Luciana Soares de Medeiros

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CENTRO DE DESENVOLVIMENTO E APERFEIÇOAMENTO EM GESTAL T TERAPI A COMUNIDADE GESTÁLTICA – CLÍNICA E ESCOLA DE PSICOTERAPIA Especialização em Psicologia Clínica – Gestalt T erapia LUCIANA SOARES DE MEDEIROS A evolução dos olhares sobre o corpo e a constituição histórica da Gestalt T erapia Florianópolis 2010

Transcript of Luciana Soares de Medeiros

  • CENTRO DE DESENVOLVIMENTO E APERFEIOAMENTO

    EM GESTALT TERAPIA

    COMUNIDADE GESTLTICA CLNICA E ESCOLA DE PSICOTERAPIA

    Especializao em Psicologia Clnica Gestalt Terapia

    LUCIANA SOARES DE MEDEIROS

    A evoluo dos olhares sobre o corpo e a constituio

    histrica da Gestalt Terapia

    Florianpolis2010

  • LUCIANA SOARES DE MEDEIROS

    A evoluo dos olhares sobre o corpo e a constituio

    histrica da Gestalt Terapia

    Monografia apresentada ao Curso de Especializao em Psicologia Clnica Gestalt Terapia, Comunidade Gestltica Clnica e Escola de Psicoterapia, como requisito parcial para obteno do grau de Especialista.

    Florianpolis2010

  • MEDEIROS, Luciana Soares

    A evoluo dos olhares sobre o corpo e a constituio histrica da Gestalt Terapia / Luciana Soares de Medeiros. Florianpolis: Comunidade Gestltica, 2010.54 f. 31 cm.

    Monografia de Especializao apresentada ao Curso de Especializao em Psicologia Clnica Gestalt Terapia, Comunidade Gestltica Clnica e Escola de Psicoterapia, 2010.

    Psicologia; Gestalt Terapia; Corpo

  • CENTRO DE DESENVOLVIMENTO E APERFEIOAMENTO

    EM GESTALT TERAPIA

    COMUNIDADE GESTLTICA CLNICA E ESCOLA DE PSICOTERAPIA

    Especializao em Psicologia Clnica Gestalt Terapia

    A evoluo dos olhares sobre o corpo e a constituio histrica da Gestalt TerapiaAUTOR: Luciana Soares de Medeiros

    ESTA MONOGRAFIA FOI JULGADA ADEQUADA PARA OBTENO DO TTULO DE:

    ESPECIALISTA EM PSICOLOGIA CLNICA

    _____________________________________

    Prof Ms. Angela Schillings

    Responsvel Tcnica - Comunidade Gestltica

    Banca Examinadora:

    _____________________________________

    Prof Ms. Angela Schillings

    Universidade Federal de Santa Catarina

    Comunidade Gestltica

    _____________________________________

    Prof Ms. Lilian Meyer Frazo

    Universidade de So Paulo

    Florianpolis, de janeiro de 2010.

  • Existem tempos em que podemos enganar ns mesmos.

    Existem tempos em que podemos enganar os outros. Mas

    nunca conseguimos enganar nosso corpo. Ele o

    barmetro mais sensvel do nosso mundo interior.

    Sherrill Sellman

  • RESUMO

    Este ensaio tem por objetivo apresentar uma reviso histrica da compreenso do corpo atravs do olhar de diferentes atores sociais - em especial a religio e a cincia - at chegarmos constituio dos saberes psi. Neste processo o trabalho busca recuperar esta compreenso do corpo para as principais abordagens no universo psi (abarcando a Psicologia e a Psicanlise) visando salientar o contexto de onde surge a Gestalt Terapia. Com a explicitao dessa base histrica o trabalho termina por abordar os principais pressupostos da prtica clnica da Gestalt Terapia, de forma que o leitor tenha a possibilidade de compreender a coerncia de sua viso de homem e de corpo, e as formas de acess-lo no processo teraputico.

    Palavras-chave: Histria; Corpo; Gestalt Terapia.

  • ABSTRACT

    The objective of this essay is to present a historical review of the understanding of the body, through the eyes of different social actors - especially religion and science - until we come to the beginning of psychological studies. The paper aims to recover the comprehension of the body to the main psychological approaches (covering Psychology and Psychoanalysis), in order to highlight the context from which the Gestalt Therapy emerges. With this historical view, the essay ends by discussing the main concepts of the clinical practice of Gestalt Therapy, so that the reader may be able to understand the coherence of its approach to man and body, and the ways of accessing it in the therapeutic process.

    Keywords: History; Body; Gestalt Therapy.

  • SUMRIO

    1. ............................................................................................................INTRODUO 8

    ................................................................................................2. CORPO E HISTRIA 10

    2.1 Corpo e Religio - O cu e o inferno habitam a mesma morada ........................ 11

    2.2 Corpo e Cincia - a criao de novos deuses ..................................................... 13

    3 A CONSTITUIO DOS SABERES PSI............................................................... 18

    1.3.1 Psicanlise ................................... - a mente como fonte de cura para o corpo 21

    1.3.2 Os dissidentes ........................................ - o corpo de volta cena teraputica 24

    4. GESTALT TERAPIA E HISTRIA........................................................................... 28

    4.1 Bases filosficas .................................................................................................. 29

    4.2 Influncias diversas ............................................................................................ 30

    4.2.1 A Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo e Psicologia Organsmica........ 30

    4.2.2 As Filosofias orientais .................................................................................. 32

    4.2.3 A Psicanlise e seus dissidentes ................................................................... 33

    .....................................................5. PRESSUPOSTOS DA ABORDAGEM CLNICA 37

    5.1 Awareness ........................................................................................................... 37

    5.2 Contato ................................................................................................................ 38

    5.3 Self ....................................................................................................................... 39

    5.4 Ajustamentos criativos e neurticos ................................................................. 41

    5.5 Postura dialgica ................................................................................................ 44

    5. .....................................................................................CONSIDERAES FINAIS 47

    .............................................................................................................REFERNCIAS 49

  • 1. INTRODUO

    A contemporaneidade convive com caractersticas peculiares de abordagem do corpo

    humano: por um lado h uma extrema insero dos saberes cientficos determinando as

    capacidades e limitaes dos corpos de homens e mulheres, reforada e requerida por estes

    mesmos objetos de interveno cientfica - interveno esta via medicina, em especial. Por

    outro lado, coexiste esta insero da cincia com uma busca incessante por corpos perfeitos

    (mas no necessariamente saudveis), busca frentica por adequao a padres inalcanveis

    de uma beleza arbitrria, conseguida nas capas de revista com o auxlio de programas de

    edio de imagens, e nos consultrios e academias mundo afora com o auxlio de bisturis e

    exerccios e dietas rgidos.

    Se por um lado temos a impresso de ser o corpo foco de suficiente ateno, um

    olhar mais atento nos permite perceber que no necessariamente o excesso de ateno implica

    em um proporcional contato do homem com seu prprio corpo. A cincia ocupa um espao

    importante na compreenso atual do corpo humano, e seus avanos cada vez mais profundos a

    respeito da fisiologia, imunologia, e gentica (para citar apenas algumas reas onde a

    divulgao de avanos esto facilmente disponveis aos leigos via jornais, revistas e internet)

    a conferem um status de superioridade quando se trata de determinar o certo e errado na

    busca humana por uma ampliao de sua vida.

    Entretanto, o que poderia seguir a lgica do desenvolvimento fsico e psicolgico do

    ser humano, estimulando estudos e criando estratgias de melhoria na qualidade de vida at a

    velhice, esbarra em alguns aspectos que colaboram para a deturpao do uso destes avanos

    cientficos de forma saudvel. O primeiro aspecto envolve o distanciamento que homens e

    mulheres desenvolvem de seus corpos, atribuindo figura do mdico o saber sobre seu

    funcionamento interno, e delegando a ele o poder de definir quaisquer tratamentos e

    intervenes corporais para que sejam assim reintegrados categoria de normalidade. Este

    poder delegado define desde a necessidade de um medicamento para dor de cabea at a

    implantao de prteses estticas para remodelar a aparncia dos indivduos. Estes passam a

    saber cada vez menos de si mesmos e de como funcionam, sendo o mdico o responsvel

    por definir o que at ento dependia apenas de uma relao indivduo-si mesmo com um

    grau mnimo de profundidade.

    8

  • A partir deste distanciamento de si mesmo, o corpo torna-se no mais o prprio

    indivduo, mas um objeto, e enquanto tal pode ser manipulado a gosto de cada um. Nesta

    objetificao do prprio corpo, homens e mulheres se perdem na nsia de atender a padres

    de suposta beleza envolvidos em processos com fins abertamente comerciais. Com a perda

    dos parmetros de diferenciao de si-mesmo/outro, de humano/objeto, perdem-se tambm os

    parmetros de sade/doena e, do ponto de vista gestltico, de adaptao/fluidez.

    E diante desta forma contempornea de uso e abuso do prprio corpo que surge a

    curiosidade que move este ensaio. Na tentativa de estabelecer uma lgica dentro da histria da

    humanidade para como percebemos e configuramos nossos corpos at os dias atuais, o agora

    da relao humana com seu corpo nos guiar por uma reviso histrica desde a Idade Mdia,

    focando nas vises mais influentes para abordar o corpo: a religio e a cincia. Partindo da

    cincia chegaremos aos saberes psi, os denominados estudos da mente humana, para ento

    compreendermos toda a estrutura histrica que serve de fundo para a concepo de uma

    abordagem diferenciada do ser humano dentro do seio da Psicologia: a Gestalt Terapia.

    Com esta reviso, pretende-se neste estudo ressaltar os pontos principais da

    abordagem clnica, caracterizada pela concepo do ser como inteiro, uno, no divisvel em

    corpo e mente por ser compreendido como um organismo. A proposta , por fim, tendo o

    corpo como ponto de partida e de chegada, permitir ao leitor a percepo da viso integradora

    do ser humano que a Gestalt Terapia oferece, empreendendo assim um caminho diferenciado

    diante da realidade atual do homem com seu corpo, pois sua viso de sade implica em

    integrao das partes que encontram-se cada vez mais estimuladas a se distanciar.

    9

  • 2. CORPO E HISTRIA

    O corpo humano elemento importante para a compreenso da constituio das

    sociedades (neste estudo, refiro-me s ocidentais), embora sua relevncia seja por vezes

    obscurecida pela prpria rea que o eleva a ponto de debate, como o fazem constantemente a

    religio e a cincia, por exemplo. A influncia de ambas na caracterizao dos indivduos em

    diferentes momentos de sua existncia em sociedade pode ser comprovada historicamente, e

    para contextualizarmos e reforarmos a pertinncia desta proposta de estudo convm

    fazermos um breve retrospecto destas instncias - que mesclam saber e poder.

