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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Luciana Vieira Dallaqua Vinci A relação entre democracia e direitos e garantias fundamentais São Paulo 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Luciana Vieira Dallaqua Vinci

A relação entre democracia e direitos e garantias fundamentais

São Paulo

2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Luciana Vieira Dallaqua Vinci

A relação entre democracia e direitos e garantias fundamentais

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título de Mestre

em Efetividade do Direito, área de

concentração em Filosofia do Direito, sob a

orientação do Professor Doutor Alvaro Luiz

Travassos de Azevedo Gonzaga.

São Paulo

2017

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Banca Examinadora

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Dedico este trabalho à minha mãe Vera Lúcia,

exemplo de fé e perseverança, que dedicou sua

vida à minha formação pessoal e profissional.

Ao meu esposo Wilson, companheiro de todos

os momentos, e à nossa amada filha Luísa,

luz da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

Um agradecimento especial ao meu orientador, Professor Doutor Alvaro Luiz

Travassos de Azevedo Gonzaga, que, com vivacidade, interesse genuíno e

dedicação, revelou-me os caminhos da Filosofia do Direito.

Agradeço também aos Professores Doutores Cláudio De Cicco, Luiz Alberto David

Araujo, Willis Santiago Guerra Filho e Regina Vera Villas Bôas, pelas valorosas

contribuições à minha formação.

Agradeço, ainda, ao Professor André Luiz Freire pelas valorosas contribuições feitas

na ocasião da qualificação deste trabalho.

Não poderia deixar de agradecer, em especial, ao Professor Doutor Vidal Serrano

Nunes Júnior, cujo incentivo para perseverar na vida acadêmica foi fundamental

para a conclusão deste curso.

Todos, sem exceção, são exemplos de professores que mostram, a cada dia, a

riqueza que a academia tem a oferecer.

Agradeço, por fim, ao Ministério Público do Estado de São Paulo, instituição que me

acolheu e que instigou várias das reflexões expostas neste trabalho.

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RESUMO

Há muito tempo, a temática da democracia é objeto de estudo, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. O mesmo se pode dizer em relação ao assunto direitos e garantias fundamentais. Contudo, o que ainda não se traduziu em grandes pesquisas acadêmicas é justamente a relação entre democracia e direitos fundamentais. Dessa maneira, o presente trabalho procura analisar quais os principais elementos da democracia e sua relação com os direitos fundamentais. Estuda-se neste trabalho, ainda, se o respeito aos direitos fundamentais ocorre apenas em um regime democrático ou ainda se é possível falar em direitos fundamentais em regimes totalitários. Igualmente, constitui objeto de estudo saber se o relacionamento entre democracia e direitos e garantias fundamentais se traduz como algo indispensável, meramente desejável ou até mesmo irrelevante.

Palavras-chave: Democracia. Direitos humanos. Direitos e garantias fundamentais. Interdependência.

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ABSTRACT

Long time, democracy is object of study, not only in Brazil, but all over the world. The same can be said about fundamental rights and guarantees. However what has not been translated yet into major academic research is precisely the relationship between democracy and fundamental rights. In this way, the present work seeks to analyze the main elements of democracy and its relation with fundamental rights. In this work it will be study whether the respect for fundamental rights occurs only in a democratic regime, or whether it is possible to speak of fundamental rights in totalitarian regimes. Equally, it is an object of study to know whether the relationship between democracy and fundamental rights and guarantees is translated as something indispensable, merely desirable or even irrelevant.

Key-words: Democracy. Human Rights. Fundamental Rights and Guarantees. Interdependence.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 10

2. A NOÇÃO DE ESTADO 13

2.1 O Estado Democrático de Direito 15

2.2 Constitucionalismo 18

3. DEMOCRACIA 22

3.1 O desenvolvimento da democracia 23

3.2 Compromisso brasileiro em ser Estado Democrático 27

3.3 Classificações da democracia 29

3.3.1 Democracia direta e indireta 30

3.3.2 Democracia formal e substancial 32

3.4 Elementos essenciais à democracia 33

3.5 Principais instrumentos democráticos 39

3.5.1 Sufrágio universal popular 39

3.5.2 Separação de Poderes 41

3.5.3 Instituições de controle e fiscalização 43

3.5.4 Participação e controle popular dos Poderes 45

4. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 50

4.1 Antecedentes históricos 52

4.2 Conceito de direitos fundamentais 54

4.3 Diferença entre Direitos Humanos, Direitos Fundamentais e Direitos

Humanitários 59

4.4 Dimensões ou gerações de direitos fundamentais 62

4.5 Características dos direitos fundamentais 66

4.6 O caráter principiológico dos direitos fundamentais 68

4.7 A função contramajoritária dos direitos fundamentais 70

4.8 Eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais 74

4.9 As garantias fundamentais 78

4.10 As garantias institucionais 80

5. FLUXOS E INFLUXOS DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

NO BRASIL 82

5.1 Constituição de 1824 82

5.2 Constituição de 1891 84

5.3 Constituição de 1934 85

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5.4 Constituição de 1937 86

5.5 Constituição de 1946 87

5.6 Constituição de 1967 89

5.7 Constituição de 1988 91

6. A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA E DIREITOS E GARANTIAS

FUNDAMENTAIS 93

6.1 As dificuldades do sistema democrático face aos direitos

fundamentais 98

6.2 Democracia: um direito fundamental 101

7. CONCLUSÃO 103

REFERÊNCIAS 106

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1. INTRODUÇÃO

Diversos livros e artigos científicos já foram escritos no mundo inteiro

sobre o assunto democracia. O mesmo pode ser dito em relação à temática

dos direitos fundamentais.

Todavia, a relação entre democracia e direitos e garantias

fundamentais ainda é matéria pouco analisada até os dias atuais e é

justamente esse o objeto de estudo do presente trabalho.

Nas últimas décadas, o mundo inteiro observou diversas guerras

fundamentadas no esforço para se “levar a democracia” a algum país. Como

regra, há um país ocidental (ou grupo de países ocidentais) tentando

implementar a democracia em um país oriental que não adota esse regime

político. Argumenta-se que, ao impor o regime democrático a um determinado

país, os valores inerentes aos direitos fundamentais também seriam, ipso facto,

internalizados naquela sociedade.

Contudo, não se pode esquecer que a imposição do regime

democrático em algum Estado que não o adote exige diversas mudanças para

adaptação a uma nova realidade social e política. Não se olvide que a

democracia impõe a necessidade de se conferir cidadania às pessoas, para

que possam participar efetivamente da vida política da sociedade, mediante o

acesso à informação, o respeito ao direito de opinião e ao sufrágio universal, a

transparência pública, a imprensa livre, entre outros elementos, consoante será

estudado ao longo deste trabalho.

Desta feita, procurar-se-á verificar quais os elementos essenciais ao

regime democrático, tomando-se por base, primordialmente, a realidade

brasileira.

O estudo da origem dos direitos fundamentais faz revolver todo o

percurso histórico já percorrido pelo próprio ser humano, o que também se

observa em relação ao estudo da democracia.

Desta forma, serão trazidos alguns dos diversos aspectos a respeito da

democracia ao longo da história e do que se idealiza sobre sua realização no

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momento histórico atual. Na mesma linha, pretende-se expor os principais

elementos referentes à consolidação da noção de direitos fundamentais

adotada até os presentes dias.

Para tanto, também será traçado um breve histórico das Constituições

brasileiras, destacando-se os principais aspectos que as caracterizaram como

mais ou menos democráticas e em que medida privilegiaram a previsão de

direitos fundamentais, observado o contexto social e político do momento em

que passaram a integrar o ordenamento jurídico-pátrio.

Procurar-se-á relacionar a democracia e os direitos fundamentais para

verificar se são, de fato, duas realidades indissociáveis ou se, ao contrário, os

direitos fundamentais são passíveis de sobrevivência em um ambiente não

democrático, a exemplo de países em que vigem regimes ditatoriais.

Assumindo-se tal objetivo, serão analisados os principais elementos e

instrumentos necessários à concretização da democracia, a exemplo da

liberdade de opinião, de expressão e de imprensa, assim como a separação de

Poderes e a previsão de instituições independentes de fiscalização e controle.

A partir do estudo dessas matérias, procurar-se-á estabelecer as

eventuais conexões entre a democracia e os direitos e garantias fundamentais,

buscando-se, ainda, respaldo doutrinário nacional e estrangeiro a respeito

dessas considerações.

O presente estudo tem por objetivo, portanto, analisar a eventual

dependência entre a efetiva observância aos direitos fundamentais em relação

a sistemas democráticos de governo e verificar se em sistemas não

democráticos há ambiente possível para a real existência dos direitos

fundamentais.

Do mesmo modo, buscar-se-á verificar se a existência dos sistemas

democráticos de governo também depende do efetivo respeito aos direitos

fundamentais e traçar um questionamento sobre a eventual simbiose entre

esses institutos.

Esclareça-se que a pesquisa exposta neste trabalho se relaciona à

realidade ocidental, em especial à brasileira, uma vez que os conceitos de

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democracia e de direitos fundamentais na região oriental (especialmente no

Oriente Médio) são totalmente diferentes e renderiam outro estudo de grande

envergadura.

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2. A NOÇÃO DE ESTADO

O vocábulo "Estado", etimologicamente, se origina do latim status e

significa “estar firme”, no sentido de conferir certa estabilidade às relações

sociais. Utilizando-se dos ensinamentos de Cláudio De Cicco e Alvaro de

Azevedo Gonzaga1, o Estado é:

[...] uma instituição organizada política, social e juridicamente, ocupa um território definido e, na maioria das vezes, sua lei maior é uma Constituição escrita. É dirigido por um governo soberano reconhecido interna e externamente, sendo responsável pela organização e pelo controle social, pois detém o monopólio legítimo do uso da força e da coerção.

Da definição supra, extraem-se os elementos constitutivos do Estado

como sendo a população (sociedade de pessoas), o território (limites

geográficos) e o governo (forma de exercício do poder estatal).

Para explicar o surgimento do Estado, foram construídas diversas

teorias, que se revelam importantes para o estudo sobre democracia e direitos

fundamentais que se propõe neste trabalho.

Assim, antes de adentrar nos assuntos centrais, é necessário discorrer,

ainda que minimamente, sobre as principais teorias do Estado para que seja

possível cumprir o objetivo proposto, que é o de relacionar referida forma de

governar o Estado com os direitos fundamentais – os quais, como é cediço,

limitam o poder estatal.

De início, é possível afirmar que as teorias do Estado apresentam, em

comum, a noção de que o comportamento dos seres humanos precisa ser

regulado de uma maneira previsível e estável, por uma entidade juridicamente

superior aos indivíduos e detentora do poder estatal, ou seja, o poder de ditar o

comportamento dos seres humanos, afirmando o que pode e o que não pode

ser feito.

1DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 47.

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Convém destacar que não há um marco histórico preciso a partir do

qual o Estado tenha surgido, tampouco entendimento doutrinário unânime a

esse respeito.

Nesse aspecto, vale trazer à colação as principais teorias sobre a

origem do Estado, na esteira, uma vez mais, do lecionado por Cláudio De

Cicco e Alvaro de Azevedo Gonzaga2: a) Teoria da Origem Natural; b) Teoria

da Origem Familiar; c) Teoria da Origem Contratual; d) Teoria da Origem

Patrimonial; e e) Teoria da Força.

A Teoria da Origem Natural sustenta que o Estado se forma

naturalmente, a partir da conjugação da família, da sociedade e de outras

diversas características, sendo impossível considerar que apenas um desses

elementos, isoladamente, originaria um Estado.3

A Teoria da Origem Familiar, sustentada por filósofos como Aristóteles

e Tomás de Aquino, apoia-se na premissa de que a família é a célula-mãe do

Estado. A partir da família é que nascem os municípios, províncias e, por fim, o

Estado em si.

A Teoria da Origem Patrimonial se funda na ideia de que o Estado

surge da união das profissões econômicas, na esteira da filosofia de Platão,

notadamente em sua obra A República.

A Teoria da Origem Contratual surgiu a partir do século XVII, em

oposição à visão tradicional clássica, e tem como grandes expoentes Thomas

Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Segundo essa teoria, o

Estado se origina de um contrato social celebrado entre indivíduos

independentes e plenamente livres (em "estado de natureza") que, em uma

situação de conflito entre seus interesses, optam, por mútuo acordo, pela

liberdade civil obediente à lei.

Vale dizer: a partir da instituição do Estado, o indivíduo não seria mais

livre para fazer tudo o que tivesse vontade, como permitido outrora no "estado

2DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 63-65. 3DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 63-65.

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de natureza". A partir de então, regras de comportamento social deveriam ser

seguidas, sob pena de aplicação de sanção para o indivíduo faltoso. Daí

emerge, também, a íntima relação entre o Estado e o Direito: o Estado se

utiliza do Direito para regular o comportamento social, impondo sanções a

quem desobedecer às regras impostas. O Direito é, por assim dizer, o

instrumento pelo qual o Estado pode impor a violência legítima ao indivíduo

que desrespeitar o contrato social.

A Teoria da Força se destacou no século XIX e por ela se afirma que o

Estado surgiu pela dominação dos mais fracos pelos mais fortes, que

submeteram os primeiros ao trabalho. Vale dizer que a força não se limita ao

aspecto físico, mas também à supremacia política, econômica, militar e social

como um todo.

Conhecer a historicidade da formação do Estado é importante para

analisar os diversos contextos em que a forma de exercício do poder se

estabeleceu e os influxos sofridos com o passar do tempo e as modificações

sofridas pela sociedade.

2.1 O Estado Democrático de Direito

A noção de Estado de Direito, em breve síntese, consolidou-se após a

Revolução Francesa, sob a premissa de sujeição à constituição, tanto dos

particulares quanto do próprio Estado e seus governantes. Jean Rivero e

Hugues Moutouh4 lecionam:

Essencialmente concebido como ordem jurídica hierarquizada, o Estado de direito, para ser consumado, pressupõe necessariamente a supremacia da Constituição, garantida, de um lado, pela submissão ao direito constitucional, do outro, pela sanção de toda violação por um juiz independente. Os pressupostos teóricos do Estado constitucional estão, portanto, em oposição total com os do Estado legal, na medida em que requerem a subordinação incondicional da lei à Constituição.

4RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades públicas. Tradução Maria Ermantina de

Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 144-145.

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Frise-se que, até então, os governantes, detentores do poder estatal,

não se sujeitavam a limites. Contudo, a partir desse marco histórico, acentuou-

se a ideia de que a titularidade do poder estatal seria do povo, que manifestaria

sua vontade por meio das leis que, pois, obrigariam a todos.

Entretanto, as leis, por si só, não eram suficientes para controlar as

ações dos governantes. Afinal, “[...] o fato de a lei ser a expressão da vontade

geral de modo algum impediu, como vimos, o legislador republicano de privar

seus inimigos políticos dos direitos e liberdades garantidos a todos”.5

Assim, a partir do Estado constitucional, passou-se a adotar uma

organização normativa hierarquizada, em que cada norma inferior encontra a

condição de sua validade em uma norma de nível superior, sendo a

constituição a norma de maior valor.6 Dessa forma, as leis, de maneira geral,

passaram a se sujeitar aos ditames constitucionais para sua conformação e

validade.

Já a noção de Estado Democrático de Direito traz a premissa de que o

poder do Estado deve se organizar e ser exercido em termos democráticos,

pelo poder político que se origina e é titularizado pelo povo – fator

indispensável para a legitimação do poder.

Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho:7 “[...] alguma coisa faltava ao

Estado de direito constitucional – a legitimação democrática do poder”.

O termo “democrático”, portanto, passou a ser adotado para reforçar a

noção acima exposta de que a titularidade do poder estatal não é dos

governantes que, em verdade, são representantes da vontade do povo – esse,

sim, o titular do poder.

A Constituição Federal de 1988 destaca que o Brasil é um Estado

Democrático de Direito já em seu preâmbulo e em seu artigo 1º:

5RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades públicas. Tradução Maria Ermantina de

Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 147. 6 Tal assunto será analisado no capítulo referente ao constitucionalismo.

7CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 98.

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PREÂMBULO

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

TÍTULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

Veja-se, portanto, que até mesmo a localização do assunto, já no

preâmbulo e na abertura do texto constitucional, demonstra a importância que

lhe foi atribuída. Para José Afonso da Silva:8

A democracia que o Estado democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, II), em que o poder emana do povo, deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por seus representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único): participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes na sociedade, há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.

8SILVA, José Afonso da. Estado democrático de direito. Revista de Direito Administrativo,

Rio de Janeiro, v. 173, p. 15-34, jul-set 1988. Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45920/44126>. Acesso em: 3 jul. 2017.

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Cabe salientar que não por acaso a expressão "democrático" sucedeu

o termo "estado", pois é qualificativo deste, e não do direito.

2.2 Constitucionalismo

Para explicar a relação entre democracia e direitos fundamentais,

torna-se indispensável proceder ao exame do movimento conhecido por

constitucionalismo.

De início, vale frisar que os marcos históricos do surgimento do

constitucionalismo contemporâneo são o advento da Constituição Americana

de 1787 e da Constituição Francesa de 1791.

O constitucionalismo surgiu da necessidade de se impor limites ao

poder estatal, exercido de forma abusiva durante o período do denominado

Estado Absolutista. Emergiu, pois, a indispensabilidade de se criar um

documento político-jurídico superior à vontade pessoal do governante de

ocasião, que impusesse limites ao exercício do poder estatal, no intuito de

evitar abusos em sua utilização.

Regra geral, o constitucionalismo contemporâneo se caracteriza pela

normatividade, superioridade e centralidade da constituição, transformando-a

de um documento político com baixa imperatividade para uma norma jurídica

suprema9.

Cabe esclarecer que diversos assuntos passaram a ser incluídos no

texto constitucional, a fim de se evitar que a deliberação de matérias

importantes ficasse a cargo de uma eventual "maioria legislativa de ocasião”,

na expressão de Robert Alexy.10

Assim, a opção pela constitucionalização de diversos assuntos surgiu

como forma de se obrigar os dirigentes dos rumos de cada Estado a respeitar

9BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das

políticas públicas. In: CAMARGO, Marcelo Novelino [Org.]. Leituras complementares de constitucional. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2007. p. 44. 10

ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales en el Estado Constitucional Democrático. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 37-38

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os preceitos constitucionais, tendo em vista que, como é cediço, a partir do

constitucionalismo, a constituição passou a ser o documento mais importante

existente em um ordenamento jurídico.

Essa constitucionalização do Direito origina uma releitura da aplicação

das normas jurídicas que, a partir de então, devem passar por um prévio filtro

constitucional antes de lançarem sua eficácia sobre os fenômenos sociais.

A constituição passa a ser, ao mesmo tempo, o centro e o ápice de

todo o ordenamento jurídico, fornecendo elementos inclusive para a análise e

confronto de opções políticas tomadas pelos Poderes Executivo e Legislativo.

Dessa maneira, no Estado Constitucional, os atos praticados pelo

Poder Público devem obediência irrestrita à Carta Magna, seja em seu aspecto

formal ou material, sob pena de serem considerados inválidos.

Esse cenário permaneceu incólume até o fim da Segunda Guerra

Mundial, quando as barbáries praticadas em seu período suscitaram

discussões a respeito da efetividade e conteúdo das Constituições no que

tange aos direitos fundamentais, bem como à sua força normativa. A este

movimento histórico, atribuiu-se a denominação de neoconstitucionalismo. Nas

palavras de Dirley da Cunha Júnior:11

[...] as Constituições do pós-guerra inovaram com a incorporação explícita em seus textos de valores (especialmente associados à promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais) e opções políticas gerais (como a redução das desigualdades sociais) e específicas (como a obrigação de o Estado prestar serviços na área da educação e saúde).

11

CUNHA JÚNIOR, Dirley. Temas de Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais: neoconstitucionalismo e o novo paradigma do Estado Constitucional de Direito: um suporte axiológico para a efetividade dos direitos fundamentais sociais. Salvador: Jus Podivm, 2007. p. 72.

