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Luiz Antônio Andrade Oliveira Identidade Étnica e Movimentos Sociais na Bolívia (1985 - 2005) Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Orientador: Prof. Maurício Barreto Alvarez Parada Rio de Janeiro Setembro de 2015

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Luiz Antônio Andrade Oliveira

Identidade Étnica e Movimentos Sociais na Bolívia (1985 - 2005)

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Maurício Barreto Alvarez Parada

Rio de Janeiro Setembro de 2015

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Luiz Antônio Andrade Oliveira

Identidade Étnica e Movimentos

Sociais no Bolívia (1985 – 2005)

Dissertação apresentada como requisito

parcial para obtenção do grau de Mestre

pelo Programa de Pós-graduação em

História da PUC-Rio. Aprovada pela

Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Maurício Barreto Alvarez Parada Orientador

Departamento de História – PUC-Rio

. Dirce Eleonora Nigro Solis

Departamento de Filosofia – UERJ

Prof. Marco Antonio Villela Pamplona

Departamento de História – PUC-Rio

Mônica Herz

Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro

de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 30 Setembro de 2015

Oliveira, Luiz Antônio Andrade

Identidade Étnica e Movimentos Sociais na

Bolívia (1985-2005) / Luiz Antônio Andrade

Oliveira ; orientador: Maurício Barreto Alvarez

Parada. – 2015.

124 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro,

Departamento de História, 2015.

Inclui bibliografia

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor e do orientador.

Luiz Antônio Andrade Oliveira

Graduou-se em História pela Universidade Federal Fluminense em 2010 e em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2011. É professor do ensino médio nas redes pública e privada do Estado do Rio de Janeiro.

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Oliveira, Luiz Antônio Andrade

Identidade Étnica e Movimentos Sociais na

Bolívia (1985-2005) / Luiz Antônio Andrade

Oliveira ; orientador: Maurício Barreto Alvarez

Parada. – 2015.

124 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro,

Departamento de História, 2015.

Inclui bibliografia

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Agradecimentos

Agradeço a Deus pelos encontros afortunados que permitiram colocar-me na rota correta daqueles que engrandecem à vida: À minha mãe, hoje tão viva que não há morte que retire a alegria de me saber nela em cada gesto de afeto, em cada encanto de doçura naquilo que há de melhor em mim. Ao meu pai, homem de labuta que enfrentou a vida de frente e permitiu aos filhos não viver as dores que sentiu. À minha irmã e irmão, com o carinho de quem foi embalado no mesmo berço. Ao meu amigo David Marinho, que faz da amizade uma estética de vida. Sem o seu apoio, o incentivo e os empurrões esses escritos não existiriam. Às minhas irmãs e irmãos de jornada: Eduardinho, Larissa, Ludmila, Ciríaco, Pedro, Bia, Luame, André, Aninha, Leitão, Lusitano, Ivan, Gerson, Nina. Ao Grupo de Educação Popular que me acalenta no sonho de uma humanidade em flor, sem as torpezas de nosso mundo. Agradeço ao Professor Maurício Parada pela orientação afetuosa a qual me faz ainda acreditar na presteza da academia. À filósofa Dirce Eleonora e ao filósofo Ivair Coelho, por transformarem as palavras em tacape indígena. À CAPES e à PUC-Rio pelos auxílios concedidos sem os quais este trabalho não poderia ter sido realizado e aos demais colegas da turma de mestrado, em especial ao bom mineiro e amigo, Mauro Franco. À minha companheira de vida, Denise. Pelo amor, desses que não cabem em dissertações.

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Resumo

Andrade Oliveira, Luiz Antônio; Parada, Mauricio Barreto Alvarez. Identidade Étnica e Movimentos Sociais na Bolívia (1985 – 2005). Rio de Janeiro, 2014. 124p. Dissertação de Mestrado - Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A dissertação que se segue aborda o processo constituinte de subjetivação

coletiva na Bolívia no trato dos movimentos sociais emergentes os quais tomam

como referência de identidade os valores étnicos de suas comunidades originárias.

Na esteira do fortalecimento do movimento katarista de origem aymara,

abordaremos a dupla crise hegemônica que se precipita após o fim do ciclo

neoliberal estruturado sobre as ruínas do capitalismo de estado erigido nas

décadas posteriores a Revolução de 1952: a crise de curta e longa duração, ou

seja, a crise do neoliberalismo e a crise dos próprios fundamentos que norteiam à

modernidade. Para tal, segue-se o estudo da crise da condição operária a partir do

processo de desindustrialização decorrente da aplicação do novo modelo de

acumulação do capital, a partir de 1985. O esforço de “capitalização” da

sociedade boliviana nos impele a pensar em novas configurações do mundo do

trabalho que afeta sobremaneira o sentimento de pertencimento identitário das

classes subalternas. Deste contexto emergem novas formas de luta e organização

social assentados na cosmologia indígena da qual irradia os valores que norteiam

estas mesmas e variadas formas.

Palavras-chave

Identidade étnica; Movimentos sociais; História da Bolívia; Epistemologia; Aymara.

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Abstract

Andrade Oliveira, Luiz Antônio; Parada, Mauricio Barreto Alvarez (Advisor). Ethnic Identity and Social Movements in Bolivia (1985 –

2005). Rio de Janeiro, 2015. 124p. MSc. Dissertation - Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The followinng dissertation addresses constituent process of collective

subjectivity in Bolivia in addressing emerging social movements which take as

reference the ethnic identity values of their native communities. Following the

strengthening of the katarista movement of Aymara origin, we will cover the

double hegemonic crisis that precipitates after the end of the structured neoliberal

cycle on the ruins of state capitalism erected in the decades following the 1952

Revolution: the short and long-term crisis, that is, the crisis of neoliberalism and

the crisis of the very foundations that guide modernity. To do so, it follows the

study of the working condition crisis from deindustrialization process following

implementation of the new capital accumulation model from 1985. The effort to

"capitalization" of Bolivian society compels us to think of new world of work

settings that greatly affects the feeling of belonging identity of the subaltern

classes. In this context emerge new forms of struggle and social organization

settled in the indigenous cosmology which radiates the values that guide these

same and different ways.

Keywords

Ethnic identity; social movements; History of Bolivia; epistemology; Aymara.

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Sumário

1. Introdução 8

2. Dupla crise hegemônica 13

3. A crise da modernidade neoliberal 51

4. Identidade étnica e movimentos sociais 88

5. Conclusão 120

6. Referências bibliográficas 122

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1. INTRODUÇÃO

O tema central dessa dissertação é acompanhar o processo em curso de

construção de identidades coletivas na Bolívia no trato dos movimentos sociais

emergentes, cujas novas formas organizativas e suas ações políticas pautam-se

sobremaneira pela questão da etnicidade1. No final do século XX, no transcurso

da crise neoliberal no país andino, formaram-se centros locais de associações, os

quais emergiram da necessidade de defesa dos recursos imprescindíveis para

reprodução da vida social: a água, o gás, os serviços públicos, o salário. Ante a

ameaça de privatização de tais recursos e a cobrança direta de um imposto sobre

as remunerações dos trabalhadores, estes novos movimentos autonomistas

intensificaram a sua luta pela gestão do poder e da riqueza social. La

Coordinadora del Agua de Cochabamba, Las Asociaciones de los Irrigadores de

Cochabamba, La Coordinadora de Produtores de Hoja de Coca de Chapare, El

Consejo de Federación de Campesinos de los Yungas de La Paz, La Federación

de Juntas Vecinales de El Alto (Fejuve), entre outros2, tomaram para si a tarefa de

intervir nos processos de gerência da política nacional com novos aportes teóricos

e práticos extraídos de seu meio vivente. Do seio das tradições culturais indígenas

surgem autênticos modos de se pensar e fazer política, e tal fenômeno nos

interessa.

A afirmação da identidade indígena3 tornara-se nas últimas décadas a

principal variável na constituição do sujeito político, secundarizando o

pertencimento classista, outrora o principal núcleo conformador de identidade.

Após a Revolução policlassista de 1952, houve a subsunção da questão étnica à

questão de classe (Camargo, 2006). O indígena a partir do ideário nacional do

Estado transformou-se do dia para noite em camponês. Negava-se o “índio” em

prol de um projeto identitário homogeneizador o qual enfatizava o processo de

mestiçagem ou “cholagem”4 , apagando, assim, as clivagens étnicas do país

1 No que concerne às teorias da etnicidade, trabalharemos essa noção no capítulo 3 a partir das considerações de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart. 2 Ver em: HARNECKER, M.; FUENTES, F. MAS IPSP – Instrumento político que surge de los movimentos sociales. Bancada de Disputados MAS-IPSP. Consejo de Formación Política. La Paz, 2008. 3 A valorização da etnicidade enquanto capital político remonta ao movimento katarista dos anos 70, que será estudado, em linhas gerais, no decurso da dissertação, embora extrapole as balizas históricas propostas na análise do fenômeno “reemergência étnica”, instada por Xavier Albó. 4 O índio mestiçado é identificado na Bolívia como cholo.

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andino na valoração estatal da posição do indivíduo no interior do processo

produtivo. Tanto o ideário nacionalista do Movimiento Nacional Revolucionario –

MNR, quanto o paradigma classista da esquerda expressa pela Central Obrera

Boliviana - COB enxergavam o “índio” apenas com força produtiva redutível ao

termo “campesinato”. Se no período precedente reconhecia-se a diferença étnica

para rechaçá-la, a partir de um discurso racista justificatório da exploração do

índio, agora no pós-revolução matiza-se a diferença específica evocando a

integração dos povos originários à modernidade, recusando-se, assim, a validar a

legitimidade da questão étnica na Bolívia.

Contudo, a partir dos anos 90, na esteira do fortalecimento político do

movimento katarista surgido no final dos anos 60, houve a intensificação da

afirmação de identidades forjadas pela experiência de pertencimento étnico,

reativando lutas históricas que coadunam demandas de teor econômico e cultural:

quíchuas, aymaras, trinitarios, yuracarés, sirionós, entre outros, constituem os

seus movimentos e suas ações políticas a partir de valores “originários” de seus

povos e do modo de organização da vida cotidiana recusando-se em sua práxis a

subalternidade secular.

Pretende-se estudar este processo de reemergência cultural dentro do

contexto histórico de instalação e crise da modernização neoliberal na Bolívia

(1985-2003), e mensurar a sua importância nas insurreições que catapultaram do

poder o governo neoliberal de turno, abrindo veredas para a consecução crítica de

projetos de “modernidade alternativa” e/ou projetos alternativos a esta mesma

modernidade. Para tal, far-se-á necessário a apreciação das condições de

possibilidade material na reconfiguração da condição objetiva de classe a partir de

uma nova morfologia do trabalho. Segundo Álvaro Garcia Linera, houve um

fechamento de um ciclo histórico em 1985 com a indução estatal, guiada por

princípios liberalizantes, de uma reestruturação profunda da composição

produtiva na Bolívia. “A condição operária e a identidade de classe do

proletariado boliviano desapareceram junto com o fim das grandes concentrações

operárias” (Linera, 2010, p. 225). Estas modificações de ordem econômica

implicaram no esfacelamento dos modos de organização operária na “forma

sindicato”, e no enfraquecimento da identificação classista enquanto núcleo

propulsor de ações políticas dos grupos subalternos. Nessas novas condições

adversas, houve uma drástica diminuição da capacidade de mobilização e

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resistência dos mesmos, tendo como paradigma a ação sindical com seus fins

interpelativos de ampliação de direitos ante o Estado. Contudo, nos últimos anos

da década de 90, em plena crise neoliberal, foram construídas novas estruturas de

organização sócio-política em torno de redes territoriais locais reivindicantes dos

valores e costumes indígenas, com forte capacidade de ação coletiva na forma

“multidão” e “comunidade” (Linera, 2010, p. 246 a 277). Muda-se o padrão de

acumulação, no entanto a vitalidade combativa dos grupos subalternos na Bolívia

permanece vigente sob novas condições.

Interessa-nos, por fim, compreender os efeitos decorrentes deste processo de

reestruturação produtiva no campo identitário em remissão direta aos valores e

costumes reivindicados pelos “povos originários”. Em que medida os movimentos

sociais de novo perfil se apropriaram do universo semiótico indígena para

ampliação e consecução de suas demandas classistas e étnicas? Em que medida o

fortalecimento de suas organizações e o espraiamento de suas demandas para

outros grupos sociais os conduziram a um projeto societário alternativo? Para a

apreciação analítica que trate destas questões candentes em aberto,

privilegiaremos o movimento aymara em suas múltiplas expressões em função de

seu peso demográfico, de sua cultura política insurrecional, e, sobretudo por conta

de seu projeto estético-político5 o qual se contrapõe aos cânones da filosofia

moderna-ocidental, ao modo societário capitalista, e aos limites economicistas da

esquerda clássica.

No primeiro capítulo, incorrermos no esforço de interpretar a coincidência

de uma dupla crise hegemônica de durações heterogêneas justapostas da qual

emerge uma ruptura histórica sem precedente na Bolívia, segundo muitos teóricos

do próprio país andino. Mario Blaser refere-se a duas perspectivas coincidentes: a

conjuntural, de curta duração, informa-nos sobre a crise do modelo econômico

neoliberal instaurado em 1985, e a estrutural, de longa duração que diz respeito à

crise da hegemonia da modernidade em si mesma.

5 Os aymaras não distinguem a política de outros aspectos da realidade, enquanto um atributo

autônomo do ser social. Todas as expressões humanas estão ancoradas holisticamente a uma ontologia autóctone denominada de “cosmologia originária”. Portanto, a política é pensada a partir de uma visão de mundo, de uma apreciação estética não redutível aos dualismos epistêmicos da filosofia moderna-ocidental. Ver em: Programa del Gobierno del MAS. V Congreso nacional

ordinário en Oruro. Orujo, 2003. Disponível em: <www.masbolivia.org> ; Acesso em: 24 de

mar 2014. Tekumumán. Sobre la supuesta pasividad del hombre andino. In: Abya Yala, una mirada indígena sobre el mundo. Montreal, Nº 2. Disponível em: <http: // www.quechuanetwork.org/yachaywasi/tekumumun_2.doc>. Acesso em: 13 de abr 2014.

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No segundo capítulo nos debruçamos sobre a estruturação e crise da

modernidade neoliberal que abre um contexto propício para a afirmação da

etnicidade enquanto núcleo de onde emerge novas formas de organização e

práticas políticas assentadas nos valores originários dos povos indígenas,

sobretudo os aymaras do altiplano. É nas dobras das contradições do processo de

efetivação das medidas neoliberais que afirma e nega ao mesmo tempo o direito

de um desenvolvimento culturalmente diferenciado para os índios, que

mensuraremos os efeitos práticos da ação dos novos movimentos sociais

autônomos.

Por último, no terceiro capítulo, faremos o debate mais que necessário sobre

a noção de etnia e as múltiplas formas de apropriação conceitual em seu uso

político por conquista de direitos dos povos marginalizados pela cultura nacional

tutelada pelo poder coercitivo do Estado. Na Bolívia, a etnicidade se afirma a

partir de seu correlato material que é o ayllu, se expressando naquilo que José

Teijeiro chama de “fundamentos socioculturais” do universo simbólico aymara.

Tais caracteres culturais se expressam na vida social pela prática relacional da

complementariedade e da reciprocidade que se irradiam da simbologia mítica. Por

fim, o trato do movimento katarista, expressão máxima da “reemergência étnica”

no país andino, e suas modalidades de organização no final do século, no contexto

de crise da modernidade neoliberal.

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Somos indios de la posmodernidad. Queremos tractores e Internet.

Felipe Quispe Huanca

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2. DUPLA CRISE HEGEMÔNICA

Muitos observadores do processo insurrecional boliviano do final do

século XX apontam o caráter revolucionário em curso no país andino, no contexto

da crise social expressa pelo esgotamento do receituário neoliberal implantado em

1985. “Ruptura histórica sem precedente” (Blaser, 2007, p. 11), “processos de

descentralização e descolonização” (Tapia, 2007, p. 47), “revolução cultural”

(Linera, 2010) são alguns epítetos para caracterizar o fenômeno. Não obstante a

necessária análise conceitual de caracterização do processo – “insurreição”,

“levante”, “revolução” – parece-nos mais urgente nesta primeira abordagem

assinalar o contexto histórico de sua emersão, ressaltando a dupla crise

hegemônica apontada por Mario Blaser.

Si, desde la perspectiva de la coyuntura, el momento presente se revela como

crisis de hegemonia de la modernización neoliberal, desde la perspectiva de la

longue duré el momento presente se revela como crisis de hegemonía de la

modernidad en sí misma (Blaser, 2007, p. 13).

Braudel, no prefácio de sua monumental obra, O mediterrâneo e o mundo

mediterrâneo na época de Felipe II, alerta-nos para as múltiplas modalidades

temporais contidas no devir histórico. Primeiramente há a história de um tempo

quase imóvel que diz respeito à relação entre o homem e o ambiente. Em seguida,

há a história movente das estruturas econômicas, sociais e políticas para

desembocar na trepidante história dos acontecimentos do momento presente.

Recordo-me de uma noite, perto da Bahia, quando assistia absorto ao espetáculo pirotécnico de fosforescentes vagalumes; sua pálida luz brilha, desaparece, volta a brilhar, sem penetrar na noite como uma verdadeira luz. O mesmo acontece com os eventos, para além de seu brilho, a escuridão predomina (Braudel apud Burke, p. 48).

A imagem poética de Braudel nos posta diante de uma tarefa referente à

inquietante história recente da Bolívia: interpretar o paralelismo de uma dupla

crise hegemônica de durações heterogêneas justapostas, que encerra o ciclo

histórico, conjuntural e estrutural. A ênfase recai no mais visível, ou seja, no

esgotamento das políticas de “capitalização” levado a cabo pelos sucessivos

governos do Movimento Nacional Revolucionário - MNR (Victor Paz Estenssoro,

1985-1989; Gonzalo Sanchés de Lozada, 1993-1997 – 1997-2001) e do

Movimento de Esquerda Revolucionário - MIR (Jaime Paz Zamora, 1989-1993),

nos levantes populares conhecidos como “A guerra da água”, de 2000; “El

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impostazo”, de Fevereiro de 2003; e “A guerra do gás”, de Outubro de 2003.

Tentaremos também dar conta da canalização desses conflitos sociais a partir da

eleição de Evo Morales do Movimento ao Socialismo (MAS) em 2005.

Porém, em um nível mais profundo – e, portanto, encoberto pela análise

política conjuntural –, no seio do familiar, do comunal, do imaginário coletivo,

enfim, na própria vida cotidiana das comunidades que conformam os movimentos

sociais reivindicatórios dos valores e costumes das sociedades originárias é que

percebemos a recusa não somente do capitalismo em sua forma liberal, mas

também o rechaço dos valores que conformam a própria modernidade. Em

contraste com a ontologia moderna e suas pretensões de universalidade, o reclamo

da cosmologia autóctone, “originária”, núcleo do qual emergem novas formas de

organização social e diversas modalidades de resistência e de expressão de

soberania indígena.

La crítica situación social por la que atraviesa Bolivia podría ser interpretada

como producto de la implantación del neoliberalismo. Esta interpretación en sí

misma no es incorrecta si se la observa desde el punto de vista netamente

coyuntural. Sin embargo, muchos reconocerán que detrás de esta manifestación

coyuntural se encuentra un denso e extenso bagaje histórico en el que se puede

observar una continua reproducción de la mentada crítica situación.

Consecuentemente, se debería entender que lo coyuntural contemporáneo

responde una especie de metástasis (en el tiempo) de un problema de carácter

estructural, cuya perseverancia se debe, principalmente, a la persistencia de una

serie de constantes conductuales enraizadas en lo hecho colonial (Teijeiro, 2007, p. 17).

O “hecho colonial” (fato colonial), entendido por José Teijeiro como “la

represión étnico-cultural” (Ibid., p. 30), que foi imposto desde os meados do

século XVI com a chegada dos primeiros espanhóis ao Qollasuyu6, refere-se ao

problema da conflitiva relação intercultural que se mantém até os dias atuais. De

um lado, formas de organizações comunitárias referentes ao universo originário

dos povos indígenas, que mantêm relações complexas com o mundo q‟ara7, ora

em hostilidade absoluta ora interpelando-o com o fim de conquista e ampliação de

direitos. Do outro, a formação social originária do processo colonizador,

hegemonizada por uma elite criola detentora dos meios de produção e do poder do 6 Um dos suyu (parte) ao sul do Império Inca, onde habitavam os Collas de língua aymara.

7 Para Felipe Quispe “q‟ara” significa “pelado, sin ropa, los invasores que llegaran a nuestras

tierras sin nada, sin ninguna riqueza, ni propriedade y se enriquecieron” (Escárzaga, 2012, p.202).

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aparato estatal. Não obstante a recusa recíproca entre esses dois universos

culturais, sua coexistência informa a característica central da sociedade boliviana:

persistência de um conflito interétnico que denuncia ao mesmo tempo o fato

colonial, isto é, a subordinação étnico-cultural de um polo em relação a outro, e a

resistência secular das culturas subordinadas.

Vivian Urquidi, reproduzindo as teses de Zaveleta Mercado, enfatiza a

especificidade da sociedade boliviana, no que diz respeito à diversidade cultural

das “nações” que coexistem dentro da “nação”, expressa em formas políticas,

modo de produção e temporalidades históricas heterogêneas. A esta sociedade

utiliza-se o termo abigarrada8 justamente por não se estabilizar em formas

homogêneas de reprodução da vida social (Urquidi, 2007, p. 44). As culturas

diferenciadas na Bolívia convivem numa relação desarticulada cuja dominação de

um grupo cultural sobre os demais não implica na unidade requerida pelo modelo

de “Estado-nação” europeu. As populações indígenas foram submetidas por

séculos ao domínio de lógicas de organização externas, mas mantiveram-se, em

sua maioria, em suas formas comunitárias até os dias atuais. Não sem

modificações, a “forma comunidade” persevera com muita vitalidade.

Na Bolívia a forma comunitária tem sido a maneira de organização mais resistente para a maioria das populações rurais, até meados do século XX, e de que ainda hoje os mercados regionais mantenham sistemas de trocas para alguns produtos, ou que os principais rituais estejam relacionados às estações do ano, bem como o sentido da terra seja dado por referências ligadas à cosmogonia pré-colonial (Urquidi, 2007, p. 39).

A Bolívia é um país com intensa presença indígena em sua sociedade. Os

índios compreendem mais de 60% de seus habitantes, concentrados até a década

de 1980 nas áreas rurais. A reprodução social comunitária (ayllus) destas

populações rurais está ligada diretamente ao ciclo produtivo sazonal da agricultura

que imprime um tempo histórico incidente sobre o modo de produção (produção

de riqueza material, organização do espaço, tradições, mitos, crenças, etc.). A

introdução frouxa do capitalismo com sua racionalidade moderna não

comprometeu a forma comunitária de reprodução da vida social com sua

temporalidade própria, decorrente destes ciclos produtivos. Os eixos de

8 Abigarramiento designa heterogeneidade, mistura e desordem. Um termo parelho em português é “imbricação”, que se refere à ideia de camadas sobrepostas sem estarem necessariamente articuladas entre si. Ver mais em: Urquidi, 2007, p. 44.

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articulação do processo de modernização capitalista não lograram êxito. De um

lado, na perspectiva marxista, o fracasso da racionalidade moderna de

individuação atomizada, a qual compreende o esvaziamento ideológico necessário

que predispusesse o trabalhador ao abandono de seus referenciais tradicionais na

constituição do indivíduo, isolado no interior do processo produtivo9. Por outro

lado, percebe-se a impossibilidade histórica de estabelecer uma unidade política

de articulação nacional via Estado, como acontecera nos países de capitalismo

avançado. O Estado existe como esfera máxima de poder hegemonizada por uma

elite econômica, contudo é um “Estado Aparente” (Urquidi, 2007, p. 49), pois não

se articula satisfatoriamente com a sociedade, anulando a possibilidade de

formação nacional, de um projeto imaginado, compartilhado, o qual institui a

unidade política necessária para mitigar os conflitos sociais em proveito do

projeto de classe hegemônico. O ocultamento necessário das diversas matrizes

étnicas para a promoção da unicidade cultural do Estado (Hall, 2011, p. 60-61)

não se deu efetivamente na Bolívia, impedindo, em longo prazo, a crença

mobilizadora das forças sociais na legitimidade do monopólio da violência por

parte do poder estatal (Linera, 2010, p. 280). Daí as convulsões sociais

permanentes.

(...) a racionalidade moderna de individuação que se espera que ocorra, uma vez introduzida a organização produtiva do capitalismo, não se consolidou na Bolívia, como tampouco se constituiu uma unidade política de articulação nacional. Pode-se afirmar que na relação entre Estado e sociedade, o que se estabeleceu foi um poder formal, juridicamente soberano, sem relação orgânica com a população a ser governada e sem presença real do Estado no território (Urquidi, 2007, p. 40).

Mantêm-se, assim, técnicas agrícolas produtivas, vinculadas ao ciclo

sazonal, e os sistemas de autoridades locais com forte grau de autonomia política.

Mais uma vez, os eixos de articulação do processo de modernização capitalista

fracassaram no país andino, em decorrência da tibieza do desenvolvimento das

forças produtivas e da inexistência de um projeto nacional que articule o Estado à

sociedade, como foi demonstrado acima, a partir das considerações de Urquidi.

Deste modo, credita-se a persistência dos modos tradicionais de reprodução da

vida social a fatores estruturais alheios à vontade das populações indígenas. O 9 Marx em Manuscritos econômico-filosóficos descreve o processo de alienação do trabalhador

dentro do processo produtivo capitalista. Veremos com mais detalhes no terceiro capítulo desta dissertação. Ver mais em: Marx, 2004, p. 79 a 90.

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enfoque recai sobre a mentalidade das elites bolivianas, que optaram por um

projeto exclusivista de poder, assentado numa ideologia racista, justificatória da

exploração do trabalho compulsório das massas indígenas10. Portadora de duas

atitudes distintas e complementares, esta elite manifesta historicamente o

sentimento de xenofilia, voltado à valorização de culturas não locais e externas, e

à rejeição da nação indígena, matizada somente em período do assenso popular

(Urquidi, 2007, p. 47).

Linera ratifica a tese de Urquidi, ressaltando que o Estado boliviano, em

qualquer de suas formas históricas, tem como marca o procedimento de ignorar os

indígenas como sujeitos coletivos detentores de prerrogativas governamentais

(Linera, 2010, p. 284). As elites dominantes foram incapazes, afirma o sociólogo,

de construir uma nação inclusiva com projeto de país compartido, mesmo no

período de construção do capitalismo de Estado. No entanto, ressalta a variável

tônica, a qual explica o “Estado aparente” boliviano a partir da agência dos povos

originários em sua vontade indianista11 de ser aquilo que se é, ou aquilo que

presumem serem: “índios”12. A resistência da forma comunitária, que atravessa as

diversas modalidades de Estado boliviano ao longo de sua história, e a

persistência etnocultural são traduzidas no processo do trabalho comunitário, nas

temporalidades vivenciadas a partir do ciclo sazonal da agricultura, nos sistemas

de autoridades coletivos, e na concepção do mundo (cosmologia) destoante do

racionalismo moderno (Teijeiro, 2007). Enfim, a matriz civilizatória originária

10 As formas de trabalho compulsório, existentes no período pré-colombiano e no período colonial, persistiram na República após a independência em 1825. A mit‟a e o pongueaje foram apenas extintos legalmente em 1952, com a Revolução Nacionalista. 11 Vale ressaltar a distinção conceitual entre os termos “indianismo” e “indigenismo”. O primeiro refere-se às reivindicações autenticamente indígenas, sem a mediação de nenhum ente forâneo (intelectuais, vanguarda política, Estado, etc.), apontando para a autonomia indígena na construção de sua própria inteligibilidade discursiva. Já o termo “indigeanismo” refere-se à defesa paternalista do “índio”, reificado por um processo histórico vitimador de sua condução protagônica, ensejando, assim, a necessidade de defensores os quais o representem. Ver mais em: Franch, 1990. 12 Os autores estudados fazem o uso de várias formas de apropriação conceitual, como “índio”, “indígena”, e “povos originários”. Segundo Teijeiro, ao analisar os fundamentos socioculturais dos aymaras:

[...] el aymara es uno de los principales pueblos colonizados que de manera general fue

denominado con el termino indio; mediante el cual se estableció una de las categorías

sociales del sistema colonial, conllevando uma carga social de carácter negativo dadas

las implicâncias ideológicas generales sobre el colonizado. Sin embargo, el aymara

recurre a este término con el objetivo de representarse a sí mismo y a la vez de los

distintos pueblos subyugados. Ello no tendría otro sentido [...] de revertir esa carga

negativa. A partir de esta interpretación se emplea, com alguna frecuencia, él termino de

Pueblo indio o sinónimos como Pueblo originario o indígena (Teijeiro, 2007, p. 40-41). Daremos também a nós esta liberdade na apropriação dos termos de designação destas sociedades.

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que persiste até a atualidade constitui a principal barreira à modernização

capitalista na região, e não apenas a vigência de distintos modos estatais

modernos. É justamente neste “Estado aparente” de uma “sociedade abigarrada”,

sem formas de mediações efetivas entre Estado e sociedade, é neste vazio que

surgem as organizações comunitárias como entidades políticas soberanas,

suplantando a legitimidade estatal. Portanto, o problema é mais profundo do que

aponta Urquidi. Não é apenas a mentalidade da elite dominante que se encontra

aquém da modernidade, mas é o mundo indígena que se situa à margem do

capitalismo e da racionalidade instrumental, em afirmação daquilo que lhe é

“próprio”.

A cultura política liberal e as instituições liberais que hoje em dia são superadas pelos movimentos sociais, e deixadas de lado no comportamento real das elites no poder, formam um sistema de valores e procedimentos que pressupõe a individualização da sociedade, isto é, a dissolução das fidelidades tradicionais, das relações senhoriais e dos sistemas produtivos não industriais, coisa que na Bolívia acontece apenas, no melhor dos casos, com um terço da população. Entretanto, apesar desse „matizamento‟ de uma sociedade que estrutural e majoritariamente não é industrial nem industrializada, o Estado, em todas as suas formas republicanas, inclusive a „neoliberal‟, numa espécie de esquizofrenia política, construiu regimes normativos liberais, isto é, instituições modernas que não correspondem, senão como sobreposição hipostasiada, à lógica da dinâmica social (Linera, 2010, p. 287).

A normatividade liberal foi restabelecida após o ciclo de governos

militares13, a partir da institucionalização da democracia representativa em 1982,

com eleição de Hernán Siles Zuazo pela frente de esquerda Unidade Democrática

Popular (UDP). Porém, somente em 1985 é que o sistema politico boliviano se

acomoda numa forma estabilizada, que perdurará por duas décadas. Com a eleição

de Victor Paz Estenssoro, do Movimento Nacional Revolucionário (MNR), em

coligação com os partidos de centro-direita Ação Democrática Nacional (ADN) e

Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR), estrutura-se o “pacto de

governabilidade”, que representa a rotatividade de tais agremiações na regência do

poder executivo com o mesmo programa de reestruturação econômica. A busca de

13

1964-1965: Governo de René Barrientos; 1966: Governo de Alfredo Ovando; 1966-1969: Governo de René Barrientos; 1969: Governo de Luis Siles Salinas; 1969-1970: Governo Alfredo Ovando; 1970-1971: Governo de Juan Jose Torres; 1971-1978: Governo de Hugo Bazer; 1978: Governo de Juan Pereda; 1978-1979: Governo de David Padilha; 1979: Governo de Wálter Guevara Arze; 1979: Governo de Alberto Busch; 1979-1980: Governo de Lidia Gueiler; 1980-1981: Governo de Luís García Meza; 1981: Junta de Governo (Celso Torrelio, Waldo Bernal e Óscar Pammo); 1981-1982: Governo Celso Torrelio Villa; 1982: Governo de Guido Vildoso. Ver mais em: Gisbert, 2008, p. 531 a 571.

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acordos políticos prévios tornara viável a condução dos assuntos de governo sem

a instabilidade política, a qual paralisou o governo de esquerda da UDP em sua

inabilidade de articulação com a maioria oposicionista do Congresso. Gisbert

credita a própria UDP o fracasso de sua gestão: “El problema principal del

executivo fue su debilidad política expresada en su minoría parlamentaria”

(Gisbert, 2008, p. 575).

Em todas as eleições, desde 1985, o eleitorado dividira-se em três grupos, de

esquerda, centro e direita, alinhados em múltiplos partidos. A presidência poderia

ser decidida no primeiro turno somente com a votação expressiva de 51% dos

votos, fato que nunca ocorreu até 2005 com a eleição de Evo Morales do

Movimento Al Socialismo (MAS). Caso contrário, o escrutínio ficava nas mãos

do Congresso, o que exigia complexas negociações e arranjos pós-eleitorais

(Klein, 2008, p. 272). A decisão apartada do voto direto explicita os limites do

êxito da institucionalidade democrática concernente à ampliação participativa dos

grupos excluídos do poder, mesmo nos limites da democracia representativa.

Desde 1985, mantêm-se no poder os partidos coligados da ordem em

questão, MNR, ADN e MIR, eleitos pelo legislativo em acordo com os principais

grupos empresariais do Oriente boliviano14, cuja orientação política residia na

supressão do capitalismo de Estado construído nas últimas décadas, e na adoção

dos princípios do liberalismo econômico: redução da participação do Estado na

economia, privatização das empresas públicas, eliminação do controle de preços e

salários, reformas fiscais e cortes de gastos sociais, controle inflacionário a partir

de uma política econômica recessiva, redução do poder da classe operária com o

desmantelamento da indústria mineradora do país (a Corporação Mineira da

Bolívia - COMIBOL15), desemprego estrutural, precarização do trabalho, etc.

Tal conformação política, instada em benefício da consecução de uma série

de medidas econômicas de ordem estrutural, não fora capaz de ocultar a

substância heterogênea da sociedade boliviana. Assim como todas as outras

14

Podemos identificar enquanto força econômica do país o setor empresarial do departamento de Santa Cruz do Oriente boliviano. A partir da Revolução de 1952, o eixo econômico foi gradativamente transposto do Oriente para o Ocidente devido à importância cada vez maior da exploração e exportação dos hidrocarbonetos em detrimento da indústria da mineração. 15 A “reforma” da COMIBOL feita pelo governo Paz Estenssoro significou a castração dos seus sindicatos: entre 1985 e 1987 diminui os empregados assalariados de 30.000 para 7.000 (Klein, 2008, p. 274 e 275).

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formas de Estado, do máximo ao mínimo, também não puderam matizar o fosso

que separa as instituições formais modernas da realidade social pluriétnica do

país. O predomínio neoliberal das últimas décadas, em função dos efeitos sociais

das medidas supracitadas, agiu em tendência contrária. Com o recrudescimento da

pobreza, afastou-se ainda mais do Estado a sociedade, não obstante a estabilidade

política conquistada com a institucionalização de mecanismos promotores da

democracia representativa16.