    Ora parte da natureza ora parte da cultura, o corpo passa por diversas formas de

    investimento ao longo da histria da humanidade. Somadas elas tornam-no um elemento

    complexo: o corpo humano puramente vsceras; objeto de influncia de planetas e/ou

    divindades que o conferem poderes mgicos para o bem ou para o mal; uma mquina tal

    qual os relgios; ainda meio de manipulao, definio de lugar social, objeto de represso

    (COSTA, 1999; CORBIN, VIGARELLO e COURTINE, 2008a, 2008b, 2008c).

    Cada uma destas possibilidades aponta para uma direo diferente e j inserida no

    contexto da histria do corpo at chegarmos viso que hoje possumos do mesmo, onde

    j no nos possvel falar de nosso corpo e de seu funcionamento sem recorrer ao vocabulrio mdico. [...] Longe de ser inconsequente, essa terminologia orienta nossa representao e nossa experincia do corpo. O vocabulrio tcnico que utilizamos nos permite fazer de nosso corpo um objeto exterior com o qual podemos tomar um mnimo de distncia e afastar as inquietaes que ele nos inspira. (FAURE, 2008, p. 13).

    Mas o que olhar para trs pode nos permitir perceber sobre este corpo to amplamente

    estudado?

    Sendo o que faz a fronteira real entre as experincias sociais e as experincias

    internas de um indivduo, o corpo , dessa forma, por natureza o elemento central nas

    dinmicas culturais, sendo simultaneamente agente e objeto de interveno de normas

    provenientes de um passado ainda presente. Talvez revisitar o passado do corpo nos

    possibilite, ao menos aqui neste estudo, perceber que a complexidade de sua abordagem

    mobiliza diversas cincias, obrigando a variar os mtodos, as epistemologias, segundo o estudo das sensaes, das tcnicas, das

    10

  • consumaes ou das expresses. Esta heterogeneidade constitutiva do prprio objeto. Ela insupervel e deve ser mantida como tal numa histria do corpo. (CORBIN, COURTINE e VIGARELLO, 2008a, p. 11).

    E mesmo dentro desta complexidade inerente ao objeto de estudo, a histria tambm

    nos d a possibilidade de identificar elementos de lgicas aparentemente longnquas - que o

    configuravam como uma pea mecnica, ou uma fonte de energia com novas entradas e

    sadas, passvel de regulao de gastos, ou mesmo um elemento de controle e ajustamento

    (Ibid, p.7-13) - ainda presentes na contemporaneidade dos corpos que hoje se fazem tambm

    terapeutizados. Ao mesmo tempo liberto e aprisionado, veremos a seguir como este paradoxo

    do corpo pode ser percebido ainda nos dias de hoje.

    2.1 Corpo e Religio - O cu e o inferno habitam a mesma morada

    Ao longo da histria da humanidade religies e crenas exerceram forte presena

    junto aos indivduos, atuando como fontes de entendimento dos fenmenos que ocorriam no

    mundo, fossem eles naturais ou decorrentes da ao humana. Os conceitos de sade e doena,

    assim como mente e corpo, mesclavam-se nas figuras humanas representadas por sacerdotes-

    mdicos (ou curandeiros), sendo o homem o mediador entre as foras superiores e a cura do

    corpo enfermo.

    Da poca das cavernas - passando por civilizaes antigas (como a assrio-

    babilnica), pela mitologia grega e pela filosofia, para citar apenas algumas fontes - at a

    Idade Mdia, muitas foram as formas de tentar compreender o mundo, o homem e a interao

    entre eles, incluindo aqui o conhecimento e uso do corpo humano (CASTRO, ANDRADE e

    MULLER, 2006, p.39), mas com o advento do Cristianismo que a interdio sobre os

    corpos ampliada e reforada. As correntes religiosas mais marcantes na sociedade ocidental

    tm em Jesus Cristo seu ponto de referncia (CORBIN, COURTINE e VIGARELLO, op. cit.,

    p.9) e, embora possuam diferenas entre si, o Cristianismo assemelha suas igrejas ao exercer

    sobre os corpos dos fiis uma fora ambivalente que os confere um status tanto de pureza

    como de degradao.

    11

  • A ambivalncia do discurso cristo - sobretudo o discurso catlico - pode ser

    percebida com a exaltao e enobrecimento do corpo de Cristo e o menosprezo ao corpo dos

    humanos. Cristo est entre as divindades, representando a pureza e perfeio; os homens esto

    entre os pecadores, dotados de carne e no de um corpo. O corpo a veste dos santos e seres

    bons, belos, sos, livres de pecado e desejo sexual. A carne a veste dos seres imperfeitos,

    seres cujo corpo desordem (GELIS, 2008, p. 20-21).

    O corpo pea chave da f crist, visto que atravs do corpo de Cristo que Deus

    envia a possibilidade de salvao da humanidade. Paradoxalmente, o corpo tambm a via de

    destruio do mesmo homem. com o corpo que o homem originalmente peca, e no corpo

    que se manifestam as formas de expiao deste e dos demais pecados (jejuns, punies

    fsicas, etc.):

    Durante a Idade Mdia, Fava (2000) coloca que a doena era atribuda ao pecado, sendo o corpo o locus dos defeitos e pecados, e a alma, o dos valores supremos, como espiritualidade e racionalidade. Exemplo desta concepo apontado por Ramos (1994) quando cita a viso bblica do caso de Mriam, irm de Moiss, que castigada com uma doena de pele e curada aps um perodo de sacrifcio e arrependimento. Ainda no perodo medieval, Santo Agostinho referia que o homem era constitudo por substncias racionais, resultantes de alma e corpo, ambos criados por Deus. Santo Toms de Aquino, um dos representantes desse perodo, escreveu sobre a unidade do composto humano. (CASTRO, ANDRADE e MULLER, 2006, p.40).

    Dessa forma, sagrado e profano, se o corpo o principal obstculo para chegar a Deus, ele

    pode tambm ser o meio de operar sua salvao. (GELIS, op. cit., p.53).

    Embora as sociedades j possussem formas prprias de compreenso e manipulao

    corporal - seja via prticas populares ou preceitos mdicos - a cristianizao crescente desde a

    Idade Mdia possua fora suficiente para englobar estes saberes em seus dogmas, tornando-

    os aceitveis e regulados pela f. Entretanto, a histria nos mostra que no s a religio

    exerceu - e ainda exerce - alguma forma de interdio nos corpos dos indivduos. E em pontos

    onde a Igreja no se permitiu flexibilizar, a cincia se inseriu e instaurou uma nova fonte de

    saber e poder sobre os corpos.

    As mentalidades evoluem e os indivduos buscam formas de vencer as adversidades

    e no mais se entregarem a sofrimentos voluntrios. A f protestante prope dar a esses

    indivduos meios de combate ao sofrimento e de superao das adversidades, e o cuidado com

    o corpo valorizado, no sendo mais objeto de expiao de pecados. A relao da Igreja com

    12

  • o corpo se altera fora dos domnios do catolicismo, e este se v confrontado tambm com o

    interesse crescente dos indivduos pelas descobertas cientficas que reforam a preservao do

    corpo e da sade como critrios para permanncia na Terra.

    No domnio das representaes do corpo, onde as evolues so muitas vezes lentas, mutaes so perceptveis no curso dos sculos modernos. s vsperas da Revoluo, o homem no v mais seu corpo com o mesmo olhar que no tempo da Reforma. que foram modificadas a conscincia da vida e a cosmoviso. Para a Igreja, indispensvel encontrar processos de adaptao a essas mudanas. Depois de Trento, ela intervm em diversas frentes e se esfora para controlar as prticas das populaes, em particular na zona rural. Mas se ela se ope com certo sucesso aos progressos da heresia, dificilmente consegue sobrepor-se ao movimento cientfico. (Ibid., p. 123).

    2.2 Corpo e Cincia - a criao de novos deuses

    As alteraes no pensamento trazem consigo espao para novas formas de

    compreender o corpo humano, e o crescente nmero de experincias faz surgir o dualismo

    mente-corpo como possibilidade de separar religio e cincia: a mente seria responsabilidade

    da religio e da filosofia, o corpo seria responsabilidade da medicina. Visto como uma

    mquina, o corpo humano estimula pesquisas em diferentes setores, como fsica, qumica,

    anatomia (PORTER, VIGARELLO, 2008, p.441-486), que por sua vez levam os

    conhecimentos cientficos a extrapolarem as possibilidades de uma compreenso do corpo

    como simplesmente uma mquina.

    As medies desta suposta mquina no apenas ampliam o conhecimento cientfico

    sobre o corpo humano, como retomam debates sobre a propriedade da vida e a existncia da

    alma. Um forte argumento antimecanicista que segue esta linha pode ser percebido no

    discurso de George Stahl que

    afirmava que as aes humanas dirigidas para fins no podem ser inteiramente explicadas por reaes mecnicas em cadeia, maneira de uma pilha de domins que desmorona ou de bolas que se chocam umas com as outras numa mesa de bilhar. Os todos so maiores do que a soma de suas partes. A atividade humana dirigida para fins supe a presena de uma alma, compreendida como poder de presidncia intervindo de modo constante, a prpria quintessncia do organismo. Mais do que um fantasma cartesiano numa mquina (que est ali presente mas essencialmente separado dela), a anima (a alma) de Stahl o veculo sempre ativo da conscincia e da

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  • regulao fisiolgica: um guardio, um protetor contra a doena. (PORTER, VIGARELLO, 2008, p. 466, grifo nosso).

    E na relao corpo doente-corpo saudvel que a cincia amplia ainda mais sua rea

    de atuao no estudo do corpo humano. No somente a relao indivduo-seu corpo era objeto

    de estudo cientfico, mas as repercusses e possveis relaes entre este mesmo indivduo e

    sua cultura tambm tornaram-se, concomitantemente, seu foco de interesse. Tendo-se em vista

    que estes mesmos indivduos esto inseridos socialmente, seus corpos comeam a ser

    compreendidos tambm como matria prima para fins sociais. H assim uma busca por

    aperfeioamento desses corpos, no mais para sua depurao pessoal de pecados, mas sim

    visando a perfeio fsica, a higiene, a resistncia, rumo a um aperfeioamento da espcie

    humana, passando pela preveno de doenas, que ameaavam via epidemias tanto o corpo

    individual como o corpo coletivo (Ibid, p. 477; 483).

    A regulao pela cincia - especialmente pela medicina - do corpo agora

    compreendido tambm como parte de uma cultura, alcana aspectos amplos que envolvem

    tambm o Estado como fonte de interveno, aspectos estes como a sexualidade e a formao

    de famlias.

    Do comeo do sculo XV at meados do sculo XVII, a Europa Ocidental esforou-se para desenvolver uma viso do corpo e de sua sexualidade que fosse compatvel com a ordem social, o respeito pela religio e o crescimento da populao. Por volta do final do sculo XVII, as convices culturais referentes importncia do amor nas relaes conjugais - assim como a legitimao mdica do prazer fsico como expresso natural do corpo e dos laos afetivos dos indivduos - comearam a impor-se [...]. (MATTHEWS-GRIECO, 2008, p.218).

