da Paz do parque Ibirapuera, como
parte alternativa do festival. De noite, quem abriu a festa foi o grupo brasileiro
Cama de Gato, que fez um show agradável, mas sem maiores destaques na
mídia, seguido por Lee Riternour que, com menos sorte, entrou para lista dos
piores. Não parece ter sido falta de técnica, o guitarrista apresentou um
dedilhado preciso e ótima definição das notas em escalas muito rápidas, mas a
escolha por melodias fáceis e pasteurizadas, como Dolphin Dreams e Rainbow,
com sua aparente falta de feeling para a execução, deram à sua apresentação
um caráter menos inventivo, de acordo com a crítica. Seu show foi comparado
ao de Larry Carlton no ano anterior.
Na última noite deste Free Jazz a grande estrela foi, sem dúvida, o nigeriano
King Sunny Adé e seus African Beats. Conhecido como o rei da juju music, um
estilo de música popular nigeriana, derivada da percussão Yoruba; veio para o
Brasil mostrar um pouco da música pop africana. Tido pelos jornais como o
incendiário do ritmo, colocou cerca de quatro mil pessoas para dançar durante
as quase duas horas de show que apresentou no Anhembi. Também adepto da
fusão, misturou juju music com funk, soul, blues, rythm & blues e até um pouco
de jazz, a banda integrava guitarras, sintetizadores, e também os tambores
africanos. A fusão exótica parece ter sido a receita certa para garantir elogios
da crítica.
Neste terceiro Free Jazz, gravado e exibido pela Rede Globo, percebemos que
a ousadia do festival em abrir espaço para diferentes estilos musicais, como foi
o caso do minimalista Philip Glass e do forrozeiro Dominguinhos, ampliava o
público, mas mantinha o mesmo valor qualitativo das atrações, sempre
priorizando os artistas jazzísticos. Além disso, manteve o trabalho dos
workshops com os músicos convidados e inovou ao promover conferências
sobre o jazz, todas gratuitas. Era evidente, assim, o caminho expansivo que o
festival tomava.
1988
Em 1988, Miles Davis foi a grande promessa do festival. E, embora tenha sido
o mais noticiado pela mídia, não pôde comparecer devido a um diagnóstico de
pneumonia que o impossibilitou de tocar. Para resolver a ausência de sua
maior estrela, o festival organizou às pressas uma jam session com alguns de
seus convidados estrangeiros: Nina Simone, Michael Brecker, Oscar Castro
Neves, The Lounge Lizards, Tonny Williams, Yellow Jackets, Diane Schuur e
Courtney Pine, mas como nos conta Carlos Calado, o que o festival chamou de
jam session “acabou sendo uma espécie de sessão de cinema com vários
treillers de shows” (CALADO, Carlos. “Festival aumenta seu público mas ainda
não é “free””. In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 13/09/1988).
Ainda assim, o festival foi tão noticiando neste ano que Moacir Galo, gerente de
produção da Souza Cruz, declarou que dentre os três festivais patrocinados
pela empresa (além do Free Jazz, ainda patrocinavam o Carlton Dance e o
Hollywood Rock), era no Free Jazz que conseguia um maior retorno de mídia
espontânea em jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão. Duas
transmitiram o evento, neste ano: a Rede Globo e a TV Cultura, ao vivo, pelo
programa Metrópole. Além disso, uma semana antes do festival começar, a
Folha de São Paulo publicou um enorme Guia do Festival que, além de
apresentar as atrações e divulgar a programação de shows e workshops,
incluía no roteiro uma história do jazz e sua presença em filmes e livros.
Dedicava, assim, um enorme espaço para a ampliação e veiculação do evento,
fato que comprova o crescente número de expectadores e consumidores que o
Free Jazz atingia à medida que os anos se passavam. Ainda assim, continuava
com a proposta de se produzir um festival aonde o jazz pedia por todos os
holofotes.
O time de representantes da mainstream neste ano estava recheado de
grandes feras. Eram eles: Ron Carter e Tony Willians trio, Modern Jazz
Quartet, Stephane Grapelli e o mais novo da turma, o saxofonista britânico,
Courtney Pine (isso sem contar a promessa de Miles Davis!). Também trouxe
Nina Simone que, embora considerada uma estrela pop por alguns críticos,
teve uma carreira de sucesso no universo do jazz, do blues, do gospel, do folk
e da soul music, e nesta época contava mais de 50 discos gravados. Foi
perseguida nos Estados Unidos por abraçar publicamente o combate a todo
tipo de racismo e neste ano voltava às rádios com um grande sucesso, My
Baby Just Cares for Me. O festival também apresentou Diane Schuur,
revelação na época recente, do canto jazzístico, devido à potência e grande
extensão de sua voz; e também, os Lounge Lizards, banda da vanguarda pop
nova-iorquina, que só teriam discos lanços no Brasil, depois de sua
confirmação para o festival. Trouxe o saxofonista Michael Brecker, famoso
como músico de estúdio (gravou com Frank Zappa e Frank Sinatra), que havia
montado sua própria banda recentemente. Apresentaram-se no Anhembi na
quinta à noite e domingo, no parque Ibirapuera. O festival também incluiu o
fusion do Yellow Jackets, fato que não agradou à crítica.
Os brasileiros foram representados pela Banda Zil que era composta por
Ricardo Silveira na guitarra, Marcos Ariel nos teclados, Zé Nogueira no sax,
João Batista no baixo, Jurim Moreira na bateria, Zé Renato e Cláudio Nucci nos
vocais. Além dela, contou com a presença do tecladista Antônio Adolfo, que
acompanhou Elis Regina na era “o fino da bossa” e compôs, ao lado de Tibério
Gaspar, hits como Sa Marina e Teletema. Também gravou temas de Ernesto
Nazareth e Sinhô, de forma a se aproximar da música tradicional brasileira. A
terceira noite do festival foi aberta pelo saxofonista brasileiro Léo Gandelman,
bastante requisitado em gravações de estúdio. E abriu com Pixinga a noite que
traria Nina Simone. O beixista mostrou sua fusion com samba: o funk brasileiro.
Teve lugar até para Almir Sater mostrar o seu regionalismo e para Oscar
Castro Neves matar as saudades do Brasil.
A programação cada vez mais eclética do festival ficou assim, então:
Data Local Atrações
06.09.1988 – Terça-feira Anhembi Banda Zil Ron Carter e Tonny Williams Trio Diane Schuur
07.09.1988 – Quarta-feira Anhembi Antônio Adolfo Stephane Grapelli Modern Jazz Quartet
08.09.1988 – Quinta-feira Anhembi Léo Gandelman Courtney Pine Michael Brecker
09.09.1988 – Sexta-feira Anhembi Pixinga Nina Simone
10.09.1988 – Sábado Anhembi Almir Sater Jam Session
11.09.1988 – Domingo Anhembi Oscar Castro Neves Yellow Jackets The Lounge Lizards
A presença marcante do Free Jazz nas manchetes dos cadernos de cultura
possibilitava um prolongamento sobre as discussões do jazz no Brasil; mas
visto a enxurrada de atrações que demarcavam uma ampla gama de
diversidade musical para o evento, torna-se inevitável o surgimento das
diversas vozes críticas, cada qual apontando direções diversas.
Neste ano, os três primeiros dias concentraram digamos, a nata do jazz. E aí
os puristas puderam se deliciar, primeiro com o Ron Carter e Tony Williams
Trio. Carter no contrabaixo, Williams na bateria e Mulgrew Miller no piano.
Fizeram um show elegante e polido, propondo um jazz moderno, mas que não
abandonava a tradição; precisos, inventivos e virtuosos. O baixista e o baterista
já haviam feito parte de um dos quintetos de Miles Davis, e neste show para o
Free Jazz apresentaram Miller, que foi considerado a grande revelação do
evento.
A segunda noite foi considerada como a mais erudita por Luís Antônio Giron. A
começar por Antônio Adolfo que, junto de sua banda, apresentou ótimos
arranjos para um repertório exclusivamente nacional. Depois foi a vez do
violinista francês Stephane Grappelli que, junto de John Burr (baixo) e Marc
Fosset (guitarra), apresentaram o show mais romântico do festival. Aos 80
anos, o músico disse em entrevista para o Estadão que: “o jazz é só
imaginação” (GIRON, Luís Antônio. “O virtuosismo sobre ao palco do
Anhembi”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 07/09/1988). E foi a
grande atração desta quarta feira ao apresentar no seu repertório As Times
Goes By, da trilha de Casablanca, Chattanooga Choo Choo de Glenn Miller,
Someone to Watch Over Me de Jerome Kern, I Got Rhythm de George
Gershwin, dentre outras que reestabeleceram o elo do sentimentalismo,
fazendo a plateia suspirar.
Quando o público já estava nas alturas entrou o Modern Jazz Quartet, para
uma apresentação rica em elementos do jazz tradicional e da música clássica,
fato que levou Ricardo Soares a afirmar, “sua concepção não admite a menor
interferência de ritmos pagãos” (SOARES, Ricardo. “Milt Jackson, sagrado e
profano”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 07/09/1988). Na
época com 36 anos de trajetória, o grupo composto por Milt Jackson no
vibrafone, Percy Heath no baixo, Connie Kay na bateria e John Lewis no piano;
se mostrou lírico, racionalista e tradicional. Todos passaram por uma formação
clássica rigorosa, embora tenham adotado o jazz como pratica inventiva. Dessa
forma elaboravam um jazz onde o procedimento da prática erudita estava
sempre presente. A ideia era que o público não soubesse quando estavam
improvisando ou não. Para o programa do Free Jazz escolheram um repertório
que começou com The Golden Striker, para depois adentrar o universo de
Duke Ellington, homenageado no último disco gravado pelo grupo nesta época,
“For Ellington”. Começaram por Koko e Prelude to a Kiss e depois por mais oito
temas, deixando as 2.700 pessoas, que encheram o Anhembi, extasiadas.
A terceira noite foi dedicada aos saxmaníacos. E se o som do jazz moderno,
como nos conta Joachim Ernest Berendt, vem do sax, torna-se fácil entender
porque esta foi uma das noites mais concorridas na procura de ingressos.
Começou pelo saxofonista brasileiro Léo Gandelman que acabava de ter o seu
segundo disco, “Ocidente”, lançado pela Polygram. Esquentou o palco para
que então entrasse uma das revelações trazidas pelo festival neste ano,
Courtney Pine. O saxofonista britânico, aos 24 anos, veio para mostrar que a
tradição no jazz continuava viva e prosperando como nunca. Influenciado por
músicos das décadas de 1950 e 60 como John Coltrane, Sonny Rollins e Wyne
Shorter, o músico exibiu gritos eufóricos em sua apresentação. Ele e seu trio,
formado por Delbert Felix no baixo e Mark Mondesir na bateria, tocaram Giant
Steps de Coltrane, Misty de Erroll Garner e também a balada de Gershwin, I
Can’t Get Started. Valorizando o improviso quer com mais velocidade ou com o
ritmo mais lento, o grupo apresentou somente seis canções que foram
suficientes para deixar a todos boquiabertos.
Quem fechou esta terceira noite foi Michael Brecker. Mais conhecido por sua
participação em gravações de discos (além dos Frank Sinatra e Zappa,
também gravou com John Lennon, Charles Mingus, Paul Simon, Eric Clapton,
Chick Corea, James Taylor, para citar só alguns), foi considerado como o
saxofonista de maior influencia nesta década, por Carlos Calado. Seu primeiro
disco, no entanto, só havia sido gravado no ano anterior, 1987. Veio
acompanhado do guitarrista Mike Stern, do baixista Jeff Andrews, do baterista
Dennis Chambers e do pianista Joseph Calderazzo. Por sua aproximação com
o Rock, mas também por utilizar um sintetizador, não obteve tantos elogios da
crítica.
A partir de sua quarta noite, o festival começava a apresentar seus convidados
mais fusion. Ainda assim, Nina Simone foi a grande estrela desta noite, aberta
pelo baixista brasileiro, Pixinga. Ele já havia acompanhado Gal Costa, Evandro
Mesquita e Angela Rô Rô e veio para o Free Jazz apresentar seu trabalho
individual, acompanhado pela banda Pavio Curto. Depois dele foi a vez de
Nina, presença temida pela mídia devido a sua inconstância temperamental,
mas amada pelo público, que fez da sua noite a mais concorrida por ingressos.
A cantora, com sua postura altiva, seduziu o público, que a recebeu de pé no
Anhembi. A recompensa foi um show carregado de emoção. Nina se levantou
do piano, dançou e pediu para que o público cantasse. Tocou grandes
sucessos como: Young, Gifted and Black; Mississipi Goddam; Here Comes The
Sun; dentre outros.... Em algumas canções acentuava as palavras, de forma a
ressaltar o discurso a favor da causa negra. Embora passeando também por
seu repertório mais pop, Nina mergulha nas raízes negra e spiritual de sua
história, de forma a resgatar o sentimento originário do jazz. É possível que
esteja neste fato a enorme popularidade conquistada pela cantora.
Certas presenças, no entanto, despertaram a ira dos críticos. No caso de Diane
Schuur, parece não ter convencido devido à inconstância das interpretações e
do repertório, mas mostrou que pela potência e extensão de sua voz, continua
no páreo para diva do jazz. Já os Yellow Jackets, embora com um Grammy no
setor de Rhythm & blues e oito anos de estrada, não foram bem recebidos,
foram classificados como monótonos devido à falta de variação rítmica e
dinânamica no show. O fusion de rock-blues-jazz parece não ter soado bem
aos ouvidos da crítica.
Os Lounge Lizards tiveram menos sorte. Antes mesmo de chegarem ao Brasil,
já era destaque nos jornais a fama de “fake jazz” que haviam recebido da
crítica norte-americana, talvez por isso a mistura de jazz-pop do grupo, liderado
pelo saxofonista John Lurie, parece ter cansado os ouvidos do público. Com
uma apresentação performática, eles experimentavam uma grande mistura de
sons e rítmos com arranjos que exploravam o cromatismo. Talvez não tenham
desenvolvido bem a idéia proposta, talvez a música apresentada fosse muito
diferente de tudo o que apareceu por aqui neste ano. Com a crítica cada vez
mais agressiva diante desta reunião de tendências musicais nem sempre
ligadas ao jazz e com a ênfase dada a tais artistas dentro da mídia, foi Carlos
Calado, na Folha, quem amenizou a questão: “Por mais que os puristas
reclamem, crucificando o festival ao trazer roqueiros e praticantes da fusion,
fica mais uma vez provado que a subsistência do evento passa por essa opção
mercadológica. De que adiantaria uma edição exclusivamente constituída por
nomes do jazz mais estrito, assistida apenas por algumas centenas de pessoas
se no ano seguinte talvez o festival falisse?” (CALADO, Carlos. “Festival
aumenta seu público mas ainda não é “free””. In: Folha de São Paulo. Caderno
de Cultura. 13/09/1988)
1989
Nesta quinta edição do Free Jazz, algumas mudanças marcaram o crescimento
e o amadurecimento do festival. A começar pelo local onde aconteciam os
shows, que passou do Anhembi para o Palace, criando um ambiente mais
intimista do que o anterior. Os workshops com músicos trazidos pelo evento
também continuou, mas além dele, realizou-se, também como atividade
paralela, uma mostra de filmes históricos sobre o jazz. Arriscando um pouco
mais na programação, pela primeira vez o festival soou free ao apresentar um
expoente do estilo surgido em meados da década de 1960 quando
procedimentos atonais foram introduzidos no jazz, aqui representado pelo
pianista Cecil Taylor. Podemos dizer ainda que as noites foram temáticas,
embora tal afirmativa seja, aqui, apenas o embrião de uma ideia que ganharia
muito mais força na década seguinte.
A programação ficou assim:
Data Local Atrações
25.08.1989 – Sexta-feira Palace Nana Caymmi Count Basie Orchestra Joe Williams
26.08.1989 – Sábado Palace Aquilo Del Nisso John Zorn e Naked City Cecil Taylor Trio
27.08.1989 – Domingo Palace Alemão (Omir Stocker) The Horace Silver Sextet The Max Roach Quartet
28.08.1989 – Segunda-feira Palace Gilson Peranzzetta e Sebastião Tapajós George Benson
29.08.1989 – Terça-feira Palace
Victor Biglione John Lee Hooker & The Coast to Coast Blues Band John Mayall & The Bluesbreakers
30.08.1989 – Quarta-feira Palace Mauro Senise John Scofield Trio Branford Marsalis
Quem sugeriu a divisão temática foi Carlos Calado quando, num pequeno guia
sobre o festival, publicado em 22.08.1989 para a Folha de São Paulo, declarou
que a primeira noite seria a do swing, a segunda a da vanguarda, a terceira a
do bebop, a quarta a do fusion, a quinta a do blues e a última a do ecletismo.
Apresentava, dessa forma, a melhor estruturação dos programas dentro do
festival.
O swing abriu a temporada em São Paulo. Na verdade, Nana Caymmi foi a
primeira atração. A diva do vozeirão, que faz as pessoas chorar, foi
considerada como uma intérprete jazzística brasileira e teve o apoio da mídia
em sua apresentação para o Free Jazz. Mas, depois dela, o público pode
swingar ao som da Count Basie Orchestra. Embora sem o líder que morreu em
1984, mas neste ano dirigida pelo saxofonista, Frank Foster, a big band
agradou aos ouvidos mais saudosistas do Palace.
A história da orquestra de Basie é longa. Em 1989 já tinha mais de 50 anos de
estrada e junto com a orquestra de Duke Ellington formavam as mais populares
e importantes big bands da história do jazz. Fica comprovado pelo extenso
número de talentos que por ela passou: teve Lester Young no saxofone,
Freddie Green na guitarra e os vocais de Billie Holiday, Jimmy Rushing e Joe
Williams que, aliás, se apresentou logo após a orquestra, mas acompanhado
por ela. Para o show do Free Jazz trouxeram os vocais de Carmen Bradford
para acompanhar nas composições do então recém-lançado álbum do grupo,
“The Legend. The Legacy – The Count Basie Orchestra Directed by Frank
Foster”, que saiu pela Denon Records nos E.U.A.
Foster foi o segundo substituto de Basie na direção da orquestra. Entrou para o
grupo na década de 1950, ficou até 1964, quando saiu para formar o próprio
conjunto. Além de compor para a orquestra de Basie e depois para o seu
grupo, também fez arranjos para George Benson, Frank Sinatra, Tonny Bennet,
Diane Shuur, dentre outros. Voltou para dirigir o grupo em 1986, depois da
morte de Thad Jones, primeiro substituto de Basie.
A orquestra se manteve no palco para acompanhar seu ex-crooner, Joe
Williams, conhecido pelo seu vozeirão grave, cantor tanto de baladas
românticas quanto do mais puro swing, mas que deixava a todos boquiabertos
quando cantava o blues. Antes de trabalhar com Basie cantou na banda de
Coleman Hawkins, depois na de Lionel Hampton quando fez parceria com
Dinah Washington. Ficou com Basie de 1954 até 1961, quando resolveu seguir
carreira solo, apoiado pelo mestre. Foi eleito cinco vezes consecutivas, como o
melhor cantor de blues, pelos leitores da revista americana, Downbeat. Veio
para o festival tocar músicas de seu, na época, mais recente álbum, “In Good
Company”, lançado pela Verve Records.
A noite da vanguarda não teve o mesmo sucesso de público, mas rendeu boas
matérias para os jornais. O estilo de Cecil Taylor, por exemplo, até então era
vetado ao público brasileiro tanto em discos como em shows, devido ao caráter
anti-comercail de sua música. Sua presença no Free Jazz revelou, portanto,
um importante capítulo na história do jazz no Brasil. Quem abriu a noite foi a
banda brasileira Aquilo Del Nisso, para depois entrar John Zorn e sua banda
Naked City. Com arranjos criativos que uniam elementos como surf music e
bebop, a banda fez um show onde a música aparecia como uma colagem de
vários estilos. Chegaram a rasgar um country com intervenções pesadas e
pontuaram o espetáculo com temas de filmes. A forma incomum de arranjar
sua música, vez de Zorn uma figura emblemática neste festival. Alguns
acharam que ele queria apenas agradar aos ouvidos jovens da plateia, outros o
enxergaram como um músico de vanguarda.
Inventividade, no entanto, foi com Taylor, uma das grandes sensações
midiáticas. Tanto pelo seu ineditismo no país, como por seu caráter realmente
free. Gravou com Coltrane em 1958, e disse trazer em sua música elementos
da terra e da natureza. Apocalíptico em seu show, algumas pessoas saíram
antes do fim, talvez assustados com as cotoveladas e toques com punhos
fechados que o músico fazia em seu piano. Ele e seu quarteto começaram a
apresentação na penumbra, tocando instrumentos de percussão misturados
aos gritos de Cecil que lembravam as línguas afro-indígenas e a partir daí
apresentaram atonalismos e intensidade, fecharam de forma arrebatadora esta
noite de vanguarda.
Ainda assim, energia é a palavra que descreve a terceira noite de evento que
trouxe o sexteto de Horace Silver e o quarteto de Max Roach. Silver, junto com
Art Blakey, foi um dos introdutores do hard bop, estilo que resgata as raízes
bluesísticas do jazz. Tocou na primeira formação dos Jazz Messengers de
Blakey e depois juntou-se ao quinteto de Miles Davis. Seu currículo no jazz era
suficiente para demonstrar a importância de sua presença no festival. Max
Roach carregava uma importância similar: a partir do bebop foi um dos líderes
da revolução rítmica, quando então, instrumentos não melódicos ganharam o
direito de solar. Trabalhou não só com Miles Davis, como Thelonious Monk e o
próprio Cecil Taylor. Começou o show com um longo solo de bateria
demonstrando elegância e vigor na sua forma de tocar. No quarteto que trouxe,
todos improvisaram com igualdade de condições. Os músicos eram: Odean
Pope (sax-tenor), Cecil Bridgewater (trompete) e Tyrone Brown (baixo). Foi
uma noite para satisfazer os ouvintes de jazz. Luiz Antônio Giron chegou a
caracterizá-la como a melhor apresentação dentre os cinco anos de Free Jazz.
Na noite seguinte, de segunda-feira, era George Benson o grande esperado.
Ele surgiu nos meios jazzísticos e tocou com Miles Davis, Herbie Hancock e
Ron Carter. A partir da segunda metade da década de 1970, no entanto, se
enveredou para o universo do pop e não parou mais de produzir hits como
Breezin, On Broadway e This Mascarade. A crítica esperava que ele se
comportasse mais jazzisticamente neste festival de jazz, mas aqui o show foi
só sucesso, com lugar para todos os hits e poucos solos de guitarra, chamado
de “glacê pop” por Carlos Calado. Ao que tudo indica, o que salvou a noite foi a
apresentação dos brasileiros: Gilson Peranzzetta (piano) e Sebastião Tapajós
(violão), que juntos apresentaram ótimos arranjos para músicas brasileiras.
A terça-feira foi toda do blues. O sucesso de público foi tão estrondoso que
chegou a preocupar certos críticos, como Luís Antônio Giron, que associou a
plateia lotada à simplicidade e emotividade do blues. Não há como negar, o
público que superlotou o Palace, nesta noite, dançou e cantou como em
nenhum outro. John Lee Hooker, tido como o pai do blues, fez mistério.
Primeiro entrou sua banda, a Coast to Coast Blues Band, que tocou dois
números com a vocalista Vala Cupp, para depois entrar o bluesman de terno,
chapéu e óculos escuros. Foi do blues dor-de-cotovelo até o blues swingado
que fez todo mundo dançar. Depois dele, foi a vez de John Mayall. Ele fez
parte daquela leva de músicos brancos ingleses que tiraram o blues da
obscuridade, sendo um discípulo direto de bluseiros como Hooker. Neste Free
Jazz tocou gaita, teclados e guitarra, e manteve o clima quente depois do
mestre. Seu guitarrista, Coco Montoya com seus solos arrebatadores foram, no
entanto, a menina dos olhos da crítica.
A última noite de festival trouxe John Scofield Trio e Branford Marsalis, o
Marsalis do saxofone. Mais eclético do que seu irmão, além de tocar música
erudita, também trabalhou com Sting e fez parte dos Jazz Messengers de Art
Blakey em 1981, quando sua carreira decolou. Neste Free Jazz veio
acompanhado de Kenny Kirkland nos teclados, Bob Hurst no contrabaixo e Jeff
Watts na bateria. Fez um show sem concessões, onde preferiu tocar
composições próprias e longos improvisos ao invés de standards,
demonstrando dessa forma, seu estilo pessoal mais jazzístico do que pop.
Antes dele, Scofield optou por antigas canções rearranjadas por seu estilo
próprio e eletrificado.
A década de 1990
No ano de 1990, pela primeira vez, o festival perdeu o patrocínio e não
aconteceu. Em 1991, no entanto, retomou sua regularidade, patrocinado
apenas pela Souza Cruz embora, no ano seguinte, também pelo Banco
Nacional, ambos de forma prioritária. A partir daqui, perceberemos que cada
vez mais o festival expande as fronteiras do jazz, de forma a aumentar o seu
público e garantir o patrocínio tão necessário à sua perpetuação, ainda que
sem abrir mão do jazz mais estrito. Assim, se confirma como um dos mais
importantes festivais de jazz no mundo. A década de 1990 marca o retorno de
algumas estrelas consagradas nos Free Jazz anteriores e evidencia a
importância do festival para o estabelecimento de uma crítica polifônica e
divergente no país, onde há espaço para puristas e não puristas, para críticos
de música popular, de música erudita e até de música eletrônica.
1991
Vejamos, então, a programação de 1991:
Data Local Atrações
17.09.1991 – Terça-feira Palace
Orquestra de Música Brasileira Little Jimmy Scott & Quartet Dizzy Gillespie & United Nation Orchestra
18.09.1991 – Quarta-feira Palace Marinho Bonffa e Orquestra Christopher Hollyday Quartet Take Six
19.09.1991 – Quinta-feira Palace Natan Marques e Ricardo Leão Zawinul Syndicate Take Six
20.09.1991 – Sexta-feira Palace
Hard Bop & Café Jimmy Smith & Kenny Burrel Ahmad Jamal Wynton Marsalis Septet
21.09.1991 – Sábado Palace Arthur Maia Albert Collins & The Icebreakers Dr. John
22.09.1991 – Domingo Palace Ulisses Rocha Grover Washington Jr.
Nessa lista, o primeiro nome que nos chama a atenção é o de Dizzy Gillespie.
Imagina o que foi assistir a esse show. O trompetista norte-americano
conheceu quase todos os estilos de jazz, visto que nascido em 1917. Foi o
grande par de Charlie Parker e juntos se transformaram em figuras expoentes
do movimento bebop no jazz moderno. Dizzy era carismático e famoso pela
sua forma de cantar e tocar com as bochechas inchadas seu trompete recurvo,
essa talvez seja sua imagem mais conhecida. Na década de 1940, foi
responsável pelo movimento afro-cubano da música jazzística, ao incorporar
elementos africanos e latinos no jazz. Para sua apresentação no Free Jazz
trouxe diversos músicos que seguiam essa tendência. Foi o caso dos
saxofonistas, Paquito D’Rivera de Cuba e Mário Rivera da República
Dominicana; mas também do pianista do Panamá, Danilo Perez; do
percussionista porto riquenho, Giovanni Hidalgo (que nesta apresentação veio
substituindo a brasilidade de Airto Moreira); e do brasileiro, Cláudio Roditi no
trompete. Embora neste ano Dizzy estivesse já mais velho e sem tanto vigor,
caprichou nos solos econômicos e mostrou que na sua orquestra ninguém
brinca em serviço. Vieram promover o disco “Live at the Royal Festival Hall”, e
só receberam elogios da crítica. Afinal, quem ousaria ir contra um dos maiores
jazzistas do século XX?