Em 1994, no governo presidido por Gonzalo Sanches de Lozada, fora

aprovada uma reforma da Constituição de 1967, por meio do qual se passa a

reconhecer o caráter multiétnico e pluricultural do país. Demanda histórica dos

movimentos indígenas17 representada pelo vice-presidente aymara, Hugo

Cardenas, o reconhecimento legal da multietnicidade e do pluriculturalismo do

país – não obstante o avanço a nível simbólico, naquele momento, para os

movimentos indígenas – não comprometeu na prática a unicidade do Estado,

princípio este mantido na Carta Magna.

El primer cambio es del articulo 1◦ que reza: “Bolivia, libre, independiente,

soberana, multiétnica y pluricultural, constituida en Republica unitaria, adopta

para su gobierno la forma democrática representativa, fundada en la unión y en

la solidaridad de todos los bolivianos” (Gisbert, 2008, p. 602).

Reconhece-se a diversidade, mas em última instância ela tem como

denominador comum o sistema de dominação étnico e de classe perpetrado desde

o Estado, a despeito da forma pela que se expressa, entronizando a esquizofrenia

política citada por Linera. O simples reconhecimento formal da diferença étnica, a

que pese seus efeitos ulteriores na mobilização indígena contra o Estado Liberal

que a promovera, não fora suficiente naquele momento para expressão deste 16 Gisbert afirma que um dos maiores marcos da democracia boliviana ao longo dos anos foi o aprofundamento da institucionalidade. Ele exemplifica com a medida tomada em 1992, no Governo Hugo Banzer, pela qual os membros do Tribunal Constitucional, Conselho de Justiça e Defensoria do Povo passaram a ser eleitos via parlamento. Em 1998, por sua vez, o vice-presidente Quiroga aprovou um plano de luta contra a corrupção com o objetivo de tornar mais eficiente as medidas legislativas, o controle sobre os gastos públicos e a administração burocrática do Estado. Outro dado importante, evidente por si mesmo dentro da conturbada história política nacional, reside na consecução dos governos eleitos até o final do mandato (com exceção do Governo de Siles Suazo, antecipado pela galopante crise inflacionária, e do Governo de Hugo Banzer, morto em 2001). A ausência de golpes nas últimas duas décadas é a expressão máxima do êxito institucional da democracia boliviana (Gisbert, 2008, p. 611). 17 A demanda pelo reconhecimento legal da diversidade cultural do país fora reivindicada pela primeira vez em 1979, pela Confederação Sindical Unificada dos Trabalhadores Campesinos da Bolívia (CSUTCB), e referendada em seu Congresso em 1983. Ver mais em: Camargo, 2006, p. 184.

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capital cultural originário, circunscrito na cotidianidade da vida social das

comunidades indígenas e dos grupos urbanos vinculados a estas. A apropriação

por parte de redes transnacionais de recursos naturais e de terras fragilizou as

bases de subsistência das comunidades, que até os anos 80 conseguiram manter

certo grau de autonomia. A assertiva ortodoxa neoliberal de suprimir o Estado

enquanto vetor diretivo do processo modernizante, dando prioridade ao mercado,

corroeu as bases de reprodução social dos grupos mais fragilizados. Estes

responderam à precarização de suas vidas de um modo bastante contundente:

organizaram as suas comunidades rurais em função da defesa de seu território18,

reforçando a autonomia do tecido social comunitário em risco, através de marchas

e bloqueios de vias públicas. Em um grau máximo de radicalização, impingiram a

renúncia do presidente Gonzalo Sanches de Lozada em 2003, no contexto da

“Guerra do gás” 19.

No contexto do esgotamento do modelo mínimo de gerência de Estado, do

colapso do “pacto de governabilidade” e do questionamento das medidas de

“capitalização” pelas organizações populares, politiza-se a etnicidade, outrora

confinada aos espaços cotidianos. A crise se instaura na afirmação da soberania

indígena, no rechaço ao intento modernizador neoliberal, abrindo comportas para

atualização do potencial identitário étnico presente em diversos momentos da

história da Bolívia. Não é o “novo” que emerge no estertor da modernização

neoliberal, mas a radicalização de um estado latente de erupção da cultura

originária, já manifesta em outras circunstâncias históricas.

(...) sólo en ciertos momentos de ruptura, cuando un intento modernizador falla

estrepitosamente en sostener sus promesas o cuando un nuevo intento trata

brutalmente de marcar las pautas de sociabilidad al interior de estos espacios o

territorios comunales, es que la dimensión política de estas sociabilidades

alternativas se hace claramente evidente. Esto es así porque en esos momentos

las comunidades se ponen en movimiento desplegando sus solidaridades e sus

afectos, es decir sus formas cotidianas de existencia, como formas de resistencia

y para la defensa de sus intereses conjuntos (Blaser, 2007, p. 19).

18 “La Marcha por el territorio y la dignidad” dos povos indígenas do oriente. Ver mais em: Alai, 1990. 19 A proposta do Governo de Lozada em exportar gás para os EUA através de um porto chileno desencadeou uma grave crise social, produzindo conflitos entre as populações de La Paz e El Alto, principalmente, e as forças armadas, resultando em 112 mortos (92 civis e 20 policiais e militares). Ver mais em: Gisbert, 2008, p. 623-624.

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A erupção de “novas” sociabilidades, formas cotidianas de existência

fundadas em valores “próprios”, que interpelam e combatem a estatilidade

hegemônica, não diz respeito às visões caricaturais, românticas, que isolam a

cultura originária das influências externas. As populações indígenas estão em

processo relacional com a cultural dominante desde 1492, alternando a negociação

petitória, a estratégia assimilacionista e a resistência (simbólica e violenta). Uma

relação cultural conflitiva, diria Teijeiro. Suas formas culturais obviamente são

alteradas com este contato, mas a vontade “indianista” atravessa a história destes

últimos séculos, traduzida em uma narrativa política de resistência contra o

colonialismo, fazendo-se impor em momentos de crise20: a emergência do poder

“autóctone” (Camargo, 2006, p. 16).

Dentre as rebeliões como forte componente étnico, podemos mencionar a

rebelião de Tupak Katari, de 178121; a rebelião de Pablo Zárate Willka, de 189922;

e a proclamação da “República Aymara” por Laureano Machaka, na província de

Camacho no departamento de La Paz, em 195623. A retomada das demandas

indígenas, com ênfase no nacionalismo aymara, veio como desdobramento da

rebelião de Machaka, fincando bases em La Paz através do movimento katarista,

surgido no meio estudantil universitário no final dos anos 60. Em 1973, os

kataristas lançam o Manifesto de Tiahuanacu, evocando as lutas anticoloniais com

forte conteúdo autonomista, de traço valorativo da cultural originária. A narrativa

20

Vivian Urquidi ressalta a capacidade de acumulação de capital social pelas classes subalternas na Bolívia. Apreende o momento de crise como momento potencial constitutivo de uma nova hegemonia. As demandas étnicas em algum grau sempre estiveram presentes nestes momentos de abertura. A atual crise da modernidade neoliberal atualiza tal potencial na condução indígena das fraturas políticas e sociais, o que configura a intensificação destas demandas étnicas reprimidas. A novidade não se expressa na etnicidade do discurso político, mas pela hegemonia indígena deste processo expresso na eleição de um índio aymara ao cargo máximo de poder no país:

[...] a Bolívia acaba de tornar-se o primeiro país latino-americano a consolidar uma

liderança indígena na Presidência da República, com pretensões bastante audaciosas.

De início, dispõe-se o novo governo a refundar o país, considerando desta vez a

população indígena como componente básico da nova nação (Urquidi, 2007, p. 11). 21 Nascido em 1750 com o nome de Julián Apaza Nina, Tupak Katari liderou, em 1781, juntamente com sua esposa, Bartolina Sisa, um levantamento aymara contra as autoridades coloniais, estabelecendo dois cercos indígenas a La Paz. Preso, foi esquartejado no mesmo ano. 22 Em 1899, quando do início da Guerra Federal entre La Paz e Sucre, Pablo Zarata – o Willca, que significa em aymara “rei sol poderoso” – liderou uma rebelião indígena que apoiou os federalistas com o objetivo de recuperar as terras comunitárias que foram usurpadas pela elite de Sucre. 23 Em 1956, o indígena Laureano Machaka lidera uma insurreição em La Paz, na província de Camacho, na qual se proclama a “República Aymara”. Consegue a autonomia do governo central, resistindo por dois meses às investidas do exército regular. Esta experiência servirá de referência para o movimento indianista-katarista, que surgirá no final dos anos 60, cuja principal demanda será a independência indígena.

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do movimento aymara reivindica, portanto, a libertação do colonialismo interno,

politizando a etnicidade na defesa do direito das populações indígenas ao

desenvolvimento culturalmente diferenciado (Camargo, 2006). A crise

contemporânea, da modernização neoliberal, é apenas mais um episódio da

descentralização do “fato colonial”, acredita Taipa, dentro de uma perspectiva de

longa duração, como expresso no documento katarista.

El proceso verdadero se hace sobre una cultura. Es el valor más profundo de un

pueblo. La frustración nacional ha tenido su origen en que las culturas quechua

y aymará han sufrido siempre un intento sistemático de destrucción. Los políticos

de las minorías dominantes han querido crear un desarrollo basado únicamente

en la imitación servil del desarrollo de otros países, cuando nuestro acervo

cultural es totalmente distinto. Llevándose .también de un materialismo práctico

han llegado a creer que el progreso se basa únicamente en aspectos económicos

de la vida. Los campesinos queremos el desarrollo económico pero partiendo de

nuestros propios valores. No queremos perder nuestras nobles virtudes

ancestrales en aras de un pseudo-desarrollo. Tememos a ese falso

"desarrollismo" que se importa desde afuera porque es ficticio y no respeta

nuestros profundos valores productos (Manifesto de Tiahunacu)24 Para Tapia, no âmbito da perspectiva estrutural, o processo descolonizador

implica uma descentralização do conjunto de instituições que organizam e

reproduzem a condição dominante de uma das culturas que conformam o

panorama étnico do país (Tapia, 2007, p. 64). Entende as linhas de

descentralização como o questionamento e desorganização do núcleo de

dominação e desigualdade, cujo componente central é a ideia de universalidade

inscrita na institucionalidade das normas que configuram o Estado Moderno.

El Estado, que es la forma moderna de concentración del poder político, implica

o monopolio. Un monopolio legitimado con el discurso de un sistema jurídico o

de derecho con pretensiones de generalidad; es decir, de un grado de

impersonalidad y abstracción que formula un sistema de norma que serían

válidas para todos aquellos que se hayan incluido como súbditos o ciudadanos

del mismo (Ibid., p. 48).

O monopólio político consubstanciado em normas jurídicas generalistas é

mitigado pelo processo histórico de democratização, expresso pelo assenso da

classe trabalhadora no cenário público. A história das democracias modernas não

passa de um conjunto de lutas empedernidas pela ampliação dos direitos políticos,

24

Disponível em: <http://tercer-coloquio.blogspot.com.br/2009/08/resumen-historico.html>. Acesso em: 12 agos 2015.

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que implicava em ampliar a área de igualdade ao da participação dos processos de

seleção de governantes e de eleição de representantes nas instâncias legislativas.

Na Bolívia, a experiência de abertura democrática, de abalo do monopólio

do poder político, se atualiza em diversos momentos. Em 1952, na esteira do

processo revolucionário, instaura-se o co-governo entre o MNR e a COB,

resultando nas medidas de nacionalização das minas, na reforma agrária, na

promulgação do voto universal e na reforma educacional. Em suma, a partir do

alargamento democrático do Estado Boliviano, iniciou-se a transformação

contemporânea mais radical do país andino, afetando a economia e as relações

sociais (Gisbert, 2008, p. 515).

En la historia boliviana, hay un hecho importante que permite sintetizar una

modalidad de configuración de la cultura democrática en el país: es la

experiencia del cogobierno entre obreros e partido nacionalista, que es uno de

los resultados de la revolución del ´52 que no duró mucho pero es altamente

expresiva del hecho de que para una buena parte de los trabajadores, en particular para los proletarios de la época, la democracia no implicaba en

obtener derechos para participar en elecciones y elegir a quienes se le va a

delegar el proceso del gobierno, sino que democracia implicaba estar presentes

en el proceso de gobierno, en el toma de decisiones, aunque a través de los

representantes de sus formas de organización clasista, a través de los

representantes de la Central Obrera Boliviana (Tapia, 2007, p. 62).

Ainda em 1970, no governo do militar progressista Juan José Torres, abre-se

novamente uma conjuntura favorável a um novo co-governo. Nela havia 50% de

participação operária no executivo, expressa em medidas tais quais: reposição

salarial dos mineiros, controle fiscal das divisas estrangeiras e monopólio estatal

do comércio exterior. Também verificamos tal espraiamento quando se produziu a

transição para a democracia em 1982, em um governo de coalização de esquerda,

com uma forte presença de núcleos sindicais de trabalhadores (Gisbert, 2008).

Contudo, por a hegemonia operária nesses processos de assenso

democrático no transcurso do século XX ser marcada pela inteligibilidade

marxista, que pouco ou nada enxerga da especificidade étnica do país, não houve

o questionamento do caráter colonial das estruturas de poder assentadas no a

priori universalista moderno de suas instituições políticas, econômicas e culturais.

Destarte, o núcleo de dominação e desigualdade assentado do universalismo da

forma estatal moderna, que predica a homogeneidade cultural dos “incluídos”, não

foi ameaçado. Ao que pese o alargamento democrático, o qual se traduz por uma

maior participação política das classes subalternas e pela ampliação da repartição

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da riqueza social. Em suma, o século XX assistiu a ampliação dos direitos

políticos na Bolívia, estendendo a área de igualdade no ingresso aos espaços de

poder, não resultando, contudo, em abalos nas estruturas de dominação.

Uno de los componentes esenciales del núcleo de dominación y de desigualdad es

la idea de universalidad que ha funcionado como uno dos elementos para operar

la exclusión, la jerarquización y la discriminación (Tapia, 2007, p. 49). A radicalidade em curso no processo insurrecional boliviano incide

justamente no questionamento deste componente nuclear, fragilizado pela

explicitação do colonialismo interno institucionalizado: a premissa da

universalidade das invenções do “ocidente”. As jornadas de luta contra o

neoliberalismo nestes últimos anos conduziram os novos movimentos sociais para

além das demandas economicistas das agremiações operárias, superando o

comportamento passivo petitório e, muitas vezes, corporativo das organizações

populares frente ao Estado (Linera, 2010, p. 106). Desmonta, em seu discurso de

afirmação do mesmo – daquilo que lhe é próprio no campo da cultura –, a retórica

eurocêntrica do “não lugar”, o “outro” travestido de universal. Mais que a

reivindicação pela ampliação dos espaços de poder, e pelo fim das medidas de

“capitalização”, que afetaram negativamente à condição de vida dos mais pobres,

fez-se presente nos pleitos populares o rechaço ao colonialismo epistêmico, isto é,

o combate às diversos modos de supressão dos saberes indígenas em todas as suas

formas de expressão em nome de uma “universalidade” abstrata de um

pensamento que se quer único. Não é somente no âmbito da economia e da

política que se expressa o embate das forças sociais no país andino, mas,

principalmente, na esfera cultural. Do núcleo de onde emerge a produção de

sentido é que se dá o entrechoque étnico, civilizatório, expondo as divisões e

fraturas de um país abigarrado25.

A premissa que predica a universalidade do sistema de normas que

regulam as relações sociais a partir do Estado, excluindo a partir desta abstração

jurídica a variedade de formas de constituição das relações de poder de distintas

sociedades que existem no mundo andino, assenta-se em uma ontologia unitária 25

Tais divisões são expressas pela dicotomia étnico-cultural exposta entre o polo de cultura “originária” e o “ocidental” identificado à elite criola. Há ainda a oposição regional entre o ocidente andino (colla) e o oriental amazônico-platino (camba), e a fratura socioeconômica potencializada pelos altos índices de pobreza e exclusão. Soma-se a estas polarizações a dinâmica marxista de luta de classes, cuja ênfase é dada pela militância trabalhista e sindical ainda influente no país (Camargo, 2006, p. 15-16).

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da qual desgarra uma epistemologia igualmente excludente de outras formas de

saber. Daremos ênfase, neste momento, à caracterização do conhecimento

científico hegemônico para, posteriormente, dimensionarmos a crítica ao núcleo

de dominação do qual emerge o colonialismo epistêmico instado acima. Permita-

nos esta breve e necessária digressão ao campo da filosofia.

A ciência moderna26, constituída na Europa a partir do século XVII,

descreve a “natureza” como máquina regida por leis universais e necessárias

passíveis de descrição objetiva. Deste modo, evoca-se a tradição imobilista de

Parmênides de Eléia, presumindo o monismo do Ser, ocultado pela pluralidade

aparente do mundo27. Confronta-se, portanto, ao “fato” exterior, independente da

subjetividade humana, uma epistemologia análoga, ou seja, monista. Um único ser

e uma única forma de conhecimento, o qual perscruta a unidade. Monismo

ontológico, monismo epistemológico: eis o fundamento constitutivo do saber

europeu, dito universal28, que enseja práticas, no campo social, de supressão de

outras formas de conhecimento não reconhecidas como “racionais”, assim como

endossa a perspectiva da unicidade estatal concernente à pretensão de

generalidade do sistema de direito (Tapia, 2007, p. 48).

26

Referimo-nos ao pensamento hegemônico, aquele que se consolidou a partir do racionalismo cartesiano, coroando-se no mecanicismo de Isaac Newton. Há, evidentemente, pensamentos “menores”, como a filosofia de Baruch de Espinoza, relegados ao segundo plano, pelo menos até o século XIX, em face do êxito instrumental da perspectiva dominante. 27 Parmênides instaura na tradição do pensamento ocidental a vertente epistemológica dominante, que perscruta a identidade ocultada pela multiplicidade. Insta-nos, em seu belo poema, em nos afastar do caminho a que nos levam “às opiniões dos mortais”, centradas no fluxo inconstante da realidade que apreendemos pelos sentidos. Do mesmo modo recomenda o caminho do Ser, da identidade plena, que coincide com o próprio pensamento (Poema de Parmênides, 2000). Paul Feyerabend ainda coloca:

[...] no poema em que explica as suas ideias, ele distingue entre dois procedimentos ou „caminhos‟, como ele os chama. Um deles, baseado no hábito, nascido de muita experiência, ou seja, em formas tradicionais de conhecimento e de aquisição de conhecimento, contém as „opiniões dos mortais‟; o outro, longe dos „passos dos humanos‟ (independente das tradições), leva ao que é „apropriado e necessário‟. De acordo com Parmênides, o segundo caminho não é uma tradição, mas suplanta todas as tradições. Muitos cientistas parecem ver sua atividade de forma semelhante. (Feyerabend, 2003, p. 83).

28 Paul Feyerabend associa a ideia científica de que há um discurso sobre o real universalmente

válido, ao atavismo cristão da crença da salvação universal a partir da adesão irrestrita de todos os povos do mundo aos preceitos bíblicos: “Podemos supor que a ideia (de universalidade) é um vestígio de épocas em que questões importantes eram irradiadas de um único centro, de um rei ou deus cioso, apoiando e dando autoridade a uma única visão de mundo autoridade a uma única visão de mundo” (Feyerabend, 2003, p.18). Esta referência também é enfatizada por Charles Adam, que percebe a continuidade de certas exigências de fundamento ontológico na filosofia do século XVII, tributária de um longo exercício de Escolástica: “Sem dúvida, a teologia havia dado aos espíritos esta necessidade de certeza absoluta [...] e os filósofos haviam transpostos para a ciência, querendo que esta aqui lhes desse igual satisfação” (Guinsburg; Romano; Cunha (Orgs.), 2010, p. 25).

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Atenhamo-nos mais um pouco às premissas do saber moderno, às

discussões internas do campo epistemológico29, para dimensionarmos os efeitos

dissociativos da perspectiva realista-naturalista sobre outros modos de

conhecimento sobre o real referente aos povos originários andinos, sobretudo, aos

aymaras.

Inscreve-se na tradição do pensamento moderno o desapego às especulações

metafísicas, cuja busca pelas causas últimas dos fatos naturais projetava os

pensadores à transcendência dos próprios fatos. A inteligibilidade do mundo

natural ancorava-se em realidades alhures, e vão seria o esforço filosófico de

distanciar-se da metafísica, uma vez que o pensamento subordinava-se

servilmente aos ditames da teologia. A secularização do pensamento na

modernidade devolve à filosofia o naturalismo grego, de buscar nas próprias

coisas o seu fundamento constitutivo, em benefício da afirmação radical de uma

realidade imanente. Os pensadores deste período empenhavam-se em reformar a

filosofia liberando-a do anátema da metafísica. Recorriam ao princípio cético da

dúvida, desempenhando o papel de método para a edificação de bases seguras do

conhecimento emergente: a ciência. Exaltava-se, assim, o livre e correto proceder

da razão em busca da verdade, garantindo as condições de possibilidade do novo

saber. Buscava-se a verdade imanente às coisas do mundo e, para tal, a adequação

necessária entre as representações do sujeito cognoscente e as estruturas

universais do objeto cognoscível. Presumia-se, portanto, a dicotomia sujeito-

objeto matizada somente pelo método conciliador entre estas duas partes do Ser, a

princípio inconciliáveis.

Baseada no método sintético cartesiano da parcialização da realidade para o

estudo simplificado das suas partes constitutivas (Guinsburg; Romano; Cunha

(Orgs.), 2010), o novo saber emergente coloca-se presidido pela relação

supracitada que aparta o cognoscente do conhecido (Santos; Meneses (Orgs.),

2010, p. 54). A relação sujeito-objeto torna-se o princípio norteador dos filósofos

da natureza e cientistas que a tomam como premissa, e não como crença avalizada

pelos seus próprios pressupostos. Neste sentido, a atividade científica não passa

do esforço de suturar os campos dicotômicos da realidade, aplicando o método 29 Uma das características nodais da ciência moderna é problematização por parte dos próprios cientistas acerca dos métodos e procedimentos que estabelecem os critérios de valor de verdade. A discussão epistemológica com ênfase no exame crítico das fontes do saber preside qualquer outra discussão (Cassirer, 1948, p. 104).

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28

rigoroso inspirado na lógica inflexível da matemática. Saber é a adequação do

sujeito ao objeto, na pressuposição da correspondência entre as estruturas íntimas

da realidade e as representações humanas.

Seguindo os passos de Descartes, a física newtoniana, em razão de seu êxito

no estudo particular sobre o movimento dos corpos, transforma o modelo clássico

da mecânica em paradigma da ciência em geral30. Newton parte do axioma

racionalista moderno que afirma o curso objetivo da natureza, que independe de

toda observação, e esforça-se para provar esta autonomia indutivamente, ou seja,

na observação neutra dos fenômenos dos movimentos dos corpos. Esta postura

indutiva, como afirma Cassirer (1948, p. 105), permite a observação das

regularidades dos fenômenos naturais, cuja constância das leis do movimento

garante a possibilidade de universalização do conhecimento científico.

Observação neutra da realidade: eis a palavra de ordem da perspectiva

mecanicista. Para tal, faz-se necessário a anulação da subjetividade humana no

processo de conhecimento. Isolar suas múltiplas determinações culturais para

fazer ressoar em seu interior esvaziado as leis regulares da natureza. Descartes,

iniciador desta perspectiva realista, insta-nos a abandonar nossos referenciais

advindos da “tradição”, assim como o empirista Francis Bacon, em sua “teoria dos

ídolos”. Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde os meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados, não podia ser senão muito duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências (Guinsburg; Romano; Cunha, 2010, p. 135).

Vão seria esperar-se grande aumento nas ciências pela superposição ou pelo enxerto do novo sobre o velho. É preciso que se faça uma restauração da empresa a partir do âmago de suas fundações, se não se quiser girar perpetuamente em círculos, com magro e quase desprezível progresso. [...] Resta-nos um único e simples método para alcançar nossos intentos: levar o homem aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas. [...] Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculos a própria instauração da ciência, a não ser que os

30 O predomínio deste modelo deve-se mais ao caráter utilitário e funcional de sua aplicação do que a sua capacidade de explicar profundamente a realidade. No plano social, o êxito prático deste modelo de racionalidade, dominador e transformador, se adequa aos interesses da burguesia ascendente no que tange à crença de compreensão das “leis” sociais para intervir no processo “evolucionário” da humanidade (Santos; Meneses (Orgs.), 2010, p. 15).

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homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam (Col. Pensadores, 2005, p. 38 e 39).

A perspectiva newtoniana clássica, tributária do racionalismo cartesiano,

supõe, portanto, a natureza fixa e a humanidade múltipla. É preciso equacionar os

termos a partir de estabelecimento metodológico rigoroso, tomando a matemática

como paradigma de exatidão31, reduzindo a variedade subjetiva e conduzindo o

encontro entre sujeito e objeto na fundação da ciência. Se o homem é múltiplo em

suas determinações, é mister anulá-lo como produtor de verdade. Atribui-se ao

“senso-comum” e a outros modos de compreensão da realidade invencionices

alheias às premissas que legitimam o verdadeiro saber, já que dão vazão às

“tradições” que as informam. A ciência não! Ela descreve, não inventa – dizem.

O paradigma científico mecanicista entra em crise no século XIX, com a

percepção de que o pluralismo encontra-se nos fenômenos naturais e não no

sujeito. Invertendo a equação, os filósofos românticos, na esteira das reflexões

críticas referentes aos limites do conhecimento feitas por Kant32, afirmam a

unicidade do homem em seu aparato cognitivo. Possuidor de estruturas internas,

as quais minimizam o “múltiplo” da vida, criando “regularidades” sobre a fluidez

do devir, o ser humano faz uso do intelecto como um instrumento biológico

mantenedor de sua carcaça orgânica. A verdade deixa de ser um problema

epistemológico para adentrar no campo da biologia. Não descrevemos a verdade

das coisas, mas impomos a elas a “verdade” do sujeito, a partir de categorias

intelectivas a priori, cujo fim é a subsistência do ser humano enquanto espécie. Como meio para conservação do indivíduo, o intelecto desenrola suas principais forças na dissimulação; pois esta constitui o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles aos quais é denegado empreender uma luta pela existência com chifres e presas afiadas (Nietzsche, 2008, p. 27).

31

A matemática fornece à ciência moderna o modelo de representação da própria estrutura da matéria, que faz Galileu proferir que o livro da natureza está inscrito em caracteres geométricos. Desta posição central da matemática, pode-se derivar a ideia de que conhecer significa quantificar, ou seja, desconsiderar completamente as qualidades em prol da objetividade do rigor das medições quantitativas (Santos, 2010, p. 25 e 26). 32 Até agora se supôs que todo conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém todas as

tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos através do que

ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver uma

vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se

regular pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a requerida possibilidade de um

conhecimento a priori dos objetos que deve estabelecer algo sobre os mesmos antes de nos serem

dado. (Kant, 1980, p.12).

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A despeito da valoração negativa que Nietzsche faz do aparato cognitivo

humano – demasiado humano, diria –, a ênfase recai na crítica à objetividade

como parâmetro do conhecimento. Para o filósofo alemão, o que explica a ilusão

do conhecimento puro das coisas é o esquecimento do processo de subjetivação, o

qual imprime sobre a realidade os quadros mensuradores da percepção

seccionadora humana33. O intelecto de forma ativa suprime o pluralismo em prol

da semelhança na constituição do conceito traduzido, equivocadamente, como

“fato”, verdade a qual se mantém autônoma frente ao sujeito. Este processo

“natural” de subjetivação não nos revela a “coisa-em-si”, apenas denota a

estratégia humana de perseverar em seu próprio ser ante um mundo hostil e

inacessível. Por falta de caninos afiados, diria o filósofo, produzimos o conceito,

este confundido pelo modelo da física clássica como verdade objetiva irretocável. Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual à outra, é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável, despertando, portanto a representação, como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse folha, tal como uma forma primordial de acordo com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contornadas [...], mas por mãos ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiável como cópia autêntica da forma primordial (Nietzsche, 2008 p. 35).

O conceito não é mais o reflexo interior das estruturas exteriores da natureza, mas a representação surgida nesta transcrição metafórica do real em pensamento e linguagem. Há perdas irreparáveis neste processo de subjetivação e seria vão o esforço moderno de suturar sujeito e objeto na descrição objetiva do mundo. Não temos acesso à “natureza” das coisas. Temos metáforas.

33 Os pais da física quântica ratificam no século XX a intuição nietzschiana acerca dos limites do aparato cognitivo humano:

Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem

interferir nele, sem o alterar, a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o

mesmo que lá entrou. (...) A ideia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos,

ou seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no

princípio de incerteza de Heisenberg: não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição

da velocidade e da posição das partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das

medições aumenta o erro da outra. Este princípio, e, portanto, a demonstração da interferência

estrutural do sujeito no objeto observado, tem implicações de vulto. Por um lado, sendo

estruturalmente limitado o rigor do nosso conhecimento, só podemos aspirar a resultados

aproximados e por isso as leis da física são tão só probabilísticas (Santos, 2010, p. 43-4).

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31

(O Homem) designa apenas as relações das coisas com os homens e, para expressá-las, serve-se da ajuda das mais ousadas metáforas. De antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora. (...) Acreditamos saber algo acerca das próprias coisas, quando falamos de árvores, neves e flores, mas, com isso, nada possuímos senão metáforas das coisas, que não correspondem, em absoluto, às essencialidades originais (Ibid., p. 31-33).

Nietzsche em sua crítica mordaz ao pressuposto da objetividade científica

abala o edifício lógico do pensamento moderno, atribuindo uma função

meramente biológica à razão. Contudo, o faz ainda no interior do paradigma

unitário excludente do modelo clássico. Mesmo conferido à natureza a pluralidade

ontológica denegada pelos realistas, o núcleo de dominação moderno não é

abalado, uma vez que sustenta a crença nas leis universais do pensamento: “O

imenso consenso dos homens acerca das coisas comprova a uniformidade de seu

aparato perceptivo” (Nietzsche, 2008, p.65). O conhecimento seria a projeção dos

homens nas coisas, e esta captura subjetiva da realidade se processaria do mesmo

modo, sendo este indivíduo celta ou aymara34. Enfim, invertem-se os termos da

relação sujeito-objeto, ataca-se a crença da neutralidade científica, mas se mantém

incólume a soberania epistêmica de um tipo de saber dado como universal.

Tal núcleo de dominação ocidental, isto é, a ideia de universalidade, será

somente abalado a partir da consideração das condições históricas de

possibilidade do saber moderno, e para tal far-se-á necessário romper a casca que

isola a ciência no interior da epistemologia.

Conferindo uma posição privilegiada em função dos métodos e pressupostos

estabelecidos nos debates científicos internos, o saber moderno isolou-se do meio

que possibilitou a sua emersão, circunscrevendo-se apenas a sua própria lógica,

sem referência a qualquer determinante da vida social. A crise do paradigma

34

Nietzsche afirma: se cada um de nós tivesse para si uma percepção sensível diferente, poderíamos por nós

mesmos perceber ora como pássaro, ora como verme, ora como planta, [...] ninguém falaria de tal regularidade da natureza, mas, de maneira bem outra, trataria de apreendê-la apenas como criação altamente subjetiva (Nietzsche, 2008, p. 43). Complementaríamos a ideia do filósofo alegando que se cada um de nós tivesse para si uma percepção diferente no campo cultural, ora percebendo a realidade como prussiano, ora com quéchuas, ora como pigmeus, não falaríamos tampouco de uma regularidade da natureza humana em seu caráter perceptivo, como faz Nietzsche ao dizer: “apenas aquilo que nós acrescentamos à natureza se torna efetivamente conhecido para nós, a saber, o tempo, o espaço e, portanto, as relações de sucessão e os números” (Idem).

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clássico com a percepção do pluralismo ontológico, explicitado pelos estudos da

macro (relatividade de Einstein) e da microfísica (teoria dos quanta), não abalou a

arrogância epistêmica de um saber que se coloca à parte dos condicionantes

sociais que a produziu, e da interferência de outros saberes. Cassirer exalta a

postura isolacionista da ciência em consonância com o criador da física quântica,

Heisenberg:

Desde mediados del siglo XIX, vemos como se proclama, de modo cada vez más

tenaz, el postulado de que las ciencias de la naturaleza, reflexionen críticamente

sobre sí mismas. [...] La necesidad de tales reflexiones se hallaba ya reconocida,

por tanto, dentro de la imagen del universo de la física clásica. Pero aún se hizo

más patente cuando esa imagen del universo empezó a vacilar al declararse la

„crisis de fundamentos‟ provocada por la teoría general de la relatividad e por el

desarrollo de la teoría de los quanta. Surgen ahora problemas que antes jamás

se habían presentado, por lo menos dentro de la órbita de las ciencias de la

naturaleza (Cassirer, 1948, p. 104).

Heisenberg, por sua vez, ressalta que as novas ideias físicas não nasceram

de ideias revolucionárias introduzidas de fora do campo científico, mas foram

impostas a partir do desenvolvimento investigativo da natureza pelo próprio

programa da física clássica. Não é por meio de especulações alheias às pesquisas

experimentais, mas no interior desta que surge um novo paradigma científico

(Ibid., p. 105). Desta forma, no âmbito autocentrado da epistemologia, Heisenberg

mantém blindada a ciência de interferências de saberes não legitimados por ela.

Ele silencia sobre as suas condições sociais de possibilidade, ao mesmo tempo em

que ratifica o caráter soberano da episteme dominante. Ao derrubar o monismo

ontológico e epistemológico da perspectiva mecanicista em prol da pluralidade no

campo física quântica, não derruba as fronteiras que separam o saber científico,

mesmo que em outras bases, de “outros” saberes não estruturados pelas premissas

deste.

Sejamos taxativos para chegarmos aonde queremos: o problema da verdade,

tão caro à modernidade, não é um problema epistemológico como queria a física

mecânica e também não se reduz apenas à biologia em referência ao uso utilitário

da racionalidade em Nietzsche. O problema do fato “objetivo” é meramente de

ordem sociológica, isto é, recai sobre os efeitos de sua crença na “práxis” social

(Nunes, 2010, p. 270). A despeito da opinião de um dos pais fundadores do novo

paradigma científico emergente, Heisenberg, o fato é que vivemos na crise do

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paradigma clássico o “descentramento” do núcleo de dominação ocidental

baseado na crença do valor universal de seu saber, o que colocar todos os outros

saberes, embaçados até então pelos critérios normativos da “episteme” moderna,

no mesmo campo de legitimidade.