    O amor entra em cena, trazendo os desejos dos indivduos ao primeiro plano das

    relaes e vinculando-se idia de casamento. Neste momento, este amor dessexualizado

    (no se fixa ao amor-livre, uma liberao sexual) e direcionado para a procriao. Ele

    tambm passa a direcionar a criao dos filhos, no sentido de ser responsabilizado por

    sustentar ideais de submisso feminina e recluso ao lar para criao da prole, assim como de

    naturalizar o suposto vnculo me-filho expresso no ideal de amor materno, onde a me

    deve anular-se em prol dos filhos e, conseqentemente, da estrutura familiar.

    A famlia ento recebe o amor como seu novo componente e, a partir desta sua

    nova configurao, reconfiguram-se tambm os papis sociais de homem e mulher. Entretanto

    cabe aqui ressaltar que ainda assim muito no se modificou na estrutura familiar valorizada e

    14

  • difundida pela Igreja: ela se mantinha com uma base conjugal, indissolvel e monogmica

    (FUKUI, 1998, p.18). At este momento pode-se perceber a influncia da viso crist de

    composio e estrutura familiar, que, mesmo sofrendo alteraes, mantm sua base de

    sustentao na relao Pai-Me. (CATONN, 2001, p. 24-25; 44-75).

    Vinculado idia de casamento, o amor deixa de ser associado exclusivamente s

    relaes extraconjugais e traz consigo o paradoxo de ser algo nascente com a boa convivncia

    entre os cnjuges, o que se garante com a escolha certa do parceiro, atendendo assim

    atravs de escolhas individuais s expectativas sociais e familiares (DINCAO, 1989, p.

    90-91).

    A redefinio do papel da mulher a partir da idia de amor anteriormente

    detalhada, pode ser destacada como de grande importncia para a insero da Medicina

    determinando as prticas corretas, em um primeiro momento quando a me esgotou todas

    suas possibilidades naturais, e em seguida, pontuando e conseqentemente estabelecendo

    uma classificao de certo e errado o que ela deve ou no fazer em cada situao (COSTA,

    1999). O no cumprimento destas normativas fica ento caracterizado como uma no

    adequao ao papel social de boa me e esposa. O fator social passa aqui a ser dominante

    sobre o natural (PRADO, 1985, p. 12). A Medicina assim, permanece reforando o controle

    dos corpos atravs de seu discurso.

    Aliado aos aspectos culturais, aspectos legais concomitantemente intervm nestes

    corpos, a poltica tambm serve de ponto para reinterpretar os novos corpos sexuados. Seja

    com um modelo de sexo nico, interpretando o corpo feminino como verso hierrquica do

    masculino, seja com o modelo de dois sexos, cujo interesse pela diferenciao anatmica data

    de 1759 (LAQUEUR, 2001, p. 22), a reconstruo da forma de compreender o corpo humano

    intrnseca a todos os processos anteriormente aqui relatados. Pela religio, pela cincia e/ou

    pela poltica, as competies de poder influenciam a constituio dos indivduos e de suas

    realidades sociais.

    A medicalizao, encetada em meados do sculo XIX e apoiada pelos poderes pblicos, fez da gesto dos corpos presos em uma rede de obrigaes em concordncia com os grandes acontecimentos da socializao: entrada na escola, servio militar, viagens, escolha de uma profisso. [...] Para proteger a sade pblica, o Estado estabeleceu uma organizao que pode suspender certas liberdades privadas (como no caso da vacinao). J estamos to acostumados a isto que no vemos mais imediatamente que a se d um caso de coero sobre o corpo, enquanto

    15

  • repudiamos o conjunto das servides corporais como indigna herana do passado. (MOULIN, 2008, p.18-19).

    Ao longo do sculo XX o alcance dos saberes mdicos se expande a nveis antes

    inimaginveis. De uma preocupao modesta com a diferenciao dos esqueletos de

    homens e mulheres no sculo XVIII, a medicina do sculo XX no d apenas saltos

    evolutivos, mas vos no sentido do conhecimento sobre o corpo humano e suas

    possibilidades. Tornando-se ao mesmo tempo fonte de preveno, predio e precauo, seu

    lugar social se refora a cada nova descoberta sobre o funcionamento do organismo, o

    controle de alguma doena e a consequente longevidade do corpo humano.

    Se o mdico se tornou um perito em todos os assuntos pblicos e privados porque toda pessoa saudvel um doente que se ignora. [...] Trazemos dentro de ns mesmos um novo pecado original, um risco multiforme que teve origem em nossos genes, modificado pelo nosso meio ambiente natural e sociocultural e pelo nosso modo de vida. (Ibid., p. 19).

    Transferimos ao mdico o poder de definir tudo o que estiver envolvido nos

    conceitos de sade e doena, vida e morte. Percebe-se esta designao de poder ao

    concebermos que cabe ao mdico declarar que algum est morto. Tambm ao mdico que

    o paciente moderno dirige sua queixa, na esperana de que ele lhe explique seu estado, que

    lhe restaure a sade ou que, na impossibilidade de faz-lo, alivie sua dor. (GAYON, 2006, p.

    50).

    Mas embora a categoria mdica seja a que at os dias de hoje possui o conhecimento

    mais amplo sobre o corpo como objeto de estudo, seu prprio avano possibilitou a criao de

    uma nova forma de compreender a sade, dando-lhe o carter de direito humano. Em 1949

    a Organizao Mundial de Sade afirma o direito do homem sade, e amplia este conceito

    para algo positivo, porm multifatorial1, o que paradoxalmente o transforma em algo que

    transcende os saberes mdicos para poder ser compreendido em sua totalidade. Integrando-se

    a este complexo de saberes para constituir o conceito de sade, os saberes psi comeam a

    surgir e se fortalecer como fontes outras de conhecimento sobre o corpo, para alm do corpo

    fsico.

    Neste momento da histria da humanidade, o indivduo s existe enquanto

    encarnado em um corpo. E este corpo no mais apenas um corpo-pecador ou um corpo-

    16

    1 A OMS define sade como um estado de completo bem-estar fsico, mental e social, e no apenas a ausncia de doenas (Fonte: http://www.who.int)

  • anatomia, mas um corpo que possui tambm prazer e dor, que encontra-se recheado de

    sensaes, que se relaciona com outros corpos e est inserido em um contexto cultural que lhe

    influencia diretamente. Surge ento uma nova conscincia da gesto social do corpo, como

    resultado de uma construo, de um equilbrio estabelecido entre o dentro e o fora, entre a carne e o mundo. [...] A porosidade das fronteiras entre o corpo sujeito e o corpo objeto, entre o corpo individual e o corpo coletivo, entre o interior e o exterior, tornou-se refinada e mais complexa no sculo XX devido ao surgimento da psicanlise. [...]. O corpo uma fico, um conjunto de representaes mentais, uma imagem inconsciente que se elabora, se dissolve, se reconstri atravs da histria do sujeito, com a mediao dos discursos sociais e dos sistemas simblicos. A estrutura libidinal desta imagem e tudo aquilo que vem perturb-la constituem o corpo em um corpo clnico, um corpo sintoma. (CORBIN, VIGARELLO e COURTINE, 2008b, p. 8-10).

    17

  • 3. A CONSTITUIO DOS SABERES PSI

    A constituio da Psicologia enquanto cincia se d atravs da influncias diversas

    advindas tanto da Filosofia como da Fisiologia. Embora pesquisadores de diferentes partes da

    Europa j estudassem e publicassem trabalhos envolvendo fenmenos mentais, e os sentidos e

    suas descries, com a figura de Wilhelm Wundt (1832-1920) que a Psicologia formalmente

    se torna disciplina acadmica. Sendo formalizada como cincia a partir da Psicologia

    Experimental, a Psicologia surge e transforma-se em uma ampla rea de estudos sobre o

    homem e seus processos psquicos.

    Contudo, embora Wundt seja considerado seu fundador, e tenha a Psicologia ao

    longo da histria trilhado caminhos de diversas escolas de pensamento - a partir de Wundt,

    com o Funcionalismo e o Estruturalismo, ou opondo-se a ele, com o Comportamentalismo e a

    Psicologia da Gestalt - com a Psicanlise e a figura de Sigmund Freud que os estudos psi

    ultrapassam as fronteiras da Psicologia e atravessam outras reas de estudo, alcanando

    inclusive o pblico leigo (SCHULTZ, SCHULTZ, 2000).

    Ressalte-se aqui que os estudos de Freud no ocorrem no mesmo contexto das

    demais escolas de pensamento da Psicologia2, que envolvia laboratrios e esforavam-se para

    ser cincia.

    Ao descobrir o inconsciente e inventar a Psicanlise, Freud criou, no mesmo movimento, um novo campo do saber e uma nova modalidade de lao social, de relacionamento. Freud era um homem de cincia, um mdico estudioso da neurologia, e durante toda sua vida sofreu da contradio entre sua formao cientfica e o fato de ser o inventor de um novo campo do saber - a psicanlise - que, embora mantenha conexes com o campo da cincia, com ele no se confunde. (RIBEIRO, M. A. C, 2003, p. 9).

    parte dos tradicionais estudos laboratoriais controlados da Psicologia envolvendo a

    percepo, as sensaes e a aprendizagem, a Psicanlise traz a observao clnica e o estudo

    18

    2 Curiosamente, ainda na contemporaneidade h uma frequente confuso de termos, especialmente entre o pblico leigo. A influncia da Psicanlise em diferentes setores de saber a torna mais prxima do vocabulrio do senso comum, e no incomum haver pouca informao sobre Psicanlise e Psicologia serem reas de estudo diferenciadas, assim como profisses (ou ocupaes, como preferem alguns psicanalistas) com premissas e pr-requisitos para atuao distintos. No papel especfico de terapeuta, no campo da Psicologia Clnica, esta confuso mais evidente e ampliada, tendo-se em vista que dentro da Psicologia a Psicanlise pode ser uma das possibilidades de especializao, embora para especializar-se nela a graduao em Psicologia no seja obrigatria.

  • do comportamento anormal como mtodo e objeto de estudo, respectivamente (SCHULTZ,

    SCHULTZ, 2000, p.324).

    Enquanto a Psicologia como cincia se ocupava de estudar experincias mentais

    conscientes, Freud resgata de antigos poetas e filsofos o inconsciente, e prope um modo de

    estudar e tratar a mente humana que modifica tambm a forma como o homem percebe seu

    corpo. Mdico de formao, Freud est inserido no no circuito da Psicologia Experimental,

    mas da evoluo dos saberes mdicos anteriormente detalhados. Sua proposta de estudo da

    mente est dentro da tica da psiquiatria, que envolve a evoluo de um pensamento que

    comea na Idade Mdia com punies fsicas aos perturbados mentais, considerados

    influenciados por demnios, e passa pela escolas somtica e psquica, que atribuem o

    comportamento anormal respectivamente a causas fsicas ou mentais/psicolgicas. Opondo-se

    a esta viso somtica surgem diversos estudos evidenciando a influncia de fatores

    emocionais nas doenas mentais, e a Psicanlise aparece como uma ramificao desse

    pensamento opositor (PORTER, 1992).