Ainda assim, a Orquestra de Música Brasileira teve mais espaço nos jornais.
Com músicos abusando do poder performático em apresentações ao vivo,
apareceram fantasiados no palco do Palace e fizeram todo mundo dançar ao
som de maxixes, sambas, baiões e bossa-nova, ressaltando a música brasileira
e seus maiores compositores como Pixinguinha, Ary Barroso, Radamés
Gnatalli e Tom Jobim. Um prato cheio para o público brasileiro, que terminou
de pé, aplaudindo os 40 músicos da orquestra e seu maestro, Roberto Gnatalli.
Christopher Hollyday, na época com apenas 21 anos, veio mostrar como
estava a nova leva de jazzistas norte-americanos. Com os olhos no passado e
carregado de influência bebop, provou que o retorno aos padrões instrumentais
tradicionais também levam ao futuro. O jovem saxofonista mostrou que sabe
fazer música cheia de personalidade, como exige o jazz, apresentando
composições próprias e standards jazzísticos, sempre com uma tendência para
a estética do grito e um vigor vibrante. Apresentou-se com um trio também
jovem que contava com pianista Bradford Mihldou, o baixista John Webber e o
baterista Roland Savage. No bis, o grupo voltou ao palco para tocar um blues e
assim comprovar a proximidade entre o jazz e a música criada nos campos de
plantação norte-americanos. Para Carlos Calado, “o sax de Hollyday prova que
o novo nem sempre é o que está na moda” (CALADO, Carlos. “Som acústico
domina hoje”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 18/09/1991).
O grupo vocal Take Six, no entanto, foi o que agradou a gregos e troianos.
Superlotou o Palace e teve o carinho da crítica, que não poupou elogios ao
grupo que louva a Deus em suas apresentações. Não sei se por sorte ou azar,
a cantora Carmen McRae não pode vir ao festival, fato que garantiu mais uma
noite aos seis vocalistas e mais uma plateia cheia para o Free Jazz. Com um
repertório religioso de gospel e spiritual, o grupo comprovou que mesmo sem o
acompanhamento de instrumentos, pode reunir o beat do funk e do rap no
canto do amor divino e, assim, deixar a plateia em transe. Para os críticos, o
sucesso do grupo comprova que o retorno ao tradicional em tempos de
eletrificação, também é garantia de sucesso.
Neste ano também tivemos o Zawinul Syndicate. Liderado pelo tecladista
austríaco, Joe Zawinul, o grupo composto por Robert Thomas Jr. (percussão),
Randall Bersen (guitarra e vocal), Michael Baker (bateria) e Gerald Veasley
(baixo), mostrou um jazz fusion, com destaque para os sintetizadores de Joe. O
tecladista, que trabalhou com Miles Davis nos discos: “In a Silent Way” e
“Bitches Brew”, foi também idealizador de um dos grupos mais importantes de
electric jazz, o Weather Report que contou com o percussionista brasileiro,
Airto Moreira, com o baixista Jaco Pastorius e o saxofonista Wayne Shorter,
dentre outros. Representaram neste festival a linha fusion e as novas
possibilidades musicais a partir de instrumentos eletrônicos. Joe teve alguns
problemas com seus teclados no começo do show, mas logo comandou o
grupo por uma viajem sonora. Teve espaço até para os cinco músicos solarem
ao mesmo tempo, alcançando voos de completa liberdade. Ainda assim, como
instrumentos eletrônicos eram ainda difíceis de serem aceitos em um festival
de jazz no Brasil, receberam críticas que apontavam para a sonoridade que
não funcionava sem os aparelhos eletrônicos, fato que demonstrava uma
deficiência do grupo. Outros disseram que tais instrumentos deixavam sua
música sempre parecida umas com as outras. De todo modo, o que se viu foi
uma apresentação com um dos maiores representantes deste tipo de fusão.
Na sexta-feira, 20.09.1991, foi a noite da tradição. Quem abriu foram os
brasileiros do Hard Bop & Café com seu neo-bop. Depois subiram ao palco o
organista Jimmy Smith e o guitarrista Kenny Burrell, que ganharam o público
logo no primeiro número. Mesmo com seu órgão elétrico, Jimmy mostrou uma
sonoridade carregada de blues e swing. O auge foi quando tocaram hits como
Got My Mojo Working, onde o órgão ágil e a voz rouca de Smith causaram
arrepios na plateia. A dupla funcionou bem, e levou o clima dos pequenos
clubes de jazz para o Palace. Deixaram o palco quente para receber o quarteto
de Ahmad Jamal. E aí a espiritualidade foi forte, tanto que em uma manchete
para a Folha, foi publicado: “Jamal recebe caboclo Bud Powell no Rio”
(AUGUSTO, Sérgio. “Jamal recebe caboclo Bud Powell no Rio”. In: Folha de
São Paulo. Ilustrada. 20/09/1991). O fato de entrar vestido todo de branco e
fazer uma música simples, porém energética e elegante, onde há espaço para
a pausa e a percussão sempre marcante na sua maneira de tocar, trouxe
leveza e beleza para os ouvintes da noite e talvez esteja nesse ponto a
proximidade que certos críticos encontraram entre a música do grupo e a
espiritualidade. Bem entrosados e combinando elegância, técnica e improvisos
frenéticos, com diversas fragmentações rítmicas, o grupo conquistou todos os
presentes. Depois deles, foi a vez de Wynton Marsalis, que se apresentava
pela segunda vez no festival (a primeira foi em 1986). O septeto mergulhou nas
origens de New Orleans e abusou do efeito de sopros com surdinas, riffs e
contrapontos. Foram aplaudidíssimos, principalmente quando o guitarrista,
Kenny Burrell subiu ao palco para uma canja. Tocaram um blues e estenderam
a pequena jam por mais dois números. Esta foi a noite mais longa, porém mais
apreciada pelos críticos dos jornais. Uma noite para elevar os espíritos.
O blues apareceu na noite seguinte, e foi representado pelo brasileiro Arthur
Maia, pelo guitarrista norte-americano Albert Collins e pelo, também norte-
americano, o pianista Dr. John. Este último, vencedor de um Grammy pelo
disco lançado em 1989, “In a Sentimental Mood”, deu o que falar na mídia
devido a sua aparência exótica. Apareceu para a entrevista coletiva com uma
bengala cheia de penas e penduricalhos, um brinco enorme na orelha direita e
chapéu. Falou de sua aproximação com a religião Vodu e, assim, preparou o
público para sua apresentação que incluiu velas acesas sobre o piano e levou
os críticos a chamá-lo de curandeiro e a temer espíritos obsessores durante a
apresentação. Fez um show longo, de quase duas horas de apresentação,
onde ofereceu uma síntese de sua carreira. Albert Collins ficou prejudicado por
ter duas cordas quebradas durante o show, passou dois números trocando as
cordas e apelou para uma descida à plateia, com sua guitarra demoníaca, para
reconquistar a simpatia do público. Teve direito a bis, com canja do guitarrista
paulista, André Christovam.
A última noite do evento trouxe Grover Washington Jr., a promessa de garantir
o público mais jovem para o festival, mas que perdeu em popularidade para os
vocais do Take Six. O saxofonista norte-americano, embora já tivesse tocado
com Ron Carter e Herbie Hancock, acabou se enveredando para o groove funk
e foi, por isso, cotado como o mais popular deste ano. Ressaltou o jazz em
apenas duas músicas durante o show, In a Sentimental Mood e Blues For D.P.,
mas sua aproximação com o pop criou certo ranço na crítica.
Neste ano, o Free Jazz se ressentiu de atrações mais próximas da vanguarda
e se manteve mais conservador se comparado à edição de 1989. Ainda assim,
foi nesta edição que a mídia destacou com maior visibilidade a aproximação
entre o jazz e o caráter espiritual da música.
1992
No ano seguinte, 1992, algumas mudanças foram marcantes para o festival.
Teve uma noite dedicada exclusivamente à música brasileira, outra para
homenagens e ainda outra para apresentar novas estrelas do jazz atual.
Vejamos como ficou a programação do Free Jazz 1992:
Data Local Atrações
16.09.1992 – Quarta-feira Palace Lyle Mays Quartet Jack DeJohnette Bobby McFerrin & Voicestra
17.09.1992 – Quinta-feira Palace Paulo Moura Dianne Reeves The Duke Ellington Orchestra
18.09.1992 – Sexta-feira Palace Victor Biglione e Cássia Eller Robben Ford Albert King
19.09.1992 – Sábado Palace Pepeu Gomes Kenny G
20.09.1992 – Domingo Palace Pepeu Gomes Kenny G
21.09.1992 – Segunda-feira
Palace Marcus Roberts
Terence Blanchard Michel Camilo
22.09.1992 - Terça-feira Palace Noite brasileira
23.09.1992 - Quarta-feira Palace
Wagner Tiso Eddie Daniels & Gary Burton Herbie Hancock, Wyne Shorter, Ron Carter, Tonny Williams e Wallace Roney
Em seu encerramento, o festival rememorou os grandes nomes do jazz. A
abertura na noite das homenagens ficou por conta do pianista brasileiro,
Wagner Tiso, que aproveitou o evento para divulgar seu último disco na época,
“Profissão Músico”. As homenagens surgiram na sequência, com o show do
clarinetista Eddie Daniels e do vibrafonista Gary Burton que, juntos,
rememoraram Benny Goodman, o rei do swing. Para completar a equipe,
trouxeram Martin Richards na bateria, Mugrew Miller no piano e Marc Johnson
no baixo. Vieram também para divulgar o disco, “Benny Rides Again”, mas a
grande surpresa foi perceber o toque moderno que Eddie e Gary deram para
antigas canções do bandleader. O grupo conseguiu reelaborar as exatas
composições de Goodman, mas com novos arranjos, demonstrando, assim, a
contínua evolução do jazz. Encerraram a primeira homenagem corroborando o
que Burton disse em entrevista coletiva: “A natureza do jazz tem que ser a
criação” (HONÔR, Rosangela. “Celebração do passado encerra festival”. In: O
Estado de São Paulo. Caderno 2. 23/09/1992, p.1).
O Tributo a Miles Davis não podia ser feito por qualquer um e por isso mesmo
só vieram os grandes: Herbie Hancock no piano, Wayne Shorter no saxofone,
Ron Carter no contrabaixo, Tonny Williams na bateria e apresentaram Wallace
Roney no trompete. A celebração ao grande trompetista chegou a ser
considerada como a apresentação do melhor jazz do mundo, talvez por fincar
seus pés no passado, revitalizar a antiga atmosfera do jazz, seus grandes
mestres e a satisfação dos críticos mais saudosistas. Todos da banda eram
músicos consagrados e já haviam trabalhado com Miles, fato que deve ter
emocionado os músicos durante o show, visto que o grande mestre morrera no
ano anterior. Para a crítica, rememorar um Miles pre-fusion, foi a certeza de
uma homenagem necessária e providencial.
A noite brasileira não teve menos prestígio nos jornais. Com Toots Thielemans
no papel de mestre da cerimônia nacional, os modernos músicos brasileiros
deram o ar da graça no festival. O gaitista belga, por ter gravado neste ano o
disco “The Brasil Project”, onde convidou músicos brasileiros para gravarem
repertório nacional, fez um trabalho parecido no palco do Free Jazz ao subir
com a nata da MPB para uma noite dedicada à nossa produção musical.
Recebeu no Palace: Gilberto Gil, Edu Lobo, Chico Buarque, Ivan Lins, Eliane
Elias e Oscar Castro Neves. Marina Lima também deveria participar e, embora
o festival tenha publicado que ela estava doente, nos bastidores foi dito que
sua ausência ocorreu devido a uma briga que teve com Toots. Fofoca à parte,
foi a noite com menos venda de ingressos antecipados, devido a divulgação
tardia dos músicos convidados. O show foi uma grande confraternização entre
amigos, com Thielemans feliz, brincalhão e carinhoso com seus convidados.
Chico chegou de muletas devido a um acidente no jogo de futebol, mas
emocionou a plateia ao cantar, junto com Edu Lobo, Beatriz. Oscar Castro
Neves e o mestre de cerimônia fizeram uma ótima versão para Manhã de
Carnaval e Gilberto Gil exibiu seu swing inigualável quando, em duo com
Chico, apresentaram Baticum. No final, todos juntos, apresentaram a música
de Thielemans, Bluesette. A alegria do encontro fez todo mundo sair com
sorriso no rosto.
Na segunda feira, 21/09/1992, foi a vez de estrear a noite dedicada à nova
geração do jazz. O festival apresentou para o público brasileiro o pianista e
compositor dominicano, Michel Camilo; o trompetista, compositor, arranjador e
bandleader norte–americano, Terence Blanchard; e o pianista, também norte-
americano, Marcus Roberts, que abriu esta sexta noite de evento. O pianista
cego, que tocou por muitos anos com Wynton Marsalis, abriu a noite
acompanhado somente de seu piano e apresentou o som seminal de New
Orleans com seu stride piano (estilo de piano jazzístico que se desenvolveu a
partir do ragtime). Iniciou com a música imortalizada por Charlie Parker,
Cherokee, tocou composições próprias e fechou com uma homenagem ao
grande representante do stride, James P. Johnson. Revelou-se um excelente
improvisador e compositor, deixando o público com sede de jazz. Aí veio o
quinteto liderado por Blanchard, que passou pelo bebop e pelas baladas
jazzísticas de Miles Davis dos anos de 1950, dando continuidade à história do
jazz. Para a surpresa do público, subiu ao palco Oscar Castro Neves e juntos
fizeram uma homenagem a Noel Rosa, ao tocarem uma de suas composições,
Feitiço da Vila. Michel Camilo trio veio depois como representante do moderno
latin jazz, que nos anos de 1940 foi representado pela orquestra de Dizzy
Gillespie. Um virtuose do piano que transita com habilidade tanto pela música
clássica, quanto pelo jazz, quanto pela música latina. Trouxe Cliff Almond para
comandar a bateria e Edward Mann no baixo. O trio mostrou uma versão
moderna para a música centro-americana, como parte de uma nova revolução
estética para esta música. Embora com um Palace vazio, deixaram os poucos
ouvinte boquiabertos. A crítica elegeu esta noite como a grande surpresa do
festival, mas a produtora do evento, Monique Gardenberg, achou muito
arriscado dar continuidade à noite do new generation, a não ser que ela fosse
“apadrinhada” por algum músico conhecido, de forma a garantir sala cheia.
Kenny G, ao contrário, deixou o Palace cheio, embora, pouco cotado pela
crítica. O saxofonista norte-americano não se aproxima tanto do jazz, faz uma
música mais próxima do rhythm’n’blues e prefere as baladas românticas aos
criativos improvisos. Ainda assim, teve direito a duas noites no Free Jazz, com
a abertura de Pepeu Gomes que, na opinião do crítico do Estadão, Lauro
Lisboa Garcia, fez um show superior ao de Kenny G, principalmente por suas
fusões criativas, como “forrock” e sua técnica apurada.
No mais, os grandes encontros deram o tom neste Free Jazz. Além da canja, já
citada, de Oscar Castro Neves no show de Terence Blanchard, muitas outras
foram estimuladas ou até inusitadas. No primeiro dia tivemos muitas delas, a
começar pelo encontro do tecladista Lyle Mays com o baterista Jack
DeJohnette e Bobby McFerrin. Mays, que arrancou poucos elogios da crítica
quando abriu a noite com seu quarteto, tocou até samba, além de temas de
Egberto Gismonti e Milton Nascimento, mas quando participou da jam, com
McFerrin e DeJohnette, obteve melhor desempenho. Já o baterista, parceiro de
Keith Jarret por muitos anos e de Miles Davis na gravação de “Bitches Brew”,
não se prolongou muito, mas não passou em branco com seus toques
marcantes. Ainda assim, a menina dos olhos foi, mais uma vez, Bobby
McFerrin e sua inusitada forma de fazer música. Se destacou tanto na jam,
quanto em sua apresentação solo e acompanhado pela voicestra, uma
orquestra de vozes. O vocalista optou por um repertório novo, com músicas de
seu então mais recente disco, “Medicine Music”. A orquestra que o
acompanhou deu um brilho a mais para a apresentação, mas quando Dianne
Reeves apareceu para uma canja, todos se surpreenderam. Juntos,
terminaram o show reverenciando o Brasil ao cantarem Samba de Uma Nota
Só.
O show de Dianne, no entanto, aconteceu efetivamente, no dia seguinte. Sua
participação na noite de abertura, apenas aumentou a fome dos que
desejavam saborear a música dessa revelação apresentada pelo Free Jazz,
que já chegava elogiadíssima do Festival de Jazz de Monterey, onde cantou
com a orquestra do cubano Tito Puente. A contralto mostrou influências
africanas, passou pelo jazz tradicional e cantou onomatopaicas frases
melódicas. Reforçou o clima de encontros deste Free Jazz e voltou ao palco
para cantar com a Duke Ellington Orchestra, duas canções: I Got It Bad And
That Ain’t Good, do próprio Ellington e Yesterdays, um standard de Jerome
Kern. Foi considerada a grande musa do festival, fama que ganhou caráter
irônico na crítica mais purista, que preferiu ressaltar a apresentação de Paulo
Moura, responsável pela abertura deste segundo dia de festival, que causou
frisson na Alemanha e na Suíça quando, naquele ano, se apresentou nos
festivais de jazz em Munique e Montreux.
O show abrasileirado do saxofonista e clarinetista passou pelas músicas
nordestinas e foi até Tom Jobim, priorizando o respertório nacional com sua
riqueza de estilos. Vejam como o crítico do Estadão, J.J., relevou sua
importância diante da estrondosa presença internacional: “O saxofonista Paulo
Moura, que abriu a noite com seu quarteto, mostrou que o Brasil pode passar
muito bem sem os standards da música popular norte-americana. Ao retomar
temas de Dorival Caymmi e Tom Jobim, Moura mostrou mais uma vez, que o
Brasil tem seus próprios (e ótimos) standards” (J.J.. “Dianne Reeves é a musa
do festival”. In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 19/09/1992, p.2). Ainda
assim, a brasilidade parece ter tomado conta daquela noite. A Duke Ellington
Orchestra, embora tenha rememorado antigas canções de seu original
bandleader, também apresentou Jorge Ben, numa animada versão para Mas
que Nada.
A noite do blues teve menos repercussão neste ano. Abriu com a única
presença nacional ainda inédita no festival, a cantora Cássia Eller, que veio
acompanhada do guitarrista Victor Biglione. O canto visceral de Cássia foi,
possivelmente, o motivo de colocá-la na noite do blues, que também trouxe
Albert King, um dos maiores guitarristas do estilo, ao lado de B.B. King, John
Lee Hooker, Albert Collins e Freddie King... O músico nasceu em Indianola,
Mississipi, e chegou a trabalhar em plantações de algodão, para ajudar a
família. Veio para a coletiva com camisa florida e cachimbo na mão, mas sem
muita paciência para conversa com os jornalistas. É possível que pela
indisposição do músico com os respórteres, seu show tenha sido classificado
como cansativo, como colocou Lauro Lisboa Garcia, do Estadão, embora
fazendo ressalva aos clássicos do blues cantados durante o show. De toda
forma, o músico já devia estar cansado fisicamente, visto que morreu em
dezembro deste mesmo ano, aos 69 anos. Mais elogiado do que King foi o
show de Robben Ford. Com um power trio formado por Ford na guitarra,
Roscoe Beck no baixo e Tom Brechtlein na bateria, tocaram músicas do disco
“Robben Ford & The Blues Line”, mas também clássicos como Ain’t got Nothing
but the Blues. O grupo fez um show animado, onde conseguiram transmitir toda
a vivacidade do blues.
1993
A noite das homenagens rendeu bons frutos e continuou neste 8º Free Jazz,
com uma noite homenageando John Coltrane e outra, Tom Jobim. Dessa
forma, voltou as atenções do público e da mídia para as origens do estilo e
seus grandes mestres, fato que deixou a crítica em êxtase. Ainda assim, teve
espaço para o rock’n’roll, o rhythm & blues, passando pelo experimentalismo
de Ornette Coleman, pelo cool de Gerry Mulligan e pelo retorno eletrônico de
Pat Metheny. A programação era:
Data Local Atrações
23.09.1993 – Quinta-feira Palace Ed Motta Clarence “Gatemouth” Brown com
Gate’s Express Bo Diddley e Debby Wastings Band
24.09.1993 – Sexta-feira Palace Betty Carter Duo Assad com Badi Assad Gerry Mulligan Tentet
25.09.1993 – Sábado Palace Jaques Morelenbaum Delfeayo Marsalis Pat Metheny
26.09.1993 – Domingo Palace Joe Henderson Quartet McCoy Tyner Trio Elvin Jones Jazz Machine
27.09.1993 – Segunda-feira Palace
Leo Gandelman e Carlinhos Brown Tributo a Tom Jobim
28.09.1993 – Terça-feira Palace World Saxophone Quartet Ornette Coleman Hermeto Pascoal com Duofel
29.09.1993 - Quarta-feira Palace Chuck Berry Little Richard
A venda de ingressos para os dias, 25 (sábado) e 29.09 (quarta-feira), onde se
apresentaram, respectivamente, Pat Metheny e Chuck Berry & Little Richards,
se esgotaram tão rapidamente que o festival produziu duas sessões extras, a
primeira no Palace, no mesmo dia (sábado), só que mais cedo, às 18h00 e a
segunda no Estádio do Pacaembu, no dia 30.09 (quinta-feira).
A primeira noite seria aquela dedicada ao blues, que neste ano estava mais
para a soul music. Começou com Ed Mota, representante da soul brasileira,
para depois entrar o multi-instrumentista, Clarence Brown, com a banda Gate’s
Express. O bluseiro texano, dizem, é movido a Jack Daniels e, além de
transitar pelo blues, também avança para o rhythm’n’blues. Por isso podemos
dizer que a base swingada deu o tom para as duas primeiras atrações. Mas o
blues apareceu de forma mais marcante com Bo Diddley, que se apresentou
com a Debby Hasting Band, para fechar a abertura deste Free Jazz. O
guitarrista fez muito sucesso em 1955, quando gravou um single com duas
músicas: Bo Diddley e I’m a Man. Esta segunda, hit que o consagrou na mídia
norte-americana. Ele também foi um dos fundadores do rock’n’roll, assim como
Chuck Berry, que também veio para este Free Jazz, se apresentar na última
noite do festival.
E foi neste clima dos primórdios do rock, que se encerrou o Free Jazz. Chuck
Berry, primeira atração da noite, foi anunciado como o grande inspirador de
todos os guitarristas do rock. E não era para menos, também em 1955, gravou
um grande sucesso, Maybellene, música que anunciava o novo estilo, ao
apresentar uma combinação do blues com a música country norte-americana.
Pela gravadora Chess, inaugurou o modelo de uma banda de rock. Veio para o
festival apresentar grandes sucessos como: Sweet Little Sixteen, Johnny B.
Good e Roll Over Beethoven. Depois dele, foi a vez de Little Richard, também
um desbravador do rock, principalmente por algumas atitudes irreverentes,
como a de rasgar as roupas no palco, ou pular em cima do piano. Em meados
da década de 1950 fez diversas canções que estouraram nas rádios, como
Tutti Frutti, Lucille e Long Tall Sally. Vendeu milhões de discos, virou
celebridade nacional e influenciou Elvis Presley, Beatles e Rolling Stones.
Misturou boogie-woogie, rhythm’n’blues e música gospel, tornando-se um
precursor da soul music contemporânea. No fim da década, dedicou-se,
também, à religião. Fez um show animadíssimo para o Free Jazz e, além de
tocar seus grandes sucessos, também homenageou os Stones ao apresentar
uma versão para a música, It’s Only Rock’n’Roll.
E se a Bossa Nova foi rejeitada pelos críticos brasileiros quando surgiu, neste
festival ninguém mais se lembrava disso. A homenagem a Tom Jobim teve a
maior plateia, neste ano, e a bossa se mostrou uma influenciadora do jazz ao
contar com o pianista Herbie Hancock na coordenação do evento, Ron Carter
no baixo e Harvey Manson na bateria. O trio formou a base para a
homenagem, que também contou com a assessoria do violonista Oscar Castro
Neves (convidado por Hancock), com o percussionista Alex Acuña e com a
participação especial do pianista cubano, Gonzalo Rubalcaba, do cantor Jon
Hendricks (responsável pela letra em inglês da música Chega de Saudade), da
pianista e cantora Shirley Horn, do trompetista Freddie Hubbard, do saxofonista
Joe Henderson, da cantora Gal Costa e do próprio Tom Jobim. Como disse
Ruy Castro em matéria para a Folha em 29.09.1993, o que se ouviu nesta noite
foi amor. Amor que pode ser percebido já no medley de abertura: Inútil
Paisagem, Triste e Esperança Perdida. Depois, com Rubalcaba, tivemos uma
emocionante versão para Olha, Maria e Água de Beber. Joe Henderson se
destacou em O Grande Amor e Chovendo na Roseira e o cantor Jon Hendricks
trouxe o bom humor quando tentou cantar em português Desafinado e Chega
de Saudade e foi ajudado pelo coro da plateia. Shirley Horn veio para cantar
Corcovado, Garota de Ipanema e O Amor em Paz, mas foi Gal Costa quem
conquistou a plateia quando, em duo com Herbie Hancock, cantou A
Felicidade, emendou em Se Todos Fossem Iguais a Você e foi responsável
pelo clímax da noite, ao chamar Tom Jobim para o palco. O grande
homenageado começou com Luiza, depois tocou Dindi, Caminhos Cruzados e
Wave. No final, todos juntos tocaram, mais uma vez, Garota de Ipanema.
Depois das quase duas horas e meia de show, a plateia deixou o Palace com
ares de quem vivenciava um momento histórico no festival. A crítica só não
entendeu bem, o porquê de a produção convidar Léo Gandelman e Carlinhos
Brown para o show de abertura, que carregaram na fusão baiana de reggae e
samba e trouxeram as levadas da axé music para a abertura da homenagem.
Outra homenagem bastante procedente para o festival foi a que relembrou
John Coltrane. A noite começou com Joe Henderson, em um show que
marcava sua estreia no país. O saxofonista que recebeu, naquele ano, o título
de melhor músico de jazz pela Downbeat, veio com um quarteto e mostrou que
em seu show os solos dos músicos são sempre bem vindos, tanto que em cada
música do repertório teve espaço para o improviso de cada instrumento.
Tocaram, dentre outras, Take the ‘A’ Train, de Ellington, Swing Springs de
Miles e Ask me Now de Monk. Embora não tenham feito uma homenagem
direta à Coltrane, é inegável a influência do mestre sobre Henderson, que
começa por tocarem o mesmo instrumento. Além dele, o festival trouxe, nesta
noite, dois outros músicos que tocaram, na década de 1960, no quarteto de
Coltrane: o pianista McCoy Tyner e o baterista, Elvin Jones. Para o show no
Brasil, cada um trouxe sua própria banda. Tyner não gosta da ideia de tributos,
por achá-la muito nostálgica, mas garantiu que sua presença já era uma forma
de homenagem. Elvin Jones foi menos aversivo à comemoração e fez um show
memorável. A noite de domingo, que precedeu a homenagem à Tom Jobim, foi
a mais procurada pelos amantes do jazz e deixou a crítica mais purista com
sorriso no rosto.