Se por um lado o domínio solipsista da epistemologia foi reforçado, como

afirma Cassirer, por outro a crise da mecânica enquanto modelo universal fez com

que a nova física se aproximasse de outros saberes até então vistos como

ilegítimos. Ilya Prigogine, por exemplo, em sua teoria das partículas dissipativas,

nos fala de uma “nova aliança” da ciência, em diálogo simétrico com outras

“racionalidades”. O físico explica o comportamento das partículas através de

conceitos oriundos das ciências sociais, não tão privilegiadas até então no meio

científico. Lovelock, em seu modo de enxergar a vida no planeta, afirma que

nossos corpos são construídos por “cooperativas” de células. E para além das

dicotomias modernas, que opõe às ciências da natureza com sua lógica infalível às

ciências sociais, demasiadamente subjetivas, Fritjof Capra nos fala de uma aliança

da nova física com o Taoísmo, exaltando a vocação holística deste novo modelo

emergente. Recusa, assim, o dualismo reducionista sujeito-objeto, que fundara o

paradigma dominante tomando de empréstimo o pensamento oriental (Santos,

2010, p. 66 e 67).

Podemos afirmar que é para além da racionalidade científica que a nova

ciência se estrutura, recusando-se à soberania epistêmica que lhe servira de

ideologia mal disfarçada. Não obstante aos chiados renitentes de alguns

pensadores e cientistas apegados ao projeto epistemológico clássico, como, por

exemplo, Cassirer e Heisenberg, a hierarquização entre saberes legítimos,

avalizados pelos pressupostos da própria ciência, e àqueles remetidos ao limbo do

“senso-comum” ou às tradições dos povos, perdeu completamente as suas bases

de sustentação. Deste modo, já não podemos avaliar os saberes a partir das

premissas de um saber com pretensão de universalidade. Neste novo modelo de

simetrização dos conhecimentos, designado por Santos de “ecologia dos saberes”

(Ibid., p. 61-65), fortemente influenciado pelo pragmatismo clássico e pelo

neopragmatismo35, em substituição à ideia moderna de “soberania epistêmica”, a

35

Referência a Dewey, Peirce, James e Rorty. Ver mais em: Nunes, 2010.

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adjudicação não é mais autorreferida por uma suposta perspectiva totalizante, pois

todas as cosmovisões nada mais são do que um produto histórico condicionado

socialmente.

[...] estaríamos perante uma crise final da epistemologia ou, pelo menos, perante a sua naturalização ou historicização definitiva, libertando-a da pretensão de se estabelecer como o lugar de determinação do que conta como conhecimento e da definição dos critérios que permitem distinguir e adjudicar a verdade do erro (Nunes, 2010, p. 262).

No estertor do projeto moderno, no descentramiento de seu núcleo de

dominação, nega-se um espaço privilegiado do conhecimento na medida em que a

compreensão do mundo não se esgota mais na compreensão ocidental do mundo.

O novo paradigma emergente, horizontal em sua essência, recusa a ambição

legislativa da epistemologia em consideração à afirmação positiva das

diversidades de saberes que não devem ser mais hierarquizados. Somente a partir

de seus efeitos práticos, os conhecimentos podem ser ajuizados, inclusive o

pensamento ocidental. Se o valor da ciência não se mede mais pelos seus

pressupostos endógenos, mas pela sua capacidade de intervenção real, nada mais

coerente do que avaliá-la pragmaticamente a partir de seus efeitos sobre as

condições de vida das sociedades. É neste sentido que avaliaremos a crítica dos

aymaras ao paradigma excludente da modernidade clássica, em seu

questionamento à ciência moderna enquanto projeto eurocêntrico e enquanto parte

da dinâmica da “colonialidade”, que marca a relação entre os saberes científicos e

outros modos de conhecimento (Ibid., p. 269). Para tal, concentrar-nos-emos nos

manifestos indígenas redigidos em contextos históricos distintos, mas marcados

pela emergência do poder autóctone fundado na valorização cultural originária.

Em 1973, o recém-fundado grupo katarista redige em meio à ditadura de

Hugo Banzer o Manifesto de Tiahuanacu, recusando a subalternidade paternalista

que quéchuas e aymaras estavam submetidos. Por sua vez, em 2001, na esteira da

crise neoliberal, evidenciada pela “Guerra da Água”36 em Cochabamba,

movimentos campesinos e indígenas, sindicatos rurais e operários, associação de

bairros e organizações autônomas lançaram as suas bases ideológicas em

36 Em 2000, o governo de Hugo Banzer (1997-2001) instituiu uma lei de privatização da água, o que se desdobrou em intensas mobilizações que levaram o governo a cancelar os contratos com o consórcio que havia ganhado a licitação para exploração da água.

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Cochabamba, no mesmo espírito katarista de outrora: a valorização das raízes

culturais indígenas.

Na impossibilidade de um estudo etnográfico pelo esforço de constatação

empírica das persistências étnicas aymaras no seio da vida comunitária, o qual

justifique a narrativa política de resistência ao colonialismo interno, ancorado no

universalismo estatal, trataremos tão somente do discurso de afirmação indígena

expresso nos dois mais importantes manifestos indianistas da história recente:

Manifesto de Thiauanaco, de 1973, e o documento do VI Congresso do MAS, de

2001. Há de se ressaltar que a expressão da diferença étnica inscrita em

documentos formais dos movimentos indígenas, até então minoritário dentro das

lutas populares, em sua ambiguidade discursiva aponta para o deslocamento dos

mecanismos regentes de dominação cultural, que supõe também a dominação

classista. É na denúncia dos efeitos corrosivos da lógica unitária da ontologia

moderna sobre o modo de organização comunitário, intensificado pelo

neoliberalismo, que a crítica à unicidade cultural ocidental transparece em todas

as suas formas de expressão. Tentaremos capturar nas dobras do discurso

indianista a novidade em curso. Comecemos pelo contexto histórico.

O ciclo de governos militares (1964-1978) imposto à Bolívia não

modificou a orientação estatista e o capitalismo de estado edificado, nas décadas

pós-revolução de 1952. Exatamente em revogação do paternalismo, o qual

informa as relações interclassistas e interculturais do país andino, que os kataristas

lançam seu manifesto de afirmação indígena em 1973, como denúncia das

distintas formas de colonialismo interno – da exploração econômica à dominação

epistêmica.

„Un pueblo que oprime a otro pueblo no puede ser libre‟, dijo el Inca Yupanqui a

los españoles. Nosotros, los campesinos quechuas y aymarás lo mismo que los de

otras culturas autóctonas del país, decimos lo mismo. Nos sentimos

económicamente explotados y cultural y políticamente oprimidos. En Bolivia no ha

habido una integración de culturas sino una superposición y dominación habiendo

permanecido nosotros, en el estrato más bajo y explotado de esa pirámide

(Manifesto de Tiahunacu, 1973).

O processo de modernização instado pelo MNR de Victor Paz Estenssoro, a

partir da Revolução de 1952, encerrou o período de hegemonia oligárquica dos

grandes barões do estanho e do ideário liberal que orientava estas elites. Iniciou-

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se o período do protagonismo dos grupos subalternos, no que tange à orientação

das políticas públicas. Sob hegemonia operária (mineira) e fortemente organizado

pela COB, o bloco popular foi capaz de impor importantes medidas de

reestruturação econômica e social alçando à cidadania milhões de pessoas, que

também foram incorporadas ao mercado de trabalho. Deu-se cabo dos trabalhos

servis impostos aos camponeses-indígenas (pongueaje, por exemplo37); aprovou-

se uma reforma agrária, incorporando duas milhões de pessoas ao mercado

nacional como produtores; nacionalizou-se as minas, criando para administração

delas a COMIBOL, com gestão operária; aprovou-se uma reforma educativa,

ampliando de maneira significativa as escolas no campo. E, por fim, aprovou-se a

universalização do direito político, que afetou 70% da população, até então

excluída do processo democrático.

A centralidade operária no processo de modernização da sociedade

boliviana encobriu de certo modo a questão indígena, que fora supostamente

suplantada pela reforma agrária. As lideranças do processo revolucionário, tanto

os setores médios, comandados por Paz Estenssoro, quanto os mineiros da COB,

que superestimavam o classismo em sua ação política, consideravam o “índio”

como um falso problema. A categoria “índio” era utilizada no passado recente

para justificar racialmente a exploração e a exclusão destes setores. Uma vez

incorporados ao Estado e ao processo produtivo, mesmo que de forma

subordinada, não haveria mais sentido esta identificação passadista, referente a

uma sociedade binária que opunha racialmente os índios aos brancos. Longe do

pluralismo étnico, paisagem cultural do fim de século, buscava-se substituir o

binarismo racial pela lógica unitária inscrita na institucionalidade do poder estatal,

o qual reconhece apenas uma única nação a partir dos próprios critérios definidos

por seus operadores políticos, todos egressos do MNR. A ideologia nacionalista,

adotada pelo Estado a partir de 1952, borrava estas clivagens raciais em promoção

da mestiçagem enquanto paradigma de inclusão, mas sem excluir o racismo das

práticas sociais de fato. O índio racialmente excluído tornava-se o mestiço

identificado produtivamente com o “campesinato”, reconhecido pelo Estado e

portador de direitos e valores modernos orientados para o futuro. A prédica de

37 Embora abolidos em 1945, os trabalhos compulsórios mantiveram-se inalterados na prática social.

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37

Mariátegui nos anos 20 parece ter se realizado com a Revolução Boliviana de

1952:

A reivindicação indígena carece de concretização histórica [...] Para adquiri-la – isto é, para adquirir realidade, corporalidade – precisa se transformar em reivindicação econômica e política. [...] A miséria moral e material da raça indígena aparece demasiado nítida como uma simples consequência do regime econômico e social que há séculos pesa sobre ela (Mariátegui, 2003, p. 105).

Esta leitura demasiado otimista não correspondia de fato à realidade social.

Ao que pese os ganhos materiais e as medidas de ampliação de direitos na

interpelação sindical ao Estado, recomposto após o arrebatamento popular

revolucionário, o núcleo de dominação manteve-se incólume apesar de suas

formas mais matizadas de atualização neste contexto de assenso democrático. De

modo distinto a querência de Mariátegui, que evocava a revolução socialista

conduzida pelos operários para findar todos os males sociais dos povos indígenas

dos Andes, a Revolução de 1952 na Bolívia fora policlassista, de conteúdo

político monocultural, no seu intento frustrado de fundar a nacionalidade

boliviana. Esteve, sim, fiscalizada pelos trabalhadores, que rapidamente tomaram

sua cota de poder na condução do Estado (Gisbert, 2008, p. 517), mas não

findaram as fraturas étnicas e classistas assentadas na diferença de linhagem,

conhecimento letrado e dinheiro: elementos estes ainda garantidores do

monopólio político (Linera, 2010, p. 106). Para Linera, a lógica colonial e o

Estado racista ressurgiram após a Revolução, com práticas de segregação mais

sutis, mas não menos perversas:

Como no século XVI, depois de 1952, um sobrenome de „estirpe‟, a pele mais branca ou qualquer certificado de branqueamento cultural que apagassem os vestígios de indianidade passaram a contar como um ponto a mais, como um crédito, um capital étnico capaz de lubrificar as relações sociais, outorgar a ascensão social, agilizar trâmites e permitir o acesso aos círculos de poder (Ibid., p. 261).

São inegáveis as conquistas populares advindas do processo revolucionário

neste período de construção do capitalismo de Estado, no entanto, cristalizou-se

um modo subalterno de interpelar o poder público. A questão principal residia

justamente no papel querelante assumido pelas classes populares, recusando-se ao

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protagonismo político. O poder com a Revolução tornou-se interpelável, mas não

factível de regência direta38.

[...] a democratização do espaço político é meramente interpeladora, não executiva; isto é, a plebe se sente com o novo direito de falar, de resistir, de aceitar, de pressionar, de exigir, de impor um rosário de demandas aos governantes, mas jamais poderá ver a si mesma no ato de governar. É como se a história de submissões operárias e populares tivesse se fixado na memória como um fato inquebrantável, e, diante do poder, a massa só pudesse se reconhecer como sujeito de resistência, de protesto ou de comutação, mas nunca como sujeito de decisão, de execução ou soberania exercida. A imagem que de si mesmo construirá a sociedade trabalhadora é a do querelante, não a do soberano (Ibid., p. 106).

Coube o papel decisório às lideranças do MNR na condução do processo

político, dando vazão às demandas operárias e indígenas de acordo com a

correlação de forças. A divisão legal das terras no altiplano, por exemplo, seguiu a

expropriação direta dos latifúndios, executados por milícias populares armadas em

1953. Com exceção das regiões despovoadas do Oriente, a hacienda39 foi abolida

e a terra passou para as mãos dos camponeses índios (Klein, 2008, p. 242), mesmo

com a relutância do MNR, receoso em contrariar o governo estadunidense40.

Querelantes, as classes populares não interferiram no projeto de reforma

agrária, que malogrou em seu intento produtivo ao longo dos anos. Exigiram,

pressionaram, tomaram à força o que lhes era recusado secularmente, contudo

ficaram à mercê dos tecnocratas do partido, que impingiram a criação do

minifúndio privado. Este se reduzia ao passar por herança de pai para filho. Além

disso, não refletia a realidade das terras da comunidade, nem as experiências

produtivas e o sistema de trabalho coletivo da tradição quéchua-aymara (Gisbert,

2008, p. 518). Em suma, o baixo nível econômico do setor agrícola manteve a

Bolívia dependente de importações de alimentos, apesar da radicalidade da

reforma que aboliu o latifúndio, o qual representava 95% das terras cultiváveis do 38 Segundo Linera:

[...] o mineiro não se ambiciona no Estado com titularidade governativa. Ao contrário, ambiciona-se poderosamente no Estado como súdito, como seguidor, arrogante e belicoso, mas tributário de adesão e consentimento negociados. O operário não se viu jamais, a não ser em momentos extremos e efêmeros, como soberano, pois o soberano não pede, exerce; não reclama, sentencia (Linera, 2010, p. 136). 39 Grande propriedade de terra. 40 O MNR se preocupava com as possíveis reações do governo dos EUA referentes à estatização da mineração e à reforma agrária. Segundo Klein, o governo tomava tais medidas pressionado pelos trabalhadores. Em plena Guerra Fria, o EUA intervinha na Guatemala para derrotar o governo revolucionário. As lideranças do MNR não estavam dispostas a contrariar um aliado tão poderoso. Fez-se a reforma agrária, mas com pesadas indenizações aos haciendados. Ver mais em: Klein, 2008, p. 239-240.

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país41. Os kataristas expressam o fracasso retumbante da Reforma, no Manifesto

de 1973:

La política agraria de nuestros gobiernos ha sido nefasta. Estamos librados a

nuestra propia suerte. El país gasta más de 20 millones de dólares en importar

del exterior productos agrícolas que nosotros podríamos producir. (…) Con la

Reforma agraria los indios nos liberamos del yugo ominoso del patrón. Es una

pena que esta no haya traído todos los bienes que de ella se esperaba debido

sobre todo a que está concebida en un esquema demasiado individualista ya que,

por obra de algunos elementos derechistas incrustados dentro del MNR no fue

implementada con otras leyes que favorezcan la inversión, la tecnificación y la

comercialización de productos (Manifesto de Tiahunacu, 1973)

De fato, a reforma agrária, com a erradicação das haciendas e dos trabalhos

compulsórios, significou a melhoria da condição de vida das populações rurais.

Estas se tornaram mais autônomas frente ao proletariado urbano e com maior

poder de interlocução perante as autoridades políticas. No entanto, tornaram-se

também mais conservadoras e indiferentes ao processo de homogeneização

cultural, imposto de cima para baixo pelo Estado42.

Satisfechos en la cuestión de la tierra, los campesinos se convirtieron en una

fuerza relativamente conservadora en el país e cada vez se mostraron más

indiferentes con sus antiguos colegas urbanos. Durante las dos generaciones

siguientes su principal preocupación fue el suministro de servicios modernos de

salud y de educación a sus comunidades, además de la garantía de sus títulos de

propiedad de la tierra (Klein, 2008, p. 242).

Segundo Klein, a nova orientação da política econômica, expressa na

estatização das minas, na destruição do sistema de latifúndio e na transferência

massiva de recursos aos programas de bem estar, provocou o colapso na

combalida economia boliviana. O governo de Paz Estenssoro aumentou a

circulação de moedas, gerando uma das inflações mais altas do mundo, na época

(1952-1956). O custo da vida aumentou em 2000%, com a inflação passando a

900% ao ano (Ibid., p. 243). Diante deste cenário crítico, as classes médias,

núcleo social do MNR, afastaram-se do partido, que recompôs a sua base com o

apoio da massa camponesa, satisfeita com a reforma agrária. Eis o embrião do

“pacto” que orientará a política boliviana pelo próximo um quarto de século: El genio de Paz Estenssoro fue percibir la importancia de esta fuerza totalmente

nueva e absolutamente conservadora en el escenario nacional. Cuando su poder

declino entre sus antiguos partidarios en la clase media y creció su dependencia

de la COB revolucionaria y de los grupos obreros, se dio cuenta de que tendría

41 Segundo Klein: “la reforma agraria redujo drásticamente el suministro de alimentos a las

ciudades, forzando la importación masiva de alimentos para impedir la hambruna” (Ibid., p. 243). 42 Reivindicação de escolas, sem problematizar os métodos e conteúdos.

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que crear con los campesinos una nueva base de poder para las alas centristas y

derechistas de su partido. Esta manobra tuvo tanto éxito, que el cuarto de siglo

que siguió el campesinado se convirtió en el bastión de los elementos

conservadores del gobierno. Y una vez sellada, esta alianza sobrevivió a la

inicial destrucción del MNR y aun al retorno de los regímenes militares (Ibid., p.

242). Os regimes militares, inaugurados a partir de 1964, não alteraram a

substância deste pacto estatal com a maioria indígena-camponesa do país.

Escusando Paz Estenssoro do poder, e tomando para si a gerência política, os

militares deram prosseguimento à linha adotada pelo MNR: mantiveram-se as

bases socioeconômicas da Revolução, o compromisso com a Reforma Agrária e

com a mobilização governista do campesinato (Klein, 2008, p. 250). No governo

do General Barrientos (1964-1969), firmou-se o “pacto militar-campesino”

conhecido também como “pongueaje política”, instrumento político de controle e

respaldo aos governos das forças armadas até 1982, pelos menos. Podemos

afirmar que o prolongamento formal da relação subordinada de amplos setores

camponeses ao Estado configurou-se como o maior legado da Revolução de 1952

para os grupos que hegemonizaram o poder. A maioria campesina-indígena

tornara-se a base social legitimadora de qualquer governo em um país de maioria

rural. Os kataristas, em 1973, informam-nos sobre esta “cooptação”:

El campesinado ha sido una fuerza pasiva porque siempre se quiso que fuera

algo totalmente pasivo. El campesinado es políticamente lo que los políticos han

querido que sea: un mero sustentáculo para sus ambiciones. Solamente será

dinámico cuando se lo deje actuar como una fuerza autónoma y autóctona. En el

esquema económico, político y cultural actual de nuestro país es imposible la

real participación política del campesinado porque no se le permite que así sea

productos (Manifesto de Tiahunacu, 1973).

O Gal. Barrientos, articulado com um conglomerado de forças de centro e

de direita, de inclinação fascista (Frente da Revolução Boliviana – FRB), afastou

a esquerda, que lhe deu respaldo no golpe de 1964; perseguiu os setores mais

radicalizados da esquerda combativa; decretou a ilegalidade de partidos e

sindicatos; baixou os salários; massacrou operários em operações de extermínio43;

e institucionalizou a tortura, seguindo o revés político da ascensão de governos

militares de direita no cone sul (Chiavenato,1981, p. 197-8). No ambiente

43 Em setembro de 1965, o exército boliviano comandado pelo líder camponês Zacarías Plaza metralhou dezenas de mineiros, no episódio conhecido como “Massacre de Siglo XX”. Ver mais em: Chiavenato, 1981, p. 200. Em 1967, na mesma mina, em meio à festa de São João, as forças do exército atacaram o acampamento mineiro, sob a justificativa de acabar com um foco subversivo de apoio a guerrilha de Che Guevara. Ver mais em: Gisbert, 2008, p.537.

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altamente polarizado da Guerra Fria, a Bolívia entrara no período de caças às

bruxas articulada à política anticomunista expressa na “doutrina de segurança

nacional”, promovida pelo Departamento de Estado Americano44. Ustedes Hermanos campesinos voy a darles una consigna como líder: el primero

agitador comunista que vaya al campo, yo los autorizo, me responsabilizo,

pueden matarlo. Sino me traen aquí para que se entienda personalmente

conmigo. Yo les daré una recompensa. A ellos les interesa el desorden y pobreza

que es caldo de cultivo (Chiavenato, 1981, p.195).

As palavras acima, do Gal. Barrientos, mostram-nos dois aspectos

complementares do modo de atuação dos militares frente ao Estado: de um lado, a

inclemência diante dos movimentos populares de esquerda com algum vínculo

real ou fictício com o comunismo; e, por outro lado, o comportamento paternalista

dirigido às bases camponesas de apoio ao governo, prometendo prendas em troca

da subordinação.

Com base social solidamente fincada no altiplano e nos vales

cochabambinos, os governos militares tomaram para si a tarefa de varrerem a

esquerda organizada da Bolívia, com a complacência de amplos setores

campesinos. Excetuando o governo progressista do Gal. Juan José Torres45 (1970-

1971), esta é a tônica do período, radicalizada pelo governo ditatorial mais feroz

do Gal. Banzer (1971-1978). É exatamente este quadro que o movimento

katarista46 romperá ao publicar em 1973, em plena ditadura, o Manifesto de

Tiahuanacu.

Mantendo-se autônomo frente às organizações mineiras e ao poder público,

sua expressão teórica acusa o fracasso do projeto de incorporação do índio à

modernidade via Estado, no intento de alterar sua autopercepção identitária. Ao

mesmo tempo, aponta a limitação do projeto libertário das organizações operárias,

que reduzira toda opressão à dominação de classe, e as demandas políticas aos

ganhos econômicos. O Manifesto reivindica as lutas anticoloniais dos 44 En la presidencia de Johnson la politica latinoamericana estuve signada por la llamada

Doctrina de Seguridad nacional, de profundo carácter anticomunista y de impulso de la represión

en el interior de cada país para evitar experiencias como la cubana. […] Las Fuerzas Armadas

latinoamericanas no sólo fueron fortalecidas, sino apoyadas para ejercer un control directo en la

política y las decisiones nacionales, que se tradujo en el ejercicio directo del poder (Gisbert, 2008, p. 532). 45 Comandou um golpe, derrubando em 1970 o Gal. Ovando, com apoio das forças de esquerda. Gal. Torres ofereceu à COB o co-governo com participação operária, promoveu a reposição salarial dos mineiros, impôs o controle fiscal das divisas estrangeiras, instituiu o monopólio estatal do comércio exterior, dentre outras medidas populares. Ver mais em: Gisbert, 2008, p. 543. 46 Trataremos das bases históricas que explicam o surgimento do movimento katarista no final dos anos 60 somente no capítulo 3 – Identidade Étnica e Movimento Katarista.

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antepassados indígenas, construindo uma narrativa de valoração das tradições

comunitárias ancorados em uma cosmologia holística, da qual deriva uma ética

cooperativa: “ama sua, ama llula, ama q‟ella (não roubar, não mentir, não ser

covarde)” (Camargo, 2006, p. 168). Reconhecem os ganhos da Revolução de

1952, como a distribuição de terra e o sufrágio universal, mas recusam-se à

subordinação cultural ao Estado monocrático, denunciando a permanência das

práticas supressivas dos valores indígenas (“epistemicídio”). […] El proceso verdadero se hace sobre una cultura. Es el valor más profundo

de un pueblo. La frustración nacional ha tenido su origen en que las culturas

quechua y aymará han sufrido siempre un intento sistemático de destrucción.

Los políticos de las minorías dominantes han querido crear un desarrollo basado

únicamente en la imitación servil del desarrollo de otros países, cuando nuestro

acervo cultural es totalmente distinto. Llevándose también de un materialismo

práctico han llegado a creer que el progreso se basa únicamente en aspectos

económicos de la vida. Los campesinos queremos el desarrollo económico pero

partiendo de nuestros propios valores. No queremos perder nuestras nobles

virtudes ancestrales en aras de un pseudo-desarrollo. Tememos a ese falso

"desarrollismo" que se importa desde afuera porque es ficticio y no respeta

nuestros profundos valores. (Manifesto de Tiahunacu, 1973).

A politização da etnicidade, na reivindicação da centralidade da cultura

como modo de afirmação identitária, comporta o elemento de descentramiento do

núcleo de dominação ocidental, não sem ambiguidades, inscrito na

institucionalidade estatal: a ideia de universalidade do modus operandi do saber

moderno. O texto constrói uma narrativa da longevidade da resistência indígena,

ultrapassando a conjuntura política na qual se inscreve, e maneja a denúncia da

prática colonialista ocidental de uniformização do mundo com a valoração do

acervo cultural indígena. Mesmo reconhecendo os ganhos da Revolução de 1952

sabem-se cidadãos, mas de segunda classe: “Somos extranjeros en nuestro propio

país”. Tributários da educação formal – a qual valorizam –, estendida ao território

nacional, alcançando rincões ermos do altiplano e dos vales, enfatizam o esforço

Estatal de assimilar o índio à cultura ocidental, negando-lhes seus valores. La escuela rural por sus métodos, por sus programas y por su lengua es ajena a

nuestra realidad cultural y no solo busca convertir al indio en una especie de

mestizo sin definición ni personalidad, sino que consigue igualmente su

asimilación a la cultura occidental y capitalista (Manifesto de Tiahunacu, 1973).

Aos efeitos supressores do desenvolvimentismo econômico da perspectiva

dominante, derivado de um saber instrumental, os kataristas propõem o

desenvolvimento sustentável. Eles partem de seus próprios valores “originários”,

na proposição daquilo que Santos (2010) nomeia como “ecologia dos saberes”,

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em oposição à monocultura da ciência moderna: “Queremos vivir íntegramente

nuestros valores sin despreciar en lo más mínimo la riqueza cultural de otros

pueblos”. A interculturalidade torna-se a tônica do discurso, recusando com isso a

substituição de um saber totalitário, que se quer objetivo e universal, por outro

reivindicante de uma nova soberania epistêmica47. Não repudiam a ciência e seus

efeitos na práxis social, reivindicando-a sob as matrizes cosmológicas indígenas:

“Los campesinos queremos el desarrollo económico pero partiendo de nuestros

propios valores”. Não recusam o ingresso à modernidade desde que não lhes

sejam impostos valores que vão contra aquilo que são ou querem ser: “Debemos

tecnificar y modernizar nuestro pasado pero de ningún modo debemos romper

con él”.

Nas dobras do discurso afirmativo da autonomia indígena, que reflete mais

um desejo que uma realidade efetiva, pode-se perceber ainda o comportamento

petitório em relação ao Estado. Vê-se o paternalismo atualizado no

questionamento de sua vigência, na medida em que os kataristas elegem como

estratégia política de afirmação étnica a criação de um partido que represente,

dentro da lógica dominante, os interesses indígenas. Paradoxalmente, pretende-se

afirmar a suposta autoctonia originária pautada por uma cosmologia holística e

uma ética coletivista, através de uma forma de organização social alheia às

estruturas de poder local: o partido. Recusam-se teoricamente os princípios

universalistas da modernidade em respeito à diversidade cultural. Contudo, é

proposta uma ação política no interior da racionalidade moderna, que predica,

como já afirmado acima, um sistema normativo de generalidade abstrata, que

exclui formas tradicionais – “pré-modernas” – de organização do poder48. Em

suma, reconhece-se a impossibilidade de participação política do campesinato em

função do modelo econômico, social e cultural excludente, mas elege-se a “forma

partido” atuando dentro do Estado como: “el único medio para que puede existir

una participación política real y positiva” (Manifesto de Tiahunacu). Para que exista un equilibrio de intereses y de representación los

campesinos deben tener su propio partido que represente sus intereses

47 Felipe Quispe, representante da vertente do katarismo revolucionário, afirmará que, em Qollsuyo, a cultura originária será hegemônica, num contexto de assimilação da cultura q‟ara aos valores indígenas preponderantes. Em Quispe, por exemplo, não vemos a defesa da interculturalidade como se expressa no Manifesto, mas somente a inversão dos papeis culturais de dominação. Ver mais no terceiro capítulo desta dissertação, pp. 106. 48 Esta contradição pode ser percebida na atualidade com a eleição de Evo Morales à presidência da República em 2005, pelo MAS.

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sociales, culturales y económicos. Este será el único medio para que

puede existir una participación política real y positiva, y la única

manera de hacer posible un desarrollo autentico e integral en el

campo. (Manifesto de Tiahunacu, 1973).

No interior destas ambiguidades, o katarismo se fará presente dentro dos

movimentos sociais e dos sindicatos camponeses, crescendo o seu raio de ação na

afirmação da etnicidade enquanto capital político. Com força mobilizadora, ainda

que minoritária no momento de sua emergência, sua importância reside na quebra

do imaginário da passividade indígena, expressa no pacto militar-campesino e no

ideário da esquerda marxista que não enxergava o camponês enquanto gestor de

seu próprio destino49. Ainda que expresse suas demandas em caráter petitório,

buscando uma inclusão negociada dentro da ordem vigente, seu reclamo de

autonomia política e econômica associado à afirmação cultural de seus modos

originários de significação da vida, terá efeitos duradouros nas formas de

organização social e na atuação política dos movimentos sociais indígenas das

décadas seguintes. Minoritários, se tornarão hegemônicos a partir da restruturação

da composição produtiva na Bolívia em 1985, o que afeta sobremaneira a

condição operária e a identidade classista que conformava politicamente a ação do

proletariado boliviano.

No novo contexto de crise do Capitalismo de Estado em meados dos anos

80 e de desagregação das formas obreristas de identidade coletiva, as quais

informavam os sindicatos urbanos, renova-se o discurso indianista, maturando as

demandas étnicas propagadas nos anos 70 pelos kataristas. Em plena regência de

um novo modelo societário – o neoliberalismo – reconstituem-se os laços de

coesão comunitária fragilizados pelas políticas de mercado, cujo discurso

multiculturalista se contrapunha às medidas efetivas de privatização das terras

comunais, o que afetara radicalmente a reprodução da vida social dos povos

indígenas.

No segundo governo de Gonzalo Sanches de Lozada (2002-2003), do MNR,

ante a radicalização das medidas neoliberais expressas no aumento de imposto

49 A vertente sindical do movimento katarista tomou forma com a criação da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) em 1979, fato que expressa simbolicamente a ruptura com o pacto militar-camponês e a tutela deste setor ao Estado. (Linera, 2010, p. 322).

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sobre o salário50, em fevereiro, e a exportação do gás natural para o EUA através

de portos chilenos, em Outubro de 2003, as redes comunais serão ativadas no

campo e nas cidades. E sob o discurso indianista tributário do katarismo de

outrora, ocorrerão mobilizações massivas contrárias à modernização neoliberal. A

vertente de corte mais moderada, estruturada em uma confederação flexível de

sindicatos e movimentos sociais (Instrumento Político de Soberania Popular –

IPSP), logo convertida em partido político (Movimento ao Socialismo)51, tomará

para si a tarefa de estruturação de uma narrativa anticolonial. Ela apontará os

limites do neoliberalismo dentro do contexto mais amplo, das restrições de todo e

qualquer projeto de modernização ocidental assentado no a priori universalista da

ontologia clássica hegemônica.

Analisemos, portanto, os princípios ideológicos do MAS, redigido no V

Congresso de Oruro, em 2003, para nos acercarmos da radicalidade de suas

asserções sobre a crise da modernidade em si mesma (Blaser, 2007) e o

descentramiento do fato colonial (Taipa, 2007): Se han cumplido 500 años de la presencia europea y 176 de vida republicana

durante estos 500 años hemos estado dominados por la cosmología de la cultura

occidental, dominación que no ha alcanzado ninguno de sus objetivos (Nuestros

principios ideológicos).52

As primeiras linhas evidenciam o fato colonial, expresso na subordinação

dos povos originários à cosmologia da cultura ocidental desde a presença europeia

em Qolasuyo. Extravasando os limites da dominação econômica e política,

apontam a cultura como eixo fundador do colonialismo, em seu intento epistêmico

de supressão dos saberes, que informam toda a dinâmica da vida social dos povos

originários, e imposição do paradigma civilizatório europeu. A despeito do projeto

alienígena que se instaura sob a promessa de modernização, os masistas apontam

a continuidade histórica da dominação colonial, em função da prevalência da

perspectiva ontológica do saber moderno. Este demarca a sua superioridade e seu

50 Em fevereiro de 2003, o presidente Sanches de Lozada apresentou um projeto de lei que estabelecia o congelamento salarial e um incremento de 12,5% de impostos que afetavam 20% dos contribuintes, o que gerou uma onda de rebeliões em El Alto, La Paz, Cochabamba, Chapare, Santa Cruz e Oruro. 51 Estudaremos mais profundamente esta vertente katarista, assim como outras mais radicais, no terceiro capítulo desta dissertação. 52 Movimiento Al Socialismo – Mas. Disponível em <http://www.archivochile.com/Portada/bol_elecciones05/bolelecciones0010.pdf.>. Acesso em: 12 ago 2015.

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monopólio na exclusão de todas as formas de concepção do mundo que não

atendam aos preceitos pré-definidos no interior de sua própria lógica.

En la era colonial, con la plata del cerro de Potosí, hemos financiado la

revolución industrial en Europa, pero nosotros no nos hemos industrializado.

Con la República hemos fortalecido las economías de Europa y Estados Unidos,

nuestro estaño sirvió para eso, pero no para industrializarnos. La goma, la

castaña, la quinua sirvieron para aumentar el poder de Europa y Estados Unidos

y no para tomar el camino de nuestra industrialización. Hoy esta misma

cosmología de la cultura occidental nos ofrece que exportando gas ingresaremos

a la ruta industrialista, es decir, seremos un país moderno. Otra gran mentira,

porque no hay indicio de que caminemos por la ruta industrialista, modernista al

contrario hemos aumentado nuestra condición de ser simples y exportadores de

materias primas (Idem).

A crítica contextual reporta-se, portanto, para além da conjuntura política

neoliberal, e demarca as fronteiras entre o discurso emulador moderno, o qual

aponta a via do desenvolvimento industrialista na aceitação dos distintos projetos

de modernização oferecidos à Bolívia – sempre atualizados no fracasso do

antecedente. E também indica a realidade efetiva das maiorias indígenas, que

atravessam a história e os projetos na mesma condição de exclusão e

subordinação, isto é, “estrangeiros em sua própria terra”.

Desde la vigencia del 21060, nos han calificado de un país de en VIAS DE

DESARROLLO, decir, ya no somos atrasados, si dependientes, ni exportadores

de materias primas, nos están diciendo que hemos tomado el camino de nuestra

industrialización que hemos ingresado a la modernidad.