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Para Miguel Carbonell, três elementos são essenciais para o

surgimento do denominado neoconstitucionalismo: o texto constitucional, a

prática jurisprudencial e o desenvolvimento teórico.12

Desse fato advém uma das críticas ao neoconstitucionalismo: tendo em

vista que, em nosso país, cabe ao Poder Judiciário a guarda da constituição

federal e sabendo-se que, para a teoria neoconstitucional, praticamente todo

assunto encontra guarida na Carta Magna (fenômeno da “constitucionalização”

da vida), há quem afirme a existência de uma sobreposição do Poder Judiciário

em relação aos demais Poderes; afinal, é o Poder Judiciário que dita a última

palavra em assuntos variados.

Cabe ressaltar que essa não é uma exclusividade do Brasil, pois o

fenômeno ocorre em praticamente todos os demais países que adotam uma

constituição rígida. Afinal, é possível afirmar que, atualmente, em praticamente

todas as Constituições democráticas, pode ser encontrado um elenco mais ou

menos abrangente dos direitos de liberdade e dos direitos fundamentais em

geral.13

A supremacia do Poder Judiciário pode ser facilmente explicada por um

silogismo: tendo em vista que, com o constitucionalismo, inúmeros assuntos

ganharam status constitucional (premissa maior) e sabendo-se que cabe ao

Poder Judiciário a guarda da constituição (premissa menor), segue a conclusão

de que o Poder Judiciário cresce em importância e adquire um protagonismo

mormente a partir do século XX, que se estende até agora, em pleno século

XXI.

Além do protagonismo do Poder Judiciário, há outras características

inerentes ao neoconstitucionalismo, como a normatividade da Carta Magna

(que, em verdade, já estava presente desde o movimento anterior, do

constitucionalismo) e a aplicação direta dos princípios constitucionais às

relações jurídicas (esta sim uma verdadeira novidade do

neoconstitucionalismo).

12

CARBONELL, Miguel. El Neoconstitucionalismo: significado y niveles de análisis. In: CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo (orgs.). El canon neoconstitucional. Madrid: Trotta, 2010. p. 154-155. 13

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Trad. Marlene Holzhausen. Revisão

técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 136.

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É de se frisar que a aplicação dos princípios constitucionais às relações

envolvendo os indivíduos e o Estado, em especial quanto aos direitos

fundamentais, tem ampla aceitação na doutrina e na jurisprudência. Isso

porque, como os direitos fundamentais possuem caráter principiológico, não se

nega a possibilidade desses princípios serem invocados pelos indivíduos em

face do Estado, principalmente sabendo-se que os direitos fundamentais

surgiram, historicamente, como forma de limitação do poder estatal.

Salienta-se, ainda, que, com o avançar da história, tais princípios

constitucionais, notadamente relativos a direitos fundamentais, foram

assumindo cada vez mais força e importância, passando a incidir, também, nas

relações entre particulares, como se verá adiante no tópico em que se expõe a

eficácia dos direitos fundamentais.

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22

3. DEMOCRACIA

Quando se menciona o vocábulo “democracia”, é frequente a

associação com a democracia ateniense enquanto primeiro modelo dessa

forma de governo, originada no século V a.C.

Em breve síntese, é possível afirmar que os princípios norteadores da

democracia ateniense eram a isonomia, que assegurava a igualdade civil e

política de todos perante a lei escrita; a isocratia, que justificava a concentração

da soberania e do poder no dêmos; e a isagoria, que protegia a liberdade de

opinião e a igualdade de direitos no uso da palavra na Ágora.14

Entretanto, é necessário destacar o contexto em que a democracia

ateniense se desenvolveu. A realidade política daquele momento histórico era

marcada pela força da comunidade familiar e pelo “culto à pólis”: a pólis era,

inclusive, objeto de especial preocupação dos filósofos, pois era o elemento

agregador dos cidadãos. Quem não integrasse a pólis não tinha o

reconhecimento de direitos – como era o caso de estrangeiros e escravos

oriundos das guerras.

Mesmo no interior da pólis, havia uma declarada distinção entre as

pessoas: havia cidadãos e não cidadãos. Somente era considerado cidadão o

homem adulto (maior de idade) livre. Assim, restavam excluídos dessa

definição as mulheres, as crianças, os idosos, os estrangeiros e os escravos –

que eram considerados pertenças do homem adulto livre.

Nesse contexto, somente ao homem adulto livre ateniense era

permitido deliberar sobre o futuro da pólis. É simples constatar, portanto, que a

atividade política era baseada na exclusão, para que, de forma preliminar,

fossem selecionadas as pessoas capazes de decidir o futuro próprio e das

demais, o que é substancialmente diferente da democracia que se imagina

ideal para os dias atuais.

14

GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria política do Direito: a expansão política do direito. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 158.

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23

Constata-se que nessa configuração de sociedade não se falava em

direitos próprios do indivíduo. Durante a existência da pólis, a preocupação

principal era a de preservá-la, sendo que o indivíduo em si restava em segundo

plano – interessava apenas enquanto integrante da pólis.

No período medieval e no início da idade moderna, a discussão sobre

democracia perdeu força. Tais períodos foram inicialmente marcados por

diversas invasões de territórios e sobreposição de povos vencedores sobre os

vencidos em guerras. Houve grandes reviravoltas culturais, em que se perdeu,

inclusive, a escrita, somente recuperada no fim do século IX.

A preocupação com os ideais democráticos somente ressurgiu a partir

do século XVII, como reação aos antigos ardores religiosos e ao

desvirtuamento da concentração do poder nas mãos de uma só pessoa, típico

do período absolutista – dos abusos da monarquia fez-se a tirania. Essa reação

propiciou ambiente favorável ao aparecimento de governos democráticos, com

a Confederação Helvética e, posteriormente, a República Holandesa.

Merecem destaque, ainda, a Independência Americana, em 1776, a

Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Industrial como fatos históricos

relevantes na concretização dos ideais democráticos.15

Evidencia-se, portanto, que a democracia foi concebida de diversas

maneiras diferentes ao longo da história, da qual sofreu influxos

permanentemente, o que será objeto de aprofundamento nos tópicos que

seguem.

3.1 O desenvolvimento da democracia

O termo “democracia” tem sido utilizado amplamente nas mais diversas

situações, normalmente como um ideal positivo a ser perseguido em todo e

qualquer tipo de sociedade ao redor do mundo. A palavra é cotidianamente

utilizada na linguagem política e na linguagem comum, ou seja, não apenas no

15

GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria política do Direito: a expansão política do direito. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 162.

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24

ambiente jurídico e filosófico, motivo pelo qual seu sentido não é unívoco.A

tarefa de conceituar o instituto é, assim, especialmente complexa, mas

necessária para o desenvolvimento do trabalho.

Neste trabalho acadêmico, é necessário apontar, o tanto quanto

possível, o que se entende por democracia. Nesse sentido, é evidente que não

basta a análise da etimologia da palavra, aspecto importante mas insuficiente

para a estruturação da ideia a ser desenvolvida. É preciso ir além e trazer a

lume outros elementos capazes de fundamentar a defesa que se pretende

expor.

Etimologicamente, o termo “democracia” remete a governo do povo. De

forma simplória, é possível apreender a ideia central do termo, que se

contrapõe ao governo de um ou de alguns sobre todas as pessoas. Neste

aspecto, Bobbio16 afirma que:

O pensamento político grego nos transmitiu uma célebre tipologia das formas de governo das quais uma é a democracia, definida como governo dos muitos, dos mais, da maioria, ou dos pobres (mas onde os pobres tomam a dianteira é sinal de que o poder pertence ao pléthos, à massa), em suma, segundo a própria composição da palavra, como governo do povo, em contraposição ao governo de uns poucos.

Além da análise etimológica, é imprescindível refletir a respeito da

origem histórica da democracia, qual seja, a sociedade ateniense. É certo que

a democracia grega não é a mesma da atualidade. Afinal, um instituto tão

intimamente ligado às raízes da sociedade sofreu, com ela, modificações ao

longo do tempo e, ainda, do espaço – uma vez que o que se entende por

democracia em determinado Estado pode ser muito diferente do que se

entende em outro.

16

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2013a. 11ª reimpressão da 6. ed. de 1994. p. 31.

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25

Sobre a modificação do sentido de democracia, Niklas Luhmann17

sustenta que:

Com o conceito de democracia, ocorre, por exemplo, algo similar: pode-se optar pela continuidade no uso do termo, devido à sua aceitação social, mas é evidente que ele deve ser empregado com um significado totalmente diverso quanto a se tratar verdadeiramente de um poder do povo.

A continuidade na utilização do termo, portanto, se justifica diante da

permanência da referência principal da democracia, qual seja, a de que o poder

pertence ao povo. Bobbio18 sintetiza esse raciocínio dizendo que:

[...] o significado descritivo geral do termo não se alterou, embora se altere, conforme os tempos e as doutrinas, o seu significado valorativo, segundo o qual o governo do povo pode ser preferível ao governo de um ou de poucos e vice-versa.

Essencialmente, ainda é possível afirmar que o reconhecimento de que

a titularidade do poder é do povo é que caracteriza a democracia desde seu

surgimento.

Nesse sentido, de acordo com Norberto Bobbio,19 confluem três

grandes tradições do pensamento político na teoria contemporânea da

democracia:

a) Teoria clássica – divulgada como teoria aristotélica das três

formas de governo, em que a democracia é o governo do povo, de todos os

cidadãos – aqueles que gozam dos direitos de cidadania – em contraposição à

monarquia, como governo de um só, e da aristocracia, como governo de

poucos. Merece destaque, também, a classificação das cinco formas de

17

LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 162. 18

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2013a. 11ª reimpressão da 6. ed. de 1994. p. 31. 19

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 13. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2010. v. 1. p.319-320.

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governo descritas por Platão, como sendo a aristocracia, a timocracia, a

oligarquia, a democracia e a tirania. Bobbio ressalta que Platão,20 "distinguindo

as formas más de Governo com base no critério da legalidade e da

ilegallidade", sustenta que "a Democracia é considerada a menos boa das

formas boas e a menos má das formas más de Governo".

b) Teoria medieval – de origem romana, fundada na soberania

popular. Sustenta a contraposição de uma concepção ascendente a uma

concepção descendente da soberania de acordo com o poder supremo: se este

deriva do povo e se torna representativo (democracia) ou se deriva do príncipe

e se transmite por delegação do superior para o inferior (monarquia). Em outras

palavras: se o poder é exercido de baixo para cima, da base para o topo, trata-

se de democracia; se é exercido de cima para baixo, do topo para a base da

sociedade, trata-se de monarquia.

c) Teoria moderna – conhecida como teoria de Maquiavel, nasceu

com o Estado moderno na forma das grandes monarquias. Segundo essa

teoria, as formas históricas de governo são: a monarquia e a república. A

antiga democracia nada mais é que uma forma de república, em contraposição

à outra, que é a aristocracia.

Paulo Bonavides,21 por seu turno, traz a seguinte contribuição:

De tal sorte que a democracia é o princípio contemporâneo mediante o qual se confere legitimidade a todas as formas possíveis de convivência; poder-se-ia até dizer o único princípio legitimante da cidadania e da internacionalidade. Foi princípio filosófico nas revoluções; é jurídico nas elaborações pacíficas de cada sistema de governo que deve reger os cidadãos ou dirigir os Estados nas suas relações mútuas.

Nesse aspecto, vale destacar o lecionado por Willis Santiago Guerra

Filho e Henrique Garbellini Carnio, no sentido de que o conceito mais simples e

significativo de democracia, aceito por importantes politicólogos, é aquele

20

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política.

Trad. Carmen C. Varriale et al. 13. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2010. v. 1. p. 320. 21

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 350.

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27

elaborado por Heródoto de Halicarnasso e ampliado por Lincoln em seu

discurso em Gettysburg: governo do povo, para o povo, pelo povo.

Acrescentam os mencionados autores, ainda, que “[...] a democracia é um

sistema de governo, uma forma de organização do poder, que inclui a

liberdade. Para Kelsen, a democracia é, sobretudo, um caminho: o da

progressão para a liberdade”.22

3.2 Compromisso brasileiro em ser Estado Democrático

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988

inaugurou um novo período democrático, após a prevalência da ditadura no

lapso temporal imediatamente anterior, de 1964 a 1987.

O preâmbulo da Constituição de 1988 estabelece expressamente que o

Estado deverá ser democrático:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Vale dizer que o preâmbulo expõe valores aos quais deve se destinar a

vocação do Brasil daquele momento em diante. Tem, portanto, natureza

diretiva, no sentido de apontar o caminho e os objetivos a serem perseguidos

pelo novo Estado inaugurado pela Constituição de 1988.

22

GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria política do Direito: a expansão política do direito. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 152-153.

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28

Frise-se que há vários entendimentos a respeito da relevância jurídica

do preâmbulo. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou a respeito,

ocasião em que afirmou que o preâmbulo não constitui norma central, de

reprodução obrigatória pelas Constituições estaduais, não tendo, pois, força

normativa.23

Cláudio De Cicco e Alvaro de Azevedo Gonzaga24 ponderam, porém,

que:

Embora a corte máxima brasileira tenha se posicionado no sentido supra e possamos parecer um grito destoante da maioria dos doutrinadores, entendemos, data maxima venia, que o preâmbulo é o supremo paradigma para entender o espírito da Constituição, destinado a sanar qualquer dúvida sobre a intenção dos constituintes, contribuindo até para resolver antinomias entre artigos diferentes da mesma Constituição, sendo este até mesmo superior a uma norma constitucional, pois como assevera Miguel Reale: “O jurista não pode prescindir de certas bases comuns para a compreensão do direito, sem que todo o destino do direito como realidade humana ficaria comprometido”.

Observa-se, assim, que a força oriunda do preâmbulo da Constituição

Federal é reconhecida, em maior ou menor grau, a depender a orientação

doutrinária adotada. Nesse sentido, vale destacar, uma vez mais, as

considerações de Cláudio De Cicco e Alvaro de Azevedo Gonzaga25 em

relação ao compromisso democrático expresso no preâmbulo da atual

Constituição Federal: "[...] a intenção clara de criar um Estado Democrático

23

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 2076, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2002, DJ 08-08-2003 PP-00086 EMENT VOL-02118-01 PP-00218). (BRASIL. Constituição (1988). Ementa: constitucional. Constituição: preâmbulo. Normas centrais. Brasília, DF, 2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000096542&base=baseAcordaos>. Acesso em: 18 jul. 2017.) 24

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 129-130. 25

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 131.

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29

revela a preocupação com a salvaguarda da democracia, como principal

objetivo, depois de vinte anos de ditadura militar no Brasil".

A Constituição ainda traz a opção pela democracia ao longo de todo

seu texto, de forma explícita ou implícita. O Título I, denominado Dos Princípios

Fundamentais, especifica em dois pontos a adoção do regime democrático.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Em muitos outros artigos constitucionais, aponta-se que o regime

democrático deve permear todas as relações jurídicas. Constata-se, dessa

forma, que houve grande preocupação em reforçar a adoção do regime

democrático, afirmando-o como princípio fundamental da República Federativa

do Brasil.

3.3 Classificações da democracia

É cediço que a classificação de institutos em um trabalho acadêmico é

parte importante para o desenvolvimento do raciocínio a ser exposto. Da

mesma forma, sabe-se que não há classificações corretas ou incorretas, mas

úteis ou não.

Nesse sentido, entre tantas classificações encontradas na doutrina a

respeito da democracia, foram selecionadas aquelas que mais apresentam

afinidade com o tema deste trabalho, a fim de buscar objetividade na análise do

problema.

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Assim é que se mostra relevante a separação entre a democracia

direta e indireta, bem como a diferenciação entre a democracia formal e

substancial, consoante adiante exposto.

3.3.1 Democracia direta e indireta

A presente classificação se refere ao modo pelo qual a democracia é

exercida em determinado local.

Como regra, o estudo da democracia desde suas origens remete ao

exercício direto da soberania pelo povo, como originariamente ocorria na

sociedade ateniense. As deliberações eram realizadas pelo voto direto e

pessoal, sem intermediários, o que era possível diante da reduzida quantidade

de pessoas aptas a deliberar, aquelas poucas reconhecidas como cidadãos.

Nesse sentido, Paulo Bonavides26 destaca os elementos da

democracia direta na Grécia Antiga:

Tudo completamente distinto das estruturas sociais do antigo Estado-cidade, da Grécia clássica, onde a cidadania inteira poderia ser congregada e auscultada na “ágora”, no recinto de uma praça pública, para deliberar “viva você” sobre todos os assuntos de Governo; um Estado, enfim, onde, parodiando a célebre imagem de Lincoln sobre a democracia, todo cidadão vivia integralmente da “pólis”, para a “pólis” e pela “pólis”.

O homem político da Grécia, por sua condição de homem livre, se desatara, por inteiro, dos laços profissionais de trabalho com que prover a própria subsistência. Cabia ao braço escravo naquela sociedade de privilégios executar todas as tarefas econômicas essenciais de produção. O ser livre, o cidadão, ao contrário do que ocorre em nosso tempo, ficava desse modo capacitado a consagrar cada hora, cada minuto, cada fração de sua vida às reflexões, meditações e análises do fenômeno político que lhe envolvia a existência e do qual, sem poder separar-se, pendia a segurança de sua liberdade.

26

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 353.

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31

No entanto, com o crescimento das cidades e, posteriormente, dos

Estados, bem como com a crescente complexidade das sociedades, a

democracia direta passou a se tornar de difícil exercício. Afinal, passou a ser

inviável a reunião de todos os cidadãos para deliberar a respeito do futuro

comum a todos.

A partir disso, o regime democrático passou por uma importante

modificação, admitindo-se o exercício da soberania por meio de outras

pessoas, escolhidas para representar a vontade popular nessas deliberações.

Eis aí, então, a democracia indireta ou representativa.

Destaca Norberto Bobbio27 que:

O que se considera que foi alterado na passagem da democracia dos antigos à democracia dos modernos, ao menos no julgamento dos que veem como útil tal contraposição, não é o titular do poder político, que é sempre o „povo‟, entendido como o conjunto dos cidadãos a que cabe em última instância o direito de tomar decisões coletivas, mas o modo (mais ou menos amplo) de exercer esse direito.

Ressalte-se que a democracia direta e a indireta não são institutos

opostos, mas complementares. Vale ressaltar, nesse aspecto, o lecionado por

Bobbio:28

[...] tanto a democracia direta quanto a indireta descendem do mesmo princípio da soberania popular, apesar de distinguirem pelas modalidades e pelas formas com que essa soberania é exercida.

Para Paulo Bonavides,29 o conceito atual de democracia direta não

deve coincidir integralmente com o adotado na Grécia Antiga. Isso porque,

27

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2013a. 11. reimpressão da 6. ed. de 1994. p. 31-32. 28

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2013a. 11. reimpressão da 6. ed. de 1994, p. 34. 29

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 354.

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32

segundo sustenta, a adoção da democracia direta não implica no banimento

das formas de representação. Para o autor, o indispensável para definir a

democracia direta é que o povo tenha ao seu dispor os instrumentos de

controle da democracia, para uma efetiva e desembaraçada participação.

Ressalta o jurista:

Sem isso a participação será sempre ilusória, e o é nas chamadas democracias representativas do Terceiro Mundo, onde aqueles instrumentos compõem, não raro, o biombo atrás do qual se ocultam as mais obnóxias ditaduras sociais de confisco da liberdade humana.

Ressalte-se que há doutrinadores que privilegiam uma ou outra forma

de democracia, exaltando suas características como qualidades. Entretanto,

prefere-se sustentar que as formas direta e indireta do exercício da soberania

possuem, cada qual, aspectos positivos e negativos, sem que haja a

supremacia de uma sobre a outra.

3.3.2 Democracia formal e substancial

A diferenciação entre a democracia formal e a democracia substancial

se revela de suma importância para o desenvolvimento do tema proposto.

