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Marília dos Santos Lopes DA DESCOBERTA AO SABER Os conhecimentos sobre África na Europa dos séculos XVI e XVII Passagem Editores Viseu 2002

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Marília dos Santos Lopes

DA DESCOBERTA AO SABER

Os conhecimentos sobre África na Europa dos séculos XVI e XVII

Passagem Editores Viseu 2002

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SUMÁRIO  

Nota prévia Introdução

7

9 1. 1.1

"Coisas Maravilhosas e Até Agora Nunca Vistas" As Viagens Marítimas Portuguesas e a Proliferação das Informações na Europa

19

20

1.2 A Primeira Fonte dos Descobrimentos: A Antologia da Novidade

36

2. 2.1

Em Viagem Norte de África: O Velho Mundo

49

49 2.2 Guiné: A Caminho de um Mundo Novo 69 2.3 Congo: Missionação a Sul do Equador 94 2.4 O Sul de África e os Hotentotes 103 2.5 Monomotapa: O Reino do Ouro 117 2.6 A Etiópia e o Lendário Preste João das Índias 124

3. 3.1

Em Diálogo com as Novidades Os Horizontes Geográficos

135

135 3.1.1 A Descoberta de um Novo Mundo 136 3.1.2 "Nova África" 150 3.1.3 Do Reconhecimento à Descrição Global do Mundo 160 3.2 Usos e Costumes de todo o Mundo 171 3.2.1 O Africano: Ser Fabuloso ou Gente? 171 3.2.2 "Gabinetes de Curiosidades" em Livro 188

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3.3 Deus e as Crenças Alheias 201 3.3.1 Um Desafio ao Cristianismo 201 3.3.2 Cristãos, Muçulmanos, Judeus e Pagãos em África 219 3.4 Dimensões Históricas 231 3.4.1 África na História da Humanidade 231 3.4.2 A História de África 247 3.5 África: Um Tema na Ciência e na Literatura 256 3.5.1 Línguas Exóticas: Reorganização da Nova Babilónia 256 3.5.2 Ciências da Natureza: Registo e Classificação 265 3.5.3 Literatura: Heróis em África 270 Conclusão 285 Bibliografia 291 Fontes 291 Obras de Consulta 303

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Nota prévia Passados dez anos após a conclusão deste trabalho em língua alemã, é um projecto ousado apresentá-lo ao público português. Apesar de tudo, optámos por aceitar o desafio, cedendo às solicitações de colegas e alunos, que, com toda a ingenuidade que a amizade provoca, demonstraram interesse em conhecê-lo. Vem, assim, a lume a versão portuguesa da minha tese "Afrika. Eine Neue Welt in deutschen Schriften des 16. und 17. Jahrhunderts" que, aprovada sob a orientação do Prof. Dr. Eberhard Schmitt pela Universität Bamberg em 1991, obteve equivalência ao grau de Doutor em Letras pela Universidade de Coimbra em 1997. Apresento, portanto, um texto, que é espelho de um saber de há dez anos, tanto em referências bibliográficas como em reflexões teóricas. Tendo em consideração as fontes analisadas, em grande parte desconhecidas do público português, e a temática ainda actual, a década entretanto passada não retira, penso eu, utilidade à leitura deste estudo. O projecto inicial implicou uma longa estada de investigação em Universidades e Bibliotecas alemãs e contou com o apoio de muitas instituições entre as quais o Deutscher Akademischer Austauschdienst, a Dr. Günther-Findel-Stiftung da Herzog August Bibliothek em Wolfenbüttel e a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Aqui lhes deixo expressão do meu reconhecimento. Também contou com o apoio de muitas e muitas pessoas, das quais gostaria de destacar o saudoso Mestre Professor Doutor Luís de Albuquerque. Se agora encontrar mais um leitor português tão interessado e benevolente, como foi o meu Mestre na elaboração do projecto, o esforço da editora teria a sua recompensa.

Viseu, Dezembro de 2001

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Introdução O estudo da História da Expansão Europeia abrange um vasto caudal de diferentes questões e problemas que metodologicamente poderemos agrupar em dois eixos temáticos. Enquanto um tem por fim analisar a história da empresa ultramarina, o outro vocaliza o seu estudo para as ressonânias culturais deste fénomeno. O interesse em delinear a História dos Descobrimentos supõe acompanhar as grandes viagens que, zarpando da Europa, cruzaram mares ignotos até avistarem novas regiões. Um dos nomes mais evidenciados e, por isso, profusamente associado à Época dos Descobrimentos é o do navegador Cristovão Colombo, principalmente, quando se comemoram os 500 anos da descoberta da América. O grande feito de Colombo sobreeleva-se na memória colectiva a qualquer outro acontecimento histórico mais antigo ou coetâneo: antes de o mareante genovês aflorar a América já muitos outros nautas se tinham feito ao mar, também com o propósito de descobrir a misteriosa e faustosa Índia. A Vasco da Gama caberia, em 1498, realizar este velho sonho europeu. Mas o estudo da História da Expansão não se limita única e simplesmente a uma reconstrução das sucessivas e inauditas descobertas marítimas. A abordagem histórica alastra-se, pelo contrário, a todos os fenómenos culturais resultantes, directa ou indirectamente, das viagens, mormente, o que se convencionou designar por "Auto-descoberta da Europa".1 Isto é: o impacto do descobrimento de um novo e ignorado mundo no fluir dos meios intelectuais europeus. Com efeito, o engrandecimento geográfico do orbe terráqueo e a entrada de novos povos e civilizações na consciência europeia desencaderia um processo cultural não menos importante que as consequências provocadas pela chegada dos navios europeus além-mar. Neste contexto, desenvolveu-se científica e didacticamente nos últimos anos na Alemanha uma área de investigação, cujo escopo é aprofundar essencialmente quais as ressonâncias advindas das viagens marítimas na constituição (e consolidação) do que se viria a chamar a realidade europeia perante a dos Outros, a não-europeia.2 No que concerne ao

1. Sobre o conceito "Selbstentdeckung Europas" veja-se Karl Heinz Kohl (Ed.), Mythen der Neuen Welt, Zur Entdeckungsgeschichte Lateinamerikas, Berlim, 1982, sobretudo, pp. 13-21. 2. Veja-se Hans-Joachim König, Wolfgang Reinhard e Reinhard Wendt (Ed.), Der euro-päische Beobachter außereuropäischer Kulturen, Zur Problematik der Wirklichkeitswahr-nehmung, Berlim, 1989 e o aturado estudo de Donald F. Lach, Asia in the making of Europe, 2 vols, 5 books, Chicago, 1970-1977. Tendo em atenção o exemplo do continente asiático, Lach, com um enorme corpus documental, demonstra como o crescente contacto com o

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10 INTRODUÇÃO

impacto da empresa descobridora e, naturalmente, da "Cultura dos Descobrimentos"3 poderemos ainda atestar que e, principalmente no que tange os séculos XVI e XVII, existe um vasto leque de questões em aberto, nomeadamente no que se relaciona à recepção dos conhecimentos do mundo ultramarino em países da Europa Central não directamente envolvidos na actividade marítima. Não obstante as notáveis investigações de Eberhard Schmitt4 e de Wolfgang Reinhard,5 a quem cabe o mérito de terem introduzido, na Alemanha, esta área historiográfica, a grande maioria de trabalhos académicos tem ainda por mira os descobrimentos e a sua repercussão no Ultramar. Os estudos inovadores de Urs Bitterli6 abririam então algumas portas à temática relacionada com a ressonância de outros mundos na Europa, procurando, no entanto, em primeira linha debuxar o modelo desenvolvido ao longo do que recentemente se tem designado por encontros culturais. Um especial interesse pelo facto de as viagens marítimas serem, desde muito cedo, assunto de debate dos letrados é o tema que Dieter Wuttke desenvolveu recentemente para o círculo de humanistas alemães,7 que apaixonadamente seguiam o divulgar das novas geográficas, observação esta que se poderá estender também a outros grupos de intelectuais das diversas áreas de saber dos séculos XVI e XVII. Neste amplo e vasto debate sobre a alteração da imagem conceptual do orbe terráqueo, os novos conhecimentos referentes ao continente africano não foram até agora, não obstante ocupem um lugar relevante, tema de

desconhecido traz, em vários campos temáticos, profundas alterações na arte, literatura, filosofia, em suma, na consciência cultural europeia. 3. Sobre este conceito de "Cultura dos Descobrimentos", veja-se o notável estudo de José Sebastião da Silva Dias, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Coimbra, 1973 e as pesquisas inovadoras de Luís Filipe Barreto, Descobrimentos e Renas-cimento, Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI, Lisboa, 1983; Os Descobrimentos e a Ordem do Saber, Uma análise sociocultural, Lisboa, 1987 e Portugal - Pioneiro do Diálogo Norte/Sul, Para um modelo da Cultura dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1988. 4. Eberhard Schmitt (Ed.), Dokumente zur Geschichte der europäischen Expansion, Munique, 1984-1989. 5. Wolfgang Reinhard, Geschichte der europäischen Expansion, Estugarda/ Berlim/ Colónia/ Mainz, 1983-1985. 6. Veja-se Urs Bitterli, Die Entdeckung des Schwarzen Afrikaners, Versuch einer Geistesgeschichte der europäisch-afrikanischen Beziehungen an der Guineaküste im 17. und 18. Jahrhundert, 2ª ed., Zurique, Freiburg, 1980; Die "Wilden" und die "Zivilisierten", Grundzüge einer Geistes- und Kulturgeschichte der europäisch-überseeischen Begegnung, Munique, 1976 e Alte Welt - neue Welt, Formen des europäisch-überseeischen Kulturkontakts vom 15. bis zum 18. Jahrhundert, Munique, 1986. 7. Dieter Wuttke, Humanismus in den deutschsprachigen Ländern und Entdeckungs-geschichte 1493-1534, Bamberg, 1989.

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INTRODUÇÃO 11

uma análise detalhada. Convém salientar alguns trabalhos percussores no que tange o processo de recepção histórica, como sejam - para além dos já mencionados trabalhos de Urs Bitterli - as pesquisas da escola de Viena sob a orientação de Günther Hamann,8 nomeadamente, as teses de Sitta Klement-Kleinschmidt9 e de Alfred Kohler.10 Uma apresentação sistemática da imagem de África na literatura europeia do século XVI foi o tema apresentado por William Graham Lister Randles; tendo o sudoeste africano como objecto de estudo, Randles investiga os inícios do processo de contacto com estas novas informações.11 O facto de as fontes concernantes à imagem de África,12 entre elas as relações de viagens, serem de assaz significado histórico, mormente, para os estudos etnográficos, levou autores, como Beatrix Heintze e Adam Jones, a publicarem cuidadas edições, críticas e comentadas,13 que, juntamente com as reflexões alusivas ao género e teor das fontes, constituem um valioso e inestimável contributo para a história de África.14 A análise que nos propusemos fazer visa primamente esboçar o processo de recepção e proliferação das notícias sobre África nos escritos alemães dos séculos XVI e XVII, tendo em vista perscrutar, tanto quanto possível, como é que este evento influenciou, e de que forma, a discussão intelectual coeva. Não temos em mira abordar o processo da empresa marítima em si, nem mesmo como decorreu o denominado encontro de culturas, mas antes definir o fenómeno cultural desencadeado pela chegada das novas geográficas. Isto é: de que maneira, e em que etapas é que as notícias do novo mundo vieram a público e ainda como se foram afirmando nos discursos alemães coetâneos. O objectivo fulcral deste

8. Günther Hamann, Der Eintritt der südlichen Hemisphäre in die europäische Geschichte, Viena, 1968. 9. Sitta Klement-Kleinschmidt, Die ostafrikanische Küste zu Beginn des 16. Jahrhunderts, entworfen nach dem Tagebuchbericht Hans Mayrs und ergänzt durch zeitgenössische Quellen, Diss. Viena, 1972. 10. Alfred Kohler, Die Entwicklung des Afrikabildes im Spiegel der einschlägigen historisch geographischen Quellen süddeutscher Herkunft, Diss. Viena, 1966. 11. William Graham Lister Randles, L'image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVIe Siécle, Lisboa, 1959. 12. Veja-se Walter Hirschberg, Monumenta Ethnographica, Frühe völkerkundliche Bilddokumente: Schwarzafrika (1508-1727), Graz, 1962. 13. Adam Jones, German Sources for West African History 1599-1669, Wiesbaden, 1983 e do mesmo Brandenburg Sources for West African History 1680-1700, Estutgarda, 1985. 14. Adam Jones, Zur Quellenproblematik der Geschichte Westafrikas 1450-1900, Estugarda, 1990; veja-se também Beatrix Heintze e Adam Jones (Ed.), European Sources for Sub-Saharan Africa before 1900: Use and Abuse, in: Paideuma, Mitteilungen zur Kulturkunde 33, Wiesbaden, 1987.

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12 INTRODUÇÃO

trabalho visa, por isso, ir de encontro à lógica e à fundamentação, aos comportamentos justificativos e às estruturas argumentativas apresentados e desenvolvidos nos escritos dos séculos XVI e XVII. Empenhando-se veemente em darem a conhecer aos seus leitores as realidades extraordinárias recém-descobertas, estes textos expressam o vivo desejo de integrar as novas geográficas na ordem do mundo. Aqui surge um vasto rol de questões, nomeadamente no que respeita ao conteúdo e significado das informações esquissadas pelos viajantes, às vias de difusão, aos mentores da divulgação, aos círculos activantes, aos interesses motivadores da recepção, bem como às profundas e crassas mudanças forjadas na visão do mundo que, indubitavelmente, se iriam instaurar nas correntes de pensamento contemporâneas. Designar o continente africano de novo mundo e apresentar a recepção dos conhecimentos referentes a esta parte do globo como exemplo de um processo cultural vivido na Europa dos séculos XVI e XVII, constitui uma tese que urge provar. Com efeito, na generalidade, o conceito de Novo Mundo aplica-se exclusivamente à América. Mas, se olharmos para as fontes do século XVI e ainda do século XVII, poderemos aferir que a individualização e a compreensão deste conceito, que originariamente seria entendido mais amplamente, é o produto de um percurso conceptual. Na verdade foram os mesmos interesses e as mesmas iniciativas que levaram as caravelas a partir da Europa e a navegar em diversas direcções ao encontro de outros continentes. O novo mundo não foi somente América. Daí que fosse mais correcto falar de Novos Mundos,15 dado que também a Ásia e - cronologicamente - e, em especial, a África faziam parte de uma mesma realidade histórica. O hemisfério sul do continente africano seria para os letrados europeus tão desconhecido como o continente que recebeu de um geógrafo alemão o nome de Américo Vespúcio. Aliás, seria este mesmo nauta que, ao testemunhar um desconhecimento total em relação a estas terras, o denominaria de Novo Mundo. África, pelo contrário e, no que respeita às regiões do norte - não podemos esquecer a história bíblica - seria já bem familiar. Mas o que existia para além destas regiões? Muito se viria a descobrir, mormente, que a África se estenderia longamente para sul, que, indo contra o esperado, era habitada. Estes seriam alguns dos dados que desencaderiam o espanto dos viajantes, 15. Sobre este conceito, veja-se Ulrich Knefelkamp e Hans-Joachim König, Die Neuen Welten in alten Büchern, Entdeckung und Eroberung in frühen deutschen Schrift- und Bild-zeugnissen, Bamberg, 1988.

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INTRODUÇÃO 13

bem como dos que recebiam os seus relatos. Nasceria, assim, a ideia de um mundo novo. Sim, como teremos ensejo de ver, os homens dos séculos XVI e XVII nem sabiam onde localizar tais insólitas informações. Assim e, uma vez que as viagens marítimas tinham um objectivo comum, os resultados e as conquistas seriam, inicialmente, apreendidos e interpretados no seu conjunto. Se se tratavam de notícias vindas da África, da América ou do Oriente pouco interessava. Na sua globalidade seriam uma estonteante novidade que merecia a maior atenção. Além disso, a América não foi a única descoberta que deu azo a que os europeus se sentissem senhores do mundo e descobrissem, com este evento, uma nova consciência. Não é nossa intenção diminuir, de algum modo, o significado da descoberta da América. Apenas consideramos que quando se escreve - como J.H.Elliot - que a Europa se teria redescoberto com a descoberta da América,16 se generaliza de alguma maneira. Não querendo deixar de salientar quão notáveis e fundamentais nos parecem as investigações de Elliott sobre o impacto da realidade ultramarina na Europa, gostaríamos de realçar que as suas conclusões, como pensamos poder comprovar, necessitam de uma contextualização. Com efeito, não é apenas a América o propulsor deste processo de avaliação e assimilação da consciência europeia. Daí que nos pareça ser o momento indicado para salientar alguns aspectos geralmente focados nas investigações sobre a descoberta da América e que merecem a nossa atenção. Vejamos um exemplo. O historiador Anthony Pagden escreve: "The impact of other discoveries had been to the areas they were discoveries in. Columbus's discovery, however, like the discovery of printing and Galileo's proof of the heliocentric theory, affected the whole of European culture."17 A sua afirmação sobre as descobertas de Cristovão Colombo é, naturalmente, um dado aceite; mas a ausência de referências a outras iniciativas ultramarinas surpreende de certa forma. Aliás, a distinsão feita em relação a este nauta não parece ter sido tão definitiva, pois, mais à frente, no seu escrito - também nas citações - serão referenciados e descritos acontecimentos considerados igualmente históricos, mormente, a circum-navegação do Cabo da Boa Esperança e a viagem de Vasco da Gama. É, por conseguinte, de admirar que Anthony Padgen associe o início do impacto dos descobrimentos na Europa apenas à descoberta da América: 16. J.H. Elliott, The Old World and the New 1492-1650, Cambridge, 1970, p. 72. 17. Anthony Pagden, 'The impact of the New World on the Old': The history of an idea, in: Renaissance and Modern Studies, vol. XXX, 1986, pp. 1-11, sobretudo, p. 7.

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14 INTRODUÇÃO

"A new world of European moral and social understanding had begun with the discovery of the new world of America."18 A posição exposta por J.E. Elliot e Anthony Padgen em relação à América deverá ser significativa e terminantemente aprofundada e até diferenciada através de uma análise da recepção das viagens de descobrimentos na globalidade. Os passos dados para inventar o novo mundo, América, como descreve Edmundo O'Gorman,19 deixam-se comprovar igualmente para outros continentes e outras regiões. E mais, não se trata apenas de um aumento de exemplos e factos, mas antes de um inconstestável reforço teórico da tese de Elliot, O'Gorman e também de Fraucke Gewecke:20 que o processo dos descobrimentos, sem querer esquecer factos particulares, não se poderá compreender se não atendermos às coordenadas europeias determinantes de todo este fenómeno; coordenadas estas que naturalmente se iriam adaptando e sofrendo alterações estruturais significativas ao longo dos anos de presença além-mar. Que a adaptação - e se quisermos a extensão - do conceito Novo Mundo a outros continentes poderá ser bem frutuoso e de toda a utilidade comprovam-no os notáveis trabalhos de Geoffroy Atkinson Les nouveaux horizonts de la Renaissance française21 e de Michel Mollat Les explorateurs du XIIIe au XVIe siècle. Premiers regards sur des mondes nouveaux.22 O processo de contacto com uma realidade estranha e desconhecida seria muito mais abrangente do que uma delimitação ao continente americano poderia dar resposta, uma vez que, ao pôr em causa as concepções preponderantes, iria obrigar os europeus a uma nova reorientação e conceptualização da visão do mundo até então vigente. Poder-se-á dizer que a descoberta de novos mundos, com as suas "novas novedades" faria estremecer os fundamentos prevalecentes, criando a necessidade de renovar as estruturas fundadoras do edifício conceptual no intuito de debuxar e compreender o mundo na sua nova cosmovisão planetária. Na verdade, com as viagens marítimas viriam à luz do dia pela primeira vez muitos factos completamente estranhos e desconhecidos que não se

18. Idem, p. 10. 19. Edmundo O'Gorman, The Invention of America, An Inquiry into the Historical Nature of the New World and the Meaning of its History, Westport, Connecticut, 1961. 20. Fraucke Gewecke, Wie die neue Welt in die alte kam, Estutgarda, 1986 também sobre o impacto da descoberta da América na Europa. Veja-se ainda F. Chiapelli (ed.), First Images of America: The Impact of the New World on the Old, Berkeley, Los Angeles, Londres, 1976. 21. Geoffroy Atkinson, Les nouveaux horizons de la Renaissance française, Genève, 1969 (1ª ed. 1935). 22. Michel Mollat, Les explorateurs du XIIIe au XVIe siècle. Premiers regards sur des mondes nouveaux, Paris, 1984.

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INTRODUÇÃO 15

tinham previsto. A estranha e estonteante novidade da existência de países e povos além-mar surgia assim como um desafio cultural, a que os europeus tinham de responder. Principalmente a multiplicidade e a diversidade desta outra realidade humana exigia, dos homens dos séculos XVI e XVII, uma nova e adequada conceptualização na geografia, na política, na ciência histórica e, também, na antropologia. De repente, tomava-se consciência de uma vasta multidão de povos em diferentes estádios de desenvolvimento, deixando para trás a velha ideia de uma só humanidade trilhando um único e similar destino. Assim mais do que nunca urgia indagar sobre a realidade humana, sobre as suas origens e as do mundo. No meio de toda esta convulsão inquiridora, as realidades africanas despertavam, como parte da novidade, assaz curiosidade e interesse. Na reconstrução de um novo edifício geográfico, histórico e antropológico não faltariam as informações sobre África; como peça da múltipla variedade, também elas pertenciam à novidade que urgia conhecer. Acompanhar o processo cultural desencadeado pelas viagens dos descobrimentos na Europa é o escopo do presente trabalho. A partir de uma grande variedade de escritos, fizemos uso de alguns que nem sempre foram reconhecidos pelos historiadores como verdadeiras e autênticas fontes. Estamos a referir-nos às relações de viagens que, dado o seu frequente teor ficcional ou literário, só ultimamente se tornaram um instrumento de trabalho válido para a ciência histórica. Mas, com estudos como os de Michael Harbsmeier,23 as relações de viagens passariam a ser consideradas como um espelho perceptivo da imagem dos seus autores e, por isso, um inestimável documento sobre as esferas de pensar e ser europeias. Estas também algumas das conclusões de Peter J. Brenner que tem vindo a chamar a atenção para o valor e significado destas fontes documentais.24 No que respeita às cosmografias e aos compêndios geográficos dos séculos XVI e XVII, assistimos a um caso similar. Na verdade, até há pouco estas obras seriam, por assim dizer, silenciadas dada a sua falta de

23. Michael Harbsmeier, Reisebeschreibungen als mentalitätsgeschichtliche Quellen, Überlegungen zu einer historisch-anthropologischen Untersuchung frühneuzeitlicher deutscher Reisebeschreibungen, in: Maçzak, Antoni/ Teuteberg, Hans Jürgen (Ed.): Reise-berichte als Quellen europäischer Kulturgeschichte, Aufgaben und Möglichkeiten der historischen Reiseforschung, Wolfenbüttel, 1982, pp. 1-31. 24. Peter J. Brenner (Ed.), Der Reisebericht, Frankfurt/M., 1989 e Jean Ceard, Jean-Claude Margolin (Ed.), Voyager à la Renaissance, Paris, 1987.

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16 INTRODUÇÃO

autenticidade, originalidade e objectividade temática. Mas que as fontes de 'menor valor', de segundo ou terceiro grau, são inestimáveis para desvendar compreensiva e claramente as teias coordenadoras de uma época é, todavia, um facto adquirido, quer para a história da geografia, como o comprovam os estudos de William Graham Lister Randles,25 quer para a história da antropologia, como o demonstra Margaret Hodgen.26 Junto das fontes de segundo e terceiro grau - consideradas 'menos científicas' -, como as cosmografias, teremos a oportunidade de analisar outras obras que, provenientes de várias disciplinas, reflectem, de igual modo e, numa fase posterior, a valorização e assimilação das novidades ultramarinas na sua globalidade - o que tem sido até agora manifestamente negligenciado. Este trabalho compõem-se de três blocos temáticos. Cada um destes apresenta um determinado tipo de fontes, de interesses e questões, o que se reflectirá, consequentemente, na sua abordagem. À primeira parte cabe delinear as iniciativas levadas a cabo além-Pirinéus no anseio de tornar a nova África um tema dos escritos alemães. Importa, assim, conhecer as vias percorridas pelas informações até chegarem à Europa Central, como é que estas se tornavam conhecidas na Alemanha, mormente, quais os círculos que davam continuidade à divulgação, bem como quais os meios a que se recorria para propagar as novidades. Não poderemos ainda descurar a actividade impressora alemã, tendo em atenção os textos que, vindos a lume neste país, se relacionavam, de algum modo, com os descobrimentos. Tanto um como outro aspecto ajudam a localizar e a definir os graus de interesse e de curiosidade dos letrados alemães pelas novas realidades africanas. Na segunda parte iremos descrever detalhada e, tanto quanto possível, tematicamente as relações de viagens sobre África publicadas em terras alemãs. Graças a estes relatos de viajantes de várias nacionalidades europeias, a estranha diversidade do continente tornar-se-ia um dado fundamental e conhecido dos meios intelectuais germânicos. Organizados segundo coordenadas topográficas, os seis capítulos visam dar a conhecer a imagem específica de cada uma das regiões africanas, tal como eram esboçadas nos séculos XVI e XVII. Este extracto adquire assim o carácter de um breve comentário das publicações dos séculos XVI e XVII, em língua alemã, dedicadas ao continente africano. 25. William Graham Lister Randles, De la Terre plate au globe terrestre, Une mutation épistémologique rapide 1480-1520, Paris, 1980. 26. Margaret T. Hodgen, Early Antropology in the Sixteenth and Seventeeth Centuries, Philadelphia, 1964.

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INTRODUÇÃO 17

A terceira parte, por fim, trata da recepção, valorização e, consequente, assimilação das informações retidas nas relações de viagens sobre o mundo ultramarino. Tendo como manancial documental os escritos dos séculos XVI e XVII, onde se abordam temas geográficos, antropológicos, religiosos, históricos e outros assuntos afins, foi nosso intuito desenhar a imagem por eles forjada de África. Isto é: na ânsia de integrar e recolocar a novidade na ordem do saber, como se filtram as informações, com que interesses se debatem as questões metodológicas, quem é que se debruça sobre estas novas, como e, com que dificuldades, se ensaiam, em cada caso particular, os primeiros passos na redefinição científica da realidade.

Bamberg, Março de 1991

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1. "Coisas Maravilhosas e Até Agora Nunca Vistas"

Caravelas portuguesas navegando no Atlântico Sul afloram terras ignotas onde encontram homens até então nunca vistos. Os seus navegadores, os primeiros a divulgar notícias dos novos mundos ao mundo, intentam fixar as suas impressões de viagem e relatar sobre os contactos iniciais, deixando um apontamento das regiões, gentes e civilizações que encontraram. A sua escrita era, por isso, na maioria dos casos, descritiva, uma vez que desejavam esquissar a vida no mar, as terras e os povos que tinham visto ou sobre as quais dispunham de informações. Eram navegadores, cronistas, comerciantes, missionários, funcionários, soldados e eruditos, entre outros, que, com as suas descrições de viagens, as suas crónicas, os seus diários de bordo e as suas histórias, efectuavam uma recolha e registo do que viam. Alguns relatam acontecimentos vividos pessoalmente, outros reunem dados adquiridos quer oralmente quer através de leituras, construindo o texto de um cronista uma outra realidade frente à descrição de um navegador. Enquanto alguns se movimentam ainda em estruturas mentais medievais, esclarecendo a novidade segundo estes mesmos valores, outros informam apenas sobre o que viram ou viveram, alguns descrevem detalhadamente regiões e povos desconhecidos, outros transmitem principalmente o dia-a-dia a bordo com os seus perigos e fascínios e vários intercalam na sua escrita um e outro aspecto numa aglomeração de diferentes dados. O conhecimento e a consequente apresentação destas informações sobre ignotas paisagens, estranhos povos e diferentes formas de organização e de comportamento nas longínquas regiões da terra constituíam induibtavelmente um forte estímulo para conhecer e compreender o mundo na sua nova dimensão geográfica e cultural. Neste ambiente de curiosidade, os textos portugueses, tornar-se-iam "os olhos da Europa e do Mundo"1 que importava consultar. Os apontamentos dos nautas lusitanos, relatos de experiências infindas, tornavam-se uma inestimável fonte de consulta, um autêntico espelho do mundo de além-mar, um oportuno e verdadeiro retrato das terras e sociedades africanas, asiáticas e americanas.

1. Luís Filipe Barreto, Caminhos do Saber no Renascimento Português. Estudos de História e Teoria da Cultura, Lisboa, 1986, p. 24.

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20 "COISAS MARAVILHOSAS E ATÉ AGORA NUNCA VISTAS"

Não obstante a abertura do mundo perpetuada pelas viagens marítimas seja um dado já adquirido na historiografia da expansão, existem ainda algumas interrogações. Isto é, ao debruçarmo-nos sobre o impacto e a assimilação e definitiva integração dos novos dados poder-se-á ainda inquirir sobre o modo como seriam recebidas estas insólitas e singulares notícias na Europa: zarpando da Península Ibérica ao longo do Atlântico, as caravelas dos Descobrimentos iriam encontrar terras e gentes até então desconhecidas numa enorme e inacreditável revelação do mundo conhecido. Que terras se encontravam para além do Equador e que gentes as habitavam, qual a verdadeira configuração do continente africano, quais as especiarias encontradas na Índia, como se estabeleciam os contactos entre os navegadores e os habitantes das diferentes regiões, quais os usos e costumes, por exemplo, na Guiné, na Etiópia, e a religião no Congo ou no Egipto? Estas e muitas mais seriam as questões postas aos nautas lusitanos por curiosos e interessados mercadores, livreiros e eruditos de toda a Europa. Qual então o papel que coube aos mareantes lusos na transmissão de tão inéditas e estonteantes informações e também, desde já, quais as re-percussões que tais estranhas notícias originariam na consciência cultural alemã nos séculos XVI e XVII?

1.1 As Viagens Marítimas Portuguesas e a Proliferação das Informações na Europa

Na Europa Central a Alemanha seria um dos países mais interessados em conhecer as incríveis novidades recém-descobertas. Logo desde o início é, com muito cuidado e atenção, que procura saber pormenores e detalhes da actividade descobridora do monarca português. Mas como iriam chegar estas notícias às cidades alemãs? Na verdade, a difusão das informações da empresa marítima encontraria rapidamente diversas vias de comunicação: comerciantes, editores e eruditos procuravam instigar a recolha e propagação de notícias no desejo de adquirir dados significativos e capazes de saciar a curiosidade. Nos finais do século XV e inícios do século XVI, muitos estrangeiros, atraídos pelas notícias extraordinárias das viagens portuguesas, se dirigiram a Portugal. É o caso de Martin Behaim, que, tendo vindo para Lisboa por volta de 1484, se iria associar ao movimento expansionista

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AS VIAGENS MARÍTIMAS E A PROLIFERAÇÃO DAS INFORMAÇÕES 21

português, quer na construção de um globo que iria dirigir na sua terra natal, Nuremberga, com o apoio local de mercadores e eruditos, quer na recolha de informações que fez junto de mareantes portugueses, como se pode testemunhar na relação que compilou dos dados fornecidos pelo mareante Diogo Gomes. Behaim teria ainda participado em viagens portuguesas e alguns historiadores conferem-lhe uma valiosa colaboração no desenvolvimento na navegação e naútica portuguesas. Advoga-se, seguindo as afirmações de João de Barros, de que discípulo do matemático e astrónomo alemão Regiomontanus (séc. XV), Behaim teria trabalhado com os mestres Rodrigo e José Vizinho na preparação do regimento do sol e na determinação de latitudes, bem como nas correspondentes tábuas de declinações solares.2 A sua estada em Portugal possibilitar-lhe-ia um contacto mais directo com as novas informações das viagens de descobrimento, resultando do seu relacionamento pessoal com os navegadores portugueses a redacção de um texto De prima inventione Guinee, escrito entre 1485-1490 e baseado exclusivamente nos depoimentos de Diogo Gomes.3 Martin Behaim retém neste escrito algumas das primeiras informações acerca da costa ocidental africana, bem como sobre as ilhas atlânticas, fixando, deste modo, de uma forma precisa e clara as primeiras impressões dos nautas portugueses respeitantes a novas regiões e a povos até então desconhecidos. No ano de 1492 regressava a Nuremberga, onde viria a produzir um mapa-mundo bem como um globo, ambos realizados certamente com o fim de apresentar em terras alemãs os novos dados dos descobrimentos.4 A sua estada em Nuremberga coincide precisamente com o ano em que Hartmann Schedel trabalhava na sua crónica-mundi, que viria a publicar,

2. Sobre Martin Behaim em Portugal, veja-se G.R. Crone, Martin Behaim, navigator and cosmographer, figment of imagination or historical personage? in: Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, Lisboa, 1961, vol. II, pp. 117-133; Günther Hamann, Der Eintritt der südlichen Hemisphäre in die europäische Geschichte, Viena, 1968, pp. 192-214 e Armando Cortesão, História da Cartografia Portuguesa, vol. I, Coimbra, 1969, pp. 27-29. 3. Veja-se Martin Behaim segundo o relato de Diogo Gomes, Do primeiro Descobrimento da Guiné, In: José Manuel Garcia (ed.), Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, pp. 25-54. 4. O globo seria financiado pelos magistrados da cidade de Nuremberga. O historiador Hermann Kellenbenz, Die Beziehungen Nürnbergs zur Iberischen Halbinseln, besonders im 15. und in der erten Hälfte des 16. Jahrhunderts, In: Beiträge zur Wirtschaftsgeschichte der Stadt Nürnbergs, Nuremberga, 1967, pp. 456-493 defende na página 468 deste seu artigo que Behaim ter-se-ai deslocado à sua terra natal com a ideia de convencer os comerciantes da cidade para a realização de uma viagem ultramarina, sendo o globo o material ilustrativo. Sobre as inscrições globo, veja-se E. G. Ravenstein, Martin Behaim, his life and his globe, Londres, 1908.

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em 1493, nesta mesma cidade alemã. Embora não se possa comprovar que o conceituado erudito alemão conhecesse os trabalhos de Behaim, é, contudo, de admitir que tenha tomado conhecimento, directa ou indirectamente, com algumas informações respeitantes às viagens marítimas portuguesas. Um outro alemão Jerónimo Münzer viria também até Portugal juntamente com mais três mercadores, Anton Herwart de Augsburgo, Kaspar Fischer e Nikolaus Welkenstein, ambos de Nuremberga para conhecer as novida-des das viagens dos Descobrimentos. Antes da sua vinda a Portugal, Jerónimo Münzer tinha escrito uma carta ao rei D. João II (1493) convidando-o a deixar que os seus mareantes navegassem para Ocidente, visto que este seria o verdadeiro caminho para alcançar em curto espaço de tempo a oriental Catay.5 O amante da antiguidade, Jerómimo Münzer julgava poder definir o caminho marítimo para a Índia através das obras de autores clássicos e, no elogio que tece aos mui sábios marinheiros por-tugueses, refere o ilustre perito da escola de Alexandria, Behaim, homem que considera capaz de preparar tal empresa. Durante a sua estada em Portugal no ano de 1494 recolheu muitas informações que reuniu num escrito. Münzer destaca, nesse seu relato, entre outros aspectos, a presença exótica e insólita de animais e plantas da Guiné que espalhados por toda a cidade de Lisboa lhe davam uma atmosfera singular. O seu vivo interesse pelo mundo ultramarino leva-o a redigir um outro texto, onde descreve a costa ocidental africana; travando contacto com pilotos portugueses ou homens directamente ligados à actividade descobridora, Münzer compilou, com esmero e cuidado, um importante relato sobre o continente africano.6 A atracção pela novidade e pelo desconhecido está bem patente neste seu texto numa contínua busca de informações capazes de saciar a grande expectativa de conhecer. Alguns anos depois, a descoberta do caminho marítimo para a Índia chamava ainda mais a atenção dos mercadores alemães para o centro coordenador da Carreira da Índia. A chegada a Calecute pela armada portuguesa chefiada por Vasco da Gama seria, por isso, notícia da crónica de Augsburgo. Assim, no trecho referente a 1499, pode-se ler que nesse ano o rei de Portugal teria alcançado e descoberto pela primeira vez

5. É possível que Martin Behaim tenha trazido esta carta aquando do seu regresso de Nuremberga. Veja-se Jerónimo, Münzer, Itinerário, Coimbra, 1932; Ver ainda Luís de Albuquerque, Os Guias Naúticos de Munique e Évora, Lisboa, 1965. 6. Jerónimo Münzer, op. cit.; veja-se ainda Friedrich Kunstmann, Hieronimus Münzer's Bericht über die Entdeckung der Guinea, In: Abh. d. Histor. Cl. d. Kgl. Bayer. Akad.d. Wissensch., Vol. 6, Munique, 1860, pp. 291-362.

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Calecute na Índia. Continua-se mencionando que o rei português teria mandado três navios para procurarem a Índia e terra desconhecida e, no regresso, o comandante, Vasco da Gama, teria trazido ao rei boas mercadorias que aí teria achado, pois "é em Calecute, na Índia, que as especiariais crescem. Trouxeram-lhe ainda pimenta e outras especiaria, mas não muito".7 O comércio das mercadorias orientais atraía assim os mercadores alemães a abrirem filiais em Lisboa, visto que aqui surgiria não só a possibilidade de adquirirem novos centros de escoamento para os seus produtos, como também poderiam dispor de um outro mercado, o das especiarias e artigos orientais. É, assim, que as famílias Fugger, Welser e Hoechstetter da cidade de Augsburgo e as famílias Imhoff e Hirschvogel de Nuremberga enviam os seus representantes para a capital portuguesa, a fim de participarem na aliciante e promissora empresa marítima.8 Reconhecidos negociantes de metais, nomeadamente, em prata e cobre, estas casas comerciais alemãs poderiam fornecer os capitais necessários para a aqui-sição de mercadorias no Oriente, constituindo naturalmente um importante e indispensável aliado para a Coroa portuguesa.9 Assim, no acordo concluído, já no ano de 1503, entre o monarca português e representantes destas famílias, o soberano reconhecia aos comerciantes alemães o direito de comprarem e venderem mercadorias em todo o reino isentos de quaisquer impostos. Mais tarde ser-lhes-ia ainda autorizada a participação em expedições portuguesas para a Índia. A frota de D. Francisco de Almeida que partia de Lisboa no ano de 1505 integrava entre as suas naus, três fretadas por mercadores alemães: a S. Rafael, a Leonarda e a S.

7. "Wann der kunig von Portugall zü dem ersten mal die scheffart auff dem mör gen Kalacut in India gefunden hat [...] die solten India und fremde land suchen [...] gütte mär, daß sie Calacut in India, da spetzerei wechst, gefunden haben. Sie brachten pfeffer und ander spetzerei mit in, doch nit vil". Chroniken der schwäbischen Städte (Augsburgo), Leipzig, 1896, vol. 5, p. 273. 8. Cf. Konrad Haebler, Die überseeischen Unternehmungen der Welser und ihrer Gesellschafter, Leipzig, 1903 e do mesmo, Die Geschichte der Fugger'schen Handlung in Spanien, Weimar, 1897; Hermann Kellenbenz, Die Beziehungen Nürnbergs zur Iberischen Halbinsel..., op. cit.; The portuguese Discoveries and the Italian and German Initiatives in the Indian trade in the first two Decades of the 16 th Century. In: Congresso International Bartolomeu Dias e a sua época (Actas), Porto, 1989, vol. III, pp. 609-623 e Die Fugger in Spanien und Portugal bis 1560. Ein Großunternehmen des 16. Jahrhunderts, 3 vols, Munique, 1990. 9. Veja-se, Vírginia Rau, Privilégios e legislação portuguesa referentes a mercadores estrangeiros, in: Fremde Kaufleute auf der Iberischen Halbinseln, ed. Hermann Kellenbenz, Colónia, Viena, 1970, pp. 15-30.

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Jerónimo.10 A bordo destas naus viajariam três alemães, nomeadamente Ulrich Imhoff, Balthasar Springer e Hans Mayr. Tanto Springer como Mayr viriam a deixar um relato sobre esta sua viagem à Índia;11 se o diário de bordo de Hans Mayr12 ficaria manuscrito, o de Balthasar Springer viria a lume não só inúmeras vezes como em diversas línguas, tornando-se um dos mais importantes documentos dos inícios da Carreira da Índia além-

10. Veja-se Franz Hümmerich, Die erste deutsche Handelsfahrt nach Indien 1505/1506, Munique-Berlim, 1922 e do mesmo, Quellen und Untersuchungen zur Fahrt der ersten Deuschen nach dem portugiesischen Indien 1505/1506, Munique 1918. Na crónica de Augsburgo aponta-se qual o contributo das casas alemãs na expedição de 1505. Encontra-se a seguinte notícia para esse ano: "Wie der kunig von Portigall etlich schiff gen Kalacut schickt und ließ etlich Teusch und Walchen acht dahin schiffen. 1505 a de 25. marzo da hatt der künig von Portigal zü Lisabona außgesant gen Kalacut 19 schiff. Mit den selbigen haben etliche teusch und walchen kaufleutt 3 schiff mitgesant auff ir kostung, darauff haben sie kauffmanschaft geladen und par gelt, das sie mitgesant haben spetzerei zü kaffen, und das in sunst darauff gangen ist auff die 3 schiff, tüt als in somm 65 400 crusadi, das ist so vil duc.; von dieser somm hatt den Walchen, das send Florentiner und Jenoveser gewesen, zügehert duc. 29 400, so hatt den Teutschen zügehort in somm duc. 36 000. Wer die Teutschen gewesen send, und wie vil jettliche geselschaft darauff gehabt hatt, statt hernach geschrieben: Der Welser und Fechlin von Augspurg und Memmingen cpa

duc. 20000

der Fugger von Augspurg cpa duc. 4000der hechstetter von Augspurg cpa duc. 4000der Grossenpröttischen von Augspurg cpa duc. 4000der Imhof von Nirenberg cpa duc. 3000der Hirtzfogel von Nirenberg cpa duc. 2000 Somm duc. 36000Item als die schiff gen Kalacut oder India komen send, da haben sie ir war oder kafmanschaft zü gelt gemacht und haben ir gelt angelegt an pfeffer und ander spetzerei, das haben sie herauß gesiert. Und im 1506. jar a die 22. mazo send die obgeschriben 3 schiff wider gen Lisabona komen. also hatt der kunig von Portigall anfangs vir sein gerechtigkait von alller spetzeri den vierten tail genomen, darnach hatt er den zwaintzigisten tail auch von allem genomen, das selb hatt er im ain kloster geben, darnach hatt er erst über 3 und etlichs über vier jar den kaffleutten ir spetzerei geantwort, nachdem die schiff komen send. Ich [Wilhelm Rem] hab von ainem glabhaftigen gehert, der auch tail daran gehabt hatt, daß sie 175 pro cent gewunen haben, das ist also zü verstan, daß sie an 100. duc. alweg 175 duc. über alle kostung gewunen haben." Chroniken der schwäbischen Städte, Leipzig, 1896, 5 vol. (Augsburgo), pp. 277-79. 11. Veja-se Christoph von Imhoff, Nürnbergs Indienpioniere. Reiseberichte von der ersten oberdeutschen Handelsfahrt nach Indien (1505/1506), In: Pirckheimer-Jahrbuch, 1986, 2 vol., pp. 11-44. 12. Hans Mayr é por vezes referenciado como agente comercial alemão, embora no texto se lhe refira como escrivão do rei português.

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Pirinéus.13 Na verdade, este texto - que nas edições flamenga e alemã seria acompanhado por ilustrações dos povos visitados -14 tal como os relatos e cartas dos comerciantes radicados em Lisboa, contribuiria signifi-cativamente para a difusão, na Europa Central, das notícias referentes às viagens dos portugueses. Um outro estrangeiro radicado em Lisboa era o impressor de origem alemã, Valentim Fernandes.15 Escudeiro da rainha D. Leonor e notário de D. Manuel I,16 Valentim Fernandes ocupou não só um destacado lugar na corte portuguesa, como desempenhou um papel relevante de agente comercial e tradutor do rei. Além disso, manteve os seus contactos com as cidades alemãs de Nuremberga e, principalmente, de Augsburgo, onde residia um grupo de humanistas, entre eles, o Stadtschreiber Konrad Peutinger, a quem Valentim Fernandes enviaria diversas informações referentes às descobertas, como se pode testemunhar, por exemplo, na carta datada de 16 de Agosto de 1505, em que presta informações sobre a preparação e os objectivos da viagem de D. Francisco de Almeida para a Índia.17 Este homem atento à descoberta de novos mundos reuniria ainda importantes informações, como sejam relações sobre Ceuta e sobre a costa ocidental africana em geral, um resumo da crónica de Zurara, o texto de Diogo Gomes e Martin Behaim, informações de navegadores respeitantes às ilhas atlânticas e um roteiro de Lisboa até à Mina bem como sobre a Índia, como seja, o diário de bordo do alemão já referenciado, Hans Mayr,

13. Die Merfart und erfarung nüwer Schiffungen und Wege zü viln onerkanten Inseln und Künigreichen/ von dem groszmechtigen Portugalichen Kunig Emanuel Erforscht/ bestritten und Ingenommen... Durante muitos anos considerou-se este texto da autoria de Américo Vespúcio, até que Henry Harrise, Americus Vespuccius - A critical and documentary review of two recent englisch books concerning that navigator, Londres, 1895 o indentificou como sendo o texto de Balthasar Springer, provando que as alterações teriam sido feitas pelo editor. Sobre estes textos, veja-se, entre outros, Renate Kleinschmidt, Balthasar Sprenger - eine quellenkritische Untersuchung, Viena, 1966. 14. As ilustrações da edição alemã seriam da autoria de Hans Burgkmair. Veja-se, Walter Hirschberg, Monumenta Ethnographica, Frühe völkerkundliche Bilddokumente: Schwazafrika (1508-1727), Graz, 1962. 15. Sobre o impressor, veja-se Artur Anselmo, Les Origines de l'Imprimerie au Portugal, Paris, 1983, pp. 153-214, do mesmo, L'activité typographique de Valentim Fernandes au Portugal (1495-1518), Paris, 1984 e ainda Konrad Haebler, Die deutschen Buchdrucker des XV. Jahrhunderts im Auslande, Munique, 1924. 16. Sobre estas actividades de Valentim Fernandes, veja-se António A. Banha de Andrade, Mundos novos do mundo, Lisboa, 1972, p. 349. 17. Publicada in: Konrad Peutinger Briefwechsel (ed. Erich König), Munique, 1923, pp. 56-58. Veja-se ainda B. Greiff, Tagebuch des Lucas Rem aus den Jahren 1494-1541, Augsburgo, 1861, p. 171.

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e uma relação anónima acerca das Maldivas, manuscrito este que se viria a encontrar na posse de Konrad Peutinger que assim teve em primeira mão uma importante colecção de textos ilustrativos dos conhecimentos geográficos adquiridos nas viagens marítimas portuguesas.18 Esta colectânea vem no seguimento do Marco Polo, publicação que Valentim Fernandes organizara a partir de 1501 e que, para além de se tratar de uma das primeiras edições europeias,19 constitue um documento ímpar da imprensa coeva. Valentim Fernandes, ao introduzir e editar outros textos relativos às viagens até ao Oriente que, não só completavam o escrito poliniano, como ainda visavam uma caracterização do momento presente, soube inseri-lo no contexto coetâneo. No prólogo dedicado a D. Manuel I, Valentim Fernandes deixa transparecer o seu vivo entusiasmo pelas viagens portuguesas.20 É o fascínio resultante de "novos e maravilhosos" descobrimentos de terras desconhecidas, de outros povos e costumes que, a partir deste momento, entraram em contacto com Lisboa, fazendo desta cidade um ponto de escala entre a Europa, a Ásia e a África.21 Na Europa Central caberia, em contrapartida, aos portugueses dar a conhecer as novidades da empresa marítima. É o caso de Damião de Góis que, ao longo de vinte e três anos, iria estabelecer contactos com os maiores vultos do meio intelectual europeu coetâneo, cultivando grandes amizades num diálogo diversificado e sem fronteiras. Damião de Góis contaria, entre os seus amigos, personalidades como Erasmo, de quem se tornou um dedicado admirador e amigo; Lutero e Philipp Melanchton, que Góis visitou em Wittenberg; o historiador Beatus Renanus, o geógrafo e músico Henricus Glareanus e o geógrafo Sebastian Münster seriam alguns exemplos a mencionar. Góis viria ainda a corresponder-se com o erudito Bonifazius Amerbach, amigo e editor de Erasmo, com o cardeal e humanista italiano Pietro Bembo e com o pontífice Paulo III.22 O convívio

18. Veja-se J. A. Schmeller, "Über Valenti Fernadez Alemã" In: Abh. d. Philos.-Philolog. cl. d. königl. bayer. Akad. d. Wiss., 4 vol., 1 parte, Munique, 1844 e O Manuscrito de Valentim Fernandes, ed. António Baião, Lisboa, 1940. 19. Anteriores traduções de Marco Polo datavam do ano de 1477 em Nuremberga, 1481 em Augsburgo e 1485 em Anvers. 20. O texto inicia com as palavras do apóstolo S. Lucas, 5, 26: "Vimos oje coisas maravilhosas". Valentim Fernandes, Marco Polo, Lisboa, 1502, ed. Lisboa, 1961. 21. Esta publicação inclui para além do prólogo e do texto de Marco Polo, a relação do veneziano Nicolo de Conti, que viajara nos inícios do século XV até à Índia, possuindo o rei português uma cópia da relação que este entregara ao papa Eugénio IV e uma carta do comerciante italiano Hieronimus di Stefano de Génova sobre o Cairo e Aden. 22. Veja-se Amadeu Torres, (ed.), As cartas latinas de Damião de Góis, Paris, 1982.

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com estes eruditos possibilitar-lhe-ia um conhecimento das correntes inte-lectuais e religiosas em debate na Europa, atmosfera esta que vinha de encontro ao seu espírito aberto e interessado pelas "coisas da humanidade". Góis não se limitou, no entanto, a absorver todas as informações e influências, sem que ele próprio colaborasse para este clima de permuta de ideias. A convivência com diversos humanistas não foi simplesmente a de um espírito interessado e passivo, que apenas se deixava informar junto dos homens de letras, instruindo-se sobre as suas actividades literárias e culturais, mas pelo contrário a de alguém que procurava igualmente contribuir para um amplo e adequado conhecimento da humanidade. Damião de Góis representava um país que acabara de recolher novos dados sobre o orbe terráqueo e as gentes que o habitavam, sendo, pois, os Descobrimentos Portugueses não só um dos temas que discute além-fronteiras - como se atesta na sua correspondência -,23 mas também um dos principais motivos para a publicação das suas obras. A pedido do arcebispo sueco, Johannes Magnus, com quem debateu temas teológicos, publicaria, em Antuérpia, uma tradução latina da relação que o etíope Mateus deixara em Portugal aquando da sua visita a Lisboa.24 Em Lovaina, Góis traria a lume um opúsculo sobre os acontecimentos ocorridos na defesa de Diu contra os Turcos, do que se voltará a ocupar dez anos mais tarde.25 Ambas as publicações visam divulgar os feitos dos portugueses na Índia, procurando construir uma imagem clara e concisa destes eventos históricos capaz de esclarecer e saciar a curiosidade europeia face às actividades portuguesas no Oriente. Alguns anos mais tarde edita um outro texto, desta vez , sobre a Etiópia com o intuito de

23. Sobre o seu relacionamento, entre outros, com Beatus Rhenanus e as suas discussões acerca da religião etíope, veja-se Albin Beau, As relações germânicas do Humanismo de Damião de Góis, Coimbra, 1941, p. 135. 24. Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Joannis ad Emanuelem Lusitaniae Regem, Anvers, 1532 (Lovaina 1533). Damião de Góis teria a oportunidade de conhecer, em Dantzig o prelado católico e historiador, Johannes Magnus que, se refugiara em Roma, uma vez que na sua terra natal, a Suécia, o perseguiam. O seu interesse pela religião do Preste João seria o assunto de longas conversas com Damião de Gós, de quem esperava aprender mais pormenores. Veja-se Amadeu Torres, op. cit., pp. 233-34 e Jean Aubin Damião de Góis et l' Archevéque d'Upsal, In: José V. de Pina Martins (ed.), Damião de Góis. Humaniste européen, Braga, 1982, pp. 254-328. 25. Commentarii Rerum gestarum in India citra Gangem a Lusitanis, anno 1538, Lovaina, 1539, texto que viria a lume em versão alemã, dois anos depois, na cidade de Augsburgo; ainda De Bello Cambaico, commentari três, Lovaina, 1549.

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apresentar detalhada e pormenorizadamente as particularidades do cristianismo etíope.26 A publicação desta obra ia de encontro a uma grande curiosidade pelas terras da Etiópia e a um interesse particular pelas questões teológicas, compreensível numa época de atribulada discussão religiosa. Para além disso, estas publicações correspondiam a uma crassa necessidade de conhecer os insólitos e extraordinários dados da configuração do mundo. É significativo o reconhecimento, que as obras deste humanista português despertam em terras além-Pirinéus, como se pode comprovar pelo número de edições verificadas em toda a Europa, bem como pelas traduções feitas dos seus textos.27 Damião de Góis é, sem dúvida, um dos autores portugueses mais conhecido e referenciado em obras estrangeiras, sendo inúmeras vezes citado como fonte básica para a redacção de narrativas históricas ou obras de carácter geográfico.28 Um dos últimos textos da autoria de Damião de Góis a ser publicado no estrangeiro nasce de uma descrição, a seu ver, polémica e inadequada da Península Ibérica da pena do geógrafo e teólogo Sebastian Münster. As afirmações deste conhecido autor alemão sobre a nação portuguesa provocaram uma reacção patriótica de Damião de Góis que, ao publicar Hispania,29 procura repor a verdade, criticando a incorrecção e a superficialidade das informações anteriormente impressas. Sebastian Münster, que Damião de Góis tinha conhecido em Basileia juntamente com Simon Grynaeus - autor de uma colectânea sobre os Descobrimentos -,30 viria após esta intervenção a corrigir o seu texto. Os humanistas alemães inauguram um largo e aceso debate sobre as viagens marítimas ibéricas e as suas cartas reflectem o grande impacto causado por esta empresa descobridora.31 Homens como o já referenciado Konrad Peutinger, membros do círculo humanista de Nuremberga

26. Fides, Religio, Moresqve Aethiopvm, Lovaina, 1540. 27. Veja-se Francisco Leite Faria, Estudos Bibliográficos sobre Damião de Góis e a sua época, Lisboa, 1977. Só no que respeita à obra Fides, Leite Faria menciona 16 edições completas e 11 incompletas. 28. É o caso, por exemplo, de Sebastian Münster, que se serve da obra de Damião de Góis para redigir, na Cosmographia, o capítulo sobre a Etiópia. A certa altura pode-se ler: "Quem quiser ler algo mais sobre o seu credo e ser, deve ver o livro de Damianus de Portugal, que foi publicado no ano de Cristo 1541, do qual retirei as passagens principais" (usei a edição Basileia, 1588, Folha Mccccxx) 29. Damião de Góis, Hispania, Lovaina, 1542. 30. Simon Grynaeus, Novus Orbis, Basileia, 1532. 31. Veja-se Dieter Wuttke, Humanismus in den deutschsprachige Ländern und Entdeckungsgeschichte 1493-1534, Bamberg, 1989.

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Hartmann Schedel, Hieronymus Münzer, Willibald Pirckheimer ou Johannes Cochläus, Jobst Ruchamer, Joachim Vadianus e Christoph Scheurl, entre outros seguem atenta e aplicadamente o desenrolar dos acontecimentos históricos, intentando permanecer em contínuo contacto com as últimas novidades.32 A 19 de Março de 1507, o ecleseástico de Bamberg, Lorenz Behiam, escreve entusiasticamente ao humanista e amigo Willibald Pirckheimer a respeito de um texto publicado em Roma, apenas, há cinco meses em que se relatam algumas das actividades portuguesas no Oriente.33 Também Albrecht Dürer aponta zelosamente, no seu diário de viagem aos Países Baixos,34 as coisas maravilhosas e novas vindas de África e da Índia que viu e conheceu na cidade onde termina a rota de Calecute: Antuérpia. Além disso, este artista viria a tornar famoso o rinoceronte enviado pelo rei português ao papa ao fazer um desenho deste animal que ele próprio nunca viu, mas do qual viu um desenho.35 Hartmann Schedel, em Nuremberga, recolhe informações para a sua crónica. Martin Behaim lança a ideia de construir um globo, onde se debuxem os dados e os conhecimentos dos nautas portugueses. O autor do Elogio da Loucura envolve-se em longos debates sobre o cristianismo em regiões longínquas (dos Lapões até á Etiópia) numa reflexão sobre o hieratismo religioso recém-descoberto. Konrad Peutinger, o erudito de for-mação humanista e secretário do Imperador Maximiliano I, defende a participação das casas comerciais alemãs nas viagens portuguesas para a Índia.36 Os Fugger, uma das famílias de mercadores mais influentes do sul da Alemanha e de grande poderio no comércio ibérico, criam, com o seu hábito de coleccionar escritos e livros, uma das mais importantes

32. Veja-se Elisabeth Rücker, Nürnberger frühhumanisten und ihre Beschäftigung mit Geographie. Zur Frage einer Mitarbeit von Hieronymus Münzer und Conrad Celtis am Text der Schedelschen Weltchronik, In: Rudolf Schmitz e Fritz Krafft (Ed.), Humanismus und Naturwissenschaft, Boppard, 1980, pp. 181-192. 33. Trata-se provavelmente do texto Gesta proxime per Portugalenses in India Ehiopia et allis orientalibus terris a serenissimo Emanuel, Portugalie Rege. O curto intervalo de tempo entre a publicação e a leitura, não esquecendo a distância de alguns mil kilómetros, ilustra, sobremaneira, o interesse pelas notícias e o intenso diálogo que os letrados europeus desenvolviam. Veja-se, Willibald Pirckheimer Briefwechsel, ed. Emil Reicke, 2 vols., Munique, 1940-1956, 1 vol., pp. 516-18. 34. Albrecht Dürer, Schriften und Briefe, Leipzig, 1982, pp. 55-101. 35. Sobre a influência de motivos exóticos na arte, veja-se Götz Pochat, Der Exotismus während des Mittelalters und der Renaissance, Voraussetzungen, Entwicklung und Wandel eines bildnerischen Vokabulars, Stockholm, 1970. 36. Entwürfe für Schreiben an Maximilian. In: Conrad Peutinger. Beiträge zu einer politischen Biographie. (Ed.) Heinrich Lutz, Augsburgo, s. d.

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bibliotecas da Idade Moderna.37 Numa inesgotável sede de saber recorrem às redes de contactos comerciais que espalharam por toda a Europa, a fim de obterem as publicações coevas, compilando vestígios e testemunhos do mundo; Jacob Fugger que conhecia Damião de Góis, procurou, junto de Peutinger, que este pudesse ler o Manuscrito de Valentim Fernandes. As primeiras notícias reveladas pelos mareantes ibéricos continham muitas outras verdades acerca da terra e dos homens. Os nautas falam de outros contornos dos até então conhecidos no que respeita às costas africanas, afirmam que a região ao sul do Equador seria habitada e contam que afloraram um novo continente e muitas outras regiões totalmente desconhecidas, dados estes que se iriam tornar num vital fundamento para novas reflexões epistemológicas; e nestas reflexões participavam humanistas de toda a Europa.38 No dealbar do século XVI, as viagens marítimas tornavam-se um assíduo tema da imprensa europeia; inicialmente pequenos textos informativos, como o pequeno relato sobre o melhor caminho entre Lisboa e Calecute, vindo a lume em 1505.39 Neste escrito sobre a Índia, terra onde a pimenta cresceria "semelhante às uvas",40 mencionava-se, desde já, que, a partir de agora, os portugueses tinham nas suas mãos o negócio das especiarias, que os venezianos até aqui costumavam trazer por terra.41 É tambem neste mesmo ano que a viagem de Américo Vespúcio, realizada com o apoio do rei D. Manuel I, vinha a público. O texto que o piloto enviara para Lorenzo di P. Francesco de' Medici, participando-lhe a

37. Veja-se Paul Lehmann, Eine Geschichte der alten Fuggerbibliotheken, 2 vols, Tübingen, 1956-1960. 38. Veja-se Michel Mollat, Humanisme et Grándes Découvertes (XVe -XVIe Siècles), In: Francia, vol. 3, Munique, 1976, pp. 221-135; Luís de Matos, La Littérature des Découvertes,in: Michel Mollat e Paul Adam (Ed.), Les Aspects Internationaux de la Découverte Océanique aux XVe et XVIe siécles, Paris, 1966, pp. 23-30 39. Den rechten Weg auß zu faren von Lißbona gen Kallakuth. von meyl zu meyl. Auch wie der kunig von Portigal yetz newlich galeen vnd naßen wider zu ersuchen vnd bezwingen newe land vnnd jnsellen durch kallakuth in Indien zufaren. Durch sen haubtmann also bestelt als hernach getruckt stet gar von seltzsamen dingen, Nuremberga, 1505 (Georg Stuchs). Fác-simile, ed. John Parker, Mineapolis, 1956. 40. "Item vermerckt wy alle spetzerey in jndia wechst pfeffer wechs trauben weyß gleich wie die holderper/ sy springen zu zeitten grüne gleich wie er von pawm kumpt gen lißwona". 41. Na crónica de Augsburgo da autoria de Clemens Sender encontra-se a seguinte referência para o ano de 1503 "Es sind von Venedig gen Augspurg brieff komen, wie 23 schiff werent aus Calacut gen Lisabona komen, die spetzerei fürten. die merfart thet der kinig von Portugal, dann er lange jar het gesücht mit groser arbait und kosten, bis er den weg gen calacut, da der pfeffer wegst, erlernet hat. es was den Venediger fast wider. Chroniken der schwäbischen Städte, Leipzig, 1894, 4 vol. (Augsburgo), pp. 100-101.

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descoberta de um Mundus Novus viria a lume em edições latinas 42 e alemãs: Von der neü gefunden Region so wol ein welt genempt mag werden, durch den christlichen künig von Portigal wunderbarlich erfunden.43 A actividade descobridora dos portugueses despertava, assim, um largo interesse, como o relato de Vespúcio. Mas não só neste caso. Conhecemos outros exemplos como o da carta do rei D. Manuel I ao cardeal Alpedrinha, D. Jorge da Costa, no momento embaixador de Portugal em Roma. Esta carta, em que o monarca português transmite ao cardeal os êxitos da viagem de D. Francisco de Almeida, seria logo publicada nesta cidade italiana, bem como um ano mais tarde (1507), em latim, nas cidades de Colónia e Nuremberga e também numa edição em língua alemã nesta mesma cidade do sul da Alemanha.44 As cartas do rei Venturoso ao papa Júlio e ao papa Leão X viriam igualmente a lume em inúmeras edições.45 É o que acontece com a carta de 1513, em que o soberano português relata ao pontífice os feitos de Afonso de Albuquerque, da qual se conhecem vinte e quatro edições latinas e quatro alemãs.46 A juntar-se a estas publicações de carácter notícioso viriam, pouco a pouco, outras obras cujo objectivo seria dar uma imagem global das viagens. É o caso dos Paesi Nouamente retrouati et Nouo Mondo da Alberico Vesputio Florentino intitulado47 que, quer em latim quer em

42. Américo Vespúcio, Mundus Novus, Augsburgo, 1504. Sobre as várias edições, veja-se José Alberto Aboal Amaro, Amerigho Vespucci. Ensayo de Bibliografia Crítica, Madrid, 1962. 43. Basileia, Fueter 1505; outras ed. Leipzig 1505: Das sind die new gefunden menschen oder volcker In form und gestalt. Als sie hier stend durch den Christlichen Künig von Portugall, gar wunderlich erfunden. Sobre as diferentes edições, veja-se, Die wunderbare Neue Welt. German Books and Related Materials about the Americas in the John Carter Brown Library. 1493 to 1840, Providence, 1988. 44. A edição latina intitulada Gesta proxime per Portugalenses in India Ethiopia alijs orientalibus terris; e a alemã: Geschichte kurtzlich durch die von Portugalien jn India/ Morenland/ vnd andern erdtrich der auffgangs von dem durchleutigisten Emanuele Konig portugalie ... 45. A Epistola serenissimi Regis Portugalie ad Iulium papam Secundum de victoria cõtra infideles, Roma, Paris, 1507. No mesmo ano em Estrasburgo na oficina de Johan Knoblach com o título Taprobane Insule Orientalis Ethiopis acquisitio... Um ano mais tarde em alemão em edição isolada (s.L.): Ein abschrift eines sandtbriefes so vnserm allerheyligsten vater dem papst Julio e ainda na antologia Newe unbekanthe landte..., Nuremberga, 1508. 46. Epistola... De Victoriis .. in India & Malacha, Roma, Viena, Colónia, Estrasburgo (?) Nuremberga, Erfurt, 1513; Basileia, 1532 (Novus Orbis). Em alemão: Abtruck ains lateinischen sandtbrieues an babstliche heiligkeit... Augsburgo e Nuremberga 1513; Estras-burgo, 1534 (Die New Welt). 47. Vicenza, 1507.