    O meio mais difundido para acessar este contedo emocional era a hipnose, usada

    para tratar pacientes com diagnstico de histeria. Sua aceitao no meio mdico se d atravs

    de Jean Martin Charcot (1825-1893), que descreve os sintomas da histeria e o uso da hipnose

    em linguagem mdica, contudo ainda valendo-se da viso somtica. com Pierre Janet

    (1859-1947) que a histeria considerada distrbio mental e a hipnose preferida como seu

    mtodo de tratamento (SCHULTZ, SCHULTZ, op. cit., p.328). A lgica presente neste

    contexto ainda a de causa-efeito, e as causas psicolgicas comeam a ser ampliadas como

    possibilidades de compreenso da doena mental. O tratamento passa a ser na mente e no

    mais no corpo fsico.

    Corpo e mente, embora indissociveis, recebem olhares e tratamentos separados e

    especficos. A mente subordina o corpo, e este quando se rebela no recebe destaque por seu

    feito, e sim a mente destacada por sua falha em no ter conseguido control-lo como

    deveria (PORTER, 1992). No trabalho de Freud, pode-se perceber esta sequncia quando

    desenvolve sua teoria de desejos reprimidos: a partir dos relatos de suas pacientes sobre

    questes envolvendo sua sexualidade na infncia, Freud deixa de lado a possibilidade de um

    ataque sexual ter sido consumado para a interpretao dos relatos como fantasias

    inconscientes vinculadas a episdios traumticos, fantasias que no haviam ocorrido na

    realidade. Com isso ele passa de uma explicao essencialmente somtica (o ataque

    19

  • verdadeiro) da etiologia do distrbio mental, para uma explicao localizada apenas na

    mente; e props um tratamento igualmente psiquitrico, a cura pela conversa. (Ibid, p.

    306-307).

    A cura falada, ou catarse, fora conhecida por Freud a partir do trabalho com hipnose

    de seu amigo mdico Josef Breuer (1842-1925) com Anna O., a emblemtica paciente

    histrica cuja histria clnica permeia o folclore que envolve os fundamentos da criao da

    Psicanlise. Com Breuer Freud publica em 1895 seu primeiro trabalho, entitulado Estudos

    sobre a histeria, considerado marco inicial da Psicanlise. Posteriormente Freud abandonaria

    a hipnose pela associao livre (FADIMAN, FRAGER, 1979, p. 4-5).

    J para a publicao desta obra eles divergem no quesito sexo como causa nica da

    neurose, e Freud segue seus estudos sozinho, focado na percepo de que no haveria

    formao de neurose em quem possusse vida sexual normal. Conforme mencionado acima, o

    sexo mantm-se como causa da neurose, mudando em sua obra apenas a noo inicial de que

    os abusos relatados eram reais, para a noo posterior de que eram relatos de fantasias de

    traumas sexuais - e que embora fossem fantasias, eram vivenciadas pelos pacientes como

    reais. Com isso o sexo na obra de Freud tem papel importante na vida emocional dos

    indivduos, alm de possuir uma valncia negativa no sentido de permanecer como fonte de

    trauma e distrbio mental (SCHULTZ, SCHULTZ, 2000, p. 331-337).

    A sequncia de seu trabalho tem incio estudando a hipnose, passando pela

    substituio desta pela associao livre de idias como forma de promover a catarse, at que

    Freud chega ao estudo dos sonhos como veculo para o conhecimento do material emocional

    dos indivduos. a partir de sua obra A Interpretao dos sonhos (1900) que ele no s

    apresenta e incorpora a nova tcnica psicanaltica (anlise dos sonhos) como tambm esboa a

    natureza do Complexo de dipo (FADIMAN, FRAGER, op. cit., p.5). Aps esta obra Freud

    segue ampliando seus estudos, mantendo sua nfase na sexualidade, e ainda que muitos de

    seus discpulos tentem compreender a psicanlise de outras formas, o pilar da abordagem na

    sexualidade se mantm, sendo os opositores desta viso prontamente rechaados por ele.

    Como tcnica psicanaltica, a anlise dos sonhos indicava que estes seriam uma forma de

    realizar desejos reprimidos, possuindo contedos recordados ao acordar (o contedo

    manifesto) e uma verdadeira significao que estaria em seu contedo latente, seu

    significado oculto (FONTENELE, 2002, p. 14-29). Para se chegar a este significado oculto, o

    20

  • terapeuta deveria partir do contedo manifesto para o latente, interpretando o significado dos

    eventos relatados no sonho.

    3.1 Psicanlise - a mente como fonte de cura para o corpo

    Na Psicanlise como mtodo de tratamento Freud percebe que a associao livre

    acaba por esbarrar em pontos onde os pacientes no progridem, que ele denomina de

    resistncias, considerando-as a chegada do paciente a pontos de recordao que evocam dor

    emocional, sendo portanto o indicativo de proximidade com a fonte dos problemas. A partir

    disso criado por ele a idia de recalcamento, que seria a excluso de idias ou desejos da

    percepo consciente, e nica explicao para a ocorrncia das resistncias. No processo

    teraputico esse material recalcado deveria ser trazido de volta conscincia para que o

    paciente pudesse enfrent-lo e aprender a conviver com ele (NASIO, 1995, p. 19-24). Da

    relao de Breuer com Anna O., Freud recupera a questo da transferncia - a emoo do

    paciente com relao a seus pais transferida para o terapeuta - como ponto fundamental para

    que a relao teraputica possa se tornar ntima e eficaz e esse material recalcado possa ser

    trabalhado.

    Estudioso de campos que os psiclogos da poca no focavam, o sistema terico de

    compreenso da personalidade criado por Freud explorava seus aspectos conscientes e

    inconscientes, assim como postulava estgios psicossexuais para seu desenvolvimento. A

    pulso seria o motivador da dinmica da personalidade, e teria como objetivo remover ou

    reduzir a estimulao por meio de alguma atividade como comer, beber ou satisfazer a

    necessidade sexual. (SCHULTZ, SCHULTZ, 2000 p. 343). Ela se diferenciaria em duas

    formas: a pulso de vida e a de morte. A primeira inclui a fome, sede e sexo, refere-se a

    questes de preservao tanto do prprio indivduo como de sua espcie e se manifesta

    atravs de uma energia que Freud denomina de libido; a segunda uma fora destrutiva que

    inclui direcionamento para si mesmo via masoquismo ou suicdio por exemplo, ou para o

    outro, via dio ou agresso. Ambas as pulses so importantes na personalidade, podendo ser

    compreendidas como foras motivadoras (NASIO, op.cit., p. 44-45).

    21

  • Os constructos mais importantes e difundidos da teoria da personalidade de Freud

    so Id, Ego e Superego3, apresentados na segunda parte de sua obra e que superam uma

    diferenciao inicial da vida psquica apresentada como composta pelas partes inconsciente,

    pr-consciente e consciente. Destas estruturas da personalidade, o Id a parte primitiva e

    menos acessvel, em cujas foras reside a agressividade, por exemplo. Ele no se ocupa da

    realidade objetiva, buscando satisfazer-se imediatamente atravs do princpio do prazer, por

    meio do qual busca prazer e evita dor. A libido est contida no Id e tem relao direta com a

    tenso. Para manter esta tenso em nveis tolerveis entra a necessidade de interao com a

    realidade: se a pessoa tem sede (pulso de vida) precisa buscar algum lquido para ingerir e

    reduzir a tenso provocada pela sede.

    Mediando as necessidades do Id e a realidade, chegamos ao Ego, nossa razo, o

    meio de estarmos conscientes da realidade e fazermos uso dela para, atravs da suspenso das

    exigncias do Id por prazer, encontrarmos um objeto apropriado para satisfazer esta

    necessidade, culminando com a reduo da tenso. Este meio do Ego operar chamado por

    Freud de princpio da realidade. Ego e Id existem em conjunto, derivando o primeiro das

    foras do segundo. A terceira estrutura da personalidade o Superego, desenvolvido desde a

    infncia via assimilao de regras familiares e sociais. Com o crescimento do indivduo o

    controle parental torna-se menos necessrio como determinante do comportamento pois

    desenvolve-se um autocontrole a partir de padres de conduta internalizados. Como diz Nasio

    (1997, p.129): essa autoridade parental internalizada durante o dipo, e diferenciada no

    seio do eu como uma de suas partes, que a psicanlise chama de supereu..

    Contrariamente ao relacionamento do Ego com o Id, que busca satisfaz-lo, o

    Superego busca evitar que o Id se satisfaa, sendo uma instncia censora na personalidade,

    regido por valores morais e regras. Estando o Ego entre estas duas foras em oposio, surge

    uma presso que resulta em angstia, a advertncia sobre uma possvel ameaa ao Ego

    (FADIMAN, FRAGER, 1979, p. 18-19). Para defender-se desta angstia o indivduo

    desenvolve (inconscientemente) alguns mecanismos de defesa que funcionam distorcendo ou

    negando a realidade.

    22

    3 Ou Isso, Eu e Supereu, como preferem muitos adeptos da nomenclatura mais atualizada com as revises realizadas na traduo das Obras Completas de Freud para o portugus (RIBEIRO, M. 2003, p. 10). Para este trabalho manteremos a nomeao tradicional.

  • Por exemplo, no mecanismo da identificao, a pessoa assume os modos, o vesturio ou o modo de falar de algum que parea admirvel e menos vulnervel s condies que do origem ansiedade. [...] [Na] represso as pulses ou pensamentos provocadores de ansiedade so barrados da percepo consciente. A sublimao envolve a substituio de uma meta que no pode ser satisfeita diretamente por metas socialmente aceitveis. [...] Na projeo, a fonte de ansiedade atribuda a outrem [...]. Na formao reativa, a pessoa oculta uma pulso perturbadora ao convert-la em seu oposto [...]. [Na] fixao, o desenvolvimento da pessoa fica bloqueado num estgio mais primitivo, porque o estgio seguinte fonte de demasiada ansiedade. O mecanismo de defesa da regresso envolve comportamentos que indicam uma reverso a um estgio de desenvolvimento anterior no qual havia maior segurana e menor ansiedade. (SCHULTZ, SCHULTZ, 2000, p. 346).

    Seguro da idia de que a causa dos comportamentos neurticos advinha de

    experincias da infncia Freud dedica ateno ao desenvolvimento infantil, indicando para ele

    estgios psicossexuais (NASIO, 1995, p. 44), nos quais a criana manipula-se ou

    manipulada por seus cuidadores e atravs disso obtm algum prazer. Estas reas manipuladas

    so chamadas de zonas ergenas e os estgios psicossexuais esto vinculados cada um a uma

    zona ergena especfica: do nascimento a aproximadamente o segundo ano de vida passa-se

    pelo estgio oral, no qual a satisfao possvel via estmulos na boca, como sugar, morder, e

    a vivncia inadequada desde perodo produz adultos com hbitos como fumo e comer

    excessivo, dentre outros aspectos comportamentais; no estgio anal o foco o nus,

    ocorrendo na fase em que a criana aprende a controlar os esfncteres (por volta do segundo e

    terceiro anos de vida), e conflitos nesta fase produzem adultos repulsivos (sujos,

    extravagantes) ou retentivos (excessivamente asseado, compulsivo); entre trs e cinco anos a

    criana passa pelo estgio flico, focando a satisfao ertica para a rea genital. Neste

    estgio Freud localiza o Complexo de dipo (Id., 1997, passim), que implica na atrao pelo

    genitor do sexo oposto em conjunto com temor pelo genitor do mesmo sexo; este complexo se

    supera com a identificao da criana pelo genitor do mesmo sexo e a substituio da atrao

    pelo afeto com relao ao genitor do sexo oposto. Aps estes estgios a criana permanece em

    um perodo de latncia que dura at a chegada da adolescncia, quando a puberdade indica o

    incio de um perodo genital (FADIMAN, FRAGER, 1979, passim).