A democracia formal se refere à maneira pela qual os assuntos de uma

comunidade são decididos, a partir das escolhas do povo, pelo exercício da

soberania. Entretanto, os assuntos deliberados não são limitados a

determinada esfera ou pauta política. Norberto Bobbio afirma que a democracia

formal está diretamente relacionada à formação do Estado liberal.30 Adotando-

se tão somente a democracia formal, é possível considerar democrática a

eleição de um governante tirano, por exemplo, pelo simples fato de que os

cidadãos foram às urnas para elegê-lo – ainda que tenha sido o único

30

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2013a. 11. reimpressão da 6. ed. de 1994. p. 38.

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33

candidato, ou que tenha violado todas as regras para concorrer ao cargo

pretendido.

A democracia substancial, por outro lado, relaciona-se não apenas à

forma de deliberação e exercício da soberania, mas limita a disponibilidade das

matérias a serem decididas. Como exemplo, é possível indicar a limitação de

deliberação a respeito dos direitos fundamentais. Nesse aspecto, não basta

que o povo decida sobre tal temática, de forma direta ou indireta, mas deverá

fazê-lo sem diminuir o espectro de proteção desses direitos.31

No presente estudo, portanto, essa classificação é de suma relevância,

uma vez que se relaciona diretamente ao cerne da questão, tendo em vista que

ambos os enfoques são igualmente legítimos. No entanto, é de se indagar:

basta a democracia formal para efetivo respeito aos direitos fundamentais? É

possível defender a tutela dos direitos fundamentais em um ambiente apenas

formalmente democrático? Ou a democracia substancial é indispensável para a

tutela dos direitos fundamentais?

3.4 Elementos essenciais à democracia

Após a explanação sobre a noção e a classificação da democracia, é

conveniente refletir a respeito de quais elementos podem ser considerados

essenciais para sua efetiva existência.

Como sobredito, a tentativa mais básica de definição da democracia

parte da ideia de regime político fundado no poder do povo. No entanto, essa

noção não é suficiente para entender como o poder popular pode,

efetivamente, definir o rumo político de um país.

Isso significa dizer que não basta afirmar que a democracia é o regime

em que o poder advém do povo, que definirá seu próprio destino. É necessário

verificar por quais meios e formas a expressão desse poder se dará e o que

será considerado essencial, portanto, para a sobrevivência desse regime.

31

A função contramajoritária dos direitos fundamentais tem relação direta com a democracia substancial e será objeto de um capítulo específico neste trabalho.

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Primeiramente, há que se destacar que, para que o povo efetivamente

tenha o poder de decisão, deverá dispor de todas as informações relevantes

para que possa formar seu convencimento de forma livre e consciente. Neste

aspecto, merece destaque o entendimento exposto por Reinhold Zippelius:32

O ideal de uma livre formação da opinião pública tem várias raízes. Devem ser salientados o relativismo político-ideológico, que não admite a monopolização da pretensão da verdade; depois, a confiança na racionalidade da discussão pública; a ideia liberal de uma livre concorrência e de um equilíbrio recíproco das opiniões concorrentes; e, por fim e sobretudo, também a ideia democrática de que cada indivíduo deve participar ele próprio na formação da vontade comum à qual está subordinado. O essencial neste ideal democrático de liberdade é a participação própria na decisão, que não pode ser falsificada por um dirigismo da opinião convertendo-a em mera aclamação.

Thomas Fleiner-Gerster33 adverte que o acesso à informação, a ser

franqueado tanto pelas autoridades públicas quanto pelas particulares, é

indispensável à concretização da liberdade de expressão:

No entanto, a liberdade de expressão sem informar amplamente a população sobre o governo, a administração e a economia é praticamente inútil. O corolário da liberdade de expressão, isto é, a liberdade de informação, necessita, por essa razão, de uma concretização abrangente. Até que ponto as autoridades ou outros grupos sociais dirigentes estão dispostos a informar constitui, muitas vezes, o barômetro para indicar com precisão o grau de realização da liberdade de opinião e da liberdade de imprensa no Estado em questão.

O acesso às informações deve ser, como regra, ilimitado, o que abrange

os assuntos relativos ao governo, assim como a vida pública dos governantes e

32

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 399. 33

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução Marlene Holzhausen.

Revisão técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 154.

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dos servidores públicos em geral. O sigilo, portanto, deve ser motivado e

excepcional. Reinhold Zippelius34 se manifesta sobre esse aspecto:

Também a solução das questões concretas da política se deveria encontrar através da discussão pública, livre e racional. Esta ideia moldou o conceito de opinião pública tal como o entendeu o século XIX: não como um estado de espírito emocional, sugerido e irreflectido da multidão, mas como uma opinião fundada em informações objectivas e que se forma através de uma argumentação racional à luz da publicidade.

Nessa linha de pensamento, exsurge a relevância da preservação da

liberdade de imprensa, tendo em vista que os meios de comunicação,

sobretudo os de massa, possuem grande aptidão para trazer a lume e difundir

importantes informações para subsidiar a formação da opinião pública.35

Além disso, o povo deve ter a garantia de livre expressão de suas

opiniões, sem que haja prévia censura ou sanções decorrentes de opções

políticas. Thomas Fleiner-Gerster destaca a relevância da liberdade de

expressão neste aspecto:

O desenvolvimento histórico da liberdade de expressão mostra que ela está intimamente ligada com a edificação dos direitos políticos. Esta liberdade é um pressuposto dos processos de decisão democráticos. De fato, as decisões objectivas tomadas democraticamente pela maioria, e que, em última análise, servem também ao bem comum, não são possíveis senão quando as alternativas em discussão podem ser criticamente avaliadas em um debate aberto e no qual cada um tem uma chance justa de fazer valer o seu argumento em um processo de decisão.

34

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de

Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 402. 35

“São sobretudo os meios de comunicação social que participam decisivamente na formação e na difusão do poder da opinião. Isso sucede em especial por via da seleção as informações – ainda a apresentar – que são tornadas acessíveis ao público, por meio da articulação do processo de formação da opinião (IV 1) e, não menos importante, também por meio da escolha daqueles a quem os „media‟ concedem um lugar influente no fórum da discussão pública (IV 2)”. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 402.

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36

A forma de tomada de decisões, por outro lado, é sempre lembrada

como a vontade da maioria. Vale dizer, porém, que essa afirmação traduz uma

pequena parte do complexo sistema de tomada de decisões em uma

democracia.

Isso porque a vontade da maioria pode ser considerada, mas esbarra

em limites, tendo em vista que não é possível livremente dispor de todo e

qualquer assunto. No sistema constitucional brasileiro, um desses limites

materiais diz respeito aos direitos e garantias individuais, que não podem ser

objeto de deliberação tendente à extinção.36

Ademais, o sistema democrático deve proteger os direitos das

chamadas minorias, cujas opiniões também devem ser consideradas nas

tomadas de decisões, assegurando-se a liberdade de expressão amplamente

para que sejam entendidas e ouvidas tempestivamente.37 Aqui, vale esclarecer

que não se trata de minoria apenas quantitativa, mas de grupos de pessoas

que, por diversos fatores, encontrem-se em condição de vulnerabilidade.

Frise-se que não é tarefa simples definir em que consiste a minoria. Nas

palavras de J. J. Gomes Canotilho:38

A noção de minorias e de direitos de minorias levanta muitos problemas. Minoria será, fundamentalmente, um grupo de cidadãos de um Estado, em minoria numérica ou em posição não dominante nesse Estado, dotado de características étnicas, religiosas ou linguísticas que diferem das da maioria da população, solidários uns com os outros e animados de uma vontade de sobrevivência e de afirmação da igualdade de facto e de direitos com a maioria.

Nesse aspecto, é possível destacar os direitos das mulheres, dos

idosos, das crianças, dos negros, dos índios, entre outros grupos que são ou

36

A Constituição Federal brasileira dispõe, em seu artigo 60, § 4º, IV, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias individuais. 37

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Tradução Marlene Holzhausen.

Revisão técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 153. 38

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 387.

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37

podem vir a ser considerados especialmente frágeis frente aos demais que

formam a maioria.

Assim é que as maiorias devem conviver de forma harmônica com as

minorias, respeitando-se a igualdade de tratamento quanto à observância dos

direitos fundamentais e também de oportunidades para formar e expressar as

próprias opiniões. Merece destaque o lecionado por Dalmo de Abreu Dallari:39

Eminentes pensadores desenvolveram a ideia de Democracia, que, em síntese, deverá ser uma forma de organização e governo em que seja reconhecida a igualdade essencial de todos os seres humanos, em direitos e dignidade, assegurando-se a todos a satisfação de suas necessidades essenciais, bem como a possibilidade de influir na tomada de decisões sobre questões de interesse comum.

A expressão dessa opinião, ademais, deve ser periódica, por um simples

motivo: o povo se renova a cada momento; não é uma massa estática. Além

disso, a realidade também não é estanque e a opinião popular está sujeita a

mudanças. Assim, as decisões tomadas não são definitivas e podem ser

revistas por seus titulares.

Nesse sentido, o voto é a forma mais conhecida de expressão periódica

de opinião popular, de tomada de decisões pelo povo de maneira direta. Uma

das formas de exercício do voto é a eleição de representantes que, para isso,

deve respeitar certa periodicidade, tanto para que haja uma avaliação

constante dos eleitos quanto para permitir que outros se candidatem a ocupar

cargos públicos eletivos.

Reinhold Zippelius40 elucida que:

39

DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado democrático e social de direito. In: ENCICLOPÉDIA jurídica da PUC-SP. 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/70/edicao-1/estado-democratico-e-social-de-direito>. Acesso em: 3 jul. 2017. 40

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 404.

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38

Nas democracias, a opinião pública exprime-se diretamente, através de eleições periódicas, na designação dos órgãos do Estado e numa opção entre alternativas políticas. A formação da opinião pública surge, neste caso, verdadeiramente como „pré-figuração da formação da vontade política do povo‟, se bem que ela própria ainda não seja vontade orgânica do Estado.

Ressalte-se que a periodicidade do voto varia de acordo com cada

sistema constitucional. O objetivo desta característica é evitar a vitaliciedade

nos mandatos eletivos e impor delimitação temporal prévia nos seus exercícios,

viabilizando-se a renovação quanto aos ocupantes de tais cargos. Nas palavras

de J. J. Gomes Canotilho:41 “Poder a tempo, mudado no tempo

constitucionalmente previsto, é, pois, a consequência fundamental do princípio

da renovação”.

Nesse aspecto, também deve ser assegurada ao cidadão a

oportunidade de ocupar cargos públicos, sejam eletivos ou por meio de

processos seletivos, a exemplo de concursos públicos. As exigências para

tanto devem ser pautadas na igualdade, admitindo-se diferença de tratamento

apenas quanto a eventuais vulnerabilidades de determinados grupos de

pessoas. O exemplo mais comum dessa diferenciação legítima é a de formas

especiais de ingresso no serviço público por pessoas com deficiência.

Em outras palavras, em um regime democrático, apenas se pode admitir

o tratamento diferenciado entre as pessoas que concorram a um cargo público

se pautado em discriminações positivas, ou seja, para que se promova a

igualdade material.42

41

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 306. 42

As denominadas ações afirmativas são um exemplo de instrumentos tendentes a assegurar a igualdade material.

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39

3.5 Principais instrumentos democráticos

A democracia pressupõe a existência de instrumentos de controle da

atuação estatal, por meio dos quais é viabilizada a efetiva participação popular.

A existência da democracia tem por premissa, portanto, a existência de certos

elementos instrumentais que a caracterizam, todos relacionados ao exercício

da soberania pelo povo.

3.5.1 Sufrágio universal popular

O sufrágio é o direito de votar e de ser votado. O voto é a forma de

exercer o direito ao sufrágio. Escrutínio é a forma de exercer o voto.

A questão que se coloca é o que se compreende por universal no

escrutínio. Significa dizer quais predicados um indivíduo deverá reunir para ser

considerado apto a exercer o direito de votar e ser votado?

Convém ressaltar que a definição do conceito “povo” variou ao longo

do tempo e ainda varia de acordo com o espaço, pois seu significado sofreu

alterações ao longo da evolução histórica e política e ainda varia de acordo

com a realidade de cada país. Afinal, cada país é que especifica os requisitos

para que um indivíduo seja considerado parte integrante de seu povo.

Ademais, não é suficiente que um indivíduo seja considerado parte do

povo de um país para que tenha capacidade para participar ativa e

passivamente do sufrágio. Assim é que, na Grécia Antiga, considerou-se que

apenas o indivíduo do sexo masculino, adulto e livre poderia exercer o sufrágio.

Excluía-se tal direito das mulheres, escravos, estrangeiros e idosos.

No Brasil, o direito de votar e de ser votado era restrito aos indivíduos

do sexo masculino até o ano de 1932. Somente a partir desse ano é que foi

reconhecido tal direito às mulheres.

Atualmente, considera-se apto a votar no Brasil o indivíduo maior de 16

anos de idade. Não há distinção em relação ao sexo, origem, capacidade

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40

intelectual ou qualquer outra característica específica. Há hipóteses

constitucionais e legais de suspensão deste direito, o que, por óbvio, são

excepcionalidades.

O sufrágio universal é um dos mais importantes instrumentos para

assegurar a participação popular na condução da vida política da comunidade.

A forma mais conhecida de exercício desse direito é a participação em eleições

periódicas nos diferentes níveis de governo, como acima especificado. No

entanto, o sufrágio não se restringe a essa possibilidade: é também exercitável

nos plebiscitos e referendos, que igualmente constituem instrumentos

valorosos de participação popular.

Convém ressaltar que, em cada uma dessas formas de exercício do

sufrágio, não basta assegurar ao indivíduo a oportunidade de escolha: deve ser

franqueado o acesso amplo às informações necessárias para subsidiar sua

decisão. Do contrário, haverá apenas a observância formal desse direito, e não

substancial.

Em outras palavras, não é suficiente que o indivíduo possa optar entre

o candidato A ou B. É indispensável que haja livre acesso à biografia desses

candidatos, às atribuições que irão exercer se eleitos, quais as propostas de

governo, dentre outras informações relevantes à formação do convencimento

do eleitor.

Ademais, não basta que se estabeleça que os rumos políticos de

determinado povo sejam decididos pelo voto. É necessário assegurar que

todos os votos tenham o mesmo peso, o mesmo valor, para que se admita a

existência de um verdadeiro ambiente democrático.

Quanto a este último aspecto, J. J. Gomes Canotilho43 expõe que:

O princípio da unicidade é um corolário lógico do princípio da igualdade. Se os votos todos têm o mesmo peso, também o cidadão-eleitor é vedado defraudar o princípio um homem um voto. O eleitor só vota uma vez.

43

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 306.

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41

Assim, cada eleitor tem direito a apenas um voto, independentemente

de suas características pessoais, a fim de assegurar o efetivo respeito à

igualdade na formação e expressão da opinião pública.

3.5.2 Separação de Poderes

De início, vale destacar que a separação de Poderes, em verdade,

refere-se à separação das funções do Estado, tendo em vista que o poder

estatal é uno e indivisível. Segundo ensinam Luiz Alberto David Araujo e Vidal

Serrano Nunes Júnior:44

[...] a capacidade de determinar o comportamento de outras pessoas – poder – não pode ser fracionada. [...] sendo uno e indivisível, o poder, no âmbito do Estado, exterioriza-se por meio de funções. Assim, a vontade estatal é única, manifestando-se, porém, por suas funções, a executiva, a legislativa e a judiciária.

Nesse mesmo sentido, Jorge Miranda45 elucida as funções atinentes ao

Estado, ressaltando sua condição de autoridade e serviço:

Mas o Estado não existe em si ou por si; existe para resolver problemas da sociedade, quotidianamente; existe para garantir segurança, fazer justiça, promover a comunicação entre os homens, dar-lhes a paz e bem-estar e progresso. É um poder de decisão no momento presente, de escolher entre opções diversas de praticar os atos pelos quais satisfaz pretensões generalizadas ou individualizadas das pessoas e dos grupos. É autoridade e é serviço.

44

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Verbatim, 2014. p. 389. 45

MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 119.

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42

Entretanto, será adotada a expressão “separação de Poderes” neste

trabalho, uma vez que já consolidada na doutrina e adotada na Constituição

Federal.

A Constituição Federal de 1988 expressamente adotou a tripartição de

Poderes, como se verifica no artigo 2º:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Veja-se, assim, que a separação desses Poderes se destina a impedir

que um único indivíduo concentre todo o poder diretivo do Estado, o que

dificultaria, sobremaneira, a fiscalização e controle de suas ações e omissões.

Para Reinhold Zippelius:46

O que interessa em última análise é impedir uma concentração do poder nas mãos de uma e a mesma pessoa. Por este motivo, à separação organizativo-funcional de poderes junta-se à exigência de uma e a mesma pessoa ser proibida de ocupar, em união dinástica, cargos de diferentes sectores do poder. Apenas esta incompatibilidade garante uma verdadeira divisão dos poderes.

A separação de Poderes é, pois, um meio de proteger a liberdade, um

dos valores mais caros à democracia, contra os riscos aos quais pode ser

exposta pela reunião de todas as prerrogativas do poder público em proveito e

a serviço de um único órgão.47

Com a separação de Poderes, cada um deles exercerá funções típicas

e atípicas, bem como haverá um controle recíproco de um sobre os outros: o

controle denominado checks and balances da doutrina norteamericana.

Pretende-se criar, assim, um sistema moderado e controlado do exercício do

poder, com repartição e coordenação das competências estatais.

46

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 468. 47

RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades públicas. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 141.

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43

Nesse sentido, Thomas Fleiner-Gerster48 destaca a necessidade de

respeito recíproco entre os poderes para que se preserve e se garanta a

existência do Estado de Direito:

Mas estado de direito significa também a vinculação do poder executivo às leis elaboradas pelo legislador, bem como o controle de decisões administrativas através de um Judiciário independente. Assim como na ideia do Due Process, as concepções sobre as quais repousam o Estado de direito visam evitar a atribuição de um poder ilimitado ao executivo.

Ressalte-se que Reinhold Zippelius49 relaciona a separação de

Poderes diretamente com a proteção aos direitos fundamentais:

Neste ponto, o princípio da repartição e limitação das funções em nível interno do Estado aproxima-se da ideia dos direitos fundamentais: segundo o entendimento institucional dos direitos fundamentais, certas esferas de acção individual e social devem ser garantidas na sua existência.

Em outras palavras: a separação dos Poderes não é matéria meramente

burocrática, pois assegura a possibilidade de fiscalização de um Poder sobre

os demais, em especial quanto à observância dos direitos e garantias

fundamentais. Esse controle é viabilizado por meio de diversos instrumentos

previstos constitucionalmente, a exemplo das formas de controle de

constitucionalidade dos atos emanados de cada Poder.

3.5.3 Instituições de controle e fiscalização

Neste tópico, convém ressaltar que é necessária a existência de

instituições destinadas à fiscalização dos Poderes, que guardem

48

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Trad. Marlene Holzhausen. Revisão

técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 146. 49

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 459.

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44

independência e autonomia em suas ações. No Brasil, são exemplos dessas

instituições o Ministério Público e os Tribunais de Contas.

O Ministério Público é instituição que recebeu especial tratamento pela

Constituição Federal de 1988, em que se consolidou como instituição essencial

à justiça. Em seus vários ramos, o Ministério Público tem como atividade

primordial assegurar a efetiva observância da Constituição Federal e da

legislação infraconstitucional, seja por parte dos Poderes Públicos, seja por

parte de quaisquer pessoas, físicas ou jurídicas.

Dalmo de Abreu Dallari50 afirma a relevância do Ministério Público para

a efetiva observância dos direitos fundamentais:

A todas essas peculiaridades, que são relacionadas com a garantia dos direitos, é importante adicionar a ampliação das competências do Ministério Público. Na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 foram apresentadas propostas para que o Brasil adotasse o “ombudsman”, típico dos países escandinavos, ou o “defensor del pueblo”, como na Espanha. Houve muita discussão e no final foi decidido que fossem muito ampliadas as funções institucionais do Ministério Público, para que ele assumisse também, além das atribuições tradicionais, o papel de verdadeiro Advogado do Povo. Um dos argumentos a favor dessa proposta foi o fato de que o Ministério Público já tem tradição no Brasil e está presente em todas as partes do país. Por esse motivo, com a atribuição de novas funções e a ampliação de sua organização ele poderia atuar imediatamente, dando a proteção necessária aos direitos fundamentais dos brasileiros.