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alemão, 48 poderiam informar os leitores sobre as viagens ao longo da costa africana até à Índia, bem como sobre a inesperada descoberta de um novo continente. Obras como esta não seriam lidas sem que gerassem profundas reacções. Numa carta datada de 1514, o humanista Willibald Pirckheimer dirigindo-se ao conde Hermann von Nuenar exalta o enorme significado da des-coberta do caminho marítimo para a Índia. Ao sublinhar a passagem do Atlântico Sul, Pirckheimer quer saber se o compasso funciona ao sul do Equador e ainda como seria utilizado, questão esta que coloca ao conde von Nuenar, de quem aguarda uma explicação cuidada.49 Numa carta ao seu amigo Rudolf Agricola, Joachim Vadianus, por sua vez, constata o facto de que, após as navegações de Portugal, se poderia afirmar que a terra seria redonda. Joachim Vadianus seria um dos primeiros autores, que em face das observações dos navegadores portugueses, iria pôr em causa a teoria prevalecente da distribuição das águas na terra.50 Baseando-se na circum-navegação de África pelos portugueses, Joachim Vadianus comprova a existência de vida humana nas regiões ao sul da linha equatorial, facto este que, até há pouco, iria contra todas as concepções existentes. Na cartografia encontramos também rapidamente ressonâncias da empresa marítima. Nos mapas-mundi que o geógrafo Martin Waldseemüller publicou em 1507 constata-se desde já uma crassa influência das viagens dos Descobrimentos. E a sua Geografia (1513), editada em primeira linha como uma reedição de Ptolomeu, tornar-se-ia um verdadeiro marco da cartografia europeia, uma vez que às vinte e sete tábuas do geógrafo alexandrino, Waldseemüller associa cinco referentes aos descobrimentos portugueses e espanhóis. Um outro exemplo é o impressor Johan Grüninger que pede a Willibald Pirckheimer que lhe envie informações sobre o Cabo da Boa Esperança, pois também ele necessita de material para a edição de uma nova Carta marina.51 Grüninger escreve assim a um compatriota, também impressor, Anton Koberger, relatando-lhe que, com a ajuda de Pirckheimer e de outros historiadores e mercadores, pensa vir a obter mais informações e

48. Itinerarium.Portugallensium e Lusitania in Jndia, Milão, 1508, Basileia, 1532, 1536.; alemão: Newe unbekanthe landte.. Nuremberga, 1508. 49. W. Pirckheimer, Briefwechsel, op. cit., 2 vol., pp. 326-27. 50. Publicada na sua edição de Pompónio Mela, Viena, 1518, (primeira 1512), pp. 124-25. 51. J. Grüninger a W. Pirckheimer 14 Junho 1524. In: Oskar Hase, Die Koberger. Eine Darstellung des Buchhändlerischen Geschäftsbetriebes in der Zeit des Überganges vom Mittelalter zur Neuzeit, Leipzig, 1885, pp. CXXIX-CXX.

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gravuras para a Carta marina.52 Aqui temos um exemplo claro e preciso de como os intelectuais europeus buscavam ansiosamente novas informações sobre as alterações geográficas e culturais do mundo, mantendo por isso, um permanente e intensivo intercâmbio possível graças à epistologia, um dos mais profícuos e frutuosos meios de comunicação. O impressor Johann Grüninger residente em Estrasburgo, estabelece, com efeito, con-tactos com o seu colega, Anton Koberger e com o historiador Wilhelm Pirckheimer, ambos de Nuremberga, a fim de obter o material de que precisa. Além disso, refere que irá receber a ajuda de comerciantes que igualmente se prestaram a mandar-lhe material. Numa outra carta, datada de 26 de Fevereiro de 1525, Grüninger escreve que aguarda notícias e informações de comerciantes radicados em Lisboa, que lhe prometeram arranjar dados in loco, mormente sobre Calecute.53 A distância não representa, pois, qualquer obstáculo para estes homens sedentos de saber. Quer sejam livreiros, comerciantes ou eruditos, eles associam as suas iniciativas numa crassa vontade de conhecer mais novidades referentes às descobertas além-mar e, por conseguinte, à configuração do mundo ultramarino; num esforço colectivo estes amantes das letras são capazes de superar as distâncias que os afasta do centro das novidades.54 Em muitos casos eram os mercadores que mais facilmente se poderiam dirigir às fontes de informação originais, tendo pois a possibilidade de adquirir em

52. J. Grüninger a H. Koberger 25. Julho 1524. In: Oskar Hase, op. cit., p. CXXXI. "[...] hoff als vff den ptholemeus vnd vff daß Carthamarina büch würt ein Cronic der Welt, ob ir hulffen darzü durch birckheimer vnd andere hystorici vnd kaufflüt me zu erfarn auch von kauffluten wie ich üch etlich figuren u besichtigen geschickt, mein es würd ein kürtzwylig buch werden" Grüninger refere-se à carta Marina de Lorenz Fries, como também às edições de Ptolomeu da autoria de W. Pirckheimer. Sobre as publicações de J. Grüninger, veja-se Jean Mueller, Bibliographie Strasbourgeoise. Bibliographie des ouvrages imprimés à Strasbourg (Bas Rhin) au XVIe siècle, 3 vols., Baden-Baden, 1981-1986, em especial 2 vl., pp. 22-50. 53. J. Grüninger a W. Pirckheimer 26 Fevereiro 1525. In: Oskar Hase, op. cit., p. CXXXIX. "[...] ich hab ein newe Cartha marina hüpsch lon schneiden die ir gern sehen werden wer vff diß meß getrukt worden, hat vorm ptholomeus nit sein mögen so bald sie uaß ist wil ich ewer wirde ein hüpsche schenken vnd uch biten zü helfen mit dem büch darüber wil ich uch mein meinung hernach schreiben, ich hab vil stett, lüt, sitten vnd wesen in fromden land, Kaliqut hüpsch conterfeit vnd als geschnitten aber kan lißbona noch nit hon ob kauflüt by üch wern daß mans zuweg brecht, ich hab vil jntineraria, ich mein meinung auch tütsch zu truken." 54. Um exemplo muito significativo é o da cidade de Nuremberga, que contava, por um lado com extenso rol de contactos espalhados pelo mundo e, por outro lado, aqui residia um grupo de pessoas vivamente interessadas nas novidades das viagens de descobertas. Veja-se Ute Monika Schwob, Kulturelle Beziehungen zwischen Nürnberg und den Deutschen im Südosten im 14. bis 16. Jahrhundert, Munique, 1969 e Lore Sporhan-Krempel, Nürnberg als Nachrichtenzentrum zwischen 1400 und 1700, Nuremberga, 1968.

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primeira mão, junto de mareantes ou de personalidades relacionadas com a empresa descobridora, os novos dados sobre o mundo.55 Às viagens portuguesas reservava-se, com efeito, um lugar destacado na discussão cultural além-Pirinéus. Para os letrados europeus estava fora de dúvida que o conhecimento advindo dos descobrimentos ibéricos esti-mulava uma nova dinâmica epistemológica. Ao requerer uma confrontação com as representações até então existentes dos limites e perfis da humanidade e do mundo, a ciência exigia um novo horizonte e uma nova atitude científica. Os múltiplos empenhos dos humanistas no sentido de formular uma imagem verdadeira e exacta sobre o mundo e a humanidade reclamam a recepção e transmissão de informações das várias áreas do saber, nomeadamente, do mundo recém-descoberto. Conscientes de que não só o mundo da Antiguidade Clássica lhes traria o verdadeiro saber e capazes de se deixar embriagar por novos princípios e parâmetros metodológicos, os eruditos cultivavam o diálogo como veículo possível de comunhão intelectual no conhecimento das "coisas da humanidade".

55. Lucas Rem, um dos agentes das casas comerciais alemãs em Lisboa, iria, depois do seu regresso à Alemanha, estreitar o relacionamento entre Erasmo e Damião de Góis. Sobre Lucas Rem, que era familiar do cronista da cidade de Augsburgo, Wilhem Rem, veja-se B. Greiff, Tagebuch des Lucas Rem aus den Jahren 1494-1541, Augsburgo, 1861. Na correspondência coeva encontram-se numerosas referências ao estreito relacionamento entre eruditos e comerciantes. Não podemos negligenciar que os mercadores, dada a sua profunda formação humanista, seriam, muitas vezes, - e gostariam de se compreender como tal - verdadeiros representantes culturais, veja-se Götz Freiherrr von Pölnitz, Augsburger Kaufleute und Bankherren der Renaissance, In: Augusta 955-1955, Augsburgo, 1955, pp. 187-218. Um dos exemplos mais claros desta simbiose entre a actividade comercial e a propagação de informações encontra-se nos Fugger=zeitungen; espalhados pelos diversos centros comerciais, os agentes dos Fugger enviavam cartas, por exemplo, da Índia, Lisboa, Amsterdão, ou Espanha com as notícias mais actuais: Sobre esta colecção, veja-se Victor Klarwill, Fugger=zeitungen. Ungedruckte Briefe an das Haus Fugger aus den Jahren 1568-1605, Viena, Leipzig, Munique, 1923.

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1.2 A Primeira Fonte dos Descobrimentos: A Antologia da Novidade

A tradução de várias obras portuguesas e espanholas, na Alemanha, iria despoletar decisivamente a difusão de uma grande quantidade de informações, permitindo que, também neste país, se pudesse estabelecer um adequado contacto com a realidade descoberta além-mar. Vistos na sua função de repórter da novidade, os textos ibéricos eram tidos em grande consideração na Europa, neste caso na Alemanha, que os iria requestar penhoradamente na busca de material sobre os novos acontecimentos históricos. A leitura de obras, onde se anotam as primeiras impressões ao longo do Atlântico e se informa sobre o fascinante Oriente e a curiosa América, requeria-se indispensável. Ao traduzirem os textos, os autores alemães estavam conscientes da importância cultural e científica deste seu gesto: darem a muitos leitores a possibilidade de verem as novas realidades físicas e humanas. Na verdade, estes escritos, particularmente, as relações de viagens, surgiam cada vez mais como inestimáveis fontes da empresa marítima. Assim, e para que se efectuasse uma divulgação efectiva realizar-se- -iam várias publicações com o objectivo de dar a conhecer, se possível, na íntegra e, em primeira mão, estes eventos históricos. O vivo interesse suscitado por estas obras reflecte-se na frequência das edições alemãs, que apesar de algum distanciamento entre a publicação original e a tradução, se publicam dentro de um prazo relativamente curto e em várias edições. Um dos principais motivos para a publicação destes textos era, segundo os seus autores e editores, a necessidade de transmitir rapidamente as novas sob o mundo e a humanidade. Os autores salientam precisamente a vontade de divulgar obras de grande riqueza informativa e documental que se deveriam publicar quanto antes dado que revelam as "coisas maravilhosas e até agora nunca vistas", principalmente "ilhas maravilhosas, bonitas e divertidas com gente nua e negra, com maneiras e usos estranhos e nunca vistos".1 A divulgação de informações manifesta-se urgente, visto que estas aventam novas verdades, verdades estas que curiosamente apresentavam duas facetas: por um lado são insólitas notícias de gentes que não se sabe

1. "[...] wunderbarliche vnd byshere vnerhörte dinge [...] wunderbarliche schöne vnd lustige inseln/ mit nackenden schwarzen lewten seltzamer vnd unerhörten sitten und weyse" Newe Unbekanthe landte..., Nuremberga, 1508, prólogo.

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se se podem chamar de gentes ou não, por outro lado o relato de homens que tinham visto essas terras e gentes com os seus próprios olhos. De facto, a novidade expressa nestes textos apresentava-se simultaneamente como algo de maravilhoso e de estranho, extraordinário e desconhecido. Inesperadamente os navios afloram terras e ilhas maravilhosas agora povoadas por povos de costumes insólitos e bem diferentes dos conhecidos. Esta dualidade de algo extraordinário e, ao mesmo tempo, estranho e diferente, dado que desconhecido, vai atrair a admiração e o interesse de muitos letrados. Apresentar as novas verdades constitue, pois, a preocupação primária do tradutor ou do editor. Além disso, os editores entendem ainda ser da sua responsabilidade publicarem obras, como as relações de viagens, capazes de contribuir para uma certa rectificação ou complementarização de conceituados traços da configuração do espaço geográfico terrestre. Na verdade, as viagens marítimas forneciam novos conteúdos no que respeita ao horizonte já conhecido, definindo outros debuxos provenientes da experiência empírica. Os autores-viajantes tinham visto com os seus próprios olhos o que transmitem nas obras e, daí que nos títulos e prólogos das traduções se sublinhe a confiança completa na veracidade dos testemunhos formulados. Os editores e tradutores tecem, por isso, nas suas introduções elogiosas considerações às "navegações", mencionando, em especial, o enorme significado que representam para a humanidade os progressos alcançados pelos portugueses nas suas viagens por mares desconhecidos e ao longo de margens costeiras nunca anteriormente visitadas; na sua opinião, estas suas viagens viriam a permitir o relacionamento e as trocas com outros povos, de forma a que todo o mundo se visse como num espelho. O avanço pelo Atlântico possibilitara, a seu ver, um diálogo civilizacional entre as várias partes do mundo, facto que não passaria despercebido pelo que os autores alemães exprimem acesos e rasgados louvores à arte de navegar, referenciando com apreço as árduas iniciativas de portugueses e espanhóis. Olhar e compreender o mundo nesta sua nova dimensão torna-se o lema dos letrados coevos. Já no dealbar do século XVI, o humanista alemão Simon Grynaeus apontava a necessidade de conhecer todos os povos do mundo, frisando que o conhecimento de outros povos, outros costumes e credos seria, a seu ver, mais proveitoso do que a leitura de "muitos outros livros que nos nossos tempos se teriam escrito sobre a fé".2

2. "[...] viel andern Büchern die zu unsern Zeitten von dem Glauben geschrieben wurden". Simon Grynaeus, Die New Welt..., Estrasburgo, 1534, prólogo.

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A recepção da cultura dos Descobrimentos demora, no entanto, algum tempo, decorrendo em várias etapas representativas do ambiente cultural germânico. Inicialmente importa reunir um vasto caudal de dados capazes de formular uma primeira visão de conjunto dos acontecimentos. Compilando, lado a lado, os textos mais significativos das viagens de Descobrimentos, poder-se-ia delinear uma visão geral do encontro com a novidade elaborando-se, o que poderemos chamar, a primeira antologia das viagens marítimas. A descoberta de novos mundos, inicialmente propagada por nautas, mercadores, livreiros e eruditos em pequenos textos informativos, viria a ser coligida numa publicação exemplar. Tendo em mente apreender o desenrolar do percurso histórico organiza-se uma visão de conjunto das diferentes etapas de expansão no mundo ultramarino. Em 1508 vinha, pois, a lume em Nuremberga a Newe unbekandte..., versão alemã de um título publicado no ano anterior na Itália: os Paesi novamente retrovati.3 Tal como Jobst Ruchamer, o tradutor, afirma no seu prólogo é a novidade das informações que o leva a verter rapidamente este livro para o alemão na ânsia de que outros leitores possam conhecer este mundo novo. O facto de se tratar de realidades completamente ignoradas, como a existência de ilhas habitadas de homens, afinal, adamitas surge como algo de extraor-dinário e estonteante, até então considerado impossível. Daí que informações como esta venham a significar, por um lado, a introdução de dados contrários aos defendidos pelos autores da Antiguidade Clássica,4 logo em contradição com eles, por outro lado, venham a inaugurar uma nova ordem do saber. Os novos dados ao formularem que a terra a sul da linha equatorial seria habitada - teoria refutada pelos autores da Antiguidade Clássica -, geravam, indubitavelmente uma confrontação com os quadros do saber herdado e encorajavam ao conhecimento do mundo na sua dimensão universal. As viagens dos Descobrimentos avivam a confiança no ser humano que não hesita em avançar por mares e terras ignotos, contribuindo para a criação de um mundo novo. Esta obra em seis livros apresenta nos dois primeiros a relação de Luís de Cadamosto sobre a sua viagem ao longo da costa ocidental africana até ao Senegal e Cabo Verde, de onde seguiria, até ao rio Gâmbia, então acom-

3. Fracanzio da Montalboddo, Paesi novamente retrovati..., Vicenza, 1507. 4. Sobre os conhecimentos relativos ao continente africano antes do descobrimentos portugueses, veja-se Michael Herkenhorff, Der dunkle Kontinent. Das Afrikabild im Mittelalter bis zum 12. Jahrhundert, Pfaffenweiler, 1990; Luís de Albuquerque, Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, 3ª edição revista, Lisboa, s.d., em especial, pp. 105-179.

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panhado pelo genovês Antoniotto Usidomare. No texto de Luís de Cadamosto teremos o ensejo de conhecer a primeira descrição referente a estas regiões da costa africana, bem como o diálogo estabelecido entre os viajantes e os povos costeiros, sendo por certo esta a razão da sua inclusão nesta obra. Aqui encontraremos ainda os textos referentes às expedições de Pedro Álvares Cabral, Américo Vespúcio e Cristovão Colombo, como também cartas escritas, em grande parte, durante a viagem de Pedro Álvares Cabral, entre estas, uma epístola do rei português ao sumo pontífice, onde se afloram questões relacionadas com o comércio das especiarias. Por fim, esta edição acrescenta uma tabela relativa à origem e ao preço de cada um dos produtos orientais, distanciando-se curiosa e significativamente do texto original. A composição desta obra, ao desenhar a costa ocidental africana, reconstruir a imagem da Índia e traçar o perfil de um novo continente segundo descrições de viajantes que viram e descreveram os locais visitados, constituiria um documento ímpar para o conhecimento das novas regiões e gentes, isto é, para a definição do encontro com a novidade. Esta antologia, vinda a lume em várias edições, permaneceria uma composição única, a que se adicionariam alguns dados mais recentes. É o caso da edição de 1532/1534,5 em que a antologia será a grande parte do corpus documental. Simon Grynaeus, o seu autor,6 com vista a apresentar o mundo na sua totalidade, reedita esta antologia, a que irá compilar interessantemente textos concernantes ao mundo já conhecido. Um conhecimento global do orbe terráqueo tornava necessária uma recolha não só das novidades reveladas pelas viagens dos descobrimentos, mas também dos fundamentos do mundo já existentes ou redefinidos, mas até há pouco desconhecidos. Esta sua publicação compõe-se, por isso, de duas partes distintas, mas perfeitamente complementares. Isto é, com as viagens por mar e por terra, o globo adquire uma nova dimensão e, consequentemente, uma outra configuração. O mundo tal como era conhecido e o mundo recém-descoberto reformulam-se. No vivo desejo de transmitir informações referentes às diversas regiões do mundo, Simon 5. Simon Grynaeus, Novus Orbis..., Basileia, 1532. Tradução em língua alemã de Michael Herr, Die New Welt..., Estrasburgo, 1534. 6. Simon Grynaeus em primeira linha um teólogo, leccionou as cátedras de teologia e de grego na Universidade de Heidelberga e, mais tarde, na de Basileia. Foi um profundo conhecedor dos autores clássicos, tendo editado obras de Aristóteles, Platão, Euclides, Ptolomeu, Plutarco, Aristofanes, Tito Lívio, entre outros. Além disso, S. Grynaeus foi um dos teólogos prostestantes mais activos durante a Reforma. O seu discurso de humanista e de reformador são as duas vias de uma mesma atitude existencial.

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Grynaeus7 compila esta obra que viria a público com uma carta-mundi da autoria de Sebastian Münster - também uma iniciativa de caracterizar, aqui visualmente, o espaço terrestre. Simon Grynaeus reune na sua colecção, o texto de Luís de Cadamosto, bem como os também já traduzidos por Jobst Ruchamer, escritos de Cristovão Colombo, de Américo Vespúcio Mundus Novus e as relações sobre a Índia, a que agora junta Ludovico Varthema,8 Marco Polo, Petrus Martyres e outros relatos sobre os "povos poderosos do mundo antigo conhecido".9 O autor edita ainda uma carta de D. Manuel I ao pontifíce Leão, em que o soberano português lhe comunica os feitos dos portugueses na Índia.10 Tendo em consideração a diversidade regional, Simon Grynaeus atenta recolher a imagem global, no intuito de construir uma nova concepção espacial do mundo. O tradutor da edição alemã, Michael Herr,11 dá forma a esta concepção no seu título: "O novo mundo, as terras e ilhas até agora desconhecidas por todos os escritores antigos do mundo, há pouco tempo, todavia, descobertas pelos portugueses e espanhóis no mar de baixo. Juntamente com usos e costumes dos povos habitantes. Também o que descobriram de produtos e mercadorias entre eles, trazendo-os para a nossa terra. Aqui encontra-se também a origem e a nossa antiga tradição dos povos poderosos e 7. Veja-se Max Böhme, Die großen Reisesammlungen des 16. Jahrhunderts und ihre Bedeutung, Amsterdão, 1968, em especial, pp. 49-60, em que se anota que Simon Grynaeus teria sido ajudado por Hervagio e J. Huttich na elaboração desta obra. Henry Harrisse, Bi-blioteca Americana, A description of works relating to America published between the years 1492 and 1551, Nova Yorque, 1967 adianta, por sua vez, que Simon Grynaeus só teria redigido o prólogo desta mesma obra, pelo que alguns autores baseados neste facto a mencionem como a "Collectio Huttichio-Grynaeo-Hervagiano. Sobre esta colecção, veja-se também Michel Korinman, Simon Grynaeus et le "Novus Orbis": Les Puvoirs d'une Collection, In: Jean Céard e Jean-Claude Margolin (Ed.), Voyager à la Renaissance, Paris, 1987, pp. 419-431. 8. A obra de Ludovico Varthema seria editada pela primeira vez, em Roma, no ano de 1510. Ludovico Varthema viajara entre os anos 1503-1507 pela Síria, Arábia, Pérsia e Índia, tendo reunido várias informações, que então viriam a público. No ano 1515 seria traduzida e publicada na Alemanha sob o título Die ritterlich und lobwirdig rays des gestrengen und über all anderweyt erfarnen ritters und Landfarers herren Ludovico Vartomans... 9. "[...] gwaltigsten völcker der altbekanten welt". 10. Esta carta já tinha sido publicada no ano de 1521: Epistula invictissimi regis portugaliae ad Leonem. 11. O autor, Michael Herr, para além de ser médico, comunga igualmente de uma dedicação pelos autores clássicos, tendo publicado traduções das obras de Plutarco e de Seneca. Seria ainda o tradutor da relação de viagem de Ludovico Vartema. Note-se o facto de se encontrar mais uma vez um médico como tradutor. Com efeito, a medicina contemporânea era essen-cialmente uma ocupação com os textos clássicos, revelando-se, deste modo, importante a sua função interpretativa e linguística.

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príncipes do mundo antigo conhecido, assim, como os Tártaros, Mosco-vitas, Russos, Prussianos, Húngaros, Eslavos, etc.".12 No prólogo, Simon Grynaeus defende a opinião de que seria imprescendível estudar todas as regiões do mundo e todos os povos recém-descobertos se se pretendia alcançar um maior e mais profundo conhecimento da humanidade; o contacto e a confrontação com outros costumes, outros credos oferecia, a seu ver, valiosos pontos de análise e comparação, deveras, indispensáveis ao conhecimento dos povos europeus e à concepção humana em geral. O livro de Simon Grynaeus, publicado uma só vez em alemão, conheceria várias edições em latim13 e ainda uma versão holandesa, no ano de 1563. Cotejando a edição italiana e as alemãs respectivamente de 1508 e 1534, verificamos algumas divergências que convém salientar. Vejamos. Se já na edição de 1508 se poderiam assinalar algumas alterações em relação à edição italiana no que respeita aos títulos dos respectivos capítulos, sendo estes como que um pequeno resumo do capítulo afim, e embora não se pretenda efectuar uma análise exaustiva dos métodos e qualidades das traduções, o certo é que urge assinalar uma frequente interferência do tradutor, neste caso Jobst Ruchamer. Assim, quando Luís de Cadamosto refere que no final da sua descrição do reino do Senegal:"Di altri animali non ne ho avuto informazione salvo de' sopradetti",14 Ruchamer precisa, mencionando a inexistência de girafas ou outros animais selvagens, como se esta frase também tivesse saído da pena de Cadamosto.15 Verifica-se uma necessidade, por parte do tradutor, de precisar a informação recorrendo a exemplos de animais conhecidos mas extraordinários e

12. Título em alemão: Die New Welt, der Landschaften vnnd Insulen, so bis hie her allen altweltbeschrybern vnbekannt, jungst aber von den Portugalesern vnnd Hispaniern jm nidergenglichen Meer herfunden. sambt den sitten vnnd Gebreuchen der Inwonenden Völcker: auch was Gütter oder Waren man bey jnen funden, vnd jnn vnsere Landt brach hab. Do bey findt man auch hie den Vrsprung vnd alt herkummen der fürnemsten gwaltigsten Völker der altbekanten Welt, als do seindt die Tartaren, Moscouiten, Reussen, Preussen, Hungern, Sschlafen, Etc. 13. Edições latinas nos anos de 1537, 1555 e 1616. Nesta última edição seria reunido um outro texto português, o de Gaspar Barreiros, Commentarivs de Ophyra Regione, Coimbra, 1561. Nesta obra G. Barreiros procura abordar a questão da localização de Ofir segundo as perspectivas de vários autores. Este texto tinha sido publicado pela primeira vez em Coimbra, no ano de 1561, fazendo parte da sua Chorographia e em 1600 em Antuérpia como texto isolado. 14. Navegações de Luís de Cadamosto, ed. Giuseppe C. Rossi, Lisboa, 1944, p. 52 (segundo a edição de Vicenza, 1507). 15. "Ich habe auch vernümen das dysem lendem kein Zyraffen/ vnd mancherley andere wilde Tiere". Newe unbekanthe Landte..., Nuremberga, 1508, Cap. xxix. (sem pág).

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invulgares. Ao referenciar a girafa, Ruchamer chama a atenção para a busca incessante de animais exóticos característicos de terras longínquas e distantes. É visível ainda uma certa dificuldade em verter determinadas palavras ainda não correntes do quotidiano europeu. No que tange à edição de 1534 deparamos de igual modo com uma interferência do tradutor. Apostando numa reprodução total do texto, o portador de novas realidades procura atribuir mesmo aos nomes regionais e geográficos uma designação alemã, retocando, muitas vezes, com informações. Assim, não se fala de "mohren", o mouro da Guiné, mas de "schwarzen mohren" de mouros negros, visto que o conceito poderia ser equívoco. Quando descreve a cidade de Tunes, acrescenta que é a capital da Barbaria em África e ao mencionar o rio Nilo comenta que Plínio se lhe referenciaria no quinto livro da sua História Natural.16 Estes pequenos comentários denotam a tentativa de tornar o texto, a seu ver, mais compreensível, ou seja, autentificar conceitos consoante uma autoridade no intuito de os aproximar da realidade conhecida. Isto é: Luís de Cadamosto escreve o seu texto sem recorrer a qualquer autoridade, mas Michael Herr necessita de citar Plínio para comprovar as afirmações do nauta veneziano ao serviço do monarca português. Neste cotejo deparamos, pois, com duas atitudes epistemológicas: enquanto Luís de Cadamosto se baseia naquilo que ele próprio observou ou ouviu dizer, os tradutores alemães, tanto Jobst Ruchamer como Michael Herr, recorrem aos depoimentos da Antiguidade Clássica para confirmarem ou complementarizarem as notícias dos relatos de viagens. Se num caso o conhecimento se apoia na experiência pessoal, no outro é o saber heurístico fundado na análise e interpretação que determina o acto de conhecer. No mesmo ano da tradução de Michael Herr (1534) viria a público o Weltbuch de Sebastian Franck, obra esta que, como o próprio título indica, visa formular uma descrição do mundo repartida por quatro capítulos, correspondentes precisamente aos quatro continentes. Nesta publicação, Sebastian Franck, que pretende realizar um compêndio dos conhecimentos contemporâneos, procede a mais uma edição da antologia da novidade. E curiosamente será no capítulo em que aborda o continente americano que o autor inseriu os textos relativos às viagens dos Descobrimentos, onde assim poderemos reencontrar os nomes de Luís de Cadamosto, Pedro Álvares Cabral, Cristovão Colombo e Américo Vespúcio, em suma, a 16. "Inn Klein Africa, das ist ein haupstatt der Barbarey"; Plinius hat auch davon geschreiben jm funfften büch seiner Natürlichen Historien" Simon Grynaeus, Die New Welt, Estrasburgo, 1534, Cap. XIIII (sem pág.)

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célebre antologia italiana. A publicação destes textos não é, per si, estranha, dado que já tinham sido impressos e eram conhecidos; singular é, sem dúvida, o facto de num capítulo sobre a América, aparecerem rela-tos referentes às costas africanas e ao Oriente. O Weltbuch de Sebastian Franck será reeditado, sem qualquer alteração, em 1542 e 1567. As razões prementes para a publicação da antologia na Itália continuam a ser as mesmas ao longo do século XVI pelo que esta obra permanece, na Europa, como a visão de conjunto das viagens além-mar. Ela constituiria o primeiro registo da novidade dos Descobrimentos sem fronteiras espaciais ou temporais.17 O interesse editorial pela empresa descobridora não esmoreceria e, mais tarde, surgiriam outras colecções de viagens igualmente desejosas em contribuirem para a divulgação dos feitos marítimos. Ao compilarem escritos representativos das descobertas além-mar, as colecções de viagens visavam manter aceso este interesse pelo mundo ultramarino e daí o empenho dos seus organizadores em obterem informações ilustrativas sobre estes novos mundos do mundo. Recordemos Valentim Fernandes, os Paesi novamente retrovati e as suas versões em língua alemã, os volumes de Giovanni Battista Ramusio, Sigmund Feyerabend, Levinus Hulsius e da família Bry. A colecção de Giovanni Battista Ramusio constitui um importante contributo no que respeita à grande quantidade de informações recolhidas, bem como à organização do material. As Navigazioni et Viaggi surgem no ano de 1550 em Veneza, mais precisamente o seu primeiro volume, seguindo-se em 1556 o terceiro,18 enquanto o segundo só apareceria em 1559. O quarto volume nunca viria a ser editado.19 No primeiro volume, Giovanni B. Ramusio colige as grandes notícias referente à circum-navegação de África, à chegada dos portugueses à Índia e ao descobrimento da América. No segundo volume este atento letrado torna conhecidas outras descrições portuguesas,20 como é o caso 17. Após a primeira edição em Vicenza, 1507, seguem-se outras edições na Itália (1508, 1512, 1517, 1519, 1521) na Alemanha (1508, 1534, 1542, 1567) na França (1515, 1516, 1521, 1528, 1529) e em latim nos anos de 1508, 1532, 1537, 1555 e 1616 (esta última com grandes alterações). 18. Volume que Joachim Heller utilizou para traduzir o texto de Francisco Álvares e Andrea Corsali. 19. Veja-se G. B. Ramusio, Navigazioni et Viaggi, ed. Marica Milanesi, 6 vols, Torino, 1978-1980. 20. Ramusio estabeleceria vários contactos, a fim de recolher o máximo de material existente sobre as viagens marítimas. O seu interesse pela relação de Francisco Álvares leva-o a dirigir-se a Damião de Góis, na Holanda, pedindo-lhe um exemplar. Este envia-lhe, de facto, uma cópia do seu texto, mas pouco depois seria editada a obra de Francisco Álvares em Portugal

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de Il libro delle Indie orientali di Duarte Barbosa, de Il sommario di Regni, città popoli orientali di Tomè Pires21 e de alguns capítulos de João de Barros Sei capitoli dell Asia di João de Barros, cuja obra já tinha sido publicada em Lisboa, no ano de 1552, bem como os escritos de Francisco Álvares e de Andrea Corsali. Os textos de Duarte Barbosa e de Tomé Pires impressos pela primeira vez nesta obra revelam valiosas informações sobre a costa oriental africana e a Índia, sendo Duarte Barbosa o primeiro português a escrever sobre Sofala e o reino do Monomotapa. Logo, no prólogo, Giovanni Battista Ramusio tece um rasgado e caloroso elogio ao cronista João de Barros pelo valioso material recolhido e apresentado nas suas obras, salientando, em especial, o enorme valor documental dos aspectos geográficos tão destacados e desenvolvidos por este historiador português, questão esta fulcral na selecção que Giovanni Battista Ramusio fez da Ásia. O erudito italiano iria, assim, privilegiar alguns textos relativos à costa ocidental africana e hinterland, à situação geográfica da Índia e da costa oriental africana, um capítulo sobre o conti-nente asiático, onde aborda em pormenor o reino da China, e termina esta selecção com Sofala e o reino do Monomotapa.22 O terceiro volume aborda a Índia ocidental segundo textos de Ferdinando Oviedo, Fernando Cortés e Jacques Cartier. A obra de Giovanni Battista Ramusio apresenta, de facto, no seu plano algo de novo. O material não é, pois, organizado segundo as etapas da empresa marítima, como acontece nos Paesi novamente retrovati, nem pretende ser uma tentativa de descrever o mundo numa estreita articulação entre o mundo antigo e o novo, como em Simon Grynaeus. É, na verdade, a ideia da homogeneidade do mundo e de preencher as zonas pouco conhecidas que coordena a ordenação de material.23

(1540), que Ramusio encomendaria igualmente, trabalhando, desta forma, com os dois exemplares. As iniciativas levadas a cabo para reunir o material respeitante à viagem de Francisco Álvares seriam por ele próprio registadas no seu prólogo, também traduzido por Joachim Heller. 21. As relações de Duarte Barbosa e de Tomé Pires seriam publicadas em Portugal somente no século XIX e XX, respectivamente. 22. As suas descrições geográficas precisas sobre o continente africano, em especial sobre Monomotapa e Sofala, viriam a ter grande influência na cartografia. Veja-se Avelino da Teixeira Mota, A Cartografia Antiga da África Central e a Travessia entre Angola e Moçambique (1500-1860), Lourenço Marques, 1964, pp. 25-28. 23. Veja-se a introdução da edição de Marica Milanesi, op. cit., e ainda da mesma autora, "Giovanni Battista Ramusios Sammlung von Reiseberichten des Entdeckungszeitalters 'Delle Navigazioni e Viaggi' (1550-1559) neu betractet", In: Reiseberichte als Quellen europäischer Kulturgeschichte, ed. Antoni Maçzak e Hans Jürgen Teuteberg, Wolfenbüttel, 1982, pp. 33-44.

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Apesar do significado que lhe é atribuída, a obra de Giovanni Battista Ramusio nunca foi vertida para o alemão, existindo apenas traduções isoladas de alguns dos textos, como é o caso do relato de Francisco Álva-res, bastante utilizado e conhecido pelos eruditos alemães, o que nos leva a supor que a colecção ramusiana seria igualmente uma referência na Alemanha. Importa ainda realçar o nome de Sigmund Feyerabend, um importante livreiro germânico dos meados do século XVI que, no vasto número de obras editadas, deu à estampa, com muito entusiasmo, algumas colecções de viagens. Não será assim de estranhar que Feyerabend se preocupe em dar lugar às informações de terras recém-descobertas, trazendo a lume, para além do já conhecido Weltbuch de Sebastian Franck, os quatro primeiros livros da História do descobrimento e conquista da Índia de Fernão Lopes de Castanheda e as relações sobre a América de Ulrich Schmidel e Hans Staden. Feyerabend não só dá a conhecer as viagens de descobrimento do caminho marítimo para as Índias Orientais e Ocidentais, como ainda com a publicação da obra de Sebastian Franck, apresenta um valioso compêndio enciclopédico. As viagens à Terra Santa constituem, de igual modo, um dos géneros literários da sua preferência pelo que organiza o Reyßbuch, onde pretende chamar a atenção para um outro de tipo de viagens, também elas informadoras do espaço terrestre habitado. Na publicação destas duas colecções ressalta o ensejo de divulgar novos conhecimentos e, mais, estas obras são a expressão máxima de um intelectual que orgulhosamente olha o mundo nas suas novas dimensões e se regozija com os feitos dos homens seus coevos. No prólogo de uma das suas obras,24 Sigmund Feyrabend afirma peremptoriamente que os relatos de viagens seriam um valioso documento histórico, onde aparecem, mais e melhor do que em muitas outras obras, os factos históricos, sendo, por isso, fundamentais para o conhecimento humano. Salientando o assaz contributo das viagens para o alargamento geográfico e cultural do mundo, Feyerabend elabora um discurso de apreço e louvor aos mareantes e à navegação europeia. E refere empenhadamente os relatos de viagens como únicas compilações informativas, inestimáveis fontes documentais do presente. Consciente da importância da empresa marítima que, sublinha sem descanso, exalta a glória e a bem-aventurança de ter sido agora "nos nossos tempos" que se deu tão afortunada abertura do mundo.

24. Sigmund Feyerabend, General Croniken (com a relação de Francisco Álvares) Frankfurt/M. 1576.

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Não poderemos ainda deixar de referenciar a actividade editorial da família Bry,25 que trouxe a público uma preciosa colecção sobre o que consideraram as grandes viagens para o Ocidente e para o Oriente - objectivo que se reflecte na organização da obra. Lado a lado textos de portugueses, holandeses, alemães e ingleses deveriam dar uma imagem do Ocidente e do Oriente que conheceram e descreveram.26 Jan Huygen van Linschoten, Pieter Marees (Arthus von Dantzig), Samuel Braun, Duarte Lopes, Jean Léry, Girolamo Benzoni, Ulrich Schmidel e Hans Staden são alguns dos nomes editados nesta colectânea. Entendida como uma obra de carácter didáctico, esta colecção, ricamente ilustrada, iria contribuir decisivamente para a imagem iconográfica das regiões recém-descobertas. Ao dar forma às palavras, a família Bry influenciaria as leituras; o facto de as suas gravuras serem seleccionadas para ilustrarem outros livros deixa prever o enorme impacto destas fontes gráficas. Também neste debuxo é, principalmente, a novidade, o diferente e o pitoresco de muitas das histórias que será posto em destaque. A partir de meados do século XVI, estas obras procuram não só difundir informações verídicas e autênticas sobre o mundo ultramarino, mas também aliar a este aspecto uma componente de distração. Ao mencionar quais os critérios seguidos na selecção de textos, o compilador Levinus Hulsius27 observa que escolheu "não só o mais necessário, mas também o mais divertido de ler", recomendando assim a sua obra a "Sua Excelência para divertimento".28 Em suma, a divulgação de notícias numa primeira visão de conjunto tornar-se-ia pouco a pouco insuficiente para responder à insatisfeita sede de saber dos leitores germânicos. Era urgente a necessidade de compilar mais material e, mais importante ainda, material especializado, em que se reflectissem pormenorizadamente certas temáticas ou dados fundamentais de determinadas áreas regionais. A partir de meados do século XVI já não era suficiente conhecer uma visão de conjunto das primeiras viagens dos

25. De origem belga, a família Bry viria a fixar-se por volta de 1570, em Frankfurt, onde Theodor von Bry se dedicaria à publicação, entre outras obras, das suas Collectiones peregrinationem in Indiam orientalem et occidentalem, edição esta que viria a ser continuada pelos seus dois filhos, mas em alemão. Sobre as ilustrações, veja-se o estudo de Bernadette Bucher, La sauvage aus seins pendants, Paris, 1977. 26. A parte oriental seria iniciada com a relação de Duarte Lopes e Filippo Pigafetta sobre o reino do Congo, Wahrhafftige...., Frankfurt a. M., 1597. 27. Levinus Hulsius, Erste (-XXVI.) Schiffart, Frankfurt/M., 1598-1663. Veja-se Max Böhme, op. cit., pp. 120-136. 28. "[...] nicht allein die nötigsten/ sondern auch die lustigsten zu lesen" e "E.G. zu Erlustigung". Hulsius, Erste Schiffart, Frankfurt/ M., 1606 (1ª edição 1598), prólogo.

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Descobrimentos, pois tornava-se imperioso aprofundar os factos e tecer ilações científicas. Só assim se poderia iniciar uma inserção plausível nas disciplinas de geografia, história, religião, ciência e arte - trajecto este que iremos seguir de perto nos capítulos seguintes.

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2. Em Viagem

2.1 Norte de África: O Velho Mundo Se certo é que o norte de África corresponde a uma região desde há muito conhecida, a verdade é que esta continuaria, ao longo dos séculos XVI e XVII, a suscitar grande curiosidade nos meios intelectuais europeus. Os cristãos ocidentais, especialmente, interessados em manter contactos com a Palestina viravam os seus olhares para alguns reinos africanos. É o caso do Egipto, uma das estações iniciais da cristandade europeia e ponto de passagem obrigatório nas peregrinações à Terra Santa. Sendo a única ponte de contacto com o Oriente, o Egipto manteria o seu papel de intermediário entre os três continentes da Europa, Ásia e África. Chave fundamental do empório comercial do Mediterrâneo, este reino manter-se-ia como importante centro comercial de tráfico internacional e, mesmo quando os árabes fecharam o Mediterrâneo aos navios cristãos, as relações com a Europa nunca cessaram. Este seu destino de ligação entre o mundo ocidental e oriental definiria a sua história e o seu lugar no mundo; e como todos os enclaves gozava de um estatuto especial. Nos textos das peregrinatio, retrato geográfico e cultural, iremos encontrar ressonâncias do impacto económico e cultural deste país africano. O vivo interesse por este género de obras reflectiu-se nos primeiros impressos alemães; nos finais do século XV vêm a lume significativos exemplares que rapidamente se tornam, no contexto de edições referentes ao Egipto, obras de referência constante. Constituindo um elucidativo apontamento com inúmeras e satisfatórias informações, estes escritos seriam uma fonte de consulta inestimável para os vindouros.1 Estamos a

1. Sobre estes autores e suas respectivas relações, veja-se Aleya Khattab, Das Ägptenbild in den deuschsprachigen Reisebeschreibungen der Zeit von 1285-1500, Frankfurt/ Berna, 1982, bem como Claudia Zrenner, Die Berichte der europäischen Jerusalempilger (1450-1500). Ein literarischer Vergleich im historischen Kontext, Frankfurt/ Berna, 1981.

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falar de obras como as de Hans Tucher,2 Felix Fabri3 e Bernard Breydenbach.4 Hans Tucher, filho de comerciantes de Nuremberga5 inicia, com o seu Reyßbuch, a tradição de imprimir as viagens peregrinas para a Palestina e Egipto.6 A estrutura narrativa da sua viagem - o mesmo trajecto e a mesma abordagem de tema - irá assim ser seguida por Felix Fabri e Bernard Breydenbach nos seus respectivos relatos. O teólogo Felix Fabri7 decide, na sua segunda viagem a Jerusalém, realizada no ano de 1483, deixar um apontamento com algumas considerações gerais sobre o Egipto, país que visita no regresso da Pales-tina. Nesta resenha existem, contudo, algumas áreas privilegiadas e, daí mais pormenorizadas, como seja o retrato que esquissa dos usos e costumes dos egípcios ou quando se deixa entusiasmar pelas cidades de Cairo, Alexandria e seus arredores. Aqui interessa-lhe, sobretudo, anotar a vivência quotidiana e diária destas cidades, dando também larga reportagem ao glorioso património arquitectónico. Uma constante do texto de Felix Fabri é ainda a frequente reflexão sobre a história deste reino; num cuidado preciso e esmerado, o autor disserta sobre a importância histórica deste povo, salientando assim assídua e arrebatadamente passagens da Sagrada Escritura. Felix Fabri não deixa naturalmente de visitar os locais, onde a Sagrada Família permaneceu na

2. Hans Tucher, Reyßbuch, Augsburgo, 1482. Ainda Nuremberga, 1482, 1483; Augsburgo, 1486; Frankfurt, 1561 e na colecção de viagens em 1584, 1609, 1659. 3. Felix Fabri, Eigentliche beschreibung der hin vnnd wider fahrth zu dem Heyligen Landt..., Ulm, 1556 (ed. Heidelberg, 1965). Outras edições alemãs, em 1557, e em colectâneas de viagens, 1584, 1609, 1659. Existe ainda um texto em latim, o Evagatorium, referente à primeira viagem de Felix Fabri (1480), que ficaria manuscrito até 1843. 4. Peregrinatio in terram sanctam, em alemão Deustch, Mainz 1486. Esta relação, que seria acompanhada por ilustrações, adquire um carácter de livro ilustrado como não era então usual. Estas seriam da autoria de Erhard Reuwich, um pintor que acompanhou Bernard Breydenbach. 5. Hans Tucher, descendente de uma conhecida família de comerciantes da cidade de Nuremberga, viajaria em 1479 com Sebald Rieter que, por sua vez, também deixou um pequeno apontamento de viagem, que nunca viria a ser publicado. Sobre o manuscrito de Sebald Rieter, veja-se Reinhold Röhricht e Heinrich Meisner (ed.), Deutsche Pilgerreisen nach dem Heiligen Lande, Berlim, 1880, pp. 111-114. 6. Sobre a literatura de peregrinos alemães dos finais da Idade Média, veja-se Gerhard Wolf, Die deutschsprachigen Reiseberichte des Spätmittelalters, in: Peter J. Brenner (Ed.), Der Reisebericht, Frankfurt/M., 1989, pp. 81-116. 7. Felix Fabri, da cidade de Ulm, viajaria como capelão. Em Jerusalém viria a ser armado cavaleiro.

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sua fuga para o Egipto, o que o leva a evocar estes momentos tão perturbados da história cristã. A razão de interesse e de ávida curiosidade dos viajantes que se deslocam ao Egipto seria, aliás, orar nos locais sagrados. A visita aos Lugares Santos é, consequentemente, um dos capítulos mais pormenorizados nas descrições, devido aos acontecimentos históricos que aqui teriam tido lugar. A descrição do reino do Egipto é assim, em grande parte, condicionada pelo seu significado histórico e reli-gioso. A componente religiosa que lhe é atribuída faz deste um reino escolhido e abençoado; a fertilidade do Nilo, um dos rios do Paraíso, mais não era do que uma obra milagrosa do Criador, uma dádiva extraordinária de Deus aos egípcios pelo seu imensurável contributo na história do cristianismo e da humanidade. O reconhecimento de se tratar de um reino assaz privilegiado não se encontra somente no texto de Felix Fabri. Bernard Breydenbach, que também viaja em 1483 e, em parte, no mesmo grupo de Fabri, conta - quando se retem em Matarea - que a Virgem e o Menino teriam bebido na fonte daquele jardim e, que ali mesmo onde eles se encontravam, se teriam abrigado sob a árvore, que os viajantes ainda ali poderiam admirar.8 O seu escrito é, pois, igualmente um reviver dos tempos históricos. A presença de antigos palácios e templos, agora em ruínas, leva o autor a recordar o passado glorioso de que falam estes monumentos; símbolo de uma época esplendorosa e notável, estes vestígios são o que resta desse passado tão ilustre. Hans Schiltberger, cuja obra viria a lume em 1476 na cidade de Augsburgo,9 já não viaja como peregrino; pelo contrário, são outros os motivos que o levam a meter-se a caminho. Com efeito, Hans Schiltberger parte, no ano de 1410, para se alistar, na Hungria, no exército em combate contra os turcos. Schiltberger, que seria preso nestas lutas militares, viria a

8. A descrição deste jardim e os acontecimentos aqui ocorridos referentes à Sagrada Família constituem uma constante das relações de viagens, que divulgam muitas das histórias relacionadas com a presença da Virgem Maria e de Jesus neste lugar. Aqui existeria ainda uma planta que viria do paraíso. Esta, oferecida pela rainha Saba ao rei Salomão (Livro dos Reis, 3, 10) e plantada perto de Jericó, teria sido cultivada mais tarde no Egipto (talvez por Cleópatra). Sobre o jardim de Matarea e as suas diferentes versões, veja-se Hebert Feilke, Felix Fabris Evagatorium über seine Reise in das Heilige Land. Eine Untersuchung über die Pilgerliteratur des ausgehenden Mittelaters, Frankfurt/Berna, 1976, pp. 71-108. 9. Outras edições: Nuremberga, 1543, 1545, Frankfurt, 1549, 1554 e 1659.

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visitar o Egipto como servo do sultão turco Bajasid. E, para seu infortúnio, só trinta e dois anos mais tarde viria a regressar à Alemanha. Hans Schiltberger deixa, todavia, um relato destas suas andanças, pois, como escreve no seu prólogo, entende que só conhecendo outros povos, outros usos e costumes, enfim, outros exemplos de ser e estar no mundo, se poderá, notando as diferenças, reflectir sobre as realidades culturais. Assim, "Uma história extraordinária e resumida" pretende ser um "registo verídico, uma notícia verdadeira, uma narrativa exaustiva e compreensível da história e dos acontecimentos ocorridos". Não obstante "[...] se possam encontrar [neste texto] algumas fábulas e lendas, elas foram contadas e reveladas ao autor [deste livro] pelo que podem ter o seu préstimo e utilidade na compreensão [do mesmo], pois estas não seriam sua invenção (para isso o autor é muito mau), mas antes o que teria ouvido pelos sítios onde andou; daí que não as deva ocultar, mas sim permanecer fiel ao seu peregrinatio".10 Esta passagem é de grande importância, porque nos indica como o autor - e possivelmente muitos outros - recolheu as suas informações e as apresenta. Assim, embora alguns factos possam parecer fábulas ou mentiras, Schildberger defende que estes também fariam parte do material que o autor deveria usar na sua narrativa. Assim, uma vez que lhe foram transmitidos -e dá-nos alguns exemplos das histórias que lhe contaram, como seja a existência de gigantes no Egipto - os dados assim coligidos teriam o direito de aparecer no seu apontamento.11 Schildberger ardilosa e astutamente usa indubitavelmente um discurso retórico bem conhecido neste género de obras, que tão acusadas seriam de só propagarem histórias falsas e fabulosas. Para se proteger desta crítica e também para fugir airosamente a um severo comentário, diz, aos seus leitores, que se os habitantes acreditam nestas histórias, nada mais compete ao viajante do que as referir. E chega mesmo a acrescentar para defender a sua obra que,

10. "Wunderbarliche unnd kurtzweylige histori [...] warhafftige vermeldung/ vnnd eigentliche anzeigung/ vnd gründliche erzehlung/ fürgenommer sachen/ vnd geschichte begriffen [...] vnd ob wol ettliche fabel vnd merlein darinnen gefunden/ sind doch freilich also dem beschreiber/ dieselben angesaget worden/ vnd haben bey verstendigen auch jren nutze/ Denn solches diß buchschreibers gewißlich auß ihme selbst nit erdichtet (darzu er vil zu schlecht gewesen scheinet) sonder hatte dise an den orten da er gewesen gehöret/ vnd vermeinte er müste sie nit verschweigen/ solte er getrewlichen bericht seiner walfart thun". Hans Schiltberger, Ein Wunderbarliche/ vnnd Kurtzweylige Histori/ wie Schildtberger/ eyner auß der Stadt München/ in Bayren/ von de Türcken gefangen..., Nuremberga, 1543, pp. A iij recto. 11. Sobre este tema, veja-se Johann Heinrich Zedler, Grosses Vollständiges Universal-Lexicon, 1742, ed. fac-símile, 1961, 31 vol., pp. 1560-72.

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em muitos livros, e refere, entre eles, a Sagrada Escritura, também se encontrariam histórias fantásticas sobre gigantes de épocas remotas. Mas o certo é que o escrito de Hans Schiltberger traduz, desde já, uma das características das publicações do século XVI, isto é, o desejo ardente de compilar todo o material que encontram à sua disposição; ao autor cabe então recolher os dados e divulgá-los ordenadamente. Na sua viagem pela Turquia, Tartária e Índia, Schiltberger passa pelo Egipto e descreve o ambiente mercantil da cidade de Alexandria, destacando particularmente a presença de muitos mercadores alemães e italianos. Aqui damo-nos conta do papel do reino egípcio como intermediário do tráfego internacional; ponto de contacto com o Oriente não seria de estranhar que fosse aqui que se viessem buscar as extraordinárias mercadorias orientais. Hans Schiltberger ao contrário de autores precedentes não constrói o seu texto segundo o ritmo da viagem, mas antes organiza os diferentes capítulos de acordo com várias temáticas que profusamente determinam o discurso narrativo. Neste conjunto de obras reuniam-se assim importantes informações sobre o reino egípcio tão venerado pela sua anciana tradição e pelo enorme significado que detinha no mundo mediterrâneo. O italiano Ludovico Varthema, autor de uma das primeiras edições do século XVI, afirma que não irá estender-se muito sobre o Egipto, uma vez já existeriam notícias concretas e também suficientes sobre este reino. Aquando da sua estada na cidade de Alexandria, Varthema não tece assim qualquer comentário "porque a situação desta cidade já é conhecida de outros relatos, pelo que não há necessidade que eu escreva sobre ela".12 E, no que respeita à sua descrição do Cairo apenas alude a alguns aspectos que, a seu ver, ainda não foram referenciados; e se muito poderia escrever sobre o credo e os usos e costumes desta cidade, tal será escusado visto que são factos já muito conhecidos.13 Não resiste, no entanto, em salientar a variedade de povos aí residentes, particularmente, povos não cristãos ou a figura do Sultão, o regente supremo de todos os povos que aí habitam.

12. "[...] weil nu dieser Stadt gelegenheit / aus vieler anderer Relation gar woll bekãt./ Also unterlasse ich niemit mehreres von derselben zu melden. Vnd so vil in andern geschrifften/ auch von andern kuntschafft der selben statt gefunden würt/ für gieng ich ...". Ludovico Varthema, Die ritterliche vnd lobwirdig rayss des gestrngen vnd über all ander weyr erfarnen ritters vnd landfarers herren Ludowico Vartomans võ den landen, Egipto, Syria ..., Augsburgo, 1515, p. Aiiij. 13. Idem. "Es were zwar viel von dieser Stadt/ auch ihrer Einwohner/ Glauben/ Sitten vnnd Gebräuchen zu melden/ weil aber solchs vberflüssig von andern beschehen".

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A sua descrição fica-se, por isso, por simples apreciações, porque, na verdade, é o desejo de ver coisas até agora desconhecidas que o leva a viajar. É, pois, compreensível que este seu particular interesse pela novidade influencie sobremaneira a sua descrição do reino do Egipto. É a ávida vontade de conhecer e ver outras regiões que leva Ludovico Varthema a partir para o Oriente. No seu texto fala de cidades como Aden, Ormuz, Goa, Narsinga, Cananor, Calecute, Coromandel e Java; terras até há pouco desconhecidas, mas que, graças à descoberta do caminho marítimo para a Índia pelos portugueses, se poderiam agora visitar e que faziam arder de frémita curiosidade os corações dos viajantes. Como se indica no título da obra, Varthema sempre desejou visitar estas regiões "pessoalmente" e, como ele nos informa no prólogo, vê-las "com os seus próprios olhos", daí que apenas descreva os lugares que visitou e nos relate só usos e costumes, estranhos animais e árvores desconhecidas que ele próprio viu.14 Varthema considera que a experiência pessoal, o ver in loco, é mais verídico e mais credível, porque se pode acreditar mais naquilo que se vê, do que naquilo que se ouve contar.15 Defensor de que o verdadeiro conhecimento se adquire com a vista, parte ao encontro de novos dados sobre o mundo. Reconhecendo, todavia, que esta sua atitude e decisão não poderá ser seguida por todos os amantes do saber, resolve publicar o seu texto, a fim de que a sua experiência possa ser útil aos que, se interessando por estes temas, não tiveram a oportunidade de andar pelo mundo; trabalho este que, como nos diz, efectuou com esmerado cuidado e dedicação. É justamente o desejo de conhecer regiões longínquas e desconhecidas que trouxe a lume este escrito em língua alemã. Num anexo podemos ler a seguinte nota: "Para utilidade daqueles que gostam de ouvir ou de saber notícias sobre as muitas e estranhas terras e províncias, também os costumes e as maneiras que usam".16 O editor, Johan Knobloch trazia assim a público a tradução do Itinerário de Varthema, editado em Roma seis anos antes, nomeadamente no ano de 1510, a fim de que os leitores

14. Idem. "in eygner person". "[...] hab ich wöllen selbs mit mein enen augen besenhen/ die gelegenheit der Örter/ dis gestalten vnnd Sitten der menschen/ die seltzamigkeit der Thier/ die frembden bäum/ vnnd dero gewächtz vnd früchten/ vnnd anders". p. Aij 15. Idem. "Namlichen so mer zu glauben ist/ einem der es selbs mit seinen augen gesehen hat/ dan võ hören sagen". Idem, p. Aij 16. "Zu nutzbarkeit denen die da gern hören vnd erfaren von vil seltzamen landen vnd prouintzen/ auch võ iren gebreüchen vnd manieren/ die sie sich dann darinn gebrauchen. Ist das büchlin von dem weyt erfarnen vnd gestrengen Ritter Ludovico Vartomans võ Bolonia/ seiner Ritterlichen thatten vnd Erfarungen. Auß Welscher zungen in Teütsch transsiert" Estrasburgo, 1516.

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alemães pudessem conhecer as suas experiências por zonas tão distantes e exóticas. São as observações recolhidas in loco, não as ilações de um estudo aturado, que urge dar a conhecer. Que a sua visão se ajuizaria como correcta e actual poder-se-á aferir nas múltiplas edições desta obra. Para além de diversas publicações italianas,17 este relato de viagem viria a prelo, na Alemanha, primeiramente na cidade de Augsburgo, em 1518, seguindo-se uma reedição no New Welt de Simon Grynaeus (1534), catorze anos mais tarde, em 1548, na cidade de Frankfurt18 e, cem anos depois da primeira edição, em Leipzig.19 É ainda a riqueza informativa deste texto que leva Hieronimus Megiser, o autor da última edição, a publicá-lo em 1610. Tido em tão elevada consideração, como aferimos no prólogo, este relato constituiria um intrumentário inestimável para os geógrafos e conhecedores do mundo pelo que não haveria obra de cosmografia que não o tivesse como "ad descriptionem Asie".20 As suas informações constituiriam um importante fundamento não só relativamente ao continente asiático, mas também no que tange à configuração geral do mundo, fazendo, assim parte de um número de leituras imprescindíveis. De tal modo que este texto pertenceria à formação intelectual, ou seja, ao "studium peregrinandi". Segundo Hieronimus Megiser as viagens da Antiguidade teriam iniciado um reconhecimento da terra, legando um apontamento de crassa utilidade no que respeita aos costumes e usos de regiões até então ignotas, caberia agora aos contemporanêos, como Ludovico Varthema, complementari-zarem esse conhecimento geográfico e cultural, isto é, descreverem as terras recém-descobertas.

17. Roma 1510, 1517; Veneza, 1517, 1518, 1520, 1526, 1536, 1550, 1560; Milano, 1519, 1523; Veneza, 1535, 1536 e ainda na obra de Giovanni Ramusio 1550, 1563, 1588 e 1606. São também de referir as edições latinas, Milano 1510 e na obra de Simon Grynaeus em 1532, 1537 e 1555. 18. Hermann Gülfferich é o autor da edição. 19. Talvez seja importante referenciar as edições inglesas de 1576, 1577 e 1625; a edição francesa de 1556; a espanhola publicada em Sevilha em 1520 e, por fim, as holandesas de 1503 e 1664. Esta última, um importante documento sobre os inícios da presença europeia no Oriente, ocupa, mesmo já passados mais de 100 anos após a primeira edição, um relevante lugar nas publicações coevas do século XVII. 20. "[...] so ist diese seine Reyßbeschreibung jederzeit bey allen gelehrten Geographis vnnd Weltbeschreiben in so hoher acht gehalten worden/ daß seither vast nie kein Cosmographi außgangen/ da nicht ad descriptionem Asiae viel heraus genomenen". Ludovico Varthema, Hodeporicon Indiae Orientalis, Das ist: Warhafftige Beschreibung der auserlich lobwürdigen Reyß/ welche der Edel/ gestreng vnd weiterfahrne Ritter H. Ludwig di Barthema..., Leipzig, 1610, prólogo sem pág.

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No seguimento de outras edições, este escrito viria a lume enriquecido com ilustrações; as gravuras fornecem, todavia, pela primeira vez informações reais sobre estas regiões.21 Isto é: desaparecem as chamadas estampas-tipos. Se até aqui a mesma ilustração seria utilizada em vários contextos históricos e geográficos, sem qualquer especificidade quanto ao tema22 ou região em destaque, nesta edição surgem pela primeira vez mapas das áreas em questão, como seja da Arábia, Síria, Sul de África, bem como planos de cidades orientais como Damasco, Alexandria, Cairo, Calecute ou Adém, ou ainda algumas estampas em que se representam as populações ou animais e plantas das regiões visitadas. Já não é mais a ideia de transmitir única e exclusivamente um ambiente, segundo a projecção de cenas ilustrativas, mas antes a tentativa de formular uma imagem real da região de que se fala no texto. Ilustrar sim, mas com exactidão e actualidade. O facto de já existirem no prelo inúmeras descrições de países longínquos e estranhos não coibe Johan Hellfrich de trazer a lume o seu relato que, como defende, teria o objectivo específico de aflorar certos aspectos a que não tenha sido dada tanta atenção. Na sua relação Kurzer vnd Wahrhafftiger Bericht/ von der Reiß aus Venedig nach Hierusalem/ von danen in Aegypten ... publicada em 1578,23 Hellfrich dedica-se a este propósito, tecendo um caloroso apelo para o estudo dos insólitos edifícios, cuja arte e destreza seriam totalmente ignoradas.24 Além disso, na sua opinião, nestes países não só existiriam usos e costumes estranhos e exóticos, como a natureza seria completamente ignota pelo que considera

21. A primeira edição de 1515 foi ilustrada por Jörg Breu, o Velho. Vejam-se as reproduções in Max Geisberg, Die deutsche Buchillustration in der ersten Hälfte des 16. Jahrhunderts, Munique, 1930, pp. 211-13. O significado destas primeiras ilustrações poder-se-á também testemunhar no título da relação de Hans Stadens (Frankfurt, 1556). 22. Veja-se Carsten-Peter Warncke, Sprechende Bilder- sichbare Worte. Das Bildverständnis in der frühern Neuzeit, Wiesbaden, 1987, estudo em que se salienta esta característica das ilustrações dos inícios da Idade Moderna. Como exemplo da estampa-tipo refere a gravura do porto de Sevilha na obra de Theodor von Bry, em que não há a menor preocupação de publicar uma imagem precisa desse porto, mas simplesmente uma gravura que faça lembrar - e caracterize - um porto. Ver também Hans Koegler, Über Bücherillustrationen in den ersten Jahrzehnten des deutschen Buchdrucks, in: 10. Jahresbericht der Gutenberg-Gesellschaft, Mainz, 1911, pp. 1-33 que sublinha igualmente que a função das gravuras não consiste em dar uma imagem do conteúdo, mas única e exclusivamente tópicos desse conteúdo (p. 16). 23. Leipzig, 1578. 24. "[...] gibt es nicht nur unbekandte Völcker/ Sprachen vnd Sitten" mas também "seltsame Gewechs/ ungewönliche Gebew der Inwohner unerhörte Kunst und Geschickligkeit erfunden wird vnd erfahren werden". op. cit., prólogo.

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do maior interesse conhecer a flora e a fauna local.25 Assim e, no que respeita ao Egipto, a sua atenção irá incidir maioritariamente sobre os elementos arquitectónicos de cidades de origens bem remotas como os das do Cairo e Alexandria; sem esquecer naturalmente de salientar a construção das extraordinárias e famosas pirâmides do Egipto.26 Nos finais do século XVI viria a público um texto da autoria de Martin Baumgarten.27 Embora em latim, esta obra não se distancia das anteriores no que respeita à descrição das cidades egípcias, nomeadamente, do Cairo e de Alexandria. Procurando sempre que possível salientar os tempos remotos em que viviam os faraós, esta obra compreendida como história do passado glorioso anunciava, desde já, uma das vertentes mais características das obras editadas no século XVII. Na verdade, assiste-se a uma ligeira reorientação das publicações que tinham, entre outros, o reino do Egipto por tema. Embora descrevam a mesma zona geográfica, nomeadamente a área referente às cidades portuárias do Cairo e da Alexandria, a forma de tratamento dos autores do século XVII será agora cada vez mais voltada para a história deste país. Segundo uma grelha similar, os escritores constroem a narrativa em torno do discurso histórico, dado que a sua maior preocupação é apresentá-lo no fluir dos tempos. Ao descreverem a presença de vestígios dos tempos passados, os viajantes tecem longas considerações sobre as origens dos vários monumentos e cada ruína é pretexto para dissertarem sobre a sua historicidade. Entre as páginas dos seus escritos desfilam Alexandre Magno ou os Ptolomeus num louvor aos tempos gloriosos do Egipto. Reconstruindo a memória histórica deste país africano, os autores não deixam de elogiar personagens ímpares ou feitos extraordinários, como a construção das fantásticas pirâmides, num exaltado discurso ao peso do conhecimento histórico. Poder-se-á falar de uma unanimidade temática nestes textos, sem que eles percam, contudo, as suas características elementares. Como já referimos,

25. Esta obra voltaria a ser publicada em 1579, 1581, 1584, 1589, 1609 e 1659, sendo as edições de 1584, 1609 e 1659 no contexto da já referida colecção de viagens. 26. Esta edição seria também ilustrada com estampas de traços extremamente simples respeitantes à população, animais e plantas deste país. 27. No ano de 1594 seria publicada em Nuremberga sob o título Peregrinatio in Aegyptum, Arabeiam, Palaestinam & Syriam, Nuremberga 1594; esta relação não seria redigida pelo próprio Martin Baumgarten, mas sim editada por Christoph Donauer a pedido do filho de Baumgarten. Veja-se Allgemeine Deutsche Biographie, 2 vol., p. 160.