    Assim, com este breve resumo dos principais pontos de sua obra, conseguimos

    perceber mais claramente que o corpo objeto de observao constante para Freud, contudo,

    conforme mencionamos anteriormente, este mesmo corpo percebido enquanto um corpo

    doente, um corpo que representa sintomas, cabendo mente (que permitiu que o corpo

    23

  • escapasse de seu controle) cur-lo e reintegr-lo normalidade. A viso de homem na obra de

    Freud , portanto, mecanicista, biolgica e psiconinmica (RIBEIRO, 1985, p. 115).

    Esta submisso do corpo superioridade da mente como via de cura; a nfase em

    episdios passados como determinantes da condio psquica presente do paciente; o foco nas

    foras biolgicas como formadoras da personalidade - sobretudo o sexo; a possibilidade de

    haver distoro entre o que o paciente vivenciou, o que relatou, e o que Freud interpretava;

    assim como a construo de uma teoria a partir da observao de indivduos considerados

    doentes (neurticos) em detrimento do estudo dos considerados saudveis, so alguns dentre

    muitos aspectos que fizeram com que a psicanlise se dividisse em outras formas de pensar a

    personalidade humana.

    3.2 Os dissidentes - trazendo o corpo de volta cena teraputica

    Os dissidentes trazem para discusso novos pontos de vista, e dois deles em especial

    merecem ser identificados antes de explorarmos as diferenciaes do trabalho de Perls do de

    Freud; so eles: Jung e Reich.

    As posies presentes no trabalho de Carl Gustav Jung (1875-1961) o diferem de

    Freud pela generalizao da libido como energia vital, que englobaria o sexo como uma de

    suas partes. Negando-se a compreender a libido como apenas sexual, Jung tem a possibilidade

    de criar novas formas de interpretar o comportamento humano. Ele tambm recusa o

    Complexo de dipo, e no compartilha da idia de sermos influenciados pelo passado para a

    formao da personalidade. Esta, para ele, seria determinada parcialmente por eventos do

    incio da vida mas tambm pelas aspiraes de futuro, e o comportamento poderia se

    modificar ao longo dos anos. A meta do ser humano seria sua individuao, tornar-se um ser

    no dividido durante o processo de seu desabrochar, de seu desenvolvimento interior, ou seja,

    tornar-se aquilo que potencialmente veio para ser. (ALMEIDA, 2009, p. 115).

    Seus estudos focam mais o inconsciente, e ele define psique como termo de

    referncia mente, sendo esta psique composta por nveis consciente, inconsciente pessoal e

    inconsciente coletivo. Na mente consciente reside o ego - ou a concepo que temos de ns

    mesmos - e por ela que contatamos a realidade e nos adaptamos. Abaixo da conscincia

    24

  • localiza-se o inconsciente individual, que seriam as lembranas, percepes e experincias

    esquecidas pelo indivduo, e abaixo deste estaria o inconsciente coletivo, no conhecido pelo

    indivduo, mas constitudo de experincias universais, reforando a influncia de foras

    sociais agindo na formao da base da personalidade. No inconsciente coletivo estariam

    armazenadas tendncias que disporiam as pessoas a comportarem-se como seus ancestrais

    diante de situaes semelhantes, e a estas tendncias ele denomina como arqutipos. Estes

    esto associados a eventos significativos da vida, e dentre seus principais, destacam-se como

    sistemas distintos de personalidade a persona, a anima e o animus, a sombra e o self

    (FADIMAN, FRAGER, 1979, passim).

    A persona seria a representao que fazemos de ns mesmos nos contatos sociais,

    no necessariamente sendo correspondente personalidade verdadeira do indivduo. Anima e

    animus referem-se s caractersticas dos gneros feminino e masculino presentes em ambos os

    sexos. A sombra possui desejos passionais e inaceitveis, e contm dados de formas inferiores

    de vida. Paradoxalmente ela tambm a fonte da espontaneidade, da criatividade, da

    percepo e da emoo profunda, todas elas necessrias ao pleno desenvolvimento

    humano. (SCHULTZ, SCHULTZ, 2000, p. 364).

    O self, por fim, considerado seu arqutipo mais importante pois proporciona

    personalidade um equilbrio e unidade, buscando promover a integrao, sendo comparado a

    uma auto atualizao ou auto-realizao. Esta auto-atualizao seria a completude da

    personalidade, ou seja, o self com a integralidade de seus aspectos desenvolvidos. Cabe ao

    ego o papel de ater-se e seguir o direcionamento de vida apontado pelo self. Todos os

    problemas, sejam eles somticos ou psquicos, decorrem de uma no integrao com o Self.

    O Self aponta para o germe, para o potencial de realizao que existe em todo ser, que o de

    crescer e completar-se. (ALMEIDA, 2009, p 116).

    A personalidade tambm se manifesta atravs de funes: pensamento, sentimento,

    sensao e intuio. Estas funes envolveriam as formas de nos orientarmos tanto no mundo

    externo como no interno. As reaes via pensamento e sentimento so racionais, e as via

    sensao e intuio so no racionais. Combinadas com a introverso ou a extroverso -

    reaes da mente consciente - produzem oito diferentes tipos psicolgicos (FADIMAN,

    FRAGER, op.cit., p. 47-48). Com toda esta conceituao, para Jung podemos inferir sobre a

    psique dos indivduos se observarmos as manifestaes fsicas destes tipos psicolgicos

    (SCHULTZ, SCHULTZ, op. cit.; ALMEIDA, op. cit.). A individuao como processo de

    25

  • realizao, de completude da personalidade, de self com seus aspectos plenamente

    desenvolvidos, tem assim uma dimenso corporal. O corpo para Jung o aqui e agora, onde o

    indivduo realmente est, e sendo o self a personalidade desenvolvida em sua plenitude, ele

    engloba tambm o corpo.

    Da obra de Jung importante ressaltarmos tambm sua viso holstica do ser

    humano, considerando-o como um todo, em vez de apenas suas vrias partes. Alm disso

    Jung, na totalidade de suas obras, considera que as cincias e os seus mtodos de observao deveriam levar em conta a perspectiva histrica, e tambm a individualidade do pesquisador envolvido no que buscasse entender. Lembrava sempre que a nossa viso de mundo permeada e limitada por nossos cinco sentidos, mas abria brechas para que buscssemos ousar e viver coisas que nem sempre compreenderamos racionalmente. Jung buscava profundamente os significados da psique, apoiando-se num enfoque fenomenolgico, pois acreditava que a individualidade das pessoas, o ser nico, no podia ser classificada de maneira geral, compreendida de maneira quantificada e dentro de padres estatsticos. Na afirmao de Kant de que o mundo no pode ser conhecido como realmente , pois o nosso conhecimento e observaes acerca do mundo so limitados pelo como e o que os nossos cinco sentidos podem apreender, que se baseava Jung. (ALMEIDA, 2009, p.110-111).

    Wilhelm Reich (1896-1957) compartilha com Jung a idia de totalidade do ser

    humano, e embora seja considerado um dissidente da Psicanlise Freudiana, em sua obra

    presente e bastante reforada a importncia das funes sexuais para a compreenso do

    psiquismo, assim como o fazia Freud.

    Toda a obra de Reich um apelo constante a uma volta ao corpo, a uma compreenso cada vez maior da bioenergia das emoes (organobiofsica), a uma viso mais ampla e aberta da sexualidade, a uma compreenso do corpo como uma totalidade e como uma histria escrita e reescrita nos momentos mais importantes da existncia. (RIBEIRO, 1985, p. 116).

    A teoria criada por Reich traz efetivamente o corpo para o centro da cena

    teraputica: para ele de nada adiantaria trazer eventos passados para o momento presente da

    terapia se a estes eventos no estivessem vinculados seus afetos - corpo e mente se acessando

    mutuamente e em integrao (Ibid., p. 117). E partindo desta viso de corpo e mente como

    uma s unidade que Reich estrutura seu trabalho clnico, analisando os aspectos fsicos e

    psicolgicos do carter.

    Carter seriam as atitudes habituais de um indivduo (valores, comportamentos e

    atitudes fsicas) e o padro de respostas deste para as situaes da vida (FADIMAN,

    26

  • FRAGER, 1979, p. 92). Ele se formaria como resposta a uma ansiedade gerada pelos

    sentimentos infantis com relao sexualidade e o medo de punio. Inicialmente a represso

    conseguiria barrar os impulsos sexuais, mas com o tempo e a evoluo das defesas do Ego,

    estas evoluiriam para couraas de carter. Estas couraas se distinguem dos sintomas

    neurticos por sua adequao ao contexto geral do indivduo, de forma que racionalmente

    parecem perfeitamente integradas a ele.

    Associado a cada atitude de carter haveria uma atitude fsica correspondente,

    expressa como rigidez muscular. Nesse sentido, Reich enfatizava a liberao de emoes a

    partir do trabalho com o corpo do paciente, e um trabalho s na fala no conseguiria restaurar

    as necessidades interrompidas que se expressam no corpo (RIBEIRO, 1985, p. 119). Essa

    restaurao tanto da fluidez da energia que circula pelo corpo como da expresso das emoes

    somente seria possvel com o reencontro do indivduo com sua prpria sexualidade,

    desenvolvendo sua potncia orgstica - a capacidade de atravs do corpo liberar a excitao

    sexual reprimida.

    Reich descobriu que depois assim que seus pacientes renunciavam sua couraa e desenvolviam potncia orgstica, muitas reas de funcionamento neurtico mudavam de forma espontnea. No lugar de rgidos controles neurticos, os indivduos desenvolviam uma capacidade para auto-regulao. Reich descreveu indivduos auto-regulados como naturais, mais do que compulsivamente, morais. Eles agem em termos de suas prprias inclinaes e sentimentos internos, ao invs de seguirem algum cdigo externo ou ordens estabelecidas por outros. (FADIMAN, FRAGER, 1979, p. 94).

    Na prtica clnica, a terapia criada por Reich consiste em trabalhar cada segmento

    das couraas de carter, dos olhos regio plvica. Atravs do trabalho com a frustrao o

    indivduo seria orientado a buscar sua auto-regulao, o que automaticamente implicaria em

    um maior conhecimento de si mesmo.