Os Tribunais de Contas são instituições que, de igual modo, tem por

atribuição fiscalizar o estrito cumprimento da Constituição Federal e da

legislação infraconstitucional, notadamente no emprego de bens e verbas de

natureza pública. Apesar de serem auxiliares do Poder Legislativo, detêm

autonomia para o exercício de suas atribuições.

50

DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado democrático e social de direito. In: ENCICLOPÉDIA

jurídica da PUC-SP. 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/70/edicao-1/estado-democratico-e-social-de-direito>. Acesso em: 3 jul. 2017.

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45

É certo que há diversas outras instituições e órgãos públicos que

possuem atribuição de fiscalização e controle da prestação de serviços

públicos e da gestão pública: as controladorias gerais, ouvidorias e

corregedorias, todas com previsão na Constituição Federal e em outros

diplomas legais de diversas esferas.

É possível constatar que a distribuição ampla das atribuições de

fiscalização e controle atende aos anseios democráticos, viabilizando maior

transparência no trato da coisa pública. Isso porque, à semelhança da

separação de Poderes, a distribuição do ônus de fiscalização e controle a mais

de uma instituição e, também, a diversos órgãos na estrutura organizacional

estatal, fortalece o sistema democrático por propiciar maior transparência na

tutela do interesse público e impedir que a concentração dessas atribuições em

um único ou em poucos entes conduza à impunidade dos gestores em

eventuais desvios de conduta.

Vale ressaltar que as instituições de controle e fiscalização devem ser

protegidas de eventuais interferências que prejudiquem seu funcionamento e

existência, a fim de que possam cumprir o papel constitucional que lhes foi

atribuído e assegurar o equilíbrio e a solidez do regime democrático. Para

tanto, é de suma importância a previsão das denominadas garantias

institucionais, assunto abordado em tópico específico deste trabalho.51

3.5.4 Participação e controle popular dos Poderes

Para que seja possível alcançar a realidade de um ambiente

democrático, não basta assegurar a oportunidade de eleição periódica de

representantes por meio do sufrágio universal – meio mais comumente

lembrado para exercício da soberania popular. É indispensável garantir a

existência de instrumentos efetivos de participação e controle popular na vida

política de forma contínua, consistente e permanente. Isso porque o voto não

51

Item 4.10 "As garantias institucionais".

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46

transfere a soberania popular ao representante eleito: o representado, que é o

povo, permanece como seu titular.

Nesse sentido, Paulo Bonavides52 expõe que:

O importante e essencial, absolutamente indispensável para definir hoje a identidade da democracia direta, é que o povo tenha ao seu imediato dispor, para o desempenho de uma desembaraçada e efetiva participação, os instrumentos de controle da mesma.

O exercício da soberania popular, portanto, deve ocorrer dia após dia,

viabilizando-se aos representados oportunidades de participar das decisões

atinentes aos rumos da sociedade que integram, bem como de controlar os

atos de seus representantes – já que os votos que os elegeram não podem

servir de justificativa para toda e qualquer conduta no exercício dos cargos

públicos.

Nesse diapasão, Reinhold Zippelius53 afirma que:

O cidadão que se tornou consciente de si próprio já não se contenta – pelo menos tipicamente – com tais diagnósticos e terapias. A chefia do Estado deve ser exposta à luz da opinião pública e submetida ao seu controlo. Todo o poder do Estado deve emanar do próprio povo, devendo criar-se, com vista à decisão dos eleitores, um fundamento que lhes permita julgar e ajustar contas. Isto pressupõe que a ação estatal se efectue – por princípio – sob o controlo da crítica pública.

A Constituição Federal e a legislação infraconstitucional brasileiras são

repletas de instrumentos democráticos de participação e controle popular.

Entre eles, merecem destaque as audiências públicas, a ação popular e a ação

civil pública.

52

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 354. 53

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 408.

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47

As audiências públicas são instrumento de oitiva e discussão de

assuntos de interesse público e têm sido utilizadas de forma cada vez mais

abrangente. Inicialmente, as audiências públicas eram mais empregadas em

procedimentos legislativos ou extrajudiciais. Hodiernamente, porém, são vários

os exemplos de utilização de audiências públicas também em meio a

processos judiciais, pois conferem um caráter democrático à decisão judicial.54

Ressalte-se que não basta a previsão do direito de participação na

condução dos interesses públicos. Deve ser franqueado o acesso a todas as

informações necessárias e relevantes para que a participação seja efetiva.

Nesse sentido, o artigo 5º, em seus incisos XXXIII e XXXIV, da Constituição

Federal,55 é expresso ao assegurar esse direito:

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

Assim é que há necessidade de assegurar a participação popular

efetiva nas decisões políticas, o que somente é possível por meio da

54

As audiências públicas no Poder Judiciário foram formalmente previstas pelas Leis Federais nº 9.868/99 e nº 9.882/99, que disciplinam processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental. Registre-se que a primeira audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal ocorreu no bojo da ADI 3510, que impugnava dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei Federal nº 11.105/2005), em 20 de abril de 2007. 55

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Brasília, DF, 1988.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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48

disposição de todas as informações pertinentes à formação do convencimento

dos indivíduos.

A ação popular é regida pela Lei Federal nº 4.717 de 29 de junho de

1965 e foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 que, no artigo 5º,

inciso LXXIII, prevê quem pode intentá-la e em quais hipóteses:

LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de

custas judiciais e do ônus da sucumbência; [...]56

Destaca-se que a legitimidade ativa desta ação é conferida apenas ao

cidadão, assim considerado o indivíduo que esteja no gozo de seus direitos

políticos. Exige-se, pois, essa especial condição, não se admitindo a

propositura da ação por toda e qualquer pessoa.

A ação civil pública tem sua previsão na Lei Federal nº 7.347 de 24 de

julho de 1985, que também foi recepcionada pela Constituição Federal. A

previsão constitucional se situa entre as funções institucionais do Ministério

Público:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

[...]

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; [...]57

56

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017. 57

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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49

Ressalte-se que a ação civil pública, atualmente, é importante

instrumento de participação popular em juízo, notadamente diante do amplo rol

de legitimados ativos previstos na referida Lei Federal.58 Além disso, se mostra

como relevante meio de solução de conflitos, tendo em vista a possibilidade de

que em apenas uma demanda sejam contemplados os interesses de toda a

coletividade, com tratamento uniforme, privilegiando a segurança jurídica.

Por fim, cabe salientar que as ações recém-indicadas têm em comum o

fato de serem instrumentos de tutela do interesse público em juízo, que não

excluem a participação popular extrajudicial e, ainda, viabilizam o efetivo

controle do Poder Judiciário sobre os atos dos demais Poderes, sobre seus

próprios atos e sobre os atos dos particulares, potencializando o regime

democrático.

58

"Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V – a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico." (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Brasília, DF, 1985. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7347orig.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017.)

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50

4. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Antes de explorar a temática dos direitos fundamentais, é necessário

iniciar a análise do que se entende por “direitos”, o que pode ser feito por meio

de diversas abordagens.

O vocábulo “direito” pode ser utilizado em diferentes situações, uma

vez que possui múltiplos significados. J. J. Gomes Canotilho59 o define em

termos pertinentes e harmônicos:

O direito compreende-se como um meio de ordenação racional e vinculativa de uma comunidade organizada e, para cumprir esta função ordenadora, o direito estabelece regras e medidas, prescreve formas e procedimentos e cria instituições. Articulando medidas ou regras materiais com formas e procedimentos, o direito é, simultaneamente, medida material e forma da vida colectiva. (grifos do autor)

Tercio Sampaio Ferraz Júnior60 acrescenta à análise do termo o

aspecto de poder e proteção nele contido:

O direito, assim, de um lado, protege-nos do poder arbitrário, exercido à margem de toda regulamentação, salva-nos da maioria caótica e do tirano ditatorial, dá a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os desfavorecidos. Por outro lado, é também um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação que, por sua, complexidade, é acessível apenas a uns poucos especialistas. (grifo do autor)

As definições supra explicitam de forma suficiente a noção de direito

adequada ao objetivo deste trabalho, na medida em que destacam o caráter de

ordenação da sociedade e de limitação estatal.

59

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 243. 60

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2013. p. 9-10.

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51

Prosseguindo-se na análise do tema direitos fundamentais, consoante

destacado por Vidal Serrano Nunes Júnior,61 é importante estudar as razões

pelas quais a certos direitos foi agregada a característica da fundamentalidade.

No período republicano, em que a preocupação com o ser humano

passou a obter destaque no período mais recente da história, os direitos

fundamentais abarcavam exclusivamente os chamados direitos individuais ou

civis, cujo objetivo era frear o abuso na atuação estatal, traduzindo-se em

direitos de resistência do indivíduo face a possíveis arbitrariedades do Poder

Público.

Posteriormente, modificações sociais importantes provocaram a busca

por direitos do indivíduo frente à coletividade em que inserido, exigindo-se a

atuação comissiva estatal por meio de atividades prestacionais, sem prejuízo

dos direitos já conquistados e do dever de abstenção para preservação dos

direitos individuais e civis.

A evolução histórica trouxe, ainda, outras preocupações – originadas

de novidades tecnológicas, do subdesenvolvimento econômico e de conflitos

internacionais – em que se percebeu a capacidade destrutiva do ser humano

em relação a seus pares. Despontou, portanto, a necessidade de tutela de

direitos de fraternidade ou de solidariedade para viabilizar a proteção da

humanidade em amplo espectro – e, até mesmo, proteger o ser humano do

próprio ser humano.

Nesses diferentes momentos, os direitos que atualmente são

denominados, de forma prevalente, de direitos fundamentais, foram designados

por outras expressões, tais como liberdades públicas (mais relacionada aos

direitos individuais) e direitos públicos subjetivos (cujo enfoque é a relação

entre o indivíduo e o Poder Público). Referidas expressões, no entanto,

tornaram-se insuficientes a partir do momento em que se passou a considerar

a necessidade de tutela também nas relações entre particulares.

A expressão direitos fundamentais, por sua vez, revela-se a mais

adequada para abranger todas as dimensões de tutela do indivíduo enquanto

61

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 12.

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52

ser humano, além de ter sido a nomenclatura adotada pela Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988. Por tais razões, a expressão "direitos

fundamentais" foi a acolhida neste trabalho.

4.1 Antecedentes históricos

Inicialmente, é necessário fazer um breve histórico sobre os direitos

humanos, para que seja possível conceituar direitos fundamentais.

Nesse sentido, é certo que a concepção de direitos humanos é

relativamente recente. Isso porque, na antiguidade, não se concebiam direitos

próprios do ser humano tal como atualmente. Como explanado em capítulo

antecedente, na pólis, o interesse no ser humano dependia de sua situação

perante a comunidade.

Com a queda do modelo da pólis, houve uma mudança de

entendimento a respeito do ser humano e de seus direitos. A partir da

desagregação das sociedades fundadas no citado modelo, verificou-se que o

ser humano estava sozinho, enfraquecido, pois não mais havia aquela proteção

grupal outrora existente.

Nesse momento, é importante destacar o legado dos estoicos,

notadamente de Marco Túlio Cícero, que é considerado um dos primeiros

filósofos a pensar sobre uma certa dignidade do ser humano. Seu pensamento

representa a visão de direito natural dos estoicos e, segundo esse autor, o ser

humano deveria ter direitos preservados por sua natureza humana,

independentemente de quaisquer outras condições e características.62

Ressalte-se que Cícero é apontado por muitos como o precursor das

ideias que, mais tarde, foram defendidas pelo cristianismo quanto aos direitos

do ser humano.

62

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 94-97.

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No fim da Idade Antiga, merece destaque o surgimento do cristianismo,

com o pensamento universalista de que todos são filhos de Deus e podem

receber as mesmas benesses.63

Um grande expoente dessa mesma época é Agostinho, cujo

pensamento é marcado pelo platonismo. Para Agostinho, o sujeito temente a

Deus deve se submeter aos poderes terrenos, uma vez que a autoridade a

certo indivíduo somente é conferida por desígnios divinos e, por isso, deve ser

respeitada. Da mesma forma, pela vontade de Deus, as pessoas têm certa

posição na sociedade: os mais altos devem mandar e os mais baixos,

obedecer.64

No início da Idade Média, o pensamento de Agostinho tornou-se

doutrina imediata e oficial da Igreja, até que surgiu o pensamento de Tomás de

Aquino (1225-1274), responsável pela grande síntese da teologia católica com

o aristotelismo. Tomás de Aquino sustenta que indivíduo é capaz de conhecer

a medida do justo, ao mesmo tempo em que não nega a importância da fé.65

Mais adiante, é marcante a importância das revoluções, que foram

propulsoras de pensamentos voltados ao ser humano – notadamente em razão

do período anterior, marcado por arbitrariedades em seu prejuízo,

especialmente durante o absolutismo.

Doutrinariamente, a expressão “direitos humanos” tem sido utilizada

para designar direitos constantes das declarações e tratados internacionais,

bem como para identificar direitos voltados à proteção da liberdade, da

igualdade e da fraternidade que não tenham sido incorporados pelo sistema

jurídico de um país. Vidal Serrano Nunes Júnior enfatiza que os direitos

humanos “[...] remetem a um esforço de criação de um sistema transnacional,

supraconstitucional, que tem por escopo policiar e fazer cumprir as normas

protetivas da dignidade humana em todos os Estados”.66

63

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 100. 64

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 104-108. 65

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 118. 66

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 23-24.

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54

4.2 Conceito de direitos fundamentais

Os direitos fundamentais constituem uma categoria jurídica

constitucionalmente erigida e destinada à proteção da dignidade humana em

todas as suas dimensões.67

Nas palavras de Vidal Serrano Nunes Júnior,68 podem ser

conceituados como:

[...] o sistema aberto de princípios e regras que, conferindo direitos subjetivos a seus destinatários, ora conformando a forma de ser e de atuar do Estado que os reconhece, tem por objetivo a proteção do ser humano em suas diversas dimensões, a saber: em sua liberdade (direitos e garantias individuais), em suas necessidades (direitos sociais, econômicos e culturais) e em relação à sua preservação (solidariedade).

Em face da aptidão dos direitos fundamentais para a proteção de

múltiplas dimensões do ser humano, evidencia-se a possibilidade de classificá-

los sob diferentes enfoques. Privilegiou-se, neste trabalho, o enfoque relativo

ao conteúdo dos direitos fundamentais, relacionado à proteção da dignidade

humana em todos os seus aspectos. Mais adiante, será exposta a classificação

desses direitos em gerações ou dimensões, oportunidade em que o tema será

aprofundado.

É importante destacar, notadamente para os fins deste estudo, que os

direitos fundamentais assumem dimensão institucional ao pontuarem a forma

de ser e atuar do Estado que os reconhece. Nas palavras de Luiz Alberto David

Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, questiona-se “[...] como cogitar de um

67

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional: revista e atualizada até a EC 76 de 28 de novembro de 2013. 18. ed. São Paulo: Verbatim, 2014.p. 153. 68

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias

de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 15.

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Estado Democrático Social de Direito, se liberdades públicas e direitos sociais

não são reconhecidos e protegidos”.69

Além disso, a dimensão institucional é ressaltada no atual Estado

Constitucional. A esse respeito, vale transcrever as lições de Jean Rivero e

Hugues Moutouh:70

Para evitar que os atores do jogo político possam manipular como quiserem o Estado de direito, ele foi posto num sistema de normas fora do alcance deles: as normas constitucionais. Essencialmente concebido como ordem jurídica hierarquizada, o Estado de direito, para ser consumado, pressupõe necessariamente a supremacia da Constituição, garantida, de um lado, pela submissão ao direito constitucional, do outro, pela sanção de toda violação por um juiz independente.

Dalmo de Abreu Dallari71 também se manifestou sobre esse aspecto

por meio das seguintes palavras:

[...] já se definiu um novo constitucionalismo, determinando ou disciplinando mudanças de grande importância na afirmação dos direitos fundamentais, em sua garantia, mas também em sua promoção. Afirmando expressamente a igualdade de direitos e proibindo discriminações, os textos constitucionais incluem a determinação de atuação positiva do Estado, que não deve limitar-se a garantir os direitos, impedindo que eles sejam violados, mas deve também valer-se de meios eficazes, apoiando de muitas formas as populações mais fracas e mais vulneráveis, inclusive com a destinação de recursos materiais, para que a atribuição de direitos implique a real possibilidade de exercê-los.

Dessas constatações exsurge a justificativa para o tratamento dessa

categoria de direitos em nível constitucional, a fim de resguardá-los da vontade

legislativa de ocasião.72

69

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional: revista e atualizada até a EC 76 de 28 de novembro de 2013. 18. ed. São Paulo: Verbatim, 2014, p. 153. 70

RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades públicas. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 144-145. 71

DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao século XXI. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 145.

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Ainda é possível conceituar os direitos fundamentais segundo o critério

formal e segundo o critério material. Sob o aspecto formal, direitos

fundamentais são aqueles previstos no Título II da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, em que são expressamente designados. Sob o

aspecto material, porém, não há relevância na localização constitucional das

normas que os preveem; será considerado direito fundamental todo aquele que

se destinar a tutelar a dignidade da pessoa humana em todos os seus

enfoques.

Nesse sentido, Vidal Serrano Nunes Júnior73 elucida que:

[...] analisando o conteúdo dos direitos fundamentais incorporados ao nosso texto constitucional, podemos delimitar que o critério material que deles deflui está consubstanciado em três valores caudatários da dignidade humana: a liberdade, a democracia política e a democracia econômica e social.

Vale dizer que a classificação dos direitos fundamentais sob o critério

material se relaciona com o princípio da universalidade, de acordo com o qual,

nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:74

[...] é possível afirmar que os direitos fundamentais, em regra, são também direitos humanos, no sentido de que não são apenas direitos dos cidadãos de determinado Estado, salvo quando a própria ordem constitucional estabeleça ou quando autorize expressamente o legislador para tanto.

72

A esse respeito: "Quanto à existência de direitos fundamentais criados por lei, portanto, não diretamente deduzidos da Constituição, temos por afastada tal possibilidade no ordenamento pátrio, inclusive em virtude da contradição insuperável que daí resulta, visto que direitos fundamentais são sempre direitos de matriz e hierarquia constitucional. Mas isso não significa que a lei não possa ter relevância nesse processo. Assim, se especialmente se considerarmos o caso dos direitos de personalidade e do próprio direito aos alimentos, verifica-se que, em verdade, não estamos em face de direitos fundados diretamente na lei, mas sim, diante de direitos de fundamento constitucional (pelo menos implícito) regulamentados pelo legislador". SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 121-122. 73

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias

de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 34. 74

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 123.

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57

Konrad Hesse75 destaca que a validade universal dos direitos

fundamentais não supõe uniformidade, uma vez que o conteúdo concreto e a

significação dependem de numerosos fatores extrajurídicos, especialmente da

idiossincrasia, da cultura e da história dos povos.

Nesse mesmo sentido, afirma Thomas Fleiner-Gerster:76

A interpretação e a concretização da liberdade e dos direitos fundamentais não se relacionam somente com as ideias culturais e filosóficas relativas ao desenvolvimento da personalidade, mas também com a ideia particular que um grupo ou que uma nação faz de si mesma. Uma nação em desenvolvimento, cujo sentimento de identidade ainda não se firmou, tolerará menos liberdades no interesse nacional. Ao contrário, uma nação internamente forte tolerará, por exemplo, os ataques individuais de certas pessoas na imprensa ou as objeções de consciência sem se sentir ameaçada.