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esta unanimidade vem precisamente do facto de abordarem de uma forma semelhante os mesmas temas e ainda porque os autores utilizam as mesmas fontes. De facto, estas relações de viagens não são somente um apontamento do que cada autor observou, mas sim uma dissertação do que cada autor leu e conhece sobre a história deste reino. Muitas das informações dadas são única e exclusivamente o resultado de uma leitura feita antes ou, até mesmo, durante a viagem. Na sua grande maioria, os autores mais citados são escritores da Antiguidade Clássica. Logo Plínio, Estrabão, Diodoro Sículo, Heródoto, Pompónio Mela, Senéca e Ptolomeu são os nomes mais referenciados e a que os viajantes do século XVII re-correm frequentemente. Para informar sobre a localização geográfica, para descrever momentos decisivos da história das cidades egípcias, precisar datas ou simplesmente para informar sobre os usos e costumes destes povos, os autores modernos fazem-no segundo o que encontram nestas obras da Antiguidade Clássica. Temos assim de realçar que estamos perante um outro tipo de viajantes dos que conhecemos nas viagens marítimas. Já não é a sede de ver o que não se conhece, mas, pelo contrário, é o desejo de confirmar as leituras feitas antes da partida de que irá resultar a explanação escrita. Assim, não será de estranhar que a observação, à partida previamente moldada com leituras, não se revele espontânea e surpreendida. Na sua generalidade o autor já não vai à procura de novos dados, de coisas desconhecidas, mas de rever aquilo que leu. A primeira destas obras viria a lume no ano de 1608, na cidade de Nuremberga. O seu autor, o padre Salomon Schweigger28 consciente do valor pedagógico do acto de viajar, tece, no seu prólogo, um louvor à experiência que se adquire quando se anda pelo mundo fora. Já em tempos antigos se tinham realizado grandes viagens, sobre as quais dispunhamos de escritos notáveis no que tange o conhecimento geográfico e cultural do mundo; e não deixa de evocar o momento actual, mormente, as viagens de Cristovão Colombo e Américo Vespúcio, que tanto teriam ajudado no renascer de um interesse por viajar. O estudo na casa paterna e na escola não chegaria, de facto, para obter uma verdadeira formação intelectual. A obra que nos legou escrita no intuito de dar a conhecer as suas

28. No ano de 1547, Salomon Schweigger acompanha Joachim von Zinsendorf que se irá estabelecer em Constantinopola como diplomata do Imperador alemão Rudolfo II. Concluída esta missão de enviado diplomático, Schweigger continuaria o seu exercício sacerdotal em Nuremberga.

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experiências e informações visava, pois, tecer um contributo educacional e formativo para as novas gerações. Não obstante a sua relação tenha como principal objectivo, a Terra Santa, Salomon Schweigger dedica algumas páginas à sua passagem pelo Egipto. Vindo de Rodos, o autor chega a Alexandria que encontra francamente destruída. A riqueza desta cidade, as suas "antiguidades" seriam apenas um "monte de pedras" que lhe dão o ensejo para falar das origens desta gloriosa cidade que, em tempos passados, conhecera uma vida cultural intensa. Já nessa altura existia uma escola superior e contara com a protecção de Deus, tendo aqui pregado os Apóstolos, nomeadamente, o evangelhista e primeiro bispo de Alexandria, São Marcos. Mas, segundo Schweigger, na actualidade já pouco restaria destes gloriosos tempos. Na sua opinião, os egípcios seriam "gente bestia", dado que "entre eles não se encontra um pouco de vergonha".29 Na sua viagem pelo rio Nilo - a que chama "o grande milagre da natureza" -,30 o autor iria constatar que os timoreiros mal tapariam as partes vergonhosas, sem qualquer respeito pelos viajantes dos seus navios, quer senhoras quer homens.31 Schweigger critica ainda o comerem com as mãos. Estes e muitos outros exemplos levam-no a afirmar que teria sido este seu indigno comportamento que teria provocado a ira de Deus. O facto de não se encontrar qualquer vestígio artístico entre os egípcios, leva-o a admitir que Deus os teria castigado, fazendo-os inaptos para qualquer manifestação de arte.32 A obra de Salomon Schweigger voltaria a lume um ano mais tarde, desta vez, numa colecção de viagens sobre a Terra Santa.33 Na verdade, Sigmund Feyerabend que já tinha publicado um Reysbuch, onde reencontramos os textos de Bernard Breitenbach, Felix Fabri, Johann Tucher, Johan Helffrich e John de Mandeville,34 editava, no ano de 1609,

29. "[...] bey denen wenig Scham zu finden ist". Salomon Schweigger, Ein Reißbeschreibung auß Teuschland nach Constantinopel vnd Jerusalém..., Nuremberga, 1508, ed. Graz, 1964, p. 269 30. "[...] das gromechtig Wunder der natur". Idem, p. 257. 31. "[...] daß die Schiffknecht/ wann sie die Schiff laden/ vnnd am Gestatt müssen vmher waten/ die Hemmeter weit über die Scham auffschürßen/ vnangesehen/ daß gemeiniglich viel Weiber vnd Mannspersonen daselbst hin und wieder zu gehen pflegen". Idem, p. 269. 32. "[...] von Künsten findet man nichts bey den Egyptern/ dann der Göttlich Zorn vnd Fliech hat alle Künste außgereumbt/ deren diß land voll gewesen". Idem, p. 272. Importa acrescentar que ao fazer as suas considerações sobre os usos e costumes dos egípcios, Schweigger referencia muitas vezes os escritos de autores clássicos, em especial, Heródoto e Plínio. 33. Sigmund Feyerabend, Reyßbuch deß heyligen Lands, 2 parte, Frankfurt, 1609. 34. Esta mais uma das numerosas publicações da obra de John de Mandeville, que teria viajado até ao Oriente entre 1322 e 1356; nesta sua viagem teria visitado o Egipto.

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um segundo volume, onde trazia a prelo, entre outros, o escrito de Salomon Schweigger.35 Testemunhando a importância e actualidade da colectânea realizar-se-ia, em 1659, uma nova edição. Partindo do príncípio de que a ciência histórica é uma grande mestra, como se afirma no prólogo,36 o editor lança mãos a esta iniciativa. Na sua opinião, seria de justiça conhecer não só as viagens para ocidente, como também as orientais, pois, tal como as primeiras, também estas trouxeram estonteantes e novas informações; e mais tanto as ocidentais como as orientais seriam empreendidas em honra ao Criador. No seguimento das recolhas sobre os novos mundos,37 o editor intenta organizar uma colectânea das viagens orientais, em especial das peregrinações, no intuito de formular uma imagem global das actividades em terras do Oriente. É seu desejo que não se desprezem os conheci-mentos adquiridos na Àsia, visto que também estes contribuem indubitavelmente para um prolongamento do horizonte do saber. De concepção muito similar, surge a relação de Hans Jacob Breuning von Buochenbach 38 editada na cidade de Estrasburgo, em 1612. A Orientalische Reyß... retoma temas já abordados e, mais uma vez, grande parte das informações provêem de autores da Antiguidade Clássica. Na verdade, desde a localização até à história do reino egípcio são os dados bebidos em autores como Heródoto, Ptolomeu, Estrabão, Tácito, Senéca e Plínio que predominam determinamente na estrutura narrativa. Esta edição não deixa, todavia, de ser importante pois, embora pouco acrescente ao

35. Na relação de Nicolai Christophori Radzvili, vertida do polaco, aonde se refere à sua passagem pelo Egipto. 36. "Dieweil auch Menschlicher Verstand vnd Natur allzeit etwas neues/ das da sey von guten Künsten/ selßamen Geschichten/ unbekannten Völckern vnd Landschafften/ zu wissen und zu erfahren begehrt: wer dann aus täglicher Erfahrung zu Gemut führet/ daß wegen offt und viel mal einfallenden schweren Krieg/ Verwüstungen/ vnd andern Landstrassen Gottes/ hin und wieder in Königreichen/ Landschafften/ Städten und Flecken grosse Aenderung sich begeben und zutragen [...] Der wird in gegenwärtigem Buch gnugsam Exempel finden [...] Das kann man aus den alten als neuen Historicis erlernen. Bevorab vnd insonderheit aber aus denen/ welche das/ so sie selbsten mit Augen gesehen / observirt/ und wohl eingommen/ eigen Fleiß auff das Papier bracht/ vnd andern zur Nachrichtung hinterlassen haben". Gemehrtes Reißbuch deß Heiligen Lands..., Nuremberga, 1659, prólogo. Não se faz referência ao editor deste volume, sendo apenas mencionados os impressores Johan Andreas e Wolfgang Endter. 37. Veja-se cap. 1.2. 38. O proprietário de terras Hans Jacob Breuning von Buochenbach partia, em 1579, para o Oriente, de onde regressaria só seis anos mais tarde.

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corpus prevalecente, apresenta uma interessante e, fora de série, colecção de ilustrações referentes ao Egipto que dão grande colorido ao seu escrito.39 Neste contexto caberá ainda mencionar a obra de Christoph Fürer von Haimendorff,40 que publicada primeiramente em latim nos anos de 1620 e 1621, viria a lume no ano de 1646, na mesma cidade de Nuremberga, mas desta vez em língua alemã: Reiß=Beschreibung. In Egypten/ Arabien/ Palästinam/ Syrien/.... Para além de que teria organizado a sua viagem "tudo segundo indicação da Sagrada Bíblia",41 como podemos ler no prólogo, C. Fürer von Haimendorff deixa que a leitura feita de autores clássicos defina o dia a dia da sua viagem no Egipto. C. Fürer von Haimendorff não se esquece, todavia, de destacar o ambiente mercantil, uma das principais funções das cidades egípcias. Refere várias casas comerciais europeias residentes no Egipto, bem como a presença de mercadores de todas as províncias da Ásia e África nas ruas egipcianas cheias de variadíssimos produtos, como tapetes, ouro, prata, seda e especiarias.42 Em 1658, Hieronymi Welschen43 publica a sua Warhafftige Reiß=Beschreibung auß eigener Erfahrung von Teuschland/ Croatien/ Italien..." com a intenção de relatar sobre a sua maravilhosa e estranhíssima história.44 Como em muitos outros textos, também Welschen considera que deveria deixar um apontamento escrito da sua viagem. Este seu relato não seria fruto da sua imaginação, mas sim uma

39. Estas ilustrações representam alguns dos animais do Egipto, girafas, camelos e crocodi-los, bem como as famosas pirâmides. Sobre as ilustrações, veja-se Ursula Degenhard, Entdeckungs-und Forschungsreisen im Spiegel alter Bücher, Estutgarda, 1987. 40. Terminados os estudos de arte e línguas, Christoph Fürer von Haimendorf partiria, aos vinte quatro anos, para uma viagem até ao Oriente no intuito de complementarizar a sua formação académica. Regressado à terra natal instalar-se-ia em Nuremberga, onde exerceria um valioso posto na administração militar desta cidade. 41. "[...] alles nach Andeutung der heiligen Bibel". C. Fürer von Haimendorf, Reiß=Beschreibung..., Nuremberga, 1646, prólogo. 42. "Es wird [...] so viel vns mancherley Sachen verkauft/ daß es fast nicht zu erzehlen ist". Idem, p. 69. 43. Hieronymus Welschen, que viajara onze anos pela Europa, Ásia e África, viria a escrever a sua relação na cidade alemã de Estugarda, onde exercia um cargo público. 44. "[...] von dieser wunderbahren/ und vor fast allen andern/ so in der Welt geschehen/ sehr denckwürdigen Historia/ habe ich der Ursachen halber allhier Relation erstatten wollen". H. Weschen, Warhafftige Reiß=Beschreibung, Estugarda, 1658, prólogo.

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compilação de obras históricas e de experiências próprias.45 No entanto, Welschen que nunca visitaria o Egipto iria mencionar aspectos da história e economia deste país. Com efeito, H. Welschen aproveita o facto de navegarem ao longo da costa de Marrocos para tecer algumas consi-derações sobre a tomada de cidades africanas por Frederico Barbarossa, bem como as consequentes represálias dos europeus, destacando exaustivamente o êxito alcançado, no ano de 1535, pelo imperador alemão Carlos V.46 H. Welschen, que recolhera as suas informações a bordo, transmite uma imagem similar à esquissada nas relações anteriores: confirma o declínio cultural de Alexandria e exalta a vida comercial, no Cairo. É de tal forma pormenorizado o seu comentário que quase passaria despercebido que o autor não esteve em terra - Welschen deixa pura e simplesmente de falar na primeira pessoa. Esta obra viria novamente a ser editada, nomeadamente, em Nuremberga, em 1664, ano em que viria a lume a Türckischer Landstürtzer... de Christian von Wallsdorf.47 Aqui ressalta mais uma vez a imagem preva-lecente das cidades de Alexandria e Cairo, quer como cidades de longa tradição histórica, quer como importantes portos do mundo mediterranêo em posse do império turco. Johan Sommer48 visitaria Alexandria e Cairo a caminho da Turquia. Enquanto a cidade de Alexandria se encontra "devastada pelos mouros selvagens" e sem "nada de estranho para ver",49 o Cairo, pelo contrário, "é

45. "[...] entweder auß denen Historis, oder auß eigener Erfahrung bessere Wissenschaft". Idem. 46. Esta expedição viria a ser documentada nos denominados Flugschriften, isto é, textos de curta extensão, onde se divulgam as notícias de maior actualidade. Sobre os Flugschriften veja-se W. Schomburgk, Die Geschichtsschreibung ueber den Zug Karl's V. gegen Algier 1541, Leipzig 1875; Paul Rachel, Die Geschichtsschreibung über den Krieg Karls V. gegen die Stadt Mahedia oder Afrika (1550), Dresden, 1879. Sobre um dos seus principais autores, de nome Christoph Scheurl, veja-se Franz von Soden, J.R.F. Knaake (Ed.), Christoph Scheurl's Briefbuch, Aalen, 1962 e Maria Grossmann, Bibliographie der Werke Christoph Scheurls, in: Archiv für Geschichte des Buchwesens 10 (1970), pp. 371-396. 47. Christian von Wallsdorf seguiria para a Turquia como soldado, no ano de 1660, segundo se depreende do seu título, vindo a ser preso numa das batalhas. Após a sua libertação iria viajar durante três anos e o apontamento que nos deixou relata principalmente a sua experiência na Turquia. 48. O holandês Johan Sommer, na viagem que fez pela Europa e África, esboça um apontamento das experiências na Turquia, onde esteve preso durante treze anos. 49. "[...] sehr verwüstet von den wilden Moren [...] nichts frembdes zu sehen". Johan Sommer, Wasser und Land-reyse..., Amsterdão, 1664, p. 27

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uma das cidades mais grandiosas de todo o mundo"50 e, mais adiante, "não há nada no mundo, como digo, que não se encontre no Cairo".51 O inglês Georg Sandys,52 que visitaria o Egipto a caminho da Turquia,53 realça, de igual modo, alguns aspectos que mais lhe interessaram na sua visita a este reino, notando-se uma preocupação constante de o apresentar detalhada e pormenorizadamente desde os seus tempos gloriosos até ao presente. Nas quase cem páginas que escreve sobre o Egipto, Sandys aborda exaustivamente temas da história e da geografia deste país afri-cano, pelo que o seu texto perde o carácter de relato de viagem para mais se parecer com um pequeno compêndio histórico. O Egipto seria também uma das estações por onde iria passar Georg Christof von Neitzschitz. Tal como refere no seu prólogo, viajar é "uma obra necessária e útil" e explica que nada pode substituir esta experiência de ver com os seus olhos a terra e as gentes e de como elas se vão modificando ao longo dos tempos.54 Opina, assim, que é necessário estar atento, pois embora aparentemente pouco se tenha modificado, há sempre algo que muda. Daí a importância das relações de viagens que poderão ilustrar e dar conta destas mesmas alterações. Ao ensinarem sobre os diferentes usos e costumes dos seus povos, as relações são, a seu ver, grandes mestras. Cada um terá a sua arte de apresentar as particularidades

50. "[...] eine von den allerfürnehmsten Städten der gantzen Welt ist". Idem. 51. "Es ist nichts in der Welt/ wie ich meyne/ das man nicht zu Cayro findet". Idem, p. 36. Esta obra seria ainda publicada em 1669 e em 1670 na cidade de Frankfurt. No que tange às edições holandesas, vem ao prelo em 1649 e mais tarde em 1661. A tradução para o alemão é da autoria de Martin Meurer. 52. Georg Sandys, Sandys Reysen inhaltende die Histori von dem ursprünglichen und gegenwertigen Stand deß Türckischen Reichs..., Frankfurt, 1669. Edições inglesas: Londres, 1615, 1621, 1627, 1632, 1637 e ainda na colecção de viagens da autoria de Richard Purchas, no ano de 1625. 53. Neste contexto urge destacar o grande interesse dos europeus pela Turquia no século XVI que, aliás, se reflecte no número de publicações sobre este país, o dobro do das alusivas à América. Veja-se o excelente estudo rico em informações de Carl Göllner, Tvrcica, III vol.: Die Türkenfrage in der öffentlichen Meinung Europas im 16. Jahrhundert, Bukarest, Baden-Baden, 1978. 54. "[...] ein nöthig und nüßlich Werck [...] Nöthig ists um der Erfahrung willen/ daß man da mit Augen sehe und glaubwürdige nachsagen kan/ wie sich die Ländern und Leuthe von Jahren zu jahren verändern und entweder verringern/ oder bessern..." George Christoff von Neitzschitz, Des weitlaut Hoch=Edelgebornen/ Gestrengen und Vesten Herrn George Christoff von Neitzschtz (...) Sieben=Jährige und gefährliche WeltBeschauung durch die Vornehmsten Drey Theil der Welt..., Büdißin, 1666, p. 6. Ainda em 1673 e 1674 em Budißin e 1686 em Nuremberga.

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de um país, tudo depende do seu critério selectivo, mas o que é mais importante é o saber aí compilado. Seguindo estes seus princípios na Sieben- jährige und gefährliche Welt-Beschauung..., Georg Christoph von Neitzschitz dedicaria algumas das suas páginas à estada no Egipto: "um reino famoso, também conhecido da palavra de Deus".55 Mas estando assim em presença de um reino desde há muito conhecido, cuja história estaria cheia de eventos importantes para a história da humanidade, o certo é que já poucos vestígios se veriam desse passado e os seus habitantes comportar-se-iam mais como um "povo bárbaro" com "tão pouca vergonha como entre os animais irracionais".56 A sua apreciação não esconde uma certa intolerância frente a um povo que aderiu a outra religiosidade e a outras leis, principalmente quando esta religião é claramente adversa ao cristianismo. Certamente é ainda o reflexo do confronto de poderes entre cristãos e muçulmanos, concretamente turcos. Daí que a sua elevada consideração e admiração pelo passado deste país desapareça paulatinamente quando traça o retrato actual, onde a dicotomia religiosa reprime o entusiamo inicial. A Morgenländische Reise=Beschreibung de Arnd G. Stammer e a Reiß=Beschreibung in unterschiedliche Teile der Welt...57 do italiano Pierre della Vale são mais dois relatos que nos informam sobre o Egipto. Stammer um viajante a caminho da Terra Santa58 e Pierre della Valle um erudito que traçou o percurso da sua viagem segundo as leituras feitas. De etapa em etapa, Valle busca fervorosamente as notícias que leu e, em forma epistolar, relata sobre os bons ou parcos resultados da sua aturada procura. Diodoro Sículo informa-o sobre a antiga Babilónia e as pirâmides; Heródoto e Solino fornecem-lhe dados quando fala das múmias; as descrições de Estrabão e Heródoto são-lhe preciosas para traçar o antigo percurso do rio Nilo e, de tempos a tempos, recorda uma flor que, por ter sido descrita por Heródoto, Valle gostaria de encontrar. P.

55. "[...] egypten ist ein berühmt und auch in Gottes Wort bekantes Land und Königreich". Idem, p. 138. 56. "[...] so wenig Scham/ als bey dem unvernünftigen Vieh". Idem, p. 148. Esta obra viria ainda a lume na cidade de Bußidin em 1673, e, em 1686, em Nuremberga. 57. Pietro della Valle, Reiß=Beschreibung in unterschiedliche Teile der Welt, Genebra, 1674. A edição original data de 1650. Publicada em Roma seguir-se-lhe-á uma outra em 1658 e depois, em 1662-63. Teria ainda edições em Veneza 1661, 1664, 1667 e 1681, em Bolonha no ano de 1672 e seria traduzida para quatro línguas: alemão (Genebra 1674) inglês (Londres, 1665), holandês (Amsterdão, 1664-65) e francês (Paris 1663,-1670). 58. Arndt G. Stammer, Morgenländische Reise= Beschreibung, Jena, 1670. Viria ainda a ser publicada em 1675.

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della Valle não se deixa apenas guiar pelas descrições de autores da anti-guidade. Como apaixonado coleccionador, interessa-se por tudo o que são "curiosidades".59 No ano de 1676 vem a lume em Dresden a Orientalische Reisebeschreibung de P. von Troilo. Numa viagem feita entre 1666 e 1670 até à Terra Santa, o autor irá ter a oportunidade de ver, com os seus próprios olhos, o que conhecia dos relatos de Plínio e Heródoto, mas o que se reflecte no seu texto é o facto de, no regresso e, já perto de Sícilia, ter sido aprisionado, acabando por ser vendido, na cidade de Alger, como escravo para serviço doméstico. O livro de Troilo pertence, com efeito, a um grupo de relações, cuja temática principal roda em torno do problema da escravatura na Algéria. São vários os autores cristãos que por circunstâncias várias - quer ataque turco, quer temporal - vão dar à costa africana; feitos prisioneiros, viveriam uma experiência de escravidão. Já no ano de 1572 seria publicada Der erste theil von der Schiffart vnd Raeys in die Türckey...,60 em que o francês Nicolas Nicolai conta a sua experiência neste país africano após um ataque turco ao seu navio. Seriam apenas uns dias que Nicolas Nicolai ficaria preso, mas o suficiente para poder relatar um pouco sobre esta cidade do norte de África e os usos e costumes dos seus habitantes. Michael Heberer von Bretten, cujo desejo de conhecer outras universidades o leva a viajar, viria a ter uma sorte idêntica. Após vários anos de estudo em Heidelberga e de trabalhar, durante três anos, como mestre do jovem sueco conde Erich Bjelte, Bretten viria a partir em direcção à Itália e à França; neste país, devido a alguns conflitos, vê-se obrigado a fugir, mas o seu navio viria a ser alvo de um ataque turco, pelo que M. Heberer von Bretten seguiria para o Egipto e Constantinopla, mas, desta vez, como escravo. Após três anos de escravidão, um diplomata francês comprar-lhe-ia a liberdade. No intuito de realizar os seus sonhos, Bretten segue para a Itália, onde virá, em Pádua, a concluir o curso de

59. Uma das histórias mais curiosas que se conta sobre a vida de P. della Valle seria a de que quando a sua mulher, originária da Georgia, falecera, ele teria levado consigo, durante quatro anos, até ao regresso a Roma, o seu corpo embalsamado. Veja-se a vita com que o abade Philippo Maria Bonini abre a edição alemã. 60. Nicolas de Nicolai, Der erst Theil von der Schiffart und Rays in die Tückey ..., Nuremberga, 1572. A acompanhar esta edição bonitas ilustrações, principalmente, dos trajes usados na Turquia e no Egipto.

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direito e só, em 1592, regressa a Heidelberga, onde virá a editar um relato da sua atormentada viagem sob o título de Aegyptica servitus...61 Caso similar é o que conta a Reisebeschreibungen eines Gefangenen Christen Anno 1604 de Johan Wild.62 Preso na Hungria, onde se encontrava ao serviço do exército imperial, Wild seria vendido várias vezes; um dos seus senhores, um comerciante, trazê-lo-ia até ao Egipto, onde viria a obter a liberdade. Estes anos de vida atribulada em que percorreu vários países e conheceu diversos senhores são a estrutura narrativa da sua obra. Para além dos peregrinos e dos cristãos escravizados surgem outros grupos sociais a relatar sobre o Próximo Oriente. Lancelot Addison, um diplomata da embaixada inglesa em Fez e Marroco, escreveria um livro sobre as suas impressões e experiências nestes reinos a que deu o título de West=Barbarey.63 Publicado, em 1672, na cidade de Nuremberga, esta obra documenta pormenorizadamente a situação político-cultural destes dois países: na primeira parte o autor informa sobre as formas governa-mentais, enquanto na segunda parte se debruça sobre aspectos da maneira de viver e ser dos habitantes. O Egipto é ainda para o inglês H. Blunt a "origem e a fonte de toda a sabedoria e ciência".64 Já nos finais do século XVII é o francês Jean Thevenot que na segunda parte do seu livro intitulado Deß hernn Thevenots Reisen in Europa, Asia und África...65 chama a atenção para o passado histórico deste país, bem como para a sua organização e administração.

61. Michael Heberer von Bretten, Aegyptica servitus: Das ist/ Warhafte Beschreibung einer Dreyjährigen Dienstbarkeit/ so zu Alexandrien in Egypten..., Heidelberga, 1610, ed. Graz, 1967. 62. Johan Wild, Reisebeschreibungen eines Gefangenen Christen Anno 1604, Nuremberga, 1613. Seria ainda publicada dez anos mais tarde na mesma cidade. 63. Lancelot Addison, West Barbarey. Erster Theil/ Enthaltend die Veränderungen der Regierung... Anderer Theil/ Begreiffend die gegenwärtige Beschaffenheit/ und Lebens=Art derselben Völker/ im Geistlichen/ Weltlichen/ und Haus=Stand/..., Nuremberga, 1672. 64. "[...] ursprung und brunnen aller Weißheit und Wissenschaft". Henrich Blunt, Des Edlen Herrn Heinrich Blunt/ englischen Herrn und Ritters Morgenländische Reise..., Helmstädt, 1687, p. 3. A edição original inglesa é publicada em Londres, 1636. Viria ainda a lume nesta cidade em 1638, 1650, 1664, 1669 e 1679. 65. Jean Thevenot, Deß Herrn hevenots Reysen in Europa, Ásia und África ..., Frankfurt, 1693. Edições francesas: Paris 1664, 1665, 1684 e 1689.

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Por fim, é a vez de um texto de carácter científico: Deß Herrn de Monconys ungemeine und sehr curieuse Beschreibung seiner in Asien und das gelobte Land...66 Este o último escrito sobre o norte de África que viria a lume no século XVII em língua alemã. As viagens pela Europa, Ásia e África de Balthasar de Monconys, um interessado das matemáticas e de outras ciências naturais, só tinham um objectivo: recolher dados para as suas pesquisas. A sua relação escrita em género epistolar não se debruça em primeiro plano sobre os países visitados, mas sobre o que cada um deles pode contribuir de útil para os seus experimentos; é pois antes de mais um relatório protocolar, da composição e percentagens de sal das águas do rio Nilo, de experiências com plantas e animais com fins medecinais, entre outros. O leitor deste texto poderá, assim, ter conhecimento do dia-a-dia de um investigador ao descrever e coleccionar os diversos fenómenos naturais. Embora faça poucas considerações acerca dos habitantes dos países por onde anda, Monconys é, nas suas apreciações do povo egípcio, surpreendemente tolerante. Daí que não seja de estranhar ouvi-lo dizer que não considera estes homens mais bárbaros do que os europeus; e chega a afirmar que um turco sofrerá maior desgosto do que um cristão em terras egípcias, em suma, a gente é boa e a discrepância religiosa em nada os diferencia dos europeus; a natureza humana é como em todo o mundo. Culmina o seu comentário com um elogio aos bons costumes e às qualidade morais dos homens egípcios, qualidades estas que muito gostaria de encontrar entre os cristãos.67 Esta sua postura pretende certa-mente dar uma resposta definitiva às grande hostilidades, quase sempre de feição religiosa, entre cristãos e muçulmanos. Com efeito, nos finais do século XVII, os viajantes começam a encarar de modo menos dogmático a outra realidade humana. Oscilando entre um passado histórico-cultural (e biblíco) e um espaço geográfico de aventuras insólitas de pirataria e escravidão, o retrato dos

66. Balthasar de Monconys, Deß Herrn de Monconys ungemeine und sehr curieuse Beschreibung seiner in Asien und das gelobte Land..., Leipzig e Augsburgo, 1697. Edições francesas: Lyon, 1665; Paris, 1667 e 1695. 67. "Das gemeine Volck habe ich nirgends barbarischer befunden/ als in Europa, allwo ich glaube/ daß selbst auch ein Türcke mehr Verdruß empfinde/ als hier in Egypten die Christen; kurz zu sagen/ alle Leute sind da gut/ und benimmt der Unterschied in der Religion ihrer Natur nichts. Es sind zwar überall gute und böse gemengt; doch muß man dis guten Sitten oder moral Tugenden bey diesem Volck bewundern/ welche ich wünschete/ daß sie bey allen Christen mochten gefunden werden". Idem, p. 218.

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autores dos séculos XVI e XVII alusivo a esta faixa norte de África segue quase sempre a mesma tipologia descritiva. Na esteira de uma tradição profundamente erudita, na sua grande maioria, os viajantes fornecem uma imagem pré-estilizada e pouco inovadora desta região, em rasgado contraste com outras zonas deste continente. É devido às suas ancestrais origens históricas que o Egipto constitui um dos temas por excelência dos textos dos séculos XVI e XVII, representando, por assim dizer, o mundo velho. Mas só muito esporadicamente constituiria o principal objectivo das viagens que era, como sabemos, a Terra Santa. Ao Egipto, reino onde a ameaça turca não deixava de se fazer sentir, cabia o papel de intermediário entre o mundo ocidental e o oriental.

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2.2 Guiné: A Caminho de um Mundo Novo O avanço ao longo do Atlântico traria novas paisagens, novas terras e novas gentes ao conhecimento dos letrados europeus. As caravelas portuguesas anunciavam a existência de um novo mundo ao sul do Equador e as viagens de Diogo Cão auguravam uma grande renovação na concepção do espaço africano. Diogo Cão seria assim o primeiro navegador a comprovar a existência de um mundo para além da linha equatorial1 e, mais, que este seria habitado. As primeiras informações relativas ao reino da Guiné chegavam a Portugal com as viagens que, a partir de 1434 com a passagem do Cabo Bojador, do Cabo Branco e do Cabo Verde (1445), alcançavam a denominada região da costa da pimenta, do ouro e dos escravos. Procurando descrever e apontar tudo o que se lhes apresentava perante os seus olhos: a costa, as árvores, as plantas, os animais, os habitantes bem como os produtos existentes, os viajantes anotariam as impressões iniciais relativamente à paisagem africana, deixando que o sabor vivencial das etapas das viagens se reflectisse e tornasse visível na estrutura narrativa dos seus textos. Estes homens ambicionavam dar a conhecer a novidade que, como viajantes, tinham a oportunidade de observar em primeira mão, fixando-a assim de uma forma tão exacta quanto lhes era possível, a fim de que o seu esquisso fosse também compreensível para aqueles que não a podiam ver. Na leitura destes textos sobressai, especialmente, o fascínio que a paisagem exerce sobre os novos observadores. Luís de Cadamosto escreve que a costa do Cabo Verde seria tão bela que, ele próprio que já tinha viajado por muitos sítios, nunca tinha visto um litoral tão bonito e tão rico.2 A sua entusiástica descrição enche-se de adjectivos e de expressões qualificativas na tentativa de encontrar palavras que correspondam inteiramente à sua observação e apreciação.

1. Que a região ao sul do Equador seria considerada como um "outro mundo" ou um "mundo novo", testemunha por exemplo, Luís de Cadamosto, bem como uma série de fontes coevas. Veja-se W. G. L. Randles, L' image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVIe Siécle, Lisboa, 1959, pp. 18-20 e W. G. L. Randles, Le Nouveau Monde, L'Autre Monde et la Pluralité des Mondes, in: Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, Lisboa, 1969, pp. 1-39. 2. Luís de Cadamosto, Navegações de Luís de Cadamosto, ed. G. C. Rossi, Lisboa, 1944, p. 60.

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Este frémito entusiasmo encontra-se em muitos outros textos referentes a esta região, principalmente quando se trata de louvar uma paisagem de tão grande beleza e riqueza. Diogo Gomes, que participou em várias viagens a partir de 1444, refere-se à fartura e fertilidade da Guiné nos seguintes termos: "E aquela terra meridional está cheia de árvores de frutos, mas outra espécie de frutos, e as árvores são tão grossas e de tamanha altura que só vendo se pode crer. E eu digo com verdade que vi grande parte do mundo, mas não vi coisa parecida".3 Ao descreverem a paisagem natural guineense, os autores salientam em primeiro plano dois elementos que se lhes apresentam determinantes desta natureza, ou seja, por um lado, trata-se da abastança e, por outro lado, na qualidade em que esta se exprime, aludindo, em especial, às plantas e animais até então desconhecidos e mais, às muitas espécies diferentes das "nossas".4 A natureza de uma multiplicidade estonteante incita ao registo. Só que para a descrição de muitas destas espécies faltam pura e simplesmente conceitos e denominações. Daí que os autores recorram, muitas vezes, a comparações com a realidade conhecida, a fim de melhor descreverem e ilustrarem a novidade de além-mar.5 Se, de início, constituira uma grande surpresa verificar que esta região era habitada, pois segundo os autores clássicos era impossível a existência humana nestas paragens, os nautas portugueses traziam agora, para Portugal, alguns habitantes como prova do contrário.6 Se nas primeiras viagens ouvimos, entre outros Diogo Gomes, afirmar que é tanta a multidão de gentes que é difícil de acreditar, pouco a pouco os mareantes portugueses estabelecem estreitos contactos com os reinos do Senegal e do Gâmbia. O veneziano ao serviço do Infante D. Henrique, Luís de Cadamosto, descreve a relação efectiva e permanente que se foi criando com os habitantes destes reinos, deixando transparecer, no seu texto, algumas das formas de organização, bem como usos e costumes destes íncolas.7 Quanto ao rei do Senegal refere que "é senhor de gente selvagem e muito pobre; e na verdade não há no país nenhuma cidade nem lugar murado, senão aldeias e casas de palha (que eles não sabem fazer casas de

3. Diogo Gomes/ Martin Behaim, Do primeiro Descobrimento da Guiné, in: José Manuel Garcia, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, p. 35. 4. Luís de Cadamosto, op. cit, p. 48. 5. Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo Situ Orbis, 1505 ed. Augusto Epifânio da Silva Dias, Lisboa, 1975 chama aos crocodilos "grandes laguartos", p. 111. 6. Veja-se Luís de Cadamosto, op. cit., p. 20 e Diogo Gomes, op. cit. p. 32; Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos de Guiné, ed. A. Dias Dinis, Lisboa, 1949, pp. 67-72. 7. Luís de Cadamosto, op. cit. p. 41 e segs.

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paredes porque não têm cal e têm falta de pedras)" e sobre a organização político-social afirma que: "O modo de vida deste rei é o seguinte: não tem rendimento certo, além daquele que lhes dão os senhores desse país todos os anos para estarem de bem com ele; os quais presentes são de cavalos que lá são muito apreciados, por deles haver falta, arreios de cavalo e algum gado, isto é, vacas e cabras, e alguns camelos e coisas semelhantes a estas".8 Para além destas considerações, Cadamosto faz referência ao facto de o soberano ter por costume muitas mulheres, assim como os senhores da terra, pelo que estas viveriam, em várias aldeias, tendo ao seu dispor um grande número de escravos. E quando o rei as pretende visitar não leva consigo qualquer mantimento, pois elas tem a obrigação de o acolher, e assim andam de localidade em localidade. Este costume encontra-o também no Budomel, reino onde permanece perto de vinte e oito dias. Eis o que nos diz: "Neste lugar [casa de Budomel] Budomel tinha nove mulheres (e outras muitas mulheres ele tem, que estão repartidas, como disse, por vários lugares). Cada uma destas suas mulheres tem 5 ou 6 raparigas negras que a servem. E é lícito ao senhor dormir tanto com as servas da mulher como com as próprias mulheres; nem as ditas suas mulheres têm [isso] por injúria por ser assim o costume".9 O facto de o rei, um verdadeiro senhor da cerimónia e etiqueta, ser acompanhado por uma escolta numerosa de dedicados acólitos, surpreende o mareante, pois, tal elevado respeito e dedicação seria pouco usual na Europa.10 Os contactos na Guiné intensificam-se, uma vez que as relações comerciais se tornam cada vez mais rentáveis, especialmente desde que os portugueses começaram a edificar feitorias na terra guineense (Arguim

8. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro Sintra, ed. Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1948, p. 117. 9. Idem, p. 129. 10. É interessante o episódio em que Cadamosto descreve quais os usos e costumes na audiência ao rei de Budomel: "Usam, também, de grandes cerimónias, quando estes tais senhores dão audiência a alguém: porque, quando vinha perante este Budomel alguém para lhe falar, por principal que ele fosse ou por muito seu parente, à entrada da porta do quintal haviam de lançar-se de joelhos com ambas as pernas, e com a cabeça bem para baixo, até ao chão, e com ambas as mãos a lançar areia para trás das costas e para cima da cabeça, estando inteiramente nu. Desta maneira saúda o seu senhor, pois ninguém se atreveria a vir, perante, ele, para lhe falar, que não se pusesse nu, apenas com as ceroulas de couro, que trazem para cobrir as vergonhas. E deste modo estão, bom espaço, atirando com aquela terra para as costas. Depois, aproximam-se mais dele, não se levantando nunca, mas rojando-se com os joelhos por terra, e [assim] as pernas. E quando ele está junto do senhor dois passos, detém-se falando e expondo o seu caso, lançando sempre areia para as costas, de cabeça baixa, como disse, em sinal de muita humildade. " Idem, pp. 130-131.

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1445; Mina 1481).11 Sobre a feitoria de Arguim, construída em 1445, diz-nos a mesma fonte que o Infante D. Henrique (1394-1460) arrendara esta região por dez anos ao comerciante Fernão Gomes, a fim de controlar as iniciativas comerciais dos arábes e ainda para obter uma base de apoio para novas viagens e descobertas ao longo da costa africana. Em troca de panos, prata e cereais, os portugueses adquirem, sobretudo, ouro e escravos, os produtos mais cobiçados. As estreitas relações comerciais criam progressivamente condições para um ambiente propício a novos diálogos e a medidas de actuação efectiva no sistema africano. O confronto com estes povos é compreendido, de um modo geral, como um encontro entre cristãos e possíveis cristãos. Os portugueses esperavam que os gentios que tinham vivido até este momento "em perdição das almas e dos corpos" recebessem, através do zelo cristão, o "lume da Santa Fé".12 Neste sentido, escreve o cronista Zurara: "[...] E assy que onde ante vivyam em perdiçom das almas e dos corpos, viinham de todo receber o contrairo; das almas, em quanto eram pagaãos, sem claridade e sem lume da sancta fe; e dos corpos, por viverem assy como bestas, sem alguna ordenança de criaturas rezoavees, ca elles nom sabyam que era pam nem vinho, nem cobertura de pano, nem alloja-mento de casa, e o que peor era, a grande ignorancia que em elles avya, pella qual nom avyam alguun conhecimento de bem, soomente viver em huna occiosidade bestial".13 A perspectiva proselitista de que os mareantes portugueses teriam levado a luz civilizacional aos africanos é uma vertente constante nos relatos portugueses coevos; é o enorme regozijo no papel de mensageiro de Cristo, oferecendo aos gentios a libertação do sacramento do baptismo. O avanço no Atlântico e a chegada à Guiné traduziam-se ainda em novos dados geográficos, cuja aquisição se reflecte ao longo dos diversos textos. Os autores-viajantes procuram definir e integrar geograficamente esta região na visão tradicional, apoiando-se, maioritariamente, para a

11. Sobre o significado das actividades comerciais na Guiné, veja-se A. Teixeira da Mota, Alguns Aspectos da Colonização e do Comércio Marítimo dos Portugueses na África Ocidental nos séculos XV e XVI, Lisboa, 1976 e Marília Lopes, A exploração económica da Guiné e de Cabo Verde nos séculos XV e XVI, in: Luís de Albuquerque (Ed.), Portugal no Mundo, Lisboa, 1989, 1 vol., pp. 250-263. Sobre a feitoria da Mina, veja-se por exemplo, o apontamento de Duarte Pacheco Pereira, op. cit. 12. Gomes Eannes de Zurara, Crónica dos Feitos da Guiné, ed. de A. Dias Dinis, Lisboa, 1949, p. 129 e ainda João de Barros, Ásia, ed. A. Baião e Luís F. L. Cintra, 4 vols, Lisboa, 1945. 13. G. E. de Zurara, Crónica dos Feitos da Guiné, op. cit., p. 129.

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elaboração dos seus textos, na fundamentação teórica dos autores clássicos referente a esta zona sul do continente africano. Persiste assim a ideia de que a Etiópia corresponderia a todo o sul de África. No testemunho de Diogo Gomes compilado por Martin Behaim podemos ler que aqui se escreve sobre o descobrimento da "Etiópia do Sul", que Ptolomeu considerava Agizimba, e que depois das descobertas portuguesas se denominaria Guiné.14 Fornecendo os princípios teóricos considerados básicos para a definição dos contornos geográficos, bem como de toda a nomenclatura do continente africano, os autores clássicos e, em particular Ptolomeu, seriam uma referência frequente nos escritos portugueses. A sua influência mostra-se ainda relevante, quando os autores portugueses abordam o sistema fluvial da costa ocidental africana. Visto como um braço do Nilo, o Senegal viria dos Montes Lunas, onde brotam as suas fontes, para a costa ocidental; formulando-se conjuncturas alusivas à possível localização das suas fontes e dos percursos fluviais até à costa ocidental. O facto de a Guiné se apresentar como uma região densamente povoada, indo contra as afirmações das teorias clássicas, constituiria naturalmente um motivo de reflexão e discussão nas obras dos autores portugueses. Na opinião de Duarte Pacheco Pereira a experiência dos navegadores lusitanos teria superado a dos antigos, pois estes tinham escrito que na zona meridional do Equador não existia vida humana e os nautas lusos testemunharam uma experiência contrária.15 As novas concepções sobre o espaço terrestre ultrapassam as fronteiras nacionais e encontram, além-Pirinéus, muitos espíritos curiosos. A Alemanha, ávida de notícias, procura entrar tão rápido quanto possível em contacto com as novas informações.16 O interesse pela novidade dos Descobrimentos desperta a sua atenção no que respeita a textos esclarecedores das novas descobertas. De uma fase inicial em que se divulgavam pequenos textos noticiosos, depressa livreiros, comerciantes e eruditos testemunhavam a necessidade de conhecer escritos mais informativos e capazes de apresentar uma visão de conjunto da empresa marítima. A primeira região sobre a qual se difundiram novas notícias foi precisamente a zona ao sul do Equador denominada Guiné. Uma das

14. Diogo Gomes, op. cit., p. 29. 15. Duarte Pacheco Pereira, op. cit., p. 127. 16. Convém mencionar o contacto entre Valentim Fernandes e Konrad Peutinger e referenciar o denominado Manuscrito de Valentim Fernandes que se veio a encontrar na posse de Peutinger. Veja-se os primeiros capitulos.

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primeiras obras a tratar esta região foi a já referenciada relação de Luís de Cadamosto, relação esta que viria a lume, na Itália, na célebre colecção de viagens: Paesi novamente retrovati no ano de 1507.17 Um ano mais tarde aparecia já em alemão, nomeadamente, em Nuremberga com o título Newe unbekanthe Landte und ein newe weldte in kurz verganger zeythe erfunden. O autor da tradução, Jobst Ruchamer, esclarece no prólogo que, a pedido de um amigo, se propusera verter este livro para o alemão e que, de imediato, se dera conta da urgência do seu trabalho, pois as informações aí reveladas mereciam uma rápida divulgação. Neste escrito fala-se de "ilhas maravilhosas, belas e divertidas com gente nua e negra, com maneiras e usos estranhos e nunca vistos, também animais e aves estranhos e maravilhosos, árvores deliciosas, especiarias, muitas pedras preciosas, pérolas e ouro...",18 isto é, das terras e gentes recém-descobertas. Estas informações estonteantes, que contradiziam os dados até então conhecidos, vinham, além disso, enriquecer significativamente a obra do Criador. Esta antologia inclui não só o texto de Luís de Cadamosto, mas também os de Américo Vespúcio, Cristovão Colombo e Fernando Cortês, bem como alguns relatos sobre as viagens orientais, sendo assim a primeira colêctanea sobre as viagens dos Descobrimentos. Entretanto, em 1509, vinha a lume um outro texto, desta vez da autoria de Balthasar Springer, um alemão que participou na expedição de D. Francisco d'Almeida à Índia (1505). Agente das casas comerciais Welser, Fugger, Hochstetter e Imhoff, Springer não só cuida dos interesses destas empresas, como ainda se inteira da viagem, deixando um importante relato, onde apontou particularidades da costa africana e decreveu aspectos dos povos visitados. Publicado em latim, viria ainda a prelo em flamengo, alemão19 e inglês.20

17. Fracanzio da Montalboddo, Paesi novamente retrovati, Vicenza, 1507. 18. "[...] wunderbarliche schöne und lustige inseln/ mit nackenden schwartzen lewten seltzamer und unerhörten sitten und weyse/ auch seltzame wunderbarlichen thyeren/ geflügeln köstlichen Bawmen/ Spetzereyen/ mancherley edeln gestayne/ berlen und golde/ " Newe unbekanthe Landte und ein newe weldte in kurz verganger zeythe erfunden, Nuremberga, 1508, prólogo. 19. Publicação esta que teria um título bastante elucidativo: Die Merfart nd erfahrung nüwer Schiffung und Wege zu viln onerkanten Inseln und konigreichen/ von dem großmechtigen Portugalichen Kunig Emanuel Erforscht/ bestritten und Ingenommen/ Auch wunderbarliche Streyt/ ordenung/ leben wesen handlung und wunderwercke/ des volcks und Thyrer darin wonende/ findstu in diessein Buchlyn warhaftliglich beschrybern un abkunterffeyt/ wie ich Balthasar Sprenger sollichs selbs: in kurtzuerschynenzeiten. gesehen un erfahren habe, etc. (Encontras neste livro a navegação e conhecimento de novas rotas e caminhos disputados e conquistados pelo magnífico rei de Portugal Emanuel, a maravilhosa luta, ordem, vida ser,

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Na costa ocidental africana, a região que Balthasar Springer descreve, como mais pormenores é a que denomina de "Byssegicks" (Bezeguiche). No dia sete de Abril lançam ferro perto de um local chamado "Byssegicks"; o rei e a população, como informa, usariam os troncos de árvores como navios para pescarem. Alguns africanos aproximar-se-iam em dois navios e como falavam muito bem o português logo compreenderam perfeitamente o negócio. Springer relata ainda que viu neste reino e ilhas muita gente - de ambos os sexos - maravilhosa e sem vergonha, pelo que andavam uns com os outros como os animais selvagens; alguns tapavam somente as vergonhas, outros nus, todos negros; as casas compara-as às cabanas da gente pobre nas aldeias da sua terra e conta que eles levariam as casas para onde queriam e conforme lhes dava mais gosto; nesta terra encontrar-se-ia ouro, do qual o rei de Portugal mandaria fazer moeda e curiosamente os íncolas destas terras não o trabalhavam nem nele reparavam; eles não precisariam de dinheiro, mas apenas de coisas como espelhos, argolas de latão, cristais azuis, ou muitas outras coisas idênticas, e o que acha mais estranho é que, quando lhe as levam, dão em troca boas mercadorias das que têm e do que ali cresce apesar do cuidado e atenção que lhes tem.21 Cotejando esta realidade com a sua, parte do seu padrão de conhecimento que assim o ajuda a julgar a

trato e obras maravilhosas dos povos sírios que aí moram, verdadeiramente descrita e desenhada como eu Balthasar Sprenger próprio vi e conheci em pouco tempo, etc. 20. A edição latina foi publicada em 1507, não se sabendo o local, a flamenga em Anvers, 1508, a alemã provavelmente em Augsburgo, 1509 e a inglesa sem local no ano 1520/21. 21. "Uff dem Siebenden tag des Aprillen da furen wie den Kaben ferrehynein inn der Moren land vnd wurffen vnser aencker vß/ vff drey meyln bey einem marckt heißt Byssegicks do ist der Moren kunig wohnafftig/ das volck hat hol bawn zu schiffung dar inn sie fischen Ir fyer furen mit tzweien der angetzeigten schiflein zu vns/ vnd retten gut Portugalisch sprach mit vns also das wir ein ander ganz in allen hendeln wol verstunden/ Wir sahen auch in diessetz Kungreich vnd Inseln wunderbar onschamhafft menschen beyderlei geschlecht vndereinander als die wilden Thyr: etlich allein die Scham bedecken die andern nackend/ all schwartz als die wir bei vns Moren nennen vmbaluffen: der Moren land sich auch da anheben: Ire wonungen und hüser geleichen sich den hütten als die armen dorfleut in vnsern landen über die backöffen machen: welch hüser die inwohner noch irem willen tragen wo hyn sie zu wonen lust haben. [...] Und sunderlich erscheint und felt der ende vil golts/ do von der Portugalisch Kunig sein Guldin Muntz schlagen und muntzen leßt Aber die ynlendischen diesser Inseln das golt nit arbeiten noch verwercken kunnen. Diß Volck braucht noch nympt bei ynen gantz kein gelt/ sunder allein seltzam auenturige ding/ als Spigel Messing ring/ lang blawe Cristallein &c. vnn der geleichen manigerlei was yn seltzam ist vnd ynen do hyn bracht wirt/ do geben sie ware umb ware/ vnnd was sie haben vnd bei yn wechst stuck vor stuck: noch yrer liebe vnd zymlicher achtung der selben ding/ Gewechs der bawm seyn übertreffener grösse". Balthasar Springer, Merfart, 1509. Veja-se Adam Jones, The Earliest German Sources for West African History (1504-1509). In: Paideuma 35, 1989, pp. 145-154.

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novidade; daí que a inexistência de determinados elementos seja compreendida como uma falta. Se durante o século XVI o Oceano Atlântico pertencia às caravelas portuguesas, já nos finais do século vão chegar a estas águas navios de outras nacionalidades interessados em comerciar na costa ocidental africana. E, para recolher informações sobre as potencialidades deste comércio, nada mais fácil do que embarcar em navios portugueses. O holandês Jan Huyghen van Linschoten22 foi um dos primeiros a trabalhar com entidades lusitanas. Já na viagem até à Índia, Linschoten aponta algumas informações alusivas às povoações da costa ocidental africana. De harmonia com a divisão feita pelos autores clássicos, isto é, em Barbária, Numídia, Líbia e Etiópia ou Terra dos Mouros, Linschoten afirma, quando se aproximam da Guiné, estarem a chegar à Terra dos Mouros. Numa pequena resenha informa que os portugueses teriam sido os primeiros a chegar a estas terras e que já tinham construído uma fortaleza e feitoria, o conhecido castelo da Mina. Refere que seria muito fácil negociar com o povo da Guiné, em especial, com aqueles que não vivem em terra dominada pelos portugueses, ou que não estão sob o seu jugo; a Guiné seria um reino populoso, mas os seus habitantes nada saberiam sobre Deus, nem de alguma boa polícia, sendo gentios adoravam ídolos; não usavam leis, nem qualquer ordem na sua maneira de viver; ouro, marfim, pimenta, arroz, algodão e alguns frutos seriam as mercadorias que os íncolas traziam do interior e, a seu ver, muitos destes produtos seriam completamente desconhecidos e nunca teriam sido descri-tos. Por fim, conclui que, segundo o que escreveu, se poderia dizer que não haveria qualquer falta ou necessidade nestas paragens, a não ser o facto de os íncolas não conhecerem a mensagem de Cristo, sendo assim um povo miserável que ansiava a felicidade eterna.23

22. Jan Huyghen van Linschoten parte de Lisboa em 1583 em direcção à Índia, onde deveria entrar ao serviço do bispo de Goa. Fica nesta cidade até 1588, onde reune um grande número de informações sobre a rede comercial dos portugueses. Depois do seu regresso à Holanda escreveria o Itinerario, que se iria tornar uma enciclopédia do Oriente, encontrando-se em todas as viagens da VOC para a Índia Oriental um exemplar a bordo dos seus navios. Sobre a política comercial e expansionista dos holandeses, veja-se E. Schmitt, T. Schleich, T. Beck (ed.), Kaufleute als Kolonialherren: Die Handelswelt der Niderländer vom Kap der Guten Hoffnung bis Nagasaki 1600-1800, Bamberg, 1989. 23. "Es ist mit dem Landvolck in Guinea gar wohl zu handieren/ insonderheit mit den jenigen so nicht vnder der Portugaleser gebiet vnd zwang sind/so die leut hinweg fuhren/ vnnd darumb gehasset werden, daß land ist Volckreich/ sie wissen aber alle sampt nichts von Gott/ noch von einiger guten Disciplin/ sind Heiden/ vnd ehren die Abgötter/ haben wieder Gesaß

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Testemunhando a riqueza e as potencialidades comerciais desta região, Linschoten constata a vida idolátra dos seus habitantes, facto que virá a confirmar na próxima paragem da sua viagem, nomeadamente, no reino da Gâmbia, onde os habitantes também adoram o sol e a lua e vivem como animais, dormindo no chão e alimentando-se do que a natureza lhes dá. Recebidos com grande entusiamo e cordialidade, Linschoten sente-se atraído e, ao mesmo, receoso perante esta recepção tão afável e estranha. Segundo o costume local, os íncolas acenam e dois deles batem as mãos em sinal de paz e amizade.24 Seguindo este ritual, iniciar-se-ia um contacto amistoso entre os habitantes e os mareantes; segundo conta, eles seriam os primeiros brancos com quem estes povos teriam comerciado. Esta foi a última estação no reino da Guiné, antes de chegar ao cabo da Boa Esperança. Mais uma vez é com um visível fascínio que descreve a fertilidade destas regiões repleta de grande variedade de árvores de frutos desconhecidos e rica em produtos negociáveis, características de uma paisagem aprazível, onde os habitantes permitem estabelecer contactos pacíficos. O holandês Pieter de Marees relata, igualmente sobre a sua viagem pela costa ocidental africana, descrevendo a terra e os seus habitantes segundo informações que ele próprio recolheu quer junto dos povos africanos quer junto dos europeus que aí habitariam. A edição alemã datada de 160225 informa sobre os inícios da viagem até ao Cabo Verde, onde o autor encontra gente de grandes qualidades. Com efeito, Marees considera este povo muito inteligente,26 visto que muito percebem de agricultura, nomeadamente do cultivo de cereais e de arroz, e das grandes riquezas que

noch Ordenung zu leben/ Golt/ Helffenbein/ Geltsand/ Aegyptischer Pfeffer/ Reiß/ Gersten/ Baumwol/ vnd mancherley Frucht/ deren Sie vnseren vber der hundert forten/ alle zuuor vnbekand vnd vnbeschrieben/ von dannen auß dem Landt mit bracht haben [...] In summa da ist kein mangel einßiger Notdurfft/ als nur allein daß sie die Erkantnuß von Christo vnd seinem Wort nicht haben/ dadurch daß arme Volcklein die ewige Seligkeit erlangen mögte." Theodor de Bry, Ander Theil der Orientalischen Indien, Frankfurt, 1598, p. 9. 24. "[...] kloppen alle in de hände / wie da im land der gebrauch ist/ den vnseren aber war es etwas frembts vnd selßames [...] Sie wincketen mit beyden händen/ vnd die zwen Männer plaßten mit ihren händen zusammen/ dadurch sie ihren frieden vnd freundschaft/ nach ländlichen gebrauche wolten anzeygen/ vnd den vnseren verkündigen" Idem, p. 12. 25. Marees viria a publicar esta sua descrição do reino da Guiné em Amsterdão no ano de 1602. Gothhard Arthus verterá alguns capítulos para o alemão que surgem ao público, um ano mais tarde, na obra de Theodor de Bry. 26. Gotthardt Arthus von Dantzig, Des orientalischen Indien, 6 parte, Wahrhaftige Historische Beschreibung deß gewaltigen Goltreichen Königreichen Guinea, Frankfurt/M. 1603, p. 5.

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possuiem em gado. Além disso, já sabiam trabalhar o ferro, com o qual fariam instrumentos para a pesca, bem como armas. Não obstante considere que tenham pouco conhecimento de Deus, Marees conclui que este povo já estaria apto a tirar partido de uma terra tão fértil. Daqui prossegue até à terra do ouro, até à Mina. Ao passar o reino de Mali assinala tratar-se de uma terra também muito rica em trigo, arroz, algodão e carne. No que tange aos seus habitantes, estes seriam gente má e cruel, apesar de saberem falar português e francês e de também serem grandes conhecedores da lavoura. Após algumas considerações sobre as regiões e as origens do nome do continente africano, destacando que, no norte de África, viveriam mouros, no sul, perto do Cabo da Boa Esperança, povos muito selvagens, a oeste os cristãos e a este os povos de influência judaica, debruçar-se-á em vários capítulos mais pormenorizadamente sobre os usos e costumes dos povos da Guiné. Em primeiro lugar conta como estes festejam o casamento, aludindo aos usuais ajustamentos acertados entre os pais dos noivos. Nesta região seria, todavia, costume os homens terem tantas mulheres quantas pudessem sustentar, embora, como anota, fizessem uma distinsão entre a primeira mulher e as outras mulheres. No que tange à vida familiar do casal repara, de modo intrigado, que nem comem nem dormem juntos. O problema da educação das crianças também o interessa; menciona, por exemplo, que desde pequenos trazem consigo muitos feitiços,27 artefactos estes que, como protecção, os acompanham em todos os momentos do dia. Acrescenta que rapazes e raparigas crescem juntos como selvagens, sem qualquer orientação dos pais. A partir dos oito, dez anos começam a trabalhar e, enquanto os rapazes, por volta dos dezoito anos, começam a negociar nas "canoe", as raparigas fazem trabalhos caseiros. Os homens desta região são corpulentos, fortes e cheiram a oléo de palma. No que respeita às mulheres, Marees afirma que, desde que os europeus começaram a frequentar estas costas, elas criaram uma certa vergonha e aprenderam a arranjar-se. Além disso, de uma maneira geral, tanto as mulheres como os homens, teriam muito cuidados com o aspecto, pelo que usariam oléo de palma no arranjo dos cabelos. A terminar estas notas de carácter etnográfico, Marees dedica-se, nos últimos capitulos da edição alemã, às trocas comerciais. Junto de uma listagem dos produtos trazidos pelos holandeses, o autor explica

27. A palavra portuguesa feitiço será adoptada e referenciada na maioria das fontes alemãs. No capítulo 3.5.1. deste trabalho serão analisados alguns aspectos relacionados com os problemas linguísticos na descrição das realidades estranhas e diferentes.

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pormenorizada e concisamente como se efectuam os tratos nestas terras de África. Já nos primeiros relatos ficara um alerta. O facto de o povo guineense acatar a idolatria pagã interpretava-se como um desafio à cristandade ocidental predestinada para chamar estes filhos perdidos à fé cristã. No ano de 1609 Aegidius Albertinus publicava a sua Historische Relation/ (...) kurtze Beschreibung deß Landts Guinea vnd Serra Lioa in Africa ligendt precisamente com a intenção de actualizar as informações sobre estas regiões africanas. Dadas algumas dificuldades na localização geográfica destas terras em África, o autor decide reunir algumas notícias capazes de fornecer uma imagem mais correcta. Motivado pela quantidade de informações chegadas diariamente sobre a empresa descobridora, Albertinus intenta traçar um debuxo dos contactos estabelecidos, contactos estes que não seriam só de cariz comercial, mas também de índole cultural e religiosa. Aegidius Albertinus preocupa-se, especialmente, com a acção missionária dos cristãos e relata sobre alguns êxitos alcançados entre estes povos africanos. Uma vez que eles teriam costumes antigos muito enraízados e seriam muito dados à superstição, o letrado germânico considera que muito haveria ainda para fazer no que respeita à evangelização das populações locais. E, o que acha ainda de maior acuitamento: não os deixar sem orientação. Para uma verdadeira cristianização, não chega, na sua opinião, baptizá-los, visto que a sua conversão não deverá ser apenas "um sinal exterior do cristianismo".28 Neste contexto dever-se-ia ter em atenção que, desde o rio Senegal até à província da Serra Leoa, habitariam diversas nações com diferentes usos e várias práticas religiosas. Os primeiros, que se encontrariam nestas regiões, seriam os denominados Jalofos, cujo reino de grandes dimensões seria bem abastecido de toda a espécie e qualidade de frutos; os íncolas, bem constituídos e proporcionados, seriam, na generalidade, bons guerreiros.29 Já no reino da Gâmbia viveriam os Mandigas, selvagens, infíeis e muito dados à idolatria e à superstição, 30 no rio Casamanga os

28. "[...] ein eusserliches Zeichen deß Christenthumbs". Aegidius Albertinus, Historische Relation..., Munique, 1609, p. 326. Algumas passagens recordam o texto de Fernão Guerreiro, Relaçam annual das cousas que fizeram os Padres da Companhia de Iesus..., 5 vols, Évora, 1603, Lisboa 1605 e 1607; obra que viria a ser publicada em Lisboa, 1611, e em grande parte vertida para o alemão. 29. "[...] mit menschlicher Vnderhaltung vnd allerhandt früchten wol versehen/ die Inwohner sein proportioniert / wol gestattet vnnd gemeingklich gute Kriegsßleute..." Idem, p. 330. 30. "[...] wild/ ungetrew/ der Abgötterey vnd Abergalube fast ergeben seynd". Idem, p. 333.

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"Ariotos" e os "Falupos", no rio São Domingos os "Baramas" e perto do rio Grande, os "Beasares". Por fim, os "Copes" e os "Cuamas" da Serra Leoa que "em toda a Guiné é a terra mais fértil e mais divertida, e onde se encontra toda a espécie de árvores. Item vinha e uvas selvagens com grandes e lindos bagos".31 Na Serra Leoa, missionaria o padre Baltasar Barreira, a quem caberia a honrosa missão de converter, vitoriosamente, a família real. No escrito de Albertinus iremos assim encontrar a reprodução da carta que o rei da Serra Leoa dirige ao então monarca português, D. Filipe, exprimindo-lhe a sua grande alegria por se ter tornado cristão e o seu profundo e penhorado agradecimento pelo envio da missão do padre Barreira. Albertinus publica ainda um outro texto, desta vez, assinado por Bartholomei Andres, onde se defende entusiasticamente o povoamento desta região. Na verdade, sendo a Serra Leoa tão fértil em ouro, prata, am-bar, marfim e peles, sugeria-se a fundação de uma colónia de europeus nesta terra de tanta abastança, acentuando-se vigorosamente o grande interesse e utilidade desta iniciativa. Assim, chega-se a pedir ao rei Filipe que apoie e dê um aval para a construção de um forte.32 Neste caso, Albertinus aflora uma temática que, nos meados do século XVI, iria gerar uma grande discussão, em Portugal. Trata-se de um projecto levado a cabo por alguns dos maiores conhecedores da terra que, apelando para uma série de iniciativas concretas contra a invasão estrangeira, entendiam desenvolver e perservar esta região. Ao mesmo tempo fazem uma crítica aos lançados ou tangomãos, portugueses que, trazendo do interior mercadorias de grande valor para os estrangeiros, criavam situações, conflituosas e mesmo perigosas, para os interesses dos portugueses.33 Entre os estrangeiros, eram os holandeses que ofereciam mais perigo para a presença portuguesa, aparecendo cada vez mais assiduamente por estas paragens. Na verdade, a costa ocidental africana tornar-se-ia, a partir dos finais do século XVI, um ponto de passagem e também de grande interesse comercial por parte, em especial, dos mercadores holandeses.

31. "Im ganßen Guinea ist diß das aller fruchtbarest vnd lustigiste Landt/ hal allerley art von Dannen vnd Feuchtenbäumen. Item reben vnd wilde Trauben/ mit schönen grossen Beeren...". Idem, p. 341. 32. Sobre estas iniciativas, veja-se A. Teixeira da Mota, op. cit. 33. Esta posição defensiva quanto ao povoamento da Serra Leoa e a simultânea crítica aos lançados é ainda tema nas obras de André Álvares de Almada, Tratado breve dos Rios de Guiné (1594), ed. Luís Silveira, Lisboa, 1946 e Francisco de Lemos Coelho, Duas Descrições seiscentistas da Guiné, ed. Damião Peres, Lisboa, 1953.