    27

  • 4. GESTALT TERAPIA E HISTRIA

    Por volta dos anos 1960 a Psicologia possua j bem estabelecidas duas grandes

    foras dentro de suas escolas de pensamento: a Psicanlise e o Comportamentalismo, j

    considerando-se aqui os dissidentes destas mesmas escolas. Como alternativa a estas foras

    surge um movimento denominado Humanismo, que trazia de volta ao debate temas j antigos

    da Psicologia, sobretudo da Psicologia da Gestalt, o que fez inclusive com que alguns

    psiclogos no sentissem necessidade de dar a ele um nome prprio em funo de suas

    semelhanas com a Psicologia da Gestalt. Corroborando para a criao desta outra forma de

    pensar e trabalhar terapeuticamente o ser humano, a sociedade da poca voltava-se para a

    reivindicao de formas de vida menos materialistas e mecanicistas.

    O movimento humanista concentrava-se no ser humano saudvel, e no no

    emocionalmente perturbado, como para a Psicanlise, tambm rejeitando o determinismo

    presente tanto nesta abordagem como no comportamentalismo, de quem tambm criticavam a

    artificialidade dos resultados de experimentos, obtidos por condicionamentos e no por

    espontaneidade. Essencialmente voltavam-se para a experincia consciente e a perspectiva de

    totalidade desta conscincia, assim como para a criatividade e espontaneidade visando a sade

    e auto-realizao dos indivduos (SCHULTZ, SCHULTZ, 2000, p. 392-395).

    Enquanto perspectiva filosfica, o humanismo refletia a tentativa do homem de

    compreender-se e ser compreendido, contendo uma viso de homem como capaz de autogerir-

    se, autoregular-se (RIBEIRO, 1985, p. 28-29). Convm pontuar que embora fosse um

    movimento relevante - tendo entre seus integrantes nomes como Abraham Maslow

    (1908-1970), propositor da hierarquia de necessidades, e Carl Rogers (1902-1987), criador da

    Abordagem Centrada na Pessoa - o humanismo no configurou-se como escola de

    pensamento dentro da psicologia (SCHULTZ, SCHULTZ, op.cit., p. 400).

    A Gestalt-Terapia, assim, contempornea criao e desenvolvimento deste

    movimento e possui semelhanas com ele, tanto nas crticas Psicanlise (de quem Perls

    originalmente se afasta) como em sua viso de homem capaz de auto-regular-se, mas no se

    filia a ele pois [...] Perls era extremamente crtico com relao ao Movimento Psicolgico

    Humanista e sobre seus protagonistas [...]. Foi a Psicologia Humanista que pretendeu que a

    28

  • Gestalt Terapia fosse uma de suas abordagens principais. (PETZOLD apud LOFFREDO,

    1994, p. 69).

    Assim, para alm de uma reflexo humanista, a base do processo psicoteraputico da

    Gestalt-Terapia realiza-se a partir de uma postura existencial e de um mtodo fenomenolgico

    de compreenso da realidade, e as influncias recebidas para a constituio da abordagem

    como hoje a conhecemos vem de diferentes fontes, que veremos a seguir.

    4.1 Bases filosficas

    O existencialismo pode ser compreendido como uma possibilidade filosfica

    alternativa ao dualismo que segmenta o homem em corpo e alma (PINTO, 2009, p. 19). Seus

    pressupostos envolvem a crena no homem como ser concreto e dotado de poder sobre sua

    prpria existncia, sendo responsvel por suas escolhas e livre para realiz-las. O

    existencialismo trata, assim, da existncia humana como experincia individual e singular, e

    compartilhando de sua viso de homem a Gestalt Terapia traz no encontro da subjetividade e

    singularidade deste homem sua possibilidade de individualizar-se em seu meio (RIBEIRO,

    1985, p. 32).

    Sendo um ser inteiro e nico, e possuindo liberdade de atuao, o homem se torna

    assim um agente intencional em sua relao consigo e com seu mundo. Estes princpios do

    existencialismo implicam na orientao intencional da conscincia e em uma nova forma de

    pensar a relao do homem com o meio em que vive. Partindo destas idias, na clnica

    gestltica somente possvel compreender a vivncia deste indivduo a partir de sua prpria

    descrio de cada situao vivida, sendo o encontro teraputico um encontro existencial

    entre duas pessoas, e no uma variante do clssico relacionamento mdico-

    paciente. (FADIMAN, FRAGER, 1979, p.131). A nfase teraputica nas escolhas individuais

    refora, ento, o propsito do trabalho clnico de resgate da autonomia do indivduo e de sua

    auto-regulao.

    A intencionalidade se faz presente tambm na influncia da fenomenologia para a

    construo da base terica que sustenta a Gestalt Terapia. A partir da viso existencial de

    homem com escolhas de ao no mundo, a possibilidade de descrio desta experincia pelo

    29

  • prprio indivduo o mtodo utilizado por Perls: o mtodo fenomenolgico de compreenso

    via descrio, sem a busca por relaes causais como formas de justificar estas escolhas

    feitas.

    Orientada pela concepo existencial, a descrio fenomenolgica permite ao

    indivduo a tomada de conscincia de seu processo de constituio de si mesmo e de suas

    relaes singulares com seu mundo, a partir do foco no como ele experiencia suas vivncias,

    tratando, portanto

    de voltar-se no busca de essncias, mas ao processo de existncia do indivduo, ao modo de seu existir a cada momento. Apreender a coisa em si mesma, concebida como um dado acessvel ... ao vivido imediato, o que se prope pelo mtodo fenomenolgico prprio GT, apoiado nas concepes existenciais que o acompanham. A abordagem fenomenolgico-existencial fornece, assim, sua teoria da relao terapeuta-cliente e a partir dela que se atualiza o mtodo de trabalho caracterstico da GT. (LOFFREDO, 1994, p. 76).

    4.2 Influncias diversas

    4.2.1 A Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo e Psicologia Organsmica

    Em seus estudos que auxiliaram na criao da Gestalt Terapia Perls se apropria

    tambm de noes importantes da Psicologia da Gestalt (FADIMAN, FRAGER, 1979, p.

    129-131), como sua proposta de aprendizagem e soluo de problemas no que elas podem

    ajudar o cliente a aprender a solucionar seus problemas em um nvel amplo, como seja o

    existencial (RIBEIRO, 1985, p. 66), ou ainda segundo coloca Yontef (1998, p. 160) a nfase

    da Gestalt Terapia no presente uma influncia direta da Psicologia da Gestalt. De Smuts,

    Perls colhe o holismo estrutural, que pode ser compreendido como um correlato da noo

    de todo/partes dos gestaltistas de primeira gerao; de Friedlaender, colhe a indiferena

    criativa, que veremos na seo seguinte. Outros aspectos relevante advindos dos estudos da

    percepo engendrados pela Psicologia da Gestalt envolvem os conceitos de todo e parte,

    figura e fundo, e campo, fundamentais para a compreenso tanto da prpria Psicologia da

    Gestalt como de seus desdobramento para a Gestalt Terapia.

    30

  • Diante da perspectiva de relacionar o indivduo e seu ambiente, Perls utiliza-se do

    conceito de campo ampliado pela Teoria da Campo de Kurt Lewin (PINTO, 2009, p. 24).

    Lewin mostra em seus trabalhos a ocorrncia de totalidades: as partes revelam o todo, mas

    no significam o todo. o contexto (todo) que d significado/sentido a qualquer ao de

    campo (relao organismo-meio/ espao vital) e, assim, dependendo do contexto, os

    significados so totalmente diferentes. O comportamento compreendido como uma

    ocorrncia de campo (YONTEF, 1998, passim).

    Em seus estudos Lewin estabelece tambm algumas propriedades para o limite entre

    a pessoa e o meio (e que Perls vai chamar de Fronteira), que no so categorias separadas,

    pois ocorrem ao mesmo tempo. Estas propriedades, de fato, so nada mais que modos de ser,

    de estar na relao com o meio. So elas: separao / diferenciao delimita a pessoa e o

    meio, proporcionando pessoa a noo de si mesma e do que no ela mesma; unio

    necessria para a experincia de contato, para ocorrer a relao entre o organismo e o meio;

    permeabilidade uma propriedade facilitadora de busca de equilbrios, possui algumas

    propriedades e indica as formas que o limite entre a pessoa e o meio tem de ter algum tipo de

    troca. A permeabilidade ento pode ser de 3 tipos: rgida dificulta a troca no espao vital;

    alargada permite troca demais, o limite muito tnue; e flexvel permite abrir e fechar

    conforme a necessidade da pessoa; contemporaneidade - se refere proximidade ou

    afastamento, ao olhar para o aqui/agora da situao, onde s os fatos presentes podem criar

    um comportamento atual (RIBEIRO, 1985, 88-106; YONTEF, op.cit., p. 198).

    A partir do conceito de campo, o que se percebe no contexto da psicoterapia o

    fenmeno dado pela experincia imediata, havendo uma confiana nessa vivncia, nesse aqui-

    agora. Os fenmenos no so considerados casuais, do contrrio, tudo tem um sentido na

    vivncia do indivduo. A vivncia do momento presente (aqui-agora) traz consigo a relao

    passado-presente-futuro, pois encerra vivncias passadas e prospeces futuras no momento

    vivido.

    Outra fonte de influncia no trabalho de Perls a Psicologia Organsmica,

    apresentada por Kurt Goldstein, que trabalha a noo de totalidade: o organismo uno,

    integrado, um sistema organizado, onde o todo diferente de suas partes. Desta base fica

    clara a Lei do fechamento: a organizao saudvel, uma busca organsmica; e a

    desorganizao patolgica, ou seja, quando no se busca a organizao, a desordem se torna

    cristalizada, disfuncional, sem um bom fechamento (RIBEIRO, 1985, p. 107-113). Segundo

    31

  • Goldstein o campo tem potencialidades para regular a interao organismo-meio. O

    organismo teria, ento, uma auto-regulao na busca por satisfazer suas necessidades

    (PINTO, 2009, p.21-22). Ele capaz de criar modos de se organizar de forma saudvel,

    elegendo uma forma de se ajustar espontnea para cada situao, ou seja, cria uma nova

    figura a partir dos fundos de possibilidade que possui.

    Esse fluxo de figuras e fundos algo imprevisvel, e embora a figura seja a principal

    atividade do organismo na situao em questo, o fundo que lhe d a possibilidade de

    aparecimento. O organismo (que dentro da Gestalt Terapia implica em corpo e mente

    indissociveis) vai ento se expressar como figura ou fundo, dependendo da situao. Na

    relao terapeuta-paciente, o trabalho da Gestalt-terapia sobre a formao e destruio de

    Gestalten, ou seja, do fluxo figura-fundo (o que acontece na relao todo-partes), da relao

    de campo. O que se destaca no trabalho a figura, dela que temos clareza, pois o fundo s

    vai se tornar claro quando emergir como figura (RODRIGUES, 2007, p. 112). Todo este fluxo

    visa a auto-realizao do indivduo, este o seu propsito de vida, e a psicoterapia objetiva

    ampliar cada vez mais esta possibilidade de auto-realizao.