Observa-se que, a partir das considerações do autor, é possível

estabelecer o liame com a característica de autogeneratividade77 dos direitos

fundamentais: quanto mais tais direitos forem fortalecidos, mais gerarão a

tutela de outros direitos de igual natureza. O autor ressalva, no entanto, a

existência de um núcleo elementar invariável dos direitos humanos:

No entanto, todas estas reflexões não significam que os direitos fundamentais se deixam relativizar completamente. Há, de fato, um núcleo elementar de humanidade que independe de toda situação filosófica, ideológica, cultural, histórica e econômica. A conservação da dignidade humana e o respeito da igualdade básica de todos os homens deveriam pois, independentemente das circunstâncias de lugar e de tempo, ser concretizadas sempre e em toda parte.78

75

HESSE, Konrad. Significado dos direitos fundamentais. In: ALMEIDA, Carlos dos Santos; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires (trad. e seleção de textos) Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 26. 76

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Trad. Marlene Holzhausen. Revisão

técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 139. 77

Assunto abordado no item 4.5 deste trabalho. 78

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Trad. Marlene Holzhausen. Revisão

técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 140.

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58

Konrad Hesse afirma, ainda, que “[...] os direitos fundamentais devem

criar e manter as condições elementares para assegurar uma vida em

liberdade e a dignidade humana”,79 bem como que devem ser observados tanto

sob a ótica do indivíduo quanto em seu convívio social.

O autor prossegue na análise dos direitos fundamentais enquanto

direitos individuais de defesa e de acesso ou participação destacando que a

liberdade de expressão é especialmente relevante para assegurar os demais

direitos fundamentais nesse contexto, uma vez que somente o debate

permanente de argumentos permite a luta entre opiniões que constitui o

elemento vital de um ordenamento estatal livre e democrático.80

Os direitos fundamentais são observados, ainda, sob o enfoque de

limitações negativas às competências legislativas, administrativas e judiciais, o

que o autor denomina de "preceitos negativos de competência". Nessa

condição, "excluem da competência estatal o âmbito que protegem, e, nessa

medida, vedam sua intervenção”81. Porém, há mais fatores além desses. Os

direitos fundamentais passam a exigir do Estado uma atuação positiva, para

assegurar sua efetividade e realização, que decorre da transformação do

Estado moderno em Estado social.82

79

HESSE, Konrad. Significado dos direitos fundamentais. In: ALMEIDA, Carlos dos Santos;

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires (trad. e seleção de textos) Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 33. 80

HESSE, Konrad. Significado dos direitos fundamentais. In: ALMEIDA, Carlos dos Santos; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires (trad. e seleção de textos) Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 35. 81

HESSE, Konrad. Significado dos direitos fundamentais. In: ALMEIDA, Carlos dos Santos; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires (trad. e seleção de textos) Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 36. 82

"Uma obrigação positiva do Estado como a que se acaba de referir constitui um elemento essencial para a evolução progressiva e o desdobramento dos direitos fundamentais. Isso foi manifestado nas mudanças históricas e na conseguinte transformação das condições em que atualmente, e num futuro previsível, se há de desenvolver a liberdade humana (cf. supra sobre isso; cap. I, tit. 1, III, 2, números marginais 26 e ss.): a metamorfose do Estado moderno em Estado social, e o fato de que a liberdade humana resulte ameaçada não só pelo Estado mas por poderes não estatais que atualmente podem ser ainda mais ameaçadores que o próprio Estado". HESSE, Konrad. Significado dos direitos fundamentais. In: ALMEIDA, Carlos dos Santos; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires (trad. e seleção de textos). Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 40-41.

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59

4.3 Diferença entre Direitos Humanos, Direitos Fundamentais e Direitos

Humanitários

Equívoco muito comum na seara jurídica se refere à utilização dos

termos direitos humanos e direitos fundamentais como se sinônimos fossem,

confusão acentuada pela existência da expressão “direitos humanitários”.

Em breve explanação, direitos humanos são os direitos conferidos a

um indivíduo simplesmente por ser uma pessoa. São direitos cujas

características principais são a atemporalidade (aplicáveis a qualquer tempo) e

a universalidade (em todo lugar).

Nas palavras de Cláudio De Cicco e Alvaro de Azevedo Gonzaga:83

Os direitos humanos são os direitos derivados da natureza humana, independente de idade, sexo, religião, ideias políticas ou filosóficas, país, etnia ou condição social. Decorrem da dignidade da pessoa humana e tem abrangência universal e supranacional, de modo que todas as pessoas e Estados devem respeitá-los. Sua compreensão é acessível à inteligência humana, isto é, são racionais, independem de

credo, cultura ou nível da educação.

Quando esses direitos humanos são internalizados em um

ordenamento jurídico, em regra por meio de sua alocação em uma constituição,

passam a ser chamados de direitos fundamentais. É possível dizer, portanto,

que os direitos fundamentais são os direitos humanos constitucionalizados.

Para J. J. Gomes Canotilho:84

Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.

83

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 152. 84

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 393.

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Os direitos humanitários, por sua vez, são os direitos aplicáveis à

guerra, cujo surgimento precedeu, inclusive, a existência dos denominados

direitos humanos. Dessa maneira, em caso de conflito armado, deverão ser

invocados os “direitos humanitários” para se evitar que uma escola ou um

hospital, por exemplo, sejam bombardeados.

Com essa breve explicação, cabe consignar que não se desconhece

que, para parcela da doutrina, as expressões “direitos humanos” e “direitos

fundamentais” devem ser tomadas como sinônimos, diante do conteúdo

tutelado. Isso porque, de uma maneira geral, afirma-se que, em seu

conteúdo,85 direitos humanos e direitos fundamentais possuem o mesmo

objeto, somente se diferenciando em relação ao âmbito de incidência:

enquanto os direitos humanos seriam previstos em tratados86 e outros

instrumentos e convenções internacionais, os direitos fundamentais seriam

aqueles previstos na Carta Magna de um país.87

Os doutrinadores que sustentam a similitude entre direitos humanos e

direitos fundamentais chegam a afirmar que as expressões podem ser tomadas

como sinônimas ou, até mesmo, fundidas em uma só, a exemplo da expressão

“direito humano fundamental” ou “direito fundamental humano”.

Confira-se, nesse sentido, a posição de Sérgio Resende de Barros:88

85

Pelo conteúdo, tanto os direitos humanos quanto os direitos fundamentais objetivam concretizar a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, CF). Tal dignidade, em uma concepção kantiana, pode ser definida como o poder de autodeterminação, liberdade e respeito ao ser humano como um fim em si mesmo, e não como meio ou exemplo para a satisfação de necessidades alheias. 86

Tratados são acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vinculantes, constituindo fonte do Direito Internacional. (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 43). 87

"Os direitos fundamentais são o conjunto de direitos e liberdades do ser humano institucionalmente reconhecidos e positivados no âmbito do direito constitucional de determinado Estado. Por outro lado, os direitos humanos fazem parte do direito internacional, uma vez que se estendem a todos os seres humanos, independentemente de sua vinculação a determinada ordem constitucional”. DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. pp. 151-152. 88

BARROS, Sérgio Resende de. A difusão dos direitos humanos fundamentais. In: KIM, Richard Pae; BARROS, Sérgio Resende de; KOSAKA, Fausto Kozo Matsumoto (coord.). Direitos fundamentais coletivos e difusos: questões sobre a fundamentalidade. São Paulo: Verbatim, 2012. p. 38.

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Mas não há razão por que separar direitos fundamentais e direitos humanos, colocando aqueles numa situação firme e definida e estes em situação imprecisa e insegura. Essa colocação – separando e até obstruindo a humanidade da fundamentalidade e a fundamentalidade da humanidade – é heresia ou, no mínimo, hipostenia do direito. Não há direitos humanos versus direitos fundamentais. Ao invés de diversidade, há integração: todos os direitos humanos são fundamentais e todos os direitos fundamentais são humanos. Seria um absurdo, se assim não o fosse.

Veja-se que a posição sustentada por Sérgio Resende de Barros,

portanto, reforça a premissa de que os direitos fundamentais e os direitos

humanos tutelam o mesmo conteúdo, que é o da dignidade da pessoa humana.

Ocorre que nem todos os doutrinadores concordam com esse

entendimento. Ingo Wolfgang Sarlet,89 por exemplo, sustenta que:

[...] nem todos os direitos fundamentais são direitos humanos embora todos os direitos humanos sejam fundamentais, ou, pelo menos, deveriam ser objeto de previsão e proteção pelas ordens constitucionais internas dos Estados.

É possível afirmar que a própria Constituição da República Federativa

do Brasil90, de 5 de outubro de 1988, acolheu o entendimento de que os

direitos humanos seriam previstos em tratados e convenções internacionais

(art. 4º, inciso II), ao passo que os direitos fundamentais seriam os direitos

humanos constitucionalizados (Título II, artigo 5º, § 1º).

Nesse sentido, Valério de Oliveira Mazzuoli91 sustenta que:

89

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 100. 90

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017. 91

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 672.

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[...] direitos fundamentais é expressão mais afeta à proteção

constitucional dos direitos dos cidadãos. Ligam-se, assim, aos aspectos ou matizes constitucionais (internos) de proteção, no sentido de já se encontrarem positivados nas Constituições

contemporâneas. [...] direitos humanos são, por sua vez,

direitos inscritos (positivados) em tratados ou em costumes internacionais. Ou seja, são aqueles direitos que já ascenderam ao patamar do Direito Internacional Público.

Para os fins deste trabalho, as expressões direitos humanos, direitos

fundamentais e direitos humanitários serão consideradas conforme a doutrina

que prefere separar as suas definições, tal como exposto no início do capítulo,

mas com o entendimento de que os dois primeiros têm em comum o objeto de

proteção, qual seja, a dignidade humana em todas as suas dimensões.

4.4 Dimensões ou gerações de direitos fundamentais

No estudo do tema direitos fundamentais, particularmente útil é a

definição da existência de "três gerações de direitos humanos",92 notadamente

para fins didáticos. Conforme já explicitado, parte-se do pressuposto de que o

conteúdo dos direitos fundamentais coincide com o dos direitos humanos,

razão pela qual a presente classificação se torna relevante para o estudo do

tema principal deste trabalho.

Frise-se que, para os objetivos deste trabalho, optou-se por analisar a

temática dos direitos fundamentais para o fim de restringir a pesquisa aos

ditames constitucionais brasileiros. Vale ressaltar, porém, que a menção aos

direitos humanos, de forma ampla, é feita tomando-se por referência o

conteúdo dos direitos, e não propriamente sob o critério formal, de sua

incorporação ou não ao direito interno (a partir do que são denominados

direitos fundamentais).

92

É certo que há autores que sustentam a existência de outras gerações ou dimensões de direitos, a exemplo de Paulo Bonavides.

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Os direitos fundamentais, assim como os direitos humanos,

consolidaram-se a partir de um processo evolutivo-cumulativo dos níveis de

proteção de esferas da dignidade humana, o que demonstra a importância da

classificação para compreensão de sua essência.93

Sob a inspiração do ideário da Revolução Francesa, essas três

gerações de direitos são as seguintes: a primeira geração se refere aos direitos

civis e políticos, fundados na liberdade (liberté); a segunda geração, aos

direitos econômicos, sociais e culturais, com base na igualdade (égalité); e, por

fim, a terceira geração se refere aos direitos de solidariedade, em especial ao

direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente sadio, coroando a tríade

com a fraternidade (fraternité).

Cumpre salientar, contudo, que a divisão dos direitos humanos em

categorias distintas é, na verdade, apenas didática, sendo certo que uma

geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Assim, afasta-

se a ideia da sucessão "geracional" de direitos, na medida em que se acolhe a

ideia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos

consagrados, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica

de interação.

Dessa constatação também se extrai a justificativa para a adoção do

termo “dimensões”, e não gerações de direitos, para afastar a eventual

associação a sucessão entre essas categorias e reforçar a ideia de

complementação e coexistência.

Nesse sentido, cabe refletir, ainda que brevemente, a respeito dos

principais diferenciais de cada dimensão:

a) Direitos fundamentais de primeira dimensão – os direitos humanos

foram concebidos, inicialmente, para proporcionar proteção ao indivíduo em

face do Estado, ante o histórico de abusos, em especial, do período

absolutista. Daí exsurgem os direitos classificados na primeira dimensão. Os

direitos civis ou individuais e políticos foram objeto da primeira proteção do ser

93

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional: revista e atualizada até a EC 76 de 28 de novembro de 2013. 18. ed. São Paulo: Verbatim, 2014. p. 157-158.

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humano alçada em um nível constitucional, uma vez que surgiram com a ideia

de Estado de Direito, submisso a uma constituição. Nesse momento,

concebeu-se um Estado com divisão de funções entre órgãos distintos,

evitando-se a concentração de poderes e o arbítrio de uma só pessoa ou de

um grupo específico. Esses direitos representam a necessidade de

afastamento do Estado das relações individuais e sociais e de que suas ações

sejam permeadas pelo papel de guardião das liberdades, sem interferir nesses

relacionamentos. Por isso também são chamados de “liberdades públicas

negativas” ou “direitos negativos”, ao exigirem a abstenção estatal.

Vale dizer que não basta a mera omissão estatal para assegurar a

existência efetiva dos direitos de liberdade: se assim fosse, os governantes

relapsos seriam os mais virtuosos. É necessário que a omissão estatal seja

destinada e capaz de assegurar a fruição real desses direitos, que signifique a

ausência de intervenção e opressão sobre a conduta dos indivíduos.

Além disso, é certo que, em diversas situações, a omissão estatal não

é suficiente para assegurar o exercício dos direitos de liberdade. Nesse

sentido, para que o cidadão possa exercer seus direitos políticos, notadamente

o de votar, é indispensável que o estado garanta a estrutura necessária para a

colheita dos votos de todos os eleitores, que zele para que tais eleitores não

sejam coagidos a votar de determinada maneira, entre outras medidas

comissivas aptas a tutelar o exercício desse direito.

É por esse motivo que não é inteiramente correto afirmar que os

direitos de liberdade são os que exigem apenas uma conduta estatal omissiva.

Do mesmo modo, também não é possível afirmar que os direitos de

liberdade não geram custo financeiro ao Estado, porque exigiriam apenas

abstenções. Utilizando o mesmo exemplo, é certo que o Estado deve arcar

com altos custos para assegurar o sufrágio universal, diante da estrutura

necessária para tanto.

b) Direitos fundamentais de segunda dimensão – reconheceu-se que a

autonomia ilimitada da vontade dos indivíduos impunha a constatação de que o

Estado não deveria apenas se abster de invadir a esfera de liberdade do

indivíduo, mas também deveria agir para assegurar o exercício de direitos por

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ele. Eis a essência dos direitos classificados na segunda dimensão, que são os

direitos sociais, econômicos e os culturais, cujo enfoque é a preocupação com

as necessidades do ser humano em sua comunidade e traduzem a esperança

de uma participação ativa do Estado para superação das carências individuais

e sociais do ser humano. A atuação estatal positiva passa a ser reclamada a

fim de dotar o ser humano de condições materiais mínimas para o exercício de

uma vida digna para que se estabeleça a efetiva igualdade entre todos os

seres humanos. Ressalte-se, por oportuno, que a igualdade não deve ser

apenas analisada em seu aspecto formal (perante a lei em abstrato), mas

também em seu aspecto material, para a efetiva prestação material estatal, em

casos concretos, com o objetivo de eliminar desigualdades.

c) Direitos fundamentais de terceira dimensão – diagnosticou-se que o

indivíduo deveria ser visto enquanto espécie global, sem que eventuais

fronteiras territoriais, culturais, religiosas, entre outras, pudessem embasar

violação à sua condição de ser humano. Tem-se, aqui, o delineado dos direitos

humanos de terceira dimensão: o conjunto de direitos que enfoca o ser humano

em conjunção com o próximo, sem barreiras físicas ou econômicas, tais como

o direito à paz mundial; ao desenvolvimento econômico dos países; à

preservação do meio ambiente e do patrimônio comum da humanidade; à

comunicação. Nessa dimensão, o ser humano é considerado um membro da

humanidade, onde quer que esteja. A essência da proteção, portanto, é o

caráter de solidariedade e de fraternidade que deve existir em todas as

relações humanas.

As obrigações impostas ao Estado a partir dessa dimensão acarretam

limitações ao exercício do poder pelo governante inclusive frente aos demais

países, pois já não lhe é lícito governar por arbítrio injustificado. A soberania

estatal passa por uma transformação significativa, ao se reconhecer que os

governantes devem se nortear pelos direitos reconhecidos como essenciais à

humanidade.

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66

4.5 Características dos direitos fundamentais

Como sobredito, os direitos fundamentais constituem uma categoria

jurídica, o que permite analisar características intrínsecas comuns a todos eles

e facilitar o seu reconhecimento no ordenamento jurídico. São elas:94

a) Historicidade – os direitos fundamentais surgiram paulatinamente,

ao longo da história, sem que haja consenso a respeito de qual teria sido o

primeiro momento, no aspecto temporal, em que tenham se verificado. Assim,

é certo que há marcos históricos importantes à consolidação desses direitos, a

exemplo do cristianismo e da época da elaboração das declarações de

direitos95, mas, por outro lado, não é possível atribuir a apenas um ou alguns

deles a responsabilidade pelo advento desta categoria jurídica.

b) Autogeneratividade – as constituições internalizam as disposições

de direitos fundamentais em determinada ordem jurídica, mas, por outro turno,

os direitos fundamentais também são "o alicerce de legitimação da própria

ordem constitucional", nas palavras de Vidal Serrano Nunes Júnior.96 Há, pois,

um ciclo autogenerativo, impulsionado pela existência dos próprios direitos.

c) Universalidade – a razão da existência dos direitos fundamentais

é a proteção do ser humano enquanto gênero, sem restrição a características

de grupo, categoria, classe ou origem de cada indivíduo. Tutela-se a condição

humana por si só, independentemente de quaisquer especificidades de cada

ser.

d) Limitabilidade – os direitos fundamentais, apesar de sua

incontestável relevância, não são absolutos, mas limitáveis, ante a necessidade

de coexistência de todos eles. Há possibilidade de colisão de direitos em casos

94

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 35-42. 95

Nesse sentido: "O alvorecer dos direitos fundamentais teve seu verdadeiro alicerce, no entanto, nas chamadas declarações de direitos humanos, como a Magna Carta Libertatum, o Bill of Rights, a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França. Esta, sem dúvida, a de maior significado". NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 36. 96

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias

de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 38.

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concretos, situação que exigirá a conciliação dos valores em confronto, por

meio da cedência recíproca, a fim de que nenhum seja completamente

aniquilado, ou da máxima efetividade, para que as disposições de direitos

fundamentais prevaleçam sobre as normas constitucionais sobre direitos de

natureza diversa.97

e) Irrenunciabilidade – tendo em vista que os direitos fundamentais

se referem, intrinsecamente, à condição humana, não há possibilidade de sua

renúncia, que poderia significar, em verdade, a descaracterização de sua

fundamentalidade e a renúncia à própria natureza humana.

f) Possibilidade de concorrência – os direitos fundamentais são

acumuláveis pelo indivíduo e fruíveis simultaneamente. Em outras palavras:

uma mesma situação pode ensejar a proteção simultânea de duas ou mais

normas constitucionais que abriguem direitos fundamentais, sem que uma

prevaleça sobre a outra e, ainda, sem que o indivíduo seja compelido a

escolher uma das proteções em detrimento das demais.

Estas características permitem identificar, portanto, um regime jurídico

próprio dos direitos fundamentais, ressaltando-se que J. J. Gomes Canotilho98

afirma que o regime de direitos, liberdades e garantias pode ser denominado

"regime de direitos qualificados ou de garantias reforçadas".

Da exposição desenvolvida até aqui, vislumbra-se que não há

hierarquia entre os direitos fundamentais. Tais direitos devem coexistir e

mutuamente se fortalecer sem que haja a prévia determinação de prevalência

de um sobre os demais.

Além disso, entre as características dos direitos fundamentais, é

pertinente destacar que constituem uma unidade indivisível, pois são

destinados à proteção integral do indivíduo, em diferentes aspectos, de forma

97

Nesse sentido: "Deve-se, nesse sentido, em harmonia com o entendimento citado, alvitrar duas possibilidades interpretativas: uma de cedência recíproca, quando nos depararmos com a colisão entre os dois direitos fundamentais; e outra de maximização dos direitos fundamentais, quando detectada uma colisão destes com o direito constitucional de natureza distinta". NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 41.

98

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 416.