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As publicações posteriores são efectivamente relatos de nautas, mormente alemães que, precisamente, ao serviço da Companhia Holandesa das Índias (VOC) navegam e comerciam nas águas e costas guineenses. É o caso de Andreas Josua Ultzheimer,34 Samuel Braun35 e Michael Hemmersam,36 que viriam a noticiar sobre a experiência a bordo dos navios da VOC. O médico Andreas Ultzheimer zarpa, em 1603, para a costa ocidental africana. Após alguns contactos esporádicos, para adquirir alguns produtos como pimenta e marfim, será na baía de Gabão, já na viagem de regresso, que Ultzheimer e os seus companheiros se vão demorar mais tempo para negociar com os habitantes, que, de tal modo, se mostram receptivos que Andreas Ultzheimer decide ir a terra. Embora seja bem recebido pelo chefe local, o mareante vai ter de ficar algum tempo em terra, no meio deles, pois os íncolas estavam convencidos que os holandeses os tinham enganado nas trocas. Ultzheimer metido numa interessante e atribulada experiência terá a possibilidade de apreciar alguns aspectos do dia-a-dia deste povo, aspectos estes que iria apontar, pois "eu trago sempre comigo papel e lápis, para que assim que vejo algo de estranho ou extraordinário possa rapidamente anotar ou desenhar".37 É certamente durante esta sua estada em terra que Andreas Ultzheimer recolhe a grande parte das informações da sua relação, que assim irá dividir em duas partes: na primeira descreve pura e simplesmente o percurso da viagem, na segunda apresenta o reino da Guiné nas suas formas de organização e nos seus costumes. Tal como o autor anuncia, são os aspectos extraordinários, diferentes, ou seja, aqueles que sobressaiem como novidade que ele quer descrever. Relata, assim, que os governadores das aldeias podem ter as mulheres que quiserem e que, quando já não as querem, as mandam embora; que estes povos vendem os seus próprios filhos e que quando um rei morre, os escravos, cortados aos pedaços,

34. Andreas Josua Ultzheimer, Wahrhaffte Beschreibung ettlicher Reisen in Europa, Africa, Asien und America 1596-1610, Tübingen, 1616, ed. fac-simile Heidenheim, 1971. 35. Samuel Braun (Brun), Schiffarten: Welche er in etliche newe Länder und Insulen/ zu fünff underschiedlichen malen/ mit Gottes hülff/ gethan, Basileia, 1624. ed. Graz, 1969. 36. Michael Hemmersam, West-Indianische Reise von Amsterdam, nach St. Jorius de Mina, so ein Castell in Africa, Nuremberga, 1663. Editado por S. P. L'Honoré Naber Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niderländischen West-Und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, 1 vol., Haag, 1930. 37. "[...] ich habe allzeit Papier und Bleistift bei mir gehabt, damit ich, wenn ich etwas seltsames oder Sonderbares sehe, es sogleich aufschreiben oder zeichnen konnte". Andreas Josua Ultzheimer, op. cit., p. 77.

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seriam lançados pelos campos, pois "acreditam que as suas gentes depois de mortos iriam para a terra dos brancos e também aí o rei teria criados."38 As suas observações relativamente ao comportamento dos africanos levam-no a afirmar que se trata de um povo bárbaro, como podemos testemunhar na descrição que faz dos povos da costa do Ouro: "Assim como este povo é barbaro nos seus modos, também é bestial na maneira de comer. Eles comem toda a carne seja vaca, ovelha, cabra ou caça brava juntamente com as tripas e as imundíces".39 Alguns anos mais tarde, em 1624, é a vez de Samuel Braun (Brun) trazer a lume a sua Schiffarten. Oriundo da ciadade de Basileia, Samuel Braun parte da sua terra natal em direcção a Amsterdão, onde irá ter a possibili-dade de zarpar para uma longa viagem por mar com o intuito de conhecer terras longínquas e desconhecidas. Samuel Braun embarca como médico nos navios holandeses e a sua primeira viagem (1614) levá-lo-ia à Guiné, onde negoceia ouro, marfim e algodão. Na sua opinião trata-se de uma terra fértil, embora pouco aproveitada. Tal como nas primeiras relações, também aqui se expressa a surpresa perante a variedade de frutos, muitos deles totalmente desconhecidos em terras europeias. Samuel Braun voltaria a fazer duas outras viagens à Guiné, embora uma apenas de passagem em direcção ao Congo. Mas na terceira viagem que realizou, em 1617, ficaria mais tempo na terra guineense, tendo assim oportunidade de relatar sobre o castelo da Mina e o seu papel nas trocas comerciais da região, bem como de visitar Nassau, o primeiro forte dos holandeses na costa africana. A vida do povo guineense despertar-lhe-ia também grande atenção pelo que descreve os casamentos, a educação dos filhos ou ainda o trabalho no campo. Vejamos como descreve um casamento entre "selvagens". Braun conta que os africanos não só tem muitas mulheres, como também casam com meninas de apenas seis anos de idade; estas ficam, no entanto, com as mães até que atinjam a idade de se concretizar o casamento. Quando, por fim, querem festejar a boda, a noiva vai com as outras moças para a praça ou mercado e, aí aguardam a chegada do noivo e dos pais. Quando estes chegam, desfilam segundo o uso: o noivo leva um grande colar de ouro ao pescoço e tem um vestido de pano de linho branco que recebeu dos

38. "[...] sie glauben ihre Leute kämen nach dem Tode in das Land der Weißen und dort müßte der König auch Bediente haben". Idem, p. 81. 39. "So wie dieses Volk sonst in seinem Tun barbarisch ist, so unflätig und viehisch sind sie auch im Essen. Sie essen alles Fleisch, ob von Kühen, Schafen, Ziegen oder Wild samt den Därmen und dem Kot." Ulsheimer, op. cit, p. 84.

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[nossos] europeus e que, como nos diz, considera uma preciosa roupagem. Na cabeça usa ornamentos feitos de ouro. A noiva que nada tem no corpo, apenas um pano à volta da anca, tem alguns pedaços de ouro no cabelo. Quando se encontra com o noivo, ele tira um colar que trás e coloca-lho no pescoço; a noiva, por sua vez, tira-lhe o vestido branco e tapa-se com ele. A seguir pega no colar e dá-o ao pai que o levará para casa. Depois deste ritual, as moças correm com a noiva até à água e lavam-na. Se o noivo possuie alguma riqueza oferece um precioso banquete e uma festa, a que chamam "Aura Jaba" e, em português, chamam-lhe "Die de Vitalgos", ou seja, o dia dos fidalgos nobres. Para isso compram uma vaca ou um boi e três ou quatro cabritos ou carneiros, muito vinho que chega a custar doze barras de ouro. Dos animais comem tudo menos a pele e as pernas; da pele fazem a cama e o escudo. Quanto às tripas também as comem pois as consideram como a melhor parte de toda a vaca. Eles gostam ainda da carne de cão, já morto, mais do que de ovelha, que trocam alegremente por cães mortos, um costume bem estranho. No fim da festa vão ao fei-ticeiro perguntar-lhe se correu tudo bem."40 Ao longo dos três anos que fica no forte Nassau, Samuel Braun recolherá atenta e pormenorizadamente muitas informações sobre os hábitos dos habitantes, como, por exemplo, o modo de construirem as suas casas, ou de fazerem pão.

40. "Sie nemmen nicht nur viel weber/ sondern auch junge Meidlin von 6. jahren zur Ehe. Dieselben aber behalten ihre Müteren bey sich/ biß sie suff ihre jahr kommen. Wann dann einer will Hochzeit halten / so nimmt die Braut alle Meidlin mit ihro auff den platz oder marckt/ allda ihr Mann auff sie vnd ihre Elteren zusammen wartet. Vnd wann dann die Elteren zusammen kommen seind/ so zieren sie sich gar artlich. [...] Die Braut hat gantz nichts an den Leib/ dann nur ein ein band vmb die wäiche/ hat etliche stücklin Gold im haar hangen. So bald sie aber zum Bräutigam kommt/ so zeucht er den ring von seinem halß ab/ vnd legt denselben an der Braut halß: das weisse gewandt des Manns nimmt sie selber/ vnd bedecket sich darmit. Darnach nimmt sie den ring von ihrem halß/ vnd gibt denselben ihrem Vatter/ welcher ihne auch behaltet/ vnd heim tregt. Hierauff lauffen die Meidlin mit der Braut ins wasser/ wäschen sie gar wol auff der schawarzen haut. Wann dann der Bräutigam etwas vermögen ist/ so haltet er ein köstliches Pancket vnd Fest/ welches sie Aura Jaba/ vnd auff portugalisch Die de Vitalgos, das ist/ einen Adels-tag nenen. Da kauffen sie etwan ein Küh oder Ochsen mit 3. oder 4. Capriten oder Böcken: viel Infan oder Wein/ welches etwã 12. bände Gold/ bey vnd anderhalb pfund Gelts kostet. Sie essen alles biß an die haut vnd bein. Auß der haut machen sie ihr beth/ vnd schildt: Die därm essen sie auch/ vnd haltens für das allerbeste am gantzen Rinde/rc. Auff Hundsfleisch/ ob schon es gestorben/ halten sie mehr dann auff den Shaaffen. Vertauschen sie deßwegen gern vmb die todten Hünd/ welche ein frömbde tracht bey ihnen seind. Wann sie nun ihr hochzeitliches Fest verrichtet/ gehen sie zum Fytysi (feitticeros)/ vnd fragen ihn/ ob alles recht beschehen seye?". Samuel Braun, op. cit., pp. 73-74. Esta obra viria a ser editada, em 1625, por Bry e por Hulsius com ilustrações.

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Michael Hemmersam que viajará, entre 1639 e 1645, até à Guiné, deixa igualmente um relato escrito desta sua viagem. O nuremburguês, artífice em ouro e prata, resolve embarcar, em Amsterdão, num grande navio, a fim de, como nos informa, "conhecer e ver algo de notável".41 A caminho do Oriente, a embarcação aproxima-se da costa já perto do Cabo Verde, dada a falta de água a bordo. Perto da Serra Leoa vivia um enviado da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais que, como agente comercial, estava em permanente contacto com os africanos. Hemersam, o capitão e mais onze homens vão a terra procurá-lo e encontram-no a comprar dentes de elefante ao rei africano; cheios os barris, prosseguem a viagem. Alguns dias mais tarde, vêm alguns negros africanos que "quando se aproximam do navio começam a gritar Qua qua, o que, entre eles, quer dizer bem vin-dos. Eles não tinham, contudo, confiança para se chegarem, pelo que chapinhavam com a mão na água do mar e deixavam que as gotas de água lhes caissem nos olhos. Como alguns pilotos já conheciam este costume, pois já o tinham observado mais vezes, faziam o mesmo, pois era sabido ser um sinal de amizade entre estes povos, que assim se aproximavam e nos traziam ao navio muitos dentes de elefante, toda a espécie de frutos, também vinho de palma para negociar; traziam ainda muitos dos panos de algodão riscado em azul e branco, a que chamam Catun, e que do tamanho de um lenço são negociados, na Guiné, em grandes quantidades".42 A descrição de episódios como este que ocorreu perto da Serra Leoa entre os habitantes nas suas canoas e os navios da VOC são o principal assunto do texto de Hemmersam. O viajante vai ficar no Castelo da Mina - já em posse dos holandeses, desde há dois anos, altura em que o tomaram aos portugueses -, onde vai trabalhar durante cinco anos como soldado e ourives. Jacob Ruychaver, que chega no mesmo navio de Hemmersam, vai ser o comandante do forte durante a sua estada ali.

41. "[...] etwas Ehrliches zu sehen und zu erfahren". Michael Hemmersam, op. cit., p. 17. 42. "[...] und als sie an unser Schiff nahe kamen, schrien sie zugleich: Qua qua, welches so viel, als Wilkomm bey ihnen heißt. Doch trauten sie sich nicht, auf uns zu kommen, sondern schöpften Wasser mit der Hand auß dem Meer, und liessens in die Augen tropfen. Da dann etliche von den Schiffleuten, so ihrer Gebräuch gewohnt, und schon mehr gesehen hatten, dergleichen thaten, welches sie für ein Zeichen der freundschafft halten, bei uns zu kommen, wie sie dann thaten, und brachten viel Elephanten Zähn, uns allerhand Frucht, auch palmwein, auf unser Schiff, verhandleten, auch viel von den weiß- und blaugestreimten Baumwollen Tuch, so sie Catun nennen in der grösse eines Haartuchs, so zu Guinea mit menge wider verhandelt wird. Idem, p. 26.

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Também ele vai recolher, como os autores anteriores,43 algumas informações sobre os usos e costumes do povo africano, dando mais uma vez atenção a temas como o casamento e a família. Vejamos o que nos diz acerca do nascimento. Quando se aproxima o parto, os homens mandam as mulheres ao médico ou quiromante, que lhe dá uma bebida de ervas, na qual elas acreditam dado que tem feitiço; e aguardando que esta os ajude no nascimento da criança fazem o trabalho, sem qualquer receio. Chegada a hora vão buscar um balde com água que deitam por cima do corpo da mulher grávida para que a criança apanhe um susto; assim que ela nasça vão lavá-la; no corpo da parturiente deitam uma colher de óleo onde misturaram malagueta ou grão e prosseguem o trabalho como até aí".44 Michael Hemmersam mostra-se ainda impressionado pela forma como trazem as crianças às costas e conta que se elas querem beber apenas poisam a cabeça no ombro da mãe, que logo lhe dá o peito; alude ainda ao facto de, desde há uns tempos, e devido a influência portuguesa, os africanos darem nomes cristãos aos filhos. Chama também a atenção para o facto de terem mais do que uma mulher, embora não vivam todos juntos. Tal como os seus antecessores, também Hemmersam se interessa por as-pectos da vida quotidiana, como fazem o pão, quais os produtos que cultivam45 ou ainda sobre os costumes usados, entre estas populações africanas, no que respeita à forma de eleição de um rei, de aplicar a justiça ou de acatar o credo. Em 1673, vinha a público o texto do pastor Wilhelm Johann Müller: Die Africanische auf der Guineisischen Gold-Cust gelegene Landschafft

43. Em parte Hemmersam teria transmitido alguns dados das obras anteriores, em especial, de P. De Marees; veja-se Adam Jones, German Sources for West African History 1599-1669, Wiesbaden, 1983, pp. 97-98. 44. "Wann sie merckt, daß sie schwanger sey, und die Zeit zu gebähren ankombt, so schickt Sie nach ihrem Doctor oder Waarsager, der ihr ein Tranck von Kräutern zu trincken gibt, da sie dan glauben, weil es von ihrem Fetisso kombt; es werde ihnen zum Kindhaben gewißlich dienlich seyn, und lauffen im wärender Arbeit, Mann und Weib, Alt und Jung, Knäblein und Mägdlein, daselbst, ohne cheu oder Zucht, auß und ein. Wann es dann hart und langsam daher gehet, holen sie einen Eymer Wasser, giessen solchen unversehen der gebährenden Frauen über den Leib, das Kind dadurch abzuschrecken, und so es zur Welt geboren, gehen Die gleich hin, sich zu waschen, nehmen dann ein Löffel mit Oel und Manigette oder Grain darunter, giessens der Kinderbetterin in Leib, und verrichten des andern Tags ihre Arbeit, wie vorhin." Idem, p. 37-38. 45. Para além do milho, cerais, algodão e açúcar, os autores fazem uma curiosa referência, à batata doce, produto que também já Linschoten tinha mencionado. Veja-se Hemmersam, op. cit, p. 44.

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Fetu.46 O teólogo Müller não viaja com a Companhia Holandesa, mas antes com a Dinamarquesa, da qual seria funcionário durante oito anos, nomedamente, no forte de Frederiksborg, no Fetu. A Dinamarca e a Suécia começam, a partir de 1640, a navegar no Atlântico Sul, impondo uma forte concorrência, ao procurarem entrar nestes tratos comerciais; daí que, em 1658, fosse erigido o forte Frederiksborg para demarcar a presença dinamarquesa na costa ocidental africana. A Dänischen Africanischen Compagnie recebera, em 1659, do rei Frederico III da Dinamarca e Noruega, o privilégio para negociar na costa ocidental africana. Wilhelm Johann Müller designado, em 1661, padre da Dänischen Africanischen Compagnie, parte no ano seguinte de Glücktadt, sede da Companhia, para a costa africana, onde irá ficar até 1670. Müller começa o seu apontamento sobre esta região, dando algumas indicações sobre os diferentes castelos e fortes erigidos na costa africana. Após uma pequena caracterização da natureza física, que também ele con-sidera muito fértil, diz-nos que os habitantes seriam "inteligentes", mas que desconheceriam totalmente a palavra de Deus, vivendo em perfeita idolatria. De facto, eles regulamentariam o seu dia-a-dia segundo os feitiços - palavra que, como refere, seria portuguesa e que os autóctones teriam adoptado. W. J. Müller dedica seguidamente mais de cinquenta páginas do seu texto a descrever as múltiplas funções e utilizações dos feitiços. Relata, assim, por exemplo, que em caso de guerra os habitantes de Fetu se aconselham junto do feitiço;47 em caso de um delito, se alguém é culpado de um roubo, que não se pode esclarecer rapidamente, chamam um feiticeiro, o qual, deitando água quente nos olhos do acusado, irá exercer justiça: se o acusado se queixa com dores, ou se os olhos começam a inchar, ele será, sem dúvida, o autor do crime.48 Outro processo utilizado pelo feiticeiro para encontrar o culpado é obrigá-lo a beber um líquido feito de plantas, ao mesmo tempo que vai dizendo: "Se eu tiver praticado o acto que me acusem, que Summàn me mate".49

46. W. J. Müller, Die Africanische auf der Guinesischen Gold-Cust gelegne Landschafft Fetu, Hamburgo, 1673. 47. W. J. Müller, op. cit., p. 59. 48. "[...] sprüßet nach geschehener Beschwerung der beschuldigten Person dreymal warm Wasser in die offene Augen. Klaget als dann die Beschuldige über Schmerßen/ oder beginnen die Augen derselben auffzuschwellen/ so muß sie ohnfehlbarlich der Thäter seyn". Idem, pp. 78-79. 49. "Dafern ich die That/ welcher ich beschuldiget werde/ außgeübet habe/ so tödte mich Summàn". Idem, p. 84.

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Os íncolas do Fetu têm de tal modo um estreito relacionamento com os feitiços que os alimentam diariamente. Como Müller afirma: "É raro que se vá por um caminho, que não se veja uma grande panela com vinho de palma, bem como cereais e toda a espécie de frutos da terra, em grandes cabaças, ou presos a um saco. Também não se vê ninguém beber, antes de encher a boca com o líquido e de o ter deitado fora, três vezes, através dos dentes. Tudo isto são sacrifícios de comida ou bebida oferecidos ao O-Bossum, Summàn ou Feitiço".50 Os habitantes ofereciam-lhes, além disso, muitas vítimas. Müller, em face destes usos e costumes, expõe, o vivo desejo de evangelizar este povo africano. Diz-nos que desejava, que aprendessem com os eleitos de Deus e exemplares doutrinadores cristãos, letrados, corajosos e trabalhadores que arriscam a sua vida em honra de Cristo e cuja intenção nada mais é do que converte-los. Muitos padres ter-se-iam dedicado aplicadamente à oração e à tradução da Bíblia nas línguas indígenas, em especial, do Novo Testamento e que muitos gostariam de converter cem ao cristianismo se estes também pregassem e consolidassem a fé cristã, entre eles.51 W. J. Müller procura também deixar um retrato da vida deste povo, dando informações sobre a sua alimentação, o seu vestuário, a família, o trabalho e as formas governamentais. Assim, embora muitos autores os considerem bárbaros, o certo é que eles não andam completamente nus, como é costume em muitos outros locais, "mas, pelo contrário, eles usam roupas especiais, com as quais tapam a nudez, sobretudo de alguns membros, e com que escondem as vergonhas".52 Tal como os brancos, também estes se distinguem, através do vestuário, do sexo, da sua condição e riqueza. Informa ainda sobre o casamento e a educação das crianças, que são

50. "[...] selten gehet man einen Weg/ an welchem man nicht grosse Täpffe mit Palm=Wein/ auch Getreide und allerhand Früchte des Lands/ entweder in grossen Calabassen stehen/ oder an einem Sack angebunden siehet. So trincket auch niemand unter ihnen/ er habe dann zuvor drey Mund voll des Getranckes durch die Zäne auff Erden gesprüßet. Dieses alles ist Speiß=und Tranck= Opfer/ welches dem O -Bossum, Summàn oder Fitiso gebracht wird". Idem, p. 72. 51. "Zu wünschen wäre es/ ob es zuhoffen sey/ kan ich nicht sagen/ daß von Christlichen/ gelehrten/ tapffern/ eifferigen/ Gottseligen und exemplarischen Lehrern/ die ihr Leben umb der Ehre Christi willen/ wageten/ dazu reichlich zu leben hätten/ und auff nichts anders als ihre Bekehrung intent wären eßtlicen dazu vielen zugleich/ nechst eiferigem Gebet/ und Uberseßung der Bibel/ insonderheit des N. Test.in ihre Sprache/ eßliche 100 möchten zum Christenthum bekehret/ und wieder zu predigern unter ihnen bestätiget werden." Idem, p. 89. 52. "[...] sondern sie haben ihre besondere kleidungen/ mit welchem sie ihre Blösse/ insonderheit die jenigen Gliedmassen/ welche die Scham wil verborgen haben/ bedecken". Idem, p. 150.

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também entregues aos feitiços que assim as devem proteger. No que respeita aos seus ofícios, refere, principalmente a lavoura - Müller chega a compará-los a Adão, o primeiro homem, que também soubera arranjar o seu alimento - e a construção de barcos para a pesca, uma das maiores actividades de economia de subsistência. No final da relação, Müller apresenta um dicionário com mais de 400 palavras, na língua nativa e em alemão, dividido em diferentes campos temáticos: Deus, serviços religiosos pagãos, tempo, família, animais, aves, peixes, designações de trabalhos, comércio, pesos e medidas, números, etc. Esta divisão denota a orientação prática que originou o conhecimento da língua, ficando à disposição de quem queira e precise de entrar em contacto com os povos da Costa do Ouro. O texto de W. J. Müller não é simplesmente um relato pessoal de uma estada no Fetu, mas acima de tudo, é uma monografia sobre uma longínqua e distante região em África. Otto Friedrich von der Gröben viaja até Guiné em serviço do rei de Brandenburgo. Nos finais do século XVII, o monarca Friedrich Wilhelm de Brandenburgo, na ânsia de participar no comércio africano, organiza uma expedição marítima que deverá escolher o local mais estratégico para a futura presença alemã na costa africana. Escolhido como diplomata do príncipe para realizar este projecto, Otto Friedrich von der Gröben, deixa na sua Guinesische Reise=Beschreibung53 o relato da viagem de reconhecimento do local estratégico para a construção de um forte. Nas instruções, dadas ao comandante Voß, determina-se que, mal cheguem à costa da Guiné e, depois de passar o cabo das Três Pontas, logo devem lançar âncora; aqui compete ao senhor von der Gröben, enviado do príncipe, ir a terra e presentear o rei local com prendas príncipescas, a fim de confirmar o contrato feito para a construção de um forte. Dever-se-á assegurar-lhes que voltam, no ano de 1683 e, desde já, embora ainda falte algum tempo, devem visitar o local escolhido, podendo abater algumas ár-vores para dar início aos preparativos.54

53. Otto Friedrich von der Gröben, Guinesische Reise=beschreibung, Marienwerder, 1694. 54. "Wenn sie aud fer Guineisischen Küste sind, sollen sie en passant an die Capo tres Puntas laufen, daselbst ankern und der von der Gröben, den Wir dahin senden, daß er die Ratification des mit denen Mohren gamchten Contracts befestige und Unsere Churfürstliche Geschenke praesentire, an's Land gehen lassen. [...] Diese Mohren sollen sie zugleich versichern, daß man ohnfehlbar Anno 1683 wieder dahin kommmen würde, jedoch die Zeit darzu so weit hinausseßen, damit man gegen deren Ausgang auch gewiß das einkann, sie wohl tractiren und ihnen den authentischen Contract, den sie selbst unterschrieben, vorzeigen, mit dem Begehren, daß sie inzwischen eine große Menge Bäume fällen und an den Ort, welchen die beiden Ingenieurs zu der erbauenden Vestung anweisen werden, bringen

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O Major Otto von der Gröben, responsável pelos contactos com os habitantes da região, deverá também elaborar um diário-jornal da viagem. Daí que o seu registo acompanhe fielmente o percurso ao longo da costa ocidental africana, tecendo algumas ilações sobre os aspectos naturais e humanos. O capítulo mais completo e pormenorizado é o que dedica à descrição da Serra Leoa e aos seus habitantes. Aponta, entre outros, que os íncolas se besuntam, de tal modo, com gordura e óleo que a pele brilharia como um espelho. Quanto ao vestuário pouco pode referir pois estes andam quase nus, só um pano com que tapam "vergonhas"; os que vivem perto da praia usam um chapéu velho ou uma touca de linho colorida. No que respeita às mulheres refere que "o povo feminino é divertido de ver, dado que usam a parte superior do tronco completamente nua, na inferior atam um pano colorido ou branco e andam descalças."55 As cerimónias rituais dos autóctones despertam-lhe grande curiosidade. Gröben conta que quando um deles morre, os amigos do falecido reunem-se para o enterro e que, ao terceiro dia, se gera um impressionável tumulto: "Assim um salta, o outro chora, o terceiro ri, o quarto brinca; e todos gritam numa confusão".56 Por aquilo que se pode aperceber do povo da Serra Leoa, Gröben encontra vários aspectos positivos na maneira de ser e estar destas populações, mostrando-se curioso pelo modo de viver da sociedade africana. A certa altura da sua descrição refere que, de certo, se poderá afirmar que estes homens são felizes, uma vez que a sua natureza se contenta com pouco. E especifica: eles não precisam de se preocupar com sapatos, meias, chapéus nem fato, bebem água, comem um pouco de farinha ou arroz das suas culturas, nínguem lhes rouba os frutos maravilhosos que crescem silvestres nos desertos e, além disso, são pessoas divertidas cantam, saltam, exprimem júbilo e pouco conhecem de preocupações ou da ânsia de riqueza.57 Esta passagem recorda certos tópicos inerentes à imagem do

lassen möchten" citado por C. Grotenwold, Geleitwort der Reprint Leipzig 1907, p. 10. Veja-se ainda Adam Jones, Brandenburg Sources for West African History 1680-1700, Estutgarda, 1985 e Eberhard Schmitt, Die brandenburgischen Überseehandelskompanien im XVII. Jahrhundert, in: Schiff und Zeit, 11, pp. 6-20. 55. "Das Weiber=Volck ist lustig anzusachauen/ indem es mit dem Ober- Leibe ganß nacend gehet/ umb den Unter-Lieb ein bunt oder weiß Tuch tragende/ ganß Barfuß." Otto von der Gröben, op. cit., p. 20. 56. "Dann der Eine springet / der Ander weinet/ der Dritte lachet/ der Vierte spielet; Und schreyen alle durcheinander". Idem, p. 24. 57. "Und ich mag wohl billig diese Leute glückseelig schäßen/ weil dero Natur mit so Wenigen zu frieden ist. Sie sorgen vor keine Schuhe/Strümpffe/ Hut noch Kleider/ trincken

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bom selvagem,58 homem que vive feliz, sem grandes preocupações e conforme a natureza lhe dita. Mais adiante, já na Costa do Ouro, Gröben volta ao tema, levantando a questão se o amor pela pátria pode influenciar o rumo da vida humana. E neste contexto, refere o que teve ocasião de observar entre os africanos selvagens. Assim diz-nos que em vários locais encontrou muitos negros que, ao décimo dia da sua estada entre europeus, em casas de gente distinta com grande liberdade e clemência, voltavam à sua terra natal e ao deserto, preferindo a vida pobre africana, do que a luxúria europeia. E quando lhes teria perguntado com curiosidade, qual a razão deste regresso, um deles teria respondido que um homem que se contenta com pouco é o mais rico e contente, pois enquanto na Europa se vive separado dos amigos, se tem de procurar para comer e beber, eles, pelo contrário, ali vivem na sua terra entre familiares, tapam as vergonhas com trapo e com um trago de água e uma mão cheia de farinha vivem como os mais felizes e ricos homens do mundo. A esta resposta, Gröben acrescenta que teve de reconhecer esta verdade e teve de lhe dar razão, pelo que terminaria dizendo felizes daqueles, cuja natureza se contenta com pouco.59 O claro elogio à lei da natureza, não é contudo, uma declarada aceitação pela forma de viver dos africanos, mas sim com o facto de que também aqui se trata de uma curiosidade - expressão que, aliás, surge várias vezes neste seu texto e que, de certo modo, reflecte o carácter deste seu apontamento. Nas suas apreciações sobre o povo desta

Wasser/ essen ein wenig Milie oder Reiß/ so ihnen ihre Plantagen häuffig dargeben/ niemand wehret ihnen die Köstlichen Früchte/ so ganß wilde in der Wüsten wachsen/ dabey seyn sie lustig/ singen/ springen/ jauchßen/ und jubiliren/ wissen nichts von Sorge oder Begierde des Reichthums". Idem, p. 26. 58. Veja-se Karl-Heinz Kohl, Entzauberter Blick, Das Bild vom Guten Wilden, Frankfurt/M., 1986; em particular a primeira parte, pp. 12-32. 59. "Was die Liebe des Vaterlands wircken kan habe ich füglich an den Wilden Africanern abnehmen können. Dann ich an verischiedene orten viel Mohren gefunden/ so in die 10. Jahren bey den Europaern in der vornehmsten Leute Häuser/ (gleich denen ansehnlichsten Hausgenossen) nicht ohne die gröste Freyheit und Herren=Gnade gelebet/ jedoch sich wieder in ihr Vaterland begeben/ und das wüste/ ja armseelige Africanische Leben der Europaeischen Wollust vorgezogen. Als ich die Ursache von ihnen zu wissen begehrete/ ward geantwortet: Ein Mensch/ der sich mit Wenigen behelffen könne/ sey der Reichste und Vergnügteste; In Europa müssen sie von ihren Freuden entfernet leben/ vor Essen und trincken sorgen/ da sie hergegen in ihrem Lande bey ihren Verwandten seyn/ die Scham mit einem von Biesem geflochtenen Lappen bedecken/ mit einem Trunck Wasser und Hand=voll Milie, wie die vergnüglichsten und reichesten Leute der Welt leben können. Die Warheit zu bekennen/ muß ich ihnen Beyfall geben/ und schließlich sagen; Die jenigen seyn die Glückseeligen/ com quorum natura paucis contenta (deren Natur sich mit wenigem begnüget". Idem, p. 61.

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costa não se poderá falar, com efeito, de uma adesão ou entusiasmo, nem de uma especial simpatia pelos africanos, como nos confirmam muitos trechos do seu relato, em que fala de um povo mau, que não só vendem os prisioneiros, mas também mulheres e crianças, até porque, como Gröben acrescenta, eles as consideram como cães.60 Será oportuno ainda referir que tanto neste passo, como ao longo do texto, aparece pela primeira vez, numa relação de viagem, a oposição clara entre Europa e África. Já não é mais um relato escrito por nós, isto é, portugueses, holandeses, franceses, alemães que entram em contacto com os povos africanos, entendidos como potenciais europeus (cristãos), mas sim um confrontro entre dois continentes e as suas polícias, entendidas como um confronto entre a maneira de ser europeia e a africana. Depois da surpresa estonteante, formulada nos primeiros textos sobre a Guiné, gera-se um certo distanciamento que, quer na forma de relatar e apresentar os diferentes povos, quer na forma como se avalia o Outro,61 já não pretende destacar a novidade, mas antes confirma intimativa e apreciativamente a diferença. Vista como um milagre das navegações, como algo novo e estonteante, a zona geográfica da Guiné iria, pouco a pouco, adquirindo contornos mais claros e precisos. A descoberta desta região constituira, para os mareantes, uma surpresa agradável e fascinante, dado que encontraram uma terra fértil e rica que oferecia gratuitamente muitos dos produtos procurados. Para além disso, os crescentes contactos revelavam múltiplas etnias cul-turais, cuja observação contribuia para a paulatina definição de um estranho, de um outro continente. Enquanto a percepção do Norte de África, em especial, do Egipto seria bem determinada pela perspectiva europeia - o declarado antinomismo entre cristãos e muçulmanos - o encontro com a Guiné, entendido originariamente como uma abertura ao Novo, só pouco a pouco daria expressão a contradições resultantes da existência de uma outra realidade que não se reconheceu, se ignorou, ou, por certo, não se compreendeu.

60. Idem, p. 57. 61. É ainda referenciar uma publicação similar da autoria de G. Bosman, Reyse nach Guinea, Hamburg 1708. Dividida em cinco livros, esta descrição da costa de Guiné aborda a terra, os habitantes, no que se refere aos costumes, à religião, ao governo e à economia, o negócio da Companhia Holandesa, a fauna e, por último, demora-se numa análise de alguns reinos em particular. Nesta obra surge pela primeira vez o uso do léxico raça.

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2.3 Congo: Missionação a Sul do Equador O facto de existir vida humana para além da linha equatorial constituira motivo de reflexão e de apontamento nos textos impressos alusivos ao reino do Congo. Quanto mais os portugueses avançavam na região desconhecida meridional, mais se lhes deparavam novas observações e experiências que, na maioria das vezes, contradiziam os esquemas anteriormente formulados em relação à apresentação e à fundamentação da configuração do continente africano. O desconhecimento face a este mundo novo leva os portugueses a interpretar a passagem do Promontorium Prassum (1484) como um passo decisivo para a descoberta do caminho marítimo para a Índia, considerando-se que, ao chegarem ao Congo, estariam quase na ponta sul de África e, por conseguinte, bem perto do extremo da costa ocidental africana.1 O diálogo civilizacional estabelecido com os congolenses é geralmente caracterizado nas fontes como um acontecimento de grande importância vivido por ambos os povos num clima de "contentamento", de alegria e de boa atmosfera.2 As fontes relatam unanimemente que a chegada dos nautas portugueses, tanto no Sonho, como no Congo, fora festejada com grande regozijo, estabelecendo-se um encontro amistoso e agradável. Os congo-lenses, "gente de tão bom entendimento", nas palavras de João de Barros, receberam os mareantes lusos com entusiasmo e satisfação: "O qual [o rei do Congo], em um cadafalso de madeira, tam alto que podia ser visto de tôdalas partes, estava assentado em uma cadeira de marfim com algumas peças de pau, lavrada ao seu modo muito bem; os vestidos do qual, da cinta pera acima, eram os coiros da sua carne mui pretos e luzídios, e per baixo se cobria com um pano de damasco, que lhe dera Diogo Cão, e no braço esquerdo um bracelete de latão, e neste ombro um rabo de cavalo guarnecido, cousa tida entre êles por insígnia real, e na cabeça um barrete alto como mitra, feita de pano de palma muito fino e delgado, com lavores altos e baixos, a maneira que acêrca de nós é a tecedura de cetim avelutado. Rui de Sousa chegado a êle, fêz-se a cortesia ao modo dêste nosso reino, e el-Rei também a sua, seguno o seu - pondo a mão direita no chão, como

1. Veja-se a carta de D. João II ao papa Inocêncio VIII. Publicada in: Memórias da Academia de Ciências de Lisboa, 1936, Tomo II. 2. Veja-se, entre outros, o relato de João de Barros sobre a chegada dos portugueses ao Sonho, uma das províncias do reino do Congo. João de Barros, Ásia, ed. António Baião e Luís F. L. Cintra, Lisboa, 1954, p. 109.

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que tomava pó dêle, e correu esta mão pelos peitos de Rui de Sousa, e de-pois pelos seus, que era a maior cortesia que entre êles se podia fazer."3 Apesar dos diferentes usos e costumes, estabelece-se um diálogo de aproximação entre os dois povos, como podemos constatar nas formas de saudação acima descritas. Já na primeira viagem de Diogo Cão (1482), os portugueses trouxeram congolenses para Portugal no desejo de que estes aprendessem a língua portuguesa e se voltassem para a civilização.4 Aos olhos dos portugueses iniciar-se-ia, um processo educacional, pois com a missionação seria possível fazer destes íncolas verdadeiros homens, proporcionando-lhes um outro estádio de civilização. Pensava-se na exportação, para o Congo, de uma cultura europeia de índole religiosa. A conversão ao cristianismo como parte do percurso civilizacional não constituía novidade na caracterização desta região;5 algo de inovador surgiria, pelo contrário, na extrema e clara disposição dos congolenses em quererem ser cristãos, facto este que encontra assaz ressonância nas descrições e crónicas coevas.6 A adesão espontânea e rápida ao cristianismo dos senhores do Sonho e do Congo, bem como a programada construção de uma igreja no Congo, motivos de entusiástico júbilo, revelam-se dos principais acontecimentos a registar desde os inícios da actividade descobridora, dando-se vivas ao bom encontro que permitira a propagação da cristandade cristã e a formação de uma nova sociedade, baseada no modelo português, em África. Que a implantação destes novos fundamentos nem sempre será fácil e linear, comprova-o o longo e atribulado processo de integração e assimilação chefiado pelo rei congolês. Duarte Lopes,7 um comerciante português estabelecido no Congo, desde 1578, numa missão diplomática e peregrina a Roma, como embaixador do rei do Congo, irá relatar sobre a situação nestas terras africanas. Com efeito, Duarte Lopes que se tinha deslocado à Itália, a fim de apelar para um urgente envio de missionários 3. João de Barros, op. cit., pp. 111-12. 4. Rui de Pina, Crónica de D. João II, Lisboa, 1727, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, p. 994. 5. Sobre as relações de Portugal com a Santa Sé, mormente no que respeita aos deveres de apostolado, veja-se Günter Georg Kinzel, Die rechtliche Begründung der frühen portugiesischen Landnahmen an der westafrikanischen Küste zur Zeit Heinrichs des See-fahrers, Untersuchungen über Voraussetzungen, Vorgeschichte und Geschichte der portugiesischen Expansion in Nordafrika, Westafrika und auf den Inseln im Atlantik bis zum Jahre 1460, Göppingen, 1976. 6. Rui de Pina, Crónica de D. João II, Lisboa, 1727, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, 1977, pp. 992-1012 e Damião de Góis, Chronica d'el- Rei D. Manuel, Lisboa, 1566, ed. Lisboa, 1910-1911, 4 vols, pp. 126-27; 7 vol., pp. 49-55; 9 vol. pp. 12-16. 7. Duarte Lopes/ Filippo Pigafetta, Relatione del reame di Congo et delle circonvicine contrade, Roma, 1591 (Lisboa, 1951).

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para o Congo, conhece Filippo Pifagetta a quem narra valiosas informações. Os seus conhecimentos seriam assim curiosa e afortunada-mente compilados por Pigafetta, um humanista italiano ao serviço da igreja romana que, ao anotar pela primeira vez os traços característicos deste reino, produziu um dos principais escritos sobre o Congo e os seus arredores, considerado pelos coevos como "uma história singular"8 dos novos mundos. Se, na primeira parte, se apresenta um quadro geral da situação geográfica deste reino em África, fornecendo algumas informações particulares sobre cada uma das regiões, a segunda parte será completamente dedicada à abordagem e descrição das deligências feitas com vista a instaurar o credo cristão no Congo. Também aqui se fala do júbilo e da alegria com que os congolenses receberam os portugueses e de como o rei se entregaria de alma e coração aos primeiros rudimentos da doutrina cristã. Escolhendo João como nome de baptismo, também o rei conguês sonhava ser o criador de uma nova dinastia defensora de inovadores princípios. No seguimento da conversão mandou queimar todos os ídolos da sua província e, quando morreu ser-lhe-ia feito um funeral "ao modo dos Cristãos".9 No entanto, se um dos filhos, D. Afonso, também convertido, intentava fortificar a presença cristã no Congo, um outro, o senhor do Pango, a combateria fortemente. No entanto, D. Afonso sai vitorioso desta luta e constroe a primeira igreja. Duarte Lopes conta ainda que D. Afonso ordena a queima dos ídolos, tendo mandado convocar os Senhores de todas as províncias, a fim de que os que possuíssem artefactos idolatras os entregassem. Como nos diz, em menos de um mês os seus súbditos trouxeram os seus deuses e, entre eles, se teriam visto inumeráveis alfaias de culto idolatra, tais como demónios, dragões com asas, serpentes e outros animais monstruosos.10 Se antes da chegada dos portugueses, os congolenses se vestiam com panos de palma, depois que aquele reino recebera a fé cristã, os grandes da corte teriam passado a vestir-se à moda portuguesa, ou seja, com mantos, capas, chapéus e alparcas de veludo. A adesão aos usos e costumes portugueses não se faria sentir única e exclusivamente no vestuário pelo 8. Citado segundo a edição portuguesa de Filippo Pigafetta/ Duarte Lopez, Relação do Reino de Congo e das Terras Circunvizinhas, ed. Lisboa, 1951. 9. Idem, p. 94. Cf. Duarte Lopes/F. Pigafetta, Warhaffte vnd Eigentliche Beschreibung dess Künigreichs Congo in Africa/ und deren angrentzenden Länder/ darinnen der Inwohner Glaub/ Leben/ Sitten vnd Kleidung wol vnd aussführlich vermeldet vnd angezeigt wirdt, Frankfurt, 1597, p. 43: "nach gewohnheit der Catholischen Kirchen". Outras edições em 1609, 1625 e 1628. 10. Idem, pp. 102-3.

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que também no governo e administração se verificariam influências de Portugal; seguindo assim os modelos importados, a corte congolesa pretendia assemelhar-se à portuguesa.11 Estes seriam também os acontecimentos e factos que a edição alemã iria evidenciar, intentando, aliás, fazê-lo através da linguagem iconográfica. Traduzida por Augustinus Cassiodorus e editada pelos irmãos Hans Diethrich e Hans Israel von Bry, a versão alemã visava, como podemos ler no prólogo, dar a conhecer esta tão importante, "estranha, desconhecida e divertida" história do reino do Congo. Os editores da colecção, em que veio a lume o relato de Duarte Lopes, em 1597, imprimem também a carta geográfica do Congo que acompanhava o texto na versão italiana e ainda um anexo, onde viriam a público treze gravuras referentes a temas de maior importância esboçados no relato de Lopes: "Tudo ordenado para o leitor amigo para melhor compreensão e informação das descrições anteriores".12 As gravuras representam, entre outros assuntos, a chegada dos portugueses ao Sonho e ao reino do Congo, o vestuário dos grandes, onde desde já se poderá verificar a influência portuguesa, animais que aí vivem ou a queima dos ídolos. A cada gravura será adido um comentário que reproduz fielmente as explicações dadas por Duarte Lopes e, salientando a importância de cada uma das cenas, os autores remetem para o respectivo capítulo em que se aflora o assunto em questão.13 O reino do Congo detinha, por sua vez, inúmeros contactos com as regiões limítrofes, regiões estas que, naturalmente iriam despertar o interesse e a curiosidade dos portugueses. É o caso de Angola que Duarte Lopes referencia como um reino onde os habitantes falavam a mesma língua que os congolenses. O rei de Angola seria, aliás, vassalo do rei do Congo. Dado que dispunha de uma importante posição no comércio de escravos,14

11. Idem, p. 124. 12. "Alles zu besserem Verstandt vnd Nachrichtung voriger Beschreibung dem Günstigen Leser angeordnet". Titulo do anexo. 13. A gravura número 11 intitulada ("Wie der König von Congo in seinem gantzen Land die Teufelsbilder zuverbrennen befihlet/ auß dem III. Cap. deß andern Buchs") segue-se o seguinte comentário:"Als der König von Congo nun den Christliche Glauben hatte en-genommen/ so wolte er/ vnd gebot seinen Vnderthanen vnd Adel/ daß ein jeder vnder ihnen/ er sey weß Standes er wölle/ alle Abgötter so er hette/ denen darzu verordeneten Personen vberlieffen solte/ denn welcher dieses Gebot würd vbertretten/ gedächte er mit dem fewer zu straffen. Wurden derhalben in einem Monats frist/ grewlich viel allerley Teufels/ Trachen/ Schlangen vnd andere Bilder zusamen bracht/ welche alle auff einen Hauffen geworfen/ vnd zu Aschen verbrandt wurden/ laut der Historien in obgemeltem Capitel" 14. Sobre o comércio de escravos, os autores fornecem poucas informações; veja-se Samuel Braun, Schiffarten, Basel, 1624, ed. Walter Hirschberg, Graz, 1969, p. 39. Sobre o problema

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de cobre e de marfim, os contactos com Angola intensivar-se-iam, principalmente, a partir de 1570. Um dos negócios a que se dedicariam mais comerciantes seria, de facto, o do marfim, uma vez que nesta zona existiam muitos elefantes. Estes animais com o avançar da idade perdem os dentes e só um deles poderia pesar cinquenta ou mais quilos, como relata Samuel Braun na sua passagem por este reino.15 Este médico alemão ao serviço da Companhia Holandesa das Índias diz-nos ainda que se trata de uma região muito fértil, a melhor terra de cultura e fruta, como di-ficilmente se encontraria noutra parte do mundo.16 Para amainar as dificuldades já assinaladas por Duarte Lopes na consolidação do cristianismo no Congo,17 chegariam a este reino alguns grupos de missionários, entre eles, monges capuchinhos. Na verdade, o papa Gregório XV ordenara esta congregação, em 1622, para a propagação da fé cristã em terras africanas. Alguns destes missionários capuchinhos deixariam relato das suas experiências nesta região, vindo muitos deles a ser vertidos para a língua alemã. A primeira destas obras é a do italiano Dionísio Carli,18 um padre capuchinho que pregou no Congo e Angola. Dionísio Carli, que chegou a Angola a 6 de Janeiro de 1668, diz-nos que na cidade de Luanda viveriam bastantes religiosos, na sua maioria, jesuítas, que aí tinham fundado um colégio para instruirem jovens; além destes encontrar-se-iam também alguns carmelitas e missionários de outras ordens menores. No que respeita à cidade, Carli descreve-a da seguinte maneira: "[...] as casas dos brancos seriam construídas à maneira europeia com pedras, enquanto os mouros as faziam com palha; [a cidade] situa-se metade perto do mar, a outra metade numa do comércio de escravos dos portugueses em Angola, veja-se Beatrix Heintze, Traite de "Pieces" en Angola: Ce qui n'est pas dit dans nos Sources, in: De la Traite a l'Esclavage, Actes du Colloque International sur la traite des Noirs, Nantes, 1985, vol. 1, pp 147-172. 15. "Die Elephanten belangend /ist zu wiessen/ daß die handelsleuth von denselbign dz Gebein vnd ihre Zähne wunderlich bekommen. Dann die Elephanten wirlen die Zähne/ vnd lassen dieselben in ihrem alter fallen/ da etwan ein Zahn ein Centner vnd etliche pfund wigt/ wie ichs selber gesehen". Braun, op. cit., p. 16. 16. Idem, p. 14. 17. Para além das dificuldades internas surgem ainda graves conflitos externos. A partir de 1640, os holandeses procuram instaurar-se em Angola, pelo que os portugueses teriam de combater em duas frentes. Como fonte coeva sobre estes conflitos militares, veja-se António de Oliveira de Cadornega, História Geral das Guerras Angolanas, 1680, ed. José Matias Delgado, 3 vols, Lisboa, 1972. 18. Dionísio Carli, Der nach Venedig überbrachte Mohr oder curiose und warhaffte Erzehlung und Beschreibung aller Curiositäten und Denckwürdigkeit / welche dem wohl-Eh.rwürdigen P. Dionysio Carli..., Augsburgo, 1692. Original: Reggio, 1672. Outras edições italianas: Reggio 1674, 1679 e Bassano, 1687. Na Alemanha seria publicada, novamente em Augsburgo, em 1693.

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elevação; o número de brancos seria de 5000 e os mouros, que servem os brancos como escravos, sem conto; e que só um [branco] chega a ter 50 até 5000 pelo que, o que mais tem, mais conceituado é, e, também, mais rico".19 Também, na sua opinião, se trata de uma boa terra com várias culturas que chega a dar duas colheitas por ano. De Luanda o padre capuchinho prossegue para o Congo, reino onde havia muita falta de missionários. Seguindo o voto de evangelizar regiões mais esquecidas das missões, Carli fora designado superior de um convento, em Bamba, uma das províncias do Congo. Dionísio Carli conta que para chegar ao seu convento teve de efectuar um árduo e difícil percurso; assim teve de atravessar zonas, onde não existiam localidades, só pequenas cabanas isoladas, onde ainda, a seu ver, não chegara a civilização ocidental. Além disso, era nesta mesma área, que viviam os Jagas, um povo muito temido pelo seu comportamento cruel e selvagem. Aliás, já Duarte Lopes se lhes referira como causadores de horrorosas guerrilhas no Congo.20 Dionísio Carli escreve: "Eles [os Jagas] são de grande estatura e gente horrível e bestial; usam arco e setas e lanças; os seus costumes tão bestiais que se parecem às gentes selvagens; andam completamente nus, alimentam-se de carne humana e não têm rei". E continua aludindo ao seu modo de viver: "Eles vivem nas matas em cima das árvores, fazem as casas de palha e ocuparam diferentes terras e reinos em África ou Etiópia, mas tudo destruiram com fogo e armas; mataram aqueles que ofereceram resistência e, os que se renderam, tomaram como escravos. Os prisioneiros já não aptos para a guerra mataram-nos, esquardejando-os em pedaços como animais, para depois os comerem; aqueles que, contudo, ainda serviam para a guerra, alistaram-nos na sua mílicia, educando-os nas suas crueldades [...] Estes jagas são tão bestas ou, mais ainda, inhumanos para que se possam reconhecer e distinguir dos outros [povos], quebram dois dentes de cima e dois de baixo".21 Esta sua longa e detalhada descrição 19. "[...] die Häusern der Weissen seynd auf europaeisch von Steinen gebauet/ der Mohren aber ihre von Stroh/ ligt halb gegen dem Meer/ vnd halb auf einen Bühel/ die Zahl der Weissen seynd bey 5000. und der Mohren ein unzahlbare Menge/ die denen Weissen für Sclaven dienen/ und deren bißweilen einer von 50. biß 5000.haben/ vnd der mehr hat/ der ist mehr angesehen/ vnd auch reicher". Idem, p. 33. 20. Veja-se a gravura 12 dedicada a este povo que viria provavelmente da Serra Leoa. 21. "Sie seynd grosser Statur abscheulich= und unmenschliche Leuth/ tragen Bogen und Pfeil/ und drey Ehlen lange Spieß/ ihre Sitten seynd viehisch/ sie sehen wilden Leuthen gleich/ gehen ganß nackend/ nähren sich vom Menschen= Fleisch/ und haben keinen König [...] Sie wohnen in Wäldern auf den Bäumen/ machen ihre Hütten von Stroh/ und haben sich in unterschiedliche Landschafften und Königreich in Africa oder Aethiopien ausgebreitet/ alles mit Feuer und Schweid verwüstend/ und diejenigen die sich widerseßen/ ertödtend/ und

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deixa transparecer o terror e o espanto causado pela forma de ser e de viver deste povo. É tal a diversidade de costumes na sua maneira de viver, ou a prática atroz de matarem as crianças à nascença, que Carli lhes chama repetidamente "gente bestial". Carli irá, contudo, relatar outros episódios que lhe enchem o coração de alegria. O padre missionário vai ter, durante o seu caminho, o ensejo de converter e baptizar muitos autóctones que o procuraram na esperança de se tornarem cristãos. Na província do Bamba chegará mesmo a visitar a grande duquesa e os seus súbditos, que o iriam ouvir pregar a fé cristã; além disso, aproveita o ensejo para ensinar o português aos autóctones. Carli não irá, contudo, ficar muito tempo em Bamba, visto que adoece gravemente, o que o obriga a regressar a Luanda, de onde, por fim, regressa a Lisboa. Uma outra relação de índole similar, também sobre o reino do Congo, é a de Giovanni Antonio Cavazzi vinda a lume, em alemão, dois anos mais tarde.22 Também padre capuchinho, Cavazzi passaria, entre 1654 a 1667, mais de vinte anos da sua vida em terras africanas, nomeadamente, no Congo, Angola e Matamba. A sua obra, o vivo apontamento da longa estada em terras de África, tornar-se-ia não só uma das obras mais importantes para a história da missão da ordem dos padres capuchos, como ainda um documento etnográfico ímpar das suas gentes. Num dos seus sete livros, Cavazzi relata episódios verdadeiramente significativos, entre eles, os relacionados com a rainha Zinga (Nzinga) de Matamba,23 conhecida como uma das mulheres mais cruéis. Cavazzi, que sabe contar muitas das atrocidades de Zinga, narra que aquando da morte de um filho de raiva e vingança, esta teria morto e mandado abater muitas crianças e, que depois de ter tirado brutalmente o coração a algumas das suas vítimas, o teria comido bestialmente. Muitas das tentativas deste padre capuchinho para a converter foram em vão, até que um dia Zinga se converteu definitivamente ao cristianismo. A partir deste momento a terrível rainha seguia uma vida cristã exemplar, vindo, em 1663, a ser enterrada cristãmente. O livro de Cavazzi teria um grande impacto não só

zu Sclaven machend/ die sich ihnen ergeben haben. Die Gefangene die zum Krieg untauglich waren/ schlachteten sie/ zerhacktens zu Stucken als wie das Vieh/ und frassens/ die aber zum Krieg tauglich waren/ nehmen Sie in ihren Miliß auf/ und richteten sie auf ihre Grausamkeiten ab [...] Diese so bestialische Jagi oder vielmehr Unmenschen/ damit sie von den andern erkennet und geforschten werden/ lassen ihnen zwey Zähn oben und zwey unten mit Fleiß ausbrechen..." Idem, p. 43 e segs. 22. Giovanni Antonio Cavazzi, Historische Beschreibung drei Königreichen Congo, Matamba und Angola, Munique, 1694. Original: Bolonha, 1687. 23. Idem, pp. 674-815.

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por causa desta história fascinante, mas também devido a uma im-portantíssima colecção de gravuras de uma riqueza documental indiscutível, que acompanhariam a edição italiana de 1687 e, também, a alemã editada em 1694.24 Para além dos relatos de Dionísio Carli e Giovanni Antonio Cavazzi, poder-se-ão ainda referir, neste contexto, outras obras de padres capuchinhos como, por exemplo, as de Franciscus Romanus,25 Girolamo Merolla26 e Antonio Zucchelli.27 Este último chega a Bengala no ano de 1698, via Lisboa e Brasil; após dois anos, em Bengala, Zuchelli seguiu, em 1700, para a província congolesa do Songo para mais dois anos. O relato de Zuccheli, escrito numa fase posterior da cristianização, denota um certo pessimismo quando cotejado com os entusiastas louvores expressos, nos primeiros anos, ao povo congolês pela sua espontânea con-versão à fé católica. Na verdade, embora Zuchelli saiba que os congolenses aderiram de livre vontade ao cristianismo, o certo é que, como muitas vezes o refere, ainda continuam fiéis aos valores da vida pagã. Segundo Zuccheli, eles viveriam "uma vida de animal", parecendo "mais de dois terços besta do que gente racional".28 Nunca tendo abdicado dos costumes tradicionais, eles continuariam a viver em concubinato, sendo, a seu ver, extremamente difícil convencê-los a deixar estes seus hábitos ancianos. Zuchelli diz ainda que embora aceitem, muitas vezes, as ordens dos padres, passado pouco tempo regressam muito facilmente aos antigos costumes. Na sua opinião, o numeroso número de baptismos e casamentos registados nestas regiões não corresponde à verdade, dado que os sacramentos não correspondem a uma vivência cristã, não sendo, aliás, um sinal de verdadeiro cristianismo. O diálogo civilizacional levado a cabo pelos padres missionários, não frutificará, como reconhece Zuccheli com amarga desilução. Por isso, no seu texto já pouco se encontra do contentamento inicial. Pelo contrário, as suas palavras são duras e de impaciência, como podemos ler no seguinte extracto: "Muitos que leiam esta passagem vão-se surpreender, considerando que nos comportamos

24. Sobre a importância desta relação, veja-se a elogiosa recensão coetânea in: Acta Eruditorum, Leipzig, 1687, pp. 649-657. 25. Franciscus Romanus, Istoria della missione dei cappuccini nel regno del Congo, colla descrizione geographica di quel regno, Roma, 1646. 26. Girolamo Merolla, Breve, e svccinta Relatione del Viaggio nel Regno di Congo nell' Africa Meridionale, Nápoles, 1692. 27. Antonio Zucchelli, Merckwürdige Missions und Reisebeschreibung nach Congo in Ethiopien, Frankfurt, 1715. Original: Veneza, 1712. 28. "[...] zwey Drittel mehr von einem unvernünfftigen Viehe, als von einem vernünfftigen Menschen". Idem, p. 161.

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rigidamente contra esta gente, e vão dizer que seria melhor se os tratas-semos com afeição e amor, pois assim poder-se-ia obter melhores resultados e minorar os seus vícios. Mas todos esses que assim pensam não têm qualquer conhecimento e notícia dos negros". Tudo teriam tentado com afeição e amor, mas eis o triste e inglório fim da cristianização europeia no Congo, "porque esta não é gente que se governe pela saudável razão".29

29. "Viele aber, die dieses lesen/ werden sich darüber verwundern, daß wir so gar hart wider diese Leute verfahren, und werden viel eher meynen, daß es besser gewesen, wenn wir sie mit Holdseiligkeit und Liebe tractiret, weil man damit mehr bey ihnen ausrichten, und ihre Laster noch eher verbessern könnte. Allein alle diejenigem/ die so dencken, haben keine rechte Wissenschafft und Nachricht von denen Schwarzen [...] weil diese keine Leute sind, die sich nach der gesunden vernunft richten". Idem, p. 241.

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2.4 O Sul de África e os Hotentotes No ano de 1497, Vasco da Gama dobra o cabo da Boa Esperança a caminho da Índia, concretizando o tão aspirado desejo de avistar o Oriente. Impressões iniciais sobre a costa oriental africana e os primeiros contactos com os seus habitantes seriam (a)notadas já, durante a viagem, por um dos tripulantes da nau portuguesa, Álvaro Velho. Como escrivão desta viagem, Velho apontaria, no seu diário, as experiências e os novos dados observados e adquiridos pelos nautas portugueses durante esta célebre viagem. As suas descrições concisas e pormenorizadas em forma de reportagem contribuiriam, sobremaneira, para a formação de uma imagem mais clara da África meridional e dos seus autóctones:1 "Nesta terra há homens baços, que não comem senão lobos marinhos e baleias, e carne de gazelas, e raízes de ervas; e andam cobertos com peles e trazem umas bainhas em suas naturas. E as suas armas são uns cornos tostados, metidos em umas varas de zambujo; têm muitos cães, como os de Portugal, e assim mesmo ladram."2 Este texto de Álvaro Velho salienta, em primeiro plano, a novidade registada na diferença com o que lhe é conhecido. Mesmo na descrição de pequenos detalhes, mas que, nas suas características, se lhe apresentam inovadores, Velho destaca o diferente. O autor procura enquadrar o seu registo num contexto explicativo, cotejando frequentemente a novidade e a diferença com os hábitos portugueses. Com efeito, estes constituem o critério inerente ao conhecimento e consequente registo. Para além disso, eles incorporam a norma a seguir, dado que se parte do princípio que os portugueses viveriam num nível mais elevado de desenvolvimento, daí a surpresa ao verificarem que estes íncolas tinham alguma noção de música, o que não se esperaria destas gentes: "E eles começavam logo de tanger quatro ou cinco flautas, e uns tangiam alto e outros baixo, em maneira que concertavam muito bem para negros de que não se espera música."3

1. Sobre os primeiros relatos do caminho marítimo para a Índia, veja-se João Rocha Pinto, A viagem, Memória e Espaço. A Literatura Portuguesa de Viagens, Os primeiros relatos de Viagem ao Índico 1497-1550, Lisboa, 1989. 2. Álvaro Velho, Relação da Primeira Viagem à Índia Chefiada por Vasco da Gama, in: José Manuel Garcia (ed.), Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, pp. 155-224, sobretudo, p. 161. 3. Idem, p. 164.

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Além de reparos alusivos aos moradores destas paragens, Álvaro Velho observa a natureza física, pois como já afirmara no início do seu diário, um dos principais objectivos desta viagem, seria: a busca das especiarias.4 Logo a procura de produtos raros e preciosos, bem como de matérias primas reflectir-se-iam profusamente na composição deste seu apontamento. Quando os portugueses se afastam do Cabo da Boa Esperança e, avançam em direcção ao norte, deparam com a presença de um outro grupo de autóctones. Se, de facto, os da ponta meridional se tinham mostrado como "gentios e he gente bestial", na costa oriental encontrariam muçulmanos. Daí que o confronto não constitua apenas uma diferença civilizacional, como acontecera com os gentios, mas sim um forte antagonismo. O interesse comum no comércio e hegemonia económica regional di-ficultaria o diálogo e reforçaria indubitavelmente a intolerância perante este povo inimigo. Nas viagens posteriores reforça-se o interesse pela costa oriental, servindo a ponta meridional apenas como ponto de passagem. Com efeito, Moçambique tornaria-se a escala preferida da Carreira da Índia, visto que aqui se efectuava contrabando do ouro e ainda devido às aliciantes informações que ali se recebiam do Oriente. As novas relativas à segunda viagem de Vasco da Gama (1502), tal como da primeira, rapidamente se difundiram na Europa. As enormes quantidades de especiarias a bons preços suscitavam grandes esperanças de excelentes negócios e vultuosos lucros. Estas notícias criavam a maior expectativa e interesse dos comerciantes, em toda a Europa, pelo que algumas casas comerciais alemãs tudo fariam para participar nas viagens marítimas para a Índia. É, assim, que iremos encontrar o alemão Balthasar Springer na frota de D. Francisco de Almeida de 1505.5 No relato que deixou desta sua viagem, Springer refere que, no Cabo da Boa Esperança, os homens andariam quase nus, que apenas tapariam as vergonhas com peles e que, tanto os homems como as mulheres, usariam grandes sandálias. Que alguns vestiriam peles de animais penduradas nas costas, que untariam o cabelo com óleo e que teriam uma linguagem estranha e extraordinária.6 Com este apontamento, Springer desenha assim uma primeira imagem dos habitantes do Cabo da

4. Idem, p. 159. 5. Veja-se o cap. 1.1. 6. Balthasar Springer, Die Merfart und erfarung nüwer Schiffung..., s.l. (Oppenheim), 1509, ed. Max Pannwitz, Stuttgart, 1912, p. 16. Sobre Springer, veja-se Franz Schulze, Balthasar Springers Indienfahrt 1505/1506, Estrasburgo, 1902.

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Boa Esperança, que logo encontraria expressão gráfica na sua Merfart. Intitulada "In allago",7 esta gravura, uma das primeiras representações iconográficas dos autóctones do Cabo da Boa Esperança, constitui um importante contributo da Alemanha empenhada em traçar iconograficamente o conhecimento de etnias, trajes ou costumes de povos recém-descobertos. Este pequeno elenco de notícias representaria, durante muito tempo, as poucas referências que se poderiam conhecer desta longínqua ponta meridional de África. De facto, o Cabo da Boa Esperança só volta a ser alvo de interesse, muito mais tarde, quando a Companhia Holandesa das Índias decide construir um forte e, posteriormente, fundar uma colónia nesta zona do continente africano.8 A necessidade de uma base de apoio para a longa viagem até à Índia leva os holandeses a escolherem um local estratégico junto do Cabo onde os navios pudessem fazer escala. Este local fértil, com ar saudável e muita água, como assinalam grande parte das fontes coevas,9 oferecia óptimas condições para o abastecimento dos navios de água e mantimentos. Logo de início os habitantes acordaram fornecer-lhes alimentos, mormente, carne, um dos meios de subsistência económica dos íncolas, em troca de tabaco, cobre ou outros produtos. Estas condições avigoravam-se, pois, como óptimas premissas na escolha da localidade que, a partir de 1652, se iria tornar propriedade da VOC. O Cabo da Boa Esperança não era uma região de grande interesse económico. O seu papel residia principalmente na necessidade de um porto onde ancorar entre a Europa e a Ásia. Será sempre, aliás, este aspecto que irá caracterizar as actividades da VOC no Cabo. Em primeiro lugar era necessário estar atento às necessidades dos navios que passavam a caminho para a Ásia, ou no regresso, pelo que é para eles e sua tripulação que se construirá o forte e um hospital. Os contactos entre holandeses e os habitantes, a que deram o nome de hotentotes, reduziam-se principalmente ao comércio de carne. Desde os primeiros encontros que os hotentotes foram descritos como um povo

7. Veja-se Walter Hirschberg, Monumenta Ethnographica. Frühe völkerkundliche Bilddokumente, Vol. 1, Schwarzafrika, Graz, 1962, pp. 1-13. 8. Sobre este período da história do sul de África, veja-se o aturado estudo de Richard Elphick e Hermann Giliomee (Ed.), The Shaping of South African Society, 1652-1820, Cape Town, 1979, bem como Jörg Fisch, Geschichte Südafrikas, Munique, 1990. 9. Os viajantes mostram-se ainda especialmente fascinados pelas montanhas, entre elas, a Tafel-Berg,; veja-se, por exemplo, Elias Hesse, Ost=Indische Reise= Beschreibung..., Leipzig, 1690, ed. S.P. L'Honoré Naber, Haag, 1931, Vol. 10, pp. 25-29.