O título de grande dama, no entanto, foi para Betty Carter com seu estilo
bebop. Cantou 12 músicas, com destaque para You Go to My Head, numa
versão lentíssima e Love Notes, onde seu estilo pessoal ficou bem aparente. A
grande dama do jazz não parou no palco, moveu-se o tempo todo, fazendo do
seu corpo, um reflexo do que cantava. Usou a improvisação de sua voz para
fazer dos standards uma criação própria, com volume e intensidade. Veio
acompanhada de um trio: piano, baixo e bateria, onde o destaque ficou por
conta de Cyrus Chestnut, o pianista. Fizeram um show tão emocionante que,
mesmo sem casa lotada, ficou entre os melhores cotados pela crítica deste
ano. Antes dela, quem se apresentou foi o duo Assad, formado pelos irmãos
Sérgio e Odair, junto com a irmã e cantora, Badi Assad. Os violonistas
brasileiros radicados na Bélgica, já apresentavam uma carreira expressiva na
Europa e vieram para o festival mostrar que, embora de formação clássica,
também trilhavam os caminhos da música popular. Tocaram Piazzola, Gismonti
e Gershwin, com virtuosismo e técnica apurada. Para fechar a segunda noite
do festival, Gerry Mulligan. O saxofonista veio acompanhado por dez músicos e
apresentaram canções do disco “Rebirth of the Cool”, lançado no ano anterior.
O disco reuniu todos os músicos vivos que participaram das gravações de um
clássico de Miles Davis, “Birth of the Cool”, com exceção de Lee Konitz que
estava em turnê, mas veio para se apresentar com Mulligan no Free Jazz. No
show, o saxofonista mostrou a competência de quem participou do movimento
do cool jazz.
Neste ano, o festival ainda trouxe Pat Metheny com seus nove músicos, além
dos instrumentos eletrônicos. Para o crítico do Estadão, Mauro Dias, não foram
exatamente os processadores de voz e sintetizadores que atrapalharam o
show do guitarrista. A música era correta, mas a simplificação e repetição das
notas o aproximavam mais de uma estética pop, do que jazzística. Foi igualado
a Kenny G e George Benson em anos anteriores, embora tenha feito uma
apresentação extra, por fazer esgotar os ingressos em menos de 24 horas,
após iniciarem as vendas. Ainda assim, foi com Delfeayo Marsalis que a crítica
se deleitou. O trombonista, irmão de Wynton e Branford, tocou antes de
Metheny, e corroborou o respeito dedicado aos músicos da família. Mostrou
com maestria a modernidade de estilos antigos em músicas originais de seu
disco de estreia, “Pontius Pilate’s Decision”. Veio acompanhado dos jovens
músicos, John Brown no baixo, Victor Atkins no piano e Martin Butler na
bateria. Juntos, superaram as expectativas dos críticos. Quem abriu a noite foi
o brasileiro Jaques Morelenbaum com seu Cello Samba Trio. Mostraram uma
interessante colisão entre popular e erudito.
A experimentação apareceu no penúltimo dia do festival com o World
Saxophone Quartet, Ornette Coleman e Hermeto Pascoal com Duofel. Os
quatro saxofonistas, James Spaulding, David Murray, Oliver Lake e Hamiet
Bluiett, eram estreantes no país e abriram a noite com a mistura que fazem
com percussão africana e músicas de igreja, sem a utilização de sessão
rítmica. Ornette Coleman foi um dos fundadores do movimento free jazz.
Querido pela crítica, o saxofonista fez um show inspirado, neste Free Jazz.
Hermeto Pascoal veio acompanhado pelo Duofel, dupla de violonistas paulista
e fizeram um show inovador como cabe a Hermeto.
1994
No ano de 1994, o Free Jazz Festival abre de vez o espaço que vinha
oferecendo para outros estilos musicais e assume a fusion como uma vertente
jazzística. O festival já tentava oferecer as noites temáticas, quer dedicada ao
blues, ou às homenagens, mas foi neste ano que efetivamente batizou cada
uma delas. Vejam como ficou com Carlos Calado: “Além da já tradicional noite
do blues, o programa amarra as restantes com os títulos de “Acoustic &Vocal”,
“Crossover”, “Mainstream”, “Rhythm &Soul” e “Acid Jazz”. Melhor para o
público, que pode escolher seus estilos favoritos.” (CALADO, Carlos. “Free
Jazz promete sua edição mais polêmica”. In: Folha de São Paulo. Revista da
Folha. 16/10/1994, p.60). Esse abrir para várias correntes foi a grande
discussão crítica, neste ano, principalmente no que se refere à noite do “acid
jazz”.
A programação ficou assim:
Data Local Atrações
22.10.1994 – Sábado Palace Cristovão Bastos Abbey Lincoln Cassandra Wilson
23.10.1994 – Domingo Palace Etta James & The Roots Band B.B. King
24.10.1994 – Segunda-feira Palace
Guinga Marcus Miller & Friends com Al Jarreau Joe Sample
25.10.1994 – Terça-feira Palace Joshua Redman Quartet Jackie Mclean Sextet J.J. Johnson Quintet
26.10.1994 – Quarta-feira Palace Guru’s Jazzmatazz Us3 Digable Planets
27.10.1994 – Quinta-feira Palace Lenine e Suzano James Brown
A primeira noite, denominada, “Acoustic & Vocal”, traria Mel Tormé como
atração principal, porém, dois dias antes do início deste Free Jazz, foi
divulgado seu cancelamento devido a problemas de saúde. A produção do
festival foi em busca de uma alternativa para substituí-lo e como Carlos Calado,
crítico da Folha, havia acompanhado o Montreux Jazz Festival, na Suíça,
recorreram a ele. Por sugestão do jornalista, convidaram uma das grandes
revelações no festival suíço, a cantora norte-americana, Cassandra Wilson.
Embora em sua primeira apresentação no país, não era exatamente uma
estreante, já havia gravado oito discos pelo selo de jazz alemão, JMT, mas foi
quando passou para a influente Blue Note, que atingiu o grande público e a
liderança nas paradas de jazz das rádios norte-americanas, com o lançamento
de seu nono disco, “Light ‘til Dawn”.
Além de canções próprias, a cantora também recriou clássicos do blues de
Robert Johnson, do folk de Joni Mitchell e Van Morrison, mas também passou
pelo rhythm & blues dos Stylistics. Veio para o Brasil acompanhada de Brandon
Ross na guitarra, Lonnie Plaxico no baixo, Charles Burnham no violino e
bandolim, Lance Carter na bateria e Jeff Haynes na percussão. Durante o
show, apresentaram um repertório mais voltado para o blues e o pop, mas
exibiram doses de jazz em improvisações e recriações de canções do mais
recente álbum da cantora. Nem mesmo o problema ocorrido no amplificador do
guitarrista, Ross, impediu a estrela de brilhar na sua estreia. Bom para o
público que se sentiu menos prejudicado pela ausência de Tormé.
Quem esquentou o palco do Palace para Cassandra foi a cantora, compositora
e atriz, Abbey Lincoln. Famosa também por participar de movimentos em
defesa dos direitos humanos e raciais na década de 1960, veio para o festival
mostrar sua sensibilidade para o canto. Influenciada por Billie Holiday, chegou
a ser comparada a musa, sem que parecesse uma cópia e, embora com uma
pequena extensão vocal, soube usar sua dramaticidade para comover o
público. O mesmo não aconteceu com Cristóvão Bastos, responsável pelo
primeiro show deste Free Jazz. O pianista brasileiro apresentou ritmos do
Brasil como samba, baião e choro, mas pareceu um tanto distante do público,
principalmente quando tocou Lamento, de Pixinguinha, em um recital solo de
piano. Para Carlos Calado, a presença de outro instrumentista poderia ter
deixado o show mais animado.
Ainda assim, quem procurou animação não faltou à noite do blues que trouxe,
além de Etta James, um dos maiores representantes do estilo, B.B. King. A
intensa procura por ingressos para esta noite levou o festival a produzir mais
uma sessão extra para os bluesmaníacos. Aconteceu no mesmo dia, só que
mais cedo, as 18h00, no Velódromo da USP. É possível que o cansaço, ou
talvez o peso, tenham levado a cantora Etta James a cantar sentada quase o
tempo inteiro do show. E, embora alguns críticos esperassem vê-la mais
jazzística, devido a seu mais recente trabalho, “Mystery Lady”, em que James
homenageia a grande dama do jazz, Billie Holiday, ela veio mais bluseira e
debochada do que nunca. Também passou pelo rhythm & blues e por baladas
como I’d Rather Go Blind e A Love is Forever. Abriu a noite que seria do
grande rei do blues, B.B. King.
Quando ele subiu ao palco, toda a plateia se levantou para aplaudir de pé. Não
era para menos, afinal, quem recebe o título de rei do blues, não podia ser
recebido diferente nesta noite que homenageava o estilo. Carlos Calado
chegou a comparar seu show a um culto religioso, que durou cerca de 90
minutos. A voz grave e marcante e o som inconfundível da guitarra fez com que
todos se emocionassem logo nos primeiros minutos do show. E continuou
quando o rei tocou clássicos do blues como Caledonia, Rock me Baby, I’m a
Bluesman e Thrill is Gone. No fim da apresentação ainda distribuiu autógrafos
e lembrancinhas para os fãs que se espremiam na beira do palco para tentar
uma aproximação com o ídolo.
O jazz mesmo, só apareceu na terceira noite, como colocou Luís Antônio
Giron, em matéria para Folha. Não com o brasileiro Guinga que, na opinião do
crítico, tropeçou em suas harmonias complexas. Mas, sim no show de Marcus
Miller, que surpreendeu a todos. O baixista, também discípulo de Miles Davis,
fez uma grande homenagem ao mestre, passando por todos os estilos
desenvolvidos por ele e apresentou, ao final, uma fusion de qualidade. Dessa
forma, demonstrou que mesmo obscurecido pela mídia, o estilo iniciado por
Miles, pode ser bem desenvolvido. Neste festival, Miller foi o responsável por
reabilitar o fusion, tão massacrado pela crítica. O pianista Joe Sample, que
começou sua carreira tocando hard bop e na era do fusion passou para o
instrumento eletrônico, completou o time desta noite, apresentando um fusion
onde a liberdade da improvisação jazzística se sobrepunha aos outros
elementos musicais. Mais à frente perceberemos a diferença entre este fusion
e aquele intitulado acid jazz.
A turma do mainstream veio para satisfazer os ouvidos mais tradicionais, com a
noite mais longa do festival com pouco mais de quatro horas de duração. Não
sei se essa informação é tão relevante, pois há tempos tanto brancos, quanto
negros, mestiços, amarelos e todas as raças fazem jazz, mas dos dezesseis
músicos que subiram ao palco, apenas dois eram brancos. Quem abriu a noite
foi o mais novo dentre as atrações principais. Joshua Redman, de apenas 25
anos, veio para mostrar que nem só por fusion se interessavam os mais novos
talentos jazzísticos. O jovem saxofonista, de fôlego invejável e sopro frenético,
se mostrou adepto do hard bop, mas ao apresentar cinco números de sua
autoria demonstrou conhecimento de vários estilos jazzísticos, inclusive de
Bossa Nova, com a música, Alone in the Morning. Depois dele, em trajes norte-
africanos, subiu ao palco um veterano do saxofone. Jackie Mclean, na época
com 62 anos, provou que vigor para fazer música não é coisa só para jovens.
No melhor do estilo hard bop acrescido da malemolência latina, fez o show
mais longo da noite. Tocou clássicos como Round Midnight, mas precisou de
22 minutos para desenvolver Rhythm of the Earth. Para fechar a noite, J.J.
Johnson, o trombonista que se consagrou por adaptar a sonoridade de seu
instrumento para o estilo bebop, com toques rápidos e desenvoltos, subiu ao
palco do Palace fazendo piada: “Sei que vocês têm que trabalhar amanhã de
manhã, mas nós temos que trabalhar agora.” (AUGUSTO, Sérgio. “Mainstream
mostra sua força”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 26/10/1994). Fez um show
com 75 minutos de duração onde desenvolveu oito temas, dentre eles: Kenya e
Why Indianopolis, Why Not Indianopolis, esta última em homenagem a sua
cidade natal.
A noite do “Acid Jazz” foi, entretanto, a grande polêmica deste ano. Veio para
apresentar ao público uma nova vertente, que combina elementos do hip-hop,
do funk, da sul music e também do jazz. Quem abriu foi o rapper nova-iorquino,
Guru, que trouxe em sua banda, Jazzmatazz, o trompetista Donald Byrd e o
saxofonista Derrick Davis. Neste show, o problema relatado pela crítica foi a
falta de espaço concedida aos músicos jazzistas. Os instrumentos de sopro
não exerceram mais do que uma função decorativa na banda, que preferiu
ressaltar os samples e a levada hip hop. A segunda atração foi a banda Us3.
Referência no gênero, vendeu mais de dois milhões de cópias com seu álbum
de estreia. Começou como um projeto de estúdio e seus músicos nunca
tiveram intensão de se apresentar ao vivo, mas depois do sucesso de vendas,
a gravadora achou necessário, de forma a dar projeção ao grupo e estimular as
vendas. Embora com o direito de samplear qualquer música do rico catálogo da
Blue Note, vieram para o Free Jazz fazer uma apresentação completamente
oposta a de Guru. Valorizaram a música ao vivo, uma vez que toda a
sonoridade do show foi feita com instrumentos de verdade. Não deram espaço
para músicas pré-gravadas e dispensaram DJs. O baterista Cherryl Alleyen
exibiu solos notáveis entre os vocais manifestos pelo rapper Kobie Powell, mas
não só ele, tanto o órgão Hammond, quanto o contrabaixo tiveram
oportunidades para solar. Dessa maneira, exibiram uma fusão mais
enriquecedora, por valorizar todos os estilos propostos pela banda. Digable
Planets, responsável pelo último show da noite, ficou no meio do caminho entre
as duas primeiras atrações, isso porque, além de utilizar uma sessão rítmica ao
vivo, não dispensou os samples, responsáveis por incluir uma sessão de
metais bebop ao show. Esta penúltima noite gerou polêmicas por apresentar
um jazz diluído e subutilizado, mas, de acordo com Monique Gardemberg,
produtora do evento, ela também poderia contribuir para despertar o interesse
dos jovens pelo jazz mais tradicional.
Ainda assim, a noite mais massacrada pela crítica deste ano foi a última, que
trazia como maior atração, James Brown. Isso porque o show se enveredou
mais para o espetáculo do que para a musicalidade. Vestidos de forma
extravagante, músicos e bailarinos se exibiam quer com roupas sensuais, quer
com brincadeiras no palco, que ficou pequeno para os 30 artistas presentes.
Na tentativa de recriar o ambiente dos anos de 1960, quando Brown estava no
auge de sua carreira, o show foi considerado como um kitsch, por Luis Antônio
Giron. O pai do rap tocou todos os seus hits históricos e satisfez os fãs
incondicionais, mas ficou perceptível a perda de energia de um dos músicos
mais importantes do século, que neste ano já tinha passado dos 60. Ainda
assim, foi o responsável por mais um show extra oferecido pelo festival, no
Velódromo da USP, no dia seguinte.
1995
Em seu décimo aniversário, o Free Jazz expande e chega até Porto Alegre.
Aumentou sua área de atuação, mas teve seu jazz reduzido a 1/3 do programa.
A produtora Mônica Garderberg explicou: “O jazz está passando por uma fase
de transição, após a morte de seus grandes ídolos. Por isso, como outros
festivais pelo mundo o Free Jazz tem que se tornar mais híbrido para poder
manter o nível de sucesso que pretendemos” (CALADO, Carlos. “Festival
procura novo formato para próximo ano”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.
23/10/1995, p.5). Carlos Calado, que no ano anterior parecia tranquilo com a
maior abertura que o festival dava para outros estilos musicais, pareceu um
tanto preocupado com os caminhos futuros a partir deste Free Jazz: “com uma
dose de jazz muito menor do que em edições anteriores, o festival completou
10 anos numa encruzilhada: se não redefinir suas salas de espetáculo e
programação, corre o risco de se descaracterizar” (CALADO, Carlos. “Show de
Stevie Wonder provoca lágrimas”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada.
23/10/1995, p.5). O pouco jazz deste ano, também foi notícia no Estadão. Na
sua crítica de encerramento do festival, Mauro Dias, apontou: “Na festa – de
pouco jazz – do décimo aniversário do Free Jazz Festival, as grandes
surpresas agradáveis acabaram sendo uma orquestra de mambo, com mais de
50 anos de estrada e mais de 100 discos gravados, e sua ex-crooner.” (DIAS,
Mauro. “Mambo foi melhor surpresa em festival com pouco jazz”. In: O Estado
de São Paulo. Caderno de Cultura. 23/10/1995).
O programa para os shows no Palace ficou assim:
Data Local Atrações
17.10.1995 – Terça-feira Palace
Brasil All Stars Tito Puente e sua Latin Jazz Orchestra Célia Cruz e Caetano Veloso
18.10.1995 – Quarta-feira Palace Roy Hargrove Quintet Rachelle Ferrell & George Duke All Green
19.10.1995 – Quinta-feira Palace
Vernon Reid & Masque The Brand New Heavies Buckshot LeFonque & Branford Marsalis
20.10.1995 – Sexta-feira Palace Leroy Jones Rebirth Brass Band Harry Connick Jr. and his Funk Band
21.10.1995 – Sábado Palace Sounds of Blackness Stevie Wonder
22.10.1995 – Domingo Ibirapuera Gilberto Gil Stevie Wonder
Talvez a melhor mudança incorporada ao festival, neste ano, se encontre logo
na abertura, com a estreia da noite latina. Quem abriu foram os brasileiros da
big band Brasil All Star, formada especialmente para o Free Jazz, que contava
com vinte e três instrumentistas brasileiros. Regendo os próprios arranjos que
escreveram: Wagner Tiso, Paulo Moura e Gilson Peranzzetta, apresentaram
suítes com obras populares de cinco compositores nacionais. Wagner Tiso
explorou sambas de Ari Barroso; Paulo Moura revitalizou Radamés Gnatalli,
Pixinguinha e Severino Araújo; Gilson Peranzzetta inovou a bossa de Tom
Jobim com novas levadas. Depois deles, entrou Tito Puente e sua orquestra,
americano de origem porto-riquenha, Puente foi o responsável por incorporar
improvisação jazzística em ritmos latinos e dentre os grandes convidados que
já havia recebido em sua orquestra podemos citar Dizzy Gillespie e Mongo
Santamaria. Durante o show, como de costume, sacodiu a cabeça com a
língua para fora, fez caretas e rodou as baquetas que usou, também, para
reger a orquestra de apenas dez músicos (três saxes, dois trompetes,
trombone, piano, baixo e duas percussões). Juntos executaram standards do
jazz, com arranjos elaborados pelo maestro, como: I Concentrate on You de
Cole Porter e Yeah de Horace Silver, ainda assim, foi quando tocaram Oye
Como Va que a plateia se animou de vez. Carlos Calado, em matéria para a
Folha, não deixou de caracterizar a performance de Tito, como se o músico
estivesse possuído. Eles continuaram no palco para apresentarem juntos de
sua ex-crooner, Célia Cruz, que foi recebida de pé, pela plateia que encheu o
Palace. Começou com Canto a la Habana, de Bebo Valdes e seguiu com
clássicos da música latina, como Bamboleo, de Simon Diaz, que deixou o
público eufórico. Caetano Veloso foi seu convidado especial, e juntos cantaram
Mi Cocodrilo Verde, Quero ir a Cuba e terminaram com Guantanamera. A
“rainha” também cantou o samba brasileiro, Você Abusou, numa versão
salseira. Esta foi, sem dúvida, a noite mais elogiada pela crítica, neste ano.
O segundo dia começou com o jazz clássico de Roy Hargrove Quintet, passou
pelo jazz pop de Rachelle Ferrell e George Duke e terminou com o gospel soul
de All Green. Hargroove foi anunciado como um dos seguidores na linha dos
clássicos como Wynton Marsalis e por isso foi eleito como única estrela
rigorosamente jazzística nesta edição de aniversário do Free Jazz. O jovem
trompetista, com apenas 26 anos, veio acompanhado de outros quatro jovens
músicos: Gerald Cannon (baixo), Karrien Higgins (bateria), Ronald Blake (sax)
e Stephen Scott (piano). Fizeram uma apresentação de aproximadamente uma
hora, onde mais do que apresentar standards, priorizaram composições
próprias do trompetista, com exceção de The Nearness of You. O músico foi
carismático e em alguns momentos pedia para que a plateia fizesse a
marcação rítmica com palmas. O show foi elogiado de forma unanime pela
crítica, fato que não aconteceu com a atração seguinte. Rachelle Ferrell era
conhecida apenas por sua extensão vocal incomum, capaz de perpassar tons
graves e agudos altíssimos, mas era uma estreante no Brasil. Tinha até então,
apenas dois discos gravados: “First Instrument” (1990), prioritariamente
jazzístico e “Rachelle Ferrell” (1992), produzido por George Duke, mais
direcionado para o pop. Como neste show se apresentou com o pianista, Duke,
voltaram-se mais para o pop do que para o jazz. Para Mauro Dias, do Estadão,
o show foi o pior do festival, devido ao excesso de malabarismo da dupla, que
mostrou boa técnica, mas pouco desenvolvimento. Carlos Calado não perdoou
Duke e também sentiu que faltava direcionamento para o repertório da garota,
mas admitiu seu talento, tanto que a única ressalva que fez para a
apresentação foi quando Rachelle interpretou sozinha ao piano a canção,
Peace on Earth. Já All Green veio cantar amor, carnal e espiritual, e aí ficou
todo mundo seduzido. Embora tenha se convertido a pastor poucos anos antes
do festival, não deixou de apresentar seus grandes hits como Love and
Happiness, Let’s Stay Together e Amazing Grace. Fez um show vibrante e
alegre, distribuiu flores para a plateia e encerrou sem bis com a canção, Sitting
on the Dock of the Bay.
A noite do acid jazz, neste ano, se transformou em noite dançante, com mais
de três mil pessoas dentro do Palace, despido de cadeiras e mesas. A primeira
atração prometida era Jamiroquai, mas o grupo cancelou sua vinda e acabou
sendo substituído pelo, bem menos popular, Vernon Reid com o grupo,
Masque. Com uma música essencialmente instrumental, a banda tocou uma
mistura de rock com hip-hop. Vernon abusou dos solos de guitarra distorcida e
trouxe um DJ para fazer a base e os vocais com vinil. Contaram com a
participação do rapper, Beans, que depois da última música, Mistake Identity,
se jogou do palco para o público, numa atitude irreverente, deixando a platéia
em êxtase para que então entrasse o Brand New Heavies com sua música
inspirada no funk dos anos de 1970. O grupo inglês fez todo mundo dançar,
colocou globo espelhado para caracterizar o cenário e se tornou o favorito do
público. Branford Marsalis e seu, Buckshot LeFonque fecharam a noite. Bem
mais discretos do que a banda anterior, mas também no clima dançante,
apresentaram uma nova proposta musical que assimilava mixagens do DJ
Apollo com solos dos músicos. Receberam Dionne Farris para cantar duas
músicas e, embora com um show sofisticado, demonstraram poucas ideias
realmente inventivas, de acordo com Carlos Calado. Fizeram um show para
priorizar o gosto do grande público, isso porque o seu líder, Branford, embora
herdeiro da longa tradição jazzística da família Marsalis, sempre esteve aberto
para outras influências, transitando bem entre o jazz mais tradicional e o
universo da cultura pop mercadológica.
O jazz mais restrito ainda pôde ser ouvido neste festival. Depois de Hargrove
ele reapareceu, porém em trajes de New Orleans. A noite dedicada ao estilo foi
aberta com um clássico de Duke Ellington, Things Ain’t What They Used to Be,
tocada pelo trompetista Leroy Jones, como forma de homenagem à sua cidade
natal. Além dela, canções escritas de 1920 a 1950, comandaram o repertório
do músico. Entre solos de trompete, caretas e passos de dança, Jones exibiu
seu lado cantor e mostrou, assim, que sua maior inspiração vem do grande
mestre Louis Armstrong. A semelhança foi tanta que chegou a ser noticiada
como excessiva, pelo crítico da Folha, Carlos Calado. A Rebirth Brass Band,
um octeto que usa seis sopros, baixo e percussão, veio na seqüência e fez o
show mais elogiado da noite. Levou a alegria das ruas de New Orleans para o
Palace, de forma a reportar o público para aquele universo. Não teve quem não
se animou. Para terminar, Harry Connick Jr. e sua Funk Band. O líder cantou,
dançou e fez piadas no palco, de forma a não agradar nenhum crítico; salvou-
se ao final, quando convidou as duas atrações anteriores de volta ao palco
para uma animada jam session, responsável pela melhor parte de seu show.
Stevie Wonder não faz jazz, mas o melhor da soul music. Sua popularidade era
tanta que, naquele ano, levou cerca de duas mil pessoas ao Palace. O músico,
já consagrado pela mídia mundial, fez o público chorar ao som de hits como:
Overjoyed e Ribbon in the Sky. Alegre e sempre conversando com a plateia,
não deixou de homenagear a música brasileira. Tocou músicas de Tom Jobim
como, Garota de Ipanema e Desafinado, mas também o samba de Antônio
Carlos e Jocafi, Você Abusou. Para o show em São Paulo, ainda relembrou
Antônio Adolfo com a canção Sá Marina. Ao final de sua apresentação de
sábado, no Palace, convidou os músicos da banda Sounds of Blackness para
retornarem ao palco de forma a promover uma jam com os nove cantores do
grupo vocal negro, responsáveis pela abertura da noite, que começou com
homenagens a Aretha Franklin e James Brown. No show de domingo, no
Ibirapuera, Wonder fez parecido. No final de sua apresentação, chamou
Gilberto Gil de volta ao palco, para que junto cantassem sucessos como I Just
Call to Say I Love You, aliás, música gravada por Gil, responsável por sua
versão em português. De acordo com o Estadão, nesta noite fria de domingo,
apenas dez das trinta e sete mil pessoas esperadas compareceram ao show.
1996
Em sua 11a edição, o festival aumenta o número de artistas convidados, mas
diminui seu tempo de duração, muda-se para o ambiente rústico do Galpão
Fábrica, e renova sua estrutura para melhor adaptar os diferentes estilos que já
faziam parte do cardápio do Free Jazz. Os quatro palcos, ao mesmo tempo que
indicavam a diversidade, acomodavam melhor as 22 atrações que se
apresentaram por apenas três dias, neste ano.