Que la economía de mercado con capitalización nos conduce a la modernidad, es

decir, nos conduce alcanzar los objetivos de la cosmología de la cultura

occidental. El resultado de estas ofertas ha sido: 1. Somos el país mas pobre de

América Latina el 97% de los hombres, mujeres y niños que viven en el área

están en la extrema pobreza, en las ciudades el 60% de los habitantes están en la

misma situación. El promedio de vida en el área rural es de 50 a 55 años.

Nuestros niños y niñas están naciendo con menos de 2 kilos, es decir, nacen con

deficiencias físicas y mentales. La tasa de desempleo real sobre pasa el 30% de

la población económicamente activa. El ingreso per capita es el mas bajo de

América Latina mas del 50 % de la población no conoce los servicios básicos

como la electricidad y agua potable. Somos víctimas de enfermedades endémicas

previsibles como la tuberculosis leishmaniasis, la malaria, fiebre amarilla, y

encima tenemos a 2 millones de quechuas y aymaras enfermos con mal de

chagas. La tasa de analfabetos supera el 30% y lo mas grave la tasa de

analfabetos funcionales supera el 60% de la población, es decir, han aprendido a

leer pero no entienden lo que leen, han aprendido a escribir pero no pueden

redactar una carta (Nuestros principios ideológicos).

A reestruturação neoliberal que sacudiu a região nos últimos trinta anos

apresentou-se, segundo a narrativa histórica indianista, como mais uma fase de

um processo de modernização que, sob diferentes denominações (conquista

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espiritual, missão civilizadora, pacificação, progresso, etc.), começou em 1492.

Em outras palavras, o texto expõe a correlação entre modernização e colonização,

que tem como resultado a supressão e a “invisibilização” das sociedades, dos

valores, e das cosmovisões indígenas, assim como de tudo aquilo que pode

disputar o status universal com o projeto moderno.

É necessário enfatizar a continuidade da racionalidade discursiva, pautada

pela emulação étnica do processo de constituição identitária, entre os dois

documentos indianistas – o Manifesto de Thiauanaco, de 1973, e o documento do

VI Congresso do MAS, de 2001. No contexto mais tensionado das insurreições

populares, nota-se o desenvolvimento de certas questões contidas no texto

katarista no documento masista, principalmente no que tange à explicitação dos

efeitos da modernização ocidental sobre a Bolívia, na imposição de uma

cosmologia totalitária que não aceita a coexistência da diferença.

Condizente com a própria crise do paradigma racionalista clássico, os

masistas expõem os limites da cosmologia ocidental não pelas antinomias internas

da ratio moderna, mas pelos desdobramentos na vida social dos povos originários

e no próprio mundo natural. No trecho abaixo, apontam os resultados da

“cosmologia da cultura ocidental”:

Sólo los países del norte son industrializados, donde viven cerca de mil millones

de habitantes, son mil millones de PRIVILEGIADOS que se llevan el 66% de la

producción alimentaría del mundo, el 75% son los metales, el 85% de la madera.

Utilizan el 90% de los créditos de investigación y desarrollo y el 80% de los

gastos en educación. En el norte, 100 millones se desplazan en automóviles y

contribuyendo al 14% de las emisiones de gases tóxicos. Los mil millones del

norte obtienen el 40% de sus calorías de las grasas de animales. Consumen 3

veces mas grasas por personas que los 4 mil millones de hombres y mujeres

restantes. Consumen el 40% de la cosecha mundial de granos. En cambio

tenemos mas de mil millones de excluidos que vamos a pie, no tenemos agua

potable ni electricidad. No sabemos leer ni escribir nuestra renta es inferior a un

dólar por día y solo nos llega el 1,4 de la riqueza mundial. Tenemos 600 millones

de personas con desnutrición crónica y estamos castigados con el retraso en el

crecimiento físico y mental y la muerte prematura. Cien millones no tenemos

techo para vivir (Nuestros principios ideológicos).

Segundo Nunes (Nunes, 2010, p. 281), os efeitos das práticas dos saberes

devem servir como baliza ética para validação dos mesmos, e não como suas

premissas endógenas, o que marca o novo paradigma emergente, pautado pela não

hierarquização de cosmovisões distintas. A diferença valorativa entre a ontologia

moderna e a cosmologia aymara não reside na existência ou na falta de

racionalidade de uma ou de outra. Sem o espaço epistêmico privilegiado de

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adjudicação entre o certo e o errado, resta-nos avaliar os saberes a partir de sua

defesa e promoção da vida e da dignidade dos oprimidos, segundo Santos (2010).

Assume-se, de acordo com esta nova perspectiva pragmática, o caráter classista de

uma epistemologia crítica situada. Às raias com o relativismo, o juízo toma seu

assento a partir dos efeitos, e não mais sobre o logos. Neste sentido, o texto é bem

claro em sua condenação ao modo de percepção do ocidente – objetivista,

instrumental e universalista –, tomando os danos sociais e ambientais gerados. Em

contrapartida, oferece à cosmologia autóctone o caráter redentor negado à ciência

moderna. Contra as dicotomizações redutoras, apresenta, em seu discurso

afirmativo de respeito à natureza, a cultura simbiótica sintetizada no conceito de

Pachamama. Nuestra cultura andina y amazónica es fundamentalmente simbiótica y de total

equilibrio con la naturaleza. Para nuestras raíces culturales el hombre no es el

señor, ni el gerente ni el amo del planeta tierra. Somos parte del, somos parte del

todo, somos colaboradores conscientes, somos seres que ayudamos a parir la

TIERRA, somos comunarios que ayudamos a criar la vida. Para nosotros el

planeta tierra tiene vida. Es inteligente y autorregulado. A este principio

nuestros antepasados le han denominado Pachamama, es decir madre tierra y a

ella, a la madre tierra no podemos violarla a titulo de dominarla no podemos

venderla ni comprarla porque somos parte de ella y en ella criamos la vida,

Pachamama quiere decir que el ser humano con y para la tierra y es lo contrario

de la cultura occidental que viven de la tierra y sobre la tierra. Para nuestra

cultura la tierra es vida y por eso le rendimos nuestro tributo. Le agradecemos a

la Pachamama porque es el espacio habitado por los hombres. Es nuestra

protectora y cuidadora por excelencia. Es una madre que ampara a sus hijos y

que les da los alimentos que necesitan para vivir. Este principio simbiótico del

concepto Pachamama de vivir con y par la tierra, es también el principio del

equilibrio con la naturaleza, que es el único camino que nos queda para

preservar la vida en el planeta (Nuestros principios ideológicos).

Voltamos, enfim, ao início. O documento reforça a tese já mencionada por

Blaser (2007), Taipa (2007), Teijeiro (2007) e Linera (2010) referente à dupla

crise hegemônica em curso no país andino no início do século XXI. A percepção

indígena de que o neoliberalismo é a atualização de um processo incutido na

realidade andina desde 1492, os capacita a buscar, para além da crise conjuntural

de um modelo econômico, as causas mais profundas do colonialismo. Abrem-se,

de um lado, as veredas para um projeto moderado de constituição política de outra

modernidade não excludente, na medida em que democratiza a riqueza e o poder.

Foi o que tentara ineficazmente o MNR nas décadas que sucederam a Revolução

de 1952, não deslocando, contudo, o núcleo duro da dominação colonial – a

percepção ontológica e epistêmica da modernidade. Para muito movimentos

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autonomistas, o MAS representa esta saída alternativa de baixa intensidade étnica.

Por outro lado, as comportas também estão abertas para a novidade em questão: a

afirmação étnica das potencialidades políticas, econômicas e culturais dos

indígenas, confinados até então na cotidianidade da vida social. A politização do

componente cultural na exaltação da cosmologia originária, como núcleo de onde

emerge uma concepção de mundo parelho a uma prática social condizente com os

valores igualmente originários, aponta para o processo real de descolonização.

Não somente das estruturas de poder inscritas na institucionalidade estatal, mas

também do imaginário social.

Com a crise da modernidade neoliberal, abre-se novamente a luta social

sempre indefinida. Do mesmo modo, impõe-se enquanto pauta política a

discussão a respeito de novos projetos societários, que tinham sido postos fora de

vigência pela fatalidade teleológica do discurso neoliberal53.

53 Esta versão teleológica do triunfo do modelo liberal enquanto paradigma último do desenvolvimento histórico, podemos encontrar nas teses hegelianas de Francis Fukuyama em Fim

da História, 1999.

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Nayawa jiwtxa

nayjarusti

waranga

waranqanakawa

kutanipxa

A mi solo me mataréis, pero mañana volveré y seré millones

Tupac Katari

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3. A CRISE DA MODERNIDADE NEOLIBERAL

Em 1990, do oriente boliviano irrompe “La Marcha por el territorio y la

dignidad” dos povos indígenas dos territórios do parque Isiboro-Securé, do

bosque Chimanes e da região Sirion: todas as zonas selváticas do Departamento

de Beni. Guaranis, Trinitarios, Ignacianos, Yuracarés, Movimas, Chimanes,

Moxeños, Sirionós e Mosetenes percorreram cerca de 600 quilômetros de Trinidad

(Beni) até La Paz, exigindo do governo de Jaime Paz Zamora, do MIR (1989 a

1993) a efetivação das leis existentes que garantissem o reconhecimento dos

direitos indígenas, sobretudo no que tange à concessão de direitos territoriais. Os

indígenas das planícies orientais, organizados em torno da “Central de Pueblos

Indígenas de Beni” (CPIB)54, defendiam-se da ação de empresas madeireiras que

– com a anuência das autoridades locais – exploravam os bosques do Oriente

boliviano com um comportamento depredador e sem respeito aos direitos e modo

de vida dos povos nativos da região (Alai, 1990, p.21).

No Bosque de Chimanes, por exemplo, 1,2 milhões de hectares integram

uma reserva de imobilização florestal. Contudo, em 1986, a região foi declarada

“bosque de produção permanente”, o que permitiu a exploração da madeira. O

governo exigiu das empresas a contrapartida da garantia do reflorestamento e da

proteção dos grupos étnicos para a exploração da área. No entanto, segundo a

CPIB, nunca houve o cumprimento de tais requisitos. A organização indígena de

Beni, no contexto da marcha, estimava a partir do ritmo de desflorestamento

nacional que os 558.000 km² de bosques na Bolívia ficariam reduzidos a metade

no ano de 2000.

No início as autoridades tentaram impedir a realização da Marcha

insinuando que havia manipulação por parte de grupos extremistas. Os dirigentes

da mobilização indígena responderam em um documento público:

Lamentamos que nuestra marcha pretenda ser ensuciada con acusaciones de

manipulación y presiones políticas. Esto responde la creencia de que nosotros los

54 A Central dos Povos Indígenas de Beni (CPIB) foi fundada em 1989 por 18 povos indígenas da região de Beni. Integra uma organização maior, chamada Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB), e tem como objetivos: a consolidação das TCOS; a captação de recursos para o desenvolvimento das comunidades; o melhoramento das condições de saúde; e o reconhecimento dos médicos e da medicina tradicional. Disponível em <http://www.territorioindigenaygobernanza.com/bov_11.html>. Acesso em: 10 ago 2015.

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indígenas somos incapaces de decidir e conducir nuestro propio destino, por el

contrario, nuestra organización, La Central de los Pueblos Indígenas del Beni, se

ha caracterizado siempre por tener una gran independencia con respecto a los

partidos políticos y otros intereses a los que se nos quiere vincular; más bien ha

tenido una relación permanente con las comunidades y pueblos que la conforman

(Alai, 1990, p. 21).

A mobilização dos povos indígenas do Oriente é um marco histórico do

início de um novo ciclo de lutas sociais na Bolívia. Tendo como sujeito político o

índio, a marcha marca a diferença para as mobilizações populares do passado

recente cuja direção política recaía sobre o operário, o mineiro. Estas novas

organizações étnicas, expressões da persistência de formas comunitárias55 de

organização da vida social dos povos originários, e dos valores que norteiam as

suas práticas ordinárias, assentadas no cooperativismo, tornaram-se os principais

obstáculos para a efetivação do ideário neoliberal assente na América Latina e na

Bolívia desde os meados dos anos 80. Percebe-se que é pela via da resistência

cultural que as medidas liberalizantes são rechaçadas nas terras andinas.

O neoliberalismo se estabelecera na Bolívia pela via democrática em 1985,

visando solucionar a violenta crise econômica que os militares deixaram como

herança, em 21 anos de mando executivo56. A hiperinflação chegara em 1982 ao

inverossímil número de 30.000% ao ano (Aguilar, 2008, p. 33). Chegara a hora de

virar a página do modelo “desenvolvimentista-estatal”, herança da Revolução de

1952. A solução fora acordada entre as instituições internacionais como o Fundo

Monetário Internacional, o Banco Mundial, e os partidos que se propunham a

conduzir a Bolívia para a modernização neoliberal. Os setores conservadores –

organizados em partidos como o MNR (Movimento Nacional Revolucionário), o

ADN (Ação Democrática Nacional) e o MIR (Movimento da Esquerda

Revolucionária) –, firmaram pactos de governabilidade para a aplicação de

políticas de livre mercado e revezaram-se no poder de 1985 a 2002. Eles

aplicaram as reformas “estruturais” do “Consenso de Washington57”,

55 Referimo-nos às comunidades indígenas cuja ética cooperativista que as norteia se expressa nas diversas modalidades de trabalho verificadas no interior dos ayllus, como a minka e o ayni, por exemplo. Ver mais em: Teijeiro, 2007, p. 93. 56 Durante a última década de ditaduras, a dívida externa passou de 300 milhões a três bilhões de dólares. Ver mais em: Sader; Jinkings (Orgs.), 2006, p. 195. 57

Em 1989, o Institute for International Economics convocou em Washington economistas, funcionários do FMI, do BID e do governo norte-americano para avaliar as reformas econômicas em curso na América Latina, redigindo no final do encontro algumas proposições para serem implementadas de forma global pelos governos do continente. Dentre elas podemos citar:

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corporificadas no “decreto supremo 21060”, conhecido também como a “lei

maldita”. Estas medidas consistiram sumariamente em: reformas fiscais e

tributárias; “enxugamento” da máquina estatal; “flexibilização” das leis

trabalhistas; privatização da previdência social; liberalização dos fluxos

monetários e financeiros; programa amplo de privatizações (60% do capital da

empresa estatal Yacimientos Petroliferos Fiscales Boliviano – YPFB, por

exemplo); elevação das taxas de juros; contração da emissão monetária; corte dos

“gastos” sociais, entre outras medidas (Sader; Jinkings, 2008, p. 201).

O esforço de “capitalização” da sociedade boliviana, com vista à

modernização neoliberal, teve repercussões drásticas nas condições de vida dos

povos, não obstante o êxito no controle inflacionário. No início dos anos 90, por

exemplo, 85% da população rural situavam-se abaixo da linha de pobreza, e mais

de 1/3 da população não tinha acesso aos serviços de saúde (Ibid., 2008, p. 854).

Em tais condições, movimentos de distintas regiões se insurgiram, mobilizados

em torno da defesa das necessidades vitais (água, terra e energia) e, no caso dos

movimentos indígenas, em defesa também de seus modos societários comunais

(ayllus).

Rompendo o dirigismo característico das antigas mobilizações operárias,

que orbitavam em torno da Central Obrera Boliviana58 (COB), os novos

movimentos sociais emergentes conseguiram chamar a atenção de diversos

setores sociais. O marco inicial dessas grandes mobilizações foi “La Marcha por

el território y la dignidade”, dos povos indígenas das terras baixas da Amazônia e

do Chaco, que, para além dos resultados de suas reivindicações territoriais59,

logrou mobilizar um grande apoio de amplos setores da sociedade civil boliviana,

deixando um rastro de descontentamento com as políticas liberalizantes.

Esta marcha ha logrado no solamente reivindicar los intereses de los pueblos

indígenas de esas regiones, sino de alguna manera, ha logrado identificar a estos

pueblos con los pueblos de los diversos sectores de valle, del llano e del mismo

privatização com venda de empresas estatais, liberalização financeira e desregulação trabalhista. Tais princípios se transformaram em receituário, impostos aos governos latino-americanos pelas agências internacionais para a concessão de crédito. 58 Seis dias após o triunfo da Revolução de 1952, os trabalhadores bolivianos criaram a Central Obrera Boliviana (COB), um instrumento de luta que unificou os sindicatos bolivianos. Ver mais em: Gisbert, 2008, p. 516-517. 59 O governo reconheceu as terras ancestrais dos mojeños e chimanes como propriedade indígena e decretou moratória na exploração de madeira nesse território (Camargo, 2006, p. 180).

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altiplano de Bolivia. Hemos visto que esta actitud ha merecido una amplia

solidaridad, no solamente de estos pueblos, sino de toda ciudadanía en su conjunto

(Alai, 1990, p. 22).

O discurso agregador dos povos indígenas acercava a questão étnica, isto é,

a identificação destes povos com as formas de reprodução da vida social,

assentadas nos valores culturais ditos “originários”. Um dos pontos simbólicos da

marcha foi o encontro em La Cumbre, no topo do altiplano dos “marchistas de

tierras bajas” com o comitê de malkus e militantes aimarás que os aguardavam

com bandeiras e wiphalas. (Camargo, 2006, p. 179). O logro político da marcha

reside nesta interação entre as comunidades indígenas de regiões isoladas, fazendo

uso de um repertório simbólico comum na ativação da luta política, não obstante

as diferenças culturais entre elas.

Com a radicalização das reformas neoliberais, a partir do segundo governo

de Gonzalo Sanches de Lozada (2002-2003), o processo de revitalização destes

movimentos intensifica-se, e desdobra-se em insurgências radicais em

Cochabamba, La Paz, El Alto, Chapare e em outras regiões, contra as medidas de

privatização da água, do aumento de impostos sobre os salários e da transferência

dos recursos energéticos a empresas transnacionais. Interessa-nos saber o modo

pelo qual esses setores se organizam, suas demandas e a produção de novas

identidades coletivas, baseada nos valores dos povos originários. Para tal, é

necessário um sumário, explicitando em linhas gerais as características do modelo

de modernização contra o qual os povos originários na Bolívia se postam.

Referimo-nos aqui, dentro de uma perspectiva histórica conjuntural, ao novo

modelo de reprodução do capital, alcunhado por alguns críticos de

“neoliberalismo” 60, gerido na Europa e na América do Norte. Sua força advém da

necessidade de solucionar a violenta crise econômica que abalou as economias

capitalistas nos anos de 1970, na proposição de medidas macroeconômicas

draconianas. O objetivo era retomar os índices de crescimento das décadas

precedentes, uma vez que o modelo do “welfare-state”, erigido no pós-guerra,

dava sinais de exaustão. Isso fora expresso no fenômeno anômalo “estagflação”

60 O termo provavelmente surgiu nos EUA, cunhado por Charles Peters, editor do Washington

Monthly. Serviu para designar o conjunto de políticas econômicas e sociais crítico ao New Deal, a ideia de Welfare-State preconizado J.M. Keynes (Camargo, 2006, p. 98).

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(baixo crescimento econômico somado à inflação crônica). O “retorno à

ortodoxia” tornou-se a tônica dos discursos de economistas e políticos entusiastas

das teses de Friedrich Hayek e Milton Friedman, que apontavam para o velho

ideário do liberalismo econômico (que saíra de moda desde o colapso das

economias capitalistas nos anos de 1920). Desajuste estatal, informalidade no

trabalho, desemprego, desproteção trabalhista, dentre outras medidas: eis o

retorno à ortodoxia e seus efeitos intencionais para girar corretamente a

engrenagem do novo modelo social em construção.

Sérgio de Castro61 afirmava que o êxito de tais medidas dependia

inexoravelmente de sua correta aplicação, para a solução da crise no interior das

distintas realidades sociais que cada país apresentava. Ignorando as

especificidades de cada formação social, o êxito do programa neoliberal, segundo

o economista, dependia da implantação global de seus objetivos, excluindo a

contribuição de qualquer outra matriz teórica na correção da economia.

O programa neoliberal (constitui) um todo harmonioso e não aplicável de modo parcial; sua aplicação parcial ou limitada poderia dar origem a um sem número de efeitos indesejáveis. (Sader; Jinkings (Orgs.), 2006, p. 853).

Ante ao fracasso empírico do esforço neoliberal de reanimar o capitalismo,

já que a taxa de crescimento dos anos de 1980 não se manteve estável como antes

–, pelo contrário, em muitas regiões regrediu –, a assertiva de Sérgio de Castro

continuou valendo para muitos economistas neoliberais, os quais afirmavam a

necessidade de corrigir a realidade em proveito de seus pressupostos. Se a

aplicação não logrou os resultados pretendidos, o fracasso caberia à sociedade, aos

atavismos históricos ou à inépcia dos governos comprometidos demais com os

ganhos da classe operária, diziam.

Contudo, uma análise mais detida sobre os esforços práticos de

materialização do neoliberalismo indica formatações específicas, que se

61 Sérgio de Castro junto com Arturo Fontaine foram os primeiros bolsistas chilenos a ingressar na Universidade de Chicago, formando, assim, a primeira geração dos “chicago-boys”. Ou seja, estudantes de economia, cuja formação se deu na referida universidade, sob os auspícios de professores de formação econômica neoclássica. Durante a vigência da ditadura de Pinochet (1973-1990), Sérgio de Castro ocupará o cargo de Ministro da Economia e, posteriormente, de Ministro da Fazenda.

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distanciam do ideal paradigmático liberal, e que na visão do economista chileno

explicariam o fracasso da retomada do crescimento.

De matriz anglo-saxônica, o neoliberalismo se estabeleceu primeiro na

Inglaterra de Margareth Thatcher (1979-1990) e nos Estados Unidos de Ronald

Reagan (1981-1989), no início dos anos de 1980, desencadeando a “direitização”

dos governos “avançados” do capitalismo. O modelo inglês, pioneiro destas

experimentações, foi o mais severo no intento de virar a página do keynesianismo,

por isso é dito o mais “puro” e tido, também, como modelo para todas as outras

experiências.

Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais (Anderson, 1998, p.12).

Segundo Perry Anderson, foi o pacote de medidas: “mais sistemático e

ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo

avançado” (Idem). Ainda houve, como medida tardia, a implantação de um

programa de privatização de setores públicos. A habitação pública, assim como as

indústrias de petróleo, gás e de água, entre outras, passou às mãos da iniciativa

privada, retirando do Estado as suas gestões públicas.

O caso norte-americano teve outras colorações. A inexistência de um

Estado reitor comprometido com políticas sociais, tal qual o welfare-state

europeu, permitiu a instalação de um neoliberalismo heterodoxo, não

comprometido com a disciplina orçamentária. A aplicação do ajuste incidiu na

redução dos impostos sobre os rendimentos altos, a elevação das taxas de juros e o

combate rigoroso das greves. A reformulação econômica tinha fins militares no

contexto da guerra fria. Visava exaurir a economia soviética na disputa

armamentista para encerrar de vez o comunismo no mundo e seus espectros. No

governo de Reagan, os EUA tornaram-se do principal credor ao primeiro devedor

do mundo (Boron, 1998, p. 77), em função dos exorbitantes gastos militares.

Na Europa Continental dos anos de 1980, o neoliberalismo prosseguiu em

seu intento hegemônico. Entretanto, a inflexibilidade de seus pressupostos foi

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seriamente abalada em função de uma realidade adversa ao “livre jogo das forças

de mercado”.

[...] é importante sublinhar que o Estado de bem-estar se manteve, apesar de tudo, surpreendentemente bem. Ele se revelou uma instituição sólida em cada sociedade avançada e moderna. Apesar dos ataques frontais levados a cabo pelos neoliberais e do pouco apoio da esquerda clássica, os Estados de bem-estar se mantiveram bem. Concretamente, nos países da OCDE, os gastos públicos de 1993 eram mais altos do que os de 1979, ano da assunção de Thatcher [...] (Therborn, 1998, p.46).

Embora os governos de direita ou os trabalhistas tenham aplicado com

rigidez a disciplina orçamentária e as reformas fiscais, eles não puderam diminuir

os “gastos sociais” dentro da expectativa almejada, nem tampouco debilitar

plenamente os poderosos sindicatos operários. As “décadas de ouro” do

capitalismo europeu, nas quais práticas keynesianas de pleno emprego coexistiram

com a repartição dos ganhos, aumentando o poder de barganha da classe operária,

não podiam ser apagadas assim com tanta facilidade. A resistência, no entanto,

não impediu que os desastres sociais advindos de tal modelo não fossem sentidos.

Na França do governo progressista de Miterrand62, por exemplo, o nível de

desemprego ultrapassou o da Inglaterra, do governo conservador e abertamente

neoliberal de Thatcher. Na Espanha, as políticas favoráveis ao capital financeiro

resultaram na maior taxa de desemprego da Europa na época: 20% da população

ativa (Anderson, 1998, p.14).

É preciso ressaltar que os resultados sociais obtidos a partir da aplicação da

receita neoliberal não são consequências inesperadas que deveriam ser

prontamente retificadas. Ao contrário, o aumento do desemprego, com o retorno

dos índices de desigualdade do capitalismo, entrava na contabilidade dos

economistas neoliberais. Para eles, o igualitarismo é um valor excessivo que

destrói a: “liberdade dos cidadãos e a vitalidade de concorrência” (Anderson,

1998, p. 14), comprometendo a prosperidade coletiva. Em meio à crise do modelo

econômico do pós-guerra nos anos de 1970, fez-se necessário modificar as bases

de acumulação capitalista, e os valores liberais tornaram-se imperativos mais uma

62 O governo de Miterrand (1981-1995), a princípio, com o apoio dos movimentos operários, implementou uma política de deflação e redistribuição de pleno emprego e proteção social. Contudo, em função do fracasso dessas medidas para contornar a crise inflacionária, e pressionado pelos mercados financeiros internacionais, ele adere ao programa neoliberal, com vista a obter êxito no que tange à grande obsessão do período: estabilidade monetária.

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vez. As reformas estruturais passaram a ser a pauta política dos distintos governos

dos ricos países europeus da OCDE (Organização Europeia para o Comércio e

Desenvolvimento). As assimetrias sociais tão combatidas na “Era Keynesiana”,

por um Estado provedor de direitos, tornaram-se agora o motor para corrigir

algumas distorções econômicas que destruíram os níveis necessários de lucros das

empresas e empurraram as economias de mercado para uma crise generalizada.

Esta foi estimulada pelos galopantes processos inflacionários, expressão do

esgotamento do velho paradigma societário do pós-guerra. Ao que pesem as

diferenças de matizes neoliberais de um país para o outro, o pacote de medidas

visava o máximo de desregulação social possível e a diminuição drástica do papel

interventor do Estado, tendo a meta da estabilidade monetária como fim em si

mesma. A prédica era sanar a economia, mesmo que ao custo de um desastre

social. [...] Para o dogma neoliberal, a geração de pobreza é sinal de que se está caminhando no rumo certo. A pobreza e os sofrimentos das massas têm um significado promissor: na realidade significa que as „forças do mercado‟ estão se movendo sem interferências e a reestruturação econômica procede tal qual se esperava, uma vez que o Estado se colocou de lado e o „instinto capitalista‟ se pôs em marcha, livre das regulações „artificiais‟ caprichosamente estabelecidas durante décadas por governantes hostis. (Boron, 1998, p. 103).

Indiscutivelmente, a pobreza servia como medidor do êxito das reformas

estruturais neoliberais, revelando-se a condição necessária para sanar as

economias em crise. Os mecanismos de controle da economia erigidos nos anos

de 1950 e 1960, com a finalidade de garantir a reprodução do capital e o bem-

estar dos trabalhadores nos países avançados do capitalismo europeu, eram vistos

agora como artificiais e danosos. Tornou-se evidente – pelo fracasso dos governos

progressistas de Miterrand (1981-1995), na França, e de Papandreou (1981-1989),

na Grécia –, que se esforçaram inutilmente para solucionar a crise, usando de

medidas ainda keynesianas, o que evidenciava para muitos a inevitabilidade do

caminho a seguir. Os neoliberais afirmavam que a política de “pleno emprego” e

de interdição do Estado na economia, com seus “gastos” sociais excessivos,

comprometiam as “leis naturais”, mantenedoras do correto funcionamento da

economia.

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Perry Anderson nos oferece dados ratificadores do êxito do neoliberalismo

no aumento da desigualdade social referida acima:

A taxa média de desemprego nos países da OCDE, que havia ficado em torno de 4% nos anos 70, pelo menos duplicou na década de 80. Também este foi um resultado satisfatório. Finalmente o grau de desigualdade – outro objetivo sumamente importante para o neoliberalismo - aumentou significativamente no conjunto dos países da OCDE: a tributação dos salários mais altos caiu 20% em média nos anos 80, e os valores das bolsas aumentaram quatro vezes mais rapidamente do que os salários. (Anderson, 1998, p. 15)

O novo modelo capitalista seguiu para países comunistas do leste europeu e

para a Rússia pós-soviética. Os níveis de igualdade social alcançados por estas

sociedades eram a expressão de um modelo social cuja economia relutava em se

alienar das outras esferas societárias. Todavia, o esgotamento do “socialismo

real”, as inércias econômicas e políticas – expressas na pífia produção de bens de

consumo, na escassez de mercadorias que forçava o racionamento alimentar e na

inexistência de democracia de fato, isto é, operária –, favoreceram o colapso

estrutural do modelo e a adesão ao capitalismo, coroando a vitória do Ocidente na

Guerra Fria (Maidanik, 2007).

[...] A vitória do Ocidente na Guerra Fria com o colapso de seu adversário comunista, não foi o triunfo de qualquer capitalismo, mas o do tipo específico liderado e simbolizado por Reagan e Thatcher nos anos 80. (Ibid., p. 17)

O resultado da adesão irrestrita às medidas neoliberais é traduzido no

fracasso do projeto de modernização ocidental: queda vertiginosa da produção em

mais de 55%; decadência do potencial científico, expressa na evasão dos cientistas

para outros países; desmonte dos poderosos sistemas públicos de educação e

serviços sociais; aumento das enfermidades; e queda da expectativa de vida.

Concernente à inserção da economia da nova Rússia no mundo, no início dos anos

de 1990, 93% da exportação total era constituída de produtos primários

(Maidanik, 2007, p. 121), o que mostra o processo intenso de desindustrialização

da economia.

As consequências na Europa Oriental não foram diferentes, talvez mais

severas. Nesta região, os defensores do neoliberalismo eram mais intransigentes e

propunham “reformas” mais radicais, como um amplo e rápido processo de

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privatizações que não deixasse margem para a possibilidade de estruturação de um

capitalismo frouxo, comprometido com o bem estar dos trabalhadores. Nas

palavras de Vaclav Klaus, primeiro-ministro da República Tcheca:

O sistema social da Europa Ocidental está demasiadamente amarrado por regras e pelo controle social excessivo. O Estado de bem-estar, com todas as suas transferências de pagamentos generosos desligados de critérios, de esforços ou de méritos, destrói a moralidade básica do trabalho e o sentido de responsabilidade individual. Há excessiva proteção e burocracia. (Klaus apud Anderson, 1998, p. 18).

A moralidade do trabalho e a responsabilidade individual trouxeram para o

leste europeu a desigualdade social requerida pelos economistas neoliberais,

condição para o crescimento econômico. A substituição da economia planejada

por burocratas do partido comunista pela economia de livre-mercado trouxera

consigo também as liberdades políticas, estruturadas no modelo liberal da

democracia representativa. Porém, as tais novas “democracias” não eram tão

democráticas e representativas quanto alardeadas. Muitos daqueles que gozavam

os privilégios da antiga estrutura política comunista mantiveram-se nas mesmas

posições sociais. Tudo atesta que a elite de ontem preservou seus privilégios

azeitando seu manancial teórico aos novos tempos. Convertidos ao neoliberalismo

se beneficiaram da hiperinflação da esfera do mercado, em detrimento do

fortalecimento dos múltiplos setores da sociedade civil, o que compromete o êxito

de tais “democracias” deveras sobrevalorizadas.

Não encerraremos aqui uma discussão necessária a respeito da

incompatibilidade entre a execução das políticas de mercado e o funcionamento

da “democracia”, o que é evidente por si, uma vez que aquela não garante as

condições sociais de participação de fato dos setores marginalizados do poder e da

divisão da riqueza social. A produção extrema de pobreza e desigualdade, intento

consciente das políticas de liberalização dos mercados, segundo Perry Anderson,

não favorece a cristalização de práticas democráticas que não podem ser medidas

apenas pela existência formal de instituições políticas “democráticas”.

[...] não tem demasiado sentido falar de democracia em sua abstração, quando na realidade do que se trata é de examinar a forma, as condições e os limites da democratização em sociedades como a capitalista, que se fundam em princípios constitutivos que lhes são irreconciliavelmente antagônicos. (Boron, 1998, p. 68).

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Mesmo Friedrich Hayek não admitia a “democracia” enquanto valor central

do neoliberalismo, uma vez que a maioria democrática poderia “interferir com os

direitos incondicionais de cada agente econômico de dispor a sua renda e de sua

propriedade como quisesse”. (Ibid., p. 20).

Tal como o próprio Friedrich von Hayek declarou na célebre entrevista que concedeu ao matutino conservador chileno El Mercúrio, se tivesse que escolher entre uma economia de livre mercado com um governo ditatorial ou uma economia com controles e regulações mas com um Estado democrático, escolheria sem dúvida o primeiro. A atitude de um dos pais fundadores do neoliberalismo retrata com perfeição o dilema com que se enfrenta a burguesia e sua opção preferencial. Tanto os seus interesses como os seus valores a levam a sacrificar qualquer coisa, contanto que possa reafirmar a vigência do modo de produção que lhes é próprio, disposição tanto mais compreensível quando se recorda a tradicional desconfiança – para não dizer aberta hostilidade com que os ideólogos do capitalismo trataram o tema da democracia. (Ibid., p. 101).

Não é por acaso que a primeira experimentação sistemática neoliberal tenha

ocorrido em um país que viveu “a mais radical ruptura político-institucional do

continente” latino-americano (Ibid., p. 69). O Chile, sob a ditadura de Pinochet

(1973-1990), protagonizou, quase um decênio antes da Inglaterra, os esforços para

alcançar o capitalismo livre das amarras do “keynesianismo”. Este se estruturara

fragilmente na América Latina em seu intento malogrado de matizar os conflitos

de classe e promover o desenvolvimento econômico assentado no bem estar da

classe trabalhadora, como na Europa Ocidental.

Sabemos que a partir dos anos 50 foi elaborado pela Comissão Econômica

para América Latina (CEPAL) um conjunto de medidas que visava, dentro de

uma perspectiva keynesiana, a modernização dos países “subdesenvolvidos” do

continente a partir de um processo radical de industrialização comandada pelo

Estado. O objetivo era remover os entraves das estruturas oligárquicas, garantir o

crescimento estável das economias e superar as relações centro-periferia. Tal

projeto, sempre muito instável, soçobra com a crise internacional, radicalizada

pela crise da dívida externa na década de 1980. Alguns anos antes, o Chile de

Salvador Allende apontava para a possibilidade de superar o

“subdesenvolvimento” não com as medidas desenvolvimentistas cepalinas, mas

com o “socialismo em democracia”. A radicalização dos conflitos levou à ruptura

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constitucional e ao fim do projeto socialista e democrático da “Unidade

Popular63” (1970-1973) em favor das “forças do mercado”.