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estranho e incivilizado, como se pode ler no Itinerario10 de Jan Huygen van Linschoten. Esta imagem preconceituada irá permanecer, durante muito tempo, determinando, sobremaneira, o relacionamento entre europeus e os habitantes do Cabo. Na verdade, se grande parte dos visitantes da colónia holandesa se referem aos íncolas sul-africanos, o certo é que o fazem, repetindo juízos já prevalecentes desde os primeiros relatos, juízos estes que se iriam tornar verdadeiros topoi. Ainda antes da formação da colónia no Cabo, por volta de 1646, o funcionário da VOC, Johann Sigmund Wurffbain, de regresso das Molucas escreve: "[...] os habitantes de aspecto idêntico aos seres humanos, assemelham-se, contudo, nos costumes e na sua restante maneira de viver aos animais irracionais; em vez de roupagens usam, em sua volta, rudes peles de carneiro, de ovelha ou de leão [...] são, além disso, muito indolentes e preguiçosos; e não se preocupam nada com o cultivo dos campos ou com a pesca, apesar de aqui terem uma das melhores possibilidades [de sustento], contentam-se somente com aquilo que apanham na caça, para a qual fazem setas e arcos, bem como lanças de madeira, cujas pontas são de ferro ou cobre; a carne comem-na assim crua e sangrenta como também grelhada no fogo e, por vezes, é verdade, andam com as tripas mal cheirosas penduradas ao pescoço e comem esta monstruosidade jun-tamente com os excrementos".11 10. O texto de Jan Huygen van Linschoten seria publicado por Theodor de Bry, Ander und Dritter Theil der Orientalischen Indien, Frankfurt/M., 1598. Numa das gravuras das viagens holandesas, com o número sete, deparamos, em primeiro plano, com dois hotentotes, que seguram avidamente as tripas de um animal que, ao lado, os holandeses tinham acabado de matar. Ao fundo, mais indígenas grelham o resto das tripas. A acompanhar esta gravura encontra-se a seguinte legenda: "Dieses Volck ist ziemlich kleiner Statur, von Farben rothbraun/ gehet gantz nackend/ bedecken sich allein mit einer Ochsehaut/ da raw inwerts ge-want/ an satt eines Mantels/ vmbgürten sie sich mit einem breiten Gürtel derdelbigen Haut/ darvon vornen für ihrer Scham eine Spitze abhangt/ etliche binden dünne Brettlein vnter die Füß. Ihr bester Zierraht sind Ring vnd Armbänder von Kupffer/ Helffenbein/. Es begabt sich / daß wir einen Ochsen schlachten/ da kamen die Wilden zu vns/ baten vns vmb das Ingewayd/ lassen dasselbige rohe/ wann sie ihnen gütlich thun wöllen/ steckte_~ sie vier Stützel in die Erden/ spanneten darüber ein Stück von einer Ochsenhaut also daß sie etwas eingebogen ist/ gleich einem Kessel/alsdann legten sie die Caldannen darein/ gossen Wasser zu/ machten ein Fewer darunter/ lassen es ein wenig warm werden/vnd verzehrten alsdann zusammen/ wie in dieser Figur zu sehen". 11. "[...] die Einwohner sind von Gestalt den Menschen zwar ähnlich, an Sitten aber und ihrer übrigen Lebens-Art, auch dem unvernünfftigen Vieh nicht ungleich, werffen an statt der Kleider rauhe Böck-Schaafs-oder Löwen-Häute umb sich [...] dabey sind sie sehr träg und faul, und bemühen sich gantz nicht mit Feldbauen oder fischen, ob sie schon hierzu die beste Gelegenheit hätten, sondern behelffen sich allein mit dem was sie auf der Jagt fangen, worzu sie Pfeil und Bogen, auch Spiese von Holtz mit eisern oder kupffernen Spitzen versehen, gemacht, gebrauchen, dann das Fleisch so wol roh und blutig, als auch beym Feuer gebraten

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E, mais à frente, Wurffbain refere que não falam nenhuma língua ou que a sua voz não é uma voz humana normal, dado que "gargarejam e dão estalos com a boca de uma maneira particular",12 embora reconheça que se entendem uns com os outros. Já aqui se denota uma certa estranheza em relação aos usos e costumes dos hotentotes que lhes parecem tão incompreensíveis: o seu aspecto exterior, o facto de não trabalharem as terras, bem como a forma como cuidam e comem os animais que caçam constituem uma série de aspectos depreciativos do seu comportamento. Alguns anos mais tarde, em 1663, um médico alemão também ao serviço da VOC, Johann Jacob Merklein, escreve sobre a colónia holandesa, onde esteve no regresso da sua viagem a Java. Num dos primeiros depoimentos sobre a implantação dos holandeses no Cabo, Merklein escreve: "Os habitantes da terra são gente silvestre, pequenos, magros, untados e porcos; a falar quase que parece que carcarejam, como os galos indianos; vivem do armentio, do qual possuiem uma grande quantidade" e, depois de esclarecer como são as suas casas, continua: "A sua roupagem consiste num manto de peles, não preparadas, e num pedaço de pele de cabra por cima das suas vergonhas. Além disso andam quase nus, embora muitas vezes faça muito frio [...] A comer são muito porcos e apesar de terem muito armentio, quando os holandeses matam uma vaca, não deixam de lhes cobiçar as tripas; depois de passarem os dedos por elas para lhe tirarem alguns excrementos colocam-nas no fogo e, ainda estão meias grelhadas, já eles as trincam com um tal apetite que dá horror ver. A gordura destas mesmas tripas usam-na para untar o seu corpo nu, o que consideram um adorno; mas, por isso, é difícil lidar com eles, pois cheiram tão mal que não se pode estar ao pé deles".13 Merklein acabara de

fressen, ja wol manchesmal mit denen stinckenden Gedärm umb den Hals behangen herumb laufen, und solche Abscheulichkeit zusamt den Koth verzehren", Johann Sigmund Wurffbain, Vierzehen Jährige Ost Indianische Krieg=und Ober Kaufmanns=Dienste..., Sulzbach, 1686, ed. S.P. L'Honoré Naber, Haag, 1931, Vol. 8 e 9 , aqui vol. 9, p. 136. De igual modo os descreve, Albrecht Herport, Neuwe Ost-Indianische Reyßebeschreibung, Bern 1669, ed. S.P. L'Honoré Naber, Haag, 1930, Vol. 5, p. 20. 12. "[...] gurgeln und schnaltzen auf eine gantz besondere Weise mit dem Mund", Idem, p. 136. 13. "Die Inwohner des Lands sind wilde Menschen, nicht groß von Person, mager, beschmirt und unflätig, klucken mit ihrer Sprache bey nahe, wie die Indianischen Hühner; leben von dem Vieh, dessen sie eine grosse Menge haben [...] Ihre Kleidung bestehet in einem Mäntelein, von unbereiteten Fellen, und einem Stücklein von einem Schafsbeltz, vor ihrer Scham. Im übrigen gehen sie nackicht, wiewol bisweilen zimlich kalt ist; [...] Im Essen sind sehr säuisch, denn wiewol sie viel Vieh haben, so begehren sie doch, wann die Holländer ein Rind schlachten, desselben Därmer; von denen sie nur den Koth zwischen den Fingern

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formular os principais aspectos que iriam caracterizar os hotentotes na grande maioria das descrições que lhes são dedicadas. Já na primeira frase se nota que o autor não tem quaisquer dúvidas, de que se trata de gente selvagem. Os motivos que o levam a fazer tal afirmação residem no facto de os usos e costumes destes povos se distinguirem, extraordinariamente, dos costumes conhecidos; quando comem as tripas praticamente cruas ou ainda cheias de excrementos, se untam com a gordura dos animais, tendo um aspecto desmazelado e sujos, aos olhos dos europeus, e deixando nos seus narizes um cheiro insuportável. Que se trata efectivamente de um povo selvagem, é uma questão aturada e extensivamente debatida. Para além de repugnantes e bestiais costumes, alguns autores justificam o seu horripilante aspecto e abominável comportamento no facto de os hotentotes não conhecerem nenhuma religião, sendo assim considerados, por exemplo, pelo comerciante holandês da VOC, Johan Neuhof, como o povo mais selvagem ao cimo da terra. A seu ver, muitos povos não conheceriam o verdadeiro Deus ou um ser supremo, mas adorariam ídolos, a lua ou outros objectos. Eis a grande surpresa por não encontrarem, entre este povo, qualquer indício de prática religiosa.14 Jürgen Andersen, que esteve em 1644 no Cabo, vai mais longe nas suas conclusões e afirma que "na sua maneira de viver e ser são relativamente gente silvestre e besta que em nada se parece gente racional"; eles cheiram mal e a sua língua nada deixa ouvir de humano; as faces horrivelmente enrugadas, nus, não constróiem, vivem de ervas e nada sabem quer de Deus quer do diabo,15 chegando a denominá-los inumanos quando refere uma cena de canibalismo. Andersen é, todavia, o único que faz algumas especulações sobre hábitos antropófagos, ao relatar a captura de dois

durchziehen und heraus streiffen, hernach auf das Feuer legen: Und wann sie noch nicht halb gebraten, als dann beissen sie mit solchem Appetit davon, daß einem grauen möchte, des er ansihet. Das Fette von denselbigen Därmern, schmieren sie auf ihren blossen Leib, welches sie für eine Zier halten; davon sie so abscheulich stinken, daß nicht wol mit ihnen umzugehen ist." Johann Jacob Merklein, Reise nach Java, Nuremberga, 1663, ed. S.P. L'Honoré Naber, Haag,1930, Vol. 3, pp. 107-08. 14. Veja-se Johan Neuhof, Die Gesantschaft/ der Ost=Indischen Geselschaft, Amsterdão, 1669. Veja-se ainda R. Raven-Hart (Ed.), Cape Good Hope 1652-1702, The First Fifty Years of Dutch Colonisation as seen by callers, 2 vols, Cape Town, 1971, vol I, pp. 16-23. 15. "[...] an ihrem Leben und Sitten recht viehische wilde Leute (sind)/ die auch kaum vernünftigen Menschen ähnlich sehen [...] die Sprache kan man kaum vernehmen/ daß es menschlich / ist [...] und sie wissen nichts weder von Gott noch dem Teufel". Jürgen Andersen, Orientalische Reise=Beschreibung, In: Adam Olearius (Ed.), Orientalische Reise=Beschreibung, Schleswig, 1669, pp. 1-171, aqui, p. 4.

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mareantes da sua tripulação que, depois de cortados aos pedaços, teriam sido comidos por hotentotes.16 A falta de determinados valores considerados, para os europeus, indicadores de civilização leva a que os hotentotes, aos olhos dos viajantes, se assemelham a animais. Pela primeira vez encontrar-se-ia um povo que não conhecia nenhuma norma sendo, aos olhos dos europeus, o povo mais selvagem da terra. De facto, as populações conhecidas na costa ocidental viviam de forma simples e quase animalesca, mas sempre com uma certa polícia: muitos já sabiam trabalhar a terra, tinham casas e conheciam uma certa religiosidade. Apoiando-se no testemunho dos teólogos, Neuhof afirma que nenhum povo é tão bárbaro que não conheça um ser supremo, seja ele falso ou verdadeiro.17 O holandês Wouter Schouten sublinha, na sua Ost-Indischen Voyage, que é lamentável, que homens, como os hotentotes descendentes de Adão, vivam em condições tão inumanas e atrozes. Vivendo, assim, tão distantes do que se chama humanidade, Schouten considera que, mais se assemelham aos animais, do que a homens racionais. É, por isso, que os considera um povo miserável que se deixou chegar a um modo de viver, lamentável e horrível, sem conhecer Deus e a salvação.18 Nestas circunstâncias os autores tentam incessantemente encontrar algum acto, algum comportamento que se possa parecer a uma manifestação, a uma prática religiosa. O padre alemão Johann Christian Hoffmann preocupa-se em reconhecer um sentimento hierático entre os hotentotes, apesar de inicialmente os ter considerado mais "como monstruosos macacos do que integros homens; e isto, sem dúvida, porque nada têm de parecido com os homens, pelo que, em verdade e, em face da sua barbariedade, são as gentes mais miseráveis que alguma vez vi".19 No entanto, chama a atenção para o facto de, nos dias de Lua cheia, os hotentotes virem, para a rua, dançar e cantar, sendo este eventualmente um acto de adoração à natureza.20

16. Idem, p. 5. 17. Veja-se Neuhof, op. cit., pp. 16-23. 18. Wouter Schouten, Ost-Indische Reyse, Amsterdão, 1676; ver Raven-Hart, op. cit., p. 79-92. 19. "[...] mehr vor ungeheure Affen, alß vor rechtschaffene Menschen ansahe, und gewißlich! wegen ihrer Unmenschligkeit haben sie fast nichts an sich, daß einem Menschen ähnlich ist, und daher seyn sie in Warheit die allerelendesten Menschen, die Ich jemahl gesehen", Johann Christian Hoffmann, Oost= Indianische Voyage, Leipzig, 1680, ed. S.P. L'Honoré Naber, Haag, 1931, vol. 7, p. 26. 20. Veja-se também Johann Jacob Saar, Ost=Indianische Funfzehen=Jahrige Kriegs=Dienste...., Nuremberga , 1672, ed. S.P. L'Honoré Naber, Haag, 1930, vol. 6, p. 179.

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Hoffmann interroga-se, de igual modo, como é que um povo descendente de Adão se deixou chegar a este estado, vivendo "mais entre os animais estúpidos" do que entre a gente racional21 e as suas observações terminam num apelo, enlevado de queixa e de agradecimento:"Oh pobre povo desprezado, a tua situação é lastimável, Deus seja louvado que, do abismo desta escuridão, nos chamou para a sua maravilhosa luz".22 Este apelo não assinala, todavia, qualquer intuito de libertar os hotentotes da escuridão. Tal libertação só poderia ser formulada num gesto de missionação, que curiosamente não é, em contraposição a outras regiões do continente africano, referenciada nestes textos. Apenas encontramos uma excepção o padre jesuíta Guy Tachard que, alguns anos mais tarde, em 1685, censura a falta de orientação religiosa entre os hotentotes. Lamentando que não se lhes tenha dado a conhecer a Deus, Tachard critica o terem-lhes negado a oportunidade de salvarem as suas almas. Na sua opinião, uma acção missionária desta envergadura não seria mais difícil para os europeus, do que percorrer o interior à procura de minas ou de produtos para comerciar.23 Já nas primeiras fontes se menciona que se teria ensinado a língua holandesa a alguns hotentotes para que estes pudessem servir de intérpretes. O caso mais excepcional é o de Eva, uma hotentote educada por holandeses. Eva chegaria a casar cristãmente com o dinamarquês Pieter van Meerhoff, um cirurgião, mas, após a morte do marido, abandonaria os filhos e voltaria para junto dos seus. Vindo a ser presa várias vezes por alcolismo e prostituição, Eva acabaria os seus dias, em 1674, na cadeia.24 O funcionário da VOC, Martin Wintergeist menciona, por exemplo, que muitos holandeses já teriam experimentado retirar as crianças às mães para os educarem, mas assim que estas atingiam alguma idade "deixam a boa vida e seguem a vida rude dos pais".25 Conta então o caso do famoso e 21. "[...] mehr unter das dumme Vieh alß in die Zahl der vernünfftigen Menschen", Hoffmann, op. cit., p. 31. 22. "O elendiges verlassenes Volck, sehr bekläglich ist dein Zustand! Gott aber sey Danck, der uns auß dem Abgrund dieser Finsternüs gerufen hat, zu seinem wunderbahren Liecht.". Idem, p. 31. 23. Guy Tachard, Curieuse und Merckwürdige Reise nach Siam..., Hamburgo, 1708, pp. 100-101. 24. Sobre este caso Richard Elphik e Robert Schell, Intergroup relations, in: Richard Elphick e Hermann Giliomee (Ed.), op. cit. pp. 118-119. 25. "[...] man hat schon probiert, Kinder ihren Müttern wegzunehmen und auf andere Weise zu erziehen, aber sobald sie in die Jahre kamen, haben sie das gute Leben verlassen und das grobe ihrer Eltern fortgeführt". Martin Wintergest, Zwischen Nordmeer und Indischen Ozean, Memmingen, 1712, ed. Rainer Redies, Darmstadt, 1988, p. 173.

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conceituado general Reh e do seu hotentote. O general ter-lhe-ia ensinado alemão, vestiu-o com um fato vermelho com bordas prateadas. Mas assim que ele pode ir ter com os seus, logo o despiu, pendurou uma pele de cabra e passou a viver outra vez como os outros hotentotes. Apenas uma coisa teria conservado, um largo colar de prata que usava ao pescoço, e deixava-se tratar por capitão Peg, título a que os outros obedeciam lisongeiramente.26 As razões e os motivos para o comportamento dos hotentotes dependiam, naturalmente, da perspectiva de cada um dos autores. Uns acreditavam que estes viviam como os animais, simplesmente porque não gostavam de trabalhar. Volquart Iversens que, no regresso de Batavia, ficou um mês no Cabo, escreve que se trata pura e simplesmente de um povo preguiçoso; os holandeses já teriam conseguido habituar alguns a trabalhar, dando-lhe tabaco, arroz, mas eles gostavam mais de ficar sentados a olhar. Para os levar a tratar de gado, varrer, escavar etc, só dando-lhes algo antes e dizer-lhe que quando terminassem receberiam mais. E mesmo assim muitos fugiam.27 Johann Schreyer, que trabalhou oito anos - de 1669 a 1677 - como cirurgião na colónia do Cabo refere igualmente que eles só trabalham quando a fome os obriga; e que assim que a saciaram e, lhes deram o que queriam, tabaco ou arroz, eles fogem.28 Esta opinião é defendida por muitos autores, como Christopher Fryke, da cidade de Ulm que, por isso, menciona ser indiferente pedir-lhes para

26. "Der große und berühmte General Reh hielt sich ebenfalls einen Hottentotten. Er brachte ihm Deutsch bei und kleidete ihn in ein rotes Kleid mit silbernen Borten. Sobald der Mann aber wieder zu de Seinen kam, warf er sein Kleid von sich, hängte sich eine Schafshaut um und lebte wieder wie jeder andere Hottentotte. Nur dies behielt er bei, daß er ein breites silbernes Halsbrand trug und sich Kapitän Peg nannte, dem die anderen alle gern gehorchten". Idem. 27. "Sie sind faule Leute/ mögen nicht arbeiten/ die Holländer haben etliche an sich gewehnet/ daß sie faule Arbeit verrichten/ bekommen dafür Toback/ Reiß uns sonst zu essen/ sitzen sonst gerne und sehen zu. E continua: "Wenn man sie an die Arbeiten bringen will: als graben/ Karnschieben/ außkehren/ Viehe hüten/ so muß man ihnen zuvor etwas geben/ und Hoffnung machen/ daß wenn die Arbeit gethan / sie noch mehr bekommen sollen. Und wenn sie solches erlanget/ lauffen darvon". Volquart Iversens, Ost=Indischen Reisebeschreibungen, In: Adam Olearius, (Ed.), Orientalische Reisebeschreibung, Schleswig, 1669, p. 173. 28. "Der Männer meiste Arbeit ist faulentzen, es sey denn, daß sie der Hunger zwinget, bey den Europaeern umb ein Stück Toback und etwas Reiß zu arbeiten. Allein so bald der Hunger gestillet ist, lauffen sie wieder davon, und deßwegen gaben wir ihnen kein essen, sie musten denn zuvor die vorgegebene Arbeit verrichtet haben". Johann Schreyer, Neue Ost=Indianische Reiß=Beschreibung..., Leipzig, 1681, ed. S.P. L'Honoré Naber, Haag, 1931, vol. 7, p. 40.

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fazerem alguma coisa, pois só o fazem quando sentem fome.29 Eles vive-riam, deste modo, sem grandes preocupações, comendo quando a fome aperta, aquilo que encontram ou trabalhando um pouco para o adquirir, mas saciada a necessidade, logo voltariam a descansar. Johann Wilhelm Vogel acrescenta ainda que, aos olhos dos hotentotes, os europeus seriam escravos das suas ambições, nomeadamente, cultivar terra, construir fortes e muitas mais coisas afins.30 O padre jesuíta francês Tachard confirma esta posição dos hotentotes, contando o caso de um autóctone que em muito jovem teria sido recolhido por um comandante holandês e que mais tarde, já adulto, o viria a abando-nar. Quando questionado sobre as razões por que o teria feito, ele teria respondido que não conseguia viver como os holandeses, pois os hotentotes não se deixariam escravizar, comiam quando tinham fome, seguiam pura e simplesmente as leis da natureza e viviam felizes assim.31 Nesta resposta reconhecemos a postura do seu autor que dá forma e expressão à imagem do bom selvagem que continua a acreditar na vida simples e natural que seguia antes da chegada dos europeus. Isto é: re-gindo-se pelas leis da natureza, o hotentote não abdica da sua maneira de viver, que apesar da sua simplicidade lhe parece mais a sua do que a dita civilização propagada pelos europeus. Mas, pouco a pouco, os hotentotes iriam aquistar alguns defensores que, tentando compreender a sua forma de vida, visavam corrigir os preconceitos iniciais. É o caso da obra de Georg Meister que, em 1688, advoga que este povo já muito teria aprendido.32 Para além desta, a de Peter Kolb é também um exemplo excepcional de uma descrição aturada, bem intencionada e precisa, ao mesmo tempo, de uma das primeiras monografias sobre os hotentotes. Peter Kolb que estudara Matemática, Física, Línguas orientais e Teologia, começaria a trabalhar, em 1702, como secretário e preceptor em casa do conselheiro prusso, Bernhard Friedrich von Krosigk. Este viria a enviá-lo, no ano de 1705, para o Cabo da Boa Esperança, a fim de aí realizar alguns estudos astronómicos e meteorológicos. Kolb ficaria até 1713, ano em que teria de partir forçosamente visto que, no ano anterior, perdera a vista. Kolb teve, assim, a oportunidade de, durante sete anos, contactar com o povo hotentote, recolhendo uma inestimável fonte documental relativa aos

29. Christopher Fryke, Ostindische Reise..., Ulm, 1692; Veja-se Raven-Hart, op. cit., p. 235. 30. Johann Wilhelm Vogel, Ost-Indianische Reisebeschreibungen, Altenburg, 1716; veja-se Raven-Hart, op. cit., p. 218. 31. Veja-se Tachard, op. cit., p. 99-102. 32. Veja-se, Georg Meister, Orientalisch-Indischer... Gärtner, Dresden, 1692.

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seus usos e costumes nos inícios do século XVIII. De facto, com esta sua obra, o cientista alemão Kolb propunha-se dar uma imagem mais correcta dos hotentotes, desejando desfazer alguns erros propagados anteriormente. Nas vinte e duas cartas que envia ao Baron de Krosigk, Kolb regista as suas observações, as suas experiências e os seus conhecimentos sobre a vida deste povo. Distanciando-se das opiniões institucionalizadas, Kolb procura conhecer e compreender as razões e os mecanismos desta sociedade africana. Já na sua segunda carta escreve que muitos autores teriam afirmado, entre muitas coisas, que esta gente seria estúpida, insensata e simples, uma vez que nada sabiam de Deus ou de outras coisas necessárias e substanciais. Além disso, que seriam muito porcos a comer e que como se untavam com gordura fedorenta, cheiravam horrivelmente. Kolb comenta que tal descrição não seria incorrecta ou mentira, mas que, no seu ver, seria necessário ter em conta que eles, em cotejo com os nossos ou com outros povos, poderiam parecer estúpidos; isso estaria fora de dúvida, dado que eles não viveriam como outros povos civilizados. Contudo, na sua maneira de viver, eles seriam suficientemente espertos para saber, como qualquer outra pessoa, utilizar a sua inteligência.33 Peter Kolb irá então, ao longo das suas cartas, justificar esta sua opinião. A experiência diz que eles aprendem holandês, inglês, português, logo não poderão ser assim tão estúpidos. Além disso, Kolb constatou que muitos trabalhavam durante anos para os europeus, logo que não eram assim tão ignorantes e desajeitados, aludindo a vários casos que ele próprio tivera ensejo de conhecer. Também a crítica já formulada de que estes seriam selvagens, porcos e que cheirariam mal devido à gordura com que se besuntavam, Kolb certifica que, com o contacto diário e a habituação, o cheiro desapareceria. Enquanto muitos autores criticam as argolas feitas de peles de cabra que estes trazem nas pernas, Kolb logo encontra uma explicação para esta peça do seu vestuário. Diz-nos assim que andam muito pelos campos à procura de frutos, e como os figos-hotentotes têm 33. "Viele haben, wenn sie die Art und Beschaffenheit der Hottentotten vorgestellt haben, unter anderem gesagt, daß sie sehr dumm, unverständig und einfältig seien, weil sie weder von Gott noch von anderen im Leben notwendigen Dingen etwas wüßten. Überdies seien sie sehr säuisch in ihrem Essen und ganzem Leben, sie würden sich auch mit stinkendem Fett so sehr beschmieren, daß man sie weiter riechen als sehen könnte [...] Sie haben darüber nicht übel geschrieben oder die Unwahrheit gesagt, allein es ist notwendig, einen Unterschied zu bemerken. Denn daß sie im Vergleich mit unserem oder anderem Völkern dumm anzusehen sind, ist außer Zweifel, weil sie nicht so leben wie es andere zivilisierte Völker tun. Hingegen sind sie dennoch, in ihrer Art klug genug und wissen ebenso wie ein anderer Mensch, ihren Verstand zu gebrauchen." Peter Kolb, Caput bonae spei hodiernum, Das ist: Vollständige Beschreibung des africanischen Vorgebürges der Guten Hoffnung, Nuremberga, 1719, p. 365.

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muitos espinhos, arranhar-se-iam, se não usassem estas argolas nas pernas.34 No relato que faz dos vários ofícios que encontrou entre os hotentotes, Kolb afirma que estes íncolas não se deveriam envergonhar se comparados com artesãos europeus. Na verdade, quando tratam de peles ou fazem esteiras,35 estes homens compreenderiam o seu trabalho tão bem como qualquer artífice, na Europa. Com efeito, eles saberiam preparar muito bem as peles de cabra ou de outro animal e coziam-nas de modo perfeito, sabendo-lhes dar uma forma tão correcta, como qualquer peleiro, na Alemanha, ou noutro país da Europa.36 Saberiam cortar perfeitamente as correias e, no que respeita, ao ofício de carniceiro, eles até superavam os europeus. Perante estas observações e experiências, Kolb não pode concordar com as afirmações prevalecentes de que estes homens nada tinham de humano. Pelo contrário, se eles teriam alguns vícios, em muitas coisas, poderiam levar os europeus a ficar com as faces rúbeas. Em relação à crítica que lhes é feita de não quererem trabalhar, a não ser quando têm fome, Kolb confirma, mas logo adianta que, infelizmente, também, entre os cristãos, haveria muitos "preguiçosos e ociosos" e continua aludindo a que também, na Europa, viveriam muitos mendigos e pobres, que preferiam viver das ajudas dos outros, do que do seu trabalho, e que se houvesse mais sustento à mão, muitos mais haveria certamente que escolheriam uma vida ociosa.37 E se os hotentotes eram dados à bebida, o certo era que, na Europa, também se bebia muito, e mais, as bebedeiras acabavam quase sempre em crime e pancadaria. Por fim, Kolb gostaria de ver salientado que eram homens de palavra. Uma vez feitas as pazes e concluídos os contratos, até só verbais, os hotentotes cumpriam-nos rigorosamente e, levantando mais uma vez a voz em sua defesa, Kolb afirma que tal não se deveria menosprezar e deixar de admirar num povo que tão cruelmente fora julgado, e mais, ele saberia de 34. "Da sie viel durch das wilde Feld laufen und Dornen und Hecken durchstreifen müssen, wenn sie Wurzeln und auch Hotentotten-Feigen suchen, so würden sie sich sehr verletzen, wenn sie diese Ringe nicht an den Waden hätten". Idem, p. 483. 35. Idem, p. 512. 36. "Sie können die Schaf- und andere Felle wenigstens ebenso gut bereiten, auch diese so nett und zierlich zusammen nähen und ihnen die richtige Form geben, wie es ein Kürschner in Deutschland oder anderswo in Europa machen kann. " p. 505 37. "Ich glaube leider (!), es gibt deren mehr als genug und kann nur an die jungen, starken und gesunden Bettelleute in Deustschland erinnern, die viel lieber von anderer Leute Gnade leben als daß sie sich selbst zu einer Arbeit bequemen wollen. Hätten sie es noch so leicht, wie diese an die Nahrung zu kommen, ich glaube, es würde derer noch mehr geben". Idem, p. 541.

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muitos senhores de grandes potentados que se consideravam mais sábios, inteligentes e sensatos que os hotentotes, que ao verem estes exemplos de responsabilidade se deveriam envergonhar.38 Peter Kolb procura ainda integrar este povo na história da humanidade, investigando para isso as suas origens. Ele defende assim a opinião de que os hotentotes teriam muitas afinidades com os judeus e também com os antigos trogloditas, antepassados africanos pelo que enumera vários usos e costumes que os identifica, tanto com a cultura judaica como com os trogloditas, no intuito de traçar uma linha geneológica e contínua entre estes povos e os actuais hotentotes. Distanciando-se da preconizada inferioridade cultural, Kolb reconhece-lhes um outro modo de ser e viver regido por diferentes regras culturais, lutando assim pela sua liberdade perante a influência do exterior. Que o hotentote não gosta de depender de nínguem e prefere viver na probreza ou ter dificuldades do que se vender - daí que trabalhe só em caso de grande necessidade e sempre com a condição que a sua liberdade não seja posta em causa,39 é um direito que lhes deveria conceder, pois eles também estariam satisfeitos com tudo o que tinham, não perguntando por preciosidades, riquezas mundanas ou honrarias. Peter Kolb aprecia e valoriza esta atitude de os hotentotes quererem preservar a sua identidade cultural. De facto, mostrar-se-iam renitentes em aceitar as condutas impostas pelos europeus, mantendo, pois, um certo dis-tanciamento à cultura europeia. Assim, preservavam a estrutura familiar e, mesmo quando trabalhavam para os europeus, continuavam a vestir-se, segundo os seus costumes, a untarem-se com a gordura, etc., não se deixando integrar isoladamente na colónia do Cabo. Esta sua posição mais tolerante e de maior simpatia não seria, todavia, a opinião comum na sociedade que vivia no Cabo. E, mesmo, a defesa de Peter Kolb dos bons selvagens teria os seus limites; também ele não põe em causa a expansão europeia e a consequente invasão das terras de pastoreio dos hotentotes. O homem estranho, incivilizado, de traços animalescos e pagão, como os europeus o viam, nomeadamente, os relatos escritos ao serviço dos 38. "Dieses ist gewißlich sehr bewunderswürdig von einer Nation, die als so brutal und dumm beschrieben wurde. Sollten, nun, wenn man diese sachen an blinden Heiden erblickt, viele hohe Potentaten in der Welt, die tausendmal weiser, klüger und verständiger sein wollen als die dummen Hottentotten, hierüber nicht schamrot werden?". Idem, p. 560. 39. "Er ist niemand gerne untertänig, leidet lieber Armut und Dürftigkeit, als daß er sich verkaufen würde. Wenn ihn aber die höchste Not treibt, Dienst bei einem andern für eine gewisse Zeit anzunehmen, so geschieht das doch immer mit der Bedingung, daß seine Freiheit dadurch keinen Schaden erleiden dürfte". Idem, p. 547.

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holandeses nos séculos XVI e XVII, continuaria não só nos escritos do século XVIII, como ainda se cristalizaria num nome depreciativo.40 Nem o bom selvagem, descrito por Peter Kolb, conseguiu mitigar a sua má reputação.

40. Veja-se Bartholomäus Ziegenbalg, Merckwürdige Nachricht aus Ost=Indien, Leipzig, Frankfurt/M., 1708, Fortsetzungen Halle 1709 e Halle 1713; e ainda Georg Böving, Curieuse Beschreibung und Nachricht von den Hottentotten.., s.l., 1712.

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2.5 Monomotapa: O Reino do Ouro É já na primeira viagem de Vasco da Gama (1497-99), que os portugueses têm conhecimento, mais precisamente em Sofala, que no sertão da costa oriental se esconderiam muitas riquezas, mormente muitas jazidas minéricas. Nesta mesma povoação da costa oriental africana situada no litoral desembocava a rota do ouro vinda do interior. A partir de 1501-1502, os portugueses iriam entrar no comércio local e Sofala tornar-se-ia o mais importante mercado aurífero da rota oriental. Em 1505 é aqui instalada uma feitoria real e prepara-se a construção de uma fortaleza. A descoberta do caminho marítimo para a Índia e a fabulosa riqueza da costa oriental africana seriam então propagadas, na Europa, primamente através dos relatos dos mercadores italianos. E seria já na segunda viagem de Vasco da Gama (1502) que se iriam verificar profundas e decisivas alterações no comércio internacional europeu, visto que as casas comerciais, entre elas as alemãs, vão reagir de imediato a estas novas promissoras. Com efeito, as notícias sobre a cidade de Sofala constituem, para os mercadores alemães, um verdadeiro íman de interesse; para além das tão procuradas especiarias, os nautas tinham trazido, nas suas naus, ouro de Sofala, que tornava o caminho marítimo para Índia um negócio ainda mais rentável.1 As fabulosas riquezas da África oriental chegariam assim ao conhecimento de Konrad Peutinger, o secretário do Imperador Maximiliano que logo verte para o alemão uma carta de um dos viajantes italianos, testemunho claro do seu grande interesse por esta empresa marítima.2 As notícias sobre Sofala não foram, todavia, exclusivamente divulgadas por comerciantes italianos. Assim um mareante flamengo viria a escrever um diário de bordo que, impresso na Antuérpia, constitue uma das publi-cações mais antigas concernantes às viagens marítimas.3 Embora não se saiba quem foi o seu autor e, se este terá participado directamente na

1. Veja-se capítulo 1.1. 2. Publicada por B. Greiff, Tagebuch des Lucas Rem aus den Jahren 1494-1541, Augsburgo, 1861, p. 133-138. A. Banha de Andrade, Mundos novos do Mundo, Lisboa, 1972, p. 213 levanta a hipotése, de que o provável autor desta carta seja o comerciante italiano Marchioni, visto que também este participou na viagem de Vasco da Gama. 3. O Texto publicado por Jan von Doesberg intitula-se Djt is die reyse die en man self bescreuen..., Antuérpia, 1504. Veja-se Jean Denucé, Calcoen-Recit flamand du second voyage de Vasco da Gama vers l'Inde en 1502-1503, Antuérpia, 1939 e Oliveira Martins, Portugal nos Mares, vol. I, Lisboa, s. D., pp. 71-93.

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viagem, ou se até terá copiado um outro diário de bordo, o certo é que se trata de uma fonte documental da maior importância no que tange às viagens marítimas para a Índia. Do mesmo teor é ainda uma relação anónima em língua alemã, que actualmente se encontra em Viena.4 Sobre a segunda viagem de Vasco da Gama conhece-se ainda um outro escrito em língua alemã conhecida pelo nome de relação de Bratislava.5 Por último poder-se-á ainda referenciar um outro escrito que nos informa sobre o Monomotapa, nomeadamente, o diário de Tomé Pires, texto este, que publicado por Ramusio na sua colectânea, também deve ter sido conhecido, na Alemanha.6 A constantemente referenciada riqueza de Sofala constitui um dos assuntos primordiais nas relações da Carreira da Índia. Que se contam coisas maravilhosas sobre a mina de Sofala é o que se pode ler, por exemplo, na relação da viagem de Pedro Álvares Cabral vinda a lume, na Alemanha, na célebre colecção Newe unbekanthe landte... em 1508.7 Ao interesse por esta cidade e os seus arredores associa-se a necessidade de conhecer o seu hinterland no intuito de recolher informações mais concretas sobre a localização das jazidas de ouro. Já no ano de 1501 se realiza uma primeira expedição de reconhecimento que traria importantes notícias referentes ao comércio aurífero. Estas informações prometedoras, que actuam como um estímulo para a exploração do sertão, aumentam ao mesmo tempo as esperanças de se encontrar o caminho, desta vez, por mar, até ao reino do Preste João das Índias. Vasco da Gama e os seus navegadores souberam, em Moçambique, que este reino cristão já não estaria muito distante e que bastaria procurar no interior da costa oriental.8

4. Veja-se Christine von Rohr, Neue Quellen zur zweiten Indienfahrt Vasco da Gamas, Leipzig, 1939. 5. Publicada por Josef Polisensky und Peter Ratkos, Eine neue Quelle zur zweiten Indienfahrt Vascos da Gamas, in: Histórica, IX, Prag 1964, pp. 53-67. Segundo estes historiadores o autor seria da região da Baviera, talvez de Augsburgo ou Nuremberga, sendo possivelmente um agente comercial, de nome Lazarus, que se encontrava em Lisboa. Veja-se ainda Marion Ehrhardt, A Alemanha e os Decobrimentos Portugueses, Lisboa, 1989, pp. 29-30. 6. Giovanni Battista Ramusio, Navigazioni et Viaggi, ed. Marica Milanesi, 6 vols, Torino, 1978-1980, vol. 1, pp. 687-738. 7. "Von der goldtgrüben Zaphalle sagt man wunder ding/ deren wirt der König ein herr werden ehe zwey par vergond. Das ist ein wünderlich ding/ dann gantz India vnnd Persia bringen jr gold von dannen das yetzt von Heyden besessen ist" Jobst Ruchamer, Newe unbe-kandte Landte..., Nuremberga, 1508, s/pág. Seria ainda publicada na obra de Simon Grnynaues, Die New Welt, Estrasburgo, 1534. 8. Álvaro Velho, Relação da primeira viagem à Índia pela armada chefiada por Vasco da Gama, in: José Manuel garcia, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, pp. 153-224, aqui, 171.

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Mas os portugueses nas suas buscas do mítico rei cristão, encontrariam não o reino do Preste João, mas um outro reino que se dizia ser muito antigo e sobre o qual existiam muitas lendas que falavam em fabulosas riquezas e em grandes montanhas de ouro: o Monomotapa. Contava-se que esta terra era a Ofir da Sagrada Bíblia, pois teria sido aqui, neste reino, que Salomão teria vindo buscar os quatrocentos e cinquenta talentos de ouro necessários para construir o seu templo -9 facto que largamente se reflecte nos textos portugueses.10 A vontade de conhecer este reino lendário levaria à organização de várias expedições, cujo objectivo seria estabelecer relações comerciais directas com o Monomotapa e a sua terra. Alguns portugueses a quem caberia levar a bom termo esta missão diplomática,11 viriam a relatar sobre as suas experiências e impressões, como é o caso de Duarte Barbosa. Em 1518, o autor do Livro das Coisas da Índia recolheria as primeiras informações capazes de transmitir uma imagem mais pormenorizada sobre a situação geográfica, bem como as cidades e os habitantes do Monomotapa - Zimbabwe. Este texto que viria a público também através da iniciativa de Giovanni Battista Ramusio, em 1563, teria, graças a este humanista italiano, uma grande divulgação na Europa.12 Nesta sua sistemática geografia económica e humana conta que "Entrando in questa terra di Cefala adentro vi è il regno di Benamataxa, che è molto grande e di Gentili, che i Mori gli chiamano Caferes. Sono uomini negri, vanno ignudi, e dalla cintura in giú vanno cpoerti di panni varii colori e di pelli di

9. Segundo 1 livro dos Reis 9, 28 e 2 Par, 8, 17-18. A identificação desta região com o lugar bíblico-Ofir fundamenta-se numa tradição anterior aos descobrimentos, sendo já mencionada a designação de Ofir na Carta-Borgia do ano de 1452, precisamente no final do continente africano. Sobre este tema, veja-se W. G. L. Randles, L'Image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVIe Siècle, Lisboa, 1959, pp. 45-49. 10. Vários são os autores que formulam esta ligação com as cidades bíblicas, veja-se Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de sitv orbis, (1505-08), ed. Lisboa, 1905; 1975, p. 16, o qual estabelece esta identidade entre Ofir e Sofala, onde o rei Salomão teria recolhido o ouro ou ainda Gaspar Barreiros, que viria a abordar o tema nos seus Commentarius de Ophyra Re-gione apud Divinam scripturam cõmemorata, Coimbra, 1561. Aqui Gaspar Barreiros refuta a possibilidade de Sofala corresponder à Ofir bíblica. Alvitra-se ainda a hipótese de que a rainha Saba fosse desta região. Sobre este texto veja-se Matthias Meyn, Manfred Mimler, Anneli Parthenheimer-Bein und Eberhard Schmitt (Ed.), Die großen Entdeckungen, Munique, 1984, pp. 20-28. 11. Sobre as diversas expedições, veja-se Maria Emília Madeira dos Santos, Viagens de Exploração terreste dos portugueses em África, Lisboa, 1978, pp. 74-76. 12. Este texto seria publicado pela primeira vez em 1550 por Giovanni Battista Ramusio no primeiro livro da sua colecção de viagens Delle Navigationi et Viaggi na cidade de Veneza; op. cit. vol. 2, pp. 537-709.

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besti salvatiche; " e um pouco mais à frente"[...] Benamataxa, dove è molto popolo, il re è solito per lo piú dimorare, e quivi i mercatanti che vanno a Cefala si forniscono del tanto oro il quale danno ai Mori senza peso per panni dipinti e per paternostri di Cambaia, che fra questi Gentili sono molto usati e apprezzati. E quei della città di Benamataxa dicono che ancora l' oro viene di luogo molto piú lontano, all' incontro del capo di Buona Speranza, d`un altro regno suggetto a questo re di Banamataxa, il quale è molto gran signore e tiene moltri altri re per suoi sudditi, e molti altri paesi che sono molo adentro fra terra, cosí per mezzo il capo di Buona Speranza come verso Mozambique e piú oltra".13 Barbosa fala assim de um reino de grandes dimensões, onde o seu chefe poderoso e rodeado de acólitos, o Monomotapa, era dono de largos recursos económicos. Estas informações só viriam a ser ajustadas por João de Barros, em 1552, que teve à sua disposição informações, tanto escritas como orais, de autores e viajantes portugueses. Na verdade, com as viagens de reconhecimento os portugueses tinham recolhido amplos dados geo-gráficos e culturais referentes quer à localização concreta deste país quer ao seu sistema de organização e de viver. João de Barros, para além do importante contributo dado à delimitação geográfica do Monomotapa, aprofunda ainda as origens das antigas minas de ouro e da arquitectura monumental do Zimbabwe, cuja construção totalmente desconhecida e invulgar, suscitava misteriosas explicações sobre os seus construtores, bem como sobre a época em que teria sido construida.14 Este clima de fascínio, e até de mistério, reflectir-se-ia nas descrições dos portugueses, onde se delinea a imagem de um reino cheio de tradições, rico em ouro e passado. Além disso, um outro elemento contribuiria de uma forma decisiva para o interesse e a atracção por este reino: a sua rigorosa estrutura social. Uma autocracia central forte e poderosa, definida pelos autores portugueses como uma sociedade, cuja profunda consciência de justiça determinava a sua maneira de viver. Segundo João de Barros era lícito frisar, em relação ao Monomotapa, que já conheciam uma "certa religião", que se mani-festava na veneração dos mortos, no festejo de determinados dias e no reconhecimento de um só deus, a que chamavam "Mozino" (muzimo).15

13. Idem, pp. 546-47. 14. João de Barros, Asia, ed. António Baião e Luis F. L. Cintra, Lisboa, 1951, vol I, p. 395-97. 15. Idem.

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Todas estas particularidades fomentavam o respeito dos autores portugueses por este reino e pelos seus habitantes, significando os contactos estabelecidos com o Monomotapa algo de inovador, dado que aí se encontravam uma região onde se conhecia só um deus superior, uma lei bem definida, bem como uma só ordem social. Assim, e embora tivessem outros costumes bem diferentes dos portugueses, na verdade, como afirma João de Barros: "[...] em alguma maneira parecem que seguem razão de boa polícia, segundo a barbaria dêles".16 Também Duarte Lopes, na sua relação sobre o Congo, faz referência ao vasto poderio e grandeza do Monomotapa.17 Assim, quando menciona os reinos vizinhos do Congo alude ao Monomotapa nos seguintes moldes: "O Império do Monomotapa è grande e de gente infinita, gentia e pagã, de cor negra, muito animosa na guerra, de estatura meã, e veloz; e há muitos Reis vassalos de Monomotapa; [...] Tem este Imperador muitos exércitos, e separados nas províncias, divididos em legiões, à usança dos Romanos; porque, sendo grande Senhor, tem necessidade de batalhar contínuamente para manter o estado seu. Entre as gentes de guerra, que apontámos, as mais valerosas em nome são as legiões de mulheres, muito estimadas de El-Rei, e o nervo das suas forças militares. Elas queimam com o fogo as tetas esquerdas, por que lhes não sirvam de embaraço ao dispararem as setas, segundo o uso das Antiquíssimas Amazonas, tão celebradas dos Historiógrafos das primeiras memórias profanas".18 Lopes faz assim menção às legiões de mulheres guerreiras que, já tão exaltadas pelos autores clássicos, se encontrariam também no Monomotapa. E descreve com admiração a desenvoltura destas amazonas na guerra: "Por armas empregam arcos e setas; e são mui desenvoltas e rápidas e robustas e corajosas e mestras no assetear e, sobretudo, seguras e fortes no combater. Nas pugnas usam de grande astúcia guerreira, porquanto têm por costume de se irem retirando, como em fugida, e mostrando estarem derrotadas; mas voltando-se, todavia, muitas vezes, a investir aos inimigos com os tiros das setas; e, quando vêem que aqueloutros, lisonjeados pela vitória, estão já dispersos, volvendo de repente sobre eles, com grande ardimentos os matam; e por via da sua ligeireza, com embuscadas e outros ardis de guerra, são temidas, grandemente naquelas partes. Têm de El-Rei, em

16. Idem, p. 398. 17. Duarte Lopes e Fillippo Pigafetta, Relatione del reame di Congo et delle circonvicine contrade, Roma, 1591; Wahrhaffte vnd eigentliche Beschreibung deß Königreichs Congo in Africa..., Frankfurt, 1597, pp. 66-67. 18. Duarte Lopes, Relação do Reino do Congo e das Terras Circunvizinhas, ed. Lisboa, 1951, pp. 133-34.

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usufruto, certos territórios, onde vivem sózinhas; e, por algum tempo, ajuntam-se com homens, escolhidos por elas, a seu prazer, para a geração; e se parem machos, mandam-nos para as casas deles; e se fêmeas, guardam-nas consigo para as exercitar na guerra".19 Tais relatos contribuíam não só para um maior conhecimento deste império, como também para um prolongar de arreigados fascínios. O holandês Jan Huygen van Linschoten alude, de igual modo, entusiasticamente às montanhas do Monomotapa, onde se existariam jazidas de ouro, a que os portugueses dariam o nome de ouro de areia, uma vez que os seus grãos eram tão pequenos como os de areia, mas de famosa qualidade, como não haveria melhor no Oriente.20 Os contactos com o Monomotapa, estabelecidos a partir de Moçambique, intensificavam-se de acordo com as crescentes relações comerciais. Mas a presença portuguesa não agradava aos arábes que, durante anos, tinham exercido o controlo e monopólio do comércio local. Em 1560 chegariam os primeiros missionários a esta região, entre eles, o padre Gonçalo da Silveira. O religioso da ordem jesuíta viria a converter o Monomotapa ao cristianismo, bem como a baptizar muitos dos seus nobres e vassalos. Mas os arábes não iriam ceder a mais esta influência portuguesa. Estes aconselham o Monomotapa a matar o padre Gonçalo Silveira; com ele iriam encontrar a morte os cinquenta cristãos que nesse dia tinham acabado de receber das suas mãos o baptismo.21 Os jesuítas não iriam, contudo, deixar de enviar missionários para o Monomotapa e con-tinuar a relatar sobre este tão requestado reino. Assim, o Império do Monomotapa seria conhecido, também na Alemanha, não só como um reino repleto de tradição e de ouro, mas ainda como um dos mais persistentes e intrincados campos de acção apostólica, em África.

19. Idem, p. 134. Este relato sobre as amazonas viria assim a ser tema para uma ilustração da edição alemã da família de Bry. 20. "In diesem Berwerck Monomotapa wird viel golts gefunden/ auch ein besonder art von Golt, welche die Portugaleser nennen Golt von Botongoén onroengo oder Goldsand/ denn es ist so klein wie Sand/ aber so köstlich/ dergleichen kein bessers in ganß Orient gefunden wird". Jan Huygen van Linschoten, Ander Theil der Orientalischen Indien, Frankfurt/M., 1598, p. 20. 21. "Dann der König wurde durch sie vberredt vnd betrogen/ vnd ließ den seligen Patrem tödten/ vnd sampt ihme noch funffzig Christen die Gurgel abstechen/ welche der Pater denselben Tag/ daran er gemartert/ getaufft hette." Fernão Guerreiro, Indianische Newe Relation/ Erster theil, Was sich in der Goanischen Prouintz/ vnd in der Mission Monomotapa/ Mogor/ auch in der Prouintz Cochin/ Malabaria/ China/ Pegu vnnd Maluco/ so wol in Geistlichen als Weltlichen Sachen/ vom 1607. 1608. vnd folgenden zugetragen, Augsburgo, 1614, p. 6.

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2.6 A Etiópia e o Lendário Preste João das Índias Nos séculos XV e XVI corria uma lenda sobre a existência de um rei cristão que viveria algures, possivelmente na Ásia, de grande poderio e que poderia ajudar os cristãos a lutar contra os infiéis muçulmanos, o denominado Preste João. A atracção em encontrar este extenso e poderoso reino cristão ganhava grande actualidade na consciência cultural europeia. As notícias referentes a esta lendária figura eram já bem antigas.1 Otto von Freisingen relata na sua Chronica que se encontrara em Roma com o bispo sírio, Hugo von Gabala, enviado ao papa pelas igrejas arménias, que lhe falara de um padre e rei chamado João que habitaria para além da Arménia e Pérsia e que seguiria a religião cristã da seita nestoriana; este mesmo teria feito guerra ao rei da Pérsia e mesmo com grandes dificulda-des teria ido em socorro a Jerusalém. Este, a quem chamavam Presbyter João, dizia-se da descendência dos Reis Magos e pretendia socorrer a Terra Santa do poderio dos muçulmanos. Alguns anos mais tarde, por volta de 1165, circula uma carta que este mesmo rei teria enviado ao pontífice Alexandre III e a vários reis da Europa.2 Nesta missiva fala-se do Preste como o soberano das Três Índias rico em poder e senhor de um reino fabuloso. Estas notícias de um poderoso rei cristão abriam novas esperanças aos cristãos europeus que pretendiam ver vencido o poder dos infíeis. Recorria-se à memória de S. Tomé,3 o Apóstolo da Índia, bem como ao evangelista Mateus, que segundo a tradição teria propagado a doutrina cristã no Egipto e na Etiópia.4 Procura-se, assim, durante muito tempo localizar o Preste João, na Ásia, considerando-o como um príncipe da dinastia Khitai que, fugido da China em 1125, viria a fundar um novo império sob o nome de Gur-Khan.5 O Presbyter João seria ainda associado ao rei cristão da Georgia, João

1. Veja-se Ulrich Knefelkamp, Die Suche nach dem Reich des Priesterkönigs Johannes, Dargestellt anhand von Reiseberichten und anderen ethnographischen Quellen des 12. bis 17. Jahrhunderts, Gelsenkirchen, 1986 e do mesmo Europa auf der Suche nach dem Erzpriester Johannes, Bamberg, 1990. 2. Cf. Knefelkamp, Die Suche..., p. 35. Sobre o poder e a riqueza do reino do Preste João, veja-se um extraxto do Tractatus pulcherrimus, in: Eberhard Schmitt (Ed.), Dokumente zur Geschichte der europäischen Expansion, vol. 1, Munique, 1986, pp. 125-132. 3. Sobre a tradição deste apócrifo, veja-se Martin Bocian et al. (Ed.), Lexikon der biblischen Personen, Estutgarda, 1989, pp. 492-494. 4. Idem, pp. 363-366. 5. Conde de Ficalho, Viagens de Pêro da Covilha, 1898, ed. Manuel Villaverde Cabral, Lisboa, 1988, p. 10 e Knefelkamp, op. cit. (Die Suche...), pp. 47-49.

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Orbeliano.6 Mas ao longo do século XIII iriam chegar mais informações através de viajantes como Marco Polo, que afirmariam haver descendentes do Preste João no reino da Mongólia.7 Alguns consideravam que esta região seria pequena para o seu extraordinário poderio, pelo que o associavam ao grande Gengis-Khan.8 O mais aceite era que o seu extenso, poderoso e riquíssimo reino se localizasse na Índia que, para alguns, poderia ainda ser na India Tertia, logo na África. Na geografia helénico-romana e, em seu seguimento na geografia medieval, dividia-se o mundo em três partes, sendo a Ásia e a África separadas pelo rio Nilo. A África que se estendia a poente do Egipto e da Líbia e Etiópia seria várias vezes incluída na Índia. Por exem-plo, nos finais do século XIII, Marco Polo distinguia três Índias, a Maior, a Menor e a Média. E nesta última, também chamada "Terceira" ou "India Ethiopica", perto de Adém e Núbia, ou seja, na África, localizar-se-ia a Etiópia.9 O clérigo Bernard Breydenbach pensa ter encontrado em Jerusalém súbditos do Preste João que, chamados de abássios ou índios, teriam vindo da província indiana dominada pelo poderoso rei cristão conhecido por Preste João; estes ter-se-iam assim convertido ao cristianismo aquando da pregação do Apóstolo São Tomé.10 A designação de Etiópia surgia bastante equívoca, uma vez que correspondia a todo o território ao sul do Egipto, desde o Atlântico até à contracosta. E ao considerar-se o Nilo como a divisória entre a África e a Ásia esfumavam-se os limites fronteiriços entre a Etiópia e a Índia.11 Daí que em várias cartas da Idade Média, o Preste João apareça já no continente africano.

6. Conde de Ficalho, op. cit., p. 11. 7. Knefelkamp, op. cit., (Die Suche), pp. 67-68. 8. Conde de Ficalho, op. cit., p. 17 9. Veja-se Vitorino Magalhães Godinho, Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar, séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990, p. 172. 10. "Es ist noch einander Geschlecht zu Jerusalem etlicher Menschen die Abasini oder Indiani heissen/ von der provintz India also genannt/ von der Herrschung vnd Landschafft deß mächtigen Königs den wir Priester Johann nennen/ welcher gewaltigen Herr vnd König sich mit sampt allem seinem Volck Christen beklennet/ vnd seyn durch S. Thomam Aposteln zum Christen Glauben von anbeginn bekehret worden". Bernard Breydenbach, Die Reise ins Heilige Land, Mainz, 1486, p. 167, refere que estes teriam enviado, em 1482, uma embaixada a Roma ao papa, pois, apesar de algumas divergências nas cerimónias religiosas queriam estar sob a protecção da igreja católica. 11. Luís de Albuquerque, Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, s. d., pp. 172-74.

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Este interesse em buscar um reino cristão situado algures entre a África e a Ásia levaria também os portugueses a explorarem a costa africana na viva esperança de encontrar o caminho até ao afamado Preste João. Os cronistas coevos relatam sobre estas iniciativas. Gomes Eanes de Zurara escreve, por exemplo, na Crónica dos Feitos da Guiné que o infante D. Henrique ao enviar Antão Gonçalves para a sua viagem, em 1442, lhe encomendara que soubesse novas da Terra dos Negros e que "nom soomente daquella terra desejava haver sabedorya, mas ainda das Indyas e da terra de preste Joham, se seer podesse".12 De acordo com as concepções geográficas de autoridades como Solino, Pompónio Mela ou Isidoro, Zurara considerava a Índia um domínio geográfico muito extenso e de fronteiras imprecisas, que abrangia regiões ao sul do Sara. Além disso, considerava como fronteira entre a Índia e a África, o rio Nilo pelo que um dos braços do Nilo iria desaguar no Atlântico, ficando assim consideradas terras da Índia e domínios do Preste João todas as regiões a sul daquele rio.13 Se seguirmos outros textos de navegadores portugueses ou directamente relacionados com as viagens marítimas vamos encontrar frequentemente o alargamento da Etiópia até à costa ocidental da África de acordo com as mesmas concepções geográficas. Ao visitar a região do Gâmbia, Usodimare afirmava que lhe "faltava menos de trezentas léguas até ao país do Preste João".14 E Duarte Pacheco Pereira utiliza no seu Esmeraldo de sitv orbis a designação de Etiópia também quando se refere à zona meri-dional do continente africano.15 As ideias divulgadas no Portugal quatrocentista a respeito do Nilo e da Etiópia eram as da geografia de Mela, Solino e Isidoro, igualmente, inscritas em vários mapas-múndi e planisférios.16 O avanço ao longo da

12. Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos de Guiné, (escrita 1453) ed. A. Dias Dinis, Lisboa, 1949, p. 89. 13. Nos escritos sobre as viagens portuguesas defende-se, muitas vezes, que o rio Senegal seria um afluente do Nilo. Por exemplo, Zurara (op. cit., pp. 260-61) afirma que estariam perto do Nilo quando se aproximaram do rio Senegal: "[...] eram perto do ryo Nillo, da parte donde vem sayr ao mar do ponente , aoqual yo chamam de Canaga" e mais á frente " [...] nós somos acerca do ryo Nillo, ca esta augua bem parece delle he, e por sua grande força corta o mar, e entre per elle assy". Esta mesma referência se encontra em Cadamosto, afirmando ainda que este seria um dos quatro rios do Paraíso, Luís de Cadamosto, Newe unbekandte Landte, Nuremberga, 1508, cap. xv. 14. A carta de Usodimare ao seu financiador encontra-se publicada por Vitorino Magalhães Godinho, Documentos sobre a Expansão portuguesa, Lisboa, 1956, vol. III, p. 99. 15. Manuscrito datado de 1505-1508; ed. Lisboa 1905; 1975. 16. Sobre a legenda do Preste João e sua ressonância na cartografia, veja-se Armando Cortesão, History of Portuguese Cartographie, 1 vol., Lisboa, 1969, pp. 255-275 e Yoro K.

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costa ocidental africana trazia, contudo, mais informações à Europa, sobre o interior e também sobre o reino mítico do Preste João, como as do comerciante veneziano Nicolò de' Conti, que ali viveu quarenta anos.17 No ano de 1487 organizar-se-ia em Portugal uma expedição com o propósito de localizar este reino e estabelecer contactos capazes de incrementar as relações comerciais com o Índico. Pero da Covilhã e Afonso Paiva seriam os responsáveis pela concretização destes objectivos e, estava nas suas mãos, tornar este sonho realidade.18 Enquanto Bartolomeu Dias dobrava o cabo das Tormentas, que então se passaria a chamar da Boa Esperança, Pero da Covilhã descobriu por terra o Preste João. Após algumas dificuldades no percurso, Pero da Covilhã será o primeiro português a entrar no reino da Abissínia, onde ficaria a viver convencido de ter encontrado o famoso Preste João, desde há muito procurado. A partir deste momento estabelece-se um vasto leque de intensas relações entre portugueses e etíopes. Na verdade, seria a rainha etíope, Helena, quem tomou a iniciativa de entrar em contacto com os reis da Europa. Ela enviaria um diplomata à Índia, que se iria encontrar com Afonso de Albuquerque. Este, um antigo mercador arménio de nome Mateus, viria em 1514 até Portugal para se encontrar com o rei D. Manuel I e lhe entregar uma carta do rei David com o seu vivo desejo de se aliar ao rei português.19 Após longas expectativas ocorria o tão desejado encontro com o reino da Etiópia através deste seu representante, a quem caberia informar sobre a sua terra natal e, nomeadamente, a fé católica. Com Mateus iria, aliás, partir uma missão diplomática portuguesa. As notícias depressa se propagariam na Europa, ávida de novidades em relação ao reino etíope. E é, neste contexto, que vem a público uma das cartas do rei português ao papa Leão X, em que o monarca dava a conhecer os últimos contactos estabelecidos com esse rei cristão.20 Numa outra missiva datada de 8 de maio de 1521, o rei português participava, também ao Pontífice, a singular notícia do seu Embaixador na Etiópia, que

Fall, L'Afrique a la naissance de la Cartographie moderne, Les cartes majorquines: XIVe- XVe siècles, Paris, s.d. 17. Cf. Knefelkamp, op, cit. (Die Suche), pp. 81-85. 18. Veja-se, por exemplo, Conde Ficalho, Viagens de Pêro da Covilhã, Lisboa, 1898, ed. Lisboa, 1988. 19. Damião de Góis, Chronica d'el rei D. Manuel, Lisboa, 1566, 8 ºlivro, ed. Lisboa, 1911, pp. 32-35. 20. Já as cartas do rei português para o papa Júlio e para os reis Católicos anunciavam o avanço dos portugueses na Índia. Estas viriam a lume, em alemão, nos anos de 1505, 1507 e 1513.

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fora recebido atenciosamente pelo Negus e que lhe prometera firmar aliança com Portugal contra o poderio dos Turcos no Mar Vermelho. Esta carta viria a ser impressa, em Roma, sob o título Epistola Invictissimmi Regis Portugalliae ad leonem X. P. M. super foedere inito cum Presbytero Ioanne Aethiopiae Rege. Por sua vez, o Papa escreveria ao Preste João, à Rainha Helena e ao Patriarca Marcos, chefe da igreja abássia.21 Neste mesmo ano de 1521, a pedido do rei imprimir-se-ia a carta relativa ao "descobrimento do Preste joao que lhe enviara o seu capitao e governador das Índias,", onde Diogo Lopes de Sequeira relatava pormenores e aspectos da viagem até à Etiópia.22 O italiano Andrea Corsali, que viajou entre 1515 e 1518 com a frota de Lopo Soares Albergaria, envia algumas cartas para a sua terra natal. Numa delas endereçada ao Príncipe e Sr. Lourenço Medici, relata as "maravigliose cose nuovamente trovarte dall armada del re di Portogallo, nelle parte di india, di persia e di ethiopia, insino a questo giorno incognite".23 Corsali, que não foi além do Mar Vermelho, recolheu por estas paragens algumas informações sobre a riqueza do Preste João, cujo reino se estendia até "tra dalla banda di Ghinea, del Re di portogallo".24 Corsali alude às acções bélicas entre muçulmanos e cristãos no Mar Vermelho, onde a armada do sultão do Cairo se veria atacada pela frota portuguesa.25 Estas cartas divulgavam, na Europa, o encontro com o lendário rei cristão e informavam, ao mesmo tempo, sobre a sua importância internacional. Neste contexto, o erudito e humanista Damião de Góis iria também prestar um valioso contributo na proliferação de informações.26 A pedido do

21. Veja-se A. Alberto Banha de Andrade, Francisco Álvares e o êxito europeu da verdadeira informação sobre Etiópia, Lisboa, 1982, p. 10. 22. Esta carta encontra-se publicada in: Luís Filipe Barreto (Ed.), Por Mar e Terra, Viagens de Bartolomeu Dias e Pero da Covilhã, Lisboa, 1988, pp. 23-42. 23. A carta de Andrea Corsali seria publicada separadamente em Florença, 1516 e 1519. Veja-se também Rita Biscetti, Portogallo e Portoghesi nelle due Lettere di Andrea Corsali a Giuliano e a Lorenzo de' Medici incluse nelle 'Navigazioni' di G. B. Ramusio, Lisboa, 1985, pp. 3-4. 24. Veja-se a publicação de Corsali in: Giovanni Battista Ramusio, Navigazioni e Viaggi, (1550), ed. Marica Milanesi, Torino, 1979, vol. 2, p. 51. 25. A presença dos portugueses nesta região africana alarmou os países muçulmanos vizinhos, que começaram a atacar a Abissínia. 1541 é a data da chegada da embaixada portuguesa chefiada militarmente por D. Cristovão da Gama em defesa dos etiópes. Sobre esta expedição, veja-se Miguel de Castanhoso, História das Cousas que o mui esforçado Capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos Reinos do Preste João com quatrocentos Portugueses que consigo levou, Lisboa, 1563, ed. Neves Águas, Lisboa, 1988. 26. Veja-se Cap. 1.1.

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bispo Johannes Magnus, Góis editava a sua Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis ad Emmanuelem Lusitanae,27 onde informa sobre a embaixada do Preste João ao rei português, bem como sobre a fé destes povos africanos; Góis, para redigir este seu escrito, servira-se em grande parte das informações que Mateus deixara em Portugal. Em 1533, um ano mais tarde, viria a público um outro texto, a Legatio David Aethiopia Regis.28 Este opúsculo é, antes de mais, uma compilação das cartas dos reis de Portugal e da Etiópia, nomeadamente, as cartas do rei David a D. Manuel I, e de David a D. João III, as cartas de D. Manuel I ao papa Clemente VII, bem como as do rei David ao papa. Para além destas, o livrinho traz a descrição da embaixada portuguesa da autoria de Francisco Álvares, bem como dois dos seus capítulos sobre aquela região africana. O padre Francisco Álvares, que fazia parte da missão diplomática, acompanhara Mateus até ao reino do Preste. Após seis anos de estada nestas paragens, e já de regresso a Portugal, Álvares faria uma paragem, em Roma. Na qualidade de enviado do Preste, Francisco Álvares trouxera algumas cartas do rei que, naturalmente, suscitavam a curiosidade e o interesse por toda a Europa.29 A sua relação das terras do Preste João viria a ser assim uma das primeiras descrições sobre este reino e, desde logo, se irá salientar o seu nome como o autor de uma modelar obra, a primeira informação fidedigna sobre a terra, os costumes e a fé professada na Etiópia. Esta relação viria também a ser publicada em alemão igualmente no ano de 1533.30 Aqui menciona-se já a obra de Francisco Álvares, que em cinco capítulos daria a conhecer este tão buscado reino; no primeiro descreve toda a terra com a informação das suas fronteiras, as origens das grandes águas do Nilo e das razões do seu percurso, e muitas outras coisas bonitas e maravilhosas; no segundo trata da riqueza da terra, dos cereais e de

27. Antuérpia, 1532. O tema seria retomado por Damião de Góis em Fides, Religio..., Lovaina, 1540. 28. Bolonha, Roma e Basileia, 1533. Veja-se Francisco Leite de Faria, Estudos Bibliográficos sobre Damião de Góis e a sua Época, Lisboa, 1977, pp. 397-409. 29. Este texto, que durante muito tempo se pensou ser da autoria de Damião de Góis, é possivelmente de Paulo Jóvio. 30. Botschaft des Grotzmechtigsten Konigs David/ auß dem grossen vnd hohen Morenland/ den man gemeinlich nennet Priester Johan/ an Papst Clemens de Sibenden/ zu Bonomia verhört in offnem Consistorio am xxxr Taga Januarij Anno MDXXXIIJ. s.l. Outras edições alemãs: Dresden, 1533 e Frankfurt, 1544. Para além das edições latinas e alemãs viria a lume no ano de 1533 ainda em italiano e francês. Veja-se Leite Faria, op. cit.