Data Local Palcos Atrações
New Directions (19h00)
Christian McBride Nicholas Payton
Main Stage (21h00) Ernestine Anderson Herbie Hancock & the New Standard All-Stars
10.10.1996 – Quinta-feira
Galpão Fábrica
Free Jazz Club (23h00)
Johnny Alf Clark Terry
New Directions (19h00)
Zé Nogueira James Carter
Main Stage (21h00) Salif Keita Isaac Hayes
Free Jazz Club (23h30)
Edu Lobo Elis Marsalis Trio
11.10.1996 – Sexta-feira
Galpão Fábrica
Free Jazz Groove (23h00)
James Taylor Quartet Incognito
New Directions (19h00)
Mark Whitfield John Pizzarelli
Main Stage (21h00) 808 State Björk
Free Jazz Club (23h30)
Paulinho Trompete Earl Klugh
12.10.1996 – Sábado
Galpão Fábrica
Free Jazz Groove (23h00)
Me’Shell Ndegéocello George Clinton
O Palco Main Stage
Com capacidade para 1600 pessoas sentadas ou o dobro em pé, recebeu
artistas consagrados pela mídia mundial, capazes de atrair grande público para
o seu show. Com o pé mais no pop do que no jazz, trouxe estrelas como
Herbie Hancock, que antes mesmo de se sentar ao piano, apresentou seus
companheiros ilustres: Michael Brecker no saxofone, John Scofield na guitarra,
Dave Holland no baixo, Jack DeJohnette na bateria e Don Alias na percussão.
O animado show mostrou o que, para Hancock, seriam os novos standards do
jazz, de Beatles, passando por Stevie Wonder, fazendo até Prince e os
roqueiros da banda, Nirvana, soarem como jazz. Atrativo mercadologicamente,
por apresentar canções com forte presença na mídia, porém inventivo por
acrescentar a estética jazzística, capaz de reinventar cada melodia original, o
repertório de “The New Standard”, na época o mais recente disco de Hancock,
fez deste show a grande revelação na estréia do Main Stage, que na mesma
noite recebeu, como primeira atração, a cantora, também norte-americana,
Ernestine Hall Anderson que apresentou standards clássicos do jazz como, In a
Mellow Tone de Duke Ellington e Night in Tunisia de Dizzy Gillespie.
Pelo palco também passou, na noite seguinte, o malinês Salif Keita e sua
música tribal africana com levada funk. O músico passou pelo reggae e pela
juju music, sem dispensar a improvisação e ainda recebeu o cantor brasileiro,
Chico César, para que juntos cantassem a música, África. Esquentaram a
platéia para que entrasse Isaac Hayes, compositor de grandes hits da soul
music como Soul Man, teve que readaptar o seu show de forma a torná-lo
menos dançante para o público que, nesta noite, estava sentado. O músico
preferiu, então, priorizar as baladas românticas. Na última noite deste Free
Jazz, o Main Stage estava com lotação máxima e sem cadeiras no salão.
Trouxe sua maior estrela, a cantora Börk. Antes dela, porém, o grupo 808 State
promoveu uma rave abusando dos instrumentos eletrônicos. Quando a cantora
islandesa subiu no palco, o público foi ao delírio. Börk estava no auge de sua
carreira e vinha sendo noticiada de forma exaustiva pelos jornais. Seu show
estridente foi sucesso de público e crítica, talvez porque como disse Pedro
Sanches para Folha, sua vinda ao Brasil significou a inauguração da era da
música globalizada, no país do samba.
Palco New Directions
Como o próprio nome indica, foi responsável por apresentar os mais novos
músicos de jazz, representantes da nova revitalização do estilo. Como novas
tendências nem sempre lotam grandes espaços, o palco era cercado por uma
arquibancada com cerca de 400 lugares para o público. Na noite de sua
estréia, trouxe dois jovens músicos que resgataram antigas tradições do jazz,
sem soar antiquados. Christian McBride, com apenas 24 anos, abriu a primeira
noite e mostrou que em tempos de eletrificação dos instrumentos, o baixo
acústico ainda tem muito a dizer. Junto de seu quarteto, o músico tocou SKJ de
Milt Jackson e demonstrou que o suingue na música vale mais do que a técnica
quando apresentou uma versão de You’ve Got It Bad Girl, de Stevie Wonder.
Depois dele veio Nicholas Payton, um ano mais novo, já era revelação no
trompete jazzístico. À frente de um jovem quarteto, trouxeram para o Free
Jazz, clássicos de sua cidade natal, New Orleans, como Whoopin’ Blues, mas
principalmente repertório de seu recém-lançado disco, “Gumbo Noveau”. Com
arranjos sofisticados, eles demonstraram que o neobop continua em constante
evolução.
A noite seguinte foi ainda mais radical, com James Carter como atração
principal. O furioso saxofonista fez um show bem mais polêmico, onde o que
valeu foi explorar os limites da improvisação. Foi do bebop ao free, num show
de aproximadamente 90 minutos, onde gastou 20, apenas em seu primeiro
solo. Demonstrando certa repulsa pelo excesso de virtuosismo, muitas pessoas
saíram antes que sua apresentação se encerrasse. É possível que o público
tenha se identificado mais com o trabalho apresentado pelo carioca Zé
Nogueira, que na abertura desta noite revigorou o samba e o choro, ao
apresentar canções de Severino de Araújo, Jacob do Bandolim e Paulinho da
Viola. Os últimos shows apresentados neste palco foram Mark Whitfield e John
Pizzarelli. De acordo com Edson Franco, crítico da Folha, o que se viu nesta
noite foi um duelo entre os dois guitarristas norte-americanos, o primeiro negro,
mostrou ser adepto de grandes guitarristas negros como Wes Montgomery e
Grant Green; o segundo, branco, mostrou um repertório tradicional, com
standards jazzísticos. Um duelo entre negro e branco.
Palco Free Jazz Club
O mais intimista dos palcos lembrava uma das vilas de New Orleans. O serviço
foi administrado pelo Bourbon Street Club e contava com garçons para atender
as cerca de 250 pessoas que a sala comportava. Pretendendo resgatar o clima
dos antigos clubes de jazz, o ambiente era esfumaçado e os músicos tocaram
bem próximos do público, de forma a valorizar a escuta das obras, mais
voltadas para o jazz tradicional. Em sua noite de abertura contou com Johnny
Alf e Clark Terry. O primeiro foi um dos precursores da Bossa Nova e recheou
seu show com antigas canções nacionais, cantou Céu e Mar, Ilusão à Toa e
Rapaz de Bem, dentre outros. Depois dele, o trompetista, Terry, veio mostrar
os clássicos dos anos dourados do jazz. Ele já passou pelos maiores
representantes do swing, trabalhou com Count Basie e liderou o naipe de
trompetes de Duke Ellington. Fez todo mundo suspirar com novos arranjos
para velhas músicas, tocou Straight no Chaser de Monk, Mood Indigo e In a
Mellow Tone, ambas de Ellington. A estreia do Palco Club contemplou os
saudosistas.
Os ingressos para a segunda noite deste palco acabaram bem antes do início
do festival. Isso porque apresentava o patriarca da família Marsalis, o pianista
Ellis Marsalis. O músico foi discreto em sua apresentação, com nenhum
excesso de virtuosismo, alterando composições próprias e standards do jazz.
Não deixou de prestar sua homenagem a música brasileira, ao tocar duas
canções de Tom Jobim: Meditação e Corcovado. Sua opção por suavizar
contrastes e diminuir recursos dramáticos, deixou alguns ouvintes
decepcionados. Antes dele, Edu Lobo mostrou-se menos discreto. Passou por
grandes sucessos de sua carreira e fez uma apresentação animada ao contar
com excelentes instrumentistas brasileiros. Juntos mostraram a enriquecedora
influência jazzística para a música brasileira.
Os últimos a pisarem neste palco foram o brasileiro Paulinho Trompete e Earl
Klugh. O primeiro foi considerado o mais jazzístico entre as atrações
brasileiras, por já ter tocado ao lado de grandes mestres do estilo como John
Coltrane e Charles Mingus, além dos brasileiros Gilberto Gil e Leny Andrade.
Seu show mostrou a mescla de estilos de forma brilhante. O segundo veio
mostrar e delicadeza de seu estilo dedilhado para tocar violão.
Palco Groove
Para quem não quis ficar sentado em momento algum do festival, a melhor
opção foi este palco, com capacidade para 2000 pessoas e responsável por
trazer rítmos dançantes, além de dois DJs para esquentarem o público antes
das apresentações. O Palco Groove, diferentemente dos outros três, só abriu
suas portas por dois dias (11 e 12.10.96) e já começou com ingressos
esgotados para os shows do James Taylor Quartet e Incognito, expoentes do
acid jazz. Taylor fez um show relativamente curto, cerca de 45 minutos de
apresentação, mas que movimentou o público com improvisos no seu órgão
Hammond. O Incognito, responsável por um vertente mais dançante do estilo,
fez um show que misturou os maiores hits da banda com baladas mais lentas,
ora agitando ora amornando o público, mas sempre incluindo ritmos brasileiros.
O líder do grupo, Bluey, fez questão de demonstrar sua simpatia com o país e
apareceu para o show com a camisa da seleção brasileira. No segundo e
último dia, subiram ao Groove a cantora e multi-instrumentista, Me’Shell
Ndegéocello, descoberta por Madonna que logo a levou para o seu selo,
Maverick. Me’Shell, que na época tinha dois discos gravados: “Plantation
Lullabies” e “Peace Beyond Passion”, se mostrou adepta do rhythm & blues e
esquentou o palco para que então entrasse George Clinton, o mais esperado
da noite. Ele só apareceu depois de uma longa jam session entre seus
músicos, envolto por um lençol negro e usando apenas ceroulas, cantou One
Nation Under a Groove, ajudado pelo coro da platéia. Com músicas longas, de
aproximadamente 15 minutos de duração, o show foi noticiado como cansativo,
fazendo com que o público saísse antes do fim.
Entre as quatro salas, o ponto de encontro para a convivência do diversificado
público, era o Free Village, reservado não só para bares, administrados
também pelo Bourbon, como para stands das gravadoras e exposições de
fotos, esculturas e vídeo-wall, privilegiando a diversidade já assumida pelo
festival.
Ainda assim, o mais noticiado pelos jornais foi a falta de cuidado, por parte da
produção, com o novo local escolhido para o Free Jazz. Em oposição ao
cronograma super planejado e as notícias referentes ao festival que antecedem
em meses seu início, a desatenção com a estrutura mais importante, que é a
acústica, foi notável. Todos os shows parecem ter sido prejudicados quer pelo
barulho da chuva, quer pelo som abafado do local, que muitas vezes os
tornavam incompreensíveis. Além disso, algumas telhas expostas foram
responsáveis por goteiras nos palcos e no público. Tudo isso fez com que
jornalistas como Pedro Alexandre Sanches, da Folha, destacassem que o
maior compromisso do festival foi com a publicidade e não com a música, seu
carro chefe.
1997
A programação
Data Local Palcos Atrações
Bourbon Street
New Directions (19h00)
Virgínia Rodrigues Natacha Atlas
09.10.1997 – Quinta-feira
Palace
Main Stage (21h30) Marcus Roberts e Orquestra Rhapsody in Blue Mingus Big Band e Elvis Costelo
Bourbon Street
Club (00h00) Dee Dee Bridgewater
Bourbon Street
New Directions (19h00)
Diana Krall Trio Cyrus Chestnut Trio
Palace Main Stage (21h30)
Neneh Cherry Adam F. Goldie & Metalheadz DJs
10.10.1997 – Sexta-feira
Bourbon Street
Club (00h00) Art Farmer Quartet
Bourbon Street
New Directions (19h00)
Donald Harrison Quartet Danilo Perez
Palace Main Stage (21h30) Erykah Badu Jamiroquai
11.10.1997 – Sábado
Bourbon Street
Club (00h00) Pharoah Sanders Quartet
Bourbon Street
New Directions (20h00)
O Trio Kenny Garret
Palace
Main Stage (21h30) Ronnie Earl & The Broadcasters Otis Rush Jimmie Vaughan
12.10.1997 – Domingo
Bourbon Street
Club (23h00) Lee Konitz Trio
Não há como negar que a diversidade de palcos adotada no ano anterior foi
uma ótima solução para que o festival, cada vez mais abrangente, continuasse
a trazer as revelações da música instrumental, sem ter a necessidade de
encher grandes salas. No entanto, o fracasso acústico do Galpão Fábrica, não
conseguiu ser resolvido, obrigando a produção do Free Jazz a retornar ao
Palace, embora adotando o espaço do Bourbon Street Club, como sala
alternativa para os shows mais intimistas. Dessa maneira, durante os quatro
dias de evento, que ia de 9 a 12 de Outubro de 1997, a divisão ficou, assim,
estabelecida: O Palco Main Stage aconteceu no Palace, sempre às 21h30. O
New Directions, sempre às 19h00 com exceção do último dia, às 20h00, no
Bourbon Street, assim como o Palco Club, mas este começava sempre à
00h00, com exceção também do último dia, às 23h00. O Palco Groove não
apareceu neste ano, muito provavelmente porque os três palcos já adaptavam
muito bem as vinte atrações internacionais contra apenas duas brasileiras que
faziam parte do programa deste ano, em São Paulo.
A novidade desta edição estava em apresentar uma nova tendência musical
iniciada na cena underground de Londres no início dos anos de 1990, o
drum’n’bass. Com poucos elementos jazzísticos, esse estilo faz uma mistura de
ragga, hip-hop, acid house, dub e outros diversos estilos. Descendente da
música eletrônica, nele predomina a base rítmica da bateria e do baixo,
gerando um som forte e grave. Veio para o Free Jazz representado por Goldie.
Ex-grafiteiro, trocou as paredes pelas pistas de dança e promoveu uma das
mais conhecidas noites de drum’n’bass londrina, a Metalheadz. Assim,
transformou o Palace em pista de dança, somente com duas pick-ups. Além
dele e dividindo o palco na mesma noite, tivemos Adam F. Sua diferença está
em fazer uma abordagem mais orgânica para o drum’n’bass, pois também toca
piano e instrumentos de sopro. Quem fechou a noite foi Neneh Cherry, porém
com um show que valorizava mais o trip-hop, com batidas lentas que
combinam rhythm’n’blues, rap e também a música eletrônica.
Além disso, o festival promoveu uma mostra de filmes sobre música, que
aconteceu paralelo aos shows, no Museu da Imagem e do Som. E também foi
transmitido ao vivo pelo canal Multishow e pela MTV, para privilegiar aquela
parte da população que não se animou a sair de casa, ou não conseguiu
ingressos. Perdeu a sala de convivência que unia o público dos diferentes
palcos, mas trouxe boas dosagens de jazz que permeou por todos os dias do
festival. Tudo detalhadamente explicado nos dois guias produzidos para o
evento: um que saiu pela Folha de São Paulo e outro pelo Estadão.
Quem abriu este Free Jazz foi Virgínia Rodrigues com um ponto de candomblé
para Exu, orixá da comunicação, mensageiro entre o mundo carnal e espiritual,
é quem abre os caminhos para que tal comunicação aconteça. E foi assim que
Virgínia, a baiana ex-integrante do Olodum, descoberta por Caetano Veloso,
abriu os trabalhos para que se iniciasse o Free Jazz. E só depois disto, e
também do show de Natacha Atlas, a belga descendente de árabes e judeus
que mostrou o pop do Oriente Médio, com canções de influência árabe e batida
de rock; que o jazz tradicional pode ser ouvido. O palco Main Stage, no Palace,
recebeu depois dessa miscigenada abertura, o pianista Marcus Roberts
acompanhado da Orchestra Rhapsody in Blue e a Mingus Band acompanhado
por Elvis Costello. Roberts já havia tocado com Wynton Marsalis além de ter
feito trabalhados homenageando Duke Ellington, Thelonious Monk e George
Gershwin. Foi responsável por um dos momentos mais brilhantes deste Free
Jazz, com uma banda de dez músicos de sopros. Ao fim, juntaram-se a eles
uma sessão de cordas brasileiras e juntos tocaram, na íntegra, a Rapsódia em
Blue, uma composição de George Gershwin, referência no encontro do jazz e
da música clássica. A Mingus Band, formada pela viúva de Charles Mingus,
veio para revitalizar a música de um dos maiores baixistas da história do jazz.
Recebeu a participação de Elvis Costello, como cantor em quatro canções,
duas no início e duas ao final da apresentação. A homenagem aos grandes
nomes do jazz continuou à meia noite no Bourbon, Palco Club, com Dee Dee
Bridgewater. Com sua potente voz e seu gosto pelo duelo com os metais da
banda, a cantora veio apresentar seu então, último disco, Dear Ella. O
repertório do show se baseou em releituras de músicas consagradas na voz da
grande dama bebop, Ella Fitzgerald. E mostrou que Dee Dee também carrega
o gosto pelo improviso vocal.
A segunda noite chegou a ser noticiada como a noite da bela e a fera, por
Cassiano Elek Machado da Folha de São Paulo. Isso por apresentar, no
mesmo dia, jazz e música eletrônica, o pop do momento. Enquanto o Main
Stage ficou responsável pela divulgação do estilo drum’n’bass, o Bourbon
apresentou Diana Krall Trio e Cyrus Chestnut Trio, no New Directions e Art
Farmer Quartet no Club. Diana era, neste momento, a voz mais querida do
jazz. Com o álbum “All for You”, gravado neste ano, liderou por várias semanas
as paradas de jazz radiofônicas e foi indicada ao Grammy na categoria de
melhor vocalista de jazz. O disco gravado em trio (piano, baixo, guitarra) faz
uma homenagem a Nat King Cole. Foi com esta formação que Krall veio para o
Brasil, e juntos fizeram uma releitura de clássicos, sem excesso, sempre
priorizando o repertório deste último disco. E o piano continuou no palco para
que entrasse Cyrus Chestnut acompanhado de baixo e bateria. O trio mostrou
que o jazz também bebe na fonte do gospel. Cyros exibiu sua intimidade com o
piano e com a igreja batista dos americanos do norte, ao começar sua
apresentação como se tocasse o órgão da igreja. Começava calmo e delicado
e atingia o êxtase nos finais líricos e apaixonados de sua música, que levou o
público às origens dos cultos negros e hinos religiosos. A meia noite foi a vez
de Art Farmer, o inventor do flumpet (mistura de flugelhorn e trompete)
transitou bem por diversos ramos jazzísticos, quer com Horace Silver, Gerry
Mulligan ou Benny Carter, nesta apresentação favoreceu os standards com seu
trompete. Afinal, apostar nos clássicos, quando já se é um músico consagrado,
é certeza do sucesso.
O terceiro dia de festival trouxe a maior revelação pop deste período, o grupo
Jamiroquai. O mais noticiado pelos jornais e que já havia cancelado uma vinda
pelo festival, chegou com tudo neste ano e foi responsável pela maior bilheteria
deste Free Jazz. Com letras inteligentes e ritmo pra não deixar ninguém
parado, fez o Palace tremer durante sua apresentação. Contrariando a
presença excessiva do grupo na mídia, a crítica preferiu mostrá-lo como
populista descendente da cultura pop do rock’n’roll. Erykah Badu, atração que
abriu a noite com velas, incensos, exaltação de um símbolo religioso egípcio e
gestante, foi considerada excêntrica, porém competente na arte do canto. Com
apenas 26 anos, já era revelação com seu rhythm & blues cool e sofisticado,
ainda que não muito conhecida no Brasil. Talvez as críticas fossem mais
generosas com a musa, caso tivesse se apresentado no New Directions do
Bourbon, bem mais elogiado do que o popular Main Stage, produzido para o
grande público.
E falando nele, voltemos ao Bourbon, que nesta mesma noite abriu o Free Jazz
com Donald Harrison Quartet. Harrison foi aluno de Ellis Marsalis e também fez
parte dos Jazz Messengers de Art Blakey. Trouxe a sonoridade do saxofone e
mostrou que o jazz pode ser tradicional e inovador, sempre que bem feito.
Depois dele foi a vez do pianista Danilo Perez, a latinidade de seu nome se
encontra, também, na sua música. Nascido no Panamá, apaixonou-se pelo jazz
depois de escutar Bill Evans. Se aprofundou no assunto e identificou-se com
Thelonious Monk, que também tratava seu piano como instrumento percussivo.
Tanto assim, que fez uma homenagem ao mestre no seu primeiro disco,
intitulado, “PanaMonk”. O jovem pianista de 31 anos já havia tocado com
Paquito D’Rivera e na orquestra de Dizzy Gellespie. Veio para a Free Jazz
apresentar a percussividade latino- americana de sua música, que lhe rendeu
elogios a perder de vista. Pharoah Sanders, estrela do Palco Club nesta noite,
encerrou o penúltimo dia do Free Jazz. Conhecido pela forte parceria que
vivenciou ao lado do também saxofonista, John Coltrane, foi aguardado pela
crítica como um dos maiores expoentes do atonalismo surgido em meados da
década de 1960, com o free jazz. Iconoclasmos à parte, fez um show mais
sóbrio e conciso nesta apresentação, frustrando, assim, os que esperavam
ouvir sua ousadia free.
O blues abriu o palco principal do Palace em sua última noite. E para mostrar
que o blues, a música e o amor são de todas as cores e englobam todas as
pessoas, Ronnie Earl, branco e judeu que teve parte da família morta em
campos de concentração europeus, chegou ao Free Jazz para tocar “Colour of
Love”, seu então mais recente disco. Seu encanto pelo blues surgiu depois de
assistir a Muddy Waters no palco. Investiu no estilo e mostrou que o blues já se
disseminou por todas as raças. Tanto assim que o amigo e guitarrista texano,
Jimmie Vaughan, também branco, fechou a noite privilegiando suas canções
mais conhecidas e demostrou que, independente da cor de sua pele, merece
entrar para a lista dos mais expressivos nomes do blues atual. Entre um e outro
tivemos o único negro da noite, o veterano guitarrista Otis Rush, pela primeira
vez no Brasil. Ele também participou do movimento de eletrificação do blues,
mas passou muitos anos longe das gravadoras, tendo retomado em 1994 com
o disco, “Ain’t Enough Comim’in”. Subiu ao palco depois de sua banda tocar
duas músicas, plugou sua guitarra e tocou clássicos do estilo como Homework
e I Got My Mojo Working. Acredito que o mais interessante da noite bluseira,
que garante sua presença sempre no palco principal, seja a importância que os
músicos dão ao canto resposta que exigem do público. Em todos os shows
desta noite a indispensável interação palco – plateia foi garantia de frisson
entre os ouvintes.
Ainda nesta última noite o palco New Directions trouxe o grupo brasileiro, O
Trio, formado por Pedro Amorim (violão e bandolim), Paulo Sérgio Santos (sax
e clarinete) e Maurício Carrilho (violão), que fez releituras de chorinhos, além
de uma procedente homenagem a Pixinguinha. Abriu para Kenny Garret, eleito
no ano anterior pelos leitores da Downbeat como o melhor saxofonista do ano.
Também trabalhou com Miles Davis, com a Duke Ellington Orchestra e os Jazz
Messengers de Art Blakey. Veio para representar a velha guarda do jazz. Mais
tarde, no mesmo Bourbon, porém palco Club, quem encerrou o 12o Free Jazz
foi o saxofonista Lee Konitz. Ele e seus companheiros de palco, Mark Johnson
(contrabaixo) e Jeff Williams (bateria), dispensaram até mesmo os microfones
para exercitarem a completa liberdade de improvisação, a mais forte
característica do jazz. Inverteram a tradicional forma do jazz (tema-improviso-
tema) e começaram quase todas as músicas com improviso, para só depois
indicar o tema. Konitz interagiu diversas vezes com o público e, ao final, foi
pego de surpresa por Zuza Homem de Mello que subiu ao palco com um bolo e
velas para comemorar o 70o aniversário do saxofonista. Quando Lee Konitz
apagou as velinhas já era madrugada de 13 de Outubro, data do seu
aniversário.
1998
Ao passar para o Jockey Club de São Paulo, a 13º edição do Free Jazz
apresentou-se bem próxima do modelo adotado pelo tradicional festival de jazz
de New Orleans. Embora com os palcos menores do que em anos anteriores,
teve recorde de bilheteria, com venda de quase todos os ingressos antes
mesmo do seu início. Sem a mostra de filmes sobre jazz, compensou o
desfalque com a inclusão de uma exposição fotográfica com imagens em preto-
e-branco de artistas consagrados no universo jazzístico, como Billie Holiday,
Miles Davis, Count Basie, Charlie Parker, dentre outros que foram fotografados
por Herman Leonard durante a década de 1940 e início de 50. O fotógrafo,
então com 75 anos, esteve no evento para fazer a abertura de sua exposição.
Ele, junto de um seleto grupo de fotógrafos que inclui William Claxton, Chuck
Stewart, Lee Tanner e Jean–Pierre Leloir, ficou famoso por construir um
imaginário fotográfico para o jazz. Pelas imagens de Leonard conseguimos
visualizar as diversas características que por muito tempo definiram os
ambientes jazzísticos, como o forte contraste entre luz e sombra, a fumaça
sempre excessiva e o refinamento de seus artistas. Além de conter essa
necessária exposição, o Free Village incluía em seu espaço: telão para exibir
vídeos musicais, bares, restaurantes, livros e discos. E pôde ser frequentado
inclusive por quem não conseguiu ingresso para os shows.
Mais intimista em sua nova estrutura, porém mais agressivo em sua
visualidade, o festival, neste ano, já era pauta meses antes de sua estreia, com
direito a longas entrevistas com os artistas, divulgação de novos lançamentos
jazzísticos no Brasil e guia completo para identificar todas as atrações, local e
hora de suas apresentações, que eram, também, exibidas por canais de tevê.
O sucesso de público era tão certo que fez o festival se expandir para Curitiba,
somando-se mais uma cidade às outras três já dominadas por ele, Rio de
Janeiro, Porto Alegre e, claro, São Paulo.
A programação em São Paulo ficou assim:
Data Local Palcos Atrações
New Directions (20h00)
Marc Cary Maria Schneider
Main Stage (21h30) Ben Harper Dave Matthews Band
16.10.1998 – Sexta-feira
Jockey Club
Club (23h00) Banda Mantiqueira Johnny Griffin
New Directions (20h00)
Antonio Hart Mavis Staples
Main Stage (21h30) Kraftwerk Massive Attack
17.10.1998 – Sábado
Jockey Club
Club (23h00) Jane Ira Bloom Hermeto Pascoal
New Directions (20h00)
Farofa Carioca Keb’Mo’
Main Stage (21h30) Wayne Shorter Jeff Beck
18.10.1998 – Domingo
Jockey Club
Club (22h00) Antúlio Madureira Howard Johnson
O palco Main Stage, como sempre, soou bastante diverso. Apresentou uma
vertente da música eletrônica, astros consagrados no jazz e no rock, mas
também os mais novos destaques da tradição musical norte americana, como
foi o caso do Jamiroquai no ano passado e do Bem Harper e da Dave
Matthews Band neste. Aliás, foi nesta ordem que estreou a primeira noite do
Main Stage. Harper foi bastante esperado e chegou vestido com uma camisa
do Brasil. Nesta época tinha apenas três discos lançados, porém muito bem
divulgados, tanto que o publicou cantou junto quase todas as canções de seu
repertório que mistura rock, soul, blues e country. A plateia parecia ainda mais
animada do que o músico que passou quase todo o tempo da apresentação,
sentado. Ainda assim, seu show foi considerado superior ao da atração
seguinte, Dave Matthews Band, já bastante popularizada nos EUA, que veio
apresentar um rock feito com violão amplificado que incluía até violinos na
sonoridade da banda.