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indissociável. A partir daí, é certo que se revela esvaziado o direito à liberdade

quando não assegurado o direito à igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-

se o direito à igualdade quando não é assegurada a liberdade.99

4.6 O caráter principiológico dos direitos fundamentais

No presente tópico será estudado o fato de os direitos fundamentais

possuírem a natureza de princípios constitucionais, ou seja, será estudado o

significado de se dizer que os direitos fundamentais podem ser considerados

princípios jurídicos.

Não se nega que as disposições relativas aos direitos fundamentais

podem possuir natureza principiológica. Entretanto, por vezes, não há a devida

reflexão sobre quais efeitos isso acarreta.

Princípio jurídico é expressão que sofre mutação em seu significado ao

longo do tempo, sendo classificado em três fases jurídicas distintas, conforme

lição de Ricardo Marcondes Martins.100

Na primeira fase, princípio jurídico significava o início, o começo, a

base de estudo de determinada matéria. Ou seja, sua noção se aproximava da

etimologia da palavra em si. Em uma segunda fase, princípio jurídico

significaria um vetor de orientação da hermenêutica jurídica, a exemplo do

constante na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,101 que, em seu

artigo 4º, estabelece que “[...] quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de

acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” Tal

preceito legal utiliza o princípio como um vetor de interpretação em casos de

omissão da lei, o que significa que, pelo menos aparentemente, o princípio

jurídico seria inferior às disposições legais entendidas como regras.

99

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 1. ed. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 27. 100

MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 15. 101

BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de

Introdução às normas do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro, 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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Já hodiernamente, na terceira fase, princípio jurídico é entendido como

espécie do gênero norma jurídica, ao lado das regras jurídicas. Portanto, hoje o

princípio jurídico é norma jurídica, a enaltecer o seu caráter cogente,

compulsório e de observância obrigatória por todos.

O princípio jurídico, ao contrário das regras, é entendido como um

mandamento de otimização, devendo, na lição do jurista alemão Robert Alexy,

ser aplicado na maior medida possível. Nesse sentido:102

[...] princípios são normas que ordenam que algo seja realizado

na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. (grifos no original)

Além disso, um conflito entre princípios se resolve pelo método da

ponderação, ou seja, da proporcionalidade, com a análise de suas subáreas

adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Já as regras são consideradas mandados de determinação e

consistem em normas que são sempre satisfeitas ou não são satisfeitas, o que

se afirma também com apoio nas lições de Robert Alexy.103 As regras são

aplicadas a cada caso, portanto, por meio da subsunção, verificando-se, assim,

se o fato se adequa a elas ou não. Eventual conflito entre regras se resolve

pelo método da exclusão de uma em favor de outra regra que melhor se ajuste

ao fato indicado.

Vale mencionar, por oportuno, que referido autor sustenta que as

disposições de direitos fundamentais podem, ainda, apresentar um caráter

102

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2011. p. 90. 103

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 91.

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duplo, se forem construídas de forma a que os níveis de regra e princípios

sejam nela reunidos.104

Passada essa breve introdução, conclui-se que a afirmação de que um

direito fundamental tem a natureza de princípio jurídico implica as seguintes

consequências:

a) eventuais conflitos entre direitos fundamentais deverão ser

solucionados em casos concretos, pelo método da ponderação, mediante a

análise de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, nas

lições de Robert Alexy acima destacadas;

b) admitindo-se que princípios são espécies de normas jurídicas, as

disposições de direitos fundamentais tem caráter cogente, compulsória de

observância geral a todos;

c) as disposições de direitos fundamentais devem ser aplicadas na

maior medida possível, sob os aspectos fático e jurídico (relembrando-se a

característica da limitabilidade, que implica na adoção dos critérios da cedência

recíproca e da máxima efetividade para solução de conflitos, como acima

destacado), diante da constatação de que os princípios são mandados de

otimização.

4.7 A função contramajoritária dos direitos fundamentais

Relevante se faz discorrer a respeito da função contramajoritária dos

direitos fundamentais, tema de suma importância frente ao contexto

democrático, objeto central da presente dissertação.

É evidente que existe uma conexão inafastável entre o princípio

democrático e o princípio majoritário, uma vez que se estimula a participação

popular na tomada de decisões por meio de debates e contraposição de ideias

para a formação da opinião pública, aferível pela análise do consenso da

104

Nesse sentido: "Uma tal vinculação de ambos os níveis surge quando na formulação da norma constitucional é incluída uma cláusula restritiva com a estrutura de princípios, que, por isso, está sujeita a sopesamentos". ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 141.

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maioria. No entanto, tal constatação não implica em concluir que há o domínio

da maioria sobre a minoria.

Nesse sentido, é possível afirmar que uma das funções dos direitos

fundamentais é servir justamente de freio aos anseios da denominada “maioria

democrática”, por várias razões.

Uma visão superficial da democracia é a de que se trata apenas de um

regime cujas deliberações políticas são lastreadas somente na vontade da

maioria. No entanto, afirmar que a maioria pode decidir livremente os destinos

da sociedade contraria um preceito básico democrático, que é o de

preservação dos direitos das minorias.

Nesse aspecto, Reinhold Zippelius afirma que o princípio majoritário é

limitado pela observância à dignidade humana :105

Numa palavra, o princípio maioritário encontra-se, em virtude das suas próprias premissas, limitado por princípio pelo imperativo de respeitar e manter a dignidade da pessoa humana e, em particular, a capacidade de participação, permanente e em igualdade de direitos, de qualquer um. Isto compreende a ideia de que as minorias actuais têm de ter a oportunidade de se converterem no futuro em maiorias. Uma decisão maioritária que abolisse esta possibilidade para o futuro ultrapassaria os limites imanentes que se encontram no princípio da maioria correctamente entendido.

Do mesmo modo, Thomas Fleiner-Gerster106 afirma que os direitos

fundamentais constituem uma limitação à maioria democrática:

Enquanto no último século os direitos da maioria eram considerados ilimitados e o legislador, quer dizer, o Parlamento, não conhecia nenhum limite, impõe-se atualmente cada vez mais a ideia segundo a qual os direitos fundamentais constituem limites que devem ser respeitados mesmo pela maioria democrática. Os direitos fundamentais não devem somente proteger o indivíduo em face da onipotência do

105

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de

Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 400. 106

FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. Trad. Marlene Holzhausen. Revisão técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 115-116.

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Estado, mas também oferecer proteção à minoria em face da maioria.

J. J. Gomes Canotilho107 se manifesta no mesmo sentido dos autores

acima citados e ainda ressalta que a limitação aos anseios da maioria pode ser

observada, até mesmo, nas exigências de obtenção de maioria qualificada na

votação de determinados assuntos:

A maioria não pode dispor de toda a “legalidade”, ou seja, não lhe está facultado, pelo simples facto de ser maioria, tornar disponível o que é indisponível, como acontece, por ex., com os direitos, liberdades e garantias e, em geral, com toda a disciplina constitucionalmente fixada (o princípio da constitucionalidade sobrepõe-se ao princípio maioritário). Por vezes, a importância do assunto exige maiorias qualificadas não só para garantir a bondade intrínseca da decisão mas também para a protecção das minorias. (grifo do autor)

Se fosse adotado o entendimento de que a maioria tem o direito de

modificar a constituição quando e como bem entender, a discussão política

seria reduzida a um argumento simplista: o que é supostamente bom para o

maior número de pessoas em um determinado momento deveria prevalecer.

Todavia, a história demonstrou que nem sempre a maioria trilha caminhos que

visam ao bem comum. Para citar apenas um exemplo, basta mencionar que o

governo alemão nazista contava com amplo apoio popular. Assim, não haveria

garantia de que a maioria tomaria boas decisões para a coletividade. Nesse

sentido, Miguel Reale108 esclarece que “[...] a opinião da maioria não traduz, de

forma alguma, a certeza ou a verdade no mundo das estimativas.”

Assim é que as minorias devem ser ouvidas e respeitadas na tomada

de decisões políticas, assegurando-lhes igualdade de condições de

participação nesse processo.

107

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 329. 108

REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 197.

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Ademais, os direitos fundamentais são justamente contrapesos à

vontade da maioria, por darem primazia ao indivíduo, considerado

singularmente como um fim em si mesmo, com capacidade de

autodeterminação, e não apenas como mais um membro do corpo social. Não

se desconhece que o ser humano é um “animal político”, como já sustentado

por Aristóteles, cuja expressão foi traduzida para o latim por Tomás de Aquino

como sendo “animal social”.109 Entretanto, não se ignora que, antes de

pertencer à esfera social, o ser humano possui direitos fundamentais pela sua

simples condição de pessoa. Esse é o mote dos direitos humanos e dos

direitos fundamentais.

Por meio da função contramajoritária, os direitos fundamentais servem

justamente como um “escudo protetor” em face da vontade da dita maioria, isto

é, existem justamente para contê-la. E essa contenção ocorre quando a Carta

Magna estabelece meios para se evitar a imposição da “vontade majoritária” a

qualquer custo.

Assim, os direitos fundamentais têm como característica o fato de

conformarem a atuação do legislador ordinário, em um fenômeno denominado

de “paradoxo da democracia” que, nas palavras de Robert Alexy,110 refere-se

“[...] ao antigo problema da abolição democrática da democracia”. Vale dizer: a

própria constituição democrática conforma a atuação democrática do legislador

ordinário. Isso porque não se pode deixar os direitos fundamentais a cargo de

uma “maioria legislativa de ocasião”.

Ainda nas palavras do jurista alemão,111 “[...] como ninguém conhece o

legislador futuro e também as circunstâncias sob as quais ele agirá, ninguém

pode ter certeza de que ele não utilizará [...] aquelas liberdades e

competências de forma desfavorável aos indivíduos”. Esse é, inclusive, um dos

argumentos favoráveis à adoção da teoria da aplicabilidade imediata dos

109

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 13. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016. p. 33. 110

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 447. 111

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 449.

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direitos fundamentais no Brasil:112 não relegar ao futuro legislador ordinário a

incumbência de ser um intermediário entre um direito constitucional e a sua

aplicação no caso concreto.

É cediço que os “direitos fundamentais são „destinados, em primeira

instância, a proteger a esfera de liberdade do indivíduo contra intervenções dos

Poderes Públicos; eles são direitos de defesa do cidadão contra o Estado‟”.113

Segundo o jurista alemão Robert Alexy,114 há três formas de se

contemplar a relação entre direitos fundamentais e democracia: a ingênua, a

idealista e a realista. Pela concepção ingênua, jamais haveria conflito entre

democracia e direitos fundamentais, afinal, seria impossível se pensar em

conflito entre “duas coisas boas”. Pela concepção idealista, o legislador

integrante da chamada maioria legislativa de ocasião não teria qualquer

interesse em defender posições contrárias aos direitos fundamentais, ainda

que, em tese, um conflito entre direitos fundamentais e democracia seja

possível. Por fim, pela concepção realista, aceita pelo autor, os direitos

fundamentais podem ser democráticos ou antidemocráticos. São democráticos

ao assegurar o desenvolvimento da sociedade mediante a garantia de direitos

que auxiliam no processo democrático, a exemplo da igualdade e da liberdade.

Porém, podem ser antidemocráticos ao negar as decisões tomadas pela

maioria legislativa eleita.

4.8 Eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais

Conforme já afirmado neste trabalho, os direitos fundamentais surgiram

para obstar o abuso do poder estatal. Nasceram, assim, para serem freios à

utilização abusiva do poder por parte do Estado.

112

Art. 5º, § 1º, da Constituição Federal: "§1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". (BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017. 113

ALEXY, Robert. Teoria dos d ireitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 433. 114

ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales en el Estado Constitucional Democrático. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. p. 37-38.

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Na relação entre Estado e indivíduo, em que o primeiro se situa em

posição superior ao segundo, no sentido de que pode determinar o

comportamento deste, é comum que se diga que os direitos fundamentais,

precipuamente, surgiram para tutelar essa relação vertical entre o Poder

Público e o ser humano.

É de se ressaltar que a eficácia vertical dos direitos fundamentais

enseja a aplicabilidade direta e imediata destes, isto é, prescinde da existência

de normas intermediárias para a sua efetivação. Dessa maneira, para se

invocar um direito fundamental em uma relação entre indivíduo e Estado, basta

colhê-lo diretamente da Carta Magna, sem necessidade da presença de

intermediários, tais como lei infraconstitucional ou decisão judicial.

No entanto, os direitos fundamentais também podem ser aplicados às

relações entre particulares. O exemplo clássico ocorre quando uma pessoa é

proibida de sair de um hospital, do qual obteve alta médica, simplesmente por

não ter pago a conta do nosocômio. No mencionado exemplo, a entidade

possui outros meios para cobrança do débito, sem a necessidade de

constranger fisicamente o indivíduo a pagá-la. Diz-se, nesse caso, que há

aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, ou eficácia horizontal

dos direitos fundamentais.

O próprio Supremo Tribunal Federal já admitiu a existência da eficácia

horizontal dos direitos fundamentais, em acórdão assim ementado:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não

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conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821).115

115

BRASIL. Constituição (1988). Ementa: sociedade civil sem fins lucrativos. Brasília, DF, 2005.

Disponível em:

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Convém ressaltar a existência de ao menos três correntes doutrinárias

principais sobre o tema:

1- A corrente que nega a possibilidade de aplicação dos princípios

constitucionais às relações privadas, porque historicamente os

direitos fundamentais surgiram para proteger o indivíduo do abuso

de poder estatal.

2- A corrente que admite a referida aplicação, desde que seja por

intermédio de lei infraconstitucional, objetivando garantir certa

previsibilidade.

3- A corrente que permite a aplicação dos princípios constitucionais

diretamente às relações privadas.

Além das eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais,

começam a surgir, no campo doutrinário, teorias que sustentam novas

espécies de eficácia, entre elas, a eficácia diagonal dos direitos fundamentais.

Tal ocorre quando os direitos fundamentais, apesar de serem aplicados

em uma relação jurídica privada (o que ensejaria, em princípio, o

reconhecimento de sua eficácia horizontal), o são entre particulares que não

estão, propriamente, em plena posição de igualdade, a exemplo do que ocorre

na relação entre empregador e empregado ou na relação consumerista entre o

fornecedor de um produto ou serviço e o consumidor. Nessas hipóteses, é de

se notar que o poderio econômico e jurídico do empregador e do fornecedor do

produto ou serviço é muito maior do que o dos demais indivíduos, ensejando

uma aplicação diagonal dos direitos fundamentais, no intuito de frear o abuso

que poderia eventualmente surgir. Em outras palavras, o detentor do poder

político (Estado) interfere nessa relação jurídica visando equilibrar uma relação

que, em seu nascedouro, já surge desequilibrada pelo poderio econômico, ou

mesmo técnico, de uma das partes.

Por fim, não se poderia deixar de mencionar a existência da chamada

eficácia vertical com repercussão lateral. Esta existe quando um direito

fundamental de aplicação vertical, a exemplo do direito fundamental à tutela

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000007697&base=baseAcordaos>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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jurisdicional, gera reflexos laterais na relação jurídica entre particulares

conforme o maior ou menor grau de proteção processual existente no caso

concreto. Assim, uma maior garantia processual pode, reflexamente, gerar

efeitos na relação privada objeto do processo. É de se esclarecer que seria

equivocado afirmar que esse direito se refere à eficácia horizontal dos direitos

fundamentais, afinal, ele não se destina a regular as relações privadas, mas

sim a relação vertical existente entre um indivíduo e o Estado, marcada pela

superioridade deste último.

4.9 As garantias fundamentais

A Constituição Federal de 1988 traz extenso rol de direitos

fundamentais, mas também de garantias fundamentais, entre elas, os

chamados remédios constitucionais. Veja-se que o Título II é denominado "Dos

direitos e garantias fundamentais", o que permite constatar que se tratam de

institutos diversos, apesar de guardarem afinidade.

Conforme Domingo García Belaunde, “[...] hoje se dá o nome de

„garantia‟ a figuras ou instituições de caráter processual que sirvam para a

defesa imediata de determinados princípios e valores que o texto constitucional

consagra”.116

As garantias fundamentais são instrumentos que asseguram a

obediência aos direitos fundamentais. Desta afirmação já se conclui que a

previsão de garantias é de suma importância, uma vez que é imprescindível

que existam meios para prevenir ou fazer cessar a violação aos direitos

fundamentais.

116

BELAUNDE apud DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado democrático e social de direito. In: ENCICLOPÉDIA jurídica da PUC-SP. 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/70/edicao-1/estado-democratico-e-social-de-direito>. Acesso em: 3 jul. 2017.

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J. J. Gomes Canotilho117 descreve a concepção das garantias nos

seguintes termos:

Rigorosamente, as clássicas garantias são também direitos, embora muitas vezes se salientasse nelas o caráter instrumental de protecção dos direitos. As garantias traduziam-se quer no direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a protecção dos seus direitos, quer no reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade.

No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet118 afirma:

preciso esclarecer que do ponto de vista de sua condição de direitos fundamentais no sentido ora sustentado, não existe diferença entre direitos e garantias, pois embora o termo garantias assuma uma feição de caráter mais instrumental e assecuratório dos direitos, como é o caso, de modo especial, das garantias processuais materiais (devido processo legal, contraditório) e das assim chamadas ações constitucionais, em verdade se trata de direitos-garantia, pois ao fim e ao cabo de direitos fundamentais.

Em outras palavras, tão importante quanto a previsão de existência de

direitos fundamentais é a dos meios para efetivamente assegurá-los, sob pena

de que a constituição seja concebida como mera carta de intenções.

Conforme se verá adiante, a relação entre a democracia e os direitos

fundamentais é fortemente estabelecida pela existência das garantias –

admitidas, pois, também como direitos. Afinal, de nada adianta a existência de

direitos constitucionalmente reconhecidos se não houver meios de assegurar o

117

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 396. 118

SARLET, Ingo Wolfgang. Conceito de direitos e garantias fundamentais. In: ENCICLOPÉDIA jurídica da PUC-SP. 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/67/edicao-1/conceito-de-direitos-e-garantias-fundamentais>. Acesso em: 3 jul. 2017.

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efetivo respeito e obediência a tais ditames pelos particulares e, em especial,

pelos governantes.

4.10 As garantias institucionais

Além das garantias fundamentais, é necessário destacar a importância

da existência e do resguardo das garantias institucionais para assegurar a

efetividade do princípio democrático.

Nesse sentido, vale dizer que, conforme o ensinamento de Vidal

Serrano Nunes Júnior,119 o conceito de garantias institucionais foi inicialmente

forjado por Carl Schmitt e encontrou acolhida na doutrina constitucional

brasileira e estrangeira. Parte-se da premissa de que o ser humano ostenta

uma natureza relacional, inserido em uma organização social junto com seus

semelhantes, motivo pelo qual:

[...] existem direitos que não podem ser preservados fora dessa dimensão comunitária, uma vez que se projetam e se realizam em meio a instituições sociais, cuja existência e proteção devem ocorrer exatamente por meio das assim denominadas garantias institucionais.

J. J. Gomes Canotilho,120 no mesmo sentido, afirma que as garantias

institucionais se originam da doutrina alemã, segundo a qual tais garantias não

seriam atribuíveis diretamente a uma pessoa, mas a instituições relevantes à

realidade social e à realização do ideal democrático. Nas palavras do autor:

Assim, a maternidade, a família, a administração autônoma, a imprensa livre, o funcionalismo público, a autonomia académica, são instituições protegidas diretamente como realidades sociais objectivas e só, indirectamente, se

119

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias

de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 139. 120

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 397.

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expandem para a proteção dos direitos individuais. Contudo, como atrás já foi salientado, o duplo carácter atribuído aos direitos fundamentais – individual e institucional – faz com que hoje, por exemplo, o direito de constituir família (art. 36.º/1) se deva considerar indissociável da protecção da instituição família como tal (art. 67.º).121 (grifo do autor)

Vale dizer que os referidos autores advertem que o âmbito de

aplicação das garantias institucionais não se limita à esfera de atividades

públicas, mas se estendem a instituições de origem privada, como é o caso da

proteção estatal à instituição da família.122

Ressalte-se, por oportuno, que a proteção propiciada pelas garantias

institucionais assegura a estabilidade social, na medida em que impede

ingerências negativas por parte do poder público sobre a existência e

preservação das instituições.