O neoliberalismo instaurado pelos tanques no Chile gozou o fato de não

precisar coexistir com as práticas democráticas, que poderiam impor algum tipo

de resistência, o que facilitou a aplicação sistemática do programa neoliberal: “[...]

desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda a

favor dos ricos, privatização de bens públicos” (Anderson, 1998, p. 19). Eis a

primeira experiência neoliberal do mundo. Logo, o neoliberalismo se projetaria

enquanto modelo societário com pretensões hegemônicas, no que diz respeito às

transformações estruturais do capitalismo mundial.

A modernidade neoliberal chega, enfim, ao nosso continente, nos últimos

anos da década de 1980. Impacta-nos com seus feitos sociais de modo mais

radical, se comparado aos países capitalistas centrais, os quais minimizaram o

ajuste, transferindo a sua crise, via dívida externa, para as nossas terras. No

México, a modernidade chega com Salinas (1988); na Argentina, com Menem

(1989); na Venezuela, com Carlos Andrés Perez (1989); no Peru, com Fujimori

(1990); e no Brasil, com Collor (1990), sem contar a radical experiência boliviana

iniciada em 1985, com o ex-líder da Revolução de 1952, Victor Paz Estenssoro,

agora convertido ao neoliberalismo.

Ao que pese à experiência chilena, mantivemo-nos relativamente alheios ao

neoliberalismo durante a sua rápida expansão em diversas regiões do globo, no

período dos anos de 1980. Como vimos, de matriz anglo-saxônica, ele instaurou-

se primeiro na Inglaterra e nos Estados Unidos, seguiu o seu curso hegemônico

para os países europeus da OCDE, aprumou-se, e penetrou com vitalidade para

além da “cortina de ferro”, triunfando sobre o decrépito “socialismo real”. Ao

término da década, se abateu sobre nós como uma espécie de fatalidade

apocalíptica, rompendo laços societários, redefinido drasticamente a relação

capital-trabalho, enfim, impondo a necessidade de adesão irrestrita aos preceitos

econômicos acordados no “Consenso de Washington”.

63 A Unidade Popular (UP) foi uma coalizão partidária de esquerda que governou o Chile entre 1970 e 1973, sob a liderança do então presidente, Salvador Allende.

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O referido consenso caracteriza-se por um conjunto abrangente de regras de condicionalidade aplicadas de forma cada vez mais padronizada aos diversos países e regiões do mundo, para obter apoio político e econômico dos governos centrais e dos organismos internacionais. Trata-se também de políticas macroeconômicas de estabilização acompanhadas de reformas estruturais liberalizantes. (Soares, 2002, p. 16).

Se no Chile a imposição dos preceitos do “Consenso” fora feita através de

uma ditadura, em outras regiões, como Argentina e Peru, os respectivos

presidentes precisaram esforçar-se para a adoção do neoliberalismo, a partir de

legislações de emergência e reformas sucessivas da Constituição, aproveitando-se

do caráter meramente formal de suas instituições “democráticas”. O Poder

Executivo, como afirma Perry Anderson (Anderson, 1998, p. 21), sobrepondo-se

sobre as outras esferas de poder, enredou uma trama política favorável às

“reformas”. Mesmo em países onde não existiram coerções desse tipo, como na

Bolívia, por exemplo, houve uma aceitação popular das “terapias de choque”, em

função da hiperinflação existente, muitas vezes induzidas. A medicina neoliberal

deflacionária era atestada como o único remédio capaz de findar o mal da inflação

que corroía os salários minguados dos trabalhadores. Fernando Henrique Cardoso,

por exemplo, na frente da social democracia brasileira, com sua política recessiva

de estabilização monetária, foi eleito no Brasil duas vezes consecutivas à

presidência da república (1994-1998 / 1998-2002), em face do êxito do Plano

Real. Tal fato nos prova mais uma vez a plasticidade do neoliberalismo em se

impor sob quaisquer condições de estruturação política.

É relevante salientar que os processos de “redemocratização” pelos quais a

América Latina passou a partir dos anos de 1980 tiveram uma contrapartida

paradoxal: os indicadores sociais regrediram à medida que os processos ditos

“democráticos” avançaram, pois estes foram acompanhados pela exigência de

reformas estruturais favoráveis ao capitalismo de novo tipo – o neoliberal –, que

visava à implantação de uma sociedade “moderna” de mercado, portanto, mais

desigual64. O primeiro dado a ser ressaltado expõe o drama das maiorias nacionais

em nosso continente: em 1970 havia 130 milhões de latino-americanos vivendo

em condições de pobreza e de extrema pobreza. Nos anos 90 esse número 64 Para Linera, em fins dos anos 1990, o corte de benefícios sociais, de salários e de estabilidade trabalhista fez grande parte da sociedade mundial regressar à precariedade do século XIX. (Linera, 2010, p. 131).

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progrediu para 200 milhões, ou seja, 47% de toda a população (Sader; Jinkings,

2006, p. 854).

Nessa mesma década, as Nações Unidas alertava que a pobreza era a

principal causa de morte na América Latina: 1,5 milhões de mortes por ano,

atingindo dois mil crianças por dia (Soares, 2002, p. 47). A precarização dos

serviços públicos, como os da área de saúde, contribuiu para a volta de endemias e

para o agravamento de doenças que já estavam controladas (tuberculose, cólera,

etc.). Os dados sobre a mortalidade infantil são alarmantes: 460 mil mortes anuais

de crianças menores de um ano. O retrocesso social da modernização neoliberal

também pode ser mensurado a partir dos números referentes à desigualdade

social. No início dos anos 90 a renda dos 10% mais ricos superava em cerca de

dez vezes a dos 40% mais pobres. Por último, podemos citar dados concernentes

ao mundo do trabalho: no período de 1980 a 1999, a taxa de desemprego que era

de 6,7% aumentou para 8,3%; o setor informal urbano saltou de 40,2% para

59,6%; o salário real na indústria decresceu de 100%, em 1980, para 89%; o

salário mínimo real correspondia a 87% do existente em 1980 e o percentual de

famílias mais pobres aumentou de 35% para 43,2% nesse mesmo período (Sader;

Jinkings, 2006, p. 855).

Não obstante a hegemonia ideológica conquistada, os dados transcritos

acima nos revelam mais do que os efeitos sociais deletérios que a modernidade

neoliberal produziu, no seu intento de estabelecer novas bases econômicas para o

crescimento, em vista da crise do velho paradigma do Estado de Bem-Estar. O

desastre social, signo de sucesso do modelo, segundo Perry Anderson, nos

informa sobre a sua inviabilidade de se manter enquanto tal. Os sinais de desgaste

aparecem na América Latina já no final dos anos 80, a partir de alguns levantes

populares contra as medidas de “capitalização”.

Em 1989, por exemplo, sob a vigência do governo de Carlos Andrés Perez,

ocorreu um protesto vigoroso em toda Venezuela, sobretudo em Caracas.

Conhecido como Caracazo, o protesto emergiu em função dos acordos entre o

governo e o FMI, nos quais se concretizava a aplicação dos planos de ajuste e das

políticas de emprego e privatização (Sader; Jinkings, 2006, p. 252 e 253) Já nos

anos 90, mais especificamente em 1994, índios mascarados provenientes da selva

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Lancadona, em Chiapas no México, levantaram-se armados contra o Estado

mexicano, que revogara a lei de terras que protegia as ejidos – propriedade

comunal indígena – de serem vendidas, arrendadas ou hipotecadas (Gennari,

2002, p. 18). Denominados guerrilheiros do Exército Zapatista de Libertação

Nacional (EZLN), eles saíram em “defesa da humanidade e contra o

neoliberalismo”. Na Bolívia, os “povos originários” de diversas etnias

protagonizaram uma série de levantes contra a privatização dos recursos naturais.

Em 2000 impediram a privatização da água e, em 2003, rechaçaram a venda do

gás para empresas transnacionais, que o exportariam para os EUA através do

Chile. E ainda depuseram o presidente Gonzalo Sanches de Lozada.

Interessa-nos saber a natureza da novidade que se expressa na Bolívia, no

influxo revolucionário de forças sociais que se indispõem com o projeto

neoliberal e que se organizam a partir de suas próprias matrizes culturais de

referência, alterando, com isso, o processo de constituição de identidades

coletivas. A etnização da política acompanha justamente a erosão da subjetividade

classista em função da desestruturação da condição operária, que dava suporte

material à existência do sindicato enquanto principal núcleo de agregação popular.

Para a análise desta crise, atentemos às considerações de Álvaro Garcia Linera,

referentes à política de “flexibilização da mão-de-obra”, aplicada desde o início

do “consenso neoliberal” (1985), e que repercutiu em uma nova morfologia do

trabalho. Por conseguinte, essa mudança encetou novas formas de organização

social com grande capilaridade e capacidade de intervenção na realidade.

Perry Anderson, ao analisar a estruturação do neoliberalismo de um modo

geral, informa-nos das assertivas de seus teóricos que preconizavam pela

diminuição do poder dos sindicatos, e dos movimentos operários, que

havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais com os gastos sociais. (Anderson, 1998, p. 10 e 11).

Assim, os níveis necessários dos lucros das empresas ficavam

comprometidos, além de desencadear processos inflacionários. Para salvar a

economia de mercado fazia-se necessário, portanto, restaurar a taxa “natural” de

desemprego que criaria um “exército de reserva de trabalho”, reduzindo assim a

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força dos sindicatos e seu poder de interpelação ao Estado, referente à disputa por

recursos públicos.

Tais ideias chegam à Bolívia em 1984, trazidas pelo norte americano

Jeffrey Sachs65, defensor das “terapias de choque”, logo aplicadas pelo governo de

Victor Paz Estenssoro (1985-1989). O líder histórico do MNR adotou um novo

plano econômico, com o fim de sepultar a inflação galopante e o Capitalismo de

Estado. O Decreto Supremo 21060 ratificava as pretensões neoliberais de

refundação da Bolívia na criação de um sistema aberto de mercado, isento das

pressões dos poderosos sindicatos “obreros” bolivianos.

El „Decreto Supremo 21060‟ (...) consistia em uma serie de drasticas medidas

monetarias para contener la hiperinflación, entre las cuales se incluía um articulo

sobre „libre contratación‟. Este artículo era un permiso irrestricto para que los

empresarios pudieran despedir trabajadores sin ninguna justificación. (Aguilar,

op. cit., p. 51).

A composição material da antiga condição operária, estruturada a partir da

Revolução de 1952 e que tinha a COB como a expressão mais poderosa da força

social dos trabalhadores, sobretudo do setor mineiro, foi radicalmente alterada

com as políticas de “flexibilização” do trabalho, de reestruturação produtiva e de

desnacionalização da economia. O horizonte estatal que compelia a existência

política da multidão sindicalizada (Linera, 2010, p. 145), altaneira em seu papel

querelante, conformada ao “pacto inclusivo” à modernidade expansiva, fora

borrado pela nova condição moderna. O novo projeto societário inviabilizava a

“forma sindicato” de composição política dos trabalhadores.

Linera avalia as condições de possibilidade da “forma sindicato” no

processo de agregação popular a partir das análises de Antônio Negri e René

Zaveleta, na descrição da construção de identidades coletivas, alinhavadas a

condições materiais bem específicas: concentração dos meios e da força de

trabalho produtiva. A conformação da condição de classe do proletariado urbano e

mineiro na Bolívia no século XX ancorava-se nos grandes centros de trabalho, e

expressava-se na “forma sindicato”, enquanto núcleo de identidade forjada em

torno do trabalho. O intelectual marxista enumera as condições de possibilidade

material para emersão do movimento operário organizado: 65 Economista norte-americano que atuou como conselheiro em diversas instituições econômicas (FMI e Banco Mundial) e também em diversos governos neoliberais na América Latina.

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a) As características dos processos de acumulação de capital e de consumo da força de trabalho, que passaram a concentrar grandes volumes de meios e força de trabalho para levar adiante uma produção massiva. [...] b) A consolidação de um tipo de trabalhador com contrato por tempo indeterminado e regular [...] que permite prever o porvir individual num devir coletivo de longo prazo [...] c) Existência de um sistema de fidelidades internas que permite converter a associação por centros de trabalho num valor acumulável. [...] d) A fusão dos direitos cidadãos com os direitos trabalhistas resultantes do reconhecimento, por parte do Estado, [...] da legitimidade da organização sindical (Ibidem, p. 229 a 233).

Para ficarmos em (a), a composição material em vigor permitia a

concentração de um enorme contingente de trabalhadores em fábricas e empresas,

em cujos entornos edificavam-se verdadeiras cidadelas de operários, identificados

territorialmente com a cultura sindical de classe. (Sader; Jinkings, 2006, p. 200)

A sedentarização operária como condição objetiva da produção capitalista em grande escala fez com que os acampamentos mineiros e bairros operários já não fossem unicamente dormitórios provisórios de uma força de trabalho itinerante, como eram até então; permitiu que estes se tornassem centros de construção de uma cultura operária a longo prazo, na qual espacialmente ficou depositada a memória coletiva de classe (Linera, op. cit., p. 232).

A COB, depositária desta memória, que surgira no ano da Revolução, sob a

necessidade de reunião de todos os sindicatos e movimentos organizados da

sociedade, transformou-se na maior força política do país, influindo nas decisões

políticas estatais e até mesmo cogerindo governos em algumas circunstâncias.

Nessas condições, a COB conseguiu manter uma articulação política ativa entre

distintos movimentos sociais, que giravam em torno da condução e hegemonia

operária.

É esse quadro estável de estruturação classista que se modifica em 1985

com a aprovação do Novo Plano Econômico pelo primeiro governo neoliberal da

Bolívia, de Paz Estenssoro do MNR. Encerrado o ciclo desenvolvimentista de

1952 que ele mesmo iniciara, Paz Estenssoro aplicou um “choque econômico

ortodoxo clássico”, com a assessoria de especialistas estrangeiros (Klein, 2008, p.

274). Está expresso no Decreto Supremo 21060: eliminação de todo o controle de

preços e salários; redução do “gasto público”; redução dos salários dos

empregados públicos; reformas fiscais; ataques à burocracia estatal; livre

contratação de trabalhadores. De todas as medidas, a que mais afetou a classe

operária foi o desmantelamento das empresas estatais, sobretudo a COMIBOL e a

YPFB. Com o colapso do mercado internacional do estanho, o Estado quis se ver

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livre deste setor industrial, e da influência obrera nas decisões públicas,

enfraquecendo os sindicatos com as demissões em massa. Entre 1985 e 1987, a

COMIBOL passou de 30 mil assalariados para sete mil. A YPFB, por sua vez,

despediu de seu plantel quatro mil assalariados (Ibid., p. 274).

Seguindo ainda as condições de possibilidade de emersão do operariado

boliviano enquanto classe, listado por Linera, vemos em (b) que no momento de

predomínio do período nacionalista, os trabalhadores conseguiam predizer um

futuro coletivo de classe. Organizavam ações para a efetivação deste porvir

coletivo, uma vez que o contrato por tempo indefinido possibilitava o

comprometimento ao longo prazo com o sindicato. A partir de 1985, com as

políticas de reformas estruturais de livre mercado, a morfologia do trabalho

supracitada será substancialmente alterada. Isto implicará no esfacelamento da

unidade classista, no enfraquecimento de tipologia organizativa sindical e na crise

da COB.

[...] a assimilação da experiência de classe veio exclusivamente pelo lado do sindicato, pois os trabalhadores, no fim das contas, não dispunham de nada além dele para enfrentar a vida, a repressão e a morte. O sindicato foi o único lugar duradouro para experimentar as vicissitudes da existência coletiva; o sindicato foi a única rede de apoio, amizade e solidariedade contínua e o autêntico lugar para o trabalhador assumir-se como corpo coletivo. O que os trabalhadores realizaram na história de 1940 a 1990 foi sob a forma sindicato: ali lutaram, fizeram uma revolução, obtiveram direitos, conquistaram saúde e moradia, protegerem suas famílias, enterraram seus mortos. Daí sua durabilidade e prioridade na construção da memória da classe operária (Linera, 2010, p. 228).

A partir da reestruturação produtiva que acelerou a fragmentação da

propriedade empresarial (privada e estatal), da desnacionalização da economia a

partir da abertura econômica ao mercado – acelerando o processo de

desindustrialização –, e das leis neoliberais que aboliram o contrato de trabalho

por tempo indeterminado, generalizaram-se as formas de contrato eventual por

tempo definido em regime de subcontratação. Neste novo cenário, uma nova

estrutura social se impôs à revelia da resistência da classe trabalhadora às

mudanças66. A predominância de trabalhadores desempregados ou

66 Segundo Linera, a Marcha pela Vida de agosto de 1986, que reuniu mineiros das minas de Siglo XX, Huanuni e Colquiri na rodovia Oruro-La Paz, representou a contrariedade deste setor às medidas de fechamento das minas por Paz Estenssoro. Mais do que isso, para o intelectual marxista, a derrota da marcha é a expressão máxima da derrota histórica do nacionalismo de Estado e do modo de organização operário, associado a este modelo de desenvolvimento capitalista, encarnado pelos sindicatos. (Linera, 2010, p. 125).

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subempregados, sem vínculos de contrato regular, portanto “dessindicalizados”67,

erodiu qualquer tipo de fidelidade a longo prazo. Portadores de uma mentalidade

“precarizada”, sem anseios de futuro, nômades sem vínculos territoriais fabris, os

trabalhadores tornaram-se mão de obra itinerante, em busca de qualquer atividade

que garantisse o seu sustento imediato68, distantes dos sindicatos e dos sentidos

classistas que os inspiraram nos últimos 30 anos.

Nessas novas condições, a capacidade de mobilização e resistência, tendo

como paradigma a ação sindical e seus anseios de ampliação dos direitos da classe

trabalhadora em interlocução direta frente ao poder público, diminui

drasticamente, sobretudo no que tange a atuação política da COB. Contudo, novas

formas de agregação social foram constituídas sobre as ruínas das empresas

estatais esfaceladas, tendo o capital étnico como eixo gravitacional das novas

organizações sociais, vinculadas, de algum modo, às comunidades agrárias.

Na Bolívia, nos últimos anos, foram construídas poderosas estruturas de

organização sociopolítica. Não mais sobre uma estrita identidade operária, mas

em torno de redes territoriais locais e cotidianas, fincadas nos costumes e

tradições dos povos originários e com uma grande plasticidade de ação coletiva

ante a necessidade de se defender contra as políticas de “capitalização”.

Foram os movimentos sociais indígenas, urbanos e rurais, além das novas organizações aglutinadas em torno da defesa das necessidades vitais [...], o que nas últimas décadas, conseguiram formar um bloco de autonomia política e democratização social. (Sader; Jinkings, 2006, p. 201).

Linera nos fala das novas estratégias de ação a partir da “forma

comunidade” e da “forma multidão”, que foram determinantes nos processos das

insurreições dos últimos anos. A “forma comunidade” perpassa a história

boliviana com muita vitalidade, embora tenha ficado em segundo plano enquanto

vigoraram as condições de possibilidades de agregação operária no século XX.

Reativada com a crise estrutural do capitalismo estatal, ela tem como base a

67 Nos anos 90, menos de 10% do total de trabalhadores da Bolívia estava sindicalizado. Ver em: Sader E.; Jinkings, I. (Orgs.), 2006, p. 201. 68 A economia ilegal e paralela da coca tornou-se uma alternativa tanto para o Estado – no esforço de minimizar os efeitos recessivos do tratamento de choque do Novo Plano Econômico de Paz Estenssoro, abrindo, com isso, a possibilidade de ingressos a partir de sua exportação no contexto de ampliação internacional do consumo da cocaína –, como uma opção de trabalho factível aos desempregados do setor mineiro que começaram a migrar para estribões andinos de Chapare no vale de Cochabamba. Ver em Klein, 2008, p. 276.

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estrutura econômica comum das comunidades, os ayllus, os quais não estão

plenamente inseridos no circuito mercantil. Portadora de uma lógica civilizatória

singular, esta forma caracteriza-se pela posse comunal da terra de cultivo, por

práticas cooperativistas no processo de produção, por um sistema econômico

familiar-comunal com elevado índice de autorreprodução, e pela valorização do

capital étnico. Nas palavras do autor:

[...] falamos das comunidades e dos ayllus como estruturas civilizatórias portadoras de sistemas culturais, de sistemas temporais, de sistemas tecnológicos, de sistemas produtivos estruturalmente diferenciados das constituições civilizatórias do capitalismo dominante (Linera, 2010, p. 259).

Os efeitos do novo padrão de acumulação, centrado na racionalidade

empresarial, se fizeram sentir nas condições de vida das comunidades. A livre

importação de produtos decretada em 1986, por exemplo, que abriu as fronteiras

para o ingresso de produção e capitais transnacionais, desestabilizou as

comunidades. A abertura comercial incidiu sobre a regulação dos preços da venda

dos produtos agrícolas (que representava 3/4 dos produtos alimentícios)

produzidos pelos “comunários” aos centros urbanos, diminuindo o montante de

renda e incidindo, com isso, sobre a reprodução simples da unidade produtiva dos

ayllus. Pelo aspecto de suas estruturas locais, isentas da lógica capitalista, a

produção comunária depende desta regulação induzida pelo Estado. Uma vez

desfeitos os mecanismos de intervenção estatal na economia, encetando medidas

de desregulação econômica e abertura do mercado, aumentou-se o esforço de toda

a estrutura familiar, para recompor os prejuízos gerados pelo aumento da

competitividade mercantil (Ibidem, p. 263).

A possibilidade de refrear minimamente os danos fazendo o uso da transição

estável de trabalhadores rurais para o meio urbano, também foi obliterada pelas

mesmas medidas que afetaram às comunidades. A desregulamentação trabalhista

que se seguiu à liberação comercial afetou milhares de atividades informais,

artesanais e industriais. A precarização do trabalho pôs fim à expectativa do

trabalhador egresso do campo de se integrar socialmente através da

“cidadanização” – parcial, diga-se de passagem – advinda do processo laboral

urbano (Linera, 2010). As medidas de capitalização afetaram o mundo do

trabalho, esgarçando o tecido social e comprometendo as estruturas de

organização dos trabalhadores. Do campo à cidade, as marchas por qualquer

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atividade de subsistência tornaram-se comuns. Logo, estas marchas serão também

a expressão da inconformidade social com as politicas neoliberais.

Neste quadro extremo de insegurança social, de rarefação de ação

propositiva dos sindicatos em defesa do mundo do trabalho, de desmonte do

Estado Nacional, o risco dissociativo das massas laborais era real, tomado à força

desmobilizadora da percepção fatalista que o novo projeto moderno impunha ao

imaginário coletivo. Contudo, os trabalhadores puderam reconstruir as suas

células organizativas a partir de suas referências originárias, através de centros

locais de associação. De um modo expressivo, a “forma comunidade” se refez nos

centros urbanos, como “forma multidão”. Linera reporta-se a ela no contexto de

debilidade do sindicalismo de empresa, ressaltando a capacidade associativa dos

indivíduos articulados em organizações locais, pleiteadoras de demandas

relacionadas diretamente a reprodução básica da vida social. Sem o horizonte

estatal de interpelação por ampliação corporativa de direitos, sem o horizonte

socialista do discurso revolucionário das esquerdas operárias minoritárias, as

demandas dos movimentos tornaram-se mais pragmáticas dentro de uma

expectativa de realização em curto prazo.

Pensou-se que, como consequência do desmantelamento das estruturas de unificação nacional, como a COB, assistiria a um longo processo de desorganização suscetível de ser disciplinada e capturada por instituições clientelistas, como os partidos, as ONGS ou a Igreja. Entretanto, o desmoronamento das antigas estruturas de mobilização nacional com efeito estatal mostrou uma multifacetada, complexa e generalizada urdidura organizativa da sociedade subalterna enraizada em âmbitos locais de preocupação (Linera, 2010, p. 247).

No desmonte dos serviços públicos, perpetrado pelo estado e gerido pela

lógica mínima do mercado, os indivíduos não atuaram de maneira isolada, mas

como partícipes de um corpo coletivo prévio: La Coordinadora del Agua de

Cochabamba, La Coordinadora de Produtores de la Hoja de Coca de Chapare,

Las Juntas Vicinales de El Alto são exemplos destas articulações horizontais que

se vinculam em nível regional. Elas formam uma rede de ação prática e autônoma

em prol de reclames de demandas específicas coletivas, como a defesa da água, da

propriedade comum da terra das comunidades, da defesa dos serviços públicos

essenciais, etc.

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[...] a multidão é uma rede organizativa bastante flexível (e, até certo ponto, frouxa) que ao apresentar um eixo de aglutinação bastante sólido e permanente, é capaz não apenas de convocar [...] outras formas organizativas e uma quantidade imensa de cidadãos soltos – que, por sua precariedade trabalhista, pelo processo de modernização e individualização, carecem de fidelidades tradicionais -, com também é uma estrutura de mobilização capaz de integrar as suas próprias redes a dinâmica interna de deliberação, de resolução e de ação [...] com a finalidade de empreender a busca de um objetivo imediato ou de longo prazo (Linera, 2010, p. 249).

É importante ressaltar que as formas emergentes de organização social que

suplantaram a antiga “forma sindicato” não vieram à tona espontaneamente. Há de

se mencionar o contexto propício para tal. Ao que pese os efeitos do

neoliberalismo na Bolívia para as organizações populares, foi justamente neste

período que ocorreu a promoção legal da etnicidade no país, com medidas efetivas

de reconhecimento deste capital identitário somadas às leis de descentralização do

poder. É claro que tais leis devem ser atribuídas à pressão dos movimentos

indígenas, presentes no cenário político desde o final dos anos 60, mas não

exclusivamente. Houve sim, por parte dos partidos da ordem (MNR, MIR, ADN)

uma adesão aberta às demandas étnicas, asfixiadas, até então, pela unicidade do

Estado Nacional Boliviano. Com o enfraquecimento induzido deste com as

políticas favoráveis ao livre mercado, a vontade indianista emergiu com muita

força, desarticulando a ideologia frágil da homogeneização identitária pela

mestiçagem cultural.

No contexto mais amplo, até 1980 não se contestavam as políticas

integracionistas e protetivas das populações indígenas pelo Estado. Tal prática era

referendada no âmbito internacional por textos e instrumentos que postulavam as

teorias etnocêntricas de evolução unilinear das sociedades humanas. A Convenção

107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, reforçava esta

visão antropológica simplista na defesa da integração dos indígenas à sociedade

nacional, negando-lhes a possibilidade de um desenvolvimento próprio,

etnicamente diferenciado. Na Bolívia, o índio era tido como um fenômeno sem

possibilidade autônoma de reprodução e potencialmente desagregador. Ante o

Estado unitário, caberia ao índio abandonar suas “primitivas” referências e se

incorporar à modernidade expressa no ethos nacional (Camargo, 2006, pp. 177-8).

Já em 1989, a convenção 169 da OIT reflete uma nova realidade. Reconhece

as realidades multiétnicas de vários países e afirma o direito à autonomia e a

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diversidade cultural das populações indígenas. Na Bolívia, o governo de Jaime

Paz de Zamora (1989 – 1993), do MIR, traduz esta nova visão, assinando em

1991 tal convenção. O presidente também reconheceu os índios das terras

orientais enquanto interlocutores políticos no episódio da “Marcha pela Dignidade

e Território”, em 1990. Entregou-lhes mais de dois milhões de hectares como

propriedades indígenas e proibiu a exploração de madeira nesta região (Alai,

1990, p. 22). Por sua vez, os quéchuas e aymaras do altiplano conseguiram que o

projeto de exploração do lítio na região de Salar de Uyuni por empresas

estrangeiras fosse cancelado por Paz de Zamora. Deixaram evidente que qualquer

decisão estatal deveria passar por um consentimento comunitário, já que na visão

dos índios a terra não pertence ao Estado, mas às comunidades.

O período neoliberal, portanto, não é um deserto no que se refere às

questões culturais voltadas à positivação dos valores, costumes e modos de

organização dos povos originários. Pelo contrário, é nesta época que os

movimentos indígenas conseguem as suas maiores vitórias políticas, apesar da

crise social gerada pelas medidas de reestruturação do capital. No primeiro

governo de Gonzalo Sanches de Lozada, do MNR, por exemplo, vemos a

promulgação de leis favoráveis, em certa medida, às populações originárias.

Aliado ao grupo katarista do MITKA, do aymara Victor Hugo Cardenas, Lozada

reconheceu a necessidade de ação nos temas indígenas, contabilizando também o

capital eleitoral desta vasta população, dispersa no território nacional.

Alguns autores apontam, no entanto, para a cooptação governista desta

vertente katarista, representada por Cardenas. Refreando o discurso autonomista,

base da narrativa aymara desde os anos 70, em favor da estratégia estatal de

reconhecimento legal da questão indígena.

[...] as políticas indigenistas internacionais, os recursos financeiros injetados a populações e organizações indígenas [...], exerceram uma grande influência sobre os katarismos bolivianos, no sentido de limar as demandas radicais do indianismo. Na década de 1990 se desenvolveu uma vertente katarista neoliberal [...]. Este katarismo complementou com medidas centradas no âmbito cultural as reformas neoliberais em curso que afetaram as formas de produção e ação política de caráter comunitário da população índia, para evitar a oposição a tais medidas e impor pautas não radicais em suas ações políticas69.

69 ESCÁRZAGA. Política y Cultura. n. 37, 2012, p. 199.

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Xavier Albo, por sua vez, exalta a ação de Cardenas creditando o avanço da

questão étnica na Bolívia a sua participação e influência ativa no Governo do

MNR:

Hugo Cárdenas contribuiu ativamente na modificação da Constituição Política do Estado em 1994. Incorporou o reconhecimento do caráter „multiétnico e pluricultural‟ do país (art.), junto com uma série de garantias constitucionais para o setor indígena (art.171). Seguiu a aprovação de diversas leis que incorporaram enfoques étnicos como o caráter „intercultural biligue‟ de toda a educação boliviana (1994), o reconhecimento da personalidade jurídica das comunidades e povos indígenas e a asignação automática de recursos públicos aos novos municípios rurais criados com a Lei de Participação Popular (1994) e, finalmente, o reconhecimento e titulação dos territórios (ou „terras comunitárias de origem‟) das comunidades e povos indígenas, com certa margem de autonomia e de acesso a seus recursos naturais, na Lei de Serviço Nacional de Reforma Agrária (1996). [...] Algumas novas disposições legais, como a Reforma Educativa e a Lei de Participação popular, logrou boa aceitação, depois de ter sido inicialmente repudiadas como „Leis Malditas do banco Mundial‟ (Albó, 2002, p. 42 e 43).

Ainda dentro desta perspectiva valorativa, em 1994, como afirmara Albó, o

governo reformou a Constituição, reconhecendo pela primeira vez a

multietnicidade e a pluriculturalidade do país. Criaram-se também, através da

modificação do artigo 171, as “Terras Comunitárias de Origem” (TCO). O Estado

passou a reconhecer pela primeira vez a propriedade comunitária indígena,

embora não abrisse mão da jurisdição do território, o que contrariou as

organizações indígenas (CSUTCB e CIDOB). Lozada ainda introduziu um

dispositivo de representação parlamentar distrital na figura dos deputados

uninominais, no esforço de descentralização do poder. Estes passaram a ser eleitos

de forma direta, ocupando a metade dos assentos da Câmara dos Deputados. O

número de indígenas eleitos em 1997 e 2002 quase triplicou com esta medida.

A medida mais importante do Governo foi a promulgação da Lei de

Participação Popular em 1994. Com vista a ampliar a presença do poder público

em todo território nacional e mitigar a exclusão de parte da população rural no

sistema político, reconfigurou-se toda a estrutura administrativa local. A Lei

criava mais municípios (mais que duplicou o existente), assegurando-lhes recursos

do tesouro nacional, de acordo com o número de habitantes. Os municípios

ficariam encarregados de gerir a saúde, a educação, o transporte e a infraestrutura.

Este instrumento de municipalização rural permitiu que muitas lideranças

indígenas alçassem aos cargos públicos de suas localidades pela via eleitoral,

interferindo na gestão dos recursos e capacitando-se tecnicamente na

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administração do governo. As eleições municipais de 1995 e 1997 deram a muitos

indígenas o controle político de suas comunidades, referendadas pelo Estado.

As políticas neoliberais, como aponta Linera, referentes aos povos

originários traziam em seu bojo uma contradição de difícil manejo: as leis

aprovadas, que eram favoráveis ao reconhecimento da especificidade étnica, se

confrontavam com as políticas de “capitalização”, que afetavam a reprodução da

vida social das comunidades indígenas, ao entregar à iniciativa privada bens

públicos, como a água, a luz e o gás. Yashar (1996) afirma que as medidas

neoliberais no campo, por exemplo, desmantelaram as redes corporativas de

proteção dos comunários. O MNR encarnava esta ambiguidade em tentar

capilarizar o poder estatal no interior das comunidades, ao mesmo tempo em que

promovia a ascensão política indígena, com a Lei de Participação Popular.

[...] O MNR é o partido político que com maior claridade detecta o significado da formação discursiva de um nacionalismo indígena, visto como perigo, assim como também as debilidades que atravessa o movimento. Por meio da aliança com Victor Hugo Cárdenas e uma série de intelectuais e ativistas do movimento indígena, o MNR converteu em política de Estado o reconhecimento retórico da multiculturalidade do país, enquanto a Lei de Participação Popular habilitou mecanismos de ascensão social local capazes de sugar o discurso e a ação de boa parte da intelectualidade indígena crescentemente descontente. A aplicação da Lei, embora tenha contribuído em alguns casos para um notável fortalecimento das organizações sindicais locais, [...] também pode ser vista como um mecanismo bastante sofisticado de cooptação de líderes e de ativistas locais [...] (Linera, 2010, p. 327).

Em suma, por um lado, a formulação de leis garantidoras de direitos –

mesmo com o fim de cooptação, como acredita Linera –, por outro, a efetivação

de medidas supressoras das condições materiais de realização destes mesmos

direitos. No interior desta contradição, os movimentos autonomistas indígenas se

afirmam no rechaço concomitante ao Estado homogeneizador e aos efeitos

corrosivos das políticas neoliberais, concernentes à reprodução da vida social.

Entre a interpelação e a rebelião, o processo de afirmação étnica, em curso desde

os fins dos anos de 1960, se consolida. Os levantes autonomistas de La Paz,

Cochabamba e El Alto, que colocam em xeque o modelo neoliberal vigente,

representam o clímax deste processo.