    4.2.2 As Filosofias Orientais

    Do trabalho de Salomon Friedlaender sobre a indiferena criativa, Perls pde

    trazer para a perspectiva de campo a noo de existncia de um ponto-zero, de onde se pode

    ento perceber a diferenciao de algo em dois plos, que possuem afinidade e no so partes

    em contraposio, so dimenses de um mesmo fenmeno (LOFFREDO, 1994, p. 65). Esse

    ponto zero no absoluto, apenas um aspecto de equilbrio.

    Dessa forma, seria possvel ver os dois lados de um mesmo evento, sem se fixar

    numa nica viso, ou seja, a partir da percepo desse ponto de indiferena se forma um

    campo, onde a manuteno deste equilbrio entre os plos o que faz o organismo se auto-

    regular, podendo oscilar entre eles. S possvel perceber um lado a partir da percepo do

    outro, eles se sustentam na mesma intensidade, so conectados de forma indissocivel.

    E a partir das concepes apreendidas dos estudos de Friedlaender torna-se possvel

    estabelecer uma ligao com a noo de vazio presente no Zen-budismo, alm de outras

    32

  • filosofias orientais que tambm perpassaram a vivncia de Perls e influenciaram sua

    configurao de pontos da Gestalt Terapia, estando presentes

    nas prprias concepes de Perls sobre a fluidez figura-fundo e a gestalt emergente. Est intimamente relacionada maneira de pensar oriental da convivncia simultnea de opostos, afastando-se de uma perspectiva dualista ou dicotmica. [...] No seu primeiro livro, usa inclusive o crculo de Yin e Yang para esclarecer o processo de diferenciao em opostos. (LOFFREDO, 1994, p. 67).

    Coerentes com a viso existencial de homem que serve de suporte para a Gestalt

    Terapia, as filosofias orientais reforam a forma de estar na realidade e reagir a ela, e embora

    estejam vinculadas a conceitos de espiritualidade por se tratarem tambm de filosofias

    religiosas, Perls no incorpora este aspecto em seu trabalho. O que pode ser destacada a

    afinidade entre as posturas gestlticas e estas filosofias nos sentidos de: orientar o ser humano

    para uma integrao de si em sua totalidade; auxili-lo no reencontro com sua prpria

    natureza ensinando-lhe a lidar com suas caractersticas pessoais como elas so; e perceber as

    mudanas como acontecimentos que demandam fluidez, sem a preocupao com expectativas

    (RIBEIRO, 1985, passim; PINTO, 2009, p 23-24).

    4.2.3 A Psicanlise e seus dissidentes

    Laura e Fritz Perls eram tambm estudiosos da Psicologia da Gestalt, tendo se

    conhecido atravs de sua insero no meio de estudos sobre lesionados cerebrais de Kurt

    Goldstein. Contudo, tanto Fritz Perls como sua esposa Laura iniciaram suas vidas enquanto

    terapeutas identificando-se como psicanalistas, e a Psicanlise era na poca a vanguarda do

    estudo da mente (JULIANO, 2004, p. 2). Pretendendo inicialmente realizar uma extenso do

    trabalho de Freud, Perls estabelece estudos sobre as resistncias orais, cuja importncia

    descartada pelos psicanalistas da poca (o prprio Freud incluso, tendo-se em vista que no

    tolerava revises em sua criao que a descaracterizasse em seus aspectos principais). Sendo a

    receptividade a seu trabalho entre seus pares pouca ou nenhuma, inicia-se ali um processo

    de afastamento da abordagem a qual tanto ele como Laura se identificavam enquanto prtica

    teraputica (FADIMAN, FRAGER, 1979, p. 127-128; LOFFREDO, 1994, p. 28-29).

    33

  • Os estudos rejeitados neste episdio da vida de Perls culminam com a criao do

    que viria a ser considerado o primeiro livro de uma nova abordagem de psicoterapia, e

    embora ainda se considerasse um Psicanalista, em Ego, Fome e Agresso Perls j discordava

    de duas teses importantes para a Psicanlise: o acento sexual para as pulses de vida e morte e

    o ego exercendo a funo de censor dessas pulses. Para ele, o ego no possui apenas a

    funo censora; esta apenas mais uma de suas muitas funes, ele algo em constante

    movimento, e possui a capacidade de criar formas de organismo e meio se reorganizarem em

    sua relao. Perls rejeita tambm a associao livre e sugere uma ateno maior sobre o

    sintoma do paciente: a tcnica da Concentrao (PERLS, 2002).

    As divergncias com a psicanlise freudiana vo adiante, desde a concentrao no

    presente ao invs da investigao do passado do indivduo; passando pela compreenso da

    transferncia como um aspecto importante da projeo sem com isso ser atravs dela a

    possibilidade de eficincia do processo teraputico (Id, 1988, p. 69); at a diferenciao de

    vises de homem e mundo (RIBEIRO, 1985, p. 114-116). Esta ltima crucial para o

    distanciamento efetivo da abordagem integradora e com enfoque na existncia presente do

    indivduo que se processava, da viso mecanicista atada ao racionalismo do sculo XIX

    (arraigada em toda a construo freudiana ). A constituio do livro Gestalt Terapia em 1951

    demarca o afastamento oficial entre as duas abordagens (LOFFREDO, op. cit., p. 27-30 ).

    Neste sentido, embora inicialmente via divergncias, a Gestalt Terapia e a

    Psicanlise se tocam em diferentes pontos de suas teorias, e passados os anos e a emoo

    vinculada rejeio das idias de Perls pelos psicanalistas de outrora, outras influncias de

    dissidentes da psicanlise (e tambm de outros que ainda se consideravam psicanalistas porm

    j inseriam na teoria inicial suas contribuies) podem ser percebidas em sua obra (PINTO,

    2009, p. 25). Ana Maria Loffredo (1994, p. 39), em sua tese de doutorado posteriormente

    editada e publicada como livro relata que em sua pesquisa foram encontradas referncias a

    diferentes nomes da Psicanlise, como Carl G. Jung, Wilhelm Reich, Alfred Adler, Karen

    Horney, Otto Rank, dentro outros , sendo apontados como influentes na concepo da Gestalt

    Terapia.

    Entretanto, no desprezando as mltiplas influncias recebidas, enfocaremos aqui

    dois nomes principais com contribuies diretas sobre a forma de pensar e tratar o corpo do

    indivduo dentro da abordagem clnica que estava sendo criada por Perls e os demais

    34

  • estudiosos que contriburam para a criao da Gestalt Terapia tal qual a conhecemos hoje:

    Jung e Reich.

    A influncia de Jung percebida quando este articula seu conceito de sombra,

    demonstrando que a personalidade lana nela aspectos opostos tornando o indivduo

    incompleto at que possa aceitar e integrar a parte at ento no aceita de sua personalidade

    (POLSTER, 2001, p. 313):

    A sombra pode ser tambm um importante obstculo para a individuao. As pessoas que esto inconscientes de suas sombras, facilmente podem exteriorizar impulsos prejudiciais sem nunca reconhec-los como errados. Quando a pessoa no chegou a tomar conhecimento da presena de tais impulsos nela mesma, os impulsos iniciais para o mal ou para a ao errada so com frequncia justificados pro racionalizaes. Ignorar a sombra pode resultar tambm numa atitude por demais moralista e na projeo da sombra em outros. (FADIMAN, FRAGER, 1979, p. 59).

    A noo inicial de polaridades expressa nesta articulao possui influncia direta na

    viso gestltica de polaridades e do trabalho para sua integrao, contudo Perls no as

    compreende como restritas a um arqutipo, como pensava Jung, dando assim uma conotao

    mais abrangente a esta caracterstica da personalidade. Na citao acima podemos perceber

    tambm um embrio do posicionamento gestltico para a projeo em sua forma disfuncional.

    Outro aspecto relevante dos estudos de Jung dizem respeito necessidade de

    integrao das emoes com o momento vivido e expresso pelo indivduo, pois seriam elas o

    elemento de ligao entre as ocorrncias fsica e a vida (Ibid., p. 61). Este aspecto aparece

    tambm nos estudos de Reich, que veremos adiante. E acerca do processo de individuao, a

    viso Junguiana de fluidez e auto-atualizao do processo assemelha-se e recebe influncia de

    elementos do zen-budismo, tambm presentes na formulao de conceitos da Gestalt Terapia.

    A influncia de Reich mais ampla e se deve tanto por ter sido ele analista de Perls

    durante alguns anos como por ter sido o dissidente de Freud que ocupou-se mais direta e

    abertamente com a criao de um trabalho voltado para o corpo do indivduo em psicoterapia.

    De Reich Perls absorve a viso do corpo em relao psique (FADIMAN, FRAGER, 1979,

    p. 129) e compreende a noo de couraas musculares enquanto resistncias psquicas como

    importantes para a identificao corporal destas resistncias e retoma este conceito de Reich

    com certas diferenas ao abordar a retroflexo (LOFFREDO, 1994, p. 40).

    Ambos concordam ainda sobre: a importncia da observao na psicoterapia; a

    presena do corpo visto como um todo na ao psicoteraputica; a necessidade de vinculao

    35

  • de afetos e lembranas para a promoo da integrao do indivduo; a nfase na forma de

    comunicao empreendida pelo indivduo (RIBEIRO, 1985, passim). Na relao teraputica,

    o corpo ento se fazia importante tambm pela ateno ao tom de voz, ao movimento, s

    posturas, e estas referncias credenciadas pelos estudos reichianos j faziam parte das

    vivncias pessoais tanto de Perls quanto de Laura, com o teatro e a dana, respectivamente

    (LOFFREDO, op. cit. p. 42-43).

    36

  • 5. OS PRESSUPOSTOS DA ABORDAGEM CLNICA

    Veremos a partir deste ponto alguns elementos importantes para a compreenso da

    abordagem clnica desenvolvida por Perls, de forma que o leitor possa ao longo do texto

    perceber a importncia do corpo para a estruturao de todo o embasamento terico que

    sustenta a prtica da Gestalt-Terapia.

    5.1 Awareness

    Awareness - termo preferencialmente utilizado no ingls, por no haver traduo no

    portugus que abarque todo seu significado - pode ser compreendida como sendo o que d

    orientao para o contato. Perls (2002) a compreendia inicialmente como uma faculdade, algo

    inato ou adquirido, que portanto pertenceria pessoa a partir de ento. A partir do livro

    Gestalt-terapia (1997), Awareness j compreendida como um estado, um processo, no

    sendo portanto algo fixo, no pertencente somente pessoa, mas sendo algo do campo.

    Seu sistema envolve: sentir sensrio-motricidade; excitamento movimento; dar-

    se conta movimento para formao de figuras. Ele compreende, portanto, a formao e

    destruio de gestalten, um fluxo figura-fundo. A figura comea a se formar quando ao

    realizar algo o excitamento ocorre. O sentir se transforma em ao (motora, verbal) e da

    ocorre o ajustamento criativo. O retomar de uma histria, fazendo o organismo criar novas

    formas de lidar com ela, por onde o campo se auto-regula (Id., p. 33).