Assim sendo, é possível concluir que a proteção às garantias

institucionais se aproxima da proteção aos direitos fundamentais quando se

exige a salvaguarda do “mínimo essencial” dessas instituições, também na

expressão de J. J. Gomes Canotilho.123

121

Os artigos mencionados pelo autor são da Constituição portuguesa. 122

Nesse sentido: “Outro dado sensível do tema estudado diz respeito ao âmbito de aplicação das garantias institucionais, que não se limita ao espaço próprio da atividade pública (estabilidade dos servidores, tripartição de funções etc.), estendendo-se também para instituições originariamente oriundas do direito privado (família, estabilidade das relações jurídicas etc.)”. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988: estratégias de positivação e exigibilidade judicial dos direitos sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 141. “Assim, a maternidade, a família, a administração autônoma, a imprensa livre, o funcionalismo público, a autonomia acadêmica, são instituições protegidas directamente como realidades sociais objectivas e, indirectamente, se expandem para a proteção dos direitos individuais”. CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 397. 123

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 398.

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5. FLUXOS E INFLUXOS DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

NO BRASIL

Imperioso se faz analisar os fluxos e influxos do tema direitos

fundamentais nas Constituições brasileiras, a fim de que seja possível o estudo

do que representam hodiernamente.

Vale destacar que, quanto mais democrático o ambiente do surgimento

de cada constituição, mais atenção foi dedicada aos direitos e garantias

fundamentais e a instrumentos de controle do poder estatal, especialmente das

garantias fundamentais, o que evidencia que os assuntos são indissociáveis.

Da breve análise exposta a seguir, será possível constatar que não

houve uma evolução linear dos direitos e garantias fundamentais nas

constituições brasileiras, mas fluxos e influxos na inclusão dessas matérias,

refletindo o momento histórico e político em que cada uma delas veio a lume no

ordenamento jurídico pátrio.

5.1 Constituição de 1824

A primeira constituição brasileira veio a lume em 25 de março de 1824,

logo após a independência do Brasil e sob o governo do Imperador Dom Pedro

I – por isso conhecida como Constituição Imperial. A constituição surgiu no

período posterior ao da publicação das principais declarações de direitos do

século XVIII, o que trouxe a influência dos ideais liberais clássicos que

permeavam os Estados ocidentais, veiculados na Revolução Francesa e na

Revolução Americana.

Esse contexto histórico foi privilegiado pela Constituição de 1824, que

abarcou importantes direitos fundamentais em seu bojo, à semelhança das

declarações de direitos humanos daquele século. O Estado por ela inaugurado

é de caráter não intervencionista, do tipo liberal, em consonância com os

reclamos daquele momento histórico.

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O artigo 179 da Constituição de 1824 é o que concentra o rol de

direitos fundamentais nela enunciados, entre os quais é possível perceber o

destaque às liberdades públicas, tratadas de forma especificada. Nesse

sentido, houve menção expressa à liberdade de manifestação de pensamento,

de expressão e de imprensa – com a responsabilização por abusos e a

proibição da censura –, à liberdade religiosa – desde que respeitada a religião

oficial (que era a católica apostólica romana) – às liberdades de locomoção e

de circulação, à inviolabilidade do domicílio, a restrições à prisão e à previsão

do primado da legalidade e do princípio da igualdade. O direito de propriedade

também foi expressamente assegurado de forma ampla, inclusive a de

natureza industrial. A suspensão de direitos individuais foi prevista de forma

excepcional. Além disso, houve ainda a inclusão de direitos sociais, nela

referidos como socorros públicos e instrução primária gratuita.

Ainda que tenha havido a previsão de tais direitos na Constituição de

1824, é necessário relembrar que, à época, não havia democracia no país:

vigia o regime monárquico, que contava com instrumentos centralizadores do

poder, por meio, igualmente, de previsões constitucionais. O maior desses

instrumentos era o denominado Poder Moderador, titularizado pelo Imperador –

que também era o titular do Poder Executivo. Ademais, é certo que a

escravidão ainda era uma realidade no Brasil, em que pese a expressa

previsão do rol de direito fundamentais. Destarte, não havia meios efetivos de

controle e fiscalização da observância dos direitos fundamentais, tendo em

vista que a palavra final a tal respeito também era do titular do Poder

Executivo.

Conclui-se, portanto, que a previsão da existência de direitos

fundamentais ainda era um anúncio de intenções, distante da realidade

suportada pela maioria da população.

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5.2 Constituição de 1891

Em 1889, foi proclamada a República no Brasil, resultado da aliança

entre os cafeicultores e os militares do exército como uma estratégia para pôr

fim ao sistema de governo imperial exercido por Dom Pedro II.124

Em 1890, foi nomeada uma comissão para a elaboração do projeto de

constituição, sob a revisão de Rui Barbosa. Ao fim do processo, a Constituição

de 1891 foi promulgada sob forte influência norte-americana, com a adoção do

modelo presidencialista, federativo e bicameral.

A Constituição de 1891, portanto, foi a primeira constituição

republicana do país. A declaração de direitos, contudo, não inovou

substancialmente em relação à Constituição de 1824. Ao contrário, acabou por

suprimir a previsão de fornecimento dos socorros públicos e da instrução

primária gratuita, direitos essencialmente sociais contidos na constituição

anterior. É possível associar essa modificação também à interferência norte-

americana e à ideia de um Estado pouco intervencionista.

Destacam-se, ainda assim, as seguintes previsões constitucionais

relativas a direitos fundamentais: proibição de penas criminais severas, como

as galés, o banimento judicial e a pena de morte, admitidas exceções, neste

último caso, para as hipóteses contidas na legislação militar e em tempo de

guerra (artigo 72, §§ 20º e 21º). Além dos direitos, também foi prevista a

garantia fundamental do habeas corpus, instrumento constitucional previsto

para tutelar o indivíduo contra violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de

poder, tanto de forma preventiva como repressiva (artigo 72, § 22º).

O Poder Moderador do Império foi suprimido em relação à constituição

anterior, adotando-se a tripartição de Poderes e garantindo-se, assim, equilíbrio

e segurança a todos os partícipes desta Constituição.125

124

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 122. 125

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 123.

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5.3 Constituição de 1934

O período que antecedeu a promulgação da Constituição de 1934 foi

marcado por grandes revoluções ocorridas no país – Revolução de 1930,

liderada pelos Estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul; e

Revolução Constitucionalista de 1932, do Estado de São Paulo. Nesse sentido,

Cláudio De Cicco e Alvaro de Azevedo Gonzaga126 lecionam que:

A Revolução de 1930 traz a queda do sistema oligárquico, popularmente conhecido como 'República do Café com Leite'. Com o fim deste sistema de governo, surge um novo momento na História: a Era Vargas, responsável por mudanças consideráveis no panorama político brasileiro [...]

Pela demora da promulgação da Constituição, os paulistas insurgiram-se contra Vargas, dando início à Revolução Constitucionalista de 1932. Embora derrotadas, as lideranças paulistas, ainda que sob intervenção federal, continuaram sua resistência de maneira não belicista, buscando apoio da intelectualidade de outros Estados.

Nesse contexto, Getúlio Vargas, que assumiu o governo provisório por

quatro anos (entre 1930 e 1934), nomeou uma comissão para elaborar o

anteprojeto de uma nova constituição. Referida constituição surgiu, portanto,

como resposta ao período ditatorial então vigente, com o objetivo de instaurar

um regime democrático.

A constituição foi finalmente promulgada em 16 de julho de 1934. O

texto constitucional trouxe um título denominado “Da declaração de direitos”

(Título III), composto por dois capítulos: “Dos direitos políticos” e “Dos direitos e

garantias individuais”. Trouxe, ainda, outro título – “Da ordem econômica e

social” – com previsão de direitos sociais, econômicos e culturais (Título IV).

Vislumbra-se, nesses aspectos, semelhanças com a Constituição Mexicana de

1917 e com a Constituição de Weimar, de 1919, que também privilegiaram

direitos sociais.

126

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 123.

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Os direitos individuais foram arrolados do mesmo modo que nas

constituições anteriores, com merecido destaque à previsão do direito de

subsistência e hipótese de amparo aos indigentes pelo Poder Público (artigo

113, 35).127

Frise-se, ainda, a disposição de que a educação era considerada um

direito de todos, sob responsabilidade da família e dos poderes públicos, “[...]

de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação,

e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”

(artigo 149).128

O caráter social da Constituição de 1934 acabou por formatar um

Estado mais intervencionista que o existente sob a égide da constituição

anterior, já que a ordem econômica deveria se conformar com os “[...]

princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que

possibilite a todos existência digna” (artigo 115).129

A Constituição de 1934 teve, contudo, existência breve, uma vez que

foi abolida pelo golpe de 1937, conforme adiante se expõe.

5.4 Constituição de 1937

A Constituição de 1937 foi outorgada após o golpe de estado de 10 de

novembro de 1937 por Getúlio Vargas, que instituiu um regime ditatorial – o

Estado Novo. O texto ficou conhecido vulgarmente como “constituição polaca”

ante as similitudes com a Constituição Polonesa de 1935, de caráter

absolutista.

127

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República dos Estados Unidos do

Brasil (de 16 de julho de 1934). Rio de Janeiro, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Disponível: 18 jul. 2017. 128

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República dos Estados Unidos do

Brasil (de 16 de julho de 1934). Rio de Janeiro, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Disponível: 18 jul. 2017. 129

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Rio de Janeiro, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Disponível: 18 jul. 2017.

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Nesse contexto ditatorial, foram concentrados sob a autoridade do

Presidente da República os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –

uma vez que era ele a “autoridade suprema” (artigo 73).130

Merece destaque a consideração feita por Cláudio De Cicco e Alvaro

de Azevedo Gonzaga:131

Da análise desta Constituição, podemos concluir que em muitos momentos havia uma aparência democrática no país, entretanto, era instituído um paradoxo entre realidade e Constituição, pois a verdade vista nas ruas e nos Poderes era muito diferente daquela posta no papel.

Com a ditadura, direitos fundamentais já conquistados com as

constituições anteriores sucumbiram, a exemplo da plena liberdade de

manifestação de pensamento, pois foi instituída a censura. Houve, ainda, a

previsão expressa da pena de morte para dez hipóteses, entre as quais a

prática de crimes políticos e de homicídios por motivo fútil ou com extrema

perversidade (artigo 122, 13).132

5.5 Constituição de 1946

Após o período ditatorial implementado por Getúlio Vargas, foi

promulgada a Constituição de 1946, em 18 de setembro daquele ano.

Historicamente, é indissociável a consideração dos efeitos provocados pela

Segunda Guerra Mundial em seu conteúdo.

130

BRASIL. Presidência da República. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). Rio de Janeiro, 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017. 131

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 124. 132

BRASIL. Presidência da República. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). Rio de Janeiro, 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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Com a redemocratização e as consequências do período pós-guerra,

foram retomados os direitos fundamentais no país, à semelhança da

Constituição de 1934 e sob a inspiração da social-democracia de Weimar. O

Estado retomou o intervencionismo nos aspectos social e econômico para

preservação desses direitos.

Como na Constituição de 1934, foi incluído um título denominado “Da

declaração de direitos”, em que eram contidos dois capítulos: “Da

nacionalidade e da cidadania” e “Dos direitos e das garantias individuais”

(Título IV). Do mesmo modo, foi incluído um título específico sobre a ordem

econômica e social, em que era disposto o dever de conciliar a liberdade de

iniciativa com a valorização do trabalho humano (Título V).

O texto trouxe a previsão expressa do direito à vida e à existência

digna, da assistência judiciária aos necessitados, da vedação da pena de morte

(ressalvadas as exceções dispostas na legislação militar em tempo de guerra

com país estrangeiro), de banimento e de confisco, em contraste com a

constituição anterior.

No ano de 1961, contudo, iniciou-se um período de instabilidade

institucional, que acabou por culminar no regime militar de 1964. A partir deste

ano, com o início de novo período ditatorial, a Constituição de 1946 passou a

perder sua força diante do advento dos chamados “atos institucionais”.

Ainda sob a égide da Constituição de 1946, portanto, foi editado o Ato

Institucional nº 1, em 1º de abril de 1964, em que se dispunha que os

comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica exerceriam o poder

constituinte originário, em prejuízo do período democrático até então

experimentado, com a possibilidade de suspender direitos políticos e cassar

mandatos legislativos, excluída a apreciação judicial desses atos.

Em 27 de outubro de 1965, foi editado o Ato Institucional nº 2, que,

entre outras matérias, suspendeu garantias de vitaliciedade, inamovibilidade,

estabilidade e a de exercício em funções por tempo certo e excluiu da

apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos

Complementares decorrentes. Em 5 de fevereiro de 1966, adveio o Ato

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Institucional nº 3, com outras medidas destinadas a manter o projeto de poder

vislumbrado pelo governo ditatorial que se instalava.

Já em 7 de dezembro de 1966, foi editado o Ato Institucional nº 4, que

convocava extraordinariamente o Congresso Nacional para apreciar um novo

projeto de constituição, apresentado pelo então Presidente Castello Branco. O

texto foi aprovado e “promulgado” (como indicado em seu preâmbulo) em 24 de

janeiro de 1967.

5.6 Constituição de 1967

A Constituição de 1967 teve seu surgimento durante o regime ditatorial,

como sobredito, mas trouxe diversos elementos para aparentar a adoção da

democracia. A título de exemplo, em seu preâmbulo, consta que a Constituição

foi promulgada, apesar de ter sido outorgada.

Com a adoção da chamada doutrina ou teoria da segurança nacional, o

texto justificou a ofensa a direitos fundamentais, ante a essência vaga e ampla

de sua extensão. A concentração de poderes nas mãos do chefe do Poder

Executivo também viabilizou a extrema flexibilização dos direitos fundamentais,

de forma alargada e reiterada. Assim, de nada adiantava a previsão da

existência desses direitos que, na prática, poderiam ser cassados a qualquer

tempo, sob a escusa de violação ou ameaça de violação à segurança nacional

pelos indivíduos.

Veja-se que havia a previsão de diversos direitos fundamentais no

texto constitucional. No entanto, não havia meios suficientes para coibir o

abuso estatal e assegurar a efetiva observância desses direitos pelos

governantes.

O cerceamento aos direitos fundamentais ensejou forte oposição ao

regime militar, refletida por protestos estudantis, de alguns setores do clero e

de trabalhadores, além de movimentos libertários internacionais. Nesse clima

instável, foi editado o conhecido Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de

1968, que concentrou ainda mais poderes na figura do Presidente da

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República, que poderia decretar a intervenção nos estados e municípios sem

as limitações previstas na constituição, suspender os direitos políticos de

quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais,

estaduais e municipais. Suspendeu-se, ainda, a garantia constitucional do

habeas corpus para os crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem

econômica e a economia popular, além da já esperada exclusão da apreciação

do Judiciário de quaisquer atos praticados com base neste Ato.

Até o ano de 1969, ainda foram editados outros 12 Atos Institucionais

que diretamente alteravam os rumos do governo, o que permite concluir pela

grande insegurança jurídica que marcou aquele período histórico.

Em meio a essas reiteradas alterações jurídicas, foi promulgada a

Emenda Constitucional nº 1 de 1969 que, de tão abrangente, é considerada por

muitos como uma nova constituição. Tal emenda reforçou o caráter ditatorial do

Estado, notadamente quanto às já existentes restrições aos direitos

fundamentais, como forma de controle da população pelo governante.

Os Atos Institucionais foram expressamente revogados pela emenda

constitucional nº 11, de 13 de outubro de 1978, com vigência a partir de 1º de

janeiro de 1979, que, no entanto, preservou os efeitos de tudo o que for

praticado sob a égide daqueles diplomas, inclusive com a manutenção da

exclusão de apreciação pelo Poder Judiciário neles prevista.

Vale mencionar as considerações tecidas por Cláudio De Cicco e

Alvaro de Azevedo Gonzaga133 a respeito desta Constituição:

Da análise desta Constituição, conclui-se que a História do Brasil teve tristes episódios, que, ao contrário do que dizem alguns, jamais devem ser esquecidos, pois são esses atos que acabam sendo a força motriz para o caminhar da democracia e da igualdade, devendo ser acesos constantemente na memória para que festejemos nossa Constituição cidadã.

133

DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do Estado e ciência

política. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 127.

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No ano de 1985, o período ditatorial chegava aos seus últimos

momentos, formalmente encerrados com a promulgação da Constituição de

1988.

5.7 Constituição de 1988

Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil foi

promulgada em 5 de outubro de 1988, após longo período ditatorial, com a

aspiração de restabelecer a democracia no país. O momento anterior havia

sido marcado por reiteradas violações a direitos individuais, o que foi

determinante para construção da nova constituição, em resposta ao quanto

experimentado e com a promessa de que tais ofensas não mais seriam

admitidas.

Destaca-se que, já em seu preâmbulo, foram enumerados direitos

identificados como valores fundamentais da sociedade brasileira, para o fim de

nortear seu exercício. Evidencia-se, assim, que não se trata de mero enunciado

abstrato, fora do universo jurídico, mas de verdadeiro norte para a atuação

estatal134.

Diante de tal quadro, a Constituição de 1988 privilegiou a previsão dos

direitos fundamentais, tanto pela inclusão no topo da estrutura do texto

constitucional, qual seja, o Título II, inteiramente dedicado ao assunto, quanto

em relação ao detalhamento dos direitos não somente nesse título, mas ao

longo de todo o seu corpo.

Além da existência de diversos dispositivos constitucionais em que

contidas normas sobre direitos fundamentais, a Constituição de 1988 ainda

trouxe em seu bojo a denominada cláusula de abertura, consistente na

determinação de que “os direitos e garantias previstos nesta Constituição não

excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou

134

DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao século XXI. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 326-327.

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dos tratados internacionais em que a República Federativa seja parte” (artigo

5º, II).135

Além do extenso rol de direitos e garantias fundamentais expressos na

Constituição de 1988, verifica-se a previsão de diversos meios de controle do

poder estatal, seja por instituições como o Ministério Público, por exemplo, seja

diretamente pela atuação de particulares, individualmente ou organizados em

associações.

Assim é que a vocação assumida pela Constituição de 1988 para a

tutela dos direitos fundamentais, portanto, a tornou amplamente conhecida

como “Constituição cidadã”.

135

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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6. A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA E DIREITOS E GARANTIAS

FUNDAMENTAIS

Após a explicação até aqui tecida, chega-se ao cerne da questão que é

objeto do presente estudo: qual a relação entre democracia e direitos e

garantias fundamentais?

Assim, pretende-se responder à seguinte indagação: seria possível

sustentar a efetiva existência de direitos fundamentais em um ambiente não

democrático? Ou, ao revés, é possível falar em democracia em um ambiente

alijado de direitos fundamentais?

A história mundial mais recente é repleta de exemplos de intervenções

de certos países em outros, supostamente para a imposição do regime

democrático. Tal postura é adotada e tolerada sob a justificativa de que o

regime democrático é o mais propício para assegurar os direitos humanos e

fundamentais em todo lugar. Essas intervenções seriam, assim, uma espécie

de luta do bem (democracia) contra o mal (tirania).

Entretanto, convém reconhecer que, mesmo em Estados não

democráticos, observa-se a previsão de existência de alguns direitos

fundamentais, ainda que de forma mínima. Nesse sentido, a título de exemplo,

é certo que existem países em que prevalece a tirania, mas em que há eleições

para a indicação do governante – ainda que somente haja um candidato ao

cargo. O sufrágio popular seria suficiente, então, para assegurar a efetiva

existência dos direitos fundamentais?

A partir de tal exemplo, constata-se que não se pode afirmar,

peremptoriamente, que simplesmente inexistem direitos fundamentais ao

arrepio do regime democrático. É necessária uma análise mais aprofundada a

fim de verificar se há interdependência entre a democracia e a efetivação dos

direitos fundamentais e se ambientes não democráticos são totalmente

incompatíveis com a tutela desses direitos.