A segunda noite do Main Stage trouxe, novamente, música eletrônica. Quem
abriu foram os germânicos do Kraftwerk, que não utilizaram instrumentos no
palco. Parece absurdo, mas a música do grupo formado ainda na década de
1970 é feita somente com aparelhos eletrônicos sonoros, aliada a imagens
exibidas em um telão enorme no fundo do palco. Os integrantes da banda
pareciam quatro figuras robóticas no palco e levaram o público para uma
atmosfera futurística. Ao mesmo tempo em que criavam, também ironizavam
os caminhos contemporâneos da música e como estavam pela primeira vez no
Brasil, deixaram a todos extasiados com aquela proposta criada há longos
trinta anos. A surpresa foi tanta que quando a mais conhecida, Massive Attack,
subiu ao palco, houve certa decepção. Embora tenham sido um dos
responsáveis pela popularização do obscuro trip-hop (uma das vertentes da
música eletrônica), optaram por um show menos eletrônico com um formato
mais convencional de bateria acústica, baixo e guitarra.
O jazz só apareceu no Main Stage em sua última noite e, mesmo assim, abriu
para o rock. Wayne Shorter é um daqueles lendários jazzistas: passou pelo
Jazz Messengers de Art Blakey, pelo segundo quinteto de Miles Davis e pelo
fusion do Weather Report, além de ter transitado pelo hard bop de Horace
Silver no seu tempo de prestação de serviço ao exército. Chegou e já disse na
coletiva: “o mais importante no jazz é o combate e não a perfeição” (CALADO,
Carlos. “Wayne Shorter chega a exagerar da discrição”. In: Folha de São
Paulo. Ilustrada. 20/10/1998). Mas ao que indica Calado, o saxofonista, neste
show, priorizou mais o seu lado compositor, deixando os improvisos para os
músicos que o acompanharam. Ainda assim, sua veia para o duelo jazzístico
pode ser ouvida em Meridianne- A Wood Sylph, quando sax duelou com piano
e novamente no bis, quando tocou Footprints e exibiu seu extraordinário lado
solista. Depois dele veio o guitarrista britânico, Jeff Beck. Inspirados pelo rock
dos anos de 1970, incluiu bons improvisos durante sua apresentação. Mas se
ainda for difícil imaginar qual o tipo de sonoridade produzida pelo músico, basta
relembrar que foi ele quem substituiu Eric Clapton no grupo Yardbirds. Seu
rock, portanto, soou bem diferente daquele apresentado por Dave Matthews,
na abertura deste mesmo palco.
O palco Club, bem mais intimista, seduzia facilmente os ouvidos mais puristas.
E para não romper com a tradição, era o último a abrir suas portas, às 23h00.
Confirmava, assim, aquela velha relação entre o jazz e a noite, estabelecida,
principalmente, entre os músicos das grandes orquestras que, em finais da
década de 1940, se juntavam após as apresentações para fazerem as famosas
jam sessions, responsáveis pela criação de novos estilos jazzísticos, como se
deu com o bebop depois da era do swing. Como atrações da primeira noite
deste Free Jazz, as orquestras chegaram com força total. O Club recebeu uma
delas, que já era presença constante nas casas noturnas paulistanas, a Banda
Mantiqueira retomava a linguagem das big bands, mas com repertório nacional
e sonoridade cheia de energia. Maria Schneider também trouxe sua orquestra,
mas tocaram no New Directions. A regente trabalhou com Gil Evans e chegou
carregada por elogios da mídia norte americana, além de duas indicações ao
Grammy, pelo seu primeiro disco, Evanescence (1993) . Conquistou a crítica
pela delicadeza de seus arranjos que determinaram um contraponto com o
pianista Marc Cary, responsável pela abertura desta primeira noite no palco
New Directions, onde apresentou um jazz eletrificado, com forte influência dos
anos de 1970. Já a Mantiqueira, abriu para o saxofonista Johnny Griffin, outra
lenda do jazz. Já virou lenda, porque participou do movimento bebop logo que
surgido. Tocou com Thelonius Monk e Art Blakey e neste Free Jazz, ao que
dizem os críticos, confirmou sua fama de gatilho mais rápido do bebop,
principalmente quando tocou Night in Tunisia (de Dizzy Gillespie). Um show de
Griffin prova que embora standartizada, a música no jazz se torna sempre uma
nova música.
Em sua segunda noite o New Directions ainda traria a cantora norte-americana,
Madeleine Peyroux, mas devido a calos nas cordas vocais, foi substituída pela
discípula de Mahalia Jackson, Mavis Staples, que embora conhecida por seu
canto gospel, priorizou para o Free Jazz um repertório voltado para a soul
music e fez todo mundo dançar, cantar e bater palmas durante sua
apresentação. Quem abriu a noite para ela foi o novíssimo saxofonista, Antonio
Hart. Com menos de trinta anos, já era um músico promissor que priorizou o
repertório puramente jazzístico para o show, embora com influências do
reggae, da salsa, do blues e até do hip hop em suas composições. Keb’Mo’
tocou no mesmo palco, porém no último dia do festival. Único representante do
blues neste ano, fez um show somente com voz e violão e conseguiu passar
por diversos estilos de música negra norte-americana como o gospel e o
country. Dividiu a noite com os brasileiros do Farofa Carioca que lançavam
neste ano o primeiro cd.
No Club ainda tivemos a veterana saxofonista, Jane Ira Bloom que abriu para
nosso bruxo, Hermeto Pascoal e no último dia, Antúlio Madureira que dentre as
várias excentricidades que apresentou, tocar Ave Maria, de Schubert, com um
serrote, foi a mais surpreendente. Abriu a noite para que depois entrasse
Howard Johnson e sua orquestra de tubas. Os arranjos refinados criados por
Jonhson provaram que a tuba também pode soar leve e bastante musical.
1999
A programação:
Data Local Palcos Atrações
New Directions (20h00)
Jacky Terrasson Quintet Marc Ribot y Los Cubanos Postizos
Main Stage (22h00) MV Bill & The Roots Eagle-Eye Cherry Finley Quaye
15.10.1999 – Sexta-feira
Jockey Club
Club (23h00) Leandro Braga Roy Haynes Group
16.10.1999 – Sábado
Jockey Club
New Directions (20h00)
Pedro Luís e a Parede Cake
Main Stage (22h00) The Crystal Method Orbital Darren Emerson
Club (23h00) Trio Madeira Brasil George Shearing Quintet
New Directions (20h00)
Medeski, Martin & Wood Jonny Lang
Main Stage (22h00) Joshua Redman Nicholas Payton Louie Bellson, Clark Terry e The William Brothers Tap Dancers
17.10.1999 – Domingo
Jockey Club
Club (23h00) Vittor Santos Orquestra Charles Lloyd Quartet com John Abercrombie
Palco Main Stage:
O palco mais eclético e mais popular do festival apresentou diversas
tendências da música mundial, neste final de década. Na primeira noite trouxe
o rapper brasileiro, MV Bill, cujo repertório privilegiou seu então mais recente
álbum, “Traficando Informação”. Neste ano o cantor da Cidade de Deus
concorreu ao Video Music Brasil na categoria rap e também por isso era
presença marcante na mídia brasileira. Ao final de sua apresentação fez um
discurso de paz, mas a arma que carregava na cintura não foi bem vista pelos
jornais. Também cantou com o The Roots, grupo norte-americano, que ainda
se estendeu no palco para mostrar um hip hop que não necessita de DJ ou
sampler, prefere a instrumentação ao vivo. Era um dos principais nomes do hip
hop mundial, principalmente depois de eleito pela revista Rolling Stones como
a melhor banda de hip hop ao vivo. Transitaram pelo rap e pelo jazz, animando
a plateia cheia do Jockey. Depois veio Eagle Eye, irmão de Neneh Cherry.
Durante o show, cantou novas versões para músicas de Bob Marley e recebeu
Naná Vasconcelos para uma participação especial. Quem fechou a primeira
noite do Main Stage foi o cantor escocês Finley Quaye. Com um show mais
voltado para o reggae, também homenageou Bob Marley, mas sem deixar de
apresentar algumas pitadas de trip hop, característica de seu estilo. Chegou
premiado no Brasil como melhor cantor pelo Brit Awards, uma espécie de
Grammy britânico.
Em sua segunda noite, o Main Stage trouxe revelações da música eletrônica
para se apresentarem numa plataforma de cinco metros de altura, colocada no
centro da pista, de forma a destacar os DJs convidados. Começou com The
Crystal Method, duo de DJs norte-americanos, Scott Kirkland e Ken Jordan,
que fez o chão tremer com o big beat característico de seu trabalho. Eles
substituíram a banda inglesa, Propellerheads, que não pode vir devido ao
atraso na gravação de um cd. A segunda apresentação foi do Orbital, formado
pelos irmãos britânicos Paul e Phillip Hartnoll, que exibiu mantras e músicas
psicodélicas em formato de techno music, e fez o público entrar num universo
ritualístico, presente na repetição de algumas batidas. A última apresentação
desta noite ficou por conta do DJ inglês Darren Emerson, que deixou a pista
quente quando trouxe sua house music, numa apresentação com cerca de
duas horas de duração.
O jazz também marcou presença no palco principal, em sua última noite,
dedicada à homenagem de veteranos mestres jazzístas. Começou pelo
saxofonista Joshua Redman. Ele já havia participado do Free Jazz em 1994 e
seu amadurecimento foi pauta na crítica de Carlos Calado, para a Folha.
Recente exponte da nova safra de jazzistas norte-americanos, mostrou que,
mesmo quando toca standards, apresenta novos arranjos, de forma a reciclar
os clássicos à moda contemporânea. Começou por Summertime (dos irmãos
Gershwin). Seu quarteto era composto também pelo pianista, Aaron Goldman;
pelo contrabaixista, Reuben Rogers e pelo baterista, Greg Hutchinson. O
segundo show era uma homenagem a Louis Armstrong, ainda assim, o
também jovem trompetista Nicholas Payton, pareceu ter a mesma preocupação
de Redman quando apresentou Armstrong em novas roupagens, de modo a
não soar como cópia do mestre. Estava à frente de uma big band com 11
músicos que incluía Lew Sloff no trompete, Bob Stewart na tuba e Delfeayo
Marsalis no trombone. Juntos criaram modernos arranjos para o tradicional
estilo New Orleans, típico de Armstrong. A terceira e última apresentação veio
para homenagear Duke Ellington em comemoração ao seu centenário. E o líder
deste tributo foi um representante da velha guarda, ex-integrante da Ellington
Orchestra, que também tocou nas big bands de Count Basie, Benny Goodman,
Tommy Dorsey e Harry James. Era o baterista, Louie Bellson, 75, pupilo de
Ellington, que veio acompanhado pela Duke Ellington Alumni. Também viria
outro veterano, discípulo do mestre, o trompetista Clark Terry, 79, que voltaria
para sua segunda apresentação no Free Jazz, porém não pode vir, devido a
problemas de saúde. Os veteranos da orquestra transitaram por clássicos do
maetro, deixando os mais nostágicos em êxtase com aquela volta aos anos de
1920 e 30. A homenagem também incluiu o grupo de sapateadores, Williams
Brothers Tap.
Palco New Directions:
A primeira noite do New Directions apresentou Jacky Terrasson, pianista
alemão, que incluiu no seu quinteto gaita e flauta de bambu, de modo a criar
um jazz atmosférico, reforçado pelo pulso hipnótico do baixo e da bateria. Abriu
com um clássico de Ravel, Bolero, e não deixou de incluir a música brasileira
na apresentação, que veio representada por Desafinado, do nosso clássico,
Tom Jobim. O encerramento da noite ficou por conta do guitarrista Marc Ribot,
respitado músico vanguardista da cena novaiorquina. Veio acompanhado de
amigos que formavam a banda Los Cubanos Postizos. Nenhum deles
apresentava um histórico de ligação mais profunda com os ritmos cubanos e
talvez por isso o show tenha deixado a dever à música centro-americana, como
publicou Carlos Calado, pela Folha.
Na sua segunda noite, a estréia do palco ficou com Pedro Luís e a Parede, os
cariocas que misturaram rock, maracatu, funk, rap, dentre diversos outros
estilos, elaborando um pop fusion brasileiro, de batucada marcante. Animaram
o público para a entrada da última banda da noite, Cake. Eles estavam com
diversas músicas tocando constantemente nas rádios brasileiras, fato que
explica a forte participação do público, que cantou junto quase todas as
músicas no show. Ao final, receberam Tom Zé para uma participação especial.
Em sua última noite, o New Directions recebeu Medeski, Martin & Wood.
Também representantes da vanguarda novaiorquina, o power trio formado pelo
tecladista John Medeski, o baterista Billy Martin e o baixista Chris Wood,
estrapolavam as barreiras do jazz, somando a ele influências de várias
tradições musicais modernas que ia do funk ao rap, sem deixar os ruídos de
fora. A música do grupo não se baseia no improviso, mas se destaca por
apresentar novas concepções estéticas de composição, foi por isso, bastante
elogiado pela crítica. A última apresentação da noite ficou por conta do único
representante do blues, neste ano. Um jovem de apenas 18 anos, loiro dos
olhos azuis, mas que tinha a potência de um bluseiro na garganta. Jonny Lang
cantou clássicos do blues, como Lie to Me passeou pelo pop e encerrou
exibindo o vigor de um bom estreante.
Palco Club:
Este era o palco preferido dos jazzistas mais ortodoxos. Mais intimista, trazia
no corforto da tradição a certeza de vida longa ao jazz. Neste ano, o primeiro
grande nome a estrear no Club foi o de Roy Haynes, baterista veterano no jazz
que já havia tocado com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Bud
Powell, John Coltrane e até Chick Corea, para ficar só entre alguns. Quando
subiu ao palco pediu para que abaixassem a luz, de forma a estimular os
ouvintes presentes a se atentarem para a conversa jazzística que, junto de seu
grupo, apresentaram para o Free Jazz. Quem abriu para Haynes foi Leandro
Braga, pianista e arranjador paulista que, depois de acompanhar diversas
estrelas da MPB, apresentou para o Free Jazz seu trabalho solo, “Pé na
Cozinha”.
A segunda noite foi aberta pelo Trio Madeira Brasil. Composto por Ronaldo do
Bandolim no bandolim, Marcello Gonçalves no violão de sete cordas e José
Paulo Becker no violão, o trio de cordas presenteou o público com temas
nacionais de Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth e Chico Buarque, passando
também pelo ragtime de Scott Joplin, com lindas versões instrumentais. Depois
foi a vez de outro veterano, George Shearing. O pianista britânico privilegiou as
técnicas eruditas em seu repertório, que passou por standards como Speak
Low e Donna Lee, sem deixar fora as composições próprias, como Lullaby of
Birdland e East of the Sun. Aos 80 anos, chegou de smoking, assim como o
restante do quinteto. O excesso de precisão foi assunto entre os críticos
especializados, que sentiram falta de mais espaço para a liberdade jazzística
do improviso.
A Vittor Santos Orquestra subiu ao palco Club em sua última noite, como
representante das orquestras brasileiras. O trombonista carioca dirigiu mais
vinte músicos que tocaram além de composições próprias do maestro,
clássicos da Bossa Nova e dos afro-sambas de Vinícius de Moraes e Baden
Powell. Para fechar com chave de ouro, Charles Lloyd Quartet junto do
guitarrista John Abercrombie. O saxofonista norte-americano, seguidor de
Coltrane, na década de 1960 chegou a vender um milhão de cópias do seu
disco, “Forest Flower”, e virou ídolo daquela geração hippie. Neste festival veio
lançar o novo disco, “Voice in the Night”, gravado com Abercrombie.
2000
Data Local Palcos Atrações
New Directions (20h00)
Irvin Mayfield Greg Osby
Main Stage (22h30) Sean Lennon Sonic Youth
20.10.2000 – Sexta-feira
Jockey Club
Club (22h00) Hamilton de Holanda Max Roach
New Directions (20h00)
Moreno +2 Manu Chao
Main Stage (22h30) Moloko Leftfield
21.10.2000 – Sábado
Jockey Club
Club (22h00) Chucho Valdés João Donato Ray Brown
New Directions (20h00)
Marcos Suzano Talvin Singh Jay-Jay Johanson
22.10.2000 – Domingo
Jockey Club
Main Stage (22h30) Femi Kuti & The Positive Force D’Angelo
Club (22h00) Ravi Coltrane Art Ensemble of Chicago
Com o mesmo formato dos últimos anos, o Free Jazz seguiu como divulgador e
difusor de diferentes correntes musicais. A música eletrônica apareceu na
segunda noite do Main Stage, através das bandas Moloko e Leftfield. A
primeira estava conhecida, neste ano, por compor a trilha da campanha
publicitária da Lucky Strike com a música, Fun for Me. Era formada por Mark
Bryden, guitarrista, tecladista e baixista e também pela vocalista irlandesa,
Roisin Murphy. A música do duo se voltava para o pop, mas com base na
house music, na soul e no trip-hop. O Leftfield também era um duo inglês,
formado por Neil Barnes, tecladista e baterista e por Paul Daley, também
baterista. Com a ajuda de aparatos eletrônicos transitavam entre o big beat, o
techno e o funk. Além deles, o Free Jazz preparou o Village para receber os
modernos disc jóqueis, contemporaneamente conhecidos como DJs (com
pronuncia das letras em inglês). O espaço de convivência do festival foi
transformado em área para badalação, apresentando a nova safra de DJs
voltados para a música eletrônica. Essa área, aliás, naquele ano, foi muito bem
vista pela crítica musical.
Ainda assim, a grande novidade foi a vinda de representantes do rock indie,
que agradava àquela parte dos jovens mais voltados para a cultura punk e
grunge. Indie significa independet de forma contraída, um tipo de música
alternativa à margem do mercado. O Free Jazz inovou ao trazer, pela primeira
vez, grupos que já eram sucesso entre essa parcela da juventude, como Sonic
Youth, pela primeira vez na América Latina e Sean Lennon, filho de John
Lennon, também pela primeira vez no Brasil. Ambos representantes daquela
tão falada vanguarda nova-iorquina. Eles tocaram no Main Stage na primeira
noite do festival, que teve ingressos esgotados logo que colocados à venda.
Youth saiu como ótimo representante de uma elaborada cultura pop, Lennon
não teve a mesma sorte dentro da crítica brasileira.
Femi Kuti Trouxe a tradição afrobeat africana para o festival, uma espécie de
fusão entre jazz, funk e cantos tradicionais africanos. Filho de Fela Kuti, o
maior representante do estilo, veio para o Free Jazz dar continuidade às letras
contestatórias do pai, mas somando ao tradicional afrobeat, elementos da
dance music. Junto dele vieram os integrantes da Positive Force, sua banda de
apoio. Depois dele e no mesmo Main Stage em sua última noite, subiu
D’Angelo. Chegou como a nova promessa do soul que em outros tempos era
representada por Otis Redding, Marvin Gaye e Curtis Mayfield. Menos visceral
do que seus veteranos, mas igualmente melodioso e sensual, destacou-se no
cenário musical de Nova-York quando conquistou por três vezes consecutivas
o concurso de calouros do Apollo Theater, no Harlem. Para o Free Jazz
apresentou canções de seu primeiro álbum, “Brown Sugar” e de seu segundo e
último álbum, gravado em 1999, “Voodoo”.
Também teve espaço para a músca cubana, no mais intimista dos palcos, o
Club, que teve suas noites todas esgotadas antes do início do festival, na
capital paulista. Chucho Valdés, um pianista cubano dos mais conceituados,
além de compositor, arranjador e bandleader, chegou com dois Grammy na
bagagem, um conquistado em 1978, pelo album “Live at Newport” e outro em
1998, por sua contribuição com duas canções para o disco “Habana”, de sua
banda, Crisol, gravado em 1997. Também era organizador do Havana
International Jazz Festival. Trouxe para o festival brasileiro sua fusão de
influencias popular e erudita, com uma leitura jazzística-caribenha bastante
elogiada. Tocou na mesma noite que João Donato e Ray Brown. Donato, que
em anos anteriores subiu bêbado ao palco do Free Jazz, pareceu regenerado
neste ano. Fez uma retrospectiva da carreira, tocando seus grandes hits, mas
mostrou sua boa forma ao reformular de maneira criativa as antigas canções.
Ray Brawn, baixista que fechou a noite, fazia parte daquela leva de veteranos
que definiram o jazz contemporâneo e que o festival trazia de forma a revisitar
artistas amplamente consagrados. Ele já havia tocado com Dizzy Gillespie,
com Ella Fitzgerald, de quem também foi marido e diretor musical, depois com
Oscar Peterson, Milt Jackson, Joe Pass, dentre muitos outros. A parte alta do
show foi quando o trio fez um medley com as composições de Monk, Round
Midnight e Well, You Needn’t.
Max Roach foi outro importante músico da velha guarda do jazz a se
apresentar no Club, neste ano. O famoso baterista já estivera presente no Free
Jazz de 1989 e voltou com o mesmo sorriso no rosto, mais evidente durante
seus solos. Sua banda era formada pelo trompetista Cecil Bridgewater, pelo
saxofonista Odean Pope e pelo contrabaixista Tyrone Brown, os mesmos que o
acompanharam há 11 anos. Fazendo de sua bateria um instrumento melódico
e em ótima sintonia com a banda, foi responsável por um dos shows mais
elogioados. Antes dele, porém, o show do bandolinista Hamilton de Holanda
parece não ter sido bem entendido pela crítica tanto da Folha quanto do
Estadão. Ele chegava como uma das grandes promessas da música
instrumental brasileira, principalmente por ser finalista do 1º Prêmio Visa de
Música Brasileira. Fez um show privilegiando o choro brasileiro, mas com vigor
e velocidade, característico da sua forma de tocar. Sua incrível habilidade e
sonoridade enérgica, o tornou conhecido como bandolinista heavy metal, fato
mal visto pelos críticos, que preferiram defender o choro desta forma agressiva
de tocar. Vejam como foi publicado na Folha: “O que Hamilton de Holanda faz
é reflexo da esquizofrenia cultural por que passamos, em que tudo é rápido,
fragmentado e tecnologicamente preciso. Sua sonoridade é enérgica, talvez até
demais.” (JUNIOR. Carlos Bozzo. “Faltou choro no show de Hamilton de
Holanda”. In: Folha de São Paulo. Ilustrada. 23/10/2000). Mauro Dias, do
Estadão, também advertiu: “corre o risco de virar uma espécie de Armandinho,
talentoso, como se sabe, mas nada além.” (DIAS, Mauro. “Perguntas e
respostas no palco Club”. In: Estado de São Paulo. Caderno 2. 23/10/2000).
Outro menos elogiado foi Ravi Coltrane. Afinal, ser filho de John Coltrane não
deve mesmo ser fácil. Ele fazia parte daquela nova leva de jazzistas, muitas
vezes apresentados aos brasileiros pelo festival. Saxofonista como o pai, não
conseguiu fugir das comparações sendo considerado como músico mediano
pelos críticos. O contrário aconteceu com o Art Ensemble of Chicago e sua
musicalidade free, que funde ritmos africanos, sonoridades orientais e livres
improvisos de todos os músicos da banda. Com os integrantes de rostos
pintados e vestes africanas e com o palco cheio de tambores, gongos,
chocalhos, apitos e buzinas, o show foi contagiante e transgressor, como bem
gosta o jazz.
Os novos músicos de jazz também marcaram presença no palco New
Directions. O primeiro foi Irvin Mayfield, jovem trompetista que estreava no
Brasil, cujo repertório era baseado no seu álbum de estreia, “Irvin Mayfield”.
Sem se esquecer dos clássicos standards, também tocou, Body and Soul e
Giant Step, rearranjadas como samba de forma a homenagear o Brasil.
Aclamado pela crítica, mostrou que o sotaque de sua música vem de sua
cidade natal, New Orleans. Greg Osby, outro jovem músico saxofonista, subiu
ao palco logo depois de Mayfield, dando continuidade à nova safra de jazzistas.
Driblou o previsível e conquistou a crítica. Depois, trompetista e saxofonista
subiram juntos para o bis. A jam promovida por eles foi ainda mais admirada,
reflexo de que o espírito do jazz ainda continua vivo.
Moreno Veloso (violão), filho de Caetano, junto de Domenico Lancelotti (bateria
eletrônica) e Alexandre Kassim (baixo eletroacústico), subiram ao palco para
abrir a segunda noite do New Directions. Representantes da nova safra da
mpb, tocaram composições próprias, mas também homenagearam Ataulfo
Alves com a canção Sinto-me bem, Luiz Gonzaga com Imbalança e até Cole
Porter com Night and Day, que revelou um novo pulso ao trio, destacando a
capacidade multiinstrumental de Kassim e o experimentalismo característico do
grupo. Depois deles foi a vez de Manu Chao, responsável pela voracidade na
venda dos ingressos desta noite. Sucesso absoluto com um único disco
intitulado, “Clandestino”, Manu Chao mostrou para o Free Jazz sua proposta de
música globalizada, que funde diferentes culturas através da mistura de
diversos ritmos e fez a platéia cheia do jockey cantar quase todas as canções.
Em sua última noite, o New Directions trouxe o cantor, instrumentista e
arranjador sueco, Jay-Jay Johanson e o percussionista, produtor e DJ inglês,
Talvin Sing. O primeiro, pela primeira vez na América Latina, também transitou
pela música eletrônica e mostrou, acompanhado por mais cinco músicos, seu
trip hop influenciado por bandas como Massive Attack e Portishead. O segundo
deixou os equipamentos eletrônicos em casa e fez um show basicamente
percussivo com tablas e mais dois percussionistas. Fizeram um show
ritmicamente transgressor. No bis, Marcos Suzano, percussionista brasileiro
que abriu a noite, voltou ao palco para uma tímida participação.
Transmitido pelo canal de tevê, Multishow, o festival neste ano era apontado
pela crítica como transgressor e inovador. Vejam como colocou Jotabê
Medeiros em matéria para o Estadão: “O Free Jazz é o mais ousado e influente
festival de música do país. Espalhou tendências e antecipou movimentos. Sua
permanência, com a independência usual, deveria ser uma bandeira cultural a
ser empunhada” (MEDEIROS, Jotabê. “Jazz, art rock, afrobeat, r&b,
drum’n’bass...”. In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 20/10/2000).
2001
Data Local Palcos Atrações
New Directions (19h00)
Marlon Jordan Quintet The New Orleans Nightcrawlers
Main Stage (22h00) Grandaddy Sigur Rós Belle & Sebastian
Club (21h00) Moacir Santos Bill Henderson Quartet Chico Hamilton & Euphoria
26.10.2001 – Sexta-feira
Jockey Club
Cream (00h00) Youself Hernan Cattaneo Sander Kleinenberg Timo Maas
New Directions (19h00)
Funk Como Le Gusta Baaba Maal
Main Stage (22h00) DJ Dolores y Orchestra Santa Massa Roni Size reprazent Aphex Twin
Club (21h00) Yamandú Costa Randy Weston’s African Rhythms Quintet The Benny Golson Sextet
27.10.2001 – Sábado
Jockey Club
Cream (00h00) Mutiny Lottie Ray Roc X-Press 2
28.10.2001 – Domingo
Jockey Club
New Directions (19h00)
Cordel do Fogo Encantado Sidestepper Orishas
Main Stage ((22h00) The Temptations Macy Gray
Club (21h00) Curupira Pat Martino Phil Woods Quintet
Cream (00h00) Scanty Stanton Warriors Jon Carter Fatboy Slim
Em 2001, os jornais pareciam sair em defesa do festival, agora anunciado
como o mais esperado do ano. Com a nova lei proibindo o patrocínio de
eventos culturais por empresas da indústria do tabaco, o fim do festival parecia
cada vez mais evidente, já prenunciado pelos jornais. O número de críticos
especializados em música eletrônica, responsáveis por cobrir as pistas de
dança do festival, já era o mesmo dos responsáveis pela cobertura do jazz e do
rock. E estavam todos a favor da permanência do festival, já não mais tido
como uma ameaça, mas como sinônimo de modernidade e globalização, visto
que caminhava lado a lado com outros festivais de jazz pelo mundo.