Como toda tendência do movimento histórico, a implantação do novo

capitalismo na Bolívia tem traços dialéticos, provocando características opostas

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(Giddens, 1991, p. 29). Mas o que importa na análise histórica não são as

intenções dos sujeitos sociais, e sim os efeitos de suas ações na realidade concreta

que independe de suas vontades: as leis “étnicas” promulgadas nos sucessivos

governos neoliberais, principalmente no de Sanches de Lozada, contribuíram para

retirar os movimentos indígenas autonomistas de seu papel secundário no cenário

político do país, dando-lhes anteparo jurídico para as suas aspirações e

mobilizações nos anos ulteriores. Destacavam-se, assim, das políticas indigenistas

predicadas desde 1952 pelo Estado, como também se livravam da esquerda

tradicional, que os queria subordinados ao “sujeito revolucionário” por

excelência: o operariado. Nem mestiço, nem operário e, em pleno influxo

conservador neoliberal, no interior das contradições do devir histórico, decidiram

pelo caminho autônomo de se afirmarem “índios” e agirem enquanto tal.

Alçaram-se à política com as leis de promoção étnica, mantendo em certa medida

sua autonomia, fazendo uso deste novo capital político contra as medidas de

“capitalização”.

Interessa-nos apreender o fenômeno que se expressa na Bolívia através dos

movimentos indígenas aymaras da zona ocidental do planalto do país que em

2003 protagonizaram insurreições populares contra as medidas de mercado do

presidente Gonzalo Sanches de Lozada. Com sua deposição, abriu-se uma nova

etapa pós-neoliberal propícia para o estabelecimento de um novo paradigma

econômico cujo principal agente de desenvolvimento é o próprio Estado com suas

funções reitoras e sociais revitalizadas70. Ademais, no bojo do processo

insurrecional surgem propostas de reinvenção do Estado, concernentes à

ampliação da participação popular, de direitos sociais, do reconhecimento da

especificidade étnica do país e, principalmente, de sua refundação a partir da ideia

da plurinacionalidade.

Ao que pesem os variados movimentos indígenas, ficaremos detidos ao

estudo dos aymaras em razão de seu peso demográfico, de sua força política e

70 Álvaro Garcia Linera, vice-presidente da Bolívia, em entrevista a Maristella Svampa e a Pablo Stefanoni em 2007, faz o balanço das medidas do Governo do MAS, eleito em 2005, com a proposta de recuperar a capacidade de investimento do Estado boliviano. Afirma: “(...) es el

Estado el que establece los costos de producción y las utilidades de las empresas privadas que

explotan gas. Así, el Estado boliviano ha pasado de controlar del 6% o 7% del Producto Interno

Bruto (PIB) al 19%. Nuestro objetivo es llegar al 30%”. Ver mais em: Monasterios; Stefanoni; Do Alto, 2007, p. 149.

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capacidade organizativa e, principalmente, pelo projeto estético-político, que

ultrapassa sobremaneira as reivindicações estritamente econômicas das velhas

agremiações de esquerda.

Comecemos com os dados demográficos, sem os quais nos tornaremos

cegos à realidade boliviana:

Na Bolívia, 62% dos habitantes maiores de quinze anos se identificam como pertencentes a algum povo indígena, e pouco mais de 40% da população tem como materno um idioma indígena. Entre os 38 povos indígenas e descendentes que existem na Bolívia, dois são os mais importantes, os quíchuas, que abarcam 30% da população total do país, e os aimarás, que chegam a abarcar 25%. Os quíchuas estão instalados na sua maioria nas zonas dos vales, e os aimarás no planalto, tanto rural como urbano. De fato, a terceira cidade mais importante do país, El Alto, é majoritariamente indígena. Os demais 35 povoados, localizados, sobretudo, nas zonas de terras baixas e planas do país, chegam a 6% do total da população recenseada. (Ibid., p. 201).

Os “povos originários” da Bolívia, como revelam os dados supracitados,

através de um processo de resistência ativa, mantiveram-se a sua narrativa acerca

da especificidade identitária ante o “outro” invasor (Tejeiro, 2007, p. 41).

Segundo ela, subsistiram à conquista espanhola nos séculos XV e XVI; à

humilhação e exploração da instituição legal da peonaje71 colonial dos séculos

seguintes; ao mundo republicano do século XIX, dominado pelas elites criollas; e

ao capitalismo do século XX, com suas promessas de modernização econômica,

progresso técnico, e homogeneização cultural. No início do século XXI, os

indígenas bolivianos somam quase 2/3 da população total do país, identificando-

se com os valores étnicos dos grupos ao quais se sentem pertencentes. Portanto,

qualquer avaliação histórica que desconsidere o sentido de tal vínculo está fadada

a especulações descoladas da realidade concreta desses povos.

Os vínculos étnicos não se expressam necessariamente através de ações

conscientes, com fins políticos determinados. É no interior das comunidades

indígenas (ayllus), na labuta diária da vida cotidiana, que se efetivam sentidos

remanescentes dos modos característicos de ser dos povos originários, sobretudo

da região andina de prevalência aimará.

71 Peonaje era uma espécie de servidão por dívida, a qual os nativos das áreas da América Hispânica estavam submetidos, sobretudo no México e na Bolívia.

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[...] impresiona observar cuántos elementos de continuidad funcionan aún a escala

local: estudios recientes han documentado la vitalidad de la herencia andina en la

producción agropecuaria, en la religión y la cosmología, en la percepción del

paisaje natural y artificial, en la iconografía del principal arte andino: el tejido.72

A existência de elementos de continuidade das culturas locais não diz nada

sobre uma possível manutenção de identidades étnicas às margens das mutações

históricas. Tais fantasias imobilistas obliteram uma compreensão mais nítida de

tais culturas. A capacidade inovadora e de abertura para sínteses de elementos

oriundos de outras sociedades não são exclusivas da sociedade ocidental-

capitalista, mas de todas as sociedades, como afirma Blaser (2007). Portanto, os

povos originários não se constituem enquanto sociedades congeladas, isoladas e

essencializadas no tempo e tampouco se apreendem enquanto sociedades

tradicionais pouco afeitas às mudanças. Na expressão do líder aimará Felipe

Quispe Huanca: “Somos índios de la posmodernidad. Queremos tratores e

Internet” (Do Alto; Stefanoni, 2007, p. 23).

A questão intermitente em pauta é a natureza das mudanças em curso. A

retórica inelutável e positivada das transformações impostas pelo ocidente sob o

signo da “modernidade”, que em sua fase mais avançada se caracteriza pela

imposição do capitalismo de tipo “neoliberal”, compromete a reprodução social

dos modos comunais societários indígenas, cuja remissão à herança do passado

constitui o cerne do discurso político de resistência aymara. O esforço de

“capitalização” da sociedade boliviana, portanto, aprofunda as diferenças

socioeconômicas entre as identidades sociais e étnicas. Por outro lado, os ayllus

perseveram-se em meio à expansão do capital, e com eles os hábitos indígenas em

todas as suas faces societárias. De um modo distinto do passado, as relações

sociais dos povos originários, baseadas em concepções destoantes do racionalismo

ocidental, perseveram também e formam uma espécie de núcleo originário, de

onde emergem formas alternativas de ordenação estética do mundo e resistência

às imposições exógenas.

José Carlos Mariátegui, nos anos de 1920, já havia apreendido a

especificidade dos povos andinos no tocante as tradições coletivistas, expressas

72 MURRA, John. Disponível em: <http://www.quechuanetwork.org/news_template.cfm?news_id=4771&lang>. Acesso em: 24 mar 2014.

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nas modalidades de cooperação nos ayllus e na implacável manutenção de tais

hábitos cooperativistas e solidários entre indígenas do Peru, Bolívia, Equador e

Chile. Alfredo José Cavalcanti Jordão de Camargo nos mostra a continuidade

destas tradições no tempo presente. (Camargo, 2006, p. 97). Os ayllus se

caracterizam pelo caráter comum da terra e pela articulação sanguínea entre as

diversas famílias que formam a comunidade. As terras comunais são coletivas e

não podem ser vendidas. A necessidade de defender a terra da ambição de

latifundiários e de outras comunidades dá estímulo às famílias para estarem

sempre organizadas enquanto um “corpo” unitário, pronto para a defesa de seu

modo de vida. Há ainda modalidades de cooperação, identificadas por Mariátegui,

existentes até hoje, como, por exemplo, a minka, que é o auxílio no trabalho entre

parceiros da mesma comunidade com a divisão do produto final da colheita. Já a

yanapaña consiste em prestação de trabalho coletivo na comunidade, sem

perspectiva de retorno econômico. A churaña, por sua vez, representa no contexto

familiar a mesma relação de cooperação que a yanapaña. Há também formas de

cooperação extracomunitárias entre índios dos ayllus e da cidade, que se mantêm

solidários em suas respectivas atividades, com vista ao auxílio mútuo. O citadino

de algum modo pode conseguir as sementes e os instrumentos agrícolas que

faltam ao camponês. O camponês, em troca, contribui com a terra e seu trabalho

pessoal. Na época da colheita, o produto é repartido conforme a proporção

previamente estabelecida (Mariátegui, 2003, p. 108 a 111).

Outra referência originária importante é a noção de autossuficiência

compartilhada pelos aymaras, cujo valor simbólico se destaca na ação política

concreta. As comunidades deixaram de ser autárquicas em decorrência de

processos histórico-econômicos vinculados aos ciclos de mineração de prata e

estanho, mas o valor heurístico da noção reside enquanto parte integrante do ethos

andino, incorporado na prática e no discurso político. É notória a resistência dos

aymaras aos projetos de venda dos recursos naturais às empresas transnacionais,

como o gás, por exemplo. Esta noção de autossuficiência os faz rechaçar a

comercialização das fontes energéticas, sabedores da falta que farão tais recursos

para as gerações vindouras (Camargo, 2006, p. 97). Portanto, a noção de

autossuficiência, independente do seu correlato empírico, é operativa na narrativa

e na prática política dos povos andinos.

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As formas de cooperação listadas acima criam redes complexas de

solidariedade, que atravessam o tecido social boliviano. Isso permite o

estreitamento dos laços políticos entre as comunidades, contribuindo para a

ativação de levantes massivos indígenas, em circunstâncias inaceitáveis de

opressão, sempre frequentes na Bolívia. O processo de “atomização” capitalista

em células individuais torna-se inoperante no contexto social do país andino,

talvez em função da tibieza do capitalismo local, e, sobretudo, por conta da força

dos povos originários. Estes são resolutos na afirmação, muitas vezes

revolucionária, daquilo que se é, e do que se quer continuar sendo.

Albó (2002), em seu estudo etnográfico das comunidades aymaras de

Jukumani e Qaqachaka, afirma categoricamente que o aymara rural vive

submergido em seus grupos primários: a família e a comunidade. Os traços

fundamentais deste “campesino altiplânico” residem no compartilhamento do

território, no cumprimento de tarefas comuns em benefício de todos, nas decisões

ancoradas no aval comunitário, no próprio sistema de autoridades, e no conjunto

de normas e princípios éticos – regularmente não escritos – referendados pelos

mais velhos (Albó, 2002, p. 10). Isso não significa dizer que não há cisões

internas e disputas entre as próprias comunidades concernentes aos escassos

recursos para sobrevivência e disputas territoriais. O que a narrativa política tende

a esconder para consecução das ações dos grupos mobilizados, o estudo

etnográfico traz à tona. Ao aymaras possuem um traço bastante forte de

“faccionalismo” que muitas vezes se expressa em violência aberta entre

comunidades distintas.

As veces al calor de la disputa llega a la confrontación física. La chispa puede ser

el desvío de una acequia, la roturación de un terreno disputado o cualquier otro

tipo de acción unilateral en torno al objeto de controversia. Entonces puede haber

intercambios de golpes, pedradas, guerra de hondazos, etc., de los que pueden

quedar algunas víctimas, heridos o muertos, como saldo. En casos más extremos,

no del todo raros, esta situación puede volverse crónica y los incidentes de

violencia se hacen entonces reiterativos, acumulándose las víctimas por cada lado.

(Ibidem, p.19).

Mas até aqui, no campo do conflito, o seu individualismo se realiza em um

“egoísmo” comunitário de grupo. Portanto, o princípio comunitário sempre

prevalece na lógica aymara: desde os fundamentos os quais ordenam a sua

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percepção do mundo – que os kataristas chamam de cosmologia73 –, até as formas

de organização da vida social. Podemos dizer que esta base comunitária torna-se o

mecanismo de ação coletiva contra as ameaças do mundo q‟ara.

Em Outubro 2003, na cidade de El Alto, nas “orillas” de Laz Paz, houve

uma grande rebelião social, protagonizada por uma multidão de pequenos centros

articulados, sem uma direção política direta. Os moradores da cidade de recente

migração rural, predominantemente aymaras, vivem organizados em

comunidades urbanas de tipo territorial, denominadas “juntas vicinales”, cujas

formas cooperativistas – as quais se remetem às estruturas organizativas dos

ayllus do altiplano – garantem a sobrevivência desses povos em um contexto de

pobreza extrema, uma vez que os serviços sociais estatais são inexistentes. As

“juntas vicinales” servem como uma espécie de “seguro social” autônomo, com o

qual contam os migrantes para construir suas casas, empedrar ruas, instalar

serviços básicos ou controlar a segurança local (Sader; Jinkings (Orgs.), 2006, p.

203). Em 2003, o processo de privatização dos bens urbanos básicos (água, luz e

transporte) e dos hidrocarbonetos (sobretudo, o gás), conduzido pelo presidente

Gonzalo Sánches de Lozada, contribui para a maturação política dos povos

aymaras de El Alto, que decidiram por uma insurreição desarmada. Após a

violência da repressão estatal com saldo de 69 mortos, o levante culminou na fuga

do presidente para os EUA e precipitou uma crise violentíssima do sistema de

partidos em vigor e, de um modo geral, do sistema político encarnado no modelo

europeu do Estado Nacional – que na Bolívia se expressa pelo caráter excludente

de sua conformação e de subordinação aos ditames imperialistas exógenos.

No bojo destas lutas sociais, as maiorias indígenas sintetizaram as suas

demandas na elaboração de uma agenda política (“agenda de outubro”) com as

proposições de acabar com o regime em vigor, considerado não representativo e

repressivo, a partir do controle soberano dos recursos naturais e da convocação de

uma Assembleia Constituinte para reestruturar a política nacional. O MAS de Evo

Morales, mais do que qualquer outra agremiação, canalizou este

descontentamento generalizado e formulou seu projeto de poder a partir dessas

vivências de luta. Sabe que, assim como a autenticidade das rebeliões aymaras

73 Estudaremos tais caracteres simbólicos no capítulo 4.

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está ancorada no dinamismo oriundo das formas de organização comunitárias de

aymaras, quéchuas e outras etnias, pleiteia-se um novo Estado que garanta a

continuidade dos modos de organização indígena-comunitária, como orientação

para o ordenamento da vida social. Com este projeto que o MAS chega ao poder

em 2005.

Dito isso, é necessário mais uma vez enfatizar a novidade em questão.

Como nos informa Tarik Ali:

Em 2003, nem os partidos de oposição nem os sindicatos lideraram a multidão ou forneceram representação política comparável durante o levante que produziu este movimento. A afluência de estudantes progressistas, intelectuais e profissionais das classes médias mestiças e brancas foi pequena, enquanto fileiras de trabalhadores de ascendência aimará, urbanos e rurais, enchiam as ruas do centro (Ali, 2008, p. 121).

A “reemergência étnica”, para utilizarmos a expressão de Albó74, não é um

fenômeno secundário, que devemos incorporar em nossas análises de modo

subordinado às preocupações de teor economicista, as quais nos levam a

sobrevalorização do vetor “classe” para o entendimento funcional da dinâmica do

capitalismo em nossos tempos e dos influxos revolucionários que varrem a

América Latina. Na região Andina, sobretudo na Bolívia, há uma distinta

afirmação de identidades forjadas pela experiência do pertencimento a etnias

indígenas. Quíchuas, aymaras, ignacianos, guaranis, entre tantas outras etnias,

forjam os seus movimentos e ações políticas a partir dos valores originários de

seus povos e do modo de organização da vida cotidiana. Percebemos claramente

que nos levantes aymaras de 2003, em El Alto, não houve dirigismo partidário

orientado por necessidades obsessivas de unidade a priori e de vanguardas

operárias para condução do movimento, e sim articulações horizontais e

espontâneas de “juntas vicinales”, associações de bairros e movimentos indígenas.

Já falamos acima da nova composição material que influiu na decomposição das

condições operárias vigentes. A referência subjetiva de “classe”, que dava coesão

às lutas dos subalternos, organizados por sindicatos com imenso poder político,

fora substituído por uma vontade indianista com uma intensa capacidade de

expressão. Melhor dizendo, existe uma coexistência entre os elementos “classe” e

74 ALBÓ, Xavier. La Utopia Pluricultural. Disponível em: <http://www.sjsocial.org/crt/albo.html.>. Acesso em 12 mai 2014.

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“etnia” no processo de subjetivação coletiva – não só na Bolívia, como em

diversas partes do mundo – com predominância do último, o que faz do fenômeno

da “reemergência étnica” um aspecto de fundamental relevância.

A dinâmica classista dos processos sociais nos deu à diretriz, no século

XX, para compreensão e intervenção nos mesmos. Não a apreendemos como mera

representação conceitual, mas como um mecanismo concreto de ordenamento das

formações sociais engendradas pelo modo de produção capitalista. Embora

vivamos uma nova fase de expansão do Capital, designada positivamente de

“globalização”, cuja complexidade de novos elementos a faz distinta de todas as

outras fases de seu desenvolvimento, a substância que jaz sob as novas formas

híbridas de acumulação, é a mesma: capital e trabalho. Em sua dicotomia

conflituosa, este embate permanece como anteparo concreto, que concede

existência e inteligibilidade ao sistema75. As leis do capitalismo, como afirma Eric

Hosbsbawm, são simples: “Maximizar a expansão, os lucros e o aumento do

capital”(Hobsbawm, 1999, p. 77). Em nossa época vemos tais leis operaram

através da matização do poder dos Estados Nacionais, da reestruturação produtiva,

possibilitada pelo esplendoroso avanço técnico das tecnologias de informação e

comunicação, e do aumento estratosférico da exploração sobre o trabalho.

Contudo, sobrepõe-se a tal dinamismo operativo clivagens culturais que haviam

sido minimizadas no período da Guerra Fria e que agora emergem, rompendo o

otimismo homogeneizador do processo dito inexorável da expansão do Capital.

Ainda que se possa dizer que há uma tendência histórica „natural‟ no sentido

“globalizador” nas áreas de tecnologia, comunicação e economia (Idem, p. 62),

isso não vale de modo algum para a cultura. Valemos de dois pertinentes

comentários de intelectuais radicalmente divergentes no aspecto teórico, mas que

identificam o mesmo problema em suas análises: Samuel P. Huntington e Eric

Hobsbawm.

[...] a cultura e as identidades culturais [...] estão moldando os padrões de coesão, desintegração e conflito no mundo Pós-guerra Fria. [...] A modernização econômica e social não está produzindo nem uma civilização universal de qualquer modo significativo, nem a ocidentalização das sociedades não-ocidentais (Huntington, 1996, p. 18 e 19).

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Não obstante a perspectiva de Huntington em menosprezar as cisões

classistas das sociedades capitalistas, em consideração às afirmações idealistas

que veem o “motor da história” nos conflitos civilizacionais, o trecho acima nos

coloca um problema de enorme envergadura. Não houve a padronização cultural

com o processo aparentemente homogeneizador da “globalização”. Após a Guerra

Fria, um fato concreto se impôs sobre o ordenamento da Nova Ordem Mundial: os

conflitos em torno das identidades étnicas fervilharam no mundo, fenômeno este

que podemos denominar, em referência ao antropólogo boliviano Xavier Albó, de

“reemergência étnica”, como já foi dito.

Al tiempo que desaparecían los regímenes socialistas de la Europa del Este,

empezaron a brotar como hongos, ahí mismo, una serie de conflictos y propuestas

con un fuerte componente étnico y cultural, desde los países bálticos

independizados hasta la descompuesta Yugoslavia, pasando por todo el Cáucaso y

Chechenia. Todos esos procesos mostraban que la anterior insistencia en sólo la

lucha y enfoque de clase, nunca había logrado apagar otras identidades que se

habían ido forjando en largos siglos de historias locales, con sus tradiciones

lingüísticas, religiosas y culturales. Surgieron incluso nuevos estados en países

que nunca en el pasado habían gozado de esa condición. No era un simple

fenómeno ligado a los viejos países socialistas. Al lado de acá del telón de acero,

ya habían ocurrido desde mucho antes fenómenos semejantes en numerosos países

europeos. Suiza, con sus muchos cantones y sus cuatro lenguas oficiales no es la

excepción, ni mucho menos. No debemos olvidar, por ejemplo, el carácter federal

que tiene el Reino Unido, en que Inglaterra no es más que un componente, junto

con Escocia, Gales e Irlanda (dividida aún en el norte protestante y el resto

católico, independiente). Pese a su pequeño tamaño, Bélgica tiene flamencos y

valones; Holanda no es tampoco el nombre de un estado sino de sólo uno de los

“países” que, junto con Frisonia y otros varios, componen el “Reino de los Piases

Bajos” (Netherland). Alemania es otro mosaico de identidades, cada una con su

propia expresión política: Baviera, Sajonia, Prusia... Tras la muerte de Franco, el

reino de “las Españas” reencontró también sus muchas identidades, desde las

rebeldes Catalunya y Euskadi hasta la sureña Andalucía, con su legado árabe, y

las distantes Islas Canarias.76

A América Latina, por sua vez, também não está à margem deste

movimento de resgate das especificidades étnicas, intensificados após 1989. Na

Bolívia, verifica-se o fortalecimento da identidade e persistência étnico-cultural

aymara desde os fins dos anos 60. O despertar reivindicativo dos povos indígenas

frente ao Estado Nacional homogeneizador precipitou-se com o movimento

katarista aymara, e tornou-se crônico na última década.

76

ALBÓ, Xavier. La Utopia Pluricultural. Disponível em: <http://www.sjsocial.org/crt/albo.html.>. Acesso em 12 mai 2014.

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[...] Um dos grandes problemas do século XXI será definir qual o nível máximo de homogeneidade, além do qual haveria uma reação aversiva, e em que medida esse processo pode ser compatibilizado com a diversidade presente no mundo. (Hobsbawm, 1999, p. 66).

Hobsbawm dimensiona o problema que se configura após 1989 ao se

referir às tensões entre o processo expansivo do capitalismo enquanto paradigma

civilizacional “europeu” (e não universal) e a diversidade cultural cada vez mais

manifesta. Cada grupo étnico em reinvenção permanente de seu ser, ativando os

elementos de um passado remoto que muitas vezes sobrevivem em suas práticas

cotidianas – como no caso dos aymaras –, mostra-se, em grau crescente,

inflexível na afirmação daquilo que são ou daquilo que querem ser. Eles

representam os obstáculos mais duros aos clamores da modernização ocidental,

que em sua atual fase reza o credo do livre mercado e da universalidade do

desenvolvimento da humanidade.

É importante dizer que se a conjuntura pós Guerra Fria permitiu

paradoxalmente um maior grau de coesão entre os grupos étnicos, muito em

função da debilidade dos Estados Modernos (Albó, op. cit.) - ante a força

transnacionalizada da ”economia-mundo” –, ela por si não é a causa do

surgimento dos movimentos ancorados nos valores históricos de tais grupos. Na

Bolívia, como mencionado acima, desde os fins dos anos de 1960 e princípios de

1970, já havia o “katarismo aymara”, com suas várias modalidades, expressas

principalmente pela CSUTCB (Confederación Sindical Única de Trabajadores

Campesinos de Bolívia) e pelos partidos indígenas, que tiveram crucial

importância no processo de restauração parcial da “democracia” em 1978. A

existência do katarismo, com suas demandas étnicas, já indicava a necessária

renovação das formas organizacionais dos partidos e movimentos de esquerda,

além de ter produzido discursos que captavam os anseios dos originários da terra,

cuja exploração do trabalho pela elite branca e mestiça vinha acompanhada da

opressão racial, entranhada no continente desde 1492.

Na Bolívia, formas contra hegemônicas foram inventadas e espraiam-se

sobre o conjunto da sociedade, incluindo partes significativas de setores médios, o

que deu um caráter mais difuso ao processo crescente de desprestígio do modelo

capitalista do tipo neoliberal. As jornadas de luta de Outubro de 2003, na cidade

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aymara de El Alto, em favor da nacionalização dos recursos energéticos, como já

dito, articularam demandas da classe trabalhadora e dos grupos minoritários

étnicos, com prevalência do discurso afirmador das especificidades dos povos

originários. Atentemos para esse dado. A Bolívia está vivendo uma das mais

importantes reconfigurações das relações de poder político de sua história e não

podemos mais nos posicionar sob a ótica inócua que enxerga as manifestações

culturais como efeitos de superfície, causados pelos tremores reais dos

movimentos infraestruturais da economia. Coloquemos a “reemergência étnica”

no seu devido lugar sem desprezar a profunda divisão classista que o capitalismo

enseja, especialmente em países pobres com maioria indígena, como é o caso da

Bolívia. Mariátegui já afirmava nos anos 20: “Nestes países o fator „raça‟

complica-se com o fator classe, de forma que uma política revolucionária não

pode deixar de tê-los em conta” (Mariatégui apud Bellotto, 1982, p. 56).

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Indio fue el nombre con que nos sometieron,

Indio sera el nombre con el que nos liberaremos.

Domitila Quispe

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4. IDENTIDADE ÉTNICA E MOVIMENTOS SOCIAIS

A discussão a respeito da identificação étnica na Bolívia está relacionada a

dois fatores endógenos à história do país andino. 1 - O conflito inter-étnico gerado

pelo colonialismo e atualizado pelas formas contemporâneas de dominação q‟ara

sobre os povos originários. Teijeiro, por exemplo, dá ênfase à resistência e a

rebelião como principais instrumentos dos aymaras em sua estratégia de

sobrevivência etnocultural para fazer frente aos fortes embates ante a colonização

espanhola e a posterior dominação dos setores criolos durante o período

republicano (Teijeiro, 2007, p. 13). 2 - A crise estrutural do capitalismo de

Estado que dissipou a ideologia nacional de assimilação do índio abrindo brechas

para a afirmação das identidades originárias, até então asfixiadas pela retórica da

unidade produtiva da classe trabalhadora. Identificado como camponês, no final

de século, os índios se sentem cada vez mais pertencentes à sua cultura originária

(e aqui não interessa se de fato são), politizando esta referência no seu embate

contra o Estado.

Como visto no primeiro capítulo, estes fatores listados acima tem a ver

diretamente com a dupla crise hegemônica em curso na Bolívia: do ponto de vista

da curta duração, o que se experimenta é a crise de um modelo de acumulação do

capital designado de neoliberalismo. Aqui, nos atemos às consequências sociais

das políticas econômicas orientadas para o mercado, e à valorização do potencial

étnico nas formas de agregação popular nas dobras das contradições do projeto

neoliberal. Porém, uma visão mais abrangente nos coloca de frente a uma crise de

longa duração que abala os alicerces da própria modernidade europeia. Aqui a

crise não se reduz à economia. A crise é de valores como nos informa a narrativa

política dos manifestos indianistas citados.

Para a melhor compreensão desta crise de pertencimento que afeta

indivíduos e grupos sociais na Bolívia, é necessário um olhar global sobre os

efeitos da modernidade tardia (Hall, 1992) nestes processos de subjetivação77.

77

Tomamos a definição de Teijeiro de “modos de subjetivação” para identificarmos o processo de construção de identidade:

El hecho de vivir y sentirse parte de una determinada cultura (…) solo se da cuando el

individuo llega a establecer un vínculo afectivo con ella. La generación del dicho vínculo

afectivo representa la realización de una dinámica de mayor connotación subjetiva;

entendiendo lo subjetivo en el sentido de ser un desarrollo que se realiza esencialmente en

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Para tal, é importante dimensionarmos o problema a partir da constituição e crise

da noção de sujeito no mundo moderno, e seus efeitos sobre países de maioria

indígena como a Bolívia.

Stuart Hall em “A identidade cultural na pós-modernidade” alerta-nos da

crença moderna da emersão de um sujeito autocentrado alheio às influências

externas, portanto, autônomo em sua realização unificada. Não é a toa que os

principais filósofos deste período recomendam o esvaziamento subjetivo para a

realização máxima da finalidade da epistemologia nascente: o encontro do sujeito

com o objeto, isto é, o ressoar da verdade objetiva no interior petrificado do

sujeito humano. Para tal, concebe-se enquanto fato a dicotomia entre mente e

corpo. Descartes, primeiro formulador moderno desta concepção, fazendo uso

moderado do ceticismo em seu método da dúvida, chegara à primeira verdade

apodítica isolando o pensamento da realidade material: “Cogito, ergo sum”, ou

seja, “Penso, logo existo”. Desde então, a concepção do sujeito racional, pensante

e consciente, situado no centro do conhecimento, cujo crivo de sua análise ativa

independe de qualquer contexto cultural, tornou-se a base ontológica para o saber

científico. Posto as bases da ideia de universalidade, a episteme moderna

precisaria apenas de uma perspectiva científica mais instrumental para fazer do

mundo o espelho do homem (ou o homem o espelho do mundo). Homem e mundo

europeu, diga-se de passagem. E isto, os empiristas deram a ela.

Na esteira do racionalismo cartesiano, o sujeito do Iluminismo do século

XVIII vê o indivíduo enquanto ente unificado, fechado em si mesmo e dotado de

faculdades a priori. Deriva-se daí, no plano social, noções como de

individualidade. Como afirma Raymond Willians O pensamento político do Iluminismo seguiu este modelo. O argumento começava com os indivíduos, que tinham uma existência primária e inicial. As leis e as formas de sociedade eram deles derivadas: por submissão, como em Hobbes; por contrato ou consentimento, ou pela nova versão da lei natural, no pensamento liberal (Willians, 1976 apud Hall, 2011, p. 29).

Esta concepção individualista do sujeito que em sua prática social

legitimava o processo de constituição do capitalismo não resiste ao próprio

desenvolvimento deste. À medida que as sociedades modernas se tornavam mais

complexas, adquiriam formas mais coletiva e social (Hall, 2007, p. 29). O

la interioridad del individuo. Las características de cómo se configura y se establece dicho

desarrollo son denominadas modo de subjetivación (TEIJEIRO, 2007, p. 42).

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indivíduo logo ficara enredado “nas maquinarias burocráticas e administrativas do

Estado Moderno” (Ibid., p. 30). Neste contexto, surgiram teorias sociais

reivindicando uma concepção social do sujeito. Nem solipsismo no campo da

epistemologia, nem individualismo no campo social. A teoria da socialização

evocava a interação entre o dentro e o fora, entre o indivíduo e o meio. A sociologia (...) forneceu uma crítica do „individualismo racional‟ do sujeito cartesiano. Localizou o indivíduo em processos de grupo e nas normas coletivas as quais, argumentava, subjaziam a qualquer contrato entre sujeitos individuais. Em consequência, desenvolveu uma explicação alternativa de modo como os indivíduos são formados subjetivamente através de sua participação em relações sociais mais amplas (Hall, 2007, p. 31).

Contudo, mesmo atribuindo à sociedade um papel interativo na construção

da subjetividade humana, esta teoria mantinha de algum modo o dualismo

cartesiano na medida em que enxergava ainda esta relação entre duas partes

isoladas que se influenciavam mutuamente: o indivíduo e a sociedade. Somente na

segunda metade do século XX que esta concepção substancialista do sujeito irá se

colapsar no contexto da “modernidade tardia”, como afirma Hall. Todavia, já

vemos abalos consistentes no século XIX nas teorias dos dois maiores filósofos

modernos: Nietzsche e Marx.

A marca da civilização moderna, como vimos, é o esvaziamento

subjetivo, a perda dos referenciais culturais tradicionais que pautam as ações dos

sujeitos sociais na resolução de seus problemas práticos. Para Nietzsche, o

problema da perda das referências de valores que norteiam a ação dos homens no

mundo é de envergadura maior. O filósofo alemão refere-se à “morte de deus”

(Nietzsche, 2009, p. 147) em “Gaia Ciência” no aforismo 147, o qual relata o

desespero do homem moderno que se descobre sem deus, sem nenhum amparo

ontológico estruturador de todos os sentidos possíveis.

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs a gritar incessantemente: „Procuro Deus!‟ [...] – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. „para onde foi deus?‟, gritou ele, „já lhes direi! Nós o matamos – você e eu. Somos todos seus assassinos. Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol? (...) Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! (...) E nós o matamos!‟ (Nietzsche, 2009, pp. 147 e148)

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O filósofo expressa a dissolução do pensamento metafísico, o fim das

dicotomias que asseguravam a determinação de todo ente e sua própria

inteligibilidade. Até agora se pensara a vida alijando a multiplicidade de seu

caráter autônomo e essencial subordinando-a a unidade apriorística do Ser ou

qualquer outra categoria que lhe conferisse suporte ontológico. A realidade

fenomênica sempre fora julgada, por um ou por outro, como aquilo que parece

ser, mas não é. A ascese filosófica deveria sempre conduzir as especulações para o

exterior dos campos relacionais protegida pela pressão da força irresistível e

destruidora do “devir”. O mundo das ideias de Platão, a substância de Aristóteles,

e até mesmo a “consciência” cartesiana serviriam como núcleo de estabilidade no

qual vida deveria se conformar, se legitimar e se explicar.

“Deus está morto”: com esta expressão lapidar, Nietzsche traz à

superfície a tragicidade contemporânea do homem moderno. Deus é o conceito,

para o filósofo, que sintetiza esse esforço de milênios para acalmar o “devir”.

Mais que isso, fez da esplendorosa produção de diferença um ermo de sombras

enganadoras. Agora ele está morto - a perspectiva estruturadora e necessária de

todas as perspectivas! Em seu trono, soberano, reina o “devir” – não a

consciência! – depurado da culpabilidade restritiva que o acompanhara ao longo

da história. Com ele, a transcendência torna-se um fim despropositado, e é

admitida com toda a violência a natureza absolutamente imanente do processo de

individuação do mundo. E do homem, diga-se de passagem, uma vez que a

consciência para o filósofo alemão não é um “mero aparelho de objetivar e

registar” (Nietzsche, 2009, p. 13) – o ente substancial a qual substitui deus

cumprindo a função de esteio ontológico –, mas um simples órgão de adaptação

biológica78.

Abre-se com “a morte de deus” o vazio que conduz o homem a uma queda

sem fim em sua desolação por uma metafísica ou minimamente uma

epistemologia que o ampare. Não há mais. Como bem avaliou Marx, “Tudo o que

é sólido desmancha no ar” (Marx, 2001, p. 29). É a força diluidora do “devir” - a

condição existencial do homem em suas determinações com o meio movediço que

a modernidade instaurou - o traço primordial da realidade. E Nietzsche afirma tal

78 Ver mais nesta dissertação, no capítulo 2.

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dinamismo sem a lamentação niilista que o imputam equivocadamente. Percebe o

tempo moderno como “uma fatídica simultaneidade de primavera e outono”

(Nietzsche, 2009, p. 21), e anuncia o novo homem porvir, o “Ubermensch”

(“além-homem”).