Evidentemente, tais direitos fundamentais podem ter um âmbito de

proteção mitigado, uma vez que estão previstos em ambiente não propício ao

seu pleno desenvolvimento, já que a liberdade dos indivíduos é extremamente

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restringida e que são fracos ou inexistentes os meios para controle e

responsabilização em casos de violação de tais direitos, especialmente das

garantias fundamentais. A democracia, por seu turno, cria um ambiente

propício ao desenvolvimento dos direitos fundamentais, justamente por levar

em conta a participação popular na vontade política coletiva e disponibilizar

instrumentos para controle da atuação estatal.

Já quando imposta em um ambiente que não respeita os direitos

fundamentais, a democracia também se enfraquece. Isso porque o regime

democrático privilegia a vontade popular, que deve ser formada a partir da

base da sociedade, “de baixo para cima”, sendo certo que sua imposição, ou

seja, sua implementação “de cima para baixo” pode desestabilizar, ainda mais,

as relações existentes na comunidade. Um regime apenas formalmente

democrático, mas não em seu conteúdo, é, em certo ponto, outro tipo de

tirania. Revela-se, portanto, que há certa interdependência entre o regime

democrático e os direitos fundamentais, uma vez que a existência de um sem o

outro é dificultada.

Favorável ao entendimento ora exposto, Flávia Piovesan afirma que

não há direitos humanos sem democracia, tampouco democracia sem direitos

humanos. Ao fim de sua argumentação, complementa dizendo que a

democracia é o regime mais compatível com a proteção dos direitos

humanos136.

Nesse mesmo sentido, destaca Dalmo de Abreu Dallari:137

Desde o século dezoito, com o nascimento do constitucionalismo, e depois com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi incorporada ao patrimônio ético e jurídico dos povos a consciência de que uma Constituição autêntica, legítima e democrática, é o instrumento apropriado para a

136

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 50-51. 137

DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado democrático e social de direito. In: ENCICLOPÉDIA jurídica da PUC-SP. 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/70/edicao-1/estado-democratico-e-social-de-direito>. Acesso em: 3 jul. 2017.

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afirmação dos direitos fundamentais da pessoa humana, condição necessária para uma convivência pacífica e justa. Mas para que a Constituição realize seu potencial humanista é indispensável que os direitos nela consagrados tenham efetividade, que eles sejam garantidos não só no sentido de impedir suas violações por atos de autoridades públicas ou de grupos ou pessoas do setor privado, mas também no sentido de poder ser exigida a obediência às normas constitucionais que determinam a destinação dos recursos necessários para a prestação dos serviços e a distribuição dos bens necessários para que todos tenham real possibilidade de gozo dos direitos.

Do mesmo modo, J. J. Gomes Canotilho138 afirma que:

Tal como são um elemento constitutivo do estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática [...]

Indagar-se-á quem será o responsável por fazer a avaliação sobre o

caráter democrático dos direitos fundamentais. Em um Estado constituído

sobre a base da tripartição das funções do poder estatal, cabe a cada um dos

Poderes observar e fiscalizar o efetivo respeito aos direitos fundamentais e ao

regime democrático.

O Poder Legislativo deverá agir em consonância com os direitos

fundamentais, obedecendo às limitações quanto às deliberações na votação e

aprovação de novas leis, em sentido geral. Assim, não basta a formação de

maioria dos parlamentares para assegurar o efetivo respeito ao regime

democrático: deve haver a proteção aos direitos das minorias, ressaltando-se

que não se admite, em um regime verdadeiramente democrático, que a

produção legislativa seja capaz de aniquilar direitos dessas categorias de

indivíduos.

Ademais, a essência da Constituição brasileira deverá ser preservada. É

certo que se admite emendas à Constituição de 1988, mas dentro dos limites

estabelecidos pelo poder constituinte originário. Assim, nos termos do artigo

138

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 290.

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60, da Constituição Federal, há limites formais para aprovação de emendas

constitucionais (artigo 60, caput, e §§1º, 2º, 3º e 5º) e limites materiais (artigo

60, §4º), cuja observância é indispensável na atividade legislativa.

O Poder Executivo, por seu turno, deverá assegurar o respeito aos

direitos fundamentais e ao regime democrático em sua atuação típica de

gestão da coisa pública bem como no controle realizado sobre os atos oriundos

do Poder Legislativo, através do veto ou da sanção presidencial.

Ao Poder Judiciário, por fim, cabe excluir do caso concreto (controle

difuso) ou do ordenamento jurídico (controle concentrado) a aplicação de uma

lei (aprovada pela vontade da maioria) que afronte os direitos fundamentais.

Neste caso, é de se perceber que o direito fundamental terá o caráter

contramajoritário, pois prevalecerá frente a uma lei que o contrarie. Em outras

palavras, o controle jurisdicional de constitucionalidade é que determinará se

um direito fundamental estará de acordo com o princípio democrático ou não.

Repare que a lei somente deverá prevalecer caso esteja plenamente

de acordo com os direitos fundamentais, ou seja, se houver plena coincidência

entre a vontade da maioria legislativa e os direitos fundamentais que, nesta

hipótese, serão classificados como “democráticos”. Em havendo dissonância

entre a previsão legal aprovada pela maioria dos legisladores e os direitos

fundamentais, estes últimos deverão prevalecer, ainda que em detrimento da

votação parlamentar, ocasião em que serão classificados como

contramajoritários.

Frise-se que, desta maneira, não se mostra equivocado afirmar que o

Poder Judiciário, em um Estado Democrático de Direito, a exemplo dos direitos

fundamentais, também possui uma função majoritária ou contramajoritária.

Será majoritária caso a decisão judicial coincida com a vontade da maioria

legislativa que aprovou a lei, ao passo que será contramajoritária caso se opte

pela aplicação de um direito fundamental mesmo que ao arrepio da vontade da

maioria dos legisladores infraconstitucionais.

Vale dizer: em um Estado Democrático de Direito, nem sempre a

vontade da maioria prevalecerá, ainda quando exposta em uma lei votada e

aprovada pelo Poder Legislativo. Caso a vontade da maioria prevalecesse a

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qualquer custo, inclusive em detrimento dos direitos fundamentais, não se

poderia falar, verdadeiramente, em democracia, conforme já exposto neste

estudo.

Destaca-se, contudo, que a proteção aos direitos fundamentais e ao

regime democrático não é exclusividade dos Poderes Legislativo, Executivo e

Judiciário. Em um ambiente verdadeiramente democrático, essa

responsabilidade é de todos, sendo de suma importância a participação

popular nesse processo.

Nesse sentido, a Constituição brasileira dispõe de diversos

instrumentos de participação popular que viabilizam o efetivo controle da

atuação estatal e, também, da conduta de particulares, a fim de que se

harmonizem com o sistema de direitos fundamentais essencial ao regime

democrático.

Assim é que as garantias fundamentais despontam como o elo

existente entre o regime democrático e a tutela dos direitos fundamentais, por

permitirem o controle e fiscalização diretos dos indivíduos sobre possíveis atos

atentatórios à sua observância.

A inexistência de garantias fundamentais enfraquece a existência dos

direitos fundamentais em si: não basta a previsão constitucional desses

direitos, por mais ampla que seja, se não houver meios efetivos de controle de

sua observância e responsabilização pelos atos atentatórios em seu desfavor.

É possível constatar essa realidade na análise das constituições

brasileiras, feita em tópico próprio neste trabalho, em que se verifica que

mesmo naquelas que vigeram em regimes ditatoriais havia a previsão de

direitos fundamentais. Não havia, porém, meios efetivos de controle por sua

violação, sendo certo que sua observância e respeito dependiam da vontade

do governante da ocasião.

Vale salientar, ainda, que a participação popular deve ser franqueada

de forma direta, sem intermediários, para que a democracia seja fortalecida. É

de suma relevância em um regime democrático a existência de instituições

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independentes para fiscalização e controle, como o são o Ministério Público e

os Tribunais de Contas, já mencionados.

Contudo, é importante que cada indivíduo assuma sua

responsabilidade de também ser um fiscal da ordem jurídica, utilizando-se de

todos os instrumentos colocados à sua disposição para fazer valer seus

direitos, notadamente os de natureza fundamental.

Nesse sentido, é conveniente esclarecer que a participação popular na

gestão pública é possível para a fiscalização direta de cada um dos Poderes, e

não apenas para a provocação do Poder Judiciário por meio de ações judiciais.

Cabe aos indivíduos o livre acesso a toda e qualquer instituição pública para

questionar a atuação, solicitar informações e providências, o que deve ser cada

vez mais encorajado. Para tanto, repita-se, a transparência da gestão pública

deve ser a regra, não se admitindo o sigilo sem a devida motivação.

Como sobredito, o exercício pleno da cidadania não se restringe a

votar em representantes de forma periódica. Inclui a atenção e preocupação

cotidianas com os rumos da sociedade, com a boa gestão do erário público,

com o bom desempenho dos representantes eleitos.

Em relação a tudo o que foi exposto neste tópico, deve-se destacar que

a fiscalização da observância aos direitos fundamentais será viabilizada pelas

garantias fundamentais, que permitirão a mais ampla participação popular e o

respectivo controle dos governantes pelo povo, titular da soberania.

6.1 As dificuldades do sistema democrático face aos direitos

fundamentais

As limitações impostas ao Estado pelos direitos fundamentais trazem a

lume o que Norberto Bobbio denomina “problema da relação entre legitimação

democrática e eficiência do poder”.139 Em outras palavras, quanto maior a

139

BOBBIO, Noberto. [Qual democracia?]. In: BUSSI, Mario (Org.). Qual democracia? Prefácio de Celso Lafer. Posfácio de Mario Bussi. Tradução Marcelo Perine. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2013. p. 36.

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participação e a legitimação democráticas, mais difícil será o exercício do poder

de forma eficiente, tendo em vista que a sociedade deve ser ouvida tanto

quanto possível na tomada de decisões. Se dispensada a participação popular

nos processos decisórios, em contrariedade ao ideal democrático, será mais

fácil para o governante decidir de forma rápida e formalmente eficiente. Esta é,

pois, a perigosa e falsa ideia de que regimes totalitários podem ser melhores e

mais seguros à população do que os regimes democráticos.

Hannah Arendt140 indica a eficiência do totalitarismo nesse contexto:

Como técnicas de governo, os expedientes do totalitarismo parecem simples e engenhosamente eficazes. Asseguram não apenas um absoluto monopólio do poder, mas a certeza incondicional de que todas as ordens serão sempre obedecidas; a multiplicidade das correias que acionam o sistema e a confusão da hierarquia asseguram a completa independência do ditador em relação a todos os subordinados e possibilitam súbitas e surpreendentes mudanças de política pelas quais o totalitarismo é famoso. A estrutura política do país mantém-se à prova de choques exatamente por ser

amorfa.

Constata-se que a democracia, por depender da preservação da

liberdade e do respeito aos demais direitos dos indivíduos (considerados de

forma isolada ou coletiva), traz ao governo certa instabilidade e dificuldade de

condução das decisões. A necessidade de transparência na gestão pública e

de prestação de contas aos indivíduos governados impõem alta

responsabilidade ao governante.

O totalitarismo, por outro lado, seduz pela sensação de segurança e

estabilidade que procura transparecer. A engrenagem governamental depende

exclusivamente de um líder, que não deve satisfações aos seus subordinados,

tampouco aos governados.

A eficiência do governo no modelo democrático é colocada à prova

constantemente, ante a maior participação popular na tomada de decisões. Tal

140

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 547.

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circunstância não ocorre nos modelos totalitários, em que apenas uma opinião

é considerada – e não é passível de questionamentos e controle.

Na democracia, portanto, há o dever de admitir opiniões divergentes e

harmonizá-las para gerir a coisa pública da melhor forma possível aos

governados, o que acarreta maiores dificuldades ao governante. Nesse

sentido, Reinhold Zippelius141 destaca:

Ao princípio democrático propriamente dito (a maior participação possível do maior número possível) junta-se de forma complementar a confiança de que, através do confronto público de opiniões, será encontrada a via objectivamente mais razoável da acção política. Mas independentemente de partilhar ou não este optimismo (§ 28 II 2) a verdade é que, enquanto perseverarmos na legitimação democrática do poder do Estado, é legítimo, pelo menos sob o ponto de vista democrático, que os órgãos do Estado, sobretudo o Governo e o Parlamento, se orientem pela opinião pública.

Indaga-se, portanto, por quais razões o regime democrático seria mais

adequado ao efetivo respeito aos direitos fundamentais, diante das supostas

virtudes dos regimes totalitários – segurança, estabilidade e eficiência do

governo.

De início, é simples constatar que as supostas virtudes dos regimes

totalitários se referem ao governo em si, e não aos indivíduos, pois se destinam

a facilitar o manuseio do poder pelo governante independentemente da

necessidade de prestar contas de seus atos. O poder passa a ser encarado

como um fim em si mesmo, e não como um meio ou instrumento para se atingir

o bem comum da sociedade.

A democracia, por certo, não é o melhor regime ao governante: ante a

necessidade de transparência na condução da coisa pública, suas ações

deverão ser expostas ao conhecimento amplo dos governados, que poderão

dele exigir justificativas sobre a tutela do interesse público; os governados terão

141

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado: ciência política. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 406.

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a oportunidade de controlar a permanência do governante no poder, seja

periodicamente, por meio do voto, ou por cassação do mandato.

Por outra via, em que pese não ser o regime mais simples para o

governante, a democracia se apresenta como o melhor regime para os

governados, entre os já vislumbrados.

A possibilidade de conhecer a vida política da sociedade de forma

ampla, assim como de participar de sua condução de diversas maneiras,

oportuniza o efetivo exercício dos direitos fundamentais, tão almejado e

propagado desde a época das revoluções enquanto direitos humanos.

6.2 Democracia: um direito fundamental

O presente trabalho se dispôs a analisar a eventual existência de

relação de interdependência entre democracia e direitos e garantias

fundamentais. A interdependência entre os institutos é sustentada por diversos

autores, como é possível observar ao longo da pesquisa nele exposta.

Vale dizer, no entanto, que Paulo Bonavides não apenas defende essa

relação de interdependência, mas afirma que a democracia é também um

princípio, e não somente um sistema de governo, uma modalidade de Estado

ou um regime político. Eis o entendimento sustentado pelo autor142:

A democracia é princípio, e os princípios têm sua normatividade, tanto conceitual como positivamente, já definida e reconhecida em algumas ordens constitucionais [...].

De tal sorte que a democracia é o princípio contemporâneo mediante o qual se confere legitimidade a todas as formas possíveis de convivência; poder-se-ia até dizer o único princípio legitimante da cidadania e da internacionalidade. Foi princípio filosófico nas revoluções; é jurídico nas elaborações pacíficas de cada sistema de governo que deve reger os cidadãos ou dirigir os Estados nas suas relações mútuas.

142

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 350.

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Paulo Bonavides143 sustenta, ainda, que a democracia, por si só, deve

ser considerada um direito fundamental de quarta dimensão ou geração:

Compõe, assim, esse direito a índole nova da civilização política que, desde já, marca o advento do terceiro milênio. Sendo, de necessidade, um direito fundamental – e esta é a premissa da qual partimos e que tem por argumento mais persuasivo a impossibilidade fática da igualdade e da justiça fora de tal esfera de compreensão [...].

É nessa direção, guiadas por essa bússola, que nossas reflexões caminharão em seguida, buscando justificar tacitamente as conclusões expostas acerca da democracia enquanto direito fundamental da quarta geração.

Com base no entendimento do referido doutrinador de que a

democracia ostenta a natureza principiológica e, ainda, de verdadeiro direito

fundamental, poder-se-ia cogitar, em tese, a respeito da sindicabilidade deste

direito. Ou seja: do direito de exigir a implementação da democracia, já que, em

sendo considerado um direito fundamental com a carga normativa de princípio,

a ele se aplicaria o regime jurídico inerente a essa categoria.

143

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999. p.

350-351.

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7. CONCLUSÃO

A pesquisa trazida a lume buscou investigar se há relação entre a

democracia e os direitos e garantias fundamentais. Partiu-se da análise

histórica dos institutos, tomando-se como referencial principal o conteúdo da

Constituição Federal de 1988, como forma de nortear a análise para a

atualidade e, também, para a realidade brasileira.

É possível constatar que o termo democracia não é unívoco e que seu

significado variou – e ainda varia – de acordo com o tempo e espaço em que é

adotado. Assim é que, apesar de indissociável a origem grega do instituto, é

certo que a democracia sobre a qual se estuda nos dias atuais não é a mesma

idealizada e implementada por aquela sociedade.

Como essencial ao tema, permanece a premissa de que a democracia

é o regime de governo do povo, o regime de muitos, em contraposição ao

regime de poucos.

A análise dos direitos fundamentais, por sua vez, partiu do exame do

reconhecimento da existência dos direitos humanos em esfera internacional.

Optou-se por essa forma de exposição diante da coincidência dos direitos

fundamentais e dos direitos humanos quanto ao conteúdo objeto de proteção,

qual seja, a tutela da dignidade humana em suas diversas dimensões.

As constituições brasileiras foram sucintamente analisadas com o

objetivo de verificar se o rol de direitos fundamentais teve maior espaço nos

períodos em que vigia a democracia. Da verificação no histórico de

constituições brasileiras, então, foi possível constatar que há relação entre o

regime democrático e os direitos fundamentais – quanto mais democrático o

ambiente político, maior a previsão de existência desses direitos.

Entretanto, foi possível perceber que as constituições vigentes em

períodos ditatoriais também traziam em seu bojo a previsão de existência de

direitos dessa natureza. Ou seja: a mera enunciação de direitos fundamentais

na constituição do país não se revelou como diferencial entre as formas de

governo.

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O que se mostrou como verdadeiro diferencial, porém, foi a existência

de garantias fundamentais e outros instrumentos de fiscalização e controle

para as hipóteses de violação dos direitos fundamentais.

Assim, constata-se que de nada adianta a previsão de existência de

direitos fundamentais se não houver meios efetivos de controle de sua

observância e de responsabilização em casos de violações. A pesquisa

indicou, pois, ser este o principal elemento que permite a classificação de um

governo como verdadeiramente democrático: a possibilidade de

responsabilização de qualquer pessoa, física ou jurídica, de natureza privada

ou pública, por eventual violação dos direitos fundamentais e os principais

instrumentos para tanto, em nível constitucional, são as garantias

fundamentais.

No Brasil, sob a vigência da Constituição Federal de 1988, várias são

as garantias fundamentais e os instrumentos de controle e fiscalização da

observância dos direitos fundamentais, incluindo-se a existência de instituições

essencialmente voltadas a estas finalidades – a exemplo do Ministério Público

e dos Tribunais de Contas.

Nesse sentido, a previsão de garantias institucionais também se mostra

como meio de implementação efetiva tanto do sistema democrático quanto dos

direitos fundamentais sindicáveis individualmente, na medida em que objetivam

proteger a vida comunitária de cada ser humano. Afinal, o ser humano é, em

essência, um ser social, o que justifica a preocupação com a tutela dessas

instituições.

Além disso, houve o enfrentamento de questões relacionadas às

dificuldades de implementação do sistema democrático que, para o

governante, é mais complexo e limitador que sistemas autoritários de exercício

do poder. Isso porque a necessidade de ouvir e considerar a opinião pública

implica em maior instabilidade na tomada de decisões, o que traz a falsa

impressão de que governos autoritários seriam melhores para o interesse

público.

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Para o fim de enriquecer a pesquisa, foi trazido a lume o entendimento

doutrinário segundo o qual a democracia seria um princípio e também um

direito fundamental por si só.

Conclui-se, portanto, que há supedâneo doutrinário para afirmar que

existe relação entre a democracia e os direitos fundamentais e que esta se

estabelece e se consolida positivamente pela existência de meios de controle e

fiscalização de eventuais atos atentatórios.

As garantias fundamentais, assim, se revelam como o elo que garante

a existência do regime democrático e dos direitos fundamentais, viabilizando

condições para a efetiva tutela da dignidade da pessoa humana, fundamento

da República Federativa do Brasil.

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