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algumas culturas e frutos; no terceiro menciona os animais e as aves, destacando o grande animal selvagem que é o elefante, que aí há em grande número, nas matas ou em campo aberto; no quarto o tema será a natureza e costumes dos abássios, o seu alfabeto e estudos, bem como a corte do imperador, jóias, usos no exército e leis da vida civil; no quinto dedica-se à religião, nomeadamente, festas, ornamentos, funerais, esplendor dos casamentos, a vida dos monges, visto que aí se encontra um grande número de conventos.31 A obra de Francisco Álvares publicada, no ano de 1540, em Portugal, sob o título de A verdadeira Informação das Terras do Preste João,32 viria a lume em alemão, nomeadamente, em 1566, na cidade de Eisleben. Com o sugestivo título Wahrhafftiger bericht von den Landen/ auch geistlichen und weltlichen Regiment des mechtigen Königs in Ethiopien/ den wie Priester Johan nennen/ wie solche durch die Kron Portugal mit besonderen vleis erkundiget worden/ beschrieben durch herrn Franscis-cum Aluares/ so derhalben sechs Jar lang an gedachts Priester Johans Hoffe verharren müssen/ aus der Portugallischen und italianischen Sprach in das deutsche gebracht und zuuorn nie im druck ausgangen. Esta tradução que se insere num grupo de publicações cujo propósito era delimitar uma imagem mais clara e concisa deste reino, intenta, com a publicação dos textos de Álvares e Corsali, dar a conhecer dois relatos escritos há bem pouco tempo sobre esta terra ainda tão desconhecida. A estas descrições junta-se a carta da rainha Helena ao rei português D. Manuel I, datada de 1509, e as outras cinco missivas já referenciadas. O texto de Francisco Álvares, uma imagem fidedigna deste povo, procura traçar particularmente um retrato leal da religião professada na Etiópia.

31. "Es hat aber des keisers David Botschafft/ Franciscus Alvaretz von den selbigen Abissinier Moren ein gros Buch gebracht/ in fünff Bücher geteilt. Im ersten wirdt das gãtz land eigentlich beschrieben/ mit anzeigung der Gretzen/ vnnd anmerckung der taglenge/ abgemessen nach des hymels lauff/ wie es der welt beschreibung gibet/ darinn vom vrsprung des grossen Wassers Nili/ vnd von vrsachen seines außlauffens/ viel schöne vnnd wunderliche ding erzelt werden. Im andern buch wirdt weytleussig gehandelt/ von des Erdtrichs fruchtbarkeit/ von art des getreydes/ vnd von mancherley früchten vnd gewechsen. Im dritten/ von thieren vnd vögeln/ von grösse der wilden thier zuuoraus von Elephanten/ welcher herte und grosser anzahl gesehen werden inn büschen vnd im offenen feldern. Im vierten/ wirdt tractirt von natur vnd Sitten der Abissiner von yren Buchstaben vnd studiren/ von des Kaisers hoffhalten/ geschmuck vnd verstand/ von heeres Krafft/ von Zucht vnd leer/ von gesetzen vnd burgerlichen Satzungen. Im fünfften/ von den dingen so die Religion betreffen/ als do seind nochzeitliche fest/ zieerdd der Kirchen/ Eer der Begrebnüs/ herlikeit der hochzeitten/ vnnd der Mönche leben/ welche mit vnendtlicher anzal inn Clöstern beschlosen seind." Idem. 32. Lisboa, 1540.

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Daí que dê um lugar de relevo às conversas tidas com o Negus acerca dos fundamentos e costumes litúrgicos do cristianismo na Europa. Ao longo destas conversas sobressaiem paulatinamente algumas discrepâncias na prática religiosa, no que respeita ao sacramento do baptismo, da comunhão ou ainda, por exemplo, na vivência da Páscoa, diferenças estas que o autor exemplar e invulgarmente anota sem qualquer comentário crítico ou apreciação.33 Mas mais, no retrato que se vai delineando sobre a Etiópia ressalta não só o aspecto religioso, como ainda o facto de ser um país de longa tradição histórica. Muitos autores quando se debruçam sobre a história deste país usam como referência histórica o episódio da rainha Saba.34 É o caso de Leonhart Rauwolf que, ao caracterizar este povo, não quer ver desprezado o facto de serem descendentes de Salomão. E salienta que embora tivessem sido convertidos pelo Apóstolo Filipe, os etíopes seguiriam ainda muitos costumes judeus como o sabat, o não comerem determinados alimentos e o uso da circuncisão.35 As diferenças notadas na prática religiosa formulam um apelo: a necessi-dade de uma nova missionação. O estreito contacto com as terras do Preste João tinha destruído a antiga lenda do rei cristão e as maneiras díspares de viver o cristianismo alertavam para um recolhimento com a palavra de Deus. Com efeito, e embora já a conhecessem, a religião cristã ter-se-ia profanizado e assim afastado progressivamente do verdadeiro credo. Da Europa seriam enviados vários missionários, especialmente jesuítas, que, a partir de 1555, deveriam pregar e dar a conhecer a verdadeira palavra cristã; a sua função era assim reconduzir os etíopes às leis de Roma. Durante a sua estada na Etiópia, os missionários recolheriam sistematica-mente informações sobre os vários aspectos geográficos e culturais deste país, compilando obras de um valor inestimável para o efectivo conheci-mento desta parte de África. Jerónimo Lobo, um destes padres jesuítas, seria um dos primeiros viajantes do século XVII a escrever sobre este país; um dos aspectos que aflorou foi o da localização das fontes do rio

33. Sobre Francisco Álvares, veja-se Ulrich Knefelkamp, Vom Nutzen einer Begegnung. Der Bericht der ersten portugiesischen Gesandtschaft nach Äthiopien (1520-1526), In: Zeitschrift für historische Forschung, Beiheft 7, Berlim, 1989, pp. 135-151. 34. 1. Livro dos Reis 10, 1-13 e Mat. 12, 42; também Álvares, pp. 156-157. 35. Leonhart Rauwolf, Aigentliche beschreibung der Raiß/ so er vor diser zeit gegen Auffgang inn die Morgenländer ... selbs volbracht, Laugingen, 1581, pp. 422-426; outras edições: 1582 e 1583.

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Nilo, desde há muito desconhecidas e envoltas em misteriosas representações.36 Quando, em 1666, o inglês Sir Robert Southwell chega a Portugal, em missão diplomática, toma contacto com os conhecimentos dos Jesuítas. Southwell, membro da Royal Society estava, aliás, encarregue de recolher as novas geográficas de maior valor para o desenvolvimento científico. Assim, pede ao padre Jerónimo Lobo que exponha os seus valiosos conhecimentos por escrito, a fim de que estes possam vir a ser publicados. Terminado o manuscrito, composto de cinco ensaios, logo seria vertido para o inglês por um outro membro da Royal Society, vindo a público, em 1669 e em 1673. Este opúsculo igualmente traduzido para o alemão, viria a lume, em 1670, na cidade de Nuremberga. Em pouco mais de 100 páginas, Jerónimo Lobo responde de uma forma clara e concisa a cinco questões em torno do nome e localização do reino do Preste João, bem como das origens do rio Nilo: Neue Beschreibung und Bericht von der wahren beschaffenheit 1. des Mohrenlandes/ sonderlich des abyssinischen Kayserthums 2. des Ursprungs Nyli 3. wo das Einhorn zu finden 4. Warumb der abyssiner Kaiser Priester Johannes genennet werde 5. wie das rothe Meer beschaffen/ und woher es diesen namen habe 6. von unterschiedlichen arten der Palmenbaüme/ vnd von ihrer Tugend und Nutzbarkeit.37 As observações e as experiências empíricas de homens como Jerónimo Lobo, João dos Santos,38 Balthasar Teles,39 Pero Pais40 e Manuel de Almeida,41 que viveram vários anos na Etiópia, permitiam não só um notório aumento de informações geográfico-culturais, como ainda formulavam novos teoremas explicativos sobre as Terras do Preste João e o continente africano em geral.

36. Jerónimo Lobo, Itinerário e outros escritos, Lisboa, 1971 (manuscrito de 1640). 37. Este texto viria ainda a ser publicado em Paris, 1673 e 1674, na Itália, 1693 e na Holanda em 1707. Em Portugal não seria organizada uma publicação completa do seu itinerário, mas sim em Paris no ano de 1728, da qual surgiria uma tradução alemã, desta vez, em Zurique. 38. João dos Santos, Ethiopia Oriental, e Vária História de Cousas notáveis do Oriente, Lisboa, 1609. 39. Manuel Almeida/ Baltasar Teles, História Geral da Ethiopia-a-Alta, Coimbra, 1660. 40. Pero Pais, História da Etiópia (Manuscrito terminado em 1622; primeira publicação em Roma, 1905-1906), ed. Lisboa, 1945. 41. Manuel da Veiga, Relaçam Geral dos Estado da Christandade de Ethiopia, Lisboa, 1628. Sobre estes autores, veja-se Joaquim Veríssimo Serrão, A Historiografia Portuguesa, vol. 2, Lisboa, 1973, pp. 287-302.

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No decorrer dos séculos XVI e XVII verificou-se uma profunda alteração na concepção do espaço terrestre etíope. A euforia inicial tinha as suas origens na busca de um rei cristão em África, cuja descoberta deu lugar a uma veemente exaltação do apostolado europeu. Mas com o passar dos anos, os europeus chegam à Africa não como curiosos e interessados observadores, mas como sérios instrutores, que acreditam poder indicar o caminho a trilhar. Esta mudança de perspectiva e de comportamento é - como tivemos ensejo de ver - perceptível não só para o reino de Etiópia. Mais do que isso, poder-se-á aplicar ao encontro com as sociedades afri-canas. Recordemos as descrições depreciativas, que seriam feitas ao povo egípcio no século XVII, ao confronto que se desenvolveu entre europeus e guineenses, e à desilução e até reprimida decepção atestada nas acções missionárias no Congo e no Monomotapa. Isto sem esquecer a grande intolerância, senão mesmo, a não aceitação dos hotentotes. A imagem de África traçada pelos europeus, ao longo de dois séculos de viagens, não só se reformulou em sólidos e acrescidos fundamentos, como ainda se foi definindo segundo as visões e perspectivas dos visitantes que, em face das estranhas e diferentes realidades, ansiavam reafirmar-se.

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3. Em Diálogo com as Novidades

3.1 Os Horizontes Geográficos A publicação de relações de viagens, valiosas reportagens do avanço em mares ignotos, representava um inesgotável manancial de informações que, distribuído pelas várias áreas do saber, contribuiria incontestavelmente para a reavaliação conceptual do espaço terrestre. Ao traçarem um novo esboço da terra, redefinirem regiões geográficas, esquissarem novos continentes e, mais, apresentarem povos até então des-conhecidos, estes opúsculos revelavam inesperadamente um mundo ilimitado e surpreendente. A leitura destas obras desencadeava, incondicionalmente, um efusivo e fervoroso diálogo com as novidades; a revelação estonteante de novos conteúdos informativos sobre o orbe terráqueo impunha-se a par e passo como um alicerce indispensável para uma evolução da concepção do espaço terrestre. Levanta-se então uma questão relacionada com o tipo de informações prevalecentes no meio cultural europeu aquando da chegada destes escritos. E a esta prende-se uma outra: qual foi o seu impacto e ressonância nas publicações coevas. O propósito de responder a este rol de questões será o trajecto que iremos esboçar, ao longo das páginas imediatas, buscando quais as reais e intrincadas manifestações do diálogo com as novas novidades descritas na Literatura de Viagens. A imagem do mundo, tal como era conhecida, não correspondia ao esboço recém formulado. Os homens de letras regozijam-se com as novas descobertas sobre os contornos do mundo e fazem-lhes referência nas obras que editam. Mas como os dariam a conhecer, isto é, como interpretariam os testemunhos expostos nos relatos de viagens? As iniciativas então levadas a cabo teriam o intuito de realizar uma reconstrução do sistema preva-lecente, actualizando-o. Mas esta suposta integração no traçado ptolomaico prepara aos ditosos construtores do mundo indefinidas dificuldades. Representam estas novidades descobertas além-mar um inesperado mundo novo ou seriam apenas parte do velho mundo até agora ignorada? Neste estudo e análise da nova concepção do espaço terrestre, o continente africano surge como um exemplo especialmente interessante e representativo. Considerado concluído o conhecimento da sua forma e características, com as viagens marítimas portuguesas, os contornos deste continente declaram-se erróneos. Será, desvendando-se extraordinárias e

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inquietantes informações sobre o traçado das suas costas e o seu interior, que se irá pôr em marcha um processo de recepção ou evolução conceptual do espaço terrestre num diálogo exemplar e sintomático com as novidades.

3.1.1 A Descoberta de um Novo Mundo As teorias formuladas na Antiguidade Clássica determinavam diferentes traçados para o formato do continente africano. Em especial, e no que concerne à zona equatorial, o geógrafo alexandrino Ptolomeu (séc II d.C.) considerava que a extremidade sul africana estender-se-ia de tal forma para sueste e sudoeste que se encontraria com a Península asiática; assim, na sua opinião, o Oceano Índico seria um mar interior fechado. Em contrapartida, seguindo Macróbio (séc V d.C.), outra das mais conceituadas e defendidas teorias, o continente africano teria uma forma mais ou menos rectangular, que se estenderia até ao Equador, formando o Oceano Atlântico com o Índico um mar único.1 Macróbio que pressupunha a existência de um outro continente, um bloco único situado paralelamente à Europa, Ásia e África,2 dividiria a terra em zonas climáticas, nomeadamente duas polares, uma equatorial e duas tempe-radas. As duas últimas seriam habitadas, enquanto as zonas polares demasiado frias e, por seu lado, a zona equatorial demasiado quente, não permitiriam a vida humana. Na zona temperada ao sul do Equador viveriam os antípodas.3 Se as reflexões de Macróbio encontrariam já na Idade Média uma grande ressonância, a teoria de Ptolomeu só em 1410 seria divulgada numa tradução latina de Jacobo Angiolo. Publicada pela primeira vez em

1. Sobre estas teorias, veja-se entre outros, Joachim G. Leithäuser, Mappae Mundi, Die gestige Eroberungen der Welt, Berlim, 1958 e Leo Bagrow, Die Geschichte der Kartographie, Berlim, 1951. 2. Macróbio apresenta estas suas concepções num comentário à obra de Cícero intitulado Interpretatio in Somnium Scipionis, que viria mais tarde a ser divulgado por Martin Capella. Veja-se W. G. L. Randles, L'Image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVIe Siécle, Lisboa, 1959, p. 3. 3. A existência de antípodas justificada por Platão seria já durante a Idade Média posta em causa, sem que, no entanto, se refutasse a existência de um continente ao sul do Equador. Se, de facto, existissem os antípodas, estes seriam, tal como os povos europeus, filhos de Adão, ocupando-se, entre outros, Santo Agostinho da questão como teriam estes ultrapassado o Equador considerado intransponível. Cf. Aurelius Augustinus, De civitate Dei, 2 vols, Zuri-que/Munique 2 ed. 1978, pp. 293-978 (= Livro 16, Cap. 8 e 9).

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Vicenza no ano de 1475, seguir-se-lhe-iam várias edições: na cidade de Florença em 1477 e em Roma nos anos de 1478 e de 1490; a primeira edição alemã viria a lume na cidade de Ulm, em 1482. Nos meados do século XV assistir-se-ia, assim, a um renascimento do autor da Antiguidade Clássica que traçara os fundamentos teóricos correntes aquando do início das viagens marítimas. Curiosamente, e como já foi anotado por diversos historiadores ir-se-ia registar um intervalo nas publicações da Geografia de Ptolomeu precisamente entre 1490 e 1507, data da publicação da Cosmografia de Martin Waldseemüller e Matthias Ringmann.4 No dealbar do século XVI, os dados das viagens dos Descobrimentos passariam a constituir uma fonte geográfica fundamental, que os eruditos europeus não podiam descurar nos seus estudos e publicações, urgindo inserir os novos dados no sistema ptolomaico. Assim, e como se pode testemunhar nas reedições de Ptolomeu, estas obras estabelecem um intensivo e constante diálogo com as novidades reveladas pelos navegadores ibéricos. É o caso, por exemplo, da Geographia de Martin Waldseemüler (1513),5 um verdadeiro marco nas edições da obra ptolomaica. Às vinte e sete tábuas do geógrafo alexandrino, Waldseemüller associa vinte tábuas novas. Entre estas são de referenciar cinco, cujo traçado e registo testemunham o reflexo dos descobrimentos portugueses e espanhóis, publicadas no In Claudii Ptolomei Supplementum, depois da impressão das cartas já conhecidas, nomeadamente duas para a África e três para a Ásia. Uma outra carta denominada Typus orbis universalem juxta hydrographorum traditionem chama a atenção do leitor para as navegações dos reis de Portugal,6 a quem se deveria entusiasticamente agradecer esta grandiosa e inaudita empresa ultramarina. Já, em 1507, o geógrafo Martin Waldseemüller publicara na sua Cosmographia Introductio7 mapas e cartas particulares, onde se reconhece

4. Sobre a autoria desta cosmografia, veja-se o comentário de Eberhard Schmitt in: Matthias Meyn, Manfred Mimler, Anneli Partenheimer-Bein e Eberhard Schmit, (Ed.), Die Großen Entdeckungen, Munique, 1984, pp. 13-15. 5. Martin Waldseemüler, Geographie, Estrasburgo, 1513. 6. Embora no texto se refira erroneamente como rei de Portugal, D. Fernando. Veja-se Armando Cortesão, History of Portuguese Cartography, 1 vol., Coimbra, 1969, p. 131. 7. Martin Waldseemüller/Matthias Ringmann, Cosmographiae Introductio, St. Dié, 1507. Importa não negligenciar o subtítulo: Vniuersalis Cosmographiae descriptio tam in solido quam plano/ eis etiam insertis quae Ptholomeo ignota a nuperis reperta sunt.

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não só a influência das viagens dos Descobrimentos,8 mas também a utilização de cartas portuguesas.9 Em 1516, Waldseemüller voltaria a publicar uma carta-mundi que, como o título indica, Carta Marina navigatoria Portugallen se baseia nos novos conhecimentos dos nautas portugueses. Mas se a representação cartográfica dos novos elementos geográficos é relativamente rápida,10 a inserção destas informações nos textos referentes à expansão marítima vai levar o seu tempo. Na Geographia de Martin Waldseemüller as novas tábuas viriam significativamente impressas como um "suplumentum", ou segundo se formula, em 1507, como um mundo "Extra Ptolemaeum". As viagens dos Descobrimentos - vistas e apresentadas como algo de extraordinário e invulgar - revelavam primamente um outro mundo que, aliás, existia paralelamente aos fun-damentos correntes, ideia que irá permanecer durante mais de um século. Ao longo do século XVI assistimos a uma exaustiva publicação da Geografia de Ptolomeu: vinte e duas edições viriam a lume entre 1507 e 1548. Em 1522, por exemplo, o médico e homem de letras Laurentius Frisius11 reeditava a edição de Martin Waldseemüller. Em 1525, o huma-nista Willibald Pirckheimer12 deita mãos a uma nova tradução do texto

8. Segundo Lucien Gallois, Les Géographes Allemands de la Renaissance, Paris, 1890, p. 50, Martin Waldseemüller nem sempre segue as informações dos navegadores no que respeita ao traçado da costa ocidental africana na zona do Equador. 9. Gaultier Lud informa no seu Speculi Orbi (Saint Dié, 1507) que estaria a preparar juntamente com Waldseemüller mapas das regiões descobertas pelos portugueses, cuja feitura se ficaria a dever a cartas que recebera de Portugal. De facto, Waldseemüller utilizaria o planisfério de Cantino (1502), e nos trabalhos datados de 1513 e de 1516 também o de Caverio, a carta de Juan de la Cosa (1500), tal como a de Martellus. Sobre este tema, veja-se Armando Cortesão, op. cit., pp. 133-34. 10. As viagens de Diogo Cão e Bartolomeu Dias viriam a ter as suas ressonâncias nos mapas-mundi de Martellus (1489) e de Juan de la Cosa (1500). Mas poder-se-iam ainda referenciar os mapas de Cantino (1502), de Caverio (1502) e a chamada carta de Hamy (1502), onde é declaradamente visível a influência das viagens portuguesas. Veja-se A. Teixeira da Mota, In-fluence de la Cartographie Portugaise sur la Cartographie Européenne a l'Époque des Découvertes, in: Michel Mollat, Paul Adam (Ed.), Les Aspects Internationaux de la Décou-verte Océanique aux XVe et XVIe siècles, Paris, 1966, pp. 223-248. 11. A edição de 1520 publicada em Estrasburgo é uma reedição da de 1513. A de 1522 da autoria de Laurentius Frisius viria também a lume na cidade de Estrasburgo. Veja-se Rodney W. Shirley, The Mapping of the World, Early Printed World Maps 1472-1700, Londres, 1984. 12. Willibald Pirckheimer, Geographia, Estrasburgo, 1525. Pirckheimer ocupa-se ainda com as viagens dos descobrimentos na sua obra Germaniae ex variis scriptoribus perbrevis explicatio, Augsburgo, 1503; embora aluda às descobertas das navegações, procura com base em autores clássicos demonstrar que, por exemplo, as ilhas agora descobertas já seriam conhecidas dos europeus. Também Konrad Peutinger nos Sermones convivales... s. l., 1506,

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original, utilizando as cartas que Laurentius Frisius efectuara três anos antes. Dois anos mais tarde, em 1541, Michael Severt publicá-la-ia, na cidade de Lion; nesta edição o texto da autoria de Ptolomeu viria a público, como até aqui, na íntegra, mas o autor sentir-se-ia mais à vontade para elaborar comentários que edita à margem do original; numa coluna exterior, o autor inscreve notas, faz esclarecimentos, especifica e assinala a fonte utilizada e chega mesmo a rectificar conceitos utilizados por Ptolomeu. Aqui urge indagar quais os escritos a que o autor recorre para formular as suas interpretações e mesmo interpelações? Na verdade, deparamos com múltiplas referências a Plínio, Homero, Tácito, Estrabão, Diodoro Sículo e Solino; mas, para além destes, descobrimos igualmente alusões a autores como Luís de Cadamosto, Américo Vespúcio, Petrus Martyr ou Ludovico Vartema, isto é, a relatos de viagens há pouco divulgados e directamente relacionados com a empresa marítima. Por vezes mencionam-se ainda localidades ou designações descritas nas viagens de reconhecimento, sem indicar qualquer tipo de fonte. Como verdadeiro humanista que se preza ser, o autor recorre no seu comentário tanto às fontes escritas por renomeados autores da Antiguidade Clássica, como a fontes coevas e específicas das viagens dos Descobrimentos, facto este que nem sempre se têm tido em conta na recepção da Antiguidade Clássica. Se o estudo nasce primamente de um interesse pelos textos clássicos originais, o ensejo de conhecimento impele os homens de letras à erudição de escritos coetâneos. E daí que muitos autores germânicos não fiquem presos às concepções ajustadas, mas pelo contrário, olhem, sem fronteiras epistemológicas, em seu redor em nome de uma suma compiladora de saber. Quando no texto de Ptolomeu se fala de Hesperides, à margem encontramos anotado: "Caputi Viride, Cabo Verde, Aethiopibus Bisecher, accolis Mandanga dicitur referente Alberico Vesputio: post quod est Regnum Gambrae Cadamusto".13 Que o horizonte conhecido aumentara comprovam-no os textos de Vespúcio e Cadamosto que o autor logo se prontifica a anotar. Convém salientar a importância que seria atribuída ao texto de Cadamosto, uma fonte inestimável na divulgação das viagens dos portugueses ao longo da linha costeira africana. Repondo dados ao saber

Folha b iij, refere com entusiasmo as navegações dos Lusitanos no Oceano Índico, para logo a seguir mencionar que as viagens dos portugueses estariam na tradição das de Plínio, Hanão e Pompónio Mela. 13. Idem, p. 77.

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ptolomaico, o autor não deixa der ser fiel ao lema máximo de um homem de letras humanista. Assim, à seguinte descrição da Líbia de Ptolomeu "Adhuc antem versus ortun , iuxta totam libia, Regio multa Aethiopum est, in qua Elephantes candidi omnes giginuntur, & Rhinocerotes, & Tigrides. Juxta antem tenram incognitam regio Aethiopum, quae latissime extenditur, nocaturqz Agisymba", Münster acrescenta "Regnum Melli v Nebeorum v terra papagay".14 Mais uma vez a anotação deverá alertar para uma rectificação dos domínios da terra incógnita, Etiópia. Numa outra passagem do texto menciona-se "Malacha nunc dicitur mirae magnitudinis, à Portugalensibus ni capta: quod testatur epistola Emanuelis regis ad Leonem decimum".15 Estes, e muitos outros exemplos, revelam a necessidade de completar as designações dadas por Ptolomeu, o que significava também um esforço heurístico de interpretação e análise dos textos recentemente divulgados sobre as navegações dos portugueses até à Índia, mesmo que, por vezes, apenas se ficasse pela mera referência a fontes escritas coevas. Poder-se-ia então julgar que a rectificação se verificaria só em relação às informações coevas mas, como podemos teste-munhar, existem igualmente alguns exemplos da utilização de fontes da Antiguidade Clássica em correcção das afirmações e apontamentos atribuídos a Ptolomeu. Assim, como num verdadeiro estudo crítico e interpretativo, quer se trate de autores da Antiguidade Clássica, quer de contemporâneos importa, tendo em atenção um conhecimento global do mundo, reactualizar e complementarizar o horizonte do saber. Esta a premissa da Geografia de Sebastian Münster, publicada em 1540, na cidade de Basileia. Também aqui se acompanha a obra do geógrafo alexandrino anotando-o com esclarecimentos em letra cursiva, de modo a se distinguirem do texto original - esta a forma escolhida pelo humanista de editar a fonte orginal com o seu comentário, devidamente enunciado, e em perfeita harmonia documental, como se conhece numa edição clássica. Como estudo linguístico e de interpretação, esta edição de Sebastian Münster representa o apogeu na recepção da cartografia ptolomaica. A partir desta obra, que funciona como protótipo para as edições seguintes,

14. Idem, p. 81. 15. Idem, p. 121. A Epistola Potentissimi ac inuictissimi Emanuelis Regis Portugaliae & Algarbiorum/ &c. De Victoriis habitis in India / & Malacha... Leonem X já se tinha publicado em Roma e em Colónia no ano de 1513. Existem traduções alemãs publicadas no mesmo ano em Augsburgo e possivelmente em Nuremberga Abtruck ains lateinischen sandtbrieves an babstliche heiligkeit/ von Künigklicher wurden zü Portegall dis iars ausgangen von der eroberen stat Malacha: anderen künigrychen vnd herschafften in India... do mesmo ano.

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verifica-se uma estabilização editorial; aqui formula-se o modelo da metodologia humanista. Mas os geógrafos alemães não se ocupam dos novos conhecimentos vindos de além-mar apenas nas reedições de Ptolomeu. Os reflexos das viagens dos Descobrimentos são também perceptíveis noutros escritos e trabalhos de natureza geográfica. É o caso, por exemplo, dos da autoria de um representante da escola de Nuremberga, Johan Schöner. Quer nos globos feitos em 1515 e 1523 - onde regista com designações portuguesas os novos locais africanos -, quer na obra Luculentissima quedã terrae totius descriptio,16 Johan Schöner revela-se atento às principais noções descritivas da terra, uma das razões que o levam a publicar este opúsculo. Na Luculentissima, também compreendida como texto comentário e explicativo dos globos, Schöner segue primeiramente o esquema tradicional no esquisso do continente africano, para, quase no final da obra, inaugurar um capítulo denominado "extra has partes. Aethiopia".17 Neste capítulo esclarece que as navegações portuguesas realizadas até Calecute teriam descoberto uma "Nova terra ad aust.", isto é, uma terra completamente desconhecida de Ptolomeu. Num registo destas "Novae navigationes: et terrae ad austrun inuente", Schöner destaca os novos locais das costas africanas com as respectivas latitudes; e, como ele próprio refere, baseia-se em observações feitas entre os anos 1508 e 1513. A razão porque esta interessante listagem dos valores da latitude oferece estas datas, tem a ver com as obras que Johan Schöner usou como fonte para a realização deste capítulo. Com efeito, 1508 é a data da publicação em Nuremberga da tradução da obra Paesi novamente retrovati18 e 1513 corresponde ao ano em que viera a lume a Geographia de Martin Waldseemüller. Estas seriam, por conseguinte, as fontes primárias para a sua lista, bem como para a redacção do seu capítulo. Mais uma vez é o texto de Cadamosto que servirá de divulgador de dados geográficos e gerais na descrição da costa africana ocidental. Se por um lado são notórios os progressos na representação cartográfica dos contornos referentes ao continente africano, por outro lado a apresentação do novo espaço terrestre permanece, nos primeiros textos ou compêndios, praticamente, sem qualquer alteração. As novidades divulgadas em relação ao continente africano teriam de aguardar alguns anos até serem integradas nas doutrinas científicas. Por enquanto, estes

16. Johan Schöner, Luculentissima quedã terrae totius descriptio..., Nuremberga, 1515. 17. Idem, p. Hiiii. 18. Veja-se o cap. 1.2.

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dados informativos constituiam apenas um suplemento, um apêndice, cujo lugar adequado ainda não fora definido. As referências à passagem do Cabo da Boa Esperança seriam, de início, inseridas num pequeno apêndice ao texto original. E caso os autores intentassem mencionar pouco a pouco os dados recentemente adquiridos, não o fariam sem estabelecer um paralelismo com a realidade conhecida. Tomando como exemplo o Cabo da Boa Esperança, podemos constatar que a ponta extrema do continente africano corresponderia sem qualquer interpelação ao Promontório Prassum, designação do cabo mais ao sul da Geografia de Ptolomeu. Vejamos o que Johan Schöner escreve no seu Opusculum geographicvm:19 "Extremum Ptolomeo cognitum Prassum promontorium, verum nostra aetate tota haec portio à Portugalensibus inventa est".20 O dado recentemente divulgado é inserido no mapa-múndi, mas sem que se ponha em causa a nomenclatura ptolomaica: o Cabo da Boa Esperança seria naturalmente o Cabo Prassum. No gesto de adicionar a nova informação à tábua de Ptolomeu, não só se menospreza o conteúdo informativo real, como ainda a informação recentemente divulgada deverá comprovar o dado tradicional. O autor não deixa, todavia, de mencionar algumas regiões há pouco descritas e situadas na costa ocidental africana. É o caso da "Gambia", "Ginora" e do "Melli regnum". No vigésimo capítulo, significativamente intitulado "De Regionibus extra Ptolomaeum", Johan Schöner alude às viagens de Cristovão Colombo, de Fernão de Magalhães e de Marco Polo, dando ainda algumas informações sobre as Molucas, a Hispaniola e o Brasil.21 Também na Geographia liber vnvs,22 Henricus Glareanus, após explanar os princípios geográficos determinantes da visão do mundo, traça uma descrição do continente africano, em que salienta a passagem do "extremum Ptolomaeo cognitum Prassum" pelos nautas portugueses. E num capítulo, cujo título se vai tornando usual, "De regionibus extra Ptolameum", refere as viagens marítimas portuguesas até Calecute, bem como as empreendidas para Ocidente por Cristovão Colombo e Américo Vespúcio.

19. Johan Schöner, Opusculum geographicvm, Nuremberga, 1533. 20. Idem, p. E. 21. Em 1514 viera a lume em Nuremberga uma publicação sobre o Brasil intitulada Copia der Newen Zeytung auß Presillg Landt, que Johann Schöner utiliza como obra de consulta. 22. Henricus Glareanus, Geographia liber vnvs, Basileia, 1527.

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Na segunda década do século XVI, o letrado Laurentius Frisius publica uma Uslegung der mercarthen oder Cartha marina,23 a pedido do editor Johannes Grüningen. Laurentius Frisius, que, em 1522, tinha publicado uma Geografia de Ptolomeu, pretende, em 1525, reeditar a Carta marina de Martin Waldseemüler (1516) com um comentário explicativo. Com efeito, este seu escrito trata-se de um índice, por ordem alfabética, dos diferentes continentes, países e cidades do mundo. Ricamente ilustrado, este texto revela-se como um importante e inestimável documento sobre as viagens marítimas. Laurentius Frisius, na esteira de Martin Waldseemüller, reconhece a necessidade de corrigir a tradicional descrição do mundo. Assim, a sua obra "corrigiu, aperfeiçou e explicou"24 o sistema prevalecente, e isto diz respeito principalmente à geografia legada por Ptolomeu. Tal como afirma no seu prólogo, e de acordo com o espírito educativo humanista, Frisius recolheu as suas informações nas obras de autores clássicos, mas também em textos recentemente publicados, pois trata-se de "uma carta marítima de todo o mundo descoberto pelas navegações dos portugueses em geral da terra e mar, forma, natureza aspectos, regiões recentemente corrigidos e anotados diferentemente pelos antigos".25 Depois de tecer algumas considerações sobre os princípios elementares da geografia, Laurentius Frisius enumera diferentes países, cidades e continentes do mundo e, entre estes, aparecem nomes de localidades há pouco descobertas. Assim, nomeia no que respeita ao continente africano o "Cabo de bona speranza"; o "Cabo Verde", uma ilha muito bonita onde habitam os negros do Senegal; "Melli", um reino situado na Terra dos Negros, onde faz muito calor; a "Nubia", o "Priester Johannes" e o "Senegal". A novidade deste texto está, contudo, no facto de, pela primeira vez, se realizar uma integração de zonas até agora desconhecidas, não num apêndice como até aqui, mas sim a par com as informações já existentes. Ao introduzir esta estruturação, Laurentius Frisius introduz uma correcção, ou melhor, uma complementarização dos núcleos informativos

23. Laurentius Frisius, Uslegung der mercarthen oder Cartha marina. Darin man sehen mag/ wo einer in der Welt sey, vnd wo ein yetlich Landt/ wasser vnd Stadt gelegen ist. Das alles in dem büchlin züfinden, Estrasburgo, 1525. 24. "[...] was gebessert /erstattet vnd erklert hab". Segundo a edição consultada de 1527, prólogo. 25. "Ein merkart der portugalischen vnd gantzen erkanten Welt schiffungen des erdreichs vnd mers/ gestalt/ natur gelegenheiten vnd gegnen/ nüwlichen widerumb gebessert/ vnd von dargebung der alten vnderschiden/ in gemein/ anzogend". Idem, prólogo.

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existentes. Sem fugir aos princípios geográficos de raiz erudita, Frisius traça uma nova visão planetária. Os dados das viagens dos Descobrimentos iriam naturalmente suscitar debates em relação aos fundamentos teóricos da composição geográfica da terra. Assim, ao testemunharem que a costa africana se prolonga para sul do Equador, os pilotos iriam reactualizar a discussão acerca da dimensão da terra e a sua relação com os mares. Aristóteles escrevera, que a terra era, na sua grande parte, coberta por água, os navegadores iriam, contudo, experenciar o contrário. O poder de observação dos mareantes, que, como seria de esperar, originaria grandes interrogações, faria ruir paula-tinamente o pensamento aristotélico. Um dos primeiros autores a formular uma lição científica com base nas informações dos navegadores foi Joachim Vadianus. Numa carta ao amigo e cientista Rudolf Agricola,26 Vadianus aborda a questão dos antípodas27 e afirma que, com base nas navegações de Portugal, bem como as de Américo Vespúcio, se poderia assegurar que a terra estaria rodeada por mares, pelo que conclui que esta seria redonda.28 Neste sentido iniciar-se-ia uma discussão sobre a configuração e a superfície do globo, discussão esta que se iria arrastar por todo o século XVI, e onde iriam participar, ao lado dos navegadores portugueses e espanhóis, eruditos de toda a Europa.29 Os mareantes revelaram também que a região a sul da linha equatorial, denominada zona tórrida segundo a teoria das zonas climáticas, seria habitada, o que iria contra todas as concepções preponderantes. Na

26. Carta publicada na edição de Pompónio Mela da autoria de Joachim Vadianus. Veja-se Joachim Vadianus, Pomponio Melae Hispani, Libri de situ Orbis três, Viena, 1518. Veja-se o cap. 1.1. 27. Joachim Vadianus depois de expor as teorias de Pompónio Mela, Santo Agostinho, Lactâncio e ainda Plínio refere a heróica circum-navegação de África alcançada por nautas portugueses que, como salienta, poderiam agora testemunhar a existência de seres humanos até às costas da Índia. Veja-se Idem, p. 128. Esta é igualmente a forma como Vadianus apresenta o seu Epitome trivm terrae partium, Asiae, Africae et Europae..., Tiguri, 1534; ainda em 1584 sem qualquer alteração. É, pois significativo o facto de só abordar três continentes, baseando-se essencialmente em autores clássicos. E embora não deixe de se mos-trar fascinado pelas viagens dos Lusitanos até à Índia (pp. 112-13), o certo é que esta empresa marítima não influencia de forma alguma a sua apresentação do continente africano ou asiático. 28. Idem, p. 124. Importa salientar que estas afirmações se inserem na sua edição de Pompónio Mela, ou seja, mais uma vez um exemplo de uma publicação de um texto como comentário. 29. Sobre esta discussão, veja-se W.G.L. Randles, De la Terre plate au globe terrestre. Une mutation épistémologique rapide 1480-1520. Paris, 1980, pp. 41-68.

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verdade, as viagens de Descobrimento testemunharam a existência de vida humana na terra austral, pondo assim em causa os depoimentos vigorantes. Tornava-se, pois, urgente uma revisão crítica dos textos da Antiguidade Clássica. O navegador Diogo Gomes, o humanista Jerónimo Münzer, o capitão de S. Jorge da Mina, mareante e autor do Esmeraldo Situ Orbis Duarte Pacheco Pereira pertencem aos que expressam a sua admiração em face da contradição existente entre a experiência dos navegadores e a doutrina climática. Mas se esta descoberta seria dentro em breve considerada um dado adquirido pelos pilotos e eruditos portugueses, homens que tinham tido a possibilidade de observar estes fenómenos in loco, os autores germânicos, como se pode apreciar nas publicações de obras geográficas alemãs, teriam grandes dificuldades em aceitar, sem qualquer relutância, a validade dos novos conhecimentos e tomariam assim uma atitude mais reservada. Embora mencionem de certa maneira rapidamente a existência de vida humana em regiões consideradas anteriormente inabitadas,30 isso não significa de modo algum uma adesão à uma nova cienticidade ou uma crítica e desactualização das antigas teorias climáticas. Johannes Glogoviensis refere no seu comentário ao Tratado da Esfera, que Sacrobosto anotara a zona tórrida como inabitável, dado o enorme calor que aí se fazia sentir, mas Ptolomeu, pelo contrário, teria afirmado ser possível encontrar vida humana a sul da linha equa-torial. E isto o tinham comprovado recentemente as viagens de 1501 e 1504 ao serviço do rei de Portugal, em que os seus navegadores teriam descoberto um mundo novo a sul do Equador totalmente desconhecido. De uma forma conciliadora, este escritor mantem o seu profundo respeito pelas afirmações de Ptolomeu, e vê as navegações da Península Ibérica única e exclusivamente como comprovação do geógrafo alexandrino, de cuja autoridade ele não duvida.31 Durante vários anos não se verifica qualquer alteração no esquema das zonas climáticas. Muitas cosmografias continuaram a apresentar a zona tórrida como zona inabitável. No seu compêndio geográfico, Peter Apian declara que a zona meridional da linha equatorial era habitada, mas logo

30. Johann Schöner, Luculentissima, 1515, refere já nas introduções gerais que a "terra ad austru" seria habitada, informação recolhida pelas últimas navegações. Ainda J. Vadianus (op. cit., p. 7) insere este dado na sua edição de Pompónio Mela, afirmando que, em consequência das navegações do rei de Portugal a Calecute e as viagens de Américo Vespúcio, se poderia afirmar que a zona tórrida era habitada. 31. Veja-se W.G.L. Randles, op. cit, p. 37.

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de imediato acrescenta "male aut egre habitabilis".32 Os geógrafos e eruditos germânicos sabem, contudo, que não podem descurar os dados das viagens dos Descobrimentos e transmitem-nos nas suas obras. É visível o reconhecido e atento olhar que lançam às viagens ultramarinas, conferindo assaz importância a esta fenomenal empresa marítima; estes homens de letras continuam a movimentar-se nos meandros culturais legados pela Antiguidade e daí que não teçam louvores explícitos aos "mundos mudados" como podemos testemunhar entre os autores coevos portugueses. O legado cultural será primamente perservado e as novidades entendidas como pequenos enigmas que só a pouco e pouco se irão esclarecendo. Assim, menciona-se que a região tórrida seria habitada, mas esboçam-se, de imediato, grandes dúvidas quanto à fertilidade da terra. A par e passo surgem, no entanto, algumas excepções. É o caso de Johannes Stoeffler, mais um representante da escola geográfica de Nuremberga que, fundamentando-se nas viagens de Américo Vespúcio e nas navegações dos portugueses, refuta categoricamente a tese das zonas climáticas.33 Os autores do século XVI ver-se-iam, na verdade, confrontados com um problema de difícil resolução: como enquadrar os dados dos Descobrimentos no seu contexto histórico. O visível aumento do espaço geográfico, afinal habitado, impunha a procura das razões explicativas para a origem deste fenómeno. Enquanto alguns autores tecem louvores à revolução geográfica, celebrando os navegadores invencíveis,34 outros procuram conciliar as novas informações com a perspectiva histórica cristã. Tommaso Bozio afirma ainda, em 1593, que muitas das zonas recém-descobertas não eram habitadas quando Cristo pregara a palavra do Evangelho na terra, procurando, deste modo, salvaguardar a cultura clássica e a autoridade da Sagrada Escritura.35

32. Peter Apian, Cosmographicus liber ..., Antuérpia, 1533, Fol. VI. Primeira edição Antuérpia, 1524. 33. Ptolomeu teria afirmado que a zona habitada terminaria no círculo equinocial ao grau 16. 1/3 1/12, mas as viagens de Colombo e as do rei de Portugal feitas em zonas de África desconhecidas de Ptolomeu revelariam outras informações. Veja-se Johannes Stoeffler In Procli Diadochi Sphaeram, Tübingen, 1534, p. 24. 34. Simon Grynaeus, Die New Welt, Estrasburgo, 1534, prólogo. 35. Tommaso Bozio, De Signis Ecclesiae Dei, Colónia, 1593, p. 746. O autor assinala que a Europa, a África e a Ásia, já teriam sido missionadas aquando do nascimento de Cristo. Hoje conhecer-se-iam outras regiões como o Cabo Verde, o Cabo da Boa Esperança, o Oriente e a América. Os Apóstolos teriam, no entanto, missionado por toda a terra conhecida. Bozio aborda ainda a questão da região de Ofir, onde o rei Salomão teria ido buscar ouro, e identifica-a com o Peru.

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Com efeito, as observações e as experiências dos navegadores não conseguem, inicialmente, inserir-se no sistema geográfico prevalecente; ou apenas pontualmente, pois as palavras e as teorias de Ptolomeu, Plínio, Pompónio Mela continuariam a reger a ordem do saber. Os autores da Antiguidade Clássica, fundamento do saber, quer no que respeita à constituição do mundo, quer no conhecimento particular de cada uma das regiões, formam, o que poderíamos denominar, um primeiro degrau do conhecimento. Só assim se pode explicar que as terras recentemente descobertas pelos mareantes portugueses e espanhóis sejam consideradas como um mundo Extra-Ptolomeu, tal como o definem as cosmografias alemãs das primeiras décadas do século XVI.36 A descoberta de regiões até então desconhecidas significa para estes autores mais do que a experiência de aflorar novas regiões, a certeza fatal de que seriam desconhecidas no mapa-mundi ptolomaico; daí o aparecimento e a conceptualização de um conceito: novo mundo. Em 1534, Sebastian Franck publicava o Weltbuch, Spiegel vnd bildniß des gantzen Erdbodens,37 obra que, como o próprio título indica, tinha como propósito apresentar o mundo na sua totalidade. Os quatro capítulos, em que se divide esta obra, correspondem a uma descrição dos quatro continentes numa tentativa de elaborar um compêndio dos conhecimentos contemporâneos. No que tange ao capítulo dedicado à África temos de constatar que se trata, sobretudo, de uma reprodução dos dados de geografia de raiz erudita sem qualquer referência às novas informações. A caracterização deste continente baseia-se essencialmente nos testemunhos de Ptolomeu, Plínio, Pompónio Mela e Estrabão. Desde a designação, passando pela divisão geográfica até à apresentação das várias regiões, Sebastian Franck apoia-se maioritariamente nas declarações das autoridades; com a nomenclatura de Plínio e Pompónio Mela, as distâncias de Ptolomeu, as descrições das gentes feitas por Diodoro Sículo e Isidoro constroe a imagem do Egipto, da Numídia, da Mauritânia e da Líbia. Entre as perto de setenta referências

36. Citemos apenas o exemplo da cosmografia de Peter Apian que, vinda a lume pela primeira vez em 1524, ainda em 1584 publica as novas informações das viagens de Descobrimentos num apêndice. Esta obra seria editada até 1609, a partir de 1544, sob a orientação de Gemma Frisius. 37. Sebastian Franck, Weltbuch, Spiegel vnd bildniß des gantzen Erdbodens..., Tübingen, 1534. Sobre Franck, veja-se R. Gosche, Sebastian Franck als Geograph, in: Zeitschrift für allgemeine Erdkunde, 1 vol., Berlim, 1853, pp. 255-278.

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a fontes, apenas seis são autores coevos, nomeadamente Laurentius Frisius,38 Bernard Breydenbach39 e Ludovico di Vartema.40 Mas se, neste capítulo, a ressonância aos recentes relatos de viagens é insignificante, no capítulo dedicado ao continente asiático, Sebastian Franck revela ter mais informações sobre a costa oriental africana, bem como sobre a presença portuguesa em Calecute. De acordo com os limites geográficos correntes entre a Ásia e a África - onde se reconhece a concepção das "três Índias" -, Franck insere o reino da Etiópia tanto no continente africano como no asiático. E como não é fácil esboçar os contornos da costa oriental africana, Franck apoia-se no relato do italiano Ludovico di Vartema, que regressa de Calecute num navio português. Franck relata assim que os viajantes teriam navegado até à ilha de Moçambique, depois teriam passado pela ilha de Melinde até a "insel de Capo de bona Speranda" e daqui seguiriam até Lisboa. Este texto reveste-se de características verdadeiramente interessantes, pois pela descrição dada, surge a ideia de que não há ainda uma noção da costa oriental africana; refere nomes de localidades que subentende de relevante importância, mas cuja localização ainda não é clara; os pilotos navegariam assim de ilha para ilha.41 O continente africano permanece, portanto, na sua antiga configuração, predominantemente a faixa norte, enquanto, na zona do hemisfério sul, só se mencionam povoações de reconhecida importância na rota Lisboa-Calecute, mas cuja localização é ainda enigmática. Moçambique e Melinde representam desde já vitais áreas comerciais, mas a sua situação e os arredores seriam ainda pouco conhe-cidos. Curiosamente, será no capítulo dedicado à América, que iremos encontrar vários textos relativos às viagens de Descobrimento, entre eles, o relato de Luís de Cadamosto, os escritos sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral, a carta de D. Manuel, os textos de Américo Vespúcio e Cristovão Colombo. A publicação destes escritos não nos suscita admiração, dado que já tinham sido editados;42 singular é, todavia, a sua introdução num capítulo

38. Laurentius Frisius, op. cit. 39. Bernard Breydenbach, Peregrinatio in terram sanctam, Die Reise ins Heilige Land, Mainz, 1486. Veja-se o cap. 2.1. 40. Ludovico di Varthema, Die ritterliche vnd lobwirdig rayss des gestrengen vnd über allan der weyt erfarnen Ritters vnd landtfarers herren Ludovico Vartomans von Bolonia..., Augsburgo, 1515. Veja-se o cap. 2.1. 41. Sebastian Franck, op. cit., p. CCX. 42. Jobst Ruchamer, Newe unbekanthe Landte und ein newe weldte in kurz verganger zeythe erfunden, Nuremberga, 1508.

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reservado ao continente americano. Embora no texto sobre África não se tenha feito qualquer menção a Luís de Cadamosto, é aqui que se vai acompanhar o seu relato ao longo da costa africana, bem como outros textos referentes ao Oriente. Este facto leva-nos a levantar a hipótese explicativa de que as novas informações sobre as viagens marítimas compõem como que um bloco uno, que ainda não se integrou com a realidade conhecida. Trata-se assim para os coetâneos de um outro, novo mundo, como podemos testemunhar no título dado por Sebastian Franck ao capítulo sobre América. Vejamos. "América o quarto livro desta geografia sobre novos mundos, ilhas e regiões recentemente descobertas por Alvise, Pedro Álvares, o senhor Pedro de Syncia, Cristovão Colombo, Americo Vespúcio, Fernando Cortês, Jambolo e Ludovico di Varthema; em nome de sua Majestade Carlos V e o rei de Portugal descobriram novas terras, mundo e ilhas situadas em parte no Ocidente, outra parte no norte e a maior parte no meio-dia"43 e continua "até aqui desconhecidas e não mencionadas por Ptolomeu, Estrabão, Eudovo, Erastone e também Macróbio e agora numa história maravilhosa, divertida e útil de ler dedicada em parte a sua majestade imperial, e em parte a sua majestade real em Portugal e a outros príncipes..."44 Franck fala de mundos novos, ilhas e paisagens nunca vistos e completamente desconhecidos; e mais uma vez a comprovação de que se os autores clássicos tinham lançado os fundamentos do espaço, estas terras eram-lhes, no entanto, desconhecidas. A revelação estonteante de um outro mundo e de uma realidade para além do horizonte conhecido iria consequentemente originar grandes especulações e surpresas. Relembremos a expressão Extra-Ptolomeu, onde se reflecte a admiração e a inquietação de um mundo extra. Mas, ainda mais drástica, é a expressão usada por Sebastian Franck: um mundo "fora do mundo" ["ausser der Welt"]. Deixando que os relatos do mareante Luís de Cadamosto marquem o início desse mundo "fora do mundo", Sebastian Franck mostra claramente que seria, a partir das viagens ao longo do Atlântico, que se ultrapassariam

43. "America das vierdt buch dieser Geographey/ von neuwen unbekannten Welten/ Inseln und Erdtrichen/ so neewlich erfunden seind/ von Aloysio/ Petro Alvaris/ herr Peters von Syncia/ Christoffero Columbo/ Alonso Americo Vespucio/Ferndinando Cortesio/ Jambolo und Ludovico Vartomanno/ de gestrengen keyseöichen Maiest. Caroli V und des königs von Portugal/ welche gefundenen Länder/ Welt und Inseln/ zum theil in occident/ einst in theils in Septentrione/ am meisten gegen Mittag gelegen". 44. "[...] das bis hier ehe von Ptolomeo/ Strabone/ Eudovo/ Erastone auch von Macrobio weder erkannt noch genennt und angezeigt worden seind gelegen erfunden/ wunderbarliche/ jedoch warhafftige/ Histori kurweilig und nützlich zulesen/ zum theil keyselicher Maiestat zum thel königlicher Maiestat in Portugal und anderen Fürsten zugeschriben..."

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os domínios então correntes; e aí começaria um mundo novo, do qual a Africa meridional faria categoricamente parte.

3.1.2 "Nova África" Ao plasmarem uma fundamentação válida do horizonte do saber, as teorias dos autores clássicos asseguravam uma constante e irrefutável fonte documental. A descrição do interior de África, a representação dos seus rios, montanhas, ou qualquer outro fenoméno natural correspondia, nas cosmografias alemãs, às disposições de Ptolomeu. Ao fixar, por exemplo, as fontes do rio Nilo, entre os denominados Montes Lunas, o geógrafo alexandrino iria determinar a sua representação. Assim, a introdução de novas informações na geografia de África, por exemplo, o traçado das fontes do rio Nilo, estariam incondicionalmente de acordo com os princípios ptolomaicos. Os novos dados seriam, pois, em primeira linha submetidos aos seus depoimentos. Só a par e passo se iria alterando a geografia natural africana; quanto mais precisas eram as descrições coevas mais pequena seria a região reservada para a representação das fontes do Nilo.45 Em 1564 o italiano Gastaldi formulava um valioso contributo para a concepção do espaço africano. Seguindo as informações das viagens portuguesas, em especial, o historiador e cronista João de Barros, cuja obra se tornaria a sua fonte por excelência, o geógrafo italiano traça uma carta precisa dos percursos fluviais africanos. Com a feitura desta carta, Gastaldi completa os fundamentos da representação geográfica do centro e sul de África, no século XVI e XVII46 inicialmente registados por Martin Waldseemüller. O passo seguinte na correcção do espaço geográfico africano seria dado por Gerhard Mercator. O geógrafo e cartógrafo ao conciliar os conhecimentos de Gastaldi e Waldseemüller na elaboração das suas cartas, revelar-se-ia um dos seus mais directos seguidores. Vejamos. No ano de 1569 Mercator retoma as informações de Martin Waldseemüller referentes às fontes do Nilo e à Abissínia e, utili-zando os conhecimentos do italiano Gastaldi relativamente ao reino do

45. O segredo à volta das fontes do rio Nilo esclarecer-se-ia somente no século XIX; a partir do século XVII existem já, contudo, valiosos depoimentos, como, por exemplo, o do padre jesuíta Jerónimo Lobo no seu Itinerário, ed., Lisboa, 1971 (manuscrito de 1640). 46. Veja-se, A. Teixeira da Mota, A Cartografia Antiga da Africa Central e a Travessia entre Angola e Moçambique (1500-1860), Lourenço Marques, 1964.

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Monomotapa, constrói um dos trabalhos cartográficos mais importantes sobre o interior do continente africano até ao século XVIII.47 Para além destes experimentados cartógrafos, convém ainda salientar o contributo do holandês Abraham Ortelius48 que, no seu Theatrum Orbis Terrarum, datado de 1570,49 expõe uma imagem mais detalhada da forma e composições do continente africano.50 Ortelius, no texto adjunto às cartas, assinala a utilização de algumas fontes documentais na representação dos elementos cartográficos, entre estas, contam-se as obras de João de Barros, Luís de Cadamosto, Francisco Álvares e Damião de Góis. O traçado dos contornos costeiros do continente africano seria, neste sentido, cada vez mais fiel à realidade natural africana, mas o que passa em relação às informações para cada uma das regiões deste continente, ou quais as fontes utilizadas para a descrição do seu interior? A terceira parte do mundo seria inicialmente dividida em quatro áreas principais, a Barbaria, a Numídia, a Líbia e a Etiópia. Perante o aumento de informações, esta classificação de raiz erudita revelar-se-ia insuficiente. Se algumas regiões permaneciam nos limites conhecidos, como o norte África, no hemisfério sul surgiam outras fronteiras. Este é o caso, por exemplo, da Etiópia, cujos precisos limites geográficos se desconheciam ou a denominada "Terra dos Mouros", uma região que, com o aumento progressivo de informações, se iria dividir em várias unidades regionais como o Congo, o Monomotapa ou a região em torno do Cabo da Boa Esperança. Se no dealbar do século XVI já se encontram representações condignas do formato de África, no que respeita a este seu novo espaço terrestre será preciso esperar até 1545. Na verdade, as primeiras cosmografias alemãs do século XVI já tinham feito referências às viagens ao longo do Oceano Atlântico, bem como à passagem do Cabo da Boa Esperança, mas estas indicações constituíam pura e simplesmente um dado informativo referencial. Nas primeiras décadas dos século XVI, a descrição do conti-nente africano não fornecia, por enquanto, qualquer alteração notória em

47. Sobre este tema, veja-se W.G.L Randles, South East Africa and the Empire of Monomotapa as shown on selected printed maps of the 16th century. In: Studia 1958, Nr. 2, pp. 103-163. 48. Veja-se Gerhart Egger (Ed.), Theatrum orbis terrarum, Die Erfassung des Weltbildes zur Zeit der Renaissance und des Barocks, Viena, 1970. 49. Abrahamus Ortelius, Theatrum Orbis Terrarum, Antuérpia, 1570. 50. Embora a carta que traça de África apresente uma imagem mais detalhada, Ortelius continua a dividir o continente africano em apenas quatro regiões.

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relação aos escritos anteriormente impressos. Apenas, na cosmografia do renomeado geógrafo e teólogo Sebastian Münster, e mais propriamente na segunda edição, em 1545, aparece pela primeira vez um capítulo denominado "Nova África".51 Neste capítulo, Sebastian Münster reune informações, em particular, concernantes à costa ocidental africana. Pela primeira vez aparecem extensas e precisas descrições dos reinos do Senegal e Gâmbia. No entanto, também aqui é ainda inicial a suma apresentada sobre a zona equatorial. Com efeito, o Senegal surge como o último reino antes do Cabo da Boa Esperança, o que ilustra o precário conhecimento sobre esta região austral. O autor, Sebastian Münster consciente deste facto lamenta, no final, a insuficiente e parcelar profusão de informações sobre este continente. Como diz, embora África tenha sido descoberta, há bem pouco tempo, na sua verdadeira extensão, graças às viagens até Calecute, o certo é que pouco se poderia relatar sobre o interior da "Nova África": "Então tens em suma o conceito de toda a terra de África com os seus reinos, povos, animais, plantas, águas e outras coisas idênticas, tanto quanto foi possível saber nos nossos tempos através das navegações até Calecute na Índia. Eu desconfio que se soube muito mais coisas sobre esta terra através das assíduas navegações, mas não foram descritas todas as coisas ou então foram descritas, mas ainda não foram publicadas".52 Tal como refere este célebre erudito, a apresentação e a caracterização da multiplicidade regional está dependente do material à disposição dos geógrafos. Daí que a divulgação de obras, como as tão apreciadas relações de viagens, fosse da maior importância. Nos meados do século XVI ir-se-ia ao encontro desta sabida carência, vertendo, para as línguas mães, inúmeros textos. Para uma redefinição dos limites geográficos e humanos sentir-se-ia uma profunda necessidade de recolher obras mais específicas capazes de responder à sequiosa sede de saber. Entre os textos publicados, sobretudo, na Alemanha, encontram-se autores portugueses, que relatando sobre as diferentes regiões do continente africano, correspondem, com as suas informações detalhadas e precisas, ao vivo interesse de conhecer mais e melhor estes reinos longínquos e remotos. É o caso da Verdadeira

51. Sebastian Münster, Cosmographia, Basileia, 1545. Primeira edição, 1544. 52. "Also hastu in Suma den begriff des gantzen lands Africa mit seinen Königreichen/ Völckern/ Thieren/ gewechsen/ Wässern unnd andere der gleichen dingen/ so vil man neben umbhan zu unsern Zeyten erfaren hat durch die schiffungen so vo Portugall ghen Callekut in Indiam gan. Mir ist angezweifelt/ man hab noch vil mere von disem land durch die emstige Schiffunge erfaren/ aber es seind nit alle ding beschribe/ oder seind Sie beschrieben/ sein sie nit an tag kommen" Idem, Folha dcccxvij.

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Informação das Terras do Preste João de Francisco Álvares editada pela primeira vez em língua alemã, em 1566.53 O livro do padre Álvares tornar-se-ia uma das mais importantes obras de consulta sobre este reino; importa também mencionar os textos de Damião de Góis, como o Fides, Religio, Moresque aethiopum,54 onde o amante das "coisas da humanidade" já lançara os primeiros dados informativos sobre este reino. Neste sentido, poder-se-á ainda referenciar o relato de Duarte Lopes e Filippo Pigafetta que, impresso nos finais do século XVI, constituiria uma obra de capital importância para o conhecimento do reino do Congo e seus arredores.55 A publicação destes escritos, nomeadamente a sua tradução, revestia-se de grande significado. O leitor alemão tinha, deste modo, à sua disposição, nos finais do século XVI, uma enorme quantidade de dados geográficos e culturais que tornavam mais clara a unidade continental, bem como as particularidades regionais do continente africano. Os textos portugueses tornavam-se uma fonte insubstituível e inestimável das obras geográficas alemãs. Em 1576 viria a lume, juntamente com a obra de Francisco Álvares uma Cosmografia, das ist wahrhaffte eigentliche und kurze Beschreibung deß gantzen Erdbodens.56 Sigmund Feyerabend o autor desta publicação tece, no prólogo, um caloroso e exaltado elogio às navegações dos povos ibéricos, formulando um verdadeiro hino panegírico às empresas marítimas. Sem dúvida, um evento de valor incalculável para o conhecimento do mundo. O orgulhoso testemunho alusivo ao prodigioso aumento da superfície terrestre reaviva-se quando sublinha, no capítulo reservado a África, que antigamente chegavam quatro regiões para classificar este continente, mas actualmente tornava-se imperioso falar de seis, se se queria abranger todo o espaço geográfico.57 África tornara-se

53. Francisco Álvares, Wahrhafftiger Bericht von den Landen/ auch geistlichen und weltlichen Regiment des mechtigen königs in Ethiopien..., Eißleben, 1566. Veja-se cap. 2.6. 54. Damião de Góis, Fides, Religio, Moresque aethiopum, Lovaina, 1540. Veja-se cap. 1.1. 55. Duarte Lopes/ Filippo Pigafetta, Warhaffte vnd Eigentliche Beschreibung dess Königreiches Congo in Africa...Frankfurt, 1597. Veja-se cap. 2.3. 56. Sigmund Feyerabend, Cosmografia, das ist wahrhaffte eigentliche und kurze Beschreibung deß gantzen Erdbodens.In: General Chroniken, Frankfurt, 1576. Esta publicação viria a lume sem qualquer alteração no ano de 1581. 57. "Barbarien, Egypten, Biledulgerid, Sarra, das Land der Schwarzen und Priester Johannis Land und dieses ist das jenige so vor Zeiten (wiewol under anderen Namen) von Africa erkannt gewesen ist/ dann gegen dem Meridiem oder Suden von der See/ da der Fluß Nilus seinen Ursprung auß hat/ ißt es den alten Schribenten unbekannt gewesest/ welches Theil jeßiger Zeit von den Arabischen und Persiern Zanzibar gennent wirt, darvon das eusserte haupt auff das Meridionalische, oder sudliche Meer - Cabo da Bona Sperancho, erstlich Anno

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surpreendemente um continente de gigantescas dimensões. Feyerabend expressa então o seu regozijo e confiança na conquista humana. Enraízado em fortes tendências humanistas, este autor exalta de júbilo quando apresenta a obra marítima dos povos ibéricos. A partida de navios para além de portos europeus não deixaria prever a existência de reinos, como o da Guiné, situado na região denominada Sara, o de Moçambique e Sofala, bem como algumas ilhas, por exemplo, a de Cabo Verde, ou a de S. Tomé, conhecida pelo seu açúcar. Além disso, através destas viagens ter-se-iam recebido notícias mais concretas e pormenorizadas sobre a terra do Preste João; um reino de enormes dimensões, poderoso e, sobretudo, povoado de cristãos. Seguindo os testemunhos de Francisco Álvares - como nos diz, no capítulo relativo ao reino de Etiópia: "queremos mostrar os seus costumes, vida e serviços religiosos, tal como o faz o livro de viagens de Francisco Álvares [...]"-,58 o autor relata sobre a vida dos etíopes, nomeadamente, alguns dos seus hábitos religiosos. Mas não é só quando pretende aflorar o aspecto religioso que o utiliza, igualmente na descrição do mundo vegetal e animal cita as experiências do padre português. A opinião de Francisco Álvares é tida incondicionalmente em maior consideração do que a dos autores clássicos, pois este permanecera in loco. Assim, quando intenta saber da existência de animais estranhos e bizarros, afirma que na relação de Álvares que andou seis anos por estas terras não se faz qualquer referência a estes animais.59 Álvares permanecera neste reino vários anos, pelo que as suas experiências seriam aceites com toda a seriedade. A sua obra, verdadeira e fidedigna, constituiria um trabalho de grande mérito. Daí que no final Feyerabend recomende a leitura deste texto, pois escrito com muito empenho e cuidado seria uma publicação de grande utilidade.60 Esta apreciação tão favorável à obra de Francisco Álvares não é um caso isolado. Na verdade, os autores alemães reconhecem calorosamente o esforço realizado pelos autores dos relatos de viagens e buscam ininter-ruptamente tirar partido dessa riqueza informativa. Os escritores alemães

1497 von den Portogalischen beschiffet worden ist. Dieses ganß Africca ist in die runde mit dem Meer [...] vmbriegt...". Idem, p. 5. 58. "Vom welcher Sitten/ Leben und Gottesdienst/ wöllen wie diß weniger auß Francisci Alvares Wegbuch [...] anzeigen". Idem, p. 44. 59. "[...] aber nach anzeigung dieses unseres Alvares/ weil er inn diesem Örten verharret/ hat er in Sechß Jaren kein Bären/ küniglein/ distelstinck oder Guckguck/ gesehen". Idem, p. 45. 60. "Es ist aber am nützlichsten, daß dieser ding liebhabender Leser den Franciscum Alvares erforsche / welche gar fleissig/ was er in diser seiner Legation auffgemerckt/ beschrieben hat...". Idem, p. 45.