A pista eletrônica que no ano 2000 aconteceu no Village, em 2001 consagrou-
se palco e foi batizada como Cream, nome de um dos mais importantes clubes
de música eletrônica de Leverpool, que foi quem promoveu a vinda de 13 DJs
para o festival, destacando a 16º edição do Free Jazz como a mais eletrônica
de todas. Neste ano, os DJs mais esperados eram: o alemão Timo Maas e o
britânico Fatboy Slim que fez os ingressos para a última noite do Cream se
esgotarem antes mesmo do começo do festival. O retorno dos disc jóqueis e a
batida eletrônica eram, agora, apreciados nos jornais, por adequarem o festival
à era da música eletrônica. Apareciam como sinônimos de modernidade e
juventude para o festival. Tanto que o palco principal, Main Stage, dedicou uma
noite só para a nova tendência da música mundial, na noite de sábado, quando
trouxe o produtor e DJ Roni Size junto de sua banda, Reprazent. A idéia foi
apresentar as mixagens feitas por Size junto com músicos tocando ao vivo no
palco. Apresentaram um dram’n’bass misturado com hip hop e ragga. Na
mesma noite, o também DJ e produtor britânico, Aphex Twin, apresentou um
set que fez todo mundo dançar usando apenas um lap top. Os brasileiros
ficaram representados pela presença do pernambucano, DJ Dolores, que veio
acompanhado pela Orquestra Santa Massa. Juntos mostraram o
maracatu’n’bass de Dolores junto com ritmos regionais nordestinos.
A universalidade proposta pelo festival ficava ainda mais aparente com a vinda
de músicos de diferentes nacionalidades que não só brasileiros e norte-
americanos. Vieram os islandeses do Sigur Rós, com um rock que se fazia
acompanhar também por violinos e violoncelos, de forma a aproximar-se da
música erudita. Apresentaram-se na mesma noite que trouxe os escoceses do
Belle & Sebastian, quando o Main Stage apresentou um rock mais novo,
bastante cool, que seguia naquela linha do indie rock, no ano anterior. O New
Directions também trouxe o senegalês Baaba Maal, que veio mostrar a música
tradicional africana influenciada pelo rhythm’n’blues norte americano. Os
Orishas, originário de Cuba que viviam em Paris, trouxeram o swing cubano
aos brasileiros. A crescente e constante presença de músicos vindos do mundo
todo mostrava, então, que nem só de dominação norte-americana se fazia um
festival de jazz.
O jazz, claro, também apareceu na voz de Bill Henderson, na bateria de Chico
Hamilton, no piano de Randy Weston e nos saxofones de Benny Golson e Phil
Woods, todos com mais de 70 anos e carreira longa no jazz. A atração mais
nova dentre os veteranos jazzistas, neste ano, era Pat Martino, na época com
57 anos, que veio para sustituir Art Van Dame, acordeonista norte-americano
que a uma semana do festival, sofreu um enfarte e ficou impossibilitado de vir.
O trompetista Marlon Jordan, no entanto, com apenas 31 anos, fazia parte da
nova geração do jazz. Antigo parceiro de Wynton Marsalis, trouxe a tônica da
erudição para o New Directions em sua primeira noite. O mais interessante a
se perceber, aqui, é que em 2001, diferentemente dos anos de 1980, os
críticos já não tinham no jazz tradicional, como o de Wynton e Jordan, o
exemplo a ser seguido pela nova geração. Ao contrário, criticavam o excesso
de erudição presente e seus shows. Até mesmo a orquestra The New Orleans
Nightcrawlers, quando apresentaram com seus dez instrumentistas a música
tradicional de New Orleans, foram criticados por não se mostrarem modernos.
Jotabê Medeiros, em matéria para o Estadão, disse que o grupo “não trazia
nenhuma inovação evidente para o gênero de brass band” (MEDEIROS,
Jotabê. “New Directions”. In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 29/10/2001),
e por isso, desqualificou o show do grupo, cujo interesse era justamente o de
preservar a tradição daquela forma musical.
No ano de 2002 o Free Jazz ficou só na promessa. Embora anunciado como a
última edição do festival, visto que em 2003 ele perderia o patrocínio com a
entrada da nova lei, a Souza Cruz cancelou o que seria seu último patrocínio
para o evento, alegando a instabilidade econômica e a alta do dólar por que
passava o país, como motivos para a desistência. O público e a mídia não
gostaram da decisão. Afinal, depois de tantos anos, o Free Jazz já fazia parte
da agenda cultural do país, como nosso festival mais importante. Em 2003, no
entanto, se assumindo como um festival de música genérico e não mais
jazzista e com o patrocínio da empresa de telefonia, Tim, o festival voltou com
novo nome, Tim Festival, que teve seu fim em 2008, novamente pela perda do
patrocínio.
Capítulo 3 – O Jazz na Mídia Impressa
Concordo com Juremir Machado da Silva, no livro A Miséria do Jornalismo
Brasileiro, quando afirma que a crítica cultural brasileira ainda não nasceu, o
que pode valer para a crítica musical.
A crítica da mídia, na atualidade, que parte do pressuposto do não
mercado, afunda-se na nostalgia e na intolerância. O país necessita
de uma crítica interna ao mercado capaz de postular a ampliação dos
espaços públicos de discussão e de gerar mais democracia nos
limites da sociedade capitalista. A prioridade nacional em termos de
liberdade de expressão está na obtenção de mais espaço para a
dúvida e a contradição, ou seja, para o jogo argumentativo, não para
a imposição de velhas Verdades com novos invólucros. Democracia
rima com desmitificação. (SILVA, 2000, p.27)
Já em seus primórdios, em finais do século XIX, o crítico Oscar Guanabarino
informava que Carlos Gomes não conhecia as obras de Mendelssohn, embora
depois tenha sido provado o contrário. Quem o atesta é Enio Squeff, no livro
aqui já muito referido O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, opinando no
sentido de que a crítica pode ter se equivocado, ou então, sugerido a
ignorância do compositor brasileiro.
Qual a razão da provável mentira de Guanabarino? Supondo-se um
equívoco, nem por isso as suspeitas do crítico poderiam ser levadas
em conta. Mas se pode supor também que Carlos Gomes sugerisse a
ignorância que, afinal, Guanabarino denunciou. As ilações podem
variar ao infinito; a menos inverossímil é a de que Guanabarino de
fato tenha se equivocado – mas, para tanto, talvez tenha contribuído
a idéia que ele fazia de Carlos Gomes, e não apenas desse
compositor, mas de boa parte dos músicos ou homens ligados à
música no Rio da época. (SQUEFF & WISNIK, 2004, p. 108-109).
Pode-se dizer que, naquele período, a música brasileira era ainda bastante
influenciada pela música européia, mas saía do domínio das óperas italianas,
onde encontrava-se Carlos Gomes, como operista brasileiro, para o sinfonismo
alemão. Guanabarino, dessa forma, se preocupava em estabelecer uma cultura
musical que fosse bem vista pelos europeus, tal como o senso comum daquele
período pretendia.
Assim também aconteceu no momento de surgimento da Bossa Nova em finais
de 1950 e início de 60. A crítica que recepcionou o novo estilo foi, a princípio,
bastante aversiva, carregada de um senso comum nacionalista, reforçado,
principalmente, pelo governo de Getulio Vargas, nas décadas de 1930 e início
de 40, que acreditava que, pela influência de estilos estrangeiros, perderíamos
nosso senso nacional e estaríamos submetidos à cultura de massa norte-
americana. Quando a influência se torna influenciadora, fato diagnosticado pela
crítica semioticista, principalmente de Augusto de Campos, mas também de
outros como Júlio Medaglia, os brasileiros se voltam com outros olhos para a
então mais moderna música brasileira. Ainda assim, o senso comum de que a
cultura de massa norte-americana era uma ameaça para o país perdurou por
muitos anos dentro da crítica brasileira, como veremos adiante.
O Jazz, que por muito tempo permaneceu nos primeiros lugares dos
programas radiofônicos nos Estados Unidos, parecia muito ameaçador quando
do surgimento da Bossa Nova, como dizíamos. Sua presença foi bastante
denunciada, aqui, como interferência do estrangeiro ameaçador, símbolo do
domínio norte-americano. Porém, na década de 1980, quando nasce o Free
Jazz, o inimigo não era mais o jazz, a esta altura elevado à categoria de arte,
mas sim o rock’n’roll, a que a crítica se referia como outrora o fazia com
relação ao jazz: o ícone da indústria cultural e do entretenimento alienante.
Quando de seu surgimento, o rock’n’roll conquistou toda uma juventude antes
fiel ao jazz, e foi eleito o novo queridinho da indústria fonográfica, que investiu
pesado na sua proliferação. Seu nascimento é datado de finais da década de
1950 e início de 60, assim como o da Bossa Nova no Brasil, e sua ascensão
caminhou lado a lado com a explosão dos mass-media. O movimento iniciado
nos Estados Unidos e na Inglaterra décadas depois se tornaria fenômeno
mundial e, no Brasil, foi representado por centenas de bandas de rock que
surgiram em meados de 1980, como Titãs, Paralamas do Sucesso, Legião
Urbana, Ultraje a Rigor, Capital Inicial, dentre muitíssimas outras.
O rock desalojou o jazz de sua carreira popular e o levou a ser música para
minorias, tão artística quanto a música clássica. No entanto, o mais
interessante a perceber aqui é que, quando o jazz retorna de maneira marcante
à mídia brasileira em 1985 pelo surgimento do Free Jazz, outro grande festival
de rock, o Rock’n’Rio, acontecido em janeiro do mesmo ano, comprovava a
força do novo movimento musical perante a cultura brasileira. Ainda assim, sua
trajetória não foi tão expansiva e duradoura quanto a do Free Jazz que, para
sua sobrevivência, acolheu diversos outros estilos, acompanhando uma
tendência global dentro dos festivais de jazz pelo mundo.
O jazz sempre foi vaidoso e teve a versatilidade como eterna companheira, foi
por isso que músicos como Miles Davis, Chick Corea, Herbie Hancock e
Wayne Shorter, com seu Weather Reportot, dentre muitos outros, foram
capazes de fundi-lo tão facilmente ao rock, de forma a garantir sua
sobrevivência junto ao mais novo astro pop. A crítica, purista em sua maioria,
reprovou, assim como reprovou o estilo bepbop em seu nascimento pós-swing
orquestral, como também reprovou o nascimento do estilo free jazz com seu
atonalismo, e como também vem repudiando todo o tipo de fusão com a
música pop.
No entanto, perceberemos que um novo olhar pode ser identificado na mídia
brasileira a partir das críticas de Carlos Calado. Em 1987, por exemplo, quando
o Free Jazz recebeu Chick Corea, num modelo fusion, pelo uso do sintetizador
e performance de rock star, a maioria da crítica parecia saudosa daquele Chick
do piano acústico, mais bem comportado: “O problema é o uso excessivo da
parafernália. Corea se comporta melhor com um piano acústico” (FILHO,
Antônio Gonçalves. “Corea leva 24 mil ao Ibirapuera”. In: Folha de São Paulo.
Caderno de Cultura. 14/09/1987). Enquanto isso, Calado direcionava para a
presença jazzística, mesmo diante dos instrumentos importados do rock: “O
impasse desta música ainda chamada jazz, apesar de toda a diversificação que
a caracteriza, não passa pelo uso cada vez mais intenso que se faz de
instrumentos eletrônicos, mas sim pela concepção que está por trás dessa
parafernália.” (CALADO, Carlos. “Fusion, a nova marca do Free Jazz”. In: Folha
de São Paulo. Caderno de Cultura. 07/09/1987). Dessa forma, enquanto a
maioria da crítica preferia se ver livre dos instrumentos eletrônicos, o crítico da
Folha se preocupava em demonstrar aonde estava a concepção estética do
jazz, independente do tipo de instrumento escolhido pelo músico.
Ora, não se pode fechar os olhos para o mundo que se abre, ainda que para
produtos de uma indústria cultural. E foi essa a proposta que os tropicalistas
trouxeram, porém, mais uma vez, foram mal entendidos pela crítica que os
recebia. Não há como convencer um público que cresceu diante de uma nova
era, de que tudo o que se faz não presta e ponto final. É preciso reestabelecer
o elo que une passado e presente para ampliar o espectro de conhecimento da
sociedade, de forma que cada indivíduo consiga estabelecer suas próprias
conexões e seja capaz de fazer suas análises individualmente e não a partir de
um ponto de vista pré-concebido. A crítica, de forma geral, se comporta como
guardiã das normas vigentes e confirma, assim, as regras estabelecidas pela
sociedade. Evita, pelo menos a princípio, uma transgressão ou um afronto.
Com a devida ressalva, pensando na função crítica de forma totalitária e não
enquanto exercício de um ou outro indivíduo, há de se perceber que ela
também sabe se redimir quando o tempo prova seu erro, e foi isso que a crítica
concretista mostrou. Surgiu como exemplo de modernidade diante daquela
crítica cultural que não acompanhava a arte, que por si só busca a metáfora, a
reinvenção ou a resignificação dos códigos já estabelecidos. Os movimentos
modernista e concretista propuseram uma nova função para a crítica, porém
também foram mal interpretados, de forma que, no Brasil, se restringiram a
marcos históricos na tentativa da busca de novos olhares capazes antes de
abrir, mais do que fechar conceitos como sempre foi feito de forma mais
frequente.
Ruy Castro é um mineiro que se formou jornalisticamente nos grandes jornais
cariocas e paulistanos. Ganhou cada vez mais respeito dentro dos veículos de
comunicação brasileiros, principalmente a partir da década de 1990, quando se
firmou como escritor, com a publicação das biografias de Nelson Rodrigues,
Garrincha e Carmem Miranda. Tornou-se um dos principais escritores da
editora Companhia das Letras, onde também publicou Tempestade de Ritmos.
Foi da música às tradições cariocas com livros como Ela é Carioca e A Onda
que se Ergueu no Mar. Não era averso ao jazz, conhecia muito bem seu
contexto político e social, detectados principalmente na obra de Scott
Fotzgerald, um dos maiores contistas da era do jazz, traduzido por ele. Foi
vencedor de três prêmios Jabuti, tornando-se uma das maiores autoridades do
jornalismo cultural brasileiro.
Durante a década de 1980, no entanto, se fez ouvir, pelo jornal O Estado de
São Paulo, embora na década seguinte, também pela Folha de São Paulo,
como um dos principais críticos do Free Jazz. Ruy Castro faz o tipo cronista,
escreve como se contasse uma história, sem deixar de explicitar sua opinião
sobre o assunto. Ele é um excelente escritor, convida o público para a leitura e
tem conhecimento profundo quando o assunto é música popular. Com relação
ao jazz, no entanto, demonstra uma postura saudosista e classicista, aprova os
já consagrados pela história e seus descendentes, mas reprova o que não
chega carregado de tradição. Em sua crítica de encerramento para o 3º Free
Jazz, mais do que apresentar uma crítica sobre música, preocupou-se em
desmascarar a estrutura econômica que amparava o festival e a indústria
cultural como um todo. É a isso que ele se refere, então, quando anuncia na
manchete: “Só ouvidos apurados ouvem as fivelas caindo das máscaras”.
Numa posição confortável para desmascarar as falsas estrelas convidadas pelo
Free Jazz_ uma vez que evidencia o problema excluindo-se da realidade que o
cerca_ o crítico se ocupa em denunciar a grande estrela responsável por essa
infusão de “enganadores” na rota do jazz: Miles Davis que, “para faturar uns
trocados”, funde rock ao jazz no disco Bitches Brew, e cria “este bebê
anencefálico chamado fusion”, que com sua nova proposta estética anuncia a
morte do estilo: “A ressaca da infusão preparada por Miles Davis fez – por
enquanto – o jazz perder em musicalidade, em mercado e, se não abrir o olho,
corre o risco de ver a sua própria marca transformada numa dessas grifes que
o rock precisa adotar e jogar fora de tempos em tempos, como o new wave,
new bossa e new age. Como epitáfio para um túmulo, não poderia ser mais
tétrico.” (CASTRO, Ruy. “Só ouvidos apurados ouvem as fivelas caindo das
máscaras”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. 10/09/1988).
A visão catastrófica do crítico também não era novidade. A previsão de morte
acompanha a crítica jazzística desde sempre, dadas as constantes
modificações estilísticas sofridas, ao longo de sua história. Além disso, a
ameaçadora indústria cultural já havia sido desmascarada através daquele
pensamento de cunho sociológico encaminhado por Adorno, que escancarava
as intenções mercadológicas presentes nas produções feitas para as massas.
Nesta crítica Ruy Castro retoma, como ele mesmo aponta, uma discussão que
começou na década de 1970, época de criação do fusion jazz / rock. Para ele o
assunto chegava atrasado ao Brasil, embora pareça que o próprio crítico,
depois de tantos anos, retomava uma polêmica já fora de voga. Ele parecia
querer evitar o inevitável e, partindo do pressuposto de que a parcela dos
jovens que consomem “fusion” seja apenas alienada, garante: “compra fusion
por jazz sem perceber que está cauterizando uma experiência musical que
poderia enriquecê-la e, pior ainda, está sendo feita de boba.” (Idem). Para ele a
estética fusion é a da pobreza técnica, feita por “enganadores” que
transformam o jazz apenas em uma marca, apoderando-se do forte caráter
vanguardista que sempre rondou o estilo, para se enobrecer, o Free Jazz seria,
então, um disseminador dessa trucagem. Em outra matéria no mesmo ano o
crítico aponta: “Mais uma vez o jazz (sem aspas) empresta a sua generosa
griffe para acolher bandos de bandas que vieram para o festival errado.”
(CASTRO, Ruy. “Os estranhos no ninho do Free Jazz”. In: O Estado de São
Paulo. Caderno de Cultura. 04/09/1988). Vale lembrar que, depois de repudiar
todos os músicos presentes no festival, sem exceções, como enganadores que
se venderam à indústria cultural, mais precisamente dois anos depois ele lança
o livro: Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. Pode-se
supor, então, que sua crítica preparava o terreno para a recepção de seu livro,
pois diante de tanta enganação, escrever sobre a Bossa Nova nos anos 1990,
mais do que uma atitude passadista, seria um retorno à última grande criação
musical brasileira, que depois foi invadida por enganadores.
Luis Antônio Giron também foi um forte crítico cultural dos anos 1980. Forte
devido à grande visibilidade que possuía dentro dos jornais e conhecido por
afrontar artistas consagrados. Figura polêmica, teve que se explicar na mídia,
em 2005, quando acusado de receber um i-pod da gravadora da cantora Maria
Rita, cujo interesse era aumentar os elogios na mídia. Ele é gaúcho de Porto
Alegre e formou-se em jornalismo pela PUC-RS. Mudou-se para São Paulo em
1982 com o objetivo de fazer o mestrado em Comunicação e Semiótica pela
PUC-SP, mas não concluiu. Mudou de área e terminou realizando seu
mestrado em musicologia pela ECA-USP, onde também fez o doutorado em
crítica e história cultural. Ainda nos anos 1980 passou por diversos veículos de
comunicação: foi redator e editor assistente do Folhetim e da Ilustrada de 1985
a 1986. Passou para sub-editor da Veja e logo em seguida para o Caderno 2
do Estadão como editor-assistente e repórter, onde ficou de 1986 a 1989.
Neste mesmo ano voltou como repórter da Ilustrada, onde ficou até 1995. A
partir daí passou pelo Caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil, foi editor
executivo da Revista Cult e professor do curso de Jornalismo do Instituto de
Artes da Universidade Mackenzie. Hoje é editor de cultura da revista Época e
colaborador da rádio Cultura e da revista Bravo. A partir dos anos de 1990
também se firmou como escritor, publicando alguns livros como Mário Reis, O
Fino do Samba (2001) e Minoridade Crítica (2004).
Pela sua trajetória profissional, percebemos que o crítico tem história longa
dentro do jornalismo cultural, mas nos anos 1980 também não aprovava os
excessos musicais que os festivais abraçavam. Não entendia isso como uma
estratégia de sobrevivência, mas de marketing midiático. Assim concluiu o 4º
Free Jazz em 1988: “jazz que é jazz ficou à margem da tietagem barata e do
mundo paralelo simulado pela mídia” (GIRON, Luis Antônio. “No final, a síntese
do que não foi um festival de jazz”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de
Cultura. 13/09/1988). E para desmascarar a farsa exemplificou a partir da
musicalidade do grupo The Lounge Lizards: “a experimentação foi rebaixada à
condição de glamour para imbecis. (...) Os Lizardas são a ponta do novelo da
mediocridade que foi desenrolado durante o festival.” (idem). Percebe-se que,
mesmo incluindo jazzistas em sua programação, era justamente o não jazz que
vingava em sua crítica jornalística quando o assunto era o Free Jazz. Giron
fazia suas ressalvas, mas deixava sua seleção dos melhores para o último
parágrafo de seu texto, majoritariamente opinativo, que priorizava escancarar
os “fiascos” do evento de forma a justificar o que ele considerava como um
festival medíocre de música.
O mais interessante, no entanto, está em outra crítica, publicada no ano
seguinte, dois dias após o encerramento do 5º Free Jazz, em 1989. A
manchete anuncia: Derrotas e vitórias na roleta Free. Aqui, Giron aponta para o
ideal da imprensa de criar um “jazzódromo” capaz de conter suas “apostas” e
“cotações” com os melhores e piores artistas presentes no evento. Quando o
festival se concretiza na agenda cultural do país, quer pelo patrocínio, quer
pelo público garantido, ele destaca o problema: “O Free Jazz deste ano pôs em
confronto, como nenhum outro, público, crítica e músicos” (GIRON, Luis
Antônio. “Derrotas e vitórias na roleta Free”. In: O Estado de São Paulo.
Caderno de Cultura. 01/09/1989). Desse confronto, quem se saiu pior foi o
público, “provou que detesta música de alta informação, adora blues e
despreza os artistas nacionais” (idem). Aqui está a grande questão desta
crítica, Giron não admite uma noite dedicada ao blues num festival de jazz,
apenas porque que tal estilo transita no que ele chamou de “campo das
facilidades”.
O crítico menospreza não só o público, mas também o blues como nenhum
respeitável músico de jazz o faria. O pianista Billy Taylor, por exemplo, acredita
numa profunda aproximação entre os estilos: “Eu desconheço um só grande
músico do jazz, de qualquer período, que não tenha profundo respeito e
identidade pelo blues.” (BERENDT, Joachim E., 2007, O Jazz: do rag ao rock,
p. 123, 124). O blues está na coluna cervical do jazz e por isso é
completamente aceitável dentro do festival. Mas sua simplicidade musical
incomoda o crítico, que esteticamente o classifica como: “esse sapato velho e
folgado que serve em qualquer pé estético.” (GIRON, Luis Antônio. “Derrotas e
vitórias na roleta Free”. In: O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura.
01/09/1989). Um pouco mais a frente, quando vai analisar o show de John Lee
Hooker, declara: “sua banda era um lixo, ele não cantou quase nada, mas e
daí? O Blues carrega toda aquela “emoção”, produz efeitos facilmente
assimiláveis e, além de tudo, hoje os brasileiros de bom gosto precisam querer
ser americanos, fingir que falam “yeah” – embora não saibam um fragmento de
letra das belíssimas canções de Hooker.” (idem). Em suma, percebe-se que a
facilidade de assimilação do blues causa certa preocupação ao crítico, pois
reforça a aceitação do público “à redundância do pop e do blues”, além de
facilitar a dominação cultural estrangeira. Além disso, falta um senso crítico
menos subjetivo. Dizer que a banda era “um lixo” e que Hooker não cantou
“nada” é uma definição muito pessoal, além de chula. O leitor fica a desejar o
embasamento que o levou a fazer tal afirmação. De todo modo, vale lembrar
que naquele ano ocorreu um importante festival de blues em Ribeirão Preto, o
1º Festival Internacional de Blues, que trouxe diversos “bluseiros”
internacionais ao Brasil, além de incluir o blues na pauta de cultura da mídia
brasileira. Ou seja, o crítico hostilizava a menina dos olhos da mídia e, dessa
maneira, conduzia os holofotes para si.
O jazz, no entanto, seria o palco das dificuldades vanguardistas que espantam
o público. O exemplo dado pelo crítico foi o show do free style Cecil Taylor: “Se
o blues fez sucesso, a vanguarda naufragou. O magnífico quarteto do pianista
Cecil Taylor esvaziou o Palace no sábado e o teatro do Hotel Nacional no dia
22 com suas performances revolucionárias, em que o pianista dançou sobre o
teclado, rompendo o instrumento e criando a música correspondente à pintura
de ação de Sydney Pollack.” (idem). Giron acredita que um festival de jazz
deve priorizar, portanto, a sua complexidade musical, de forma a afastar-se da
grande massa que não o compreende; assim é quando informa que no próximo
ano o festival continuará com a noite dedicada ao blues, e sugere ironicamente:
“... que, em vez disso, façam também um Free Blues Festival, deixando quem
não gosta de folclore em paz.” (idem). Faltou informar que o festival de blues já
existia, só que em Ribeirão Preto.
O que se percebe até aqui é que tais críticos pretendiam reduzir o espaço de
atuação do jazz que, diferentemente do rock, não servia para encher grandes
salas e divertir grandes públicos, mas se assemelhava à música de concerto,
mais intimista e tida como chata pela juventude roqueira. Esse estereótipo iria
acompanhar toda a trajetória do festival, tanto que em 1994 o crítico e músico
Guga Stroeter adverte em manchete para a Ilustrada: “Jazz precisa ser sempre
chato”. Numa espécie de crônica jornalística, ele começa o texto com a grande
dúvida jazzística, discutida pela crítica, dentro do festival: “a recalcada questão
do que é e do que não é jazz caducou epistemologicamente” (STROETER,
Guga. “Jazz precisa ser sempre chato”. In: Folha de São Paulo. Caderno de
Cultura. 18/10/1994). Isso porque naquele ano surgia a fusão do jazz com o rap
e era preciso, novamente, restabelecer o lugar do “verdadeiro” jazz, que no
passado estava ligado ao universo underground dos negros. Para tanto, Guga
aponta em sua matéria que, ao conversar com um “jazzista feérico”, obteve o
seguinte depoimento: “o jazz precisa necessariamente ser chato, ser um mau
negócio e fazer mal à saúde. Para afugentar o leigo, longas improvisações
podem e devem se tornar monótonas. E, enquanto astros do pop compram
iates e castelos, os músicos de jazz devem viver seu apogeu nas espeluncas,
se drogando pelos cantos.” (idem).