    O Aqui-Agora possui Awareness sensorial (AS) e deliberada irreflexiva (ADI). A AS

    tem a ver com a historicidade, vem como um elemento que estava at ento retido no fundo.

    A ADI uma deliberao para fazer alguma ao, perspectiva de futuro. J a Awareness

    deliberada reflexiva (ADR) uma reflexo, um momento de apropriar-se do que se viveu,

    dando um sentido esse vivido. A Awareness , ento, o modo como cada um forma uma

    Gestalt (Id, passim).

    O foco do trabalho clnico , portanto, na Awareness sensorial e deliberada

    irreflexiva. fazer com que o indivduo tenha a percepo de suas interrupes, de como se

    37

  • interrompe, como age e o que ocorre quando age de tal forma, para que possa se permitir criar

    novas possibilidades de ao para a situao que se repete. A Awareness sempre uma Gestalt

    nova, sempre awareness de algo, no havendo separao entre conscincia e fenmeno,

    entre perceber e percebido. H uma correlao intencional entre forma e contedo. Atravs de

    experimentos, criando dados novos para serem explorados, a espontaneidade do paciente pode

    voltar e se desinterromper (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997, p. 37).

    5.2 Contato

    O contato o processo inteiro de formao e destruio de Gestalten (Ibid., p. 45).

    Fazem parte dele a Awareness (nas suas 3 formas: sensorial, deliberada irreflexiva e

    deliberada reflexiva) e o Ajustamento Criativo, e tem como suas funes: ver, ouvir, tocar,

    sentir cheiro, gosto, falar e mover-se (POLSTER, POLSTER, 2001, p. 139-179. Atravs

    desses processos o contato pode ser conseguido, bloqueado ou evitado. Ele no algo que

    pertena nem ao organismo nem ao meio, pois s existe na relao destes.

    As funes de contato se fazem perceptveis tanto para o meio como para o

    organismo a partir da relao destes: a fronteira de contato (PERLS, 1988, p. 31-38; PERLS,

    HEFFERLINE, GOODMAN, op. cit., p.41-43). Esta fronteira s existe quando existe uma

    figura, pois assim podem existir tambm elementos a serem capturados. nela que se

    encontram as energias mobilizadas tanto pelo organismo como pelo meio, at a equalizao

    das mesmas; onde se percebem como eu e no eu.

    Outra forte caracterstica que o contato s pode ser estabelecido por seres

    separados (ambos animados ou entre animados e inanimados), seres que ao mesmo tempo

    precisam ser independentes e se relacionar entre si atravs de diferentes formas de interao.

    nessa interao que se do as mudanas, inerentes ao contato em si, a partir do momento

    que se pode conhecer o novo, assimilar o que interessa e descartar o que no necessrio no

    momento. No somente entre seres animados e/ou inanimados, a experincia de contato pode

    se dar internamente num indivduo, com sua capacidade de se observar, de estar em contato

    consigo mesmo (POLSTER, POLSTER, op. cit. p. 112-120).

    38

  • De forma simplificada, podemos assim resumir seu processo: algo nos captura

    provocando um excitamento e formando uma figura. Os elementos passados que esta figura

    evoca so disponibilizados e ao dar-se conta destes (do que eles lhe causam sensorial e

    motoramente, o que evocam) e posteriormente refletir sobre este processo, possibilitada ao

    indivduo a busca por novas formas de lidar com o que est interrompido na questo que se

    repete em sua histria. Assim, novamente disponibilizada para o indivduo a discriminao

    para o contato, onde ento ele pode vislumbrar o que adequado para sua situao - se

    aproximao ou fuga - encontrando seu prprio ajustamento, o que saudvel para seu

    funcionamento. Como resume Perls (1988, p. 37):

    Contatar o meio , num certo sentido, formar uma Gestalt. Fugir fech-la completamente ou reunir foras para tornar o fechamento possvel. [...] Se o contato superprolongado, torna-se sem efeito e doloroso; se a fuga muito demorada, interfere no processo de vida. Contato e fuga, num padro rtmico, so nossos meios de satisfazer nossa necessidade de continuar os progressivos processos da vida.

    5.3 Self

    As muitas vivncias que temos engendram uma mesma vida, nica e ao mesmo

    tempo diferente cada nova vivncia, sendo esta atualizao temporal dos vividos, algo

    constante na existncia do indivduo, compondo assim sua teia, ou histria de vida. Quando

    uma dessas vivncias se desarticula desta teia que forma a vida como um todo, seja por

    questes orgnicas, sociais ou deliberao, surge o que chamamos de doena.

    E seguindo esta linha de raciocnio acerca da atualizao temporal dos vividos que

    Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 180) trazem as noes de contato e de self. Em

    resumo, o self um processo temporal; no algo fixo, ele existe onde existir uma interao

    na fronteira de contato; o prprio processo de figura-fundo em situaes de contato. O

    contato a realizao histrica do campo organismo-meio - no sentido de ser nele que os

    elementos de passado se atualizam no presente e possibilitam a formao de um horizonte de

    futuro - e o self o sistema complexo de contatos necessrio ao ajustamento no campo

    imbricado (Ibid., p. 179).

    39

  • Suas caractersticas principais so: a espontaneidade e o engajamento. Ambas

    ocorrem juntas: o que espontneo est numa distncia semelhante entre a conservao e o

    crescimento, promovendo o sentimento de se estar atuando na relao de campo (O-M) que

    est acontecendo, a awareness desse momento de estar entre polos distintos (O-M), para

    assim poder atuar; e o engajamento produz a constatao de que s se pode sentir a si mesmo

    e ao outro em uma situao, ou seja, a espontaneidade colocada em ao, que tanto pode ser

    atravs de hbitos, funes vegetativas (das quais no nos damos conta enquanto

    realizamos), como da fala e da sensomotricidade, ou ainda das intuies.

    A teoria do self possui ainda dois nveis de elaborao, propostos na obra Gestalt-

    terapia (1997): as funes e as dinmicas do self.

    As funes do self no so nem cronolgicas, nem partes dele, e sim trs pontos de

    vista que se pode ter de uma mesma experincia. Deve-se destacar que cada experincia

    vivida h as 3 funes operando concomitantemente. So elas: Id, Ego e Personalidade.

    ID Pode ser compreendida quando no conseguimos diferenciar o que EU e o

    que Mundo, como por exemplo no processo de relaxamento, onde o Id ento surge como

    sendo passivo, disperso e irracional; seus contedos so alucinatrios e o corpo se agiganta

    enormemente (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997, p.186). O Id , portanto, a

    funo que mobiliza a espontaneidade do Self, sua capacidade de sentir.

    EGO a possibilidade de o indivduo deliberar sensorial e motoramente. uma

    forma de expressar a individualidade, sendo esta entendida como uma forma de satisfao.

    Alm disso, deve ser compreendida tambm como a presuno de haver algo que d sentido

    aos comportamentos musculares e verbais aqui deliberados. Sendo estes a expresso de uma

    tenso, podemos entend-los como sendo a expresso da funo de Ego - movimentos e aes

    que diferenciam o indivduo do meio em que ele se encontrava antes indiferenciado enquanto

    funo Id (Ibid., p. 184-185).

    PERSONALIDADE a capacidade de representao das vivncias de contato.

    uma generalidade verbalmente determinada, algo social, formada a partir das aes da funo

    de Ego. nesta funo que a vida moral se desenvolve, assim como os valores e demais

    conhecimentos. A Personalidade o sistema de atitudes adotadas nas relaes interpessoais;

    a admisso do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderamos explicar nosso

    comportamento, se nos pedissem uma explicao (Ibid, p. 187).

    40

  • O self possui ainda uma dinmica: PR-CONTATO o momento de transio da

    funo Id para a funo Ego; momento de apreenso da figura; CONTATANDO a

    deliberao na qual o Self se polariza (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997, p.

    205-219); CONTATO FINAL momento em que o Self age, se polarizando concretamente;

    PS-CONTATO momento de representar culturalmente a ao realizada, identificando-se

    com uma certa personalidade. Assim, estando o self polarizado em cada uma de suas funes,

    diferenciam-se tambm as relaes de figura e fundo (Ibid, p. 220-231).

    O conceito de awareness torna-se assim um sistema awareness, onde as partes que a

    constituem, denominadas: sentir, excitamento, formao de gestalten e destruio de

    gestalten, passam a designar a orientao temporal do prprio Self, recebendo nova

    nomenclatura, respectivamente: pr-contato, contatando, contato final e ps-contato. A

    temporalidade refere-se ento renovao constante, cada nova experincia, de um fundo

    histrico permanente, no processo de contato.

    5.4 Ajustamentos criativos e neurticos

    Nos processos dinmicos do self ocorrem diferentes formas de ajustamento do

    indivduo no campo, de forma que ele possa interagir com seu ambiente de acordo com as

    necessidades que surgem constantemente. A neurose, segundo Perls (1988, p. 40), surge

    quando o indivduo tem comprometida essa sua capacidade de interao. Os ajustamentos so,

    portanto, essencialmente saudveis (criativos), podendo assumir uma caracterstica

    disfuncional se ocorrem em um campo onde h represso (PERLS, HEFFERLINE,

    GOODMAN, op. cit., p. 248). Nestes comportamentos neurticos a ansiedade se manifesta, e

    ela a interrupo do excitamento criativo.

    A represso compreendida (Ibid., p. 251) como sendo um processo de inibio

    crnico que foi esquecido e assim mantido, e diante do fundo que est agora ocupado por

    uma represso que ocorre a interrupo do excitamento. Esta interrupo, dependendo da

    etapa em que ocorra, resulta em comportamentos neurticos com caractersticas diferenciadas.

    41

  • Os ajustamentos criativos so: Confluncia, Introjeo, Projeo, Retroflexo e

    Egotismo. Veremos ento suas principais caractersticas, seguidas de suas manifestaes

    quando h interrupo do excitamento criativo.

    A Confluncia (PERLS, 1988, p. 51-53; PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN,

    1997, p.252-253) ocorre na passagem do ps-contato de um evento A para o pr-contato de

    outro evento B, sendo ela no a figura, mas sim o fundo de possibilidades que foi adquirido

    no ps-contato A e que agora est disponvel no pr-contato B. A confluncia espontnea,

    o que nos d a sensao de pertencer, um senso de entrega no campo. Ela ocorre onde no

    h necessidade ou possibilidade de mudana, no h barreiras entre o indivduo e seu meio, h

    a sensao de semelhana, como ocorre com um recm-nascido que ainda no tem a

    capacidade de distinguir-se de seu meio, ou ainda como uma criana dentro de seu ncleo

    familiar, onde estabelece as primeiras noes de vnculo.

    Na confluncia em sua forma disfuncional no h possibilidade de se formar figuras

    pois o indivduo nutre um apego ao que j lhe d segurana, evitando uma nova excitao.

    No havendo contato, no h possibilidade de crescimento real, pois no podendo formar

    figuras fica o indivduo na dependncia dos outros para agir em seu lugar. A patologia leva o

    indivd