As ideias de Marx, por sua vez, resvalam num certo otimismo iluminista

positivado pela noção de “progresso” que a sociedade burguesa no bojo de seu

desenvolvimento criara. Como revela em seu manifesto (2001), não há solidez

que resista aos fluxos disjuntivos que a burguesia no seu afã criador desvelara. As

velhas tradições soçobram no mar das transformações inexoráveis, e diante das

ruínas feudais “maravilhas superiores às pirâmides egípcias, aos aquedutos

romanos e às catedrais góticas” (Marx, 2003, p. 28). Um mundo de quinquilharias

esplendorosas trazidas pelo desenvolvimento técnico. A abolição definitiva das

necessidades orgânicas que amedrontam o homem, até então, prisioneiro de um

meio natural hostil e aterrador.

Marx faz o elogio ao devir-burguês, a erupção de forças sociais que

erodem as relações sociais baseadas na crença de sua eternidade. Mas o faz ciente

do caráter ambíguo das correntes da história moderna. Tais forças libertam, mas

também escravizam. Afirma o filósofo, “em nossos dias, tudo parece estar

impregnado do seu contrário” (Marx, 2001) confirmada por Marshall Berman:

“Há um fato eloquente, característico deste nosso século XIX, um fato que

nenhuma facção ousa negar. O fato básico da vida moderna, conforme a vê Marx,

é que essa vida é radicalmente contraditória em sua base” (Berman, 2007).

O filósofo alemão nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844

explicita as relações de trabalho no interior do processo de produção capitalista

mediado pela expropriação da riqueza produzida pelo trabalhador. O processo de

esvaziamento subjetivo passa necessariamente pela atividade de exteriorização do

trabalhador que se resume, segundo Marx, na alienação do homem de seu objeto

de trabalho, da própria atividade criadora, no estranhamento de si mesmo e de

outros homens (Marx, 2008, pp.77 a 98). Em suma, o trabalho que deveria ser a

atividade humana por excelência, sinônimo de realização, liberdade e felicidade,

nas condições capitalistas de produção, desumaniza.

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Examinamos o ato de estranhamento da atividade humana prática, o trabalho sob (...) 1. A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto estranho e poderoso sobre ele. Esta relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente. 2. A relação do trabalho com o ato da produção no interior do trabalho. Esta relação é a relação do trabalhador com sua própria atividade como uma atividade estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. (...) 3. Do ser genérico do homem, tanto da natureza quanto da faculdade genérica espiritual dele, um ser estranho a ele, um meio de sua existência individual. Estranho do homem o seu próprio corpo, assim com a natureza fora dele, tal como a sua essência espiritual, a sua essência humana. 4. Uma consequência imediata disso, de o homem está estranhado do produto de seu trabalho, de sua atividade vital e de seu ser genérico é o estranhamento do homem pelo próprio homem (Marx, 2008, pp. 83-85).

A atividade laboral, portanto, subjetiva e “dessubjetiva” de acordo com as

condições materiais de existência. Não podemos pensar o humano enquanto

sujeito unificado, mas como produto de um devir histórico, condicionado pelas

formas de produção de sua própria vida social. Marx desabilita a consciência em

sua versão solipsista ao afirmar a sua determinação última no modo de produção.

Descreve o esvaziamento valorativo humano a partir das relações de trabalho no

interior do processo de produção capitalista, mas aposta, assim com Nietzsche,

nas possibilidades gestadas pela modernidade: a revolução social protagonizada

pelo produto moderno deste mesmo processo, a classe operária (Marx, 2001, p.

18).

No capitalismo tardio, ao gosto de Hall (2001), a noção de sujeito não

sobrevive ao revolucionar permanente dos instrumentos e das relações de

produção, e, por conseguinte, do conjunto das relações sociais (Marx, 2001, p.

28). Não vivemos a superação da modernidade, mas entramos num período em

que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e

universalizadas do que antes em função das novas tecnologias de comunicação e

informação que comprimem o espaço-tempo como nunca antes (Giddens, 1991, p.

13). Giddens nos reporta ao conceito de “desencaixe” para mensurar a

radicalização de certas tendências contidas no processo de modernização o qual

promove a “extração” das relações sociais dos contextos locais de interação e sua

reestruturação ao longo de escalas indefinidas de espaço-tempo (Ibid., p. 31).

Este processo de esvaziamento subjetivo, de “desencaixe”, não diz respeito

apenas aos elementos conformadores da própria subjetividade, tida como uma

substância irredutível ao movimento, ente permanente de onde emerge a natureza

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da própria humanidade. No capitalismo tardio ele racha, se fragmenta e abre

possibilidade de pensar os modos distintos de subjetivação que não se excluem.

Nem o “Ubermensch” nietzschiano nem o operário marxiano. Apenas um

processo de subjetivação multifacetado que não encerra uma totalidade identitária,

mas a abertura permanente de constituição que não se realiza. Neste processo de

constituição de identidade que se corrompe antes de tomar consistência é que

discutiremos acerca do conceito de “etnicidade”, tão cara aos povos originários da

Bolívia. Teremos ainda esteios ontológicos a nos firmar neste processo “líquido”

que a modernidade inaugura?

Rompendo os limites do sujeito cartesiano, podemos pensar nos processos

de subjetivação modernos, na formação de identidades culturais coletivas e sua

politização em torno de um projeto social compartilhado. Para Poutignat e Streiff-

Fenart, no mundo moderno, a referência máxima de identidade cultural é a

“nação”, vista como o principal vetor de atração e repulsão dos povos (Poutignat;

Streiff-Fenart, 2011, p. 34), principal sistema de representação simbólica cobrindo

o vazio da alma moderna. (Hall, 2011, p. 58) Para Ernest Gelner,

A ideia de um homem sem uma nação parece impor uma grande tensão à imaginação moderna. Um homem deve ter uma nacionalidade, assim como deve ter um nariz e duas orelhas. Tudo isso parece óbvio, embora, sinto, não seja verdade. Mas que isso viesse a parecer tão obviamente verdadeiro é, de fato, um aspecto, talvez o mais central, do problema do nacionalismo. Ter uma nação não é um atributo inerente da humanidade, mas aparece agora como tal (Gelner, 1983 apud, Hall, 2011).

A identidade nacional não é um atributo da alma, como constata Gelner,

mas deve ser pensada enquanto tal para preencher o vácuo subjetivo instaurado

pela modernidade. A nação deve cumprir o fim de promover sentido e coesão

social num mundo sem esteios ontológicos. A lealdade e a identificação que nas

sociedades ditas “tradicionais” eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região

foram transferidas nas sociedades ocidentais à cultural nacional (Hall, 2011, p.

49). Ela passou a ser vista, portanto, como algo inerente à própria constituição

biológica do ser humano, identificada aos caracteres genéticos nas versões racistas

oitocentistas da nacionalidade como a do zoologista Vacher de Lapouge

(Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 33). A certeza do “ser” inscritos no próprio

corpo, fazendo dos laços biológicos os laços nacionais neste empreendimento de

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cristalização de uma crença identitária. Tal visão foi prontamente refutada por

Ernest Renan em 1882, em seu famoso ensaio O que é uma nação?.

A nação não diz respeito aos fundamentos atribuídos ou herdados de

pertença, impondo-se ao homem como fatalidade, mas para Renan ela se refere

exclusivamente por uma busca voluntarista de adesão que faz da existência da

nação “um plebiscito de todos os dias” (Renan, 1887, p. 307 apud Poutignat;

Streiff-Fenart, 2011, p. 35). É necessário, portanto, o desejo, a vontade e o

consentimento dos indivíduos para forjarem subjetivamente o sentimento de

pertença e matizar este fosso que o devir moderno cavou dentro de nós. É

necessário crê-se partícipe de um corpo coletivo – a crença como condição de

adesão – que compartilha o mesmo sistema de representação cultural fundado em

alguns critérios de pertencimento: 1. Uma narrativa de nação que “inventa” um

passado comum. ; 2. A crença numa tradição que se perpetua no tempo e se

atualiza no presente; 3. A invenção de tradições que aparentam ser antigas, mas

que são de origens recente materializadas num conjunto de práticas, sobretudo

simbólicas. 4. A crença num mito de origem. 5. A crença na identificação

passadista com um povo original (Ibid., pp. 52-56).

Em suma, a “nação” é um ente enxertado em nossa subjetividade que se

quer real, e depende da vontade, da crença dos indivíduos para se fazer de fato

realidade em sua função política de legitimação de uma forma de conformação

das relações de poder: o Estado. Na verdade, a condição deste requer a existência

desta comunidade simbólica representada pela cultura nacional.

Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos-ãs legais de uma nação; elas participam da ideia de nação tal como representada em sua cultura nacional (Hall, 2011, p.49).

Esta percepção antiessencialista inaugurada por Renan desdobra-se na

ideia de que na base da formação das nações, encontra-se uma série de fatos

contingentes, de acasos de conquistas seletivamente esquecidos para se afirmar

um padrão cultural comum. “A essência de uma nação reside no fato de todos os

indivíduos terem muitas coisas em comum, e igualmente que todos tenham

esquecido bem as coisas” (Renan, p. 286 apud Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p.

36). As nações como afirma Hall (2011) são produtos de um processo de

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supressão forçada da diferença cultural. As diversas matrizes que formam uma

nação são suprimidas em prol da “nacionalidade” hegemônica, e este processo de

neutralização da diferença deve ser esquecido em função do êxito da unidade da

identidade forjada pretendida.

Não existem grupos racialmente puros, mas populações que esqueceram o fato de serem originárias de uma fusão, e (...) tal esquecimento é essencial para fundar o sentimento de pertença comum (Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 36).

Sem o mecanismo ideológico do esquecimento coletivo, as estruturas

simbólicas que forjam as condições de possibilidade da identidade nacional se

esgarçariam revelando a pluralidade étnica originária. Mesmo as culturas

europeias aparentemente estabilizadas pelo processo de exclusão da diferença

perpetrado pela ação coercitiva do Estado, apresentam um riquíssimo pluralismo

em sua formação. Como observa Renan

[...] a França é céltica, ibérica e germânica. A Alemanha é germânica, céltica e eslava. A Itália é o país onde [...] gauleses, etruscos, pelagianos e gregos, para não mencionar outros, se intersectam numa mistura indecifrável. As ilhas britânicas, consideradas como um todo, apresentam uma mistura de sangue celta e germânico, cujas proporções são particularmente difíceis de definir (Hall, 2011, p. 65).

As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de

forma subordinada ao teto político do Estado-nação (Hall, 2011, p. 49), e a crença

emulada pelo poder serviu como baliza de legitimidade para o reconhecimento da

referida unidade nacional que historicamente nunca existiu. Na Bolívia, por

exemplo, o paroxismo desta forma de representação encontrou guarida tardia após

a Revolução de 1952 que encetou o processo de modernização via Estado. A

construção do discurso identitário negava o pluralismo étnico em sua formulação

de uma comunidade simbólica gestada a partir da noção da mestiçagem. Ser

mestiço impunha ao “boliviano” livrar-se de suas referências indígenas para

pertencer ao quadro nacional, que significava a participação dentro do quadro de

direitos públicos. A unidade nacional requeria também a matização de qualquer

outra forma de identificação que concorresse com a ideia de nação. No entanto, os

teóricos do MNR sabiam que não podiam apagar as divisões étnicas do país, e

trataram de resolver a questão com a proposta etnocêntrica de integração

acelerada do índio. A palavra de ordem era aculturação através de um processo

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massivo de educação das populações rurais vistas, a partir então, como

camponesas. Apressavam-se também o vínculo político com Estado através da

sindicalização em massa, transformando o “índio” em um vasto capital político

para o governo em questão. A dimensão utilitária deste contingente populacional

oriundo do campo é enfatizada por Camargo (2006) ao comparar o trato da

questão indígena no regime oligárquico a forma que o novo regime se portava

diante de tal fenômeno.

Se, para o regime oligárquico, o índio era categoria de uso econômico, o camponês, para a Revolução que lhe estendeu a alforria econômica da propriedade e a habilitação política do voto, passa a ser objeto de certa dimensão utilitária, típica em contextos – como o boliviano daquele momento – onde a busca de legitimidade revolucionária comporta componentes eleitorais. Para a ordem pré-revolucionária, o índio aporta sua força de trabalho; após 1952, o camponês, ex-índio, passa a ter uso político (Camargo, 2006, p. 157).

Contudo, a adesão a este novo sujeito não fora completa. Pelo contrário,

suscitou resistências como do mundo aymara do altiplano convictos na afirmação

de si mesmos, na defesa de suas comunidades e de suas formas de expressão

política como a valorização da figura do malku, por exemplo. Não recusavam à

sindicalização, mas o faziam sem adesão automática ao poder público, usando a

forma sindicato para impulsionar suas lutas as quais alternavam estratégias

flexíveis de diálogo e resistência (Camargo, 2006, pp. 157-159). Em Potosi, por

sua vez, os ayllus mantiveram-se autônomos recusando qualquer controle do

movimento indígena pelo Estado e a sobreposição do sindicato às comunidades

(Ibid., p. 160). Em suma, a ideia unificadora nacional não pôde apagar a memória

e as práticas das populações indígenas que se mantiveram, mesmo num contexto

desfavorável, aferrados a sua “cultura originária”.

Na Bolívia e em outras partes do mundo, inclusive na Europa – cujos

esteios de estabilização subjetiva encarnados pela ideia de nação pareciam

estabilizados – a crença nesta comunidade de unificação nacional representada se

fragiliza muito no final do século, como sugere Albó. Autores como Philippe

Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart indicam o ressurgimento de movimentos

regionalistas e de reinvindicações de minorias já depois da Segunda Guerra

Mundial. A França, só para ficarmos com um exemplo, se descobre multiétnica

com seus bretões, bascos, occitanos, corsos (Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p.

36). O esteio ontológico da “nação” é deslocado pelas diferenças até então alijadas

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do processo de constituição de identidades. E elas se tornam cada vez mais

latentes no mundo contemporâneo revelando o dinamismo do processo de

desenvolvimento do próprio capitalismo que não permite mais noções

totalizadoras de identificação cultural.

Sob a pressão do aumento dos fluxos globais de capitais que ultrapassam

as fronteiras nacionais neste achatamento do globo designado genericamente por

“globalização”, fontes particularistas de identificação cultural vêm se sobrepondo

às formas genéricas as quais presumiam cobrir o todo do ser social, como a forma

nação, por exemplo. Hall nos alerta sobre um processo ambíguo em curso: “ao

lado da tendência em direção à homogeneização global, há também um fascinação

com a diferença” (Hall, 2011, p. 77). É no estilhaçamento deste sujeito unitário,

na multiplicação das identidades culturais na formação multifacetada da

subjetividade contemporânea que o discurso da etnicidade se firma. A diferença

outrora esquecida, agora, torna-se a tônica de grupos étnicos em seu embate

contra o Estado e sua reivindicação de um desenvolvimento culturalmente

diferenciado. Cabe-nos apreciar o debate em torno do conceito de etnia para

adentrarmos com mais profundidade no universo aymara, que nos interessa aqui.

Segundo Poutignat e Streiff-Fenart (2011), a noção de etnia foi pela

primeira vez empregada nas ciências sociais nos anos de 1940 por Warner cujo

uso era para designar a pertença a um grupo outro que não o anglo-americano.

Acerca desta concepção etnocêntrica, ethnics seriam aqueles que não participam

da comunidade original, uma variável de distinção negativa dentre várias (raça,

religião, etc.) (Poutignat, Streiff-Fenart, 2011, pp. 22-23). “Étnico” é o outro,

nesta versão de caracterização objetiva da diferença.

Nos anos 60, Wallerstein e Gordon complexificam o uso do termo

“etnicidade” para designar o sentimento de formar um povo partilhado pelos

membros de subgrupos no interior das fronteiras nacionais americanas, no caso do

primeiro, e para indicar o sentimento de lealdade manifestado em relação aos

novos grupos étnicos urbanos pelos africanos destribalizados, pelo segundo (Ibid.

p. 24). Estas interpretações primam, portanto, pelos aspectos subjetivos

relacionados diretamente aos sentimentos daqueles que se percebem enquanto

grupos culturalmente diferenciados dos hegemônicos.

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No final desta década ocorre um verdadeiro “boom” na apropriação do

conceito nas ciências sociais americanas, coincidindo com emersão de conflitos

designados como “étnicos” que surgem em diversas partes do mundo

simultaneamente, tanto em nações ditas pluriétnicas assim com naquelas

supostamente homogêneas (Ibid., p. 25). Na Bolívia, por exemplo, é neste

momento que as demandas indígenas serão expressas em sua contundência

política no Manifesto de Thiauanaco em 1973, redigido pelo novo movimento

katarista que afirmara as especificidades culturais dos aymaras frente à “nação”

boliviana.

Greeley (1974) também relaciona o surgimento de uma nova categoria de

análise nas ciências sociais com a emersão dos “conflitos étnicos”, fenômeno

empiricamente constatado no mundo contemporâneo. Estima-se que desde a

Segunda Guerra Mundial, estas disputas levaram a morte em torno de vinte

milhões de pessoas (Greeley, 1974 apud Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 25), e

que nos antigos países coloniais, com a erosão dos sistemas imperialistas, tais

conflitos tornaram-se a tônica da dinâmica social (Beel, 1975 apud Poutignat;

Streiff-Fenart, 2011, p. 25). Em suma, distante da concepção objetiva e

preconceituosa do uso originário, a “etnicidade” a partir dos anos 70 tornara-se

uma noção com pretensão de universalidade, ou seja, muitos pesquisadores

tomaram o conceito com o fim de abarcar diferentes fenômenos traduzidos agora

como “reemergência étnica” (Albó).

Na Bolívia, por exemplo, a força dos enclaves étnicos minoritários se

atribui a persistência das comunidades indígenas no mundo rural que não foram

assimiladas pelo processo inconcluso de modernização do país. A “etnicidade”

aqui não é apenas um recurso discursivo ativado por atores sociais com fins

conscientes de mobilização política (Ibid., 2011, pág. 126), mas o correlato

simbólico dos ayllus empiricamente verificados na realidade andina. Mas

devemos nos precaver de certas definições apressadas. Atribui-se, comumente, o

fenômeno étnico apenas às sociedades designadas como “tradicionais” que se

mantiveram supostamente alheias à modernização. No entanto, a etnicidade

abrange outras realidades, como dito acima.

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Parsons (1975) difundia a tese de que a sociedade moderna emancipava os

indivíduos das referências particularistas, negada por ele mesmo anos mais tarde

ao concluir seu estudo etnográfico da sociedade americana: os grupos étnicos

urbanos mantiveram-se como coletividades caracterizadas por fortes laços de

coesão (italianos e irlandeses, por exemplo). De fato, ocorreu sim o arrefecimento

dos particularismos, o que não significa afirmar a assimilação integral destas

minorias à cultura hegemônica. Porém, ressalta-se o fenômeno designado por

Horowitz (1989) como “paradoxo da etnicidade”: “Se é verdade que nos Estados

modernos adiantados a diversidade cultural tende a ser reduzida, as distinções

étnicas, ao contrário, tendem a afirmar-se com vigor renovado” (Poutignat,

Streiff-Fenart, 2001, p. 71).

Portanto, o uso do conceito é abrangente cobrindo muitas realidades

possíveis. Poutignat e Streiff-Fenart, por exemplo, colocam sob a mesma chave

heurística o “tribalismo” na Nigéria, o “comunalismo” na Índia, o conflito

linguístico no Canadá (Ibid., p. 27). Percebemos também a afirmação dos

fundamentos socioculturais dos aymaras na Bolívia dentro da mesma questão

étnica (Teijeiro, 2007). Em suma, a questão étnica atravessa a modernidade e pode

ser interpretada como resultado da ação homogeneizadora deste processo de

liquidação da diferença traduzida pelos kataristas, como “epstemicídio” manifesto

enquanto umas das práticas coloniais modernas (Manifesto de Tiahunacu).

Podemos, portanto, interpretar a “etnicidade” como forma de resistência ao

processo de modernização com ou sem conteúdo social. Este encerra o

componente de padronização cultural, mas contraditoriamente fez surgir às

condições de possibilidade da afirmação da diferença (Hannan apud Poutignat;

Streiff-Fenart, 2011, p. 27). Dificilmente encontramos a noção da “etnia” sem o

seu correlato do “conflito” e sem a referência do processo ao fenômeno histórico

que o engendrou, designado por “globalização”.

[...] a globalização se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tronando o mundo em realidade e em experiência, mais interconectado (Hall, 2011, pp. 67-68).

Para os teóricos da modernização (Deutsch, 1953) as identidades

particularistas designadas pejorativamente como “tradicionais” soçobrariam com

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o desenvolvimento das redes de comunicação neste processo histórico de

homogeneização ocidental do mundo. Nada mais enganoso. Reemergem os

particularismos como efeito da globalização nos conflitos interétnicos em distintas

realidades sociais.

O termo “reemergência” sugere algo em estado de latência confinado à

cotidianidade pela ação coercitiva do Estado na imposição de um sistema de

representação que dirime conflitos – a “nação” –, o qual se baseia na crença do

pertencimento de uma cultura comum reportada a um passado remoto (Hall, 2011,

p. 52). Deste modo, poderíamos pensar a questão étnica a partir de uma concepção

substantiva que havíamos negado à “nação”. Se esta representa uma crença e sua

vigência depende da ação coordenada do Estado para se impor aos indivíduos

enquanto fato, a etnia parece ser um dado originário da subjetividade humana que

reemerge sobre as ruinas do Estado-nacional destroçado pelo processo

“globalizador”. Nada mais falso.

A etnicidade é um fenômeno universalmente presente na época moderna por tratar-se de um produto do desenvolvimento econômico, da expansão industrial capitalista e da formação e do desenvolvimento dos Estados-nações (Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 27).

Paradoxalmente, por muito tempo à modernização fora interpretada como

um fator exclusivo de uniformização e assimilação, instituindo identidades

generalistas neste grande processo de esvaziamento subjetivo das referências

culturais locais. Contudo, segundo Connor, o aumento do contato intergrupais

promovidos pela modernização, foi percebido por muitos como ameaça às suas

referencias tradicionais, o que suscitou resistência à uniformização cultural,

muitas vezes expressas em forma de conflitos interétnicos (Connor, 1972 apud

Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 28).

De forma ambígua a modernidade promoveu ao mesmo tempo à

universalização da “cultura ocidental” e a emergência de identidades

particularistas em resistência a este processo de liquidação da diferença. Na

medida em que o Capital se mundializa, traz para dentro da civilização ocidental

as fraturas civilizatórias que antes encontravam fora de suas fronteiras, o que torna

a sua hegemonia mais problemática. Na Bolívia, por exemplo, só faz sentido

pensar o conflito interétnico, exposto por Teijeiro, sob o enfoque dos efeitos do

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colonialismo sobre as populações originárias. Antes disso, não há a “questão

étnica”. Podemos afirmar, então, que a modernização ao invés de sufocar a

diferença, intensifica!

A identidade étnica constrói-se a partir da diferença. A atração entre aqueles que se sentem como de uma mesma espécie é indissociável da repulsa diante daqueles que são percebidos como estrangeiros. Essa ideia implica que não é o isolamento que cria a consciência de pertença, mas, ao contrário, a comunicação das diferenças das quais os indivíduos se apropriam para estabelecer fronteiras étnicas (Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 40).

Mas como poderíamos definir o conceito de etnia à luz da realidade

boliviana? Concernente às teorias da etnicidade, adotamos a concepção crítica de

Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart o qual enfoca o caráter dinâmico da

identidade étnica extraído dos estudos de Antropologia Social de Fredrik Barth.

Segundo este, em “Grupos étnicos e suas fronteiras”, contrapondo-se às

concepções imobilistas, a identidade étnica é construída e transformada na

interação de grupos sociais através de processos de exclusão e inclusão que

estabelecem limites entre tais grupos. A etnicidade, portanto, não é um conjunto

intemporal, imutável de “traços culturais” transmitidos da mesma forma de

geração para geração. Na complexa interação com o “outro”, isto é, no confronto

com a diferença específica que se valora e afirma o “mesmo” distinguindo os

caracteres de pertencimento coletivo, estes sempre mutáveis.

F. Poutignat e J.Streiff-Fenart em diálogo com Fredrik Barth amplia

criticamente o conceito de etnicidade propondo uma abordagem menos

generalista. Para eles, a questão específica da etnicidade diz respeito à fixação de

símbolos que fundam a crença em uma origem comum. O que diferencia, em

última instância, a identidade étnica de outras formas de identidade coletiva é o

fato, segundo os autores, dela ser orientada para o passado. “Uma etnicidade é

uma coletividade que constrói um conjunto de atributos culturais compartilhados,

assim como a crença numa história arraigada numa ascendência comum, além de

um inconsciente coletivo” (Linera, 2010, p. 173).

(os grupos étnicos) são grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou nos dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se importante para a propagação da comunalização, pouco

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importanto que uma comunidade de sangue exista ou não objetivamente (Weber, 1921, p. 416 apud Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 37).

Poderíamos incorrer no erro de confundir a “etnia” com a “nação” a partir

da definição dada, afinal de contas esta última para vigorar necessita também de

um sistema de crença a qual os indivíduos se sintam pertencentes à mesma

história atualizada por ritos no presente (Hall, 2011, p. 52). É importante ressaltar

que esta característica é uma variável dentre as várias variáveis, já listadas acima,

para tipificar tal representação. O que cobre a diferença é a referência política da

“nação” legitimada pelo Estado que garante aos cidadãos, portadores dos mesmos

caracteres de identificação, direitos e deveres. De acordo com Todorov

por um lado pertencemos todos a comunidades que praticam a mesma língua, habitam o mesmo território, possuem certa memória comum, têm os mesmo costumes [...]; por outro lado há comunidades que nos garantem direitos e nos impõem deveres (Todorov, 1989 apud Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 46).

Balibar ratifica este perspectiva ao afirmar que a nação deve constituir-se

em comunidade ou povo que se reconhece previamente na instituição estatal o

qual canaliza todas as demandas coletivas (Balibar, 1988 apud Poutignat; Streiff-

Fenart, 2011, p. 50). A unidade requerida pelo Estado antecede a formação desta

comunidade formada por indivíduos de origens múltiplas que se põem sob o

mesmo teto cultural e político por meio de uma rede de instituições e de práticas

que os socialize como partícipe da mesma comunidade nacional. Desta forma, as

diferenças entre os grupos internos são relativizadas. A ênfase na distinção recai

sobre os que estão do lado de lá das fronteiras que marcam o “nós e o eles” (Ibid.,

p. 50). E novamente faz todo o sentido a expressão de Renan já citada: “A

essência de uma nação reside no fato de todos os indivíduos terem muitas coisas

em comum, e igualmente que todos tenham esquecido bem as coisas” (Renan, p.

286 apud Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 36). Sob o mesmo teto político, as

diferenças são matizadas, e outras formas de subjetivação conjuradas pela ação

estabilizadora do Estado que reforça permanentemente o sistema de representação

nacional. Hobsbawm, por meio da equação “Estado = Nação = Povo” resume bem

o sentido acima referido.

[...] o nacionalismo é justamente um programa político e [...] a etnicidade, seja ela o que for, não é por sua vez um conceito político e não têm conteúdo programático. [...] Certamente ela pode ser utilizada politicamente, mas a política de etnicidade não têm ligação necessária com o nacionalismo e pode ser completamente

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indiferente aos objetivos dos programas nacionalistas (Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 54).

Na Bolívia, a discussão acerca da etnicidade não pode ser lida somente a

partir das teorias instrumentalistas79 que são mais úteis para os ditos “Estados

modernos adiantados” (Poutignat; Streiff-Fenart, 2011, p. 54). É claro que os

aymaras, por exemplo, fazem uso político do conceito enquanto variável de

mobilização coletiva, e isso não depende de fato sobre a existência real do grupo

étnico, e nem os deslegitima caso se restringissem exclusivamente ao

acionamento político de suas demandas por direitos e recursos sociais uma vez

que foram alijados historicamente justamente por serem identificados como

“índios”. Contudo, a análise etnográfica de Teijeiro nos mostra que o fundamento

sociocultural assentado em sua base material – o ayllu – sustentou e sustenta a

narrativa e a prática de resistência local ao poder colonial. Para o autor, há uma

correspondência entre o universo simbólico dos aymaras e o “irredentismo”

fundado em seus valores “originários” que caracterizam as suas ações frente aos

múltiplos projetos de modernização que confrontaram e confrontam.

Afirmação da especificidade cultural aymara torna-se latente na

confrontação com o outro. Tomando a tese acima citada de Barth, os caracteres de

pertencimento coletivo se afloram no embate aos valores “alienígenas” presentes

desde a colonização espanhola e mantido pela dominação dos setores criolos

durante o período republicano. Teijeiro faz uma leitura de fôlego ao identificar as

demandas étnicas nas rebeliões de Tupak Katari em 1781 e de Zárate Willka de

1889, embora a politização da etnicidade seja recente. A crença em valores

compartilhados vinculado a um passado é forjado na prática social de resistência

ativa à modernização.

Toda cultura, especialmente aquellas tipificadas como tradicionales, se

caracteriza por el hecho de que su passado no dejó de ser el fundamento

conductual de su presente y futuro. En estas culturas la tradición está compuesta

principalmente por un complejo mitológico de permanente irradiacíon en el que

hacer de los mismos (Teijeiro, 2007, p. 76).

.

Este complexo mitológico integra os fundamentos socioculturais dos quais

emergem a crença na unidade distintiva dos aymaras frente aos valores q‟aras,

79 As teorias instrumentalistas têm em comum o uso da categoria de etnicidade como recurso mobilizável na conquista do poder político e dos bens econômicos sem necessariamente corresponder a uma realidade social de fato. Ver mais em Poutignat, Streiff-Fenart, 2011, p. 95.

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cuja equivalência prática corresponde aos ayllus. A análise destes fundamentos,

mesmo que grosso modo, serve-nos para mensurar a natureza das reivindicações

do movimento katarista em suas diversas expressões no momento presente de

crise da modernidade neoliberal. Incorremos no esforço de compreender o

universo simbólico dos aymaras sustentando pela materialidade da comunidade e

que se reportam diretamente às práticas cooperativas manifestas no cotidiano. É

justamente no contexto de esgarçamento do tecido social causado pelo processo

de atomização individual do movimento de universalização que a modernidade

encerra, que a crença étnica se instrumentaliza como fator de resistência e

afirmação do “próprio”.

Dentre o complexo emaranhado das estruturas míticas do universo

simbólico aymara, destacamos para o estudo: o mito de origem vinculado a

Wiraqucha; a pachamama; o social e o a-social; a interpretação do tempo e

espaço; o culto aos antepassados; o taypi-tinku.

O mito de origem, segundo Teijeiro, é a principal base a partir do qual se

estrutura a cosmogonia sociocultural de um povo. No caso dos aymaras, ela se

expressa no contexto da tradição oral vinculada ao mito de Wiraqucha (Teijeiro,

2007, p. 76). Entre as diversas narrativas, uma chama atenção pelo seu caráter não

antropomórfico (clássico da cultura ocidental), pois este “deus” é visto como força

criadora a qual se cinde em dois pólos: a cósmica que vem do universo e a telúrica

radiada da terra. A fusão destes pares geram todas as formas de existência. Pacha

designa justamente a complementariedade do cósmico com o telúrico, tão

característica da cultura aymara: pa vem de paya que significa dois e cha vem de

chama, ou seja, força (Huanacuni, 2004, p.3 apud Teijeiro, 2007, p. 80).

Wiraqucha, portanto, é pacha, o todo existente a partir da complementariedade do

tempo e do espaço80.

Outro relato associa Wiraqucha a Pachamama, sobretudo no ocidente do

departamento de Oruro e ao sul de La Paz. Aqui, o supremo criador se manifesta e

demonstra a sua bondade ao homem através da mãe terra, a única provedora de

vida ao homem andino. Ela recebe devoções, ritos e orações, mas o culto

transcende a Pachamama visando Wiraqucha, ou seja, o cosmo realiza as 80 Pacha é uma das palavras mais importantes dos aymaras para entender o mundo, e compreende muitos significados. Faz-se referência ao tempo e ao espaço, mas implica também numa forma de vida, numa forma de entender o universo. Pacha seria também a capacidade de participar ativamente no universo, unir-se e estar com ele. Ver mais em: Teijeiro, 2007, pp. 79-80.

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necessidades humanas pela terra, reforçando a noção de complementariedade

(Ibid., p. 78).

Pachamama, deidade feminina dos aymaras, é a representação máxima da

bonança, protetora e cuidadora dos camponeses. Considerada uma mãe anciã,

Pachamama ampara seus filhos e lhes dá todo o alimento que necessita para viver

e sobreviver. A relação dos aymaras com a deidade é uma relação de total

equilíbrio sustentado no valor de reciprocidade. O equilíbrio depende dos ritos e

da obrigação de uma vida harmoniosa em nível familiar e comunitária. O não

cumprimento das relações de reciprocidade com a deidade produz conflitos e

cisões (Ibid., pp. 85-85).

Na lógica complementar dos povos andinos o homem é visto com “um”

sem deixar de ser o “outro”. Em seu ser habita tanto o a-social (Puruma) quanto o

social. Puruma é designado como o homem a sujeitar-se, seu lado escondido,

obscuro, o primitivo, agressivo e egoísta. A realização do homem em direção ao

“social”, a sujeição a normas de convivência coletiva, está relacionada com a

imersão na terra no mundo subterrâneo conhecido como Naqha Pacha, e sua

posterior emergência por Wiraqucha a Alax Pacha, ao mundo externo da

sociabilidade. Este, o social, está expresso na vida comunitária na relação entre as

pessoas no interior das comunidades e também entre as comunidades. Alax Pacha

que denota o visível representa os atributos humanos como a sociabilidade e a

comunicação. (Ibid., p. 87-89).

No pensamento aymara a noção de tempo-espaço (Pacha) é fundamental

para a compreensão de suas práticas de reciprocidade fundada na mutualidade da

minka e do ayni. Pacha ou Wiraqucha denota a integralidade do todo cujas partes

se integram complementarmente. Neste sentido, não existe ação que não esteja

articulada com a totalidade da experiência vivencial. Toda a lógica aymara,

segundo Teijeiro, se funda nesta percepção holística do tempo-espaço servindo-se

de referência na organização da vida social.

O culto aos antepassados é outra referência fundamental para compreender

o universo simbólico aymara. Ele se realiza mediante a um rito praticado todos os

anos no mês de Novembro em que se prioriza a atenção sobre os mortos que não

tenham passado três anos de falecimento. Guamán Poma de Ayala no período

colonial deixou seu registro sobre este culto.