Falta, então, um olhar moderno sobre o jazz. Um festival como o Free inaugura
o Brasil na rota dos principais festivais de jazz do mundo e chega como
representante de um movimento mundial. Aqui a discussão crítica, mais do que
ficar presa à ideia passadista de um jazz suburbano, acústico, marginalizado,
onde os músicos mostram sua dignidade aproximando-se de um ideal de
música clássica, volta-se para o caráter transgressor dessa música que, de tão
admirada, teve seu nome vinculado a um padrão de festivais que determinou
vida longa ao jazz, uma vez que permitiu sua incursão no mercado de shows
mundiais e garantiu a conquista de novos públicos e as constantes trocas
interculturais, fundamental ao jazz.
Nos anos 1990, Carlos Calado ganha cada vez mais espaço dentro da Folha
de São Paulo e assim, uma visão crítica menos ortodoxa e bastante informativa
apresenta-se mais fortemente aos leitores. Ele aprendeu a fazer crítica lendo-
as nos jornais e teve como mestres grandes nomes como Zuza Homem de
Melo, um dos produtores artísticos de Free Jazz; Armando Aflalo, que no
surgimento da Bossa Nova fez parte dos críticos que apoiaram o novo estilo;
Tárik de Souza, que hoje é um dos críticos que defende aquela fusão de
samba/rap feita por músicos como Marcelo D2; além de José Domingos
Raffaelli, que durante seus anos de trabalho no Jornal do Brasil era acusado
pelo xenófobo José Ramos Tinhorão como sendo um jornalista vendido ao
império norte-americano, por escrever sobre jazz. Calado não estava trazendo,
portanto, nenhuma novidade para a crítica brasileira, apenas seguia os passos
de críticos que, como ele, acreditavam na diversidade. Nos anexos deste
trabalho o leitor poderá encontrar mais informações sobre Carlos Calado, numa
entrevista concedida para esta pesquisa.
É ele que, em 1994, durante a polêmica noite dedicada ao jazz/rap, vai sair em
defesa do festival que, para ele, “acerta em se abrir para o rap, como já fez
com o blues”, pois “como outros festivais de prestígio no mundo, o Free Jazz
percebeu que também é preciso investir no público de amanhã.” (CALADO,
Carlos. “Puristas vivem reclamando”. In: Folha de São Paulo. Caderno de
Cultura. 18/10/1994). Em seu ponto de vista, a decisão do festival em dedicar
uma noite à nova fusão pode ter uma função didática, ajudar a nova geração a
se interessar pelo jazz mainstream: “quem sabe, ao ouvir melodias de Herbie
Hancock e Thelonious Monk ou ao escutar solos de Donald Byrd e Courtney
Pine, os fãs do jazz/rap também se interessem pelos trabalhos individuais
desses jazzistas.” (idem). Calado acha que ainda é cedo para definir se a
mistura vai funcionar e formar mais um capítulo na história do jazz, mas
garante: “os puristas se recusam a admitir o óbvio: o jazz nunca foi e jamais
poderá ser música pura.” (idem). Para ele as misturas fazem parte da estética
do jazz, pois uma música que se apoia nos improvisos de cada músico é
constantemente recriada e vive sob constante mutação: “já se misturou com a
música clássica, com os ritmos afro-cubanos, com a música oriental e com o
samba, entre inúmeras combinações.” (idem). Aqui observa-se, finalmente, um
ouvido curioso em relação ao futuro do jazz, diante de um festival como o Free.
Um ouvido que, percebendo as constantes modificações e fusões presentes no
passado do estilo, se abre para entender as diversas novas fusões possíveis,
diante de um alargamento das produções musicais mundiais. Ele preocupa-se
em rejuvenescer o jazz e não em caracterizá-lo como música antiga possível
de agradar aos que, outrora, foram jovens e vivenciaram a verdadeira era do
jazz com seus consagrados músicos.
Durante a década de 1990, diante de uma diversidade cada vez mais ampla
dentro dos festivais, os dois grades jornais paulistanos apresentam ambos um
coro crítico diverso. O Free Jazz com público, investimento e atuação cada vez
maior, se garante como pauta certa dentro das redações, incluindo-se naquele
seleto grupo das pautas midiáticas que giram em torno de cobertura de
eventos, entretenimentos e datas comemorativas, obrigando os jornais a uma
variedade e convivência de idéias. Ora, nesse ponto, não adianta mais insistir
em críticos que lutam contra o festival, quando a divulgação do evento estimula
uma maior vendagem dos jornais. Então críticos mais puristas como Ruy
Castro são redirecionados para shows que lhes interessem mais, revelando-se
mais dóceis perante o evento. Em 1993, numa noite onde os grandes jazzistas
trazidos pelo festival, dirigidos por Herbie Hancock, prestaram uma
homenagem a Tom Jobim, Ruy Castro demonstra seu carinho pelo estilo já na
manchete: “São Paulo ouviu amor na noite de tributo a Tom Jobim” (CASTRO,
Ruy. “São Paulo ouviu amor na noite de tributo a Tom Jobim” In: Folha de São
Paulo. Caderno de Cultura. 29/09/1993) e aí foram só elogios, principalmente
pelo orgulho de ver os norte-americanos cultuando a música brasileira.
Giron também não agride mais o festival, mas fica dividido entre atrações que
ele classifica como de bom gosto e outras que ele ataca, por serem exemplos
da indústria do entretenimento, normalmente aquelas que atraem um grande
público. Assim, em 1994, seleciona o baixista Marcus Miller como um exemplo
a ser seguido dentro do jazz, principalmente porque o músico já havia tocado
com “São” Miles Davis e apresentou uma homenagem ao mestre: “o baixista
demonstrou que a arte de Davis possui uma coerência e um classicismo
obscurecidos pelo marketing da sua fase terminal, popeira e rappeira” (GIRON,
Luís Antônio. “Miles Davis e o fusion ressuscitam com a veneração de Marcus
Miller” In: Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 26/10/1994). Ou seja, Miller
é bom, porque reativa o passado glorioso de Miles. Em compensação, para
James Brown não restou nada a não ser um “bordel sonoro”. A crítica
pejorativa dedicada ao show de Brown já começa com um trocadilho referente
à música sex machine: “a máquina de sexo do cantor e compositor norte-
americano James Brown, 66, quase emperrou anteontem no Palace” (GIRON,
Luís Antônio. “Brown fecha Free Jazz com bordel sonoro” In: Folha de São
Paulo. Caderno de Cultura. 29/10/1994). Para o crítico o show foi um
“espetáculo patético” que pôde ser facilmente confundido com “kitsch”. Isso
porque Brown já está velho e fora de moda: “Brown também tem o seu lado
arqueológico e está inaugurando no pop a onda da música histórica. Ele se
mostra mestre da taxidermia no funk. Empalhou-se a si mesmo.” (idem). O
texto é tão irônico e tão centrado no gosto particular do crítico que acaba por
perder a seriedade que deveria caber à função da crítica.
Os palcos específicos para cada estilo, dentro do festival, fazem emergir
críticos diversos para cobrir cada um deles. E então abre-se espaço tanto para
críticos mais conservadores quanto menos. Alguns mais jovens já detectam na
diversidade o ar juvenil que sempre pareceu faltar ao festival. Quando em 1996
o Free Jazz convida Bjõrk para se apresentar, Pedro Alexandre Sanches se
mostra aliviado: “a cantora islandesa Bjõrk subiu ao palco no sábado para dar
ao festival de jazz o que lhe faltava: juventude” (SANCHES, Pedro Alexandre.
“Bjõrk aponta para o futuro e mostra música globalizada aos brasileiros”. In:
Folha de São Paulo. Caderno de Cultura. 14/10/96). Naquele momento
percebe-se que o jazz já está marcado como uma música velha, séria e que
não atrai ouvidos jovens, embora unanimemente consagrada pela crítica como
música artística. O interesse dos jornais agora não está mais no medo da
dominação estrangeira e capitalista, mas na era da música globalizada. Não
querem mais defender a cultura brasileira, mas incluí-la no mercado mundial.
Não estão mais contra a proposta “moderna” do festival, mas a favor dela.
Seguem majoritariamente aquele senso comum moderno de que o velho é ruim
e careta, mas o jovem é bom e moderno. Na verdade, os puristas continuam
cobrindo o festival, mas com interesse focado naquilo que eles aprovam, assim
como todo o restante da crítica. Além disso, os jornais perdem um antigo hábito
de escolher um crítico para fazer o balanço geral do festival e apresentam
pequenas críticas para cada show. São críticas que, em sua maioria, ficam
apenas no nível opinativo e não criam condições de análises, nem de conexões
entre estilos musicais próximos.
Fato é que, mesmo com plataformas críticas mais diversificadas, a posição
ideológica dos jornais não é a de discutir a diversidade, porém compartimentá-
la, de modo a fazer com que cada crítico atue na sua área específica. Por
certo, não há como se ser um expert em todos os estilos musicais, mas quando
se faz crítica, principalmente para um festival em que diversas tendências
convergem, é preciso saber transitar entre diferentes estilos, de forma a
exclarecer para o leitor sobre uma tendência não só dentro dos festivais, como
da cultura de forma geral. Além disso, cada vez menos os críticos demonstram
um embasamento teórico capaz de amparar suas ideias, satisfazendo-se com
opiniões cunhadas em seu gosto pessoal o que leva, em certos casos, à
utilização do jornal como veículo para autopromoção do crítico. Isso dá
testemunho do desconhecimento da música de modo geral, que pede domínio
do funcionamento do mercado das gravadoras, da produção de shows e de
mercados paralelos que a música vem criando para driblar o poder das
gravadoras, como a disponibilização de discos pela internet.
Aqui surgem novas perguntas: será que os nossos críticos estão capacitados
para fazer crítica? Será que estão educados para o universo da escuta tão
desestimulado no mundo imagético atual? Não seria o caso de se buscar uma
crítica menos focada na denúncia e mais rica em experiências musicais? E
nossos jornais, será que não precisam de novas pautas que não sejam sempre
aquelas da agenda cultural pré-estabelecidas por eles mesmos? Será que se
importam menos com a importância que dão aos seus críticos? Não há como
responder a todas essas perguntas agora, mas precisamos refletir sobre a
importância da crítica, hoje, dentro dos jornais. Carlos Calado acredita que a
crítica cultural está em franca extinção com espaços cada vez menores dentro
dos jornais que parecem se importar menos com isso do que com as
propagandas que pagam seus custos. No próximo capítulo, então,
abordaremos o pensamento de dois grandes críticos musicais brasileiros, de
forma a ouvir uma autocrítica sobre a crítica musical brasileira.
Conclusão
Carlos Calado nos conta, em entrevista concedida para esta pesquisa, que seu
primeiro curso sobre jazz foi feito através da rádio Cultura, ao escutar um
programa sobre a história do jazz elaborado por Armando Aflalo, também
crítico do Jornal da Tarde. Para ele, os jovens de sua geração foram
privilegiados com programas radiofônicos capazes de apresentar uma
diversidade musical de forma pioneira, ao mesmo tempo em que esclareciam
sobre os antecedentes de cada estilo, de forma a atualizar os ouvintes, ao
rememorar antecedentes musicais, que traziam à tona músicas de períodos
anteriores, que a maioria deles ainda não havia escutado.
Hoje é um consagrado crítico de jazz, principalmente de festivais de jazz.
Cobriu o Free Jazz desde 1987 e outras dezenas de festivais de música pela
América do Norte, Europa, Caribe e África, além de ter colaborado para
diversas revistas de música como a Bravo e a Showbizz. Também mergulhou
na nova tendência dos blogs jornalísticos e criou o seu: Música de Alma Negra.
Fez isso por perder o interesse na crítica jornalística atual. Para Calado, o
espaço concedido a elas está cada dia menor, além de submetidas a uma
política extremamente mercadológica que privilegia as novas tendências
musicais, sem esclarecer sobre sua história e seus antecedentes.
Pois bem, se estamos em um momento em que os jornais impressos já não
competem com a mesma velocidade na transmissão de notícias, diante de
outros meios de comunicação como a internet e a televisão; percebe-se que o
jornalismo impresso contemporâneo deveria se voltar mais para o
esclarecimento, do que para críticas compactas e informativas ao extremo. Não
é uma necessidade de volta ao tempo, de forma a privilegiar um momento
passado que não voltará, mas de estabelecer o elo entre presente e passado,
através de vínculos estéticos, históricos, conceituais, dentre outros, que sejam
capazes de estimular um senso crítico no leitor e não uma posição impositiva
de gosto particular ou pequenas notas de apresentação de artistas.
Júlio Medaglia, também em entrevista para esta pesquisa, parece concordar
com esses problemas. Para ele, a música perdeu aquela saudável
aproximação que mantinha com os meios de comunicação, cujo objetivo, em
décadas anteriores, era fazer parte de todo aquele movimento de vanguarda. O
maestro acredita que: veículos de comunicação e música estão brigados e que,
neste momento da história, está difícil encontrar uma tendência dentro de todos
os estilos de música, desde a música popular até a erudita, passando pelas
vanguardas. Não pela falta de informação, mas pelo excesso dela. Afinal,
depois de tanta liberdade, tanta fusão e tanta diluição, difícil encontrar um
caminho capaz de organizar todas essas informações que, hoje, se
apresentam soltas e diluídas.
Concluímos, assim que, quando propomos uma crítica mais voltada para o
esclarecimento do que para os apelos de um juízo de valor _ diante de um
cenário onde não há mais lugar para nacionalismos de nenhum tipo _
pretendemos que a crítica musical se relacione de forma harmoniosa com a
extensa produção musical da atualidade, de forma a estimular a abertura de
novos caminhos e conceitos, capazes de redirecionar a música, de forma a
incluí-la em uma realidade global e diversificada, em que a separação, quer por
nacionalidade ou estilo, já não faz mais sentido. Diante deste momento
histórico em que todas as artes e todos os diferentes estilos musicais
convergem, quando se começa a falar sobre música globalizada, a falta de
qualificação da mídia brasileira reflete a limitação de um dos sentidos mais
importantes para o homem, perdido nesta atualidade que privilegia a imagem,
sua capacidade auditiva.
1
Referências
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7
10.09.1988 - Só ouvidos apurados ouvem as fivelas c aindo das máscaras - Ruy Castro - O Estado de São Paulo
8
13.09.1988 - No final a síntese do que não foi um f estival de jazz - Giron – O Estado de São Paulo
12
26.10.1994 – Miles Davis e o fusion ressuscitam com a veneração de Marcus Miller – Luís Antônio Giron - Folha de Sã o Paulo
14
14.10.1996 – Bjõrk aponta para o futuro e mostra mú sica globalizada aos brasileiros – Pedro Alexandre Sanch es - Folha de São Paulo
16
Anexo I - Entrevista Carlos Calado
No mesmo ano que acontecia o 1º Festival de Jazz de São Paulo, em 1978, ele
trocou o teatro pela música, na mesma ECA-USP onde estudava. Ainda nesse
período o garoto que cresceu ao som do rock’n’roll se apaixonou pelo jazz e daí para
todo tipo de música negra foi um passo rápido. Nos estudos seu foco era música
popular, embora não recusasse as lições de música erudita. De tão fascinado pelos
ritmos negros, assistiu duas vezes aos dois primeiros festivais de jazz de São Paulo:
uma ao vivo, outra pela TV Cultura. Ainda não sabia, mas seu destino o levaria para
sempre nos rumos dos festivais de jazz pelo mundo.
Seus primeiros escritos foram para revista Som Três, cujo editor era Maurício
Kubrusly, primo de uma amiga que os apresentou. Depois foi para Folha de São
Paulo e por lá ficou também por uma coincidência: no dia em que foi entregar um
pequeno artigo para ser publicado no caderno Folhetim, encontrou um conhecido
que o avisou sobre a procura do jornal por novos críticos de música. O conhecido
era Leon Serva, na época chefe de reportagem da Ilustrada, que o convidou para
fazer o teste. Ele fez e passou. Ficou por um tempo como colaborador, escrevendo
críticas e depois reportagens, mas como a Folha estava um pouco descoberta na
área de música, o trabalho foi só aumentando, até que decidiram contratá-lo em
1987. Ele tentou recusar a princípio, porque nessa época estava escrevendo sua
dissertação de mestrado, mas vendo-se sem saída, topou e adiou um pouco mais a
entrega da pesquisa.
Seu primeiro curso sobre jazz foi feito pela rádio Cultura, num programa sobre a
história do jazz elaborado pelo então crítico do Jornal da Tarde, Armando Aflalo, que
ele teve o prazer de conhecer, pois era tio de um amigo. Conheceu o crítico e
também sua discoteca e ficou maravilhado com aquela sala cheia de prateleiras
cobertas por discos. Diz ter aprendido a fazer crítica dentro do dia a dia dos jornais,
lendo os que ele considera grandes críticos musicais, como o próprio Aflalo, João
Marcos Coelho, Tárik de Souza, entre outros. Hoje Calado já tem quatro livros
publicados: O Jazz como Espetáculo, Tropicália: A História de Uma Revolução
Musical, A Divina Comédia dos Mutantes e Jazz ao Vivo. Também já cobriu dezenas
de festivais de música na América do Norte, Europa, Caribe e África, além de ter
17
escrito para diversas revistas de música como Bravo e Showbizz. Também
mergulhou nessa nova tendência dos blogs jornalísticos e criou o seu: Música de
Alma Negra.
Sua presença constante dentro dos veículos de comunicação o torna, hoje, um dos
principais críticos de música no Brasil, com preferência em jazz e música brasileira.
Dentre os críticos do Free Jazz está, sem dúvida, entre os mais importantes, por ter
feito a cobertura desde os primórdios até o final. Responsável por estabelecer um
olhar menos purista dentro do veículo para o qual escreve, a Folha de São Paulo e
com ouvidos abertos para a diversidade, propõem uma crítica menos ortodoxa e
mais rica de elementos históricos, para que desta forma a estética de cada músico
seja mais bem compreendida pelos leitores, mesmo que estes não entendam nada
sobre música. Para ele, o excesso de ortodoxia é um fator empobrecedor da crítica
musical, que em suma, deveria mais esclarecer do que apelar para juízos de valor.
- Muitas vezes a crítica é exageradamente agressiva com o artista. Como você vê
isso?
Acho que a Folha sempre chamou a atenção por ter, em determinados momentos,
pelo menos um crítico que fazia o papel de palhaço. Ele ia para o show realmente
para desancar...
A crítica que eu fiz como teste para entrar na Folha foi “Chuck Mangione, efeito de
latin lover” (Maio de 1986). Eu me arrependo um pouco dela. O Chuck era um
trompetista de jazz respeitável, mas eu não concordava com algumas coisas que ele
fazia. Naquela época, ser crítico significava ter diversos estímulos para, caso tivesse
que falar mal, poder falar bastante mal dos músicos. Se eu tivesse escrito essa
crítica alguns anos depois, eu teria sido um pouco menos venenoso, mas no fundo
era o que eu achava naquele momento e acabou sendo meu teste. Ainda assim, eu
não quero colocá-la na próxima edição do livro Jazz ao Vivo, que deve ser reeditado.
- E o que seria, então, uma boa crítica?
Eu não sou formado em jornalismo, nunca fiz o curso, minha escola foi acompanhar
bons críticos nos jornais. Para mim, fazer uma boa crítica é conseguir achar o ponto
de equilíbrio entre falar para o grande público e falar para o público profissional. A
18
questão é que grande parte dos leitores são leigos, não adianta pensar em falar só
para os seus colegas da escola de música. É preciso equilibrar para não ficar só no
superficial, não basta dizer: “gostei disso”, “não gostei daquilo”, “achei uma droga”,
como muita gente chegou a fazer no início dos anos de 1980.
- Como você percebe a crítica nos dias de hoje?
Hoje em dia a crítica está em franca extinção, é uma categoria no jornalismo cultural
que está sendo enterrada dia-a-dia. Cada vez mais o espaço é mínimo para ela. Um
exemplo que eu dou para explicar o problema está nas páginas dos jornais. No início
dos anos de 1990 eu passei alguns meses como editor das páginas de música do
caderno de cultura da Folha e, naquela época, nós tínhamos duas páginas semanais
inteiras, quase sem anúncios, só para discos, onde os altos de páginas eram
temáticos. Mais ou menos como se faz no Estadão, hoje.
Em finais de 1980 o blues estava começando a aparecer forte por aqui, embora não
fosse novidade na Europa, no Brasil era novidade ter um foco maior no blues,
principalmente porque em 89 aconteceu um festival de blues em Ribeirão Preto, que
trouxe músicos importantes como Buddy Guy, Magic Slim e Bo Didley, importantes
inclusive na história do rock. Esse era um bom tema como matéria para estas
páginas, assim como um pacote de discos de uma determinada corrente que estava
sendo lançado no Brasil, coisas assim. Em média 3 ou 4 reportagens, com o rodapé
todo coberto por pequenas críticas, como se faz hoje no Estadão e se fez por muitos
anos na Ilustrada.
Semanalmente tínhamos, então, essa duas páginas para discos e no Domingo
tínhamos outra página inteira. Ou seja, três páginas inteiras para música. Hoje o
Estadão tem isso, passados 20 anos; a Folha já teve, mas hoje quando consegue
numa quarta-feira encher uma página inteira com música é muito. Essas três
páginas eram fixas, críticas de show exigiam espaço extra. Festivais exigiam mais
várias páginas, muitas vezes didáticas para preparar os leitores para o festival.
Fazíamos cadernos especiais temáticos, pré-festival, para que o público entendesse
o que era o jazz, sua história e modificações ao longo dos anos. Fisicamente houve
uma redução radical de espaço. A ilustrada chegava a ter 36 páginas no final de
semana. Se o espaço do caderno que cobre música foi diminuído radicalmente
19
(acho que hoje deve ter 50% a menos de espaço), qual a primeira coisa que você
acha que foi cortada? A crítica, claro. Gastronomia e moda, ao contrário, ganharam
cada vez mais espaço, saíram dos assuntos marginais. O espírito crítico esta
deixando de ser incentivado.
- Espírito crítico?
Sim. Eu não acho que crítica, necessariamente tem que ser a crítica pejorativa ou a
crítica negativa. Acho que o conceito de crítica é, antes de tudo, tentar decifrar ou,
de certo modo, explicar o que é uma obra para o leitor. Mas o que seria uma boa
crítica sobre um concerto ou um disco? Antes de tudo, contextualizar aquele trabalho
num período histórico, para relatar ao leitor qual o universo estético que aquele
músico surgiu. Na verdade, cada músico tem sua história, suas relações, pertence a
uma geração e tem uma determinada estética que construiu ao longo da vida. Os
“Miles Davis” são raros, quer dizer, um músico que lidera quatro ou cinco mudanças
importantes dentro de um estilo é muito raro. Na maioria dos casos, ou pelo menos
no jazz, a maioria dos músicos acaba se identificando com uma determinada época
e um determinado estilo, assim como no Brasil muitas vezes encontramos músicos
que tocam samba a vida inteira, ou choro, ou mpb, sem mudar nunca. Algo normal,
na verdade.
Por exemplo, um músico que era jovem nos anos de 1930 e 40 e tocou nas big
bands do swing, provavelmente vai tocar swing a vida toda, porque isso é música
para ele, tem a ver com sua juventude. Isso também tem a ver com o gosto pessoal
que normalmente é marcado pela juventude.
Podemos dizer que o primeiro erro de um crítico que não faz direito o seu trabalho
seria o de não se colocar no lugar desse músico e tratá-lo segundo o seu gosto
pessoal. Ou seja, um crítico que gosta de heavy metal não vai fazer um bom
trabalho se tiver que escrever sobre jazz, é possível que ele escreva que o show foi
chato devido às longas improvisações. O efeito será o mesmo de um elefante
pisando em taças de champagne. Pois antes de tudo é preciso familiaridade com o
assunto, sensibilidade para tratar com a música. Eu já vi esse tipo de coisa
acontecer, muitas vezes porque o jornal coloca o cara errado, no lugar errado. É
claro que cada pessoa vai ter o seu estilo preferido, músicas que sensibilizam mais à
20
outras, mas para fazer crítica é preciso ter bagagem, escutar o máximo de coisas e
não ficar circunscrito apenas em um determinado estilo. O conhecimento é
fundamental não só para embasar o texto como também para conseguir certa
parcialidade na crítica, você não está ali para destruir a música, ou chamar aquilo de
chato e dizer que não gostou. Isso é ridículo, você faz com os seus amigos. A
responsabilidade com a crítica é muito maior, o que se espera é que alguém saia
enriquecido com o texto que você escreveu. A crítica para mim não tem que ser um
juízo de valor, tem que ser um esclarecimento, agir como um iluminador, até
conseguir que o leitor tenha um interesse novo sobre aquele evento ou aquela
música. T.S.Elliot já disso isso em outras palavras. Para mim a crítica musical não é
simplesmente uma opinião; pode até ser, mas neste caso você precisa estar muito
embasado.
- Onde está a satisfação neste ofício?
Já faz alguns anos que eu não me identifico com a cobertura da Ilustrada.
Praticamente 90% da cobertura se dedicam ao rock, à música eletrônica e ao pop,
como se somente isso interessasse aos leitores, acho isso bastante discutível. Ainda
assim, acho que a coisa mais satisfatória que aconteceu comigo foi quando, numa
entrevista, perguntaram para o compositor André Abujamra se alguma crítica já o
tinha ajudado em alguma coisa e ele citou textualmente uma crítica minha.
Certamente nós até poderíamos ser amigos, mas não foi o caso, a crítica foi quem
ajudou.
- Mário de Andrade tentou elaborar uma nova função para a música brasileira. Você
acha que ele foi mal interpretado pelos nacionalistas?
A proposta modernista está muito longe da realidade dos jornais. Mário de Andrade
foi um exemplo, mas sua proposta era bem mais ampla, tinha um programa
nacionalista, feita por um antropólogo, musicólogo... É diferente do crítico que cobre
acontecimentos diários para o jornal. Eu, particularmente, me espelhei em
profissionais de redação, aprendi na prática do dia-a-dia dos jornais. Claro que antes
da minha primeira experiência eu já tinha passado uns dez anos lendo críticas do
Armando Aflalo, do Zuza Homem de Mello, do Tárik de Souza, do José Domingues
Rafaeli, do Luiz Orlando Carneiro... Quer dizer, críticos importantes ou de jazz, ou de
21
música brasileira, que eu respeitava. A minha escola crítica foi essa. Mas também os
encartes dos discos, que vinham com longos ensaios sobre o artista.
- Nas críticas do Free Jazz você sempre destacava o caráter mercadológico do
festival como sendo algo que merecesse ser esclarecido. Por quê?
Essa era uma maneira de eu me posicionar frente às discussões que ocorriam nos
bastidores. Eu era relativamente novo diante dos outros críticos que cobriam o
festival e percebia que nos bastidores os comentários eram muitas vezes bastante
ortodoxos. Em primeiro lugar, quase todos eles detestavam rock, até por uma
questão de formação, mas eu cresci ouvindo rock, para minha geração o rock foi
muito forte. Ainda assim, meu interesse pelo jazz surgiu cedo, por volta dos 17, 18
anos e por um tempo eu segui escutando as duas coisas. Também sempre gostei
muito de música negra como soul, rythm’n’blues, blues, funk... Isso tudo sempre me
interessou muito. Assim, ficava bastante claro que o jazz e todos os ritmos negros
sempre mantiveram um forte contato, eram músicas que se completavam. E, nesse
contato com os críticos da velha guarda, eu sentia que tinha muito preconceito com
relação ao festival, devido a abertura cada vez maior concedida a diversos estilos.