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estão conscientes da importância destes escritos, pois, ao darem a conhecer outras gentes e culturas em valiosas e pitorescas descrições, os seus autores esquissavam um retrato fidedigno e único sobre as terras por onde andaram. Além disso, não se cansam de frisar que os andarilhos descreveram o que viram com os seus próprios olhos, o que a seu ver, abona indubitavelmente para a natureza de um documento verídico. As obras geográficas dos séculos XVI, fiéis aos objectivos de dar a conhecer a obra do Criador, apresentam o mundo desde as suas origens e é, segundo esta concepção teológica, que os homens de letras alemães partem à procura dos novos princípios que regem o orbe terráqueo; nesta sua busca dão cada vez mais valor à documentação adquirida através da experiência e é, muitas vezes, a análise descritiva e experimental que os conduz na sua caminhada de conhecimento. Johann Rauw edita a sua cosmografia, porque considera que a descrição do mundo "transmite grande luz à história".61 O estudo da cosmografia seria, antes de mais, o estudo da história e da cronologia, pelo que se deveria prestar aturada atenção ao locus e ao tempus. Estes compêndios de carácter utilitário constituíam irreparavelmente uma verdadeira ajuda, um guia indispensável no Teatro do mundo. Para realizar este enorme projecto de descrever o orbe, Johann Rauw recorre a muitas outras obras que compila resumidamente no seu texto. No quarto capítulo dedicado ao continente africano privilegia maioritariamente a zona do norte africano, onde destaca, com grande ênfase, o reino do Egipto. Nestas páginas, o leitor poderá conhecer detalhada e pormenorizadamente a história heróica egípcia.62 Além disso, poderá saber com pormenor sobre a expedição do Imperador Carlos V ao norte de África. Quando descreve a Terra dos Mouros, Rauw não transmite qualquer novidade de carácter geográfico, dando, pelo contrário grande destaque aos Trogloditas, povos mencionados pelos autores da Antiguidade Clássica ou na cosmografia de Sebastian Münster, que considera um dos principais escritos geográficos. Contudo, Rauw não deixa de reflectir, no seu texto, a leitura de autores portugueses. Assim, afirma-se que se o leitor pretender ter uma descrição mais pormenorizada e detalhada sobre o Preste João e o seu reino deverá ler o livro de Francisco Álvares que permaneceu vários anos nestas terras, onde viu o

61. "Ein groß Liecht in die Historien bringen". Johann Rauw, Cosmografia, das ist: Eine schöne, wichtige vnd volkomliche Beschreibung deß Göttlichen Geschöpffs..., Frankfurt, 1597, prólogo. 62. Sobre o conhecimento do Egipto no séculos XVI e XVII, veja-se cap. 2.1 .

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Barnagas, o Preste e os demais homens dirigentes deste reino; recomenda então que se leia esta obra, assim como ele o fez antes de escrever este seu capítulo, pois as suas informações seriam de grande credibilidade.63 Tal como Münster, também Rauw recorre ao presbítero português e, ao recomendar a sua leitura, sublinha quão credível é o seu testemunho sobre as Terras do Preste João. A Literatura Portuguesa de Viagens afigura-se, assim, como um inestimável e inaudito documento na reconstrução do espaço terrestre africano. Com as suas informações, os autores alemães estariam aptos a preencher espaços antes vazios. Neste processo de recolha e tratamento das informações dos Descobrimentos, a cosmografia de Sebastian Münster apresenta-se como uma das fontes mais interessantes e carismáticas. Esta obra vinda a lume pela primeira vez em 1544, atingiria o número exemplar de quarenta e seis edições64 até 1650; mas o que lhe incute capital importância, é o facto das reedições corresponderem a um permanente trabalho de actualização epistemológica. Este prestigioso esforço de complementarização está bem patente nos capítulos referentes ao continente africano. Já em 1544, Sebastian Münster expressara a vontade de descrever a África "com as suas terras, animais e coisas maravilhosas",65 mas que tal seria irrealizável, pois apenas dispunha de uma parca quantidade de informações. Embora Sebastian Münster invoque as viagens dos portugueses até Calecute, pouco mais adianta, sendo, na sua maioria, dados compilados em autores como Plínio, Pompónio Mela e Estrabão, que utiliza na construção e caracterização do perfil africano.

63. "Wiltu aber ja einen weitern und ausführlichen Bericht von allen diesen Sachen haben/ sonderlich was den Priester Johann unnd seine Lande anlangt/ so liß Francisci Alvarez Büchlein/ welcher Francisci selbst in diesen Landen etliche Jahr gewesen/ den Barnagesso/ Priester Johann und andere Herren selbsten gesehen/ unnd alles fein fleissig observiert hat/ unnd seinem Schreiben derhalben so viel desto besser glauben zu geben ist. Denn solte ich dir diese dinge hier alle außführlich unnd umbständiglich für die Augen stellen/ würde sich unser Gespräch viel zu viel in ein Weitläufigkeit erstreckte. Auch so habe ich mehrertheils alle diese dinge auß deß herrn Franciscis Büchlein genommen/ welcher du selbst/ da es dein Gelegenheit ist/ auffschlagen mögest". Idem, p. 1023. 64. Veja-se Karl Heinz Burmeister, Sebastian Münster - Eine Bibliographie, Wiesbaden, 1964. Burmeister referencia uma edição francesa em 1650. Veja-se ainda Victor Hantzsch, Sebastian Münster, Leben, Werk, Wissenschaftliche Bedeutung, Leipzig, 1898. 65. "[...] mit seinen besonderen Ländern/ thieren/ vnd wunderbarlichen Dingen". Sebastian Münster, Cosmographia, Basileia, 1544, Folha dccclxxiiij.

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Um ano mais tarde, em 1545, surge, contudo, a "New Africa". Embora ainda não conheça os verdadeiros limites geográficos e humanos do meio africano, Münster insere já notícias mais recentes, processo que se irá aferir nas cosmografias posteriores. Uma análise da Cosmographia indica-nos quais as informações adquiridas nos anos precedentes às últimas publicações, bem como seriam inseridas no texto original. Num caminhar pelas várias edições desta obra é possível atestar a gradual inserção de notícias concernantes ao ultramar.66 Entre 1544 e 1628 - a última edição em língua alemã - seriam, de facto, assinaladas significativas alterações, sinónimo de um permanente repor de informações. Por exemplo, na edição de 1578 introduz-se pela primeira vez uma carta, que apesar de um precário traçado, testemunha claramente uma tentativa de visualizar alguns dos dados difundidos. Nesta mesma edição insere-se ainda um texto referente às actividades militares do Imperador Carlos V no Norte de África com o fim de destacar as novas respeitantes à actual política alemã neste continente.67 Para além deste texto, publica-se também, pela primeira vez, uma ilustração de um habitante da "Terra dos Negros". A partir de 1614, o livro dedicado ao continente africano deixa de ser o sexto para passar ao oitavo, porque, como podemos testemunhar, as informações relativas aos países europeus aumentaram substancialmente, originando uma redistribuição da obra. Note-se que o aspecto mais interessante a focar desta edição está relacionado com as alterações introduzidas, desta vez, nas ilustrações da obra. De facto, até esta edição encontrar-se-ia sempre no capítulo reservado à Líbia uma gravura com monstros antropóides, ou seja, as conhecidas figuras de homens sem cabeça, só com um pé a servir-lhe de chapéu, outros com cabeça de cão ou só com um olho. Voltando-nos para o texto, este confirma a usual re-

66. Esta publicação seria editada sempre em nome de Sebastian Münster, embora o conceituado geográfo já tivesse falecido em 1552. Até este momento não nos foi possível saber os nomes dos colaboradores posteriores. Note-se ainda que este facto não é destacado na literatura secundária. 67. A introdução deste texto ilustra o enorme significado dado à expedição militar do Imperador Carlos V no norte de África. O interesse por estas expedições é ainda testemunhado pelos conhecidos Flugschriften, onde se divulgavavam rápida e concisamente as informações respeitantes a este acontecimento. É o caso, por exemplo, de Christoph Scheurl, Verteutscht schreiben von Kayserlicher Maiestat wunderbarlicher eroberung der königkichen Statt Thunis in Africa, Nuremberga, 1533; Newe Zeyttung/ von Kaiserlicher Maiestat Krigs rüstung/ wider dem Barbarossa/ gegen der Statt Thunis in Affrica zu schicken, s.L., 1535; Newe Zeytung von der römischer Kayser May./ vnd eroberung des Künigreychs Thunesse, Augsburgo, 1535 e ainda Die Eroberung der Stadt Affrica, Augsburgo 1570.

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ferência às fabulosas criaturas descritas por Plínio. Eis pois a conhecida galeria de cinócefalos, acéfalos que há muito ilustrava África. Curiosamente, em 1614, a imagem desaparece; quanto à escrita, essa não regista alterações. Este indício supõe um maior conhecimento do interior do continente africano, o qual já não deixaria lugar para a existência de seres fabulosos. Mas, surpreendentemente, esta mesma ilustração permanecerá no interior da Índia. A imagem de África alterar-se-ia, contudo, de modo significativo na edição de 1628, onde este continente apresenta uma nova divisão regional. Intentando-se uma reformulação dos capítulos existentes, dedicava-se grande atenção às notícias então recebidas, a fim de lhes atribuir o respectivo lugar no novo perfil da terceira parte do mundo. África passaria agora a ser a designação de um continente dividido em sete regiões, nomeadamente Barbaria, Egipto, Numídia, Líbia, Terra dos Mouros, Etiópia Interior e Etiópia Exterior. Estas regiões seriam ainda subdivididas em reinos, que no caso, por exemplo, da Barbaria englobava o reino da Mauritânia, de Fez, de Marrocos, da Algéria e ainda Tunísia. Também estes seriam abordados pela primeira vez nesta obra, baseando-se a sua descrição maioritariamente na apresentação de acontecimentos históricos, pelo que se manteve a estrutura já anteriormente utilizada para esta zona norte. O capítulo dedicado à "Terra dos Mouros", que em nada recorda os anteriores, reformula um novo quadro descritivo da costa ocidental africana. O texto presente forma e caracteriza esta paisagem regional consoante as fontes primárias. No caso da Guiné menciona-se expres-samente o nome de Luís de Cadamosto, autor que se seguirá bem de perto na representação da linha costeira ocidental. O grande número de informações disponíveis sobre a Etiópia aumentava igualmente, graças às notícias reveladas pelos portugueses, pelo que se dividiria este reino em Etiópia Alta, que correspondia ao império da Abissínia já conhecido pela figura do Preste João, e a Etiópia Baixa, descrita pela primeira vez. A apresentação das particularidades de ambas as Etiópias será também nesta cosmografia um reflexo do estudo e análise de obras portuguesas. Enquanto para a Etiópia Alta se salienta a par e passo os textos de Damião de Góis e de Francisco Álvares, a correspondência existente entre a família real etíope, o rei de Portugal e o papa,68 no que respeita à Etiópia Baixa alude-se principalmente ao texto

68. Esta correspondência foi publicada por Damião de Góis primeiramente na obra Legatio Magni Indorum, Antuérpia, 1532, seguidamente no Fides Religio Moresque aethiopum,

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de Duarte Lopes, divulgador das informações básicas sobre o reino do Congo. De facto, a Cosmographia de 1628 seguiria as linhas gerais do texto de Duarte Lopes, o qual seria também recomendado para uma leitura mais profunda. Ao descrever neste capítulo o reino do Monomotapa, tece-se ao mesmo tempo algumas considerações sobre algumas das cidades mais importantes da costa oriental africana. Por fim, algumas referências às ilhas atlânticas, a Madasgascar e a Santa Helena, enquanto o Cabo da Boa Esperança ganha forma sob as indicações do holandês Jan Huygen van Linschoten.69 Nesta edição de 1628, África, dada a correcção dos contornos e a redefinição de fronteiras, define-se numa outra configuração geográfica e histórico-cultural. Moldada segundo uma nova luz, África dá-se a conhecer na sua diversidade, ostentando a sua projecção para sul até há pouco desconhecida. A descrição realça os perfis esboçados ao longo das suas costas, contribuindo para um retrato mais completo e detalhado. Mediante as informações das viagens dos Descobrimentos fora possível ir construindo a pouco e pouco uma outra imagem do continente africano. Um processo gradual de tomada de conhecimento e de assimilação teve o seu impacto na Cosmographia.70 Embora autores como Plínio, Ptolomeu e Pompónio Mela sejam ainda na edição de 1628 considerados os fundamentos da composição do mundo, os conhecimentos adquiridos em obras mais recentes são também mencionados e aceites como um complemento da visão clássica do mundo.71 Sem que se pusesse em causa a autoridade dos escritos antigos, formulava-se uma nova suma de saber. De facto, descrever o mundo na sua totalidade, tendo em consideração todo o material esclarecedor, era o interesse primário dos cosmógrafos; facto este que explica a coexistência de afirmações contrárias, sem rumor de crítica. As doutrinas tradicionais permaneciam na sua função de degrau inicial do conhecimento, não entrando em confronto com os novos dados. África recebia assim sob a sua denominação um novo território, que ao longo de vários anos de trabalho ganhara uma outra forma e conteúdo. Se

Lovaina, 1540 (até finais do século houve várias edições e posteriormente vieram à estampa alguns trechos em alemão na Reis=Beschreibung de Giacomo Baratti, Nuremberga, 1676) e ainda em conjunto com a obra de Francisco Álvares. 69. Veja-se cap. 2. 4. 70. Talvez convenha salientar que também só, em 1628, é que a América surge como um novo continente, sendo então abordado separadamente no nono livro da Cosmographia. Com efeito, até esta data tinha feito sempre parte do capítulo asiático na tradição das duas Índias. 71. S. Münster, Cosmographia 1628, p. 1: "Das Erste Buch der Cosmographey/ Sebastiani Münsteri/ auß Ptolomeo/ Strabone/ Solino/ Pomponio/ auch andren alten und newen erfahrnen Cosmographis/ trewlich zusammen gezogen und verteutscht".

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ao princípio o reconhecimento deste continente significara a descoberta de um outro mundo, de um mundo Extra-Ptolomeu, com o decorrer dos anos ele seria aceite e passaria a fazer parte do orbe terráqueo. A denominação "Nova África" permaneceria, todavia, ao longo do século XVI como sinal da mudança.72

3.1.3. Do Reconhecimento à Descrição Global do Mundo Nos finais do século XVI princípios do século XVII, afere-se uma viragem temática nos escritos geográficos alemães. De facto, depois de se ter recolhido um enorme caudal de informações sobre os novos mundos inicia-se um outro momento de tratamento e valorização: já não urge reconstruir o espaço geográfico regional - uma vez que já existem limites mais ou menos instaurados das diferentes regiões -, mas sim o panorama da importância política ou cultural de cada um destes reinos no contexto mundial. Em vez de uma geografia física, debuxa-se uma geografia política, que anseia analisar o lugar de cada país no teatro mundial. As novidades das viagens dos Descobrimentos, recentemente reconhecidas como parte integrante do mundo, deveriam assim ser descritas e apresentadas na sua estrutura política. Um dos primeiros exemplos ilustrativos deste genéro de trabalho, encontra-se na obra do italiano Giovanni Botero: Allgemeine Weltbeschreibung/ Das ist: Eigentliche un warhafftige Erzehlung/ alller der gantzen Welt vornemster Landschafften/ Stätten vnnd Völckern;73 obra esta que se dirigia intencionalmente aos políticos mais importantes e influentes de todo o mundo. Em 1606, publicam-se alguns excertos da sua Weltbeschreibung desta vez com o elucidativo título de Giovanni Botero, Macht/ Reichthum/ un Einkommen aller Keyser/ Könige und fürnemster

72. Neste sentido, importa por exemplo, mencionar a obra de Michael Neander, Orbis terrae partivm svccincta explicatio..." editada em 1583, onde ainda encontramos este conceito. Após uma introdução sobre o norte de África, descreve "Nova África" onde menciona a costa ocidental africana, agora conhecida, passando então a referenciar as navegações para Calecu-te, com as quais se conheceriam gentes até então nunca vistas. 73. Giovanni Botero, Allgemeine Weltbeschreibung/ Das ist: Eigentliche un warhafftige Erzehlung/ alller der gantzen Welt vornemster Landschafften/ Stätten vnnd Völckern, Colónia, 1596. Primeiras edições italianas Ferrara 1592, Vicenza e Venetia 1595. Esta obra viria a lume até 1659, em Itália, para além das edições em latim (Colónia, Ursellis, Marburgo etc.), inglesas e polacas.

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Fürsten der gantzen Welt.74 O editor deste escrito, Matthias Quad, sublinha a necessidade de, no momento presente, se informar o público sobre questões de ordem política ou cultural. Assim é de grande utilidade que os estados europeus tomem conhecimento com a rudeza, a grosseria, a ignorância, as riquezas e a servidão das nações bárbaras, pois como escreve, com o poder dos potentados turcos, moscovitas e xerifes não é para se brincar.75 É, deste modo, a necessidade de conhecer a evolução política e económica dos potentados do mundo que leva Giovanni Botero a escrever esta obra e Matthias Quad a vertê-la para o alemão. Na sua obra Matthias Quad especifica este aspecto, afirmando que é útil e necessário ter conhecimento não só das acções de príncipes eruditos e inteligentes, mas também de reis selvagens e bárbaros; só com este cotejo se poderia constatar quais as causas determinantes para o sucesso de um estado: força, sabedoria, riqueza ou governação.76 E - como já assinalara Giovanni Botero - sublinha que só assim se poderia comprovar se um estado, em especial da Europa, mudou, melhorou ou se modificou.77 Na verdade, nesta tarefa compilatória não é suficiente a matéria geográfica. Um Enchiridon Cosmographicum deverá ser um manual dos acontecimentos de todo o mundo ("Handbüchlein der ganzten Welt Gele-genheit"), e consoante o título de Matthias Quad: "onde se deverá reconhecer com gosto e utilidade não só a forma e aspecto da terra, mas também as divisões de cada terra, costumes, natureza, fertilidade, lucratividade, habitantes e outras qualidades semelhantes. Anexa ainda uma descrição de todos os potentados e principados mais

74. Giovanni Botero, Macht/ Reichthum/ un Einkommen aller Keyser/ Könige und fürnemster Fürsten der gantzen Welt, Colónia, 1606. 75. "Es ist aber die lesung dieses Buchleins unseren Europäischen sonderlich aber des Teutschen lands/ Einwohnern fast nutzlich und bey nahe auch nötig/ damit man sie erkleren in was grobheit/ unwissenheit eigenthumb und knechtschaft die Völcker der Barbarischen Nationen aufferzogen [...] Dann mit des Türcken Moscowiten/ Xeriffen/ und dergleichen grossen Potentaten Macht nit zu scherzen/ ob sie schon weit von uns abgelegen..." Idem, prólogo. 76. "[...] nit allein von weisen/ verstendigen/ vnd gelehrten Fursten/ sonder auch von Wilden vnd barbarischen Königen geschehen: erhebt sich bald ein nachdencken ob jener solches durch seine Stercke/ oder durch seine Weißheit: durch Reichthumb oder durch manheit erworben habe" Matthias Quad, Enchiridion Cosmographicum..., Colónia, 1604. Veja-se Peter H. Meurer (Ed.), Einzelkarten des Matthias Quad (1557-1613), Mönchengladbach, 1984. 77. "[...] ob sich der Stand der Welt (sonderlich aber Europa) verendert/ verbessert/ oder verergert habe" Idem.

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importantes do mundo e o que possuiem em terra e gente, poder, património e rendas, bem como se portam em guerra ou paz.78 Que as cosmografias deveriam descrever o mundo tanto no seu aspecto físico como humano não constituia novidade, tinham sido estes já os objectivos estipulados por Sebastian Münster ou Abraham Ortelius. Mas agora a componente política e económica definia-se como determinante da imagem do mundo. É, descrevendo os potentados do mundo nas suas característias de poder e riqueza, que a obra de Giovanni Botero assume um lugar de destaque. Giovanni Botero (1540-1617) educado por padres jesuítas seria secretário do cardeal Carlo Borromeu em Milano, serviçal dos Sabóia em Roma e preceptor de príncipes católicos em Madrid e Paris. Conhecendo como homem prático o mundo político e religioso do sul e ocidente da Europa, Giovanni Botero, um perfeito representante da maneira de pensar da passagem do século XVI para o século XVII, dedicar-se-ia à formulação de uma doutrina da razão de estado. A Giovanni Botero interessava-lhe mais compor uma doutrina válida para o mundo católico79, do que estudar diferenças individuais nos interesses de estado de cada país. Nesta análise impunha-se, em primeira linha, recolher material sobre as formas de go-verno, as finanças, o exército, bem como sobre relações com os países vizinhos, material que irá tornar público nas Le relazione Universali.80 Embora se vailha de algumas experiências pessoais, Giovanni Botero servir-se-á, em grande parte, de material alheio. Ao descrever o potentado do Preste João necessita, por exemplo, de algumas fontes sobre esta terra e o seu regime, e aí iremos deparar com as informações de Francisco Álvares, no que respeita ao regime político do Preste João e à riqueza por ele administrada. Após uma introdução geral sobre cada continente, sem deixar de tecer algumas considerações sobre os principais aspectos físicos e humanos das

78. "Darauß man nicht allein die form vnd gestalt des Erdbodens sonder auch seine abtheilung/ jedes Landsart/ Sitten/ Natur/ Fruchzbarkeit/ Renieren /Gethierde/ Einwohner/ vnd andere der gleichen Eygenschafften mit lust vnd nuß erlehrnen kan. Mit hinden beygefügter beschreibung aller furnembsten Potentaten vnd Fursten der Welt / was sie an Land und Leuthen/ Macht / Reichthumb/ Schäß/ vnd Einkomen/ zu Kriegs vnd Friedens zeiten zu Wasser vnd Land vermögen/ nit weniger lustig als nußlich mit zu wissen" Idem. 79. G. Botero escreveria Della ragion di Stato, Veneza e Ferrara, 1589. 80. No seu estudo sobre a razão de estado, Friedrich Meinecke, Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte, Munique, 1960, vol. 1, p. 82, refere-se a Giovanni Botero, salientando positivamente o facto de o autor dar início a uma primeira e frutuosa compilação dos diversos sistemas políticos, embora sem que se aventure numa caracterização crítica dos diferentes interesses.

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regiões em estudo, Botero enumera e apresenta os grandes potentados do mundo. No que respeita ao continente africano, o erudito italiano considera poder referenciar três grandes potentados: Preste João, Monomotapa e Xerifado. Este esquema, seguido por Matthias Quad no seu Geographisch Landtbuch,81 e no já referenciado Enchiridon Cosmographicum, seria ainda a concepção modelar da Allgemeine Weltbeschreibung82 publicada por Aegidium Albertinum, em 1611. De facto, até aos finais deste século, as descrições do tipo das de Botero seriam importantes fontes para o conhecimento do posicionamento político do mundo e, em especial, da Europa. O interesse de uma topografia política sobrepor-se-ia a um esclarecimento geográfico. A defesa da Europa, bem como a sua afirmação perante o resto do mundo, a preocupação com a guerra e o fascínio pela riqueza são aspectos relevantes e coordenadores destas obras. Neste contexto, Herman Fabronus Mosemanusi publica, em 1612, a sua Newe Summarische Welt=Historia und Beschreibung aller Keyserthum/ Königreiche/Fürstenthumb/ vnnd Völcker heutiges Tages auff Erden83, obra esta que visa, tal como o autor confirma no seu prólogo, apresentar uma "história mundial", onde abordará a terra, a paisagem, as gentes, a religião e o governo de cada região do mundo. Dado que uma simples geografia já não satisfaz, Herman Fabronus Mosemanus ambiciona escrever uma "Geographia=Historica". Assim, Mosemanus recorre a autores conceituados de cujas obras compila o mais interessante e curioso para o seu livrinho, que define ainda como um manual para os amantes de histórias e de viagens.84 Este escrito pretende ir ao encontro dos que, interessados em conhecer, queiram viajar pelo mundo através da leitura; de uma forma agradável e

81. Matthais Quad, Geographisch Landtbuch..., Colónia, 1600 82. Aegidium Albertinum, Algemeine Historische Weltbeschreibung Ioannis Boteri..., Munique, 1611. A. Albertinus, o secretário da corte do conde Maximiliano da Baviera traduz La Relazione Universali de Giovanni Botero, que considera uma obra de grande utilidade. Tal como qualquer outra obra histórica, também esta relação coloca "defronte dos olhos" um retrato e esquisso de todo o mundo que importa dar a conhecer a pessoas de todos os estados, como afirma no seu prólogo. 83. Hermani Fabroni Mosemani, Newe Summarische Welt=Historia und Beschreibung aller Keyserthum/ Königreiche/Fürstenthumb/ vnnd Völcker heutiges Tages auff Erden, Schmalkalden, 1612. Reimpresso em 1614 e 1616. 84. "[...] sondern daß ich aus allen bewerten Autoribus dz vornembste/ vnd denckwürdigste in ein Büchlein zusammen bringen/ vnd also durch vnd mit diser Weise der Welt gleichsam durch reysen/ auch andern/ so der Welt=historien Liebhaber seind/ etwa darmit dienen möge". Idem, p. 6.

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descontraída poderiam tomar conhecimento das dimensões político-cul-turais do orbe terráqueo e da sua história. Neste contexto, Mosemanus destaca algumas das novidades e histórias contadas em relação às navegações feitas recentemente em longínquos locais do globo. Vejamos a sua abordagem do continente africano, tema do terceiro livro. Depois da Europa e da Ásia, é a vez de apresentar África nas suas zonas principais, nomeadamente, Barbaria, Egipto, Numídia, Líbia, Terra dos Negros Interior e Exterior; no quadro físico e cultural de cada uma das regiões, Mosemanus destaca a organização política. Assim, diz-nos que o senhor de Marrocos é: "O Xerife ou o rei mouro branco é um dos mais ricos e mais poderosos príncipes em África, visto que a seu senhorio engloba grande parte da Mauritânia, que os romanos denominavam 'Tingitanam'",85 e finaliza a imagem de Marrocos com algumas observações referentes às suas gentes, sendo o vestuário e a língua dos mauritânios os aspectos mais focados. O capítulo sobre o Egipto, a terra mais fértil e mais conhecida em África,86 é um louvor exaltado aos tempos gloriosos deste famosíssimo reino. A riqueza do Cairo e os tempos biblícos seriam a pedra fundamental deste seu hino.87 Em relação à Terra dos Negros, composta por quatro reinos, ou seja, Tombucto, Borno, Goaga e Gualata, dificilmente se poderia falar de cidades importantes, uma vez que as suas casas seriam "muito más. Visto que não utilizavam nem pedra nem cal viveriam em cabanas nas matas, ou nas montanhas".88 As gentes seriam bastante diferentes umas das outras, sendo umas mais escuras, outras mais claras e, no que respeita ao ves-tuário, apenas usariam uma tanga branca e na cabeça um lenço entrançado. Quanto à religião uns seriam judeus, outros pagãos e alguns maometanos. O governo seria administrado pelo principal rei: o rei do Tombucto, a que seguia o rei do Borno, o de Goaga e o de Gualata. Este último povo

85. "Der Xeriff oder weisser Mohren König ist der reichste vnd mechtigste der Fürsten in Africa/ dann seine herrschaft begreifft den gantzen Theil Mauritania/ welches dir Römer Tingitanam nanten". Idem, p. 605. 86. "[...] das aller Fruchbarste vnd berumbste Land in Africa". Idem, p. 624. 87. Interessante notar que as fontes aqui mencionadas são, na sua maioria, originárias da pena de representantes da tradição clássica. Mosemanus retrata, assim, o vestuário do povo egípcio segundo Diodoro Sículo. Veja-se cap. 2. 1. 88. "[...] gar schlecht. Dann da weder Stein noch Kalcks noturfft ist/ theil wohnen in Hütten von den Büschen oder in den gebirgen". Idem, p. 644.

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viveria muito pobre, uma vez que não conheciam qualquer administração, nem funcionários ou juízes".89 Por fim, a Etiópia ou "Terra dos Mouros", a maior região de África,90 seria dividida em Etiópia Interior e Etiópia Exterior. A primeira corresponde ao reino do conhecido Preste João, "o rei mais nobre", descendente de Juda e filho de David, enquanto a Exterior que ficara durante muito tempo desconhecida fora descoberta "pelos lusitanos". Esta descrição recorda-nos outras anteriormente referenciadas. Mosemanus refere ainda a divisão desta última região em cinco reinos: "Magicongo", "Ajana", "Zanguebara", "Benomotapa" e "Cafraria". Também aqui vivem lado a lado diferentes religiões, sendo de especial alusão a conversão ao cristianismo do rei do "Benomotapa" (Monomotapa) e do "Mangicongo" (Congo). Destacando as particularidades regiões, bem como as identidades sócio-culturais, Herman Mosemanus visa traçar um quadro sumário sobre África; o leitor da sua obra adquirirá indubitavelmente uma imagem sumária de cada região, no que respeita a terra, gentes, costumes, religiosidade e formas de governo. É esta mesma concepção de conceber um retrato dos povos do mundo que leva Gotfried Schultzen a editar a sua Kurtze Welt=Beschreibung in welcher aller Käyserthümber/ Königreichen vnd Republicken der ganzten Welt/ Religion, Sitten vnd Gebräuche/ auch aller Päbste/ Käyser/ könige vnd Fürsten/ auff einander ergangenen Sucession, sein ordentlich vnd kürtzlich begriffen vnd zusammen getragen.91 Também este autor se propõe esquissar e ordenar os impérios, reinos e repúblicas de todo o mundo sem esquecer que um esboço só poderá ser possível se for enquadrado na história que o determina. É assim que nasce este "tratado",

89. "[...] führen aber ein armselig Leben/ dann sie keine Administration/ keine Beampten/ noch Richter haben". Idem, p. 648. 90. "[...] das grösseste Land in Africa". Idem, p. 648. 91. Gotfried Schultzen, Kurtze Welt=Beschreibung in welcher aller Käyserthümber/ Königreichen vnd Republicken der ganzten Welt/ Religion, Sitten vnd Gebräuche/ auch aller Päbste/ Käyser/ könige vnd Fürsten/ auff einander ergangenen Sucession, sein ordentlich vnd kürtzlich begriffen vnd zusammen getragen, Lübeck, 1648. Esta obra viria a lume, em 1651, também em Lübeck e ainda, em 1673, na cidade de Frankfurt. G. Schultze publicaria ainda uma crónica dos principais acontecimentos históricos ocorridos até ao ano de 1645: Historische Chronica oder kurtze Beschreibung der denckwürdigsten Geschichten/ von Anfang der Welt/ biß an das jetzige 1645. Jahr, Lübeck, 1648 e 1650, onde na página 141 se pode ler que em "1500 schickte könig Emmanuel in Portugal zwölff Schiffe in Orient/ diese siegelten ganß Africam vmb/ kamen gen Calecut/ vnd erfunden eßliche Goldreiche Insulen in Ost=Indien".

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o qual deverá servir de ponto de orientação, em especial, como o próprio autor refere no seu prólogo, aqueles que não podem viajar. Se, de facto, se considera de suma importância conhecer o mundo nas suas dimensões e características, ter-se-á de ter em atenção precisamente aqueles que não o podem ver com os seus próprios olhos e, que, por isso, necessitam de obras como esta. Importa ainda não esquecer que diariamente se efectuam alterações nos hábitos de cada região, pelo que seria imperioso estar atento às mudanças operadas dia a dia nos costumes de cada país. Agrupados segundo os quatro continentes, os diferentes reinos e países serão descritos consecutivamente. No que respeita ao continente africano sublinha como características extraordinárias a fertilidade do reino do Egipto, a riqueza do Preste João, descreve o povo congoense e o marroquino, e alude a Monzino, o único deus adorado no Monomotapa. "[...] o que existiria de mais honorífico e de maior fama no mundo do que examinar e contemplar as suas terras e cidades" questiona Giuseppe Rosaccio no prólogo do seu Prospectus Mvndi.92 E se este interesse sempre constituiu motivo para interrogar e pesquisar o mundo, o momento presente revelar-se-ia bastante sintomático, uma vez que a composição estabelecida pelos antigos já não corresponderia à nova realidade. De facto, face aos dados das navegações, importaria reconstruir a imagem do mundo. Assim, Giuseppe Rosaccio, com dados fornecidos pelos "mestres destas coisas", ou seja, material de portugueses, ingleses, e italianos, aventura-se na empresa de formular o "Teatro del mondo" seguindo as passadas de autores como Abraham Ortelius, Sebastian Münster, Gerhard Mercator93 e M. Merian, conforme menciona no seu prólogo.94 Podemos concluir que, ao longo do século XVII, se constata uma grande proliferação de compêndios geográficos escritos como obras capazes de responder rapidamente à curiosidade do leitor. Assim, ainda, no mesmo ano 1655, se publicava em Tübigen o Geographisches Hand-Büchlein da autoria de Eberhard Schultes. Como já se informa no título, esta obra reune todo o material que se tem publicado com vista a dar a conhecer

92. "[...] was ist ehrliches vnd rühmliches in der Welt/ als Länder vnd Stäte zu erkündigen vnd zubesehen?" Giuseppe Rosaccio, Prospectus Mvndi. Weltblick oder kleine Cosmographia..., Augsburgo, 1655. 93. Gerhard Mercator, Atlas, sive Cosmographicae Meditationes de Fabrica Mundi e fabrica Figura, editada a primeira parte a partir de 1585. O Atlas só estaria completo no ano de 1595, já depois do falecimento de Mercator. 94. Ainda em 1708 os autores se consideram descendentes de Estrabão, Ptolomeu, Sebastian Münster e Johannes Rauw, como é o caso da obra Asiae, Africae & Americae Geographia novissima [...] Das ist eine sehr nützliche und wol= eingerichtete Land =Städte= Be-schreibung von Asia, Africa, America..., Frankfurt, 1708.

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"todo globo terrestre", por um lado em globos e cartas, por outro lado na apresentação nas suas principais características das quatro partes do mundo. Numa confrontação entre a imagem já existente dos antigos e a imagem actual, E. Schultes informa inicialmente segundo os autores clássicos e segundo os "dias de hoje". Assim quando aborda a divisão do continente africano cita a classificação de Ptolomeu e só depois a divisão actual -95 ainda nos fins do século XVII se recorre, como podemos testemunhar, aos mestres clássicos para escrever um compêndio: Allain Manesson Mallet Beschreibung des gantzen Weltkreissses96 em que se apresenta "Velha e Nova" Europa, Ásia e África. Também a obra de Schultes reune, deste modo, um grande número de obras auxiliares. Convém salientar que, embora já na primeira edição se fizesse sentir o peso das informações retiradas de outras obras, poucos eram, contudo, os nomes citados. No entanto, este facto alterar-se-á, em 1673; editado sem qualquer alteração, o texto será acompanhado de elucidativas notas de rodapé. Se na primeira leitura nos podemos aperceber de quais as obras que o autor usou como fonte documental, nesta segunda edição poder-se-á confirmar a sua proveniência. O interesse que esta obra tinha despertado justifica uma nova edição, e daí a intenção de a melhorar, informando o leitor sobre as fontes utilizadas. Neste sentido, e no que respeita ao continente africano, são referidas, como fontes de consulta basilar, a conceituada cosmografia de Sebastian Münster, a Archontologia,97 Sebastian Franck e os atlas de Hondius e Johnsson,98 como obras que poderão dar uma informação geral sobre este

95. Eberhard Schultes, Geographisches Hand-Büchlein, Tübigen, 1655, pp. 374-75. 96. Allain Manesson Mallet, Beschreibung des gantzen Weltkreissses, Frankfurt am Main, 2 vols., 1684- 1685. Allain Manesson Mallet viveu dez anos em Portugal onde trabalhou como engenheiro, cargo este que lhe permitiria recolher um manancial documental, como o próprio salienta no prólogo. 97. Johann Ludwig Gottfried, Neuwe Archontologia Cosmica, Frankfurt am Main 1646. Landtallen und stätten von Matthaeo Merian. Reimpressa com o título Vermehrte Archonto-logia Cosmica, Frankfurt/M., 1695. Os quadros e panoramas das cidades europeias são da autoria do renomeado gravador Matthäus Merian. Esta obra, na tradição das cosmografias, adquire um alto valor como compêndio enciclopédico. Trata-se, em grande parte de uma tradução do francês, nomeadamente, de Pierre d'Avity, Les Etats, empire, royaumes et principautez du monde..., Paris, 1616 (ainda 1625). 98. Jodocus Hondius será quem vai adquirir os Atlas (1604), após a morte de Mercator, continuando a publicá-los, até 1637, no nome deste conceituado geógrafo. Ao todo conhecem-se 41 edições do Atlas grande. Para além deste, Hondius publicaria ainda o "Atlas minor" que atingiria 24 edições. Depois da morte de Hondius, o filho e o genro, Jan Jansson, prosseguem com a publicação. Veja-se Leo Bagrow e R. A. Skelton, Meister der

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continente. Ao longo do texto serão, todavia, mencionadas outras fontes consoante a região ou a temática em questão. É o caso, por exemplo da referência feita a Jan Huygen van Linschoten quando aborda o reino da Guiné, ou a Duarte Lopes quando analisa o reino da Abissínia ou ainda o reino do Congo. Assim, consoante a necessidade de informações mais detalhadas e concretas, o autor recorre a monografias ou a relações de viagens. Talvez seja interessante frisar que a obra de Sebastian Münster é referenciada em todo texto, qualquer que seja a região, ou a temática relacionada com o continente africano. Constata-se, de facto, que até finais do século XVII se publicam ainda um grande número de obras deste teor que, procurando ir de encontro ao interesse do leitor, reunem de uma forma clara e concisa o material dis-ponível sobre o espaço geo-político do mundo. Entre os múltiplos exemplos poder-se-iam referir obras como Lukas de Linda Orbis Lumen et Atlantis ...Das ist Newe außfürliche Entdeck=und Beschreibung der ganßen Welt...;99 Welt=Spiegel. Darinn man sehen kann/ wie groß die Gantze Welt?... de Blasius Seywald;100 Kurß= gefaßte allgemeine Beschreibung aller Länder...;101 Geographia Universalis;102 Die Gantze Erd=kugel...,103 ou ainda Prospect des ganzen Erdkreisses...,104 obras estas em que se pretende colocar "defronte dos olhos" dos leitores um compêndio ilustrativo do mundo e das suas gentes. Estas obras, ao darem a conhecer os aspectos geográficos, humanos e culturais, respondem à necessidade vital de conhecer o mundo.105 Para além deste aspecto, referem-se ainda razões de ordem prática para a elaboração destes manuais; Seywald refere no seu prólogo, por exemplo a necessidade de se conhecer os estados vizinhos, ou seja, como ele próprio especifica, os inimigos. Ou ainda como um guia para aqueles que pretendem viajar, a fim de prepararem a sua viagem, como é o caso da

Kartographie, Frankfurt am Main/ Berlim, 1985, pp. 239-40 e o comentário de Hanno Beck in: Die großen Entdeckungen, op. cit., pp. 28-30. 99. Lukas de Linda, Orbis Lumen et Atlantis ..Das ist Newe außfürliche Entdeck=und Beschreibung der ganßen Welt..., Frankfurt am Main, 1656 e 1658. 100. Blasius Seywald, Welt= Spiegel. Darinn man sehen kann/ wie groß die Gantze Welt?.., Nuremberga, 1673. 101. J.C.B., Kurß=gefaßte allgemeine Beschreibung aller Länder .., Nuremberga, 1678. 102. P. du Val, Geographia Universalis..., Nuremberga, 1678. 103. Sanson d'Abbeville, Die Gantze Erd=kugel..., Frankfurt am Main, 1679. 104. Prospect des ganzen Erdkreisses..., Nuremberga, 1686. 105. Varenius viria a refererir-se a estes elementos na sua introdução teórica à ciência geográfica. Veja-se o extracto da introdução da Geographia generalis de Varenius in: Die großen Entdeckungen, op. cit., pp. 30-33.

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obra Neue Weltbeschreibung vor die Reisenden darinnen in 73. Capituln die vornehmste Länder...,106 ou a Poliologia, das ist Beschreibung aller berühmten Städte in der ganßen Welt,107 que se destina a todos os "comerciantes" ou "Litterati" que busquem informações sobre cidades do mundo. Por fim, haveria ainda escritos para estudantes, como seja, a obra de Johan Strubius, professor em Hannover Des alt= und Neuen bekandten Weltkräyses...108 Estes manuais e compêndios109 conseguiriam, até aos finais do século XVII, ir de encontro ao anseio de, numa só obra, compilar as questões geográficas, políticas ou históricas consideradas essenciais para o conhe-cimento geral do mundo. De um reconhecimento inicial caminhar-se-ia a par e passo para uma descrição gobal do mundo.

106. Neue Weltbeschreibung vor die Reisenden darinnen in 73. Capituln die vornehmste Länder..., Frankfurt, 1670. 107. Joh. Heinrich Seyfried, Poliologia, das ist Beschreibung aller berühmten Städte in der ganßen Welt, Sultzbach, 1683. 108. Johann Strubius, Des alt= und Neuen bekandten Weltkräyses..., Frankfurt am Main e Leipzig, 1694. 109. Só em 1696 virá a lume um Geographices Dictionarium, Colónia, 1696, e dez anos mais tarde um Geographisches Lexicon, Leipzig, 1705 em que o leitor encontra rapidamente, por ordem alfabética, as informações de que necessita como dados sobre cidades, rios, montanhas, povoações, etc. Em 1715 seria publicada Die curieuse Orografia oder accurate Bescreibung derer berühmsten Berge/ in Europa/ Asia/ Africa und America..., uma obra em que se descrevem, de igual modo, por ordem alfabética, as elevações montanhosas do mundo. Como num dicionário encontramos um pequeno apontamento sobre cada uma delas; assim, sobre o Cabo verde menciona-se que seria denominado "Promontorium Arsinarium" por Ptolomeu e a costa teria sido descoberta por Cadamosto (p. 461).

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3.2 Usos e Costumes de todo o Mundo

3.2.1 O Africano: Ser Fabuloso ou Gente? O contacto com um novo espaço territorial implica naturalmente um contacto com os seus habitantes e a sua cultura. O encontro de terras com gentes até então ignoradas iria certamente originar múltiplas reacções na consciência cultural europeia. Os testemunhos divulgados de povos, afinal, adamitas e, por isso, não diferentes dos até então conhecidos, contradiziam a ideia prevalecente da existência de monstros antropóides em terras longínquas e remotas; trata-se de povos de usos, por vezes, estranhos, mas, sem dúvida, simultaneamente fantásticos e maravilhosos para atrairem a atenção de qualquer europeu. O exaustivo conhecimento das diferentes culturas e civilizações espalhadas por esse mundo fora constitui uma das áreas de maior impacto no diálogo com a novidade. Como seriam vistos e integrados estes homens agora descobertos nas esferas de pensar e estar europeias; esta uma das questões que nos propomos aflorar neste capítulo. Já na literatura de viagens se atesta uma certa dificuldade em descrever os povos recém-descobertos. A relação descritiva deixa transparecer uma indefinição face ao visto: fala-se de povos, que não se sabe se se devem considerar como gentes e, perante a diversidade humana, descrevem-se alguns como sendo bárbaros, outros como certamente selvagens; alguns comportam-se, na opinião dos viajantes-observadores, como canibais e, na maioria dos casos, os autores afirmam tratar-se de pagãos. A surpresa perante a descoberta de vida humana ao sul do Equador originaria grandes interrogações sobre os diferentes tipos humanos, visto que estes seres não detinham credibilidade face aos fundamentos existentes. A revelação da existência de gentes para além da linha equatorial, documentada pelos depoimentos dos navegadores ibéricos, causaria, pois, dúvidas e incertezas quanto ao aspecto e comportamento destes seres. E se, de facto, se encontravam gentes por essas paragens, então seriam criaturas criadas por Deus; com os quais se deveriam consequentemente estabelecer assíduos e contínuos contactos. As primeiras referências em obras alemãs às gentes do continente africano, seriam registadas, mais uma vez, nas cosmografias. Acompanhando o relato inicial, estas obras de geografia formulam as primeiras tentativas de traçar um olhar etnográfico sobre os povos

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africanos, dando voz à necessidade e à vontade de conhecer o mundo na sua verdadeira dimensão territorial e humana. Se, no início desta amostra representativa se encontram apenas referências aos reinos situados junto à costa ocidental africana, ficando-se assim pela enumeração de povos que habitam estas regiões, pouco a pouco criam-se exaustivas listagens de tópicos característicos e ilustrativos das maneiras de ser e estar destes povos. O humanista Laurentius Frisius afirma na sua Auslegung der mercarthen oder Carta Marina, como se pode testemunhar pelas suas próprias palavras, que este seu tratado intenta esclarecer a terra e costumes dos seus povos nomedamente dos sítios recentemente nomeados pelas navegações.1 Neste comentário à Carta marina, Laurentius Frisius visa informar sobre a terra, bem como sobre os povos que a habitam. Assim, ao descrever o Cabo Verde, esclarece que se trata de uma região com muitas árvores, onde vivem muitos "lavradores", cujas casas são de palha. Eles andam nus, pescam, roubam-se uns aos outros e usam setas envenenadas.2 No reino de Melli, também situado na "Terra dos Mouros" salienta que "os homens desta terra tem grande consideração por mulheres fortes com peitos grandes",3 enquanto no Senegal se encontra um reino com muita gente e que embora se encontrem algumas aldeias não tem cidades. Acrescenta ainda surpreendido que têm um rei, mas que este "não tem nem renda nem dinheiro, só apenas aquilo que o povo com boa vontade lhe oferece".4 Laurentius Frisius anota ainda que na Etiópia os padres tem "alguns costumes estranhos"5 e que o povo, também numeroso, tem um "aspecto cruel".6 No seu registo resumido e pontual Frisius faz comparações com a realidade conhecida. Assim, no capítulo dedicado ao Preste João referencia que este é tão poderoso como o pontífice em Roma, pois também tem ao seu dispor muitos reis e bispos.7 Trata-se, por enquanto, de um pequeno apontamento dos autóctones recentemente descobertos, em que Frisius aponta uma ou outra particularidade significativa e caracterizadora de cada um destes povos; 1. Laurentius Frisius, Auslegung der mercarthen oder Carta Marina, Estrasburgo, 1525, seguimos a edição de 1527, introdução ao cap 1. "Der an der Tractat erkleret zum theil die land vnd sitten & völcker/ so angemelten orten erfunden werden/ als vß nüwer vnd warhaffter erfarung hieher gezogen..." 2. Idem, cap. 22. 3. "[...] man in diesem land habend grose achtung vff feißte weiber mit grossen brüsten". Idem, cap. 62. 4. "[...] hat weder Rent noch gult dan was im dz volck mit guten willen schenket". Idem, cap. 105. 5. "[...] mancherley seltzamer sitten". Idem, cap. 27. 6. "[...] grausamer gestalt". Idem. 7. Idem, p. 90.

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como vimos, também aqui se estabelece, grande parte das vezes, uma comparação com a realidade conhecida. O registo informativo será conduzido pelo anotador que assim define a norma. De igual modo o teólogo e cronista Sebastian Franck expressa no título do seu Weltbuch o desejo de descrever o mundo e "os povos e habitantes aí residentes, o nome, aspecto, vida, carácter, religião, credo, cerimónias, lei, regimento, polícia, hábitos, usos, guerra, ofícios, frutos, animais, vestuário e alterações".8 Os primeiros passos para esboçar o Outro passam, por conseguinte, por uma descrição e enumeração da sua maneira de ser e estar, dos seus usos e costumes, premissa necessária para a definição do seu posicionamento no mundo. Vejamos em pormenor o capítulo dedicado ao continente africano. Já na apresentação geral dos quatro continentes, Sebastian Franck refere que em África "há muitas maravilhas e gentes selvagens",9 de tal forma que mui-tas vezes não se sabe se se devem considerar humanos. Nas paisagens africanas encontrar-se-iam, assim, Blémies,10 Nubios,11 Trogloditas, que vivem no deserto em buracos debaixo da terra, e Ciclopedes, só com um olho, sem cabeça e negros; os Garamantes, que habitam na Líbia interior,12 vivem com qualquer mulher e não tem cabeça, tendo assim os olhos e a boca no peito e, por fim, os Etíopes; Franck apresenta-nos assim "as gentes maravilhosas da natureza".13 Numa outra passagem anota que "Alguns só de aspecto se parecem gente, dado que noutras coisas, sem raciocínio, são como os animais selvagens".14 Os Rizopagi que comem raízes que destroiem com pedras, os Cineci que comem animais em cru e os Spermatopagi que vivem em árvores, preguiçosos. Estes estranhíssimos povos viveriam assim por toda a Etiópia e a Líbia. Com efeito, Sebastian

8. Sebastian Franck, Weltbuch, Estrasburgo, 1534. "und der darin gelegener Völcker und Einwoner/ namen/ gestalt leben/ wesen/ religion/ glauben/ ceremonien/ gstaz/ regiment/ pollicey/ sitten/ brauch/ krieg/ gewerb/ frücht/ thier/ kleydung vnd verenderung". 9. "[...] hat viele wunder unnd wilde menschen" Idem , p. V. 10. No parecer de Estrabão estes acéfalos com olhos no peito viveriam do lado direito do estuário do rio Nilo e seriam temidos como ladrões. 11. Um povo do vale do rio Nilo citado por Estrabão segundo as indicações de Erastones, Plínio e Ptolomeu. 12. As fontes que referem os Garamantes são Heródoto, Estrabão, Plínio e Ptolomeu. Ainda nos meados do séculos XVII os autores recorrem a estas fontes, continuando a descrevê-los entre os povos africanos. É o caso, por exemplo, Eberhard Schultes, Geographisches Hand-Büchlein, Tübingen, 1655. 13. "[...] die wunderbarlichen leüt der natur". Sebastian Franck, op. cit., p. V. 14. "Etlich seind allein von gestalt menschen/ sunst aller ding on vernunfft wie die wilden thier." Sebastian Franck, op. cit, p. Viiij.

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Franck acolhe o legado da geografia mítica da antiguidade nas páginas da sua obra e o continente africano torna-se um acervo de maravilhas, monstros, prodígios na tradição da Historia Naturalis de Plínio ou da Collectanea de Solino. O restante texto apenas faz algumas alusões à Mauritania e Numídia, onde residem, tal como o indica a denominação regional, povos bárbaros, e ao Egipto, capítulo este repleto dos ancestrais costumes; em resumida introdução desfilam os deuses epípcios mais conhecidos, bem como algumas cerimónias rituais fúnebres, que a par do direito e das artes, constituem os aspectos mais importantes da cultura egípcia.15 A representação do continente africano, tanto no que se refere às dimensões e limites desta parte do mundo, como em relação aos povos aí residentes, permanece fiel à concepção tradicional. Vejamos quais as fontes seleccionadas por Sebastian Franck? Com efeito, na redacção deste capítulo, Franck recorre, na sua grande maioria, a textos de autores clássicos. Os seres fantásticos e extraordinários descritos em África seriam o mundo fantástico e espantoso descrito por Plínio, Estrabão, Solino, Heródoto e Isidoro de Sevilha. Além destes, o compilador de maravilhas referencia uma obra intitulada Omnium gentium mores, leges, & ritus ex multis clarissimis rerum scriptores.16 O seu autor, Johann Boemus, formado em hebraico reune neste escrito, publicado em 1520, os usos e costumes da Europa, Ásia e África, compilando mais uma vez a longa tradição livresca das maneiras de ser e estar destes três continentes. Baseando-se no rol maravilhoso e de prodígios da geografia tradicional, Johann Boemus realiza uma colecção de costumes dos povos da terra. Esta obra testemunhará uma grande ressonância17 que se poderá explicar precisamente pelo facto de estabelecer uma suma de dados da cultura livresca tradicional relativa-mente aos hábitos e instituições destes três continentes. Importa referenciar que, embora date de 1520, não existe qualquer alusão às novas descobertas. Johann Boemus permanece no sistema prevalecente, não fazendo qualquer referência no seu texto à circum-navegação de África e às viagens marítimas até à Índia. O seu opúsculo seria, no entanto, aceite como um importante fundamento para o conhecimento da realidade 15. Neste trecho cita Breydenbach que refere Cairo como a maior e mais povoada cidade do mundo" [der aller grosten vnd volckreichesten Stadt der Welt"], p. XV. Aqui menciona também Hans Tucher, veja-se cap. 2. 1. 16. Johann Boemus, Omnium gentium mores, leges, & ritus ex multis clarissimis rerum scriptores, s. L., 1520. 17. São conhecidas para o século XVI e inícios do século XVII, nove edições em latim, cinco em italiano, quatro em francês, três em inglês, e uma em espanhol.

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humana, conhecido como uma colecção dos costumes humanos,18 pelo que não será de admirar que também ele se encontre na lista de Sebastian Franck como uma fonte primária essencial. Ao dar acolhimento a um corpus documental originário da Antiguidade Clássica ou de enciclopédias da cultura cristã medieval como Isidoro, Sebastian Franck não fará também qualquer referência às informações dadas pelas viagens dos Descobrimentos, deixando que este capítulo seja tributário de Plínio, Isidoro, Diodoro Sículo e outros. E, como pudemos apreciar, são, na sua grande maioria, os seres fantásticos e estranhos por eles legados que povoam o continente africano. Descrito desde há muito como parte integrante da realidade humana, este mundo prodigioso não seria, de facto, desprezado nem provoca qualquer apreciação céptica nas publicações dos séculos XVI e XVII. É o caso da obra de Meister Elucidarius: Von allerhandt Geschöpffen Gottes.19 Com o propósito de apresentar iluminadamente todas as criaturas da terra, retoma-se a descrição das três partes do globo retirada principal-mente das obras de Plínio, Solino e de outros escritores do mundo. E embora se mencione que se intenta corrigir os depoimentos declarados, acaba-se por se expor, numa conversa entre mestre e aluno e sem qualquer crítica, os dados tradicionais. Vejamos por exemplo, quando se refere aos acéfalos existentes na Etiópia: "Alguns destes etíopes são mouros ou indianos/ outros habitam no deserto/ outros alimentam-se de toda a espécie de serpentes/ e simulam mais uma linguagem do que propriamente consigam falar/ alguns não têm cabeça/ mas antes os olhos e a boca no peito".20 E prossegue descrevendo cinocéfalos, gentes que vivem quatrocentos anos; na Etiópia existiriam pessoas com quatro olhos e "No sul da Etiópia haveria gentes que tem um só pé, muito largo, mas que são tão rápidos que assim podem perseguir os animais selvagens; e, com os pés grandes, podem-se proteger optimamente do calor do sol".21 Sem qual-quer dúvida, a galeria de seres fabulosos e extraordinários é o cenário humano e natural das regiões africanas.

18. Veja-se, Margaret T. Hodgen, Early Antropology in the Sixteenth and Seventeeth Centuries, Philadelphia, 1964, pp. 131-154. 19. Meister Elucidarius, Von allerhandt Geschöpffen Gottes..., Frankfurt, 1566. 20. "Es seynd mancherley Ethiopien/ Moren oder Indianer/ etliche wohnen in der Wüste/ etliche niessen allerley Schlangen/ vnnd deuten ihre Rede mehr dann Sie außsprechen/ etliche haben kein Haupt/ sondern Augen vnd Mund an der Brust". Idem, sem numeração de pági-nas. 21. "Gegen Nidergang in Ethiopia seynd Leut mit einem einigen breyten Fuß/ vnn so schnell/ daß Sie die wilden Thier erfolgen/ vnd beschatten sich optimals von der Sonne Hitz / mit der breyte irer Füsse". Idem.

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Nos meados do século XVI, Johann Herold traduziu do latim para o alemão a obra do gramático Conrad Lycosthenes (ou seja: Conrad Wolffhart) que, dedicada a Deus,22 visa conhecer a humanidade como obra do Criador. Dividida em quatro livros, em apego à concepção das quatro monarquias, esta crónica descreve, desde o início do mundo até aos meados do século XVI - altura da publicação -, os seres fantásticos e maravilhosos, ou seja, homens sem cabeça, com olhos no peito, só com um pé bem como fabulosos criaturas metade gente, metade animais. E, como tivemos oportunidade de constatar, não existem zonas privilegiadas na sua descrição, encontrando-se as maravilhas espalhadas por todas as zonas do globo.23 Com efeito, desde o início do mundo que encontramos referências a monstros maravilhosos e em todas as regiões do orbe terráqueo.24 No final do quarto livro coloca-se esta questão para as zonas recém-descobertas. E é interessante aferir que aqui até se relata sobre criaturas fabulosas, que os portugueses teriam encontrado nas suas viagens até Calecute. Com efeito, os navegadores teriam visto, numa ilha, criaturas com dois braços do lado direito, com orelhas de burro e pés de cavalo e ainda mulheres que teriam filhos duas vezes por ano.25 Mas os estranhos exemplos não ficam por aqui. Tanto na Terra dos Mouros, como na ilha da Samatra se poderiam ainda ver criaturas estranhas e maravilhosas - o texto é acompanhado por ilustrações. As descrições amplamente conhecidas, bem como as ilustrações - como as da crónica de Hartmann Schedel - seriam agora remetidas para as terras há pouco descobertas. A galeria de seres já conhecidos seria agora completada e confirmada como um dado das viagens dos Descobrimentos, por exemplo, no novo mundo "o rei de Portugal, através das suas navegações, descobriu gente rude com cabeça de cão e longas orelhas de burro; o corpo é de gente com braços e mãos,

22. Johann Herold, Wunderwerck oder Gottes vnergründliches Vorbild ..., Basileia, 1557. Herold traduziria outros autores como Petrarca, Beda Venerabilis, Erasmo e Diodoro Sículo. 23. Veja-se Eugen Holländer, Wunder, Wundergeburt, Wundergestalt, Estutgarda, 1922, que apresenta uma série de Flugschriften publicados em vários países da Europa. Alguns destes com exemplos de criaturas disformes e monstruosas aparecidas na Europa foram publicados na obra de Wolfgang Harms (Ed.), Deutsche Illustrierte Flugblätter des 16. und 17. Jahrhunderts, 2 vols., Munique, 1980, Tübingen, 1985. 24. Veja-se Conrad Gesner, Historia Animalum Liber III, Frankfurt/M., 1585 e Ambroise Paré, Des monstres et prodiges, Paris, 1573 (ed. Jean Cérard, Genéve, 1971). Paré cita (p. 3) Lycosthenes como fonte informativa sobre numerosos seres monstruosos. 25. Herold, op. cit, p. dlxiij.

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as ancas e as coxas como um cavalo; e ruminam como uma vaca".26 O fantástico e o real coexistiam numa dinâmica e surda subordinação; e levará o seu tempo até que a galeria de maravilhas seja determinantemente eliminada pela ciência empírica. Poder-nos-emos interrogar se será nas zonas mais remotas sobre a qual existe menos informação, que se impõe condicionalmente a cultura livresca? Será que a localização destas criaturas tem a ver com a maior ou menor quantidade de informações? Uma leitura atenta dos últimos textos analisados comprova que as indicações a criaturas estranhas e fantásticas se encontram distribuídas por todas as regiões do mundo e por todas as épocas. Assim, a hipótese de que apenas se encontrariam, por exemplo, em áreas desconhecidas, além da Europa não é de modo algum verificável. Podemos assim concluir que esta questão tem a ver com o próprio conceito de humanidade usado. Se a pouco e pouco estes seres monstruosos iriam desaparecendo da superfície terrestre, no século XVI eles ainda tinham aceitação na consciência cultural europeia. Estas criaturas, como podemos testemunhar, nos escritos publicados durante todo o século XVI, e ainda as primeiras décadas do século XVII, faziam parte do orbe terráqueo. Presente nos textos da Antiguidade ou na Sagrada Escritura, este mundo lendário e fantasiado não perde a credibilidade e o aval dos coevos. Não esqueçamos que o homem renascentista tem ainda muito a ver com o homem fervoroso e exagerado da Idade Média. Como vimos, esta última publicação comprova esta ideia, estabelecendo uma associação com a história da humanidade.27 Conrad Lycosthenes que, para além desta obra, edita um comentário de Plínio (1547) e participa na edição da Geografia de Ptolomeu em 1552, volta-se especialmente para o legado da antiguidade. Não será este, por conseguinte, um problema em torno das fontes que os autores utilizam? De facto, ao mesmo tempo que surgiam textos referentes às viagens marítimas, os homens de letras coevos dispunham igualmente pela primeira vez de inúmeros textos da Antiguidade, onde também se relatava sobre os povos do continente africano agora circum-navegável. Ambos os escritos seriam pois considerados uma fonte de conhecimento: enquanto as obras recentes rela-tavam sobre o presente, os autores da antiguidade informavam sobre o

26. "[...] hatt der künig vß Portugall durch sein Schiffung leüth funden/ die rauhe hund köpff mit langen Esels horn hattend/ der mittel leyb ist mensch/ mit armen vnn händen/ die hufft vnd schenckel wie ein pferd/ klauwmen wie ein Khü....". Johan Herold, op. cit., p. dlx. 27. Estes exemplos serão utilizados em muitas obras como na Cosmographia de Sebastian Münster. Veja-se, por exemplo, capítulo sobre Lituânia, onde refere seres fantásticos e disformes.

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passado. Este facto explica a permanência deste mundo maravilhoso e monstruoso. Depoimento de autoridade, até se provar o contrário, ele faria parte do saber existente. Os autores do século XVI reflectem, de modo diferente, a recepção dos autores da antiguidade e os dados das viagens dos Descobrimentos. Recapitulemos. Enquanto Sebastian Franck escreve o seu continente africano em apego às fontes tradicionais, o capítulo dedicado a América transmite uma outra imagem dos povos da costa ocidental africana, conforme o testemunho de Luís de Cadamosto. Num mesmo escrito diferentes abordagens, duas realidades lado a lado sem integração.28 Johann Herold, por seu lado, confirma os dados prevalecentes com as viagens dos portugueses e na Cosmografia de Johann Rauw fazem-se referências tanto a trogloditas, os primeiros legados da geografia mítica, como aos nubios29 descritos por Francisco Álvares. Estes alguns dos muitos caminhos possíveis na interrelação do novo horizonte do saber. A integração não é, pois, de qualquer modo linear. Um outro campo onde se poderá deferir esta amoteose de leituras é no das ilustrações. Também aqui se operam diferentes exemplos; assim, poderá acontecer, por exemplo, que um texto antigo seja ilustrado com figuras actuais, como é o caso da edição em língua alemã de Johan Herold da obra de Diodoro Sículo. Considerando de suma importância conhecer o início da história da humanidade, Herold decide traduzir este texto relativo aos acontecimentos históricos até a guerra de Tróia. Mas as gravuras escolhidas para esta edição, são também publicadas na Cosmographia de Sebastian Münster. Assim, ao desfolhar o primeiro capítulo sobre o Egipto surgem imagens das inundações do Nilo, um mapa do Egipto, um crocodilo, as pirâmides, entre outras gravuras, que conhecemos do capítu-lo sobre África da Cosmographia de Münster. Quando se refere que, no princípio do mundo, os homens seriam selvagens e até canibais, surge a famosa imagem, em que em cima de uma mesa se esquartejam homens. Mas, para além disso, insere-se o mapa de África já com os novos con-tornos publicado pela primeira vez na obra de Sebastian Münster. Isto é: um traçado que não seria conhecido de Diodoro Sículo. Vimos igualmente um habitante da Terra dos Mouros, bem como o rinoceronte desenhado

28. Neste contexto, R. Gosche, Sebastian Franck als Geograph, in: Zeitschrift für allgemeine Erdkunde, I vol., Berlim, 1853, pp. 255-278 alude a um "emaranhado" de informações antigas e novas. 29. Johan Rauw, Cosmografia, Frankfurt, 1597, pp. 1016-1017. Em relação aos trogloditas, Rauw menciona Sebastian Münster.