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En este mes sacan los defuntos de sus bóbedas que llaman pucullu y le dan de

comer y de ueuer y le bisten sus bestidos rricos y le ponen plumas en la cauesa y

cantan y dansan con ellos en casa y por las calles y por la plasa y después tornan

a metella en su pucullu, dándoles sus comidas e bagilla ao principal den plata y de

oro y al pobre de barro. Y le dan sus carneros y rropas y lo entierran con ellas y

gastan en esta fiesta mucho (1944, p. 231 apud Teijeiro, 2007, p. 91).

Ao longo do tempo este culto sofreu um processo de reconfiguração

mimetizando-se com a tradição católica cristã, mantendo-se ativa até os dias

atuais no interior dos ayllus. Para o aymara, a morte nada mais é que a realização

do mundo dos espíritos (ajayu) que interferem positivamente a partir dos ritos no

dia a dia da comunidade. Neste sentido, segundo Teijeiro: “el aymara no mata a

sus mortos, sino que vive de y com ellos” (Teijeiro, 2007, p. 92). É importante

ainda dizer sobre a relação entre os ajayus dos mortos com os ajayus dos vivos.

Os espíritos dos vivos e dos mortos se comunicam entre si através dos sonhos

podendo indicar tanto aprovação ou reprovação da ação dos indivíduos em sua

comunidade81.

O taypi se vincula diretamente ao mito de origem. Ele é o centro, o “lugar”

onde se deu o princípio de criação, ou seja, o início da diversidade com a qual se

integra. O taypi tem forte conotação sagrada expressa no princípio de

complementariedade entre o Urcusuyo (um) e o Umasuyu (outro). Este “lugar” é

mais que uma referência espacial apenas, mas um ponto de encontro sempre

atualizado cuja principal característica é: “la reunion de diversos y el atributo es

principalmente la resolución o mitigación de aquello que los conduce a ser

diversos o a estar em desequilíbrio” (Teijeiro, 2007, p. 95). A resolução dos

conflitos se dá no âmbito do tinku (encontro), ou seja, no encontro e

enfrentamento entre os awqa (contrários) cujo objetivo é arrefecer os fatores que

geraram o desequilíbrio que por sua vez recriará novos desequilíbrios que poderão

ser solucionados no próximo tinku. Não é apenas no âmbito dos ritos tradicionais

como a festa dos defuntos que se realiza tal encontro. Uma partida de futebol entre

os aymaras rurais pode ser considerada um tinku.

É importante ressaltar, como faz Teijeiro, que este princípio de

reciprocidade não fica confinado apenas a relação dos aymaras com outras etnias 81 Para dar um exemplo da importância dos sonhos para os aymaras, Martín Sivak em sua biografia sobre Evo Morales, nos reporta a importância que o presidente dar aos sonhos na tomada de decisões políticas. Ver mais em Sivak, 2008, p.84.

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indígenas. Transcende o comunal e se apresenta ante a etnia q‟ara numa proposta

de diálogo intercultural com a ontologia ocidental. Urcusuyo e Umasuyo

integrado na afirmação do “próprio” e na matização dos conflitos perpetrados pela

dinâmica colonialista das estruturas de poder ocidentais corporificados pelo

Estado. Neste sentido, não podemos atribuir aos aymaras o sentimento de

autoctonia e de rechaço a cultura forânea, pois não se rechaça o “outro” nesta

cultura da complementariedade, mas aquilo que há no outro que impossibilita a

existência de si mesmo: a ideia de universalidade que não considera a

possibilidade da existência do “outro”, no caso, dos próprios aimarás.

O economista e cientista Fernando Untoja, um dos fundadores do

katarismo, fala exatamente deste diálogo intercultural que ele chama de

“pensamento da simultaneidade”.

Nós, kataristas, não vemos as coisas simplesmente de um único ângulo. Assumimos que temos uma formação ocidental – tanto aqui dentro da Bolívia como lá fora. Temos códigos, estruturas e pontos de vista ocidentais, mas também temos nossos pontos de vista que são marcados pelo código cultural. Nós vemos as coisas, portanto, simultaneamente, tanto da forma ocidental quanto segundo a cultura aymara, podemos apreciar coisas no mundo ocidental e podemos analisar as mesmas coisas com o olhar do nosso próprio mundo. Chamamos isso de pensamento da simultaneidade. Esse pensamento nos permite estar nos dois mundos: sem condenar o outro nem o nosso próprio. Chamamos isso de pensamento da simultaneidade. Esse pensamento nos permite estar nos dois mundos: sem condenar o outro nem o nosso, mas estar presente e analisar as coisas para melhor situar nesses dois mundos. (Hashizume, 2010).

Os princípios que norteiam a vida social dos aymaras do altiplano,

sobretudo daqueles que vivem circunscritos aos ayllus, assim como todos os

aspectos simbólicos verificados acima, devem necessariamente ser compreendidos

nos marcos relacionados com os dois principais valores culturais já citados, e que

possibilita a realização do comunitário: a reciprocidade e a complementariedade.

É justamente na politização da etnicidade, ou seja, na evocação desta estrutura

simbólica de referência de conduta, o qual se reporta a um passado compartilhado,

que o movimento social katarista aparece no cenário político boliviano no final

dos anos 60. Neste momento, recusa-se a ideologia estatal expressa pelo MNR de

integração do índio à modernidade pela via da assimilação no processo de

apagamento dos valores originários em prol da mestiçagem. Segundo o teórico

indianista Fausto Reinaga, inspirador do katarismo, “[...]el problema del indio no

es asunto de asimilación o de integración a la sociedad „blanca civilizada‟, el

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problema del indio es de liberación (Reinaga, 2001, p. 143 apud Escárzaga, 2012,

p. 192).

Os kataristas também se afastam da proposta dos partidos de esquerda

(Partido Comunista Boliviano - PCB e Partido Obreiro Revolucionário - POR)

que os definiam enquanto campesinato, massa informe sem consciência de classe,

aferrada às tradições conservadoras indígenas, e que deveriam ser guiados

politicamente pelo suposto “sujeito da revolução” socialista, o operariado. Para

Reinaga, o índio deveria constituir-se como ator político autônomo na tarefa de ter

o direito de ser aquilo que se é: índio.

Tratemos dos kataristas, do seu ideário indianista de valorização da

cultural “originária”, e de suas expressões políticas na dinâmica conturbada da

vida social do país neste final de século representadas por três lideranças de peso:

Hugo Cardenas e seu “katarismo integracionista”, Felipe Quispe e seu “katarismo

revolucionário”, e Evo Morales e seu “katarismo reformista”.

Podemos afirmar que o movimento katarista é fruto das políticas nacional-

desenvolvimentistas aplicadas pelo MNR a partir de 1952. Reforma agrária,

sufrágio universal, fim da pongueaje econômica, desenvolvimento econômico via

Estado, formação da estrutura sindical, educação sem distinção étnica. Ao que

pese as limitações concretas de tais medidas, é irrefutável que elas abriram

caminhos para a luta de afirmação cultural dos indígenas na Bolívia, sobretudo

dos aymaras do altiplano.

A partir do final dos anos 60, começa a despontar uma nova geração de

líderes aymaras oriundos das escolas bilíngues do Estado e das organizações

católicas de base (Hashizume, p. 90). Há um renovado processo de valorização

das línguas e culturas “originárias”, amplificado por rádios aymaras, como a

Radio San Gabriel da Igreja Católica, bastante influente no altiplano. Outra

vertente atuante deste katarismo nascente é a acadêmica, expressa pelo Programa

de Estudo Aymara desenvolvido pela linguista Martha Hardman na Universidade

da Flórida, que inspirou a fundação em La Paz, do Instituto de Estudios

Linguisticos, o qual estudava as línguas aymara, quéchua e guarani (Camargo,

2006, pp. 165 e 166). Havia ainda o movimento renovado da Igreja Católica,

denominado “Igreja Aymara”, fruto da teologia da libertação que se espraiava no

mundo andino. Os religiosos ligados a este movimento progressista valorizavam

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as tradições sociais indígenas fazendo uso da língua e da música aymara em seus

ritos, além de politizaram os seus discursos a respeito da exclusão social reinante

no país.

É neste contexto que nasce, no meio estudantil em La Paz, o movimento

katarista: Movimento Universitário Julián Apaza (MUJA) e Movimento 15 de

Novembro. Em 1971, eles se unificam no Centro Campesino Tupak Katari cujo

objetivo era promover a cultura aymara a partir da difusão dos programas de rádio

com uma narrativa histórica própria. Ou seja, se apropriam do passado de

resistência aymara ao colonialismo externo e interno, e se veem enquanto

continuadores, no presente, desta luta étnica secular, difundindo a sua cultura

pelos meios radiofônicos de amplo acesso.

Estes primeiros jovens kataristas reivindicavam-se herdeiros de Tupak

Katari e do Malku Willka além se colocarem como continuadores de Laureano

Machaka que declarara uma República Aymara em La Paz em 1956. Podemos

afirmar que o movimento tem como traço distintivo a defesa irrestrita da

autonomia indígena a despeito dos vários katarismos que surgirão a partir deste

núcleo originário, cada qual com uma estratégia política diferente para alcançar a

soberania exigida.

Em 1973, no auge da ditadura Banzer, os kataristas lançam seu Manifesto

de Tiahuanacu onde definem os aymaras, quéchuas e todas outras culturas

autóctones do país como sujeito de sua própria libertação. Reconhece-se a sua

identidade étnica, mascarada pela ideologia oficial do Estado, mas não renega a

sua referência classista colocando-se em prol de uma luta unificada a qual

responda a dupla opressão: econômica e cultural. Nosotros, los campesinos quechuas y aymarás lo mismo que los de otras culturas

autóctonas del país, decimos lo mismo. Nos sentimos económicamente explotados y

cultural y políticamente oprimidos (Manifesto de Tiahunacu).

Para tal, os kataristas fazem uso de estruturas políticas modernas como o

sindicato para aumentar seu raio de ação no território nacional, articulando-o às

próprias organizações “autóctones” como os ayllus. Os sindicatos kataristas

passaram a incorporar os valores das comunidades, assim como estas adotaram

lógicas práticas típicas da organização sindical. De tal forma, fugiam da lógica

segregadora de certos grupos comunários que aferrados as suas tradições locais

repudiavam os sindicatos como mais uma instituição estatal supressora da

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identidade originária. Mas também recusavam a perspectiva dos militantes da

esquerda tradicional que viam as comunidades como fósseis históricos que

fatalmente desapareceriam com o desenvolvimento do país. Estas práticas foram

traduzidas pelo maior teórico do Katarismo, Fausto Reinaga.

Reinaga – nascido numa comunidade quéchua de Huahuamikala em Potosí

–, embora marxista de formação, ao abraçar o indianismo, afasta-se desta corrente

política identificada como “parte de las elites-mestizas” (Escárzaga, 2012, p.

193). Assim como os nacionalistas do MNR, para Reinaga os marxistas também

praticam a “pongueaje política”, rebaixando os índios à condição de

subalternidade. Isso, contudo, não exclui um diálogo com o marxismo por parte

das novas correntes kataristas que surgirão ao longo dos anos.

Fausto Reinaga, naquele momento de forte perseguição do Estado ao

movimento, reivindica a autonomia política e ideológica índia, a sua condição de

protagonista no processo de sua própria libertação e a elaboração de um projeto

societário próprio. Ao afirmar a existência de duas Bolívias irreconciliáveis,

postula a reconstrução da antiga organização pré-hispânica de Qollasuyo

governada pelos índios, o que fora acusada pelos seus críticos, sobretudo de

militância à esquerda, de “romanticismo”.

Seu programa radical não postula a ruptura com a Bolívia “mestiza-

europeizada” através da luta armada, o que poderia parecer mais coerente com sua

vibrante defesa autonomista. Postula sim a estratégia de apropriação dos

sindicatos rurais para a ampliação de suas demandas, afastando os camponeses da

tutela do Estado corporificado pelo “pacto militar-camponês”. De um modo geral,

as correntes tupakataristas seguirão mais esta linha moderada de ampliação

gradual do poder indígena do que a posição radicalizada de enfrentamento direto

com Estado. Ainda em 1973, duas tendências ideológicas diferentes já estão

expressas no interior do movimento.

[…] la corriente indianista que postula como sujeito al índio, prioriza el aspecto

étnico sobre el clasista y recibe apoyo de organizaciones indigeanistas

internacionales. La corriente clasista postula al campesino con el sujeito,

combinan la visión de clase y la étnica, utilizan más el concepto campesino pero

enfatizando su caráter cultural específico, son apoyados por los sectores

progresistas de la iglesia boliviana” (Escárzaga, 2012, p. 193).

Em 1978 estas diferenças se consolidam em dois partidos índios que

representam o primeiro “racha” do movimento katarista: o Movimento Índio

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Tupak Katari (MITKA) e o Movimento Revolucionário Tupak Katari (MRTK).

Enquanto o MITKA decide participar das eleições de 1978, 1979 e 1980 com uma

pauta mais culturalista, o MRTK aposta suas fichas vinculando-se ao sindicalismo

mineiro, aproximando-se da COB. O resultado desta aliança com o setor operário

é a criação em 1979 da Confederação Sindical Unificada dos Trabalhadores

Campesinos da Bolívia (CSUTCB), com forte poder de ação nacional articulando

várias comunidades de vários departamentos do país, marcando o início de um

sindicalismo campesino independente.

A lógica comunal e a lógica sindical se articulam neste esforço de

soberania indígena ampliando a presença katarista em diversas regiões do

território nacional nos anos de 1980, fazendo do reclamo ao desenvolvimento

etnicamente diferenciando (etnodesenvolvimento) um lugar comum entre as

populações originárias.

Nos anos de 1990, no contexto da consolidação da modernidade neoliberal

no arranjo político firmados pelo MNR, MIR e ADN, veremos surgir na Bolívia

um “katarismo amarillo”, tendência dominante entre as organizações índias. Na

verdade, uma vertente subordinada aos projetos políticos “mestiços” neoliberais

(Escárzaga, 2012, p. 196), representada por uma liderança histórica do

movimento: Hugo Cardenas. Dois fatores ajudam a explicar este fenômeno: a

difusão das demandas étnicas no interior do país em razão da atuação da

CSUTCB controlada pelos kataristas; o contexto internacional favorável ao

projeto multicultural do reconhecimento da diversidade étnica. A ONU, por

exemplo, promulga em 1989 o Convênio 169 da Organização Internacional do

Trabalho (OIT) no qual afirma do direito das populações originárias viverem de

acordo com a sua cultura. Neste momento, muitas ONGS atuam no país

promovendo o direito da afirmação étnica dentro da ordem estabelecida.

E dentro desta ordem prescrita pelo “pacto de governabilidade” fora eleito

para presidente em 1993 Gonzalo Sanches de Lozada do MNR, tendo como vice o

representante do katarismo “integracionista”, o líder histórico do movimento

indianista Hugo Cardenas, captando muitos votos nas zonas rurais de maioria

indígena pelo pequeno partido índio MRTK(L), cisão do original MRTK.

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Albó atribui a Cardenas a aprovação de novas disposições legais que

valorizam o capital étnico do país como a Reforma Educativa e a Lei de

participação popular (Albó, 2002, p. 43). Contudo, o reconhecido da pluralidade

cultural da Bolívia fora acompanhada por uma política econômica recessiva de

regressão social, o que explica o rechaço dispensado a Cardenas atualmente pelas

populações indígenas. Segundo Escárzaga

Este katarismo pluri-multi o amarillo, complemento medidas centradas en el

ámbito cultural las reformas neoliberales en curso que afectaban las formas de

producción y acción política de carácter comunitario de la población india, para

evitar la oposición indígena a tales medidas y imponer pautas no radicales en sus

accionar político (Escárzaga, 2012, pp. 199-200).

As pautas indianistas radicais ficariam para outra vertente do katarismo

identificada com o “irredentismo aymara” que não logrou tanto êxito quanto

Cardenas, ficando bastante esvaziado nos anos de 1990 pela vitória da corrente

multiculturalista no pleito de 1993. O “katarismo revolucionário” de Felipe

Quispe virá à tona em contraposição à matização do discurso indianista

perpetrado por Cardenas.

Quispe nascera em Jisk‟a Axariya, uma comunidade próxima a Achacachi

às bordas do Lago Titicaca. Assim como Cárdenas, o Mallku – como é conhecido

o líder aymara – também é uma referência histórica do indianismo, contudo fora

vinculado ao MITKA, seção mais sectária do katarismo o qual nutria profundas

desconfianças a qualquer aliança com outros partidos ou organizações q‟aras.

Segundo Camargo

O Movimento destacou-se não tanto por seus êxitos eleitorais, escassos – sobretudo em sufrágios legislativos municipais –, mas, isto sim, por constituir o pólo de referência radical do discurso de autonomia indígena, constituindo símbolo poderoso de certo irredentismo aymara enraivecido (Camargo, 2006, p. 173).

O MITKA não recusava a via eleitoral a despeito da sua expressão pífia

como citado acima. Considerava a possibilidade de um governo “índio”, mas

dentro das premissas evocadas pelo teórico máximo do movimento, Fausto

Reinaga. La solución al problema nacional [...] no es la eliminación de los blancos-mestizo

por los indios, escenario que es reiterado en el imaginario blanco mestizo, la

solución es menos sangrienta: es la asimilación del blanco mestizo al indio

(Escárzaga, 2012, p.195)

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Quispe, por sua vez, na ala mais radical do partido índio, propunha em

vários momentos a luta armada para a libertação dos ayllus do domínio

colonialista q‟ara. Sua história comprovava esta posição de ruptura quando em

1975, junto com algumas lideranças que fundaram o MITKA, propõe a luta

armada, tendo contato inclusive com o Exército de Libertação Nacional (ELN).

No entanto, para ele, a luta armada não resultaria em extermínio dos “brancos”.

Como Reinaga propusera, para Quispe haveria lugar para os opressores se

[...] les tocará obedecer nuestras leyes naturales, que vamos a dictar. Pero a

diferencia de ellos, nuestras leyes no serán para esclavizar a los blancos y

mestizos europeizados, sino que podremos la ley de igualdad de derechos para

todos los que viven y trabajen en nuestra patria Qolasuyo (Quispe, 1988, p. 152).

Em 1986, após o retorno do “exílio” em Cuba, onde recebe instrução

militar por um ano, funda o Movimento Ayllus Rojos como célula para a

construção do katarismo revolucionário entre as organizações campesinas

aymaras e quéchuas.

No esforço de minar o crescente prestígio do katarismo mais moderado

que despontava no horizonte neoliberal como alternativa ao projeto de

reconstrução de Qollasuyo, aproxima-se de jovens mestiços de formação marxista

– como Álvaro Garcia Linera –, e cria em 1989 o Exército Guerrilheiro Tupak

Katari (EGTK) sob a inspiração das guerrilhas que ocorriam na América Central e

também no Peru. O tupakatarismo revolucionário passa a ser, a partir deste

momento, uma síntese entre o indianismo de Reinaga expresso de modo radical

por Quispe e o marxismo não dogmático de Linera, o que não exclui obviamente

contradições teóricas e conflitos práticos entre esses dois pólos.

Para Quispe, a principal fonte de inspiração é a figura de Tupak Katari o

qual propõe recuperar seu pensamento político e sua estratégia de guerra

anticolonial tendo como base as organizações coletivistas das comunidades

aymaras e quechuas. Reivindica um sistema comunista de ayllus, um retorno a

Qollasuyo originário, sem as mazelas perpetradas pelo Estado Nacional mestizo.

Nesta revisão histórica com clara finalidade política, Quispe relata o grau de

desenvolvimento civilizatório alcançado antes da chegada dos espanhóis, onde

cada comunário produzia de acordo com suas necessidades familiares e sua

capacidade produtiva. Colocava-se assim, nos termos da luta aberta já

experimentada por Tupak Katari, a causa desencadeadora para a

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Guerra Revolucionaria de todo el Pueblo, del campo a las ciudades y de las

ciudades hacia el campo. Para lograr la toma del poder político proprio, construir

el Socialismo Horizontal Colectivista de Ayllus y volver al Qolasuyo original

(QUISPE, 1988, p. 59)

Contudo, apesar do uso das referências originárias tendo a estratégia

katarista do levantamento das comunidades e do cerco às cidades como principal

referência militar, os efeitos da atuação do EGTK foram deletérios, e o grupo fora

desfeito com o aprisionamento de suas principais lideranças em 1992. Quispe

sairá do cárcere, após intensa propaganda de libertação, somente em 1997.

La estratégia de lucha aymara derivada de su lectura de la rebelión de Tupak

Katari no pudo aplicarse en la etapa del EGTK por la rápida desarticulación de la

organización, pero fue madurando como proyecto durante los cinco años de

prisión de Quispe y en el balance de los errores cometidos como Ejército

Guerrillero Tupak Katari (Escárzaga, 2012, p. 205).

Após sair da prisão, o Mallku imprime uma linha mais radical e

beligerante a maior Confederação Camponesa da Bolívia, a CSUTCB. Eleito para

a direção nacional, e com o mesmo posicionamento político do período da EGTK,

mas com meios concretos de ampliar a sua influência através da estrutura sindical,

aplica a estratégia katarista revolucionária convertendo o comunário aymara em

base de organização sindical, acionando-o através de bloqueios de estradas e cerco

às cidades. Mantem-se firme no objetivo de refazer o Qolasuyo tentando minar a

influencia no meio rural das propostas “integracionistas” representadas por

Cardenas, mas também frear o “reformismo” eleitoral do novo dirigente cocalero,

Evo Morales do MAS.

Esta capacidade de mobilização pela CSUTCB, sobretudo em La Paz, será

colocada à prova em 2000 quando da aprovação da Lei de Águas que visava

privatizar este recurso. Somados com o descontentamento popular referente à

política de erradicação da coca, a Central bloqueará as estradas impedindo o

deslocamento de produtos agropecuários, contribuindo bastante no contexto da

“Guerra da Água” para o cancelamento desta medida privatista. A memória do

cerco a La Paz de Tupak Katari, ativada pelos bloqueios de estradas, alimentaria a

luta política desta corrente irredentista que se colocava contra as medidas

neoliberais vigentes. Preparava terreno, dentro da lógica revolucionária de Quispe,

para a autodeterminação indígena que logo se efetivaria a contento, acreditava. O

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dirigente aymara não abrira mão, como afirma Albo, da insurreição armada, mas

entendera a necessidade de usar todos os meios para forjá-la, inclusive a “forma

partido”.

Para apressá-la, como complemento das mobilizações de base, o grupo de

Quispe dentro da CSUTCB decidiu criar um partido, Movimento Índio Pachakuti

(MIP) para participar das eleições de 2002. A partir de então, seu prestígio decaiu

bastante com a adesão de formas liberais de representação política que para

muitos era incompatível com seu discurso revolucionário emancipador. Como

garantir à soberania indígena no interior do núcleo de dominação e desigualdade,

cujo componente central é a ideia de universalidade inscrita na institucionalidade

das normas que configuram o Estado Moderno? (Tapia, 2007, p. 64). Tal

configuração pode até admitir a diferença étnica, como fizera nos tempos de

Cardenas, mas esta fica adstrita ao modelo de organização do poder que

hierarquiza as diversas formas culturais a partir de um centro inquestionável.

Quispe inclusive foi acusado de atuar da mesma maneira que os partidos

tradicionais, afastando-se de suas bases e agindo como se fora um caudilho. Ao

canalizar às demandas indígenas à eleição, perde assim a legitimidade da

afirmação radical de autonomia plena dos povos originários que supõe a ideia de

ruptura.

[...] Pero el proyecto de Quispe de aprovechar la CSUTCB como plataforma de

una lucha más amplia, fue constreñido en su potencialidad al quedar en marcarlo

en las estructuras legales existentes y en la lógica de la negociación con el

gobierno, a las que finalmente estaba subordinado […] a las reglas de la

democracia representativa, poco favorables a la acción indígena (2007)

Desta “mal” não podemos atribuir à terceira expressão do indianismo, o

“reformismo katarista” de Evo Morales, o qual conseguiu canalizar o fenômeno

de “reemergência étnica” para a via eleitoral a partir das eleições de 2005,

fechando o ciclo de insurreições populares antineoliberais. Desta forma, podemos

afirmar que esta vertente mais moderada suplantou as outras formas de katarismo

a partir do projeto estatista de reforço do poder público, que fora fragilizado nos

sucessivos governos neoliberais desde 1985. Evo conseguiu, deste modo, articular

a memória de resistência indígena à memória nacionalista ainda muito forte no

país, desarticulando as premissas lógicas do “estado-mínimo” na proposição de

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uma agenda comum (“agenda de outubro”82) entre as diversas organizações

populares que protagonizaram os levantes dos últimos anos.

Parece-nos que as demandas indígenas ficaram suplantadas ao projeto de

reformas possíveis dentro da vida política ordinária em consideração às diversas

forças atuantes na Bolívia. Em troca do radicalismo da proposição de Quispe da

construção do Qolasuyo, expressão máxima da liberdade indígena em negação ao

“colonialismo-moderno”, impõe-se o realismo político do projeto masista que

aponta a construção de uma “outra modernidade” de caráter inclusivo, levando em

consideração a especificidade étnica do país andino. A meio caminho entre

Cardenas e Quispe, Evo desponta com a maior liderança indígena da

contemporaneidade. Expressa a contradição máxima no seio da institucionalidade

estatal: a defesa de um Estado provedor de direitos sociais somado a

reinvindicação da soberania indígena a partir da reforma estatal promovida por

distintos movimentos sociais que compõe a base política do MAS.

Evo Morales, o primeiro presidente indígena eleito na Bolívia, fizera sua

carreira política nos sindicatos cocaleros de Chapare, no trópico de Cochabamba.

Nos anos 80 desponta como líder de uma das confederações sindicais de

camponeses cocaleros de Cochabamba. A esfera sindical se tornara o principal

espaço dos movimentos sociais de defesa de plantio da folha no contexto da feroz

política de erradicação do cultivo imposta pelos governos de Paz Estenssoro

(1985-1989), Hugo Banzer (1989 – 1993) e Sanches de Lozada (1993-1997),

seguindo as diretrizes dos EUA. Articulados a CSUTCB, os cocaleros se fizeram

presente politicamente em todo território nacional em enfrentamento muitas vezes

armado contra as tropas do exército nacional. Com a intensificação da

“Guerra contra as drogas”, Evo ganhou projeção nacional em defesa da folha

sagrada. É importante ressaltar duas características adquiridas pelo movimento

cocalero: O anti-imperialismo forçado pela militarização das zonas de plantio

coordenadas diretamente pelo governo estadunidense, o que permitirá a

aproximação dos cocaleros dos grupos de esquerda; e o toque étnico na defesa de

“la hoja sagrada de coca”, legada pelos deuses aos povos andinos desde os

82 Dentre as demandas da “Agenda de Outubro”, a estatização dos hidrocarbonetos e a realização de uma Assembleia Constituinte tornaram-se a pauta política das organizações sociais. Evo Morales fora eleito para efetivar tais medidas.

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tempos imemoriais. Embora não vinculado diretamente ao indianismo katarista,

Evo incorporará em seu discurso a partir da valorização da coca, os elementos

étnicos imprescindíveis nestes novos tempos de valorização da cultura originária

(Albó, 2002, p. 45).

Em 1994, assume a liderança das seis federações de produtores de coca de

Cochabamba, organizadas na poderosa “Coordinadora de Productores de Coca”.

Em 1995, CPC evolui para “Asemblea Soberana del Pueblo” (ASP), partido

criado para disputar as eleições municipais no contexto da Lei de Participação

Popular. É importante afirmar que Evo foi uma das primeiras lideranças indígenas

a se beneficiar da nova lei promulgada pelo governo de Lozada. O êxito eleitoral

de seu grupo explicitou um paradoxo: “el enemigo de la guerra contra las drogas

pasaba, por la vía democrática, a controlar la principal expresión local del

Estado” (Ibid., p. 46). Em 1997, nesta escalada ascendente ao poder, o partido

elege quatro deputados uninominais, um dos quais o próprio Evo. Em 1999, o

novo partido MAS torna-se hegemônico em Cochabamba, assumindo o comando

de trinta municípios. Em 2002, Evo já candidato a presidência da República

alcançou 20% dos votos nacionais, ficando em segundo lugar. Em resumo, pela

primeira vez uma organização de esquerda com liderança indígena chegara tão

longe do ponto de vista eleitoral, aumentando a sua influência para além das zonas

rurais (Camargo, 2006, p. 203).

Em 2003, nas lutas sociais de Fevereiro e Outubro, o MAS de Evo

Morales junto com CSUTCB dirigida por Felipe Quispe, terão papel fundamental

na renúncia de Gonzalo Saches de Lozada na defesa irrestrita da “Agenda de

Outubro”. Em 2005, com a renúncia de Carlos Mesa, antecipa-se uma nova

eleição onde Evo Morales vence com mais de 50% dos votos.

Fabiola Escárzaga ajuíza que a eleição de Evo Morales em 2005 fora a

saída mais razoável frente à situação de ingovernabilidade gerada pelas

mobilizações antineoliberais, agregando diversos setores sociais, não somente

indígenas. Inegável que um novo bloco popular se instaura na crise da

modernidade neoliberal com um projeto referendado de reconstrução do Estado

Nacional em novas bases. A “agenda de outubro”, norte destes movimentos

apontam para a necessidade de uma Assembleia Constituinte (que fora realizada

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em 2008). Contudo, Escárzega aponta também para os limites gerados pela opção

legalista de processo transformador. Os espaços de ação política, afirma a autora,

dos movimentos autônomos que protagonizaram as mobilizações que levaram a

derrubada do governo de Lozada, foram cancelados. Muitas destas organizações

foram subordinadas às estruturas governamentais e sua atuação autônoma de

afirmação da soberania indígena ficou adstrita apenas à memória recente das

jornadas de Outubro no contexto da “Guerra do Gás” (Escárzaga, 2012, p. 208).

Se a centralidade operária no processo de modernização da sociedade

boliviana nos anos 50 e 60 encobriu a questão indígena em prol da valorização da

identidade campesina; se no auge do neoliberalismo as demandas indígenas foram

incorporadas pelo Estado não comprometendo o seu funcionamento de fato, cujo

objetivo era aplastar a radicalidade dos movimentos de afirmação étnica; agora,

com a vitória do MAS, pergunta-se novamente sobre a atualidade do discurso de

soberania indígena. Será possível os povos originários afirmarem-se enquanto tal

no interior do Estado-Nacional83? Entre estas indagações, podemos afirmar ao

menos que a questão étnica na Bolívia, não é apenas mais um assunto secundário

de menor importância política no país. O índio deixara de ser o elemento

desagregador – que era tanto para nacionalistas quanto para esquerdistas

tradicionais – para se colocar no centro do embate contemporâneo acerca da

construção de uma sociedade igualitária e etnicamente diferenciada.

83 Com a nova Constituição aprovada em 2008, o Estado boliviano tornou-se plurinacional. Não podemos ainda medir os efeitos desta mudança.

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5. CONCLUSÃO

Há de se ressaltar, por fim, o caráter inaudito dos eventos que se precipitam

na Bolívia após os levantes massivos dos povos originários nos últimos anos. Em

2005, um índio eleito: Evo Morales. Poderia ter sido Felipe Quispe ou qualquer

um marcado pelas dores da colonização, que mesmo após a independência,

perdura nas mentes e nas práticas do povo boliviano – q‟aras, cholos e índios.

Contradições sobram neste processo complexo de afirmação étnica. Criação de

centros culturais para difusão e valorização das línguas nativas, formação de

sindicatos autônomos, luta armada tupakatarista, golpes, marchas multitudinárias,

movimentos autônomos e horizontais, partidos indígenas, greves, prisões,

massacres, defesa inflexível dos recursos naturais, tomada do poder pela via

democrática. As vias são muitas para afirmação da soberania indígena. O que

nos parece, com as idas e vindas deste processo inconcluso, que o inexorável

reside na mentalidade: “Indio fue el nombre con que nos sometieron, Indio sera el

nombre con el que nos liberaremos”. Destaca-se desta luta uma nova narrativa

história para um projeto de um novo mundo. Pachakuti!

A Bolívia, até então, fora lembrada como a “nação” da falta. País mais

pobre da América Latina depois do Haiti, leva consigo o estigma de fracasso pelas

derrotas em guerras, pelo retalhamento de seu território pelos países fronteiriços.

Economia de exportação altamente dependente dos mercados externos e dos

empréstimos de órgão financeiros internacionais para fechar suas contas. Falta-lhe

de tudo um pouco, dizem os avalistas. País de industrialização frágil que não

seguiu a rota desenvolvimentista do capitalismo avançado. Falta-lhes uma

burguesia nacional capaz de elaborar um projeto de nação compartilhada. De

mentalidade “pré-moderna”, os grupos dominantes pautam-se pela divisão racista

da sociedade, o que implica fraturas étnicas e classistas expressas nos conflitos

sociais permanentes. Abismos intransponíveis entre Estado e sociedade. Estado

“aparente”, sociedade desarticulada, afirmara Zavatela. Os dominados, por sua

vez, maioria indígena, falta-lhes a racionalidade do sujeito moderno, ativo,

empreendedor, técnico, desapegado de suas tradições coletivistas que impedem a

emersão do operário de fábrica, produtivo e consciente de sua condição. Falta-

lhes, sobretudo, uma Revolução genuína, conduzida pelo povo que trabalha, e não

por caudilhos populistas que entregam os anéis para salvar-lhes os dedos. Falta-

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lhe o “sujeito” da Revolução. A falta é condição de realidade da Bolívia, ou

melhor, de sua inexistência enquanto nação, dizem os avalistas.

Nos últimos anos os índios tomaram a fala, e tomamos também outro

caminho de análise da realidade andina. Os fatos existem. As faltas também. Mas

os juízos, os nossos, não ratificam as análises da inviabilidade histórica do país.

Concentramos nesta dissertação, portanto, nos excessos. A Bolívia funda-se,

sobretudo na forte capacidade de ação coletiva e de organização social de setores

marginalizados: cocaleiros, indígenas, camponeses, operários, associações de

bairros, movimentos de defesa de direitos sociais, sindicatos. Sob a opressão

violenta entranhada em Qolasuyo desde 1492, demostram uma vontade

inverossímil de soberania, de serem aquilo que são, que presumem em ser,

“índio”. É por excesso, em consideração a desmedida de “ser”, que os índios não

se portam como sujeito moderno vazio de identidade. É por excesso de sentido,

por vontade de liberdade que afirmam a etnicidade enquanto capital político, de

mobilização indígena e reversão da ordem ocidental. É neste transbordo que

acertamos as nossas lentes para a compreensão da Bolívia enquanto um território

do excesso, da riqueza manifesta na diversidade cultural de um país pluriétnico,

constituído por 38 povos originários. Portanto, permite-nos nestas linhas finais um

pequeno juízo que fuja à racionalidade moderna: a Bolívia é um país viável para

seu povo apesar de suas “faltas”. Apesar dos juízos fatalistas de sua inaptidão à

modernização, nos últimos anos a sua viabilidade passa necessariamente pela

afirmação da soberania indígena: a “barbárie” enquanto começo e fim do processo

civilizador.

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