Claro, o festival tinha uma obrigação com o patrocinador de manter salas cheias,
mas também havia uma cena musical que estava ficando cada vez mais
diversificada e aí o festival tinha a obrigação, não de se abrir para todas as
tendências, mas de mostrar as novidades, como cabe a um bom festival de música.
Daí a dizer que o Free Jazz, por trazer músicos de blues, do jazz fusion, uma
cantora de soul ou algo do tipo, descaracterizava um festival de jazz, eu encarava
como sendo uma ortodoxia muito grande. Não acho que o festival tivesse que seguir
com fronteiras extremamente definidas, porque isso interessaria a poucas pessoas.
Não estou me colocando acima desses críticos importantes, mas minha geração
teve a sorte de viver em um período aonde o rádio era muito eclético. Nas melhores
rádios, nós tínhamos condições de acompanhar programas semanais de jazz, de
música erudita, de música internacional como a italiana e até bons programas de
música brasileira, que sempre existiram. Havia também uma tendência de se fazer
programas direcionados para o passado e aí nós tínhamos a oportunidade de nos
atualizarmos diante de coisas que não tínhamos ouvido. Então eu nunca senti a
necessidade de determinar especificamente o meu gosto musical, achava
importante transitar entre os vários estilos e por isso, na hora de cobrir o Free Jazz
22
eu me sentia na obrigação de incentivar uma visão mais aberta sobre a música.
Escutar jazz é tão prazeroso quanto escutar um determinado samba ou uma peça
erudita em determinados momentos. Quando eu lia uma crítica muito purista, eu
fazia questão de dizer que não concordava, para estimular uma experiência mais
rica.
- Seu modo de entender o festival acabou deixando a Folha sob um ponto de vista
mais aberto neste sentido.
Voltando àquela linhagem dos palhaços da crítica, eu acho que alguns críticos se
prestaram a isso. Antes de eu entrar na Folha foi o Pepe Escobar, que atuava
majoritariamente na área de música pop. Ele era um cara muito narcisista e escrevia
sob um ponto de vista muito particular, muitas vezes na primeira pessoa _nisso eu
vejo um problema porque acho que o crítico deve escrever com um olhar um pouco
mais distante, de fora do contexto, para conseguir transmitir alguma além da sua
opinião. O Pepe era bastante favorável a críticas mais pejorativas, tanto que, certa
vez, chegou a ser agredido na porta da redação. Quem depois assumiu isso na
Folha foi o próprio Giron, inclusive eu sei de uma história que quando Caetano
Veloso o conheceu, disse para um amigo em comum: “Nossa, esse é o Giron? Até
eu dou uma porrada nele!”. Acho que eu posso falar isso porque acompanhei seu
trabalho diariamente sei que, quando você ataca alguém muito importante, em tese,
passa a ser tão importante quanto sua vítima. Em última instância é isso.
- E o Ruy Castro?
Eu nem acho que o Ruy Castro cria um personagem para se promover como tantos
outros, na verdade ele tem uma relação tão visceral com a Bossa Nova que
realmente acredita que depois dela nenhuma novidade aconteceu no campo musical
brasileiro. É o ponto de vista dele, eu acho bastante pobre, mas é o ponto de vista
dele, eu posso entender, tanto que hoje em dia ele nem está tão voltado para a
crítica, prefere elogiar as coisas que ele gosta, tudo que está ligado ao Rio e à
geração da Bossa Nova.
- Em 1995 você demonstra certa preocupação com os rumos do Free Jazz...
23
É, na verdade começou a virar uma vitrine de novidades, mas faltava uma liga ali...
Acabou virando um panorama da música mundial e não necessariamente com as
coisas mais interessantes dentro do seu contexto. Isso acabou o transformando.
Mas também acontecia de trazer novidades que se destacassem nos grande
festivais de jazz pelo mundo. Eu, por exemplo, dei várias dicas. Quando a Monique,
diretora do festival, me ligou para avisar do cancelamento da vinda de Mel Thormé,
para que eu corrigisse a divulgação, perguntou sobre os músicos interessantes que
tocaram no Festival de Jazz de Montreaux daquele ano. Eu tinha voltado há pouco
tempo de lá e feito uma entrevista com a cantora Cassandra Wilson, estava com o
cartão do seu empresário na mão, porque havia marcado com ele. Eu já era fã e
acabei sugerindo para o Free Jazz. Deu certo! Aliás, teve um ano que eu publiquei
várias sugestões... Um pouco pretencioso, mas vários deles acabaram vindo depois.
- Houve uma descaracterização que levou o festival ao seu fim?
Não, não! Foi um problema realmente de patrocínio, o cigarro não podia mais
bancar. Um festival como o Free, se não tivesse havido essa mudança na
legislação, acho que dificilmente teria terminado naquele momento. Era um festival
de grande sucesso. Sem dúvida, o principal festival de música do país naquela
época, não sei se tanto quanto o Rock’n’Rio o foi, mas se pensarmos em espaço na
mídia e prestígio, o Free era o principal. Depois, num segundo momento, uma
empresa de telefonia assume o patrocínio...
- E aí tiram o jazz do nome...
Sim, e fez todo o sentido, porque naquele momento já não era, exatamente, um
festival de jazz, era um festival genérico de música. O jazz se manteve no palco do
Ibirapuera, construíram uma tenda para a música eletrônica e outro palco para a
música pop... Assumiram esse novo formato. Afinal, os festivais não foram
inventados pelos produtores de jazz, mesmo que por décadas tenham sido muito
importantes como divulgadores desse formato. Mas ainda existem festivais de jazz,
né? O Toy Lima, produtor do Bridgestone Music Festival, ainda mantém, com certa
sensibilidade, o formato de um festival de jazz não tão ortodoxo, mas que pode
perfeitamente continuar sendo chamado de festival de jazz. E no começo dos anos
2000 fez o Shivas Jazz Festival, também bastante jazzístico.
24
- Você não acha que havia uma pressão mercadológica para que o Free Jazz
expandisse suas fronteiras musicais?
Imagine um festival como esse, feito pelo Sesc. Poderia, né? E ele até faz coisas
como uma mostra anual, mas não segue um determinado gênero, cada ano a
temática é diferente e multidisciplinar, atuando em várias áreas. Imagine então um
Free Jazz feito pelo Sesc. Certamente depois de alguns anos ele não se tornaria tão
comercialóide como o Free Jazz acabou se mostrando nos últimos anos. Na época
do Tim, o festival já estava numa trajetória do que era muito popular. Claro, tem
gente que gosta e o palco de jazz foi mantido de maneira justa para seus ouvintes.
Mas não posso negar que nestes últimos anos ouvi coisas que, na minha opinião,
não mereciam estar em um festival como aquele. Também não podemos esquecer
que o Free Jazz era mantido por uma empresa de cigarros. E, afinal, qual o maior
interesse de uma companhia de cigarros? Que os jovens se tornem viciados. Isso
era uma coisa a se pensar. Realmente o patrocínio da indústria tabagista num
evento desse porte não era algo politicamente correto. Ou seja, havia um interesse
em atingir os jovens. Não foi à toa que o Free caminhou para o lado mais comercial
da música, associando a marca do cigarro com uma música jovem. Era óbvio que,
quanto mais cedo as pessoas se tornassem viciadas, melhor para a empresa. De
maneira menos prejudicial à saúde, uma empresa de telefonia também se interessa
pelo mesmo público. Por outro lado, acho que valeu o patrocínio em nome de um
festival que, em termos culturais, foi muito importante.
- Foi o mais importante festival de jazz no Brasil?
Sim, pela quantidade de informação que ele nos proporcionou. Afinal, era o grande
festival do ano, que a cada edição dava condições para o público de assistir às
vezes até 16 artistas de uma única vez. A oportunidade de um evento como esse,
que em finais da década de 1980 era novidade no Brasil, mas já ocorriam às
dezenas na Europa e Estados Unidos, foi um momento precioso. Pelo menos eu,
como apreciador do estilo, acharia lamentável não ter um evento desse porte no
Brasil.
- Os festivais são os responsáveis pela continuação da história do jazz?
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Acho que os clubes de jazz continuam, inclusive, em maior número do que em
décadas anteriores. No entanto, o tipo de exposição e de experiência que um festival
oferece, até mesmo a quem ainda está descobrindo a música, é muito importante no
sentido de formar um público. E outra, o festival de jazz se transformou num formato
que está intimamente associado à própria ideia do jazz, porque possibilita encontros
informais, troca entre os músicos. É verdade que antes aconteciam com maior
frequência, porque os festivais eram menos caretas com relação ao horário de
término. Músicos como Hermeto, por exemplo, comandaram jam sessions que
duraram até três da manhã. A questão é que esta instituição da jam session,
essencial no jazz, esta se perdendo, até porque os próprios eventos caminham para
esse lado mais burocrático, que determina o tempo do show em contratos, por
exemplo. Já os jazzistas normalmente possuem um espírito coletivo de troca, de “dar
canja” no show de outro, de assimilar a novidade que desse outro... Em exagero
leva à competição, mas se bem trabalhado pode ser muito saudável. O fato dos
festivais ficarem cada vez mais ecléticos, com certeza ajudou na redução dessas
práticas. Isso porque um músico de jazz é muito diferente de um músico de pop, são
culturas diferentes, atitudes diferentes... Como eu já entrevistei muitos deles, pude
perceber com clareza.
- O Free Jazz deixou herdeiros como o Bourbom Festival ?
Não, acho que não... Mas assim, embora não tenha sido o primeiro, o Free Jazz foi
um festival que durou pelo menos 15 anos, essa estabilidade indica que foi um
festival vitorioso, um modelo bem sucedido, ou seja, claro que estimulou a gerar
outros festivais, mas no caso específico do Bourbom Festival eu não diria isso,
porque conheço sua história e sei que ele é calcado no festival de New Orleans.
Inclusive, quando o Free Jazz passa para o Joquei Club, ele também se inspira no
mesmo festival.
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Anexo II - Entrevista Júlio Medaglia
Júlio Medaglia tem carreira longa dentro do universo musical não somente brasileiro,
como mundial e transita com maestria entre a música popular e a erudita. É regente,
compositor, arranjador e ensaísta, além de apresentador de programas de rádio e
televisão. Com Hans Joachim Koellreutter estudou regência na Universidade Federal
da Bahia e, logo depois, foi para Europa, onde seguiu seus estudos pela
Universidade de Freiburg. Foi amigo e tradutor de Joachim Ernst Berendt,
importante crítico de jazz e produdor musical da Alemanha e, de volta ao Brasil,
esteve presente em movimentos musicais importantes, como a Tropicália e a Música
Nova. Escreveu dois livros que mostram o conhecimento musical abrangente que
possui: Música Impopular e Música, maestro! Do canto gregoriano ao sintetizador.
Conhece toda a história da música ocidental e matém uma postura crítica diante do
cenário musical contemporâneo. Nesta entrevista, ele fez questão de apresentar
todo o cenário de onde surgiu a música popular urbana e afirmou que a música,
hoje, acabou, uma vez que os músicos estão perdidos diante de tantas informações
soltas. Para ele, os meios de comunicação estão brigados com a música, fato que
prejudica ainda mais a assimilação e o direcionamento de tantas idéias que rondam
o cenário cultural nestes anos 2000. Júlio começa esta entrevista, então, lá nos
primórdios da música popular para explicar sobre as origens dessa música. Com
vocês, o maestro:
Em primeiro lugar, o Jazz e a Música Popular Brasileira são filhos da mesma mãe,
ambos vieram da música de salão europeia que, chegada no nos Estados Unidos,
também, através do rio Mississipi, se instalou naqueles butiquins, onde os
marinheiros, músicos e imigrantes faziam suas orgias sonoras. Era um ambiente
propício para isso, onde muito da informação musical era procedente da música de
salão européia. Importada tanto pelos Estados Unidos, quanto pelo Brasil. A
diferença na assimilação se deu na pronúncia desenvolvida em cada país: junto do
negro brasileiro essa linguagem musical caminhou no sentido do choro, a nossa
música instrumental, mais voltada para o melodismo brasileiro, porque no Brasil, um
país latino e por isso melancólico, a tendência é ser mais melódico. Com o negro
americano, essa música se transformou em uma nova linguagem. O jazz
desenvolveu ainda mais o lado instrumental, evoluiu mais neste sentido. Os Estados
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Unidos são um país mais rico, com mais instrumentos, mais recursos pra se fazer
musica. Então a instrumentalidade se desenvolveu mais. O jazz ficou mais amplo em
termos de linguagem. No livro que eu traduzi, O Jazz: do rag ao rock, do Berendt,
fica claro que nos EUA, a cada década o jazz se transformou em um estilo diferente.
E no Brasil não tivemos tanta variedade. Nós temos uma musica inspiradíssima, mas
a tendência é sempre cair no melodismo. Aqui, quando a música não é muito
criativa, cai no melodismo.
O inicio do século começou com Chiquinha Gonzaga, praticamente. Nascia uma
cultura brasileira mais espontânea, de origem das ruas, que nasceu e, de repente,
ganhou status social. Já na segunda década foi menos, porque aí teve a guerra, foi
um período mais melódico, foi quando começaram a chegar aquelas primeiras
músicas da Europa. No final da segunda década surgiu o chorinho, aí toda a década
de 20 foi fortíssima com Pixinguinhas da vida, com todo aquele vigor da música
instrumental, que também era influencia norte americana. Porque o pessoal soltou a
franga, né? Acabou a guerra, estava todo mundo feliz, todo mundo livre. Não tinha
mais conflitos no mundo. Essa felicidade trouxe uma década de 20 bastante
revolucionaria e espontânea, correspondente à segunda metade do século, na
década de 60. Os anos 20 foram brilhantes e cheios de informações novas e de uma
música instrumental rica. Na década de 30, esse entre guerras caiu num certo
melancolismo, também na musica clássica. Não surgiu o neoclassicismo, né? Com
todos os compositores choramingando o passado, copiando o passado. Vila Lobos
imitando Bach. Os compositores norte americanos que não tinham tido classicismo
faziam uma música pré-clássica. Nós estamos falando de um período de nostalgia.
Aí chegaram os anos 40, explodiu tudo de novo. Nasceu o rádio e os meios de
comunicação jogaram tudo para cima. No finalzinho dos anos 30 surgiu o swing, nos
Estados Unidos, que deu uma grande agitação. Ele não só apresentava altíssimo
nível técnico de execução, como também era a musica popular americana da época.
Com o aperfeiçoamento do rádio e do disco essa fúria toda se internacionalizou.
Mas nos anos 50 já caiu outra vez no rame rame, aqui no Brasil, sobretudo;
enquanto nos Estados Unidos veio, neste final dos anos 50, o rock, mais dançante.
Aqui caiu no “ninguém me ama, ninguém me quer”, aquelas músicas trágicas, do
Lupicinio Rodrigues, Maísa, Wilson Batista, Cauby Peixoto: “ah não deu certo”. “A
Conceição veio do morro, virou puta na cidade e tal...” Depois, cansados de tanta
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tragédia, no final dos anos 50, surgiua Bossa Nova, que foi massacrada, na época.
Todo esse pessoal que escreve livro sobre a Bossa Nova, que fala as melhores
coisas; na época, caia de pau em cima.
Bossa Nova era um fenômeno paulista. O João Gilberto fez um dos primeiros
programas de televisão aqui em São Paulo, na TV Tupi. Era aplaudidíssimo aqui.
Walter Silva tinha um programa na rádio bandeirantes, que corria no Brasil inteiro:
Na cadeia verde amarela, que fazia um bruta sucesso. Do sucesso desses
programas é que levaram o Jobim para a tevê. Ele fazia o Bom Tom, onde, sentado
no piano, tocava com amigos em volta, fazendo aquela Bossa Nova bem
transparente, rarefeita, econômica e que tinha influencia do jazz, porque, na
realidade o jazz tinha uma harmonização mais moderna. Mas isso não quer dizer
que era cópia do jazz. Ela tinha aprendido com o jazz e fazia uma musica mais
sofisticada, de câmara. Porque o jazz, naquela época, também era uma música cool.
A Bossa Nova era enxuta, equilibrada, transparente e econômica, assim como as
linhas de Niemeyer e a poesia Concreta. Tudo era enxuto, o cinema também,
principalmente o francês. Não tinha grandes produções, se economizava no roteiro.
Foi um período de concentração de elementos, de implosão de elementos. E assim
foi a Bossa Nova que praticamente acabou com todo aquele rame rame e fez nascer
aquela música, feita por jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, que tinham estudo
universitário, compravam discos, ouviam coisas. Eles também tinham formação no
jazz, conheciam aquelas harmonias todas e tocavam no violão, no piano, etc. Era
uma musica popular mais moderna. Isso tudo fez parte de uma grande evolução
coerente.
No final dos anos 60, a música explodiu mais uma vez com o Tropicalismo. Aquilo
que no início tinha sido implosão virou explosão. Eu participei, fiz arranjos que
davam voz, na música brasileira, para tudo quanto era elemento aparentemente não
musical. Cabia tudo ali dentro: música fina, cafona, de vanguarda, de retaguarda,
grito, apito, canto, riso, portunhol, latim, etc... Tudo que era extremo, mesmo os
incompatíveis e aparentemente antagônicos, apareciam juntos numa mesma
música. Foi um momento de grande criatividade, que realmente trouxe uma
importância muito grande para música popular brasileira, que puxava o carro da
movimentação cultural do Brasil.
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Nos anos 70 já caiu outra vez no rame rame: Joana, Simone, Marina e Ângela Rô
Rô voltaram a choramingar outra vez. Mas nos anos 80 explodiu de novo com Arrigo
Barnabé, Itamar Assunção e esse tipo de gente. Arrigo Barnabé foi líder desse
movimento todo. Na década de 90, outra vez, caimos no rame rame com as duplas
caipiras, que no fundo não faziam música sertaneja, coisa nenhuma. Aquilo não
passava de um bolerão brega de puteiro de cais de porto. Tinha também aqueles
falsos pagodes. Todos eles juntos não valem uma pausa do Cartola. E, assim, a
música brasileira foi, de década em década, evoluindo.
- E agora nos anos 2000, como você percebe a música?
Agora tá tudo misturado, porque a música no Brasil acabou. Os meios de
comunicação se afastaram da musica brasileira e perdeu-se uma relação produção-
consumo. Nas rádios, só porcaria. Nas televisões aboliram completamente a música.
No horário nobre não tem absolutamente nada. Na Globo, a última coisa que
apresentaram de bom no horário nobre foi Chico e Caetano, em 1986. De lá pra cá
aboliram a música, completamente. Nem no Fantástico você vê uma pessoa
cantando ou tocando violão, nunca tem uma única música. Às vezes morre alguém,
aí colocam o cara lá, leva 4 segundos e já tiram do ar. Eles odeiam música. O
grande desafio do século XXI é voltar a acontecer uma relação entre os
maravilhosos meios de comunicação e essa tecnologia sensacional, com o talento
musical. Atualmente essas coisas não estão sabendo como se relacionar.
- Os artistas das vanguardas brasileiras, Bossa Nova e Tropicália, foram ajudados
pelos meios de comunicação? Fabricados por eles?
Ajudados, não. Os meios de comunicação é que faziam questão de participar
daquilo. Afinal, desde que o rádio foi criado no Brasil, sempre exibiu o que havia de
melhor. Você pode imaginar que coisa maravilhosa: em 1936 cria-se uma rádio no
Rio de Janeiro e Radamés Gnattali, Guerra-Peixe, Claudio Santoro, Lyrio Panicali,
Gabriel Migliori, os melhores músicos do Brasil, estavam escrevendo arranjos para
ela. Orquestras sinfônicas eram criadas para tocar ali. Eles tinham um senso de
responsabilidade em relação ao público consumidor que os fazia oferecer para o
ouvinte o que havia de melhor. Depois Getúlio Vargas percebeu que aquele circo era
útil para ele, encheu a rádio nacional de dinheiro. E ela dava lucro. Foi a grande
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universidade da cultura popular brasileira musical, que tinha realmente um altíssimo
nível. Os arranjos, os participantes, as orquestras...
A música brasileira, na década de 60, também teve a tevê como divulgadora. O que
havia de melhor ia pra televisão. Eu participei dos festivais da TV Record. Eu me
lembro, por exemplo, que o festival que foi considerado o mais importante e criativo
de todos, que foi o de 67, deu 94 pontos de audiência, foi parar no Guinness Book.
O Paulinho Machado de Carvalho, dono da TV Record, que morreu agora, mandou
colocar o boletim do ibope de 94% num quadro e dependurou na parede, porque foi
o maior ibope da história. Quer dizer, quanto mais subia a qualidade, mais subia a
audiência. Uma prova de que o brasileiro realmente é musical e sabe identificar o
que é bom. Ou seja, não foi uma coisa forçada pelos meios de comunicação. O
problema é que, hoje, o mundo inteiro esta baseado na pancada, na adrenalina.
Você liga a televisão, assiste a dez canais de cinema e só o que se vê é violência
atrás de violência, uma pior que a outra. Então a música brasileira também partiu
para fazer coisas desse tipo, do ponto de vista mercadológico, mais simples. Não sei
o que toca nas rádios, mas de qualquer maneira, eles acham que, baixando o nível a
coisa vende mais, quando a historia prova exatamente o contrário: quanto mais subir
a qualidade, mais os meios de comunicação vão lucrar. A Record ganhava muito
dinheiro com as Elis Reginas da vida.
Os artistas brasileiros é que não souberam corresponder a esse ritmo de consumo,
ficaram felizes ganhando milhões e milhões, sempre aparecendo na mídia. Uma vez
eu até falei com o Paulinho Machado de Carvalho: “olha, segura essa turma aí, que
nem Frank Sinatra, se cantar toda noite aqui na TV Record você vai aguentar depois
de algum tempo”. Aí chegou um ponto que foi cansando, ninguém conseguia mais
ouvir a Elis Regina. E isso não tem nada a ver com a ditadura. Absolutamente nada.
A ditadura não atrapalhou em nada a coisa. Ao contrário, o período mais criativo da
musica brasileira dos últimos anos foi exatamente no período áureo da repressão.
- O nacionalismo exacerbado de Getúlio Vargas influenciou na difícil aceitação
desses movimentos vanguardistas, no Brasil?
Esse nacionalismo era justificável, porque existia a Grande Guerra Mundial, era uma
época em que os nacionalismos no mundo inteiro estavam sendo exaltados. Mas
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existiam os Pixinguinhas da vida que adoravam ouvir os músicos de jazz, eles se
vestiam iguais a eles, faziam grupos semelhantes aos de King Oliver e Hot Five lá
de Nova Orleans e todos aqueles grupos de jazz americanos.
- Isso falando dos músicos, porque a realidade das críticas jornalísticas era outra...
Esses críticos primitivos, porque, com raríssimas exceções, nós nunca tivemos
grandes críticos. Era fácil ouvir o João Gilberto tocando harmonias mais carregadas
e dizer: “ah! isso é jazz”. Fácil dizer isso. No entanto, o pessoal do jazz, quando
ouviu o João Gilberto e o Jobim, ficou de butuca em cima deles. Os jazzistas
sugavam os músicos brasileiros, tiravam, arrancavam aquela musicalidade. Há 40
anos nenhum musico influenciou tanto o jazz nos Estados Unidos quanto João
Gilberto, uma admiração absolutamente fora do comum. E ele ganhou e continua
ganhando cachês astronômicos. Nós influenciamos mais. Nenhum músico do cool
jazz foi tão cool quanto João Gilberto. Quem é que fazia aquela coisa tão anti-
musical como ele? Uma vez eu fiquei hospedado lá na casa do João Gilberto e o Gil
Evans, aquele que foi o grande revolucionário da orquestração, ficou
impressionando quando ouviu ele tocar. Quer dizer, ao contrário, a música brasileira
é que influenciou muito o jazz e com elementos humanos, inclusive. Quando Egberto
Gismonti e César Camargo Mariano me ligaram pedindo conselhos para os shows
que fariam nos Estados Unidos, eu disse: “esqueça o piano horizontal. Pense no
piano vertical. O que vocês sabem fazer é de cima pra baixo, é fazer ritmos
brasileiros em um piano percussivo, porque o piano horizontal é com eles, só eles
correm de um lado para o outro com tanta desenvoltura”.
- Como se deu o novo espírito crítico trazido pelos concretistas, Augusto e Haroldo
de Campos e Décio Pignatari, no Brasil?
Esse pessoal foi quem entendeu a música brasileira melhor que os críticos. Eu
frequentava a casa deles duas vezes por semana. Eles criaram a poesia concreta e
eu criei as oralizações da poesia concreta, fazia aquelas letrinhas virarem som,
inventei umas partituras onde seria possível oralizar aqueles poemas. A gente
convivia muito. Quando eu os conheci, para minha surpresa, percebi que eles
entendiam mais de música do que todos nós. Porque eles olhavam a música de fora
e tinham uma visão muito aprofundada de todas as outras manifestações artísticas.
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Eles viam a música como fenômeno cultural, com muito mais liberdade.
Investigavam as grandes linguagens musicais do século XX, mais do que todos nós.
Augusto tinha todas as gravações de Schöenberg, Webern, Alban Berg, que não
tinha na casa de nenhum músico. Foi lá que eu ouvi pela primeira vez os quartetos
de Schöenberg, Pierrot Lunaire do Schöenberg, uma gravação maravilhosa. Eram
coisas assim que eles pesquisavam, e tinha a ver com a pesquisa da arte de
vanguarda do século XX. Pra eles a música se enquadrava dentro desse quadro
revolucionário que foi o século XX, século mais revolucionário da história. Eles nos
ensinavam que Erik Satie era o precursor do século XX, embora satirizado por nós,
que dizíamos que sua obra era igual a sopa de quartel, dez gramas de carne e o
prato cheio de água. Para os concretos, aqueles 20 gramas de música era uma anti-
música em relação à Mahler.
Muitos críticos não tinham liberdade suficiente para poder observar todas aquelas
transformações com o distanciamento que a coisa necessitava, ficavam presos em
algum lugar, como acontece no jazz: tem gente que acha que vai até certo ponto,
que termina em determinada época, ou então acredita que só suas raízes são
verdadeiras. O jazz, quando chegou aos anos 60, seu período free, diluiu uma série
de componentes que faziam parte de uma linguagem jazzística. Essa desintegração
houve na música clássica, também. E a música virou happening, virou tudo. O final
do século XX foi o período da diluição em todas as áreas. Todos os sistemas
montados foram desmontados. Quando Caetano e Gil foram presos, logo depois de
soltos, fui visitá-los, e sabe o que disse o geral para eles? “Vocês, com esse negócio
de fazerem da realidade uma pasta informe, diluírem valores constituídos, estão
agindo como uma das formas mais modernas de subversão, talvez a única”. Quer
dizer, os milicos entenderam mais do que ninguém como é que a coisa funcionava.
O duro veio depois de tanta abertura, depois de tanta liberdade, depois de tanta
coisa se misturando... Ficou muito difícil disciplinar uma idéia para trabalhar em cima
dela. Isso ninguém resolveu. Nem o jazz, nem a música brasileira, nem os
compositores de música erudita, nem ninguém. Nem o próprio cinema. Ficou difícil
concentrar tanta poluição, tantos elementos soltos, para trabalhar numa idéia e
disciplinar essa idéia. Tudo está tão solto, tem tanta informação, que fica difícil
encontrar caminhos. A música não tem mais tendências, aliás, nenhuma arte de
modo geral.