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por Albrecht Dürer, um "animal estranho". Se por um lado se poderá argumentar que ambas as obras foram editadas na mesma tipografia em Basel, na oficina de Henri Petri, utilizando-se assim as mesmas xilografias, - como sabemos nem sempre se produziam novas xilografias nas diferentes edições, por razões económicas -, por outro lado, dever-se-á anotar que a utilização das mesmas imagens significa, por certo, um reajustar de imagens. Trata-se de um acto ocasional? Ou pelo contrário é um gesto premeditado? Os temas abordados não seriam de algum modo intemporais? O canibalismo referenciado por Diodoro Sículo, não seria agora, no século XVI, testemunhado como prática corrente noutras regiões do globo. Porque não completar o dado anterior com as informações actuais - como no caso do mapa. Embora um escrito se reporte aos tempos passados e o outro trate da imagem do mundo actual, não serão ambos vestígios de uma mesma realidade humana e, por isso, complementares? Neste trabalho iconográfico, tal como já tivemos oportunidade de verificar nos textos de geografia, os homens de letras, na sua maioria, humanistas não efectuam uma recepção acrítica e passiva dos textos de antiguidade, estes seriam reintepretados, pelo que se poderia completar a sua escrita e fazer achegas com dados posteriores. Logo o mesmo se faria com os textos recentemente produzidos, sendo também estes colocados à sua análise e interpretação. Este comentário complementar - que assume naturalmente diferentes vertentes e tónicas consoante o intérprete - cria as raízes de um novo horizonte, de um outro estádio de saber. Enquanto os autores portugueses se desligam rapidamente das autoridades, afirmando que se estes cá viessem a todos lhe "meteria confusam e vergonha", no dizer de João de Barros, pois estão confiantes na superioridade dos modernos - atentemos na declaração de Duarte Pacheco Pereira de que os antigos nada souberam -, os intelectuais germânicos manobram ardilosamente o seu discurso, evitando a ruptura. O vivo regozijo pelas novidades coevas não os leva a desautorizar os antigos e a desacreditar a sua versão. Com efeito, na sua perspectiva, o diálogo inicial com o Outro fundamenta-se tanto nas informações das relações de viagens como nas representações dos autores da Antiguidade Clássica. É a mesma atitude traditiva que os leva a aliar notícias recentes com as concepções registadas há muitos anos. Numa ânsia única de reunir o dito e o visto poder-se-iam encontrar alusões a seres fantásticos e estranhos ao lado de povos descritos pelas viagens de descobrimento;30 associados no intuito de alcançar o

30. Heydenwelt vnd irer Götter anfängcklicher vrsprung..., Basileia, 1559.

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verdadeiro conhecimento sobre a realidade humana africana, os dois estratos de informações coexistem, visto que ambas as fontes formam a suma que se visa alcançar. Vejamos como, por exemplo, Sebastian Münster descreve os famosos monstros antropóides na Líbia: "Escreve-se ainda sobre muitos e diversos monstros, que se encontrariam nesta terra; sobretudo algumas gentes que não têm lábios para falar e que, ao contrário, precisam de sinais como os mudos. Alguns só terão um olho na testa, outros não têm cabeça, mas antes têm os olhos no peito, alguns só têm um pé e com este correm mais depressa do que andam as gentes de dois pés."31 Estas informações são retiradas, como o próprio Sebastian Münster afirma, de fontes clássicas. Neste caso, aponta o nome de Plínio, e até fornece as razões explicativas para a existência destes monstros, nomeada-mente, a falta de água. Mas se se recorre aos textos dos autores clássicos para escrever sobre a Líbia, já se começam a aflorar algumas dúvidas expressas no comentário que se segue à descrição dos prodígios: "Para estas maravilhas não existem novas precisas".32 As afirmações dos autores clássicos devem ser perservadas, dada a veracidade e validade das suas informações. E como ainda prevalece a possibilidade de se encontrarem estes seres extraordinários algures em paragens não conhecidas, a autoridade destes escritos não será desacreditada. Enquanto não houver outras informações, eles continuam a formar o primeiro patamar do saber. Descrever a terra inteira, salientando os principais elementos coordenadores da sua configuração geral e a sua composição natural e humana, constituem os objectivos das cosmografias. Estas obras deveriam fornecer ao seu leitor os elementos geográficos da terra e delinear um olhar etnográfico sobre os diferentes povos espalhados pelos quatro continentes. Os conceitos de geografia e história aproximavam-se, significando, a elaboração de uma geografia da terra e simultaneamente a presença de uma geografia cultural compreendida como história da humanidade. Neste sentido, as cosmografias expressam o desejo de reunir o material disponível, a fim de poderem formular uma imagem verdadeira e global do mundo. Só com base em todo o manancial documental se pode erigir 31. "Man schreibt sunst auch von vilen und mancherleien monstris so in diesem land sollen gefunden werden/ besunder daß etlich menschen kein lefftzen haben zu reden sunder brauchen zeiche_~ wie die stummen. Etlich sollen nit mere dann ein aug in der Stirn haben/ etlich haben kein Kopf/ sunder ire augen ston in der brust/ etlich haben nit mere dann ein füß/ unn mit den lauffen sie schneller dann die zweifüsstige gen menschen" Sebastian Münster, Cosmographia, Basileia, 1544, folha dccix. 32. "Für diese Wunder hat man kein gewisse Kundschafft" Idem.

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uma verdadeira descrição do mundo; uma cosmografia deverá ser, antes de mais, uma colecção de informações sobre o mundo, uma enciclopédia do conhecimento. Reconhecendo o peso da herança greco-latina como primeiro alicerce do conhecimento, Sebastian Münster, por exemplo, dedica-se-lhe num movimento de recuperação da verdade. Ao traduzir as obras de Pompónio Mela, Solino e, principalmente, Ptolomeu, não se trata somente de um empenho em realizar um estudo linguístico, mas ainda de uma procura dos fundamentos subjacentes a estes textos. Daí que, ao realizar a sua cosmografia, apresente estes mesmos autores, em especial, Ptolomeu como o alicerce essencial para a compreensão e descrição do mundo. O estudo deste autor fornecer-lhe-á os dados vitais, em que se fundamentava o seu conhecimento e orientava a doutrina da sua cosmografia. A leitura e interpretação das obras da Antiguidade Clássica e Medieval correspondem ainda a uma contínua procura das linhas evolutivas da história da humanidade, apoiando-se, deste modo, nos apontamentos exis-tentes como prova de saber. Entre as páginas da sua cosmografia encontram-se depoimentos de Pompónio Mela, Estrabão, Solino, Plínio, Eusébio, Aristotéles, Heródoto, Plutarco, Santo Agostinho bem como passagens da Sagrada Escritura. Estes autores e escritos constituem os alicerces de fundamento teórico, de instrumento de trabalho e de análise capazes de fornecer uma interpretação acerca do mundo. Apresentar o mundo, bem como cada um dos seus continentes, significa reproduzir o já dito sobre cada uma destas partes do mundo. No caso do continente africano, a sua nomenclatura, os seus limites geográficos e os seus povos serão inicialmente definidos e descritos por Plínio, Ptolomeu, Pompónio Mela, Estrabão ou Diodoro Sículo, autores que assim determinam a natureza e a vida em África. Mas a pouco e pouco a sua autoridade centrar-se-á em grande parte apenas na região norte, nomeadamente os antigos limites deste continente, - onde o reino do Egipto dispõe de um lugar de destaque. Na verdade, as des-crições dos povos africanos, divulgadas pelos navegadores, iriam tornar-se realidade aceite, passando a ser integradas nas enciclopédias existentes. O reconhecimento do continente africano inaugura uma discussão sobre o aspecto dos habitantes, assinalando-se as diferenças consoante as regiões. Assim, na cosmografia editada por Sigmund Feyerabend refere-se que a cor negra teria a ver com a proximidade do sol, isto é, "[...] onde o sol está mais perto é onde habitam os mais negros e, ao contrário, os que ficam mais longe são os mais brancos, pelo que aqui em África mais ou menos na Guiné e na terra dos negros (que se situa entre o Equinócio e o

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Trópico) toda a gente é negra e na terra do Preste João, mesmo por baixo do Equinócio, são mouros amarelos"33 e continua "[...] Mas o que é ainda mais de admirar é que as gentes junto do CABO DE BONA SPERANCHO são totalmente negros e as do STRECHO DE MAGELLANO são brancos e não muito longe do Equinócio sul, sim em toda a América não há algures um negro...".34 Para além desta surpresa o autor iria verificar que os europeus - refere espanhóis e italianos - não escureciam quando viviam nestas regiões, o que o leva interrogar-se sobre a razão para este facto; terá a ver com alguma estrela ou com alguma característica particular desta terra ou terá a ver com alguma qualidade da natureza ou das gentes, ou será de tudo um pouco.35 Sebastian Münster explica ainda que seria o calor do sol que faria que aí existissem "mouros", baseando-se na teoria que afirmava a zona do Equador demasiado quente, pelo que embora fosse possível haver vida humana, os seus habitantes teriam a pele escura.36 Ao longo das diferentes edições, Sebastian Münster vai alterando a sua imagem das gentes africanas. Se inicialmente fala única e exclusivamente de Rizopages, aqueles que comem raízes, ou Trogloditas, em edições posteriores, para além destes, já refere os Azenegues, os "Nigriten" do Senegal, bem como outros povos do reino Gâmbia, do Melli e do Cabo da Boa Esperança. Assim, menciona-se, por exemplo, que os Nigriten do Senegal "não [são] muito ricos; não tem cidades, nem casas bonitas e a razão [disso] é que aí não se encontra nem pedra nem cal",37 enquanto os povos do Gâmbia "seguem a lei momedana e comem no chão como os sarracenos e os turcos. Entre eles não cresce nem vinho nem trigo, cevada

33. "[...] daß wo die Sonne zu neckt aber inen ist/ die aller schwäeßesten wohnen und dargegen/ da Sie am weitesten darvon/ die weissesten seyn solten daß hie in Affrica ungeferlich Guinea/ unnd im Lande der Schwarzen (welche zwischen dem Equinoctial und dem Tropicus ligen) die Leute alle schwarz / und in Priester Johannis Land/ gerad unter dem Equinoctial/ gelbe Moren sind". Sigmund Feyerabend, Cosmografia, Frankfurt/M., 1576, pp. 3-5. 34. "Aber das noch mehr zu verwundern ist so sind die Leute bey CABO DE BONA SPERANCHO ganz schwarz bey der STRECHO DE MAGELLANO sind sie alle weiß ungefehr so weit vom Equinoctial gegen dem Meridien oder Mittag/ ja im ganz America sind niergends keine Schwarz [...]". Idem. 35. Idem, p. 5. Quase textualmente encontramos esta mesma questão na obra de Ortelius, o leva a supor que a cosmografia publicada por Feyerabend se trata de uma edição do Theatrum. 36. Sebastian Münster, Cosmografia, Basileia, 1628, p. 1660. 37. "[...] nicht sunderlich reich [sind]/ sie haben keine Stett/ noch keine hübsche Heuser/ ursach/ man findt da keine Stein noch Kalch...". Sebastian Münster, op. cit, 1588, p. Mccccxvj. Citação que recorda o texto de Laurentius Frisius.

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ou aveia: mas sim milho-miúdo, feijão e ervilhas...".38 Os habitantes do reino do Melli cultivam muito arroz, comem cão, andam nus, seguem a lei maomedana e alguns adoram ídolos".39 Entretanto junto ao cabo da Boa Esperança poder-se-iam encontrar "[...] muitos povos estranhos"40 ainda mal conhecidos. Embora a descrição seja de certo modo sumária e pontual, poder-se-á verificar que existem determinados tópicos que a coordenam. As primeiras referências feitas relacionam-se com o facto de estes povos andarem nus, ou seja, considerações quanto ao aspecto e vestuário depois quanto às casas, interrogando-se se têm cidades, ainda alusões ao trabalho, bem como ao aproveitamento da terra. Este formulário torna-se mais claro e evidente na última edição. Assim, em 1628, referem-se no que respeita à costa ocidental africana e, em concreto, para a Guiné os Jalofos, os Mandigas, os Bijagóis e os Cuamas. A descrição de cada um deste povos não fica, todavia, pelo mero registo das particularidades de cada uma das sociedades africanas, dado que se evidencia com propriedade as suas qualidades, ou seja, a descrição é o retrato do Outro segundo os critérios subjacentes ao Mesmo que o descreve. Os Bijagóis são, deste modo, apresentados como um povo ladrão,41 enquanto os habitantes do reino Melli são considerados inteligentes. "Melli é ainda um reino especial: é rico em trigo, arroz, algodão e marfim, com o que eles negociam. Eles fazem ainda um bom vinho de palmeira. A capital deste reino é Melli, uma vez que as gentes são mais inteligentes do que outros mouros". E continua: "Eles têm os seus templos, padres e professores e foram os primeiros que tomaram a lei maomedana".42 Aqui reside a justificação ao elogio prestado, isto é, precisamente porque conseguem demonstrar uma certa cultura expressa na construção de templos, na existência de padres e professores, bem como na capacidade de transformar a natureza (vinho da palmeira) e de a aproveitar (trigo, algodão), este povo encontra-se num estádio, certamente diferente do dos 38. "[...] halten Mahomets Gesatz/ essen auff der Erden gleich wie andere Sarecenne vnd Türcken. Es wechßt bey ihnne weder Wein/ Weytzen /Gersten noch Habern: aber Hirß/ Bonen vnd Erbsen". Idem, p. Mccccxvj. 39. "[...] zeucht viel Reyß/ essen Hund/ gehen nacket/ halten mahomets Gesattz/ vnnd etlich betten Abgötter an." Idem, p. Mccccxvij. 40. "[...] viel seltzamer Völcker". Idem. 41. Idem, Cosmographia, Basileia, 1628, p. 1662. 42. "Melli ist auch ein sonderbar Königreich: Ist reich an Korn/ Reiß/ Baumwollen unnd Helffenbein/ darmit sie ihren handel treiben. Sie haben ein trefflich guten Wein/ auß de Palmen gemacht. Die Hauptstadt dieses Königreich ist Melli/ da die Leut was kluger sein als andre Moren" Idem. "Sie haben ihre Tempel/ Priester und Professoren/ und sein sie ersten gewesen/ so das Mahometanische Gesetz angenommen". Idem

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povos europeus, mas de possível comparação - e de fácil compreensão. Tal como os europeus, também os africanos realizam um processo evolutivo baseado em várias experiências de apropriação da natureza, transformando-a em cultura. Compreende-se assim que a descrição seja um convoluto da apresentação e enumeração dos valores inerentes ao conceito de cultura. De facto, a cultura de um povo materializa-se, em primeiro lugar, em aspectos primários como vestuário, a construção de casas, ou plantação de cereais, a que se alinham posteriormente elementos como, por exemplo, as armas. Segundo estas características internas poder-se-ia formular, no processo de aculturação, momentos e etapas representativos. Daí, que a apresentação dos povos africanos na Cosmographia sublinhe intencionalmente os diferentes estádios de desenvolvimento, entendidos como imperiosos patamares, no trajecto para a civilização. Mas, no continente africano também se encontrariam sociedades que ainda viviam na animalidade, não podendo, por isso, ser reconhecidos como gentes. É o caso dos habitantes de Borno, sobre o qual se escreve: "O povo aí não tem qualquer religião nem são cristãos, nem judeus nem maomedanos, sobretudo vivem como os animais em comum com as suas mulheres e crianças".43 Um dos elementos oriundos da sua animalidade, seria a falta de religiosidade.44 Estes povos que viviam como animais, sem terem encontrado a espiritualidade chegariam, como se salienta, a ter feições animalescas.45 Um dos exemplos mais representativos oferece-nos Michael Herr que, no seu livro sobre a fauna, alude aos negros africanos que seriam vendidos em Lisboa e, neste contexto, afirma que como animais não se deveriam incluir entre os homens.46 Este formulário descritivo é, simultâneamente, uma definição do Outro. Se alguns dos exemplos referidos no que respeita ao comportamento dos 43. "Das Volck darinnen hat kein Religion/ sind weder Christen/ Juden/ noch Mahometaner/ sonder leben wie das Vieh/ mit ihren Weiberen und Kinderen in gemein." Idem. 44. Esta concepção encontra-se já presente nas obras portuguesas, como, por exemplo, na Crónica dos Feitos da Guiné de Gomes Eanes de Zurara. Veja-se o capítulo 2.2. 45. A comparação a animais é efectuada por diversos autores alemães nas suas relações de viagens, como Andreas Ultzheimer, Warhaffte Beschreibung ettlicher Raysen, Tübingen, 1616, ed. Sabine Werg, Tübingen, Basileia, 1971, p. 118, em que as gentes da costa ocidental africana são consideradas um povo horrível, que afia os dentes tão finos como cães. Michael Herr, Gründtlicher vnterricht/ warhaffte vnd eygentliche Beschreibung/ wunderbarliche seltsamer art/ natur/ Krafft vñ eygenschafft aller vierfüssigen thier..., Estrasburgo, 1546. 46. "[...] unvernüftigen thier und keine menschen gerechnet werden". Michael Herr, Gründtlicher vnterricht/ warhaffte vnd eygentliche Beschreibung/ wunderbarliche seltsamer art/ natur/ Krafft vñ eygenschafft aller vierfüssigen thier..., Estrasburgo, 1546.

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povos ultramarinos seriam julgados de modo compreensivo, outros seriam intepretados como autênticas barbariedades, completamente intolerados. Para se traçar um adequado retrato existem, pois, determinadas regras, determinadas normas por onde se filtra a diferença cultural; como numa balança de um lado apresentam-se as virtudes, no outro prato os vícios. No debuxo deixa-se, consequentemente, transparecer uma certa apreciação e valorização subjacente aos critérios da descrição e caracterização destes povos. O culto dos mortos dos habitantes do reino Bena é, deste modo, compreensível aos olhos do autor: "Quando morre um homem distinto, oferece-se ao morto muito ouro; uma parte recebe o rei, a outra será enterrada com o corpo do morto [...] porque eles acham que o morto precisa desse ouro".47 Enquanto o culto dos mortos dos Buramis se revela uma barbaridade: "Quando o rei morre serão ass assinadas todas as suas mulheres, servos e amigos queridos bem como o seu cavalo preferido e serão enterrados com ele para o servirem na outra vida. Isto também é uso em muitos outros reinos da Guiné. A forma, no entanto, como eles cometem esta barbaridade é ainda mais horrível, pois eles cortam os dedos dos pés e das mãos e picam os ossos durante três horas como num moedor e depois enterram um pau afiado na nuca e isto na presença dos que têm de sofrer a mesma tortura".48 Quanto mais estranha e diferente se apresenta a maneira de ser e viver dos não-europeus, quanto mais difícil se torna compreender o Outro nas suas qualidades humanas. Convém assinalar uma excepção, nomeadamente, na descrição de povos considerados canibais, onde, apesar da clara diferença se deslumbra uma certa familiaridade que resultará talvez do facto de o canibalismo ser um fénomeno desde há muito debatido e conhecido do legado cultural.49 À imagem da costa ocidental juntar-se-á a descrição de uma costa oriental bem diferente, dado que se trata de uma zona civilizada. Na verdade, é

47. "Wann ein fürnemer Mann stirbt/ so wirdt dem todten viel Gold geofferet/ der einen theil nimbt der König/ der andre theil wirdt mit dem todten Leib begraben [...] weil sie meinen der Todte bedörffe dieses Gold." Sebastian Münster, Cosmographia, Basileia, 1628, p. 1665. 48. "Wann diser König stirbt/ so werden alle seine Weiber/ Knechte und liebsten Freund/sampt seinem Leibpferd erschlagen/ und mit ihm begraben/ ihme in dem andern Leben zu dienen. Dieses ist auch in vielen andern Königreich/ in Guinea im brauch. Die weiß aber/ mit denen sie diese grawsamkeit verüben ist noch schrecklicher: dann sie hawen ihnen ehen und Finger ab/ und stossen ihre Gebein gleich als in einem Wirssel/ drey stund lang/ als dann stechen sie ihen hinden zum Nacken ein scharffen stecken hineyn/ und das thun sie in beysein deren/ die gleiche marter auszustechen haben" Idem, p. 1664. Veja-se, p. 1664. 49. Veja-se, p. 1665.

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aqui que se encontram vários reinos todos eles poderosos, como é o caso do rei do Monomotapa, denominado "Imperador do Ouro"50 e também as maravilhosas Terras do Preste João, contribuindo ambos para uma descrição entusiasta e pormenorizada. Tinham-se obtido, finalmente, informações sobre este lendário reino que desde há muito atraía a atenção e a curiosidade dos europeus, não só pela riqueza e poder que se dizia haver nessa terra,51 mas também pela ansiedade e expectativa em relação ao seu povo que se julgava cristão. Um dos aspectos mais centrais e constantes na descrição dos povos africanos está, sem dúvida, relacionado com a sua religiosidade. É o paganismo destes povos, os seus ídolos, a adoração da natureza, as suas cerimónias e usos estranhos que coordenam grande parte da descrição, documentando-se, nos variados relatos, um notório interesse pelas diferentes facetas do sentimento religioso local.52 O encontro entre pagãos e cristãos, entendido como um processo dinâmico,53 oferecia aos gentios africanos a possibilidade de iniciarem uma aprendizagem cultural que adquiria a sua expressão e forma mais claras através da missão apostólica europeia. Na cosmografia munsteriana intenta-se ter em conta cada uma das áreas regionais de África no que respeita ao impacto dos variados diálogos religiosos. Na zona norte do continente já anteriormente conhecida, cristãos e mouros encontram-se irreconciliavelmente frente a frente, sem perspectivas de diálogo, dado que constituem dois assumidos e fortes grupos religiosos. E, se na zona ocidental habitam vários povos que do ponto de vista europeu e cristão aguardam necessitadamente uma ajuda civilizacional, na costa oriental, pelo contrário, os seus habitantes já são considerados representantes de um estádio de civilização mais avançado e, no caso da Etiópia, fazem até já parte da comunidade cristã. É a imagem de uma costa oriental rica, civilizada, frente à de uma costa ocidental quase bárbara,54 que ressalta do esboço regional retido nas 50. "Kayser des Goldes". Idem, p. 1667. 51. Embora se critique que no reino do Preste João não se aproveite totalmente a riqueza dada pela natureza:"und were noch viel reicher/ wann diß Volck nicht so grob/ faul und unver-ständig were zu dem Feldbau und andrer nutzlicher Arbeit", Idem, p. 1671. 52. Veja-se Urs Faes, Heidentum und Aberglauben der Schwarzafrikaner in der Beurteilung durch deutsche Reisende des 17.Jahrhunderts, Zurique, 1981. 53. Sobre a relação pagão - cristão, veja-se Reinhart Koselleck, Zur historisch-politischen Semantik asymmetrischer Gegenbegriff, in: Reinhart Koselleck, Vergangene Zukunft, 2ª ed., Frankfurt, 1984, pp. 211-259. 54. Esta imagem de uma África composta por duas realidades humanas, a costa ocidental e a costa oriental, já se encontra esquissada nas fontes portuguesas, como, por exemplo, em João de Barros, Ásia, Lisboa, 1552, 1 década.

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cosmografias alemãs. Esta certamente uma primeira tentativa de, com base nos dados presentes, transmitir um panorama das várias realidades civilizacionais existentes em África. Na apresentação das diferenças antropológicas dos povos africanos e dos seus estádios de diálogo e de cultura, construiu-se a imagem de um continente que, a partir de então, faria parte da herança cultural mundial. A partir de agora, os habitantes da "New Africa" ordenar-se-iam, segundo a sua identidade, na história da humanidade que até há pouco os não conhecia. Já na edição de 1588 podemos ler: "[...] Ele [Deus] revelou aos homens a grande e larga estrada marítima: Ele distribuiu os homens por toda a superfície da terra e adaptou cada um à maneira de cada terra; pelo que o mouro terá de suportar o calor do céu onde habita e o esquimó ou norueguês terão de sofrer o frio da sua terra, isto é, cada um terá de viver segundo o alimento da sua terra; para alguns não só sem qualquer sabor como ainda prejudicial ao seu corpo. Alguns aqui na nossa terra gostam de beber sangue de cavalo, como fazem os tártaros, ou muitos comem carne de cão, como fazem em África. Quantos não são os povos que não sabem o que é vinho, ou que não tem água doce para beber e ajudam-se com as águas que recolhem do céu. Item quantos não são os povos ao cimo da terra que nada sabem dizer sobre qualquer espécie de cereal e que, pelo contrário, fazem pão de raízes de diferentes ervas ou de peixes da região"55 e continua: "E porque eles estão habituados a viver segundo a maneira da sua terra, vivem assim bem como nós segundo a maneira da nossa terra".56 Sebastian Münster não esconde uma enorme admiração face à diferença cultural agora vinda à luz através das navegações ibéricas. O facto de a humanidade se encontrar dispersa por todo o globo e de cada povo viver de acordo com as qualidades climáticas da sua terra natal surpreenderia,

55. "Er [Gott] hat den Menschen geoffenbart die Straß des grossen vnnd weiten Meers: Er hat die Menschen zertheilt auff dem Boden des ganzten Erdtrichs / vnd einen jeglichen geartet nach der art des Lands darinn erwohnet/ also daß der Mor in seinem Landt tragen mag die Hitz seine Himmels/ vnd der Eyßländer oder Nordwegier erleiden mag die Kelte seines Lands: also mag jeder geleben von der Speiß seines Erdtrichs/ die einem andern nicht allein vngeschmackt/ sonder auch schedlich am leib were. Welcher möcht hie zu Landt Rosszblutt trincken wie die Tartarn thun/ oder Hundsfleisch essen wie etlich in Africa thun? Wie viel sind Völcker die nicht wissen was Wein ist/ ja die nicht süß Wasser haben zu trincken/ die behelffen sich mit den Wassern so sie auffheben von den Thaw des Himmels? Item wie viel sind Völcker auff der Erden die von keinen Korn wissen zu sagen/ sonder Brot machen auß Wurtzlen etlicher Kreuter/ oder auß gedörten Fischen". Sebastian Münster, 1545, folha Mcccxx. 56. "Und die weil sie also gewohnt haben zu leben nach ires lands/ leben sie eben als wol als wir nach art unsern landts." Idem.

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sobremaneira, os cosmógrafos e os seus leitores que, assim, interrogam a magnificência da obra divina e a ordem do mundo.

3.2.2 "Gabinetes de Curiosidades" em Livro Feita a recolha informativa, indispensável para a descrição do mundo nas suas novas dimensões, tornava-se imperioso realizar uma exposição ordenada e adequada do material de acordo com as diferentes áreas do saber. À recolha presidira única e exclusivamente a intenção de compilar tudo o que era novidade, mas durante a aglomeração de informações tinham-se reunido dados de múltiplas origens e diversos conteúdos, pelo que urgia separar, redistribuir e agrupar obrigatoriamente, segundo novos critérios. Isto é: após uma primeira tomada de conhecimento impunha-se sistematizar metodicamente todas as informações segundo a sua natureza e respectiva qualidade informativa; e entre este material escondiam-se importantes e decisivos fundamentos para novas abordagens. A descodificação do verdadeiro significado informativo de cada um dos dados recolhidos contribuiria, na opinião dos homens de letras, indubi-tavelmente para um novo horizonte, uma nova ordem do saber. O contacto com o Outro, com outras naturezas, com outras facetas da humanidade associado a diferentes concepções culturais, exigia, por um lado, uma profunda classificação das observações registadas e, por outro lado alimentava uma discussão e revisão em torno de alguns conceitos fundamentais para o conhecimento e compreensão da humanidade. A descoberta estonteante de novas realidades ofuscara inicialmente a sua dimensão cultural. As fronteiras até agora válidas, perdiam o seu significado, uma vez que só correspondiam ao território de uma pequena parte da humanidade. Os sistemas prevalecentes mostravam-se, deste modo, incapazes de integrar irreflectida e desembaraçadamente a novidade recém-descoberta. O encontro com os africanos, bem como a descoberta e o contacto com povos de outros continentes, põem em causa as concepções antropológicas reinantes. A descoberta da alteridade cultural estimula, deste modo, uma reflexão sobre a origem e a composição humana. O processo civilizacional traçado pelos europeus, segundo critérios por eles institucionalizados, ver-se-ia objecto de uma análise comparativa com o resto do mundo. Tomando conhecimento de muitas outras realidades humanas através das viagens dos Descobrimentos, a cultura europeia começaria um processo de auto-reconhecimento, em que se iria descobrir a si própria, processo este

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que arrancando nos finais do século XVII atingiria o seu esplendor por todo o século XVIII.57 Neste clima de ponderação e de criação de novos quadros culturais reservar-se-ia um lugar privilegiado aos repórteres da novidade. Enquanto o navegador lê os fénomenos directamente no mundo,58 muitos outros terão de recorrer aos textos coetâneos visto que estes lhe proporcionam a possibilidade de observarem o mundo como que através de um binóculo ou de um espelho. "Assim, cavalga [o leitor] valente para o papel, para os escritos de outras pessoas e observa, desta forma, o mundo através de olhos alheios".59 Neste ambiente de curiositas em relação ao orbe terráqueo, a observação e o conhecimento do ser humano constituiem um dos sectores de maior impacte na consciência cultural europeia. As informações sobre outras realidades humanas, sobre diferentes formas de viver, diferentes instituições e diferentes comportamentos, despoletariam um intensivo e largo diálogo civilizacional; a tomada de conhecimento com outras formas de governar, outros credos, outros usos e costumes, outras polícias oferecia não só a possibilidade de conhecer algo de novo e diferente, mas mais ainda: de completar o já conhecido. O confronto com o Outro gerava incondicionalmente um olhar, ou melhor, uma comparação entre a realidade do observador e a outra que se lhe apresenta de novo. E para maior confusão, esta outra não era, por sua vez, uma única; pelo contrário, no orbe terráqueo descobrir-se-iam diversas outras realidades com diferentes facetas e nuances. A comprovação da multiplicidade alertava para um conhecimento de todos povos segundo as suas formas de ser e de estar, numa tentativa de saber, afinal, o que se deveria entender por humanidade. A partir de 1670, os escritos então publicados expressam esta vontade de conhecer comparativamente os diferentes povos do mundo, descrevendo e

57. Veja-se Paul Hazard, Crise da Consciência Europeia (1680-1715), Lisboa, 1971. 58. Por exemplo, Leonhart Rauwolfen, Aigentliche beschreibung der Raiß/ so er vor dieser zeit gegen Auffgang inn die Morgenländer/ fürnemlich Syria, Judiaram, Arabiam, Mesopotaniam, Babyloniam, Assyriam, Armeniam nicht ohne geringe Mühe und grosse Ge-fahr..., Langingen 1581, esclarece que nunca escreveu aquilo que outros já tinham escrito, pelo contrário o seu livro é o resultado daquilo que ele viu, experimentou e observou, pois o mundo é um livro enorme, onde muito se poderá aprender. 59. "So reitet er [der Leser] gleichsam zu Papier/ in den Schriften andrer Personne/ tapfer herum/ und schauet also der Welt/ durch fremde Augen". Comentário dos impressores Johann Andreas e Wolfgang Endter na dedicatória da obra de Erasmus Francisci, Ost- und West- Indianischer wie auch sinesischer lust-und statsgarten, Nuremberga, 1668.

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analisando-os segundo determinados núcleos temáticos. Nestas obras já não é atribuído qualquer significado aos limites geográficos, pois agora são as características culturais de cada povo e região que devem aparecer em primeiro plano. Quer se trate da Abissínia ou da Pérsia, do Congo ou da China, o que importa são as "coisas dignas de relevo",60 ou seja as curiosidades típicas destes reinos de além-mar. Um dos exemplos mais significativos do que poderemos chamar de um estudo histórico-cultural é a obra de Erasmus Francisci Neu-polirter Geschicht-Kunst und Sitten-Spiegel ausländischer Völker.61 Neste seu livro, publicado precisamente no ano de 1670, o autor aborda seis rubricas que classificou como representativas da identidade cultural. A primeira parte é uma mera ilustração de histórias desconhecidas ou de casos notáveis. Surgem, deste modo, descrições de batalhas, cercos, lutas navais ocorridos em diferentes espaços territoriais ou em diferentes épocas históricas. Ao abordar os temas, Erasmus Francisci selecciona aspectos mais representativos e carismáticos da temática em questão - aspectos estes que recolhe na leitura de obras, entre estas portuguesas -,62 método que irá prevalecer por toda a obra. Ao abordar "As ordens da polícia e da guerra, usos e hábitos, virtudes e vícios",63 temática a que dedica a segunda parte do seu livro, Erasmus Francisci apresenta diversas modalidades de hábitos culturais como as formas de cumprimento, os nomes, a hospitalidade, a honra, leis, as penas jurídicas, as diferentes utilizações de moedas ou de organizar o comércio espalhadas pelo mundo. Todos estes núcleos temáticos serão apresentados, ao leitor, segundo exemplos dos diferentes países. A par e par, casos chineses, congolenses, etíopes ou guineenses ilustram as manifestações culturais em questão, isto é, o exemplo vale por si e por aquilo que representa.

60. O conceito curiosidade adquire diferentes significados, segundo os múltiplos contextos em que é utilizado. Tem a ver com observação dos viajantes, a curiosidade dos humanistas e cientistas ou ainda a paixão dos coleccionadores. Veja-se Jean Céard (Ed.), La Curiosité à la Renaissance, Paris, 1986. 61. Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht-Kunst-und Sitten-Spiegel ausländischer Völcker, Nuremberga, 1670. (Um espelho novo e polido da história, arte e usos dos povos estrangeiros) Sobre Erasmus Francisci, veja-se Gerhard Dünnhaupt, Das Oeuvre des Erasmus Francisci (1627-1694) und sein Einfluß auf die deutsche Literatur, in: Daphnis, Zeitschrift für mittlere deutsche Literatur 6 (1977), Livro 1-2, pp. 359-364. 62. O autor cita, por exemplo, para a descrição de uma batalha um exemplo extraído da obra de Francisco Álvares (veja-se, idem, p. 161) e para um cerco refere um caso passado no Congo inserido no texto de Duarte Lopes (veja-se idem, p. 191). 63. "Der Policey= und Kriegs=Ordnungen/ Gebräuchen/ Sitten und Gewohnheiten/ Tugenden und Laster". Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht-Kunst-und Sitten-Spiegel ausländischer Völcker, Nuremberga, 1670, p. 283.

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No terceiro bloco temático, Erasmus Francisci escreve sobre os diferentes credos, exemplificando cerimónias, sacramentos, serviços religiosos não cristãos, até à descrição de edíficios religiosos ou imagens; tudo isto tendo em mente um equacionamento das diferentes vivências religiosas. O facto de as artes e a ciência se cultivarem igualmente em outros países é o assunto de um outro capítulo de Erasmus Francisci, onde enumera os contributos da ciência pagã na medicina, na matemática, na caligrafia, na oratória, na poesia, na música, na pintura, como ainda entre muitos outros ofícios. Os motivos para esta sua análise revela-os o próprio autor no seu prólogo, expondo na primeira frase desde já a questão básica da sua obra: "Conhecer a Deus e a si próprio será em todos tempos a maior ciência".64 E, desde logo, o autor adianta que este propósito só se alcançará quando se toma contacto com outros povos, pois para que se obtenha um verdadeiro e perfeito conhecimento de si próprio é necessário conhecer Outros. Só uma comparação pode detectar as faltas. Fomentando uma simultânea suplantação através do exemplo dado pelo Outro, ou comprovando a rectidão de alguns comportamentos, certifica-se a forma de viver de quem observa. Mas, convém inquirir quem poderiam ser este(s) Outro(s). Quando Francisci fala de Outros, a quem se refere? Com efeito, Francisci coloca, de um lado os europeus-cristãos, que designa por "nós" e, do outro lado os estrangeiros ou, mais concretamente, os povos bárbaros. Estes encontram-se, na sua opinião, na China, no Japão, em África, na Turquia e na Índia. E, mais uma vez, sublinha que conhecer os Outros é mais útil do que a descrição do próprio ou do já conhecido, pois "O que é conhecido ou o que está perto necessita de pouca pesquisa"65 ou "Não saber nada da barbárie é parte da barbárie".66 A observação de povos bárbaros fornecerá, por conseguinte, a seu ver, como que um espelho de advertência, em que as falhas dos povos europeus poderão ser rapidamente reconhecidas, isto é: "aos ingleses a gula, aos franceses a dança, aos italianos a avidez desordenada e abominável, a outros outra coisa".67

64. "GOTT/ und die sich selbsten kennen/ bleibt allezeit die höchste Wissenschaft". Idem, prólogo. 65. "[...] was bekandt/ oder vor der Hand ist, braucht wenig Nachforschens". Idem. 66. "Nichts barbarisches [...] wissen/ist kein geringes Stück/ von der Barbarey". Idem. 67. "[...] den Engelländern das Fressen/ den Franzosen das Tanzen/ den Italiänern manche unordentliche und abscheuliche Begierden, andren anders was". Idem.

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O autor questiona ainda qual o critério inerente à distinsão entre europeus e bárbaros e também bárbaros entre si. Algumas reflexões levam-no a afirmar, que o factor de apreciação estaria no que ele denomina de artes, entendidas como faculdades humanas capazes de transformar a natureza e de a tornar útil. Os europeus seriam aqueles que naturalmente "triunfaram sobre todos os outros nas ciências e artes",68 e entre os povos cristãos seriam os alemães que ocupariam um lugar particular, nomeadamente, na pintura. Francisci prossegue afirmando, que o domínio das artes destruiria a selvajaria, de forma que seria impossível encontrar alguém que fosse, ao mesmo tempo, selvagem e conhecesse as artes. Entre estes dois estádios, selvajaria e domínio das artes, existiriam, contudo, estações intermédias resultantes do processo histórico, a que cada povo estaria submetido. As artes seriam, deste modo, o produto da realização de experiências contínuas, determinando, por isso, o tipo de estádio atingido. Encontrar-se-iam, por conseguinte, povos que quase "poderiam competir o [seu] mérito com os europeus".69 Aqui seriam de referenciar os povos orientais, especialmente, a China e o Japão, uma vez que "encontraram-se também nos seus reinos muitas coisas, sobre as quais nós ouvimos com admiração".70 Mas, em contraposição, saber-se-ia de muitos outros povos, cuja relação com a natureza seria pouco diferente da dos animais, visto que só tinham uma "uma certa ordem de polícia"71 e "algumas artes, bem poucas e rudes",72 que lhes permitiam minimamente alimentarem-se e protegerem-se. Além disso, viveriam com falsos serviços religiosos e sacríficios ao diabo sem conhecerem a palavra de Deus. Após a recolha de exemplos e da respectiva comparação, Francisci chega à conclusão, de que os europeus tanto no seu contacto e aproveitamento da natureza, como no diálogo com Deus, se encontram numa posição superior à dos bárbaros. Vista como o caminho da humanidade num diálogo frutificante com a natureza, a cultura seria um processo de aprendizagem e de aperfeiçoamento cultural que cada povo trilharia consoante as suas capacidades e interesses; e, a seu ver, os europeus tinham alcançado nesta marcha cultural uma posição incomparável.

68. "[...] mit Wissenschafften und Künsten über alle andre/ triumphiren" 69. "[...]mit den Europaeischen/ um den Vorzug streiten können" Idem. 70. "[...] hat man gleichwol auch/ in ihrem Reiche/ viel Sachen gefunden/ davon wir gleichfalls/ nicht ohne Erstaunung hören" Idem. 71. "[...] gewisse Policey-Ordnung". Idem. 72. "[...] einige/ wiewol wenige und grobe Künste". Idem.

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Na obra de Erasmus Francisci já não se expõe em primeiro plano a novidade/ a diferença, mas antes as repercussões na consciência cultural europeia advindas do contacto com a alteridade civilizacional. Para Fran-cisci, ao encontrarem e dialogarem com o resto do mundo, os europeus obtiveram a comprovação das suas experiências históricas; tal facto assegura-lhes a certeza de pertencerem a uma cultura de destaque. Este seu intento de formular uma história da humanidade fundamenta-se num vasto número de relações, que o autor cita, quer no seu texto, quer nas suas notas de rodapé. Na apresentação exemplificativa dos povos africanos e asiáticos afluem entre os textos mencionados, nomes portugueses, dado que também aqui estas obras se apresentam como uma das fontes vitais. Verificamos, assim, que também neste estudo se manifesta, a importância do texto de Francisco Álvares para a aquisição e selecção dos dados relativos à Etiópia, ou ainda o texto de Duarte Lopes para o reino do Congo. As obras portuguesas estão, assim, também presentes na fase de classificação do material; a sua riqueza informativa significa um saber indispensável para o banco conceptual a erigir. O empreendimento de novas abordagens só seria possível em face da recolha anteriormente realizada em obras, como as relações de viagens, onde entre informações de diversa natureza, desde dados referentes a usos e costumes, a instituições até então desconhecidas, ou a actividades comerciais inovativas, se poderiam encontrar exemplos ilustrativos, respostas elucidativas consoante as temáticas ou as interrogações estabelecidas. Nestas obras estavam armazenados os acontecimentos e/ou conhecimentos necessários para a presente organização temática. Já anteriormente, nomedamente em 1663, Erasmus Francisci iniciara este seu método de recolha selectiva de informações. Na obra Die lustige Schau= Bühne von allerhand Curiositäten73 aponta ao longo de três volu-mes "descobertas estranhas, histórias extraordinárias e discursos informativos e educativos"74 sobre assuntos históricos políticos e institucionais. Na terceira parte, em que relata sobre os monumentos religiosos e espirituais, peregrinações, entre outros, acontecimentos, informa sobre o poder e o vestuário de povos não-europeus, em especial, dos potentados africanos.

73. Erasmus Francisci, Die lustige Schau= Bühne von allerhand Curiositäten, 3 vols, Hamburgo, 1663-1671-1673. 74. "[...] sonderbare Erfindungen/ merckwürdige Geschichte/ Sinn= und Lehr= reiche Discursen". Idem, prólogo.

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Mas não é unica exclusivamente nas obras de Francisci que encontramos este propósito de reunir apaixonadamente dados sobre a realidade humana. Também o escritor e historiador Eberhard Werner Happel pretende elaborar uma colecção de "coisas estranhas" e extraordinárias. Na verdade, e uma vez que o mundo está cheio de matéria curiosa, Happel considera fundamental debruçar-se sobre as origens. Daí o lema: "Feliz é aquele que é capaz de reconhecer as origens das coisas" que coloca sob as Gröste Denckwürdigkeiten der Welt oder sogenannte Relationes Curiosae.75 Ao longo de vários volumes, Happel reune histórias, exemplos, verdadeiros testemunhos das curiosidades e particularidades da vida humana num único intento: recolher exemplos da realidade humana. Daí que, ao longo da sua obra, fale do sistema jurídico na Guiné e na Etiópia; da linguagem dos hotentotes; da escravatura em África; das plantações de açúcar na ilha de S. Tomé; da monarquia do Preste João, das diferentes cores de pele dos povos africanos ou da alimentação em Angola, para citar alguns exemplos respeitantes ao continente africano. De exemplo em exemplo, Happel constrói a sua galeria de curiosidades. Apostando no benefício que a sua obra poderá dar aos seus leitores, o autor chega mesmo a afirmar que estes exemplos e histórias ajudariam a que homens, que vivessem como animais irracionais, se tornassem verdadeiros seres humanos. Em 1688, Happel publica o seu Thesaurus Exoticorum oder eine mit Außländischen Raritäten ung Geschichten wohlversehene Schaß-Kammer,76 que, como se menciona no título, intenta apresentar um manancial documental da realidade extra-europeia ou exótica pelo que destaca "[...] as nações asiáticas, africanas e americanas dos persas, indios, chineses, tartaros, egípcios, abissínios, canadianos, da virginia, da florida, mexicanos, peruanos, chilenos, magalânicos e brasileiros etc. Segundo os seus reinos, polícias, vestuários, costumes e serviços religiosos".77 Happel sublinha decididamente, neste seu escrito, o carácter inovador das nave-gações marítimas europeias; graças a estas ter-se-iam explorado novas zonas do mundo que, como Francisci, considera de vital importância para

75. E. G. Happel, Gröste Denckwürdigkeiten der Welt oder sogenannte Relationes Curiosae, 5 vols, Hamburgo, 1683-1691. "Glückselig ist der Mensch von jedermann zu nennen/ Der auch den Ursprung kan der Dinge recht erkennen". 76. Happel, Thesaurus Exoticorum oder eine mit Außländischen Raritäten ung Geschichten wohlversehene Schaß-Kammer, Hamburgo, 1688 77. "[...] die asiatische, africanische und americanische Nationes der Perser/ Indianer/ Sinesen/ Tartarn/ Egypter/ Abysiner/ Canadenser/ Virgenier/ Floridaner/ Mexicaner/ Peruaner/ Chilenser/ Magellanier und Brasilianer, etc. Nach ihren Königreichen, Policeyen, Kleydungen/ Sitten und Gottes= Dienst."

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o conhecimento humano. Assim, defende a necessidade de conhecer de-talhada e pormenorizadamente estes povos estrangeiros que a empresa marítima deu a conhecer em terras nunca vistas. Assim, também ele é da opinião que se deveriam analisar exaustivamente os usos e costumes destes outros povos. E isto mesmo quando forem bárbaros, pois como nos diz, muitas vezes, "debaixo da muita erva selvagem dos usos e costumes horríveis e cruéis poder-se-á encontrar uma planta virtuosa e saudável; entre rudes espinhos poderia-se encontrar rosas graciosas e bem cheirosas, que nos fazem a nós europeus zelosos de tão elogiosas qualidades".78 Happel exprime uma profunda admiração pelas viagens de Descobrimentos, considerando a chegada dos europeus ao Oriente como um dos mais importantes eventos da humanidade. Eis as suas palavras: "Meu Deus! Mas que coisa estranha e maravilhosa avistaram os europeus na sua primeira entrada na China e no Japão".79 E, neste sentido, considera que, para além da descrição e apresentação do mundo, não se deverá desprezar o comunicado dos famosos descobridores. Com este prestimoso depoimento poder-se-ia constatar que, mesmo entre os povos mais selvagens, se testemunharia uma certa inteligência ou civilização, e que mesmo, sob uma maneira de viver e estar simplória, se escondia alguma polícia.80 Happel pretende assim, com esta sua obra, esquissar um "Schaß= Kammer Außländischer Raritäten und Geschichten", um tesouro de curiosidades, raridades e histórias estrangeiras. Com a ajuda da literatura de viagens, como refere no seu prólogo, Happel anota os usos e costumes do Oriente, da África e da América. Aos coleccionadores de informações, que se deram ao trabalho de descrever todos estes dados nas suas relações de via-gens, o entusiasmado e deleitado escritor não pode deixar de expressar um profundo agradecimento.

78. "[...] unter dem häuftigen Unkraut solcher bissen und grausahmen Gebräuchen und Sitten auch manche gesunde Tugend=pflanze; unter den rauhen Disteln/ etliche lieblich riechende Rosen antreffen/ welche uns Europeer eyferig machen zu einigen lobwürdigen Eigenschafften/ die man an den Unglaübigen rühmet". 79. "Mein Gott! Was für setzahme wunder=Dinge erblicketen die Europeer bey ihm ersten Eintritt in Sina und Japan?" 80. "Nicht weniger zu schätzen/ daß neben Beschreibung und Vorstellung der Welt/ die berühmte Erkündiger derselben zufordert den Gottes=dienst/ und Regierung aller Volcker auß sonderbahrer Erfahrung uns mitgetheilet/ und wie auch bey den wildesten eine gewisse Arth der Klugheit und Civilität zu finden sey/ so daß/ obgleich ihr leben und Wandel uns umgereimbt und wiedersinnig vorkommet/ sie gleichwohl in ihren Handlungen und vornehmen/ sonderlich aber in ihrer Policey und Staats=Verrichtungen nicht gemeine An-zeigungen ihrer Vernunft=Un=wissenheit an sich vermecken lassen".

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Com um interrogatório previamente elaborado, Happel percorre o mapa-mundi de região em região; após algumas notas introdutórias sobre a situação geográfica, prossegue abordando o aspecto fisionómico dos habitantes, a alimentação, o vestuário - por vezes refere-se às armas utilizadas-, o casamento, as relações entre o homem e a mulher, tecendo ainda algumas informações sobre a educação dada às crianças, a morte, onde alude às cerimónias fúnebres, o luto dos familiares, a religião e, por fim, o governo do país em questão, referindo a sucessão dinástica e a justiça como últimas alíneas deste interrogatório. Seguindo este esquema, Happel anota os usos e costumes de cada região, quer dizer, a polícia de cada povo. Com efeito, este questionário tem por mira aplicar uma norma que ajudará no conhecimento de cada povo e, mais, na apreciação do seu estádio civilizacional. E ao instaurar um esquema interrogador, o autor estabelece o seu próprio modelo cultural como padrão. Nesta caminhada para a civilização, Happel encontra várias plataformas: ao apresentar um mouro da Guiné, escreve "[...] andam completamente nus, sem que usem nem calças nem meias81 e acrescenta "Outros que tem um pouco mais de vergonha ou que são mais civilizados usam um pequeno pedaço de um lenço enrolado que lhe tapa metade do corpo.82 Gostaríamos de salientar dois aspectos, neste seu depoimento, por um lado, a apreciação de que os íncolas da Guiné andam nus é sublinhada pelo comentário, de que nem vestem calças nem meias, por outro lado destaca-se que outros teriam mais maneiras - mais civilizado - pois usam pelo menos um lenço que em parte os tapa. É interessante realçar que a descrição feita inclui desde já uma reflexão resultante da comparação com a norma que é conhecida. No questionário sobre o vestuário existem determinadas concepções sobre o que é adequado, pelo que não se encontrando um sinónimo responde-se pela negativa: nem calças ou meias. Mas a diferença - andar nu - é tão díspare ao padrão, que se faz a observação apreciativa - outros usam o lenço. Com base neste exemplo, podemos verificar que o autor procura detectar a existência de vários estádios de polícia reflectidos segundo a norma conhecida, a norma europeia ou, neste caso, a alemã. Exemplos como este encontram-se ao longo de todo o texto, fazendo parte da apresentação da outra realidade, que subentende simultâneamente a sua apropriação e integração no horizonte conhecido.

81. "[...] gehen nackt und bloß [...] tragen weder Hosen noch Strümpffe" Idem, p. 62 82. "Andere/ die ein wenig schamhafft= und Sittiger sind/ haben nur ein kleines Stück von groben Tuch umb dem Leib geschlagen/ daß derselbe nur halb bedeckt ist". Idem, p. 62.

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A obra de Happel é produto de uma época amante das colecções como ainda podemos comprovar em outros escritos coevos.83 Assim, a sede de coleccionar84 leva a que se possam recolher histórias,85 os principais acontecimentos do mundo,86 material ou diversas mercadorias,87 fenómenos da natureza,88 dinastias ou estados89 provérbios e porque não exemplos da maneira de ser e estar de povos não-europeus.90 O encontro com outras culturas constitui um poderoso estímulo de reflexão e rectificação de ideias feitas no decurso dos séculos anteriores. A cultura não era então um simples produto histórico, como se tinha pensado, mas sim um produto histórico de conteúdo variável no espaço e

83. Happel publicou mais tarde uma obra geográfica, intitulada E.G. Happel, Mundi mirabilis Tripartiti, Oder wunderbaren Welt, in einer kurzen Cosmographia fürgestellt, Ulm, 1708. 84. Sobre as colecções e os gabinetes de curiosidade, veja-se os estudos de Renate von Busch, Studien zu deutschen Antikensammlungen des 16. Jahrhunderts, Tübingen, 1973; Jill Bepler (Ed.), Barocke Sammellust, Die Bibliothek und Kunstkammer des Herzogs Ferdinand Albrecht zu Braunschweig Lüneburg (1636-1687), Wolfenbüttel, 1988; Hermann Kellenbenz, Augsburger Sammlungen, in: Welt im Umbruch, Augsburg zwischen Renaissance und Barock, vol. I., Augsburgo, 1980, pp. 76-87; Monika Kopplin, "Was frembd und seltsam ist", Exotica in Kunst- und Wunderkammern und "Amoenitates exoticae", Exotische Köstlich-keiten im Zeitalter des Barocks, in: Exotische Welten, Europäische Phantasien, Estutgarda, 1992, pp. 296-345. 85. Como por exemplo, Georg Philipp Harsdörffer, Der Grosse Schau-Platz jämmerlicher Mord-Geschichte, Hamburgo, 1656 e Georg Philipp Harsdörffer, Der Grosse Schaupaltz Lust- und Lehrreicher Geschichte, Hamburgo, 1664. 86. [Hiob Ludolf], Allgemeine Schaü= Bühne der Welt/ oder: Beschreibung der vornehmsten Welt= Geschichte..., Frankfurt/ M., 5 vols., 1689-1731. 87. Veja-se, Georg Niclaus Schuß, Neu=eingerichtete Material= Kammer: Das ist Gründliche Beschreibung aller fürnehmsten materialen und Specererey so wohl auch andrer guter ung gemeiner Waaren..., Nuremberga, 1672. Como, por exemplo, Habitvs Praecipvorvm popvlorvm... Trachtenbuch: Darin fast allerley vnd der fürnembsten Nationen/ die heutigs tags bekandt sein/ Kleidungen/ beyde wie es bey Manns vnd Weibspersonen gebreuchlich/ mit allem vleiß abgerissen sein/ sehr lustig vnd kurßweilig zusehen, Nürnberg 1576 ou Abraham de Bruyn, Omnium poem gentivm imagines, s.L. [Colónia], 1577. 88. Adam Olearius, Gottorssische Kunst=Kammer / worinnen allerhand ungemeine Sachen/ so theils die Natur/ theils künstkiche Hände hervor gebracht und bereit, s.L., 1674. 89. Friedrich Leutholf von Frankenberg, Der Jztregirenden Welt große Schubühne/ auf welcher die izziger Zei in blühle stehenden Keiserthümer/ Königreiche/ Frei Fürstenthümer/ und Frei=Staaten/ nach deren allerflits Uhrsprunge..., Nuremberga, 1675; Francisco Nigrino, Schauplatz der gantze Welt/ oder Summarische Vorstellung aller Königreiche/ Länder/ Inseln/ Städt und Vestungen..., Nuremberga, 1678. 90. Aegidium Albertinum, Der Welt Tummel..., Munique, 1612, e [Tomaso Garzoni de Bargnacavallo], Piazza Vniversale, das ist: Allgemeiner Schauwplatz/ oder Marckt/ vnd Zusammenkunst aller Professionen/ Künsten/ Geschäfften/ Händlen vnd handtwercken/ so in der ganßen Welt geübt werden..., Frankfurt, 1619 e 1659; esta última edição com ilustrações do conceituado artista e gravador Jobst Amann.

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no tempo. Daí que se procurem as condicionantes explicativas e intervenientes no progresso da realidade histórica. O encontro e conhecimento de diversos tipos de sociedades e culturas exigem razões explicativas filosóficas convincentes. Como vimos, Erasmus Francisci responde a esta questão afirmando serem as artes que condicionam o desenvolvimento de um povo e que põem em marcha a motricidade histórica. De degrau em degrau - formula-se frequentemente a imagem de uma cadeia ou escada - o homem será cada vez mais capaz de tirar partido da natureza e de a transformar para seu próprio benefício. É, por conseguinte, um processo de aprendizagem, de acumulação de conhecimentos que coordena o desenvolvimento cultural de um povo. Este facto explicaria a coexistência de diferentes sociedades em diferentes momentos da sua caminhada da barbárie para a polícia. Já, na obra de Sebastian Münster, tinhamos aferido que a apresentação de outros povos se subordinava a determinados critérios explicativos e orientadores na procura e definição de cultura. Sebastian Münster chega a afirmar que cada país viveria segundo a região climática que habita. Esta seria igualmente uma ideia muito defendida, em especial, por autores franceses, já desde meados do século XVI. Com efeito, os letrados demarcavam uma influência climática nas diferenças culturais.91 Este relativismo cultural, em que o desenvolvimento de uma sociedade dependeria da situação geográfica teria muitos adeptos, entre eles, o conceituado filósofo Jean Bodin. Na sua opinião, o clima mais quente ou mais frio influenciaria indubitavelmente o temperamento de um povo, pois determinaria uma maior ou menor actividade do intelecto.92 Esta sua opinião seria criticada, por exemplo, por Johan Gottfried Meister93 que, tal como Francisci ou Happel, defende ser a educação, o contacto com a família, as conversas o elemento decisivo para a formação de "un bon esprit". Enquanto uma tese considera que o homem é o construtor da sua própria existência, pois tem as capacidades necessárias para através de um processo educativo alcançar a cultura, a teoria do clima vê o homem deter-

91. Ver Christophoro Besoldo, De natura Popvlorum, eisvsqve pro loci positu, temporisq decursu variatione, Tübingen, 1619. 92. Jean Bodin (1530-1596) formula a sua tese política e antropológica em Les Six Livres de la République, Paris, 1576. Cf. Margaret T. Hodgen, Early Antropology in the Sixteenth and Seventeeth Centuries, Philadelphia, 1964, pp. 275-329. 93. Veja-se, em crítica a Jean Bodin, a obra de Johan Gottfried Meister, Unvorgreiffliche Bendancken von Teutschen Epigrammatibus, in deutlichen Regelen und annehmlichen Exemplen/ nebst einen Vorbericht von dem Esprit der Deutschen, Leipzig, 1698, p. 2.

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minado, desde o início, por condições e factores exteriores que coordenam o seu futuro.94 Em ambas as teses constatamos, todavia, a tentativa de encontrar uma base explicativa para as diferenças culturais existentes entre os povos da terra. Da diferença parte-se à procura das características similares na expectativa de compreender os horizontes do saber e de tecer uma linha evolutiva da humanidade. De facto, autores como Erasmus Francisci e Eberhard Werner Happel intentam discernir e valorizar as manisfestações de cada paisagem cultural, apresentando lado a lado exemplos de como um povo come, se veste, guerreia, constrói, crê, adora, administra, castiga e educa no intuito de detectar, na diferença, vectores de similitude cultural. Encontrados os diferentes estágios do processo evolutivo para a civilização, seria possível reconstruir a cadeia cultural e integrar os povos não-europeus na história mundial. Um dos processos mais utilizados para a traçar será estabelecer paralelos com a antiguidade e com os primórdios da história europeia. Com efeito, no início do mundo também os povos andariam nus, muitos, entre eles, os germanos teriam sido canibais e incineravam os seus mortos, pelo que não seria de admirar encontrar este uso entre os índios.95 Assim antigamente havia os antropófagos agora os cafres; e os hotentotes passariam a ser os trogloditas do século XVII, pois simbolizavam um povo ainda nos inícios da passagem da selvajaria para a cultura, tal como os trogloditas na Idade Clássica.96 Ao recolher e coleccionar os usos e costumes dos povos da terra, os eruditos reflectem sobre a condição humana, bem como sobre as etapas a percorrer para atingir a civilização; e a norma para se alcançar o cume deste caminho é, na opinião dos autores do século XVII, a europeia.

94. Esta tese viria ainda a ser defendida por Montesquieu. Sobre este tema, veja-se "Die Herrschaft des Klimas und die Beherrschung der Welt. Montesquieus Antropogeographie. In: Karl- Heinz Kohl, Entzauberter Blick. Das Bild vom Guten Wilden, Frankfurt/ M., 1986, pp. 109-120. 95. Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht= Kunst- und Sitten= Spiegel ausländischer Völcker, Nuremberga, 1670, p. 1520 defende esta opinião. 96. Veja-se, por exemplo, Des Alt- und Neuen bekandten Welt=Kräyses Abbild= und Beschreibung nach Anleitung der von Hn. Johann Strubio verfertigter und von Hr. Joahnn Bunone erleiterter, Frankfurt, 1694, pp. 135-137.

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3.3 Deus e as Crenças Alheias O contacto com as culturas além-mar alimentaria, ao longo dos séculos XVI e XVII, um debate intensivo sobre a vida religiosa. Divulgando variadas vertentes e dimensões das temáticas anteriormente debatidas e inaugurando profícuas e novas discussões no seio da comunidade religiosa europeia, a descoberta de outros seres considerados supremos requeria um estudo detalhado e atento. Este novo e grande caudal de conhecimentos provocariam, com efeito, entusiasmo e confusão. Entusiasmo porque o corpo novo de informações vinha substituir as noções avulsas e deturpadas sobre o hieratismo religioso; perturbação porque a nova matéria não cabia dentro dos quadros da teologia tradicional. A procura do verdadeiro credo, do verdadeiro Deus via, com os novos povos, alargado o seu imensurável horizonte de reflexão. O conhecimento de outros povos e culturas implica necessariamente - como já tivemos oportunidade de testemunhar - um reconhecimento e uma apreciação dos sentimentos, opiniões e práticas religiosas. A descrição e apresentação de um povo, de uma cultura significa assim compreender qual o seu comportamento religioso: será que conhecem um ente supremo como causa, fim ou lei universal? E, se nele crêm como o reconhecem e o caracterizam? Mas se não acatam a um deus, quais então os preceitos ou formas de adoração? E a que ídolos ou elementos da natureza? Quais as cerimónias rituais que praticam- se é que as têm? Conhecem o cargo de representantes religiosos encarregues de assegurar a presença e a continuidade do serviço religioso? E igrejas, também constroem? Ou será que existem locais sagrados similares? Relacionado com o espírito hierático surge o comportamento perante a morte e a natividade; como enterram os seus mortos, ou melhor, quais os sacramentos que conhecem e os ritos de graça que professam. Estas e muitas outras questões deveriam ajudar, assim se defendia, a enunciar e a descrever a cultura de um povo, bem como a discernir sobre o relacionamento dos Outros com o Criador de todas as coisas.

3.3.1 Um Desafio ao Cristianismo A vasta e larga proliferação de informações sobre outras culturas e as suas respectivas religiões teve, na verdade, o seu maior impacto ao longo do século XVI. Um caudal de dados recolhidos nos mais remotos e

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longínquos países chegariam diariamente à Europa através dos vivos relatos dos viajantes. Os depoimentos destes repórteres da novidade davam assim a conhecer que a comunidade seria muito maior do que se conhecia até então pelo que rapidamente surgem iniciativas para conhecer pormenorizadamente os povos recém-descobertos nas suas formas de viver e de ser. Apesar de assumidas diferenças na prática religiosa, os teólogos defendiam que os homens encontrados além-mar pertenciam à comunidade cristã, pois também eles seriam filhos de Deus. Assim, a surpresa de novos irmãos espalhados pelo globo e mais, o espanto de que Deus só agora os tenha dado a conhecer, entusiasmava, sobremaneira, os cristãos; a abertura do mundo era, na sua opinião, um verdadeiro milagre.1 As viagens marítimas permitiriam, pois, conhecer a obra divina na sua completa dimensão e não havia dúvidas de que o Criador decidira resolutamente deixar partes do mundo desconhecidas até à actualidade. Este facto, sem dúvida, de fabulosas ressonâncias era, para os letrados coevos, um motivo de grande regojizo. A seu ver, conhecer a obra divina, tal como ela agora se oferecia, surgia como um irregressível desafio a que dificilmente se puderia ficar indiferente. Conscientes de que não se trataria apenas de um reconhecimento de novas terras e novas gentes, buscam o confronto com as diferentes formas de viver e de crer, visto que muitos dos povos recém-descobertos apresentavam sintomáticas diferenças em relação ao cristianismo. Sem dúvida tal facto não seria uma novidade para os cristãos que, desde há muito, viviam em aberto confronto com os prosélitos de Maomé, mas o testemunho da existência de muitas outras formas religiosas ou de populações que nem sequer conheciam um ser supremo provocava naturalmente grandes disputas no meio cultural e religioso europeu. Assim, e considerando-se muito mais produtivo e útil conhecer este caudal de novas informações, que uma mera interna reflexão sobre o cristianismo,2 fomenta-se um estudo aturado e atento dos diferentes ritos e cerimónias dos povos ultramarinos. Mais defende-se o directo contacto com as outras vivências religiosas, os outros credos e ritos, no intento de assim saber distinguir, de facto, falsos de verdadeiros ritos, de saber definir falsos serviços religiosos ou de salvar a verdadeira

1. Jobst Ruchamer expressa a sua surpresa no prólogo da obra Newe unbekanthe landte (Nuremberga, 1508) ao exaltar que se tinham descoberto povos totalmente desconhecidos da cristandade. Ao rei português seria de mostrar grande respeito por esta empresa marítima. 2. Veja-se, por exemplo, o prólogo de Simon Grynaeus, Die New Welt, Estrasburgo, 1534.

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igreja dos malefícios do diabo. Esta a via que os conduziria a uma fortificação da verdadeira religião.3 A ambicionada tentativa de encontrar e formular o verdadeiro credo manifesta-se em duas atitudes: uns debruçam-se arrebatadamente na pesquisa das origens da religião cristã, outros na análise e ponderação sobre povos pagãos recém-descobertos. No discernimento em torno do hieratismo religioso destaca-se que a religião cristã teria as suas origens no credo pagão. Como se poderia então definir a verdadeira religião, sem em primeiro lugar ponderar sobre este intrincado e enleado passado? Aos olhos dos contemporâneos impunha-se uma profusa reflexão teológica sobre a história pagã, pois, sem este reconhecimento dos primeiros passos do credo cristão, dificilmente se poderia compreender e propagar a verdadeira religião.4 Se alguns teólogos se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura, procurando encontrar nela os exemplos, as concepções de Deus, as leis do paganismo e da idolatria, outros iriam procurar, nas relações de viagens recentemente publicadas, os testemunhos nelas recolhidos sobre os gentios de além-mar, todos, sem dúvida, numa busca de argumentos e factos necessários para o debate sobre o paganismo e a religião cristã. Com efeito, este anseio teologal convoca à colheita de documentação. Isto é: reaviva-se o interesse por autores clássicos, grandes informadores dos primeiros tempos do cristianismo (ou mesmo de antes da implantação do credo cristão), ao mesmo tempo, que os escritos dos nautas se revelam valiosas compilações de material das gentes de além-mar. Neste sentido, a teologia cristã dever-se-ia confrontar até mesmo com o grande inimigo: Maomé. Embora Maomé fosse um adversário de Cristo não se poderia deixar de conhecer as suas ideias e pensamentos, pois também fora Deus que lhe dera essa inspiração. Assim argumenta Martinho Lutero quando defende a "utilidade" de estudar atentamente os escritos do grande inimigo do credo cristão. Tomando esta posição, e mesmo sabendo ser arrevesado, senão improvável, convertê-lo à palavra de Deus,5 Lutero, no intuito de conhecer convenientemente o pensamento doutrinal maometano, verte o Corão para o alemão. Conhecer a história da igreja constitui então para os cristãos, uma tarefa de prioridade, um dever imprescindível. Segundo Philip Melanchthon está

3. Este o fim expresso na obra de Johan Vives, Wahrhaftige Bestätitung des chrislichen Glaubens..., Basileia, 1571. 4. Veja-se, neste contexto, Philipp Melanchthon, Von der Kirchen/ vnd alten Kirchenlerern, (Verdeutscht durch Justus Jonam), Wittenberg, 1540. 5. Verlegung des Alkoran. Verdeutscht durch Martim Luther, Wittenberg, 1542, prólogo.

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fora de dúvida que qualquer homem racional reconhece a indelével uti-lidade da ciência histórica - na área de história religiosa - no esclarecimento dos primórdios e desenvolvimento do credo cristão.6 Redigir e esquissar a história da igreja cristã significa, portanto, para os autores coetâneos, narrar sobre os tempos pagãos, mormente, sobre o papel dos judeus na história do cristianismo. Daí que alguns autores sublinhem peremptoriamente três etapas no diálogo com o Omnipotente: a primeira em que os pagãos ainda não tem qualquer luz de Deus, apenas da natureza e de um ser supremo, depois os judeus que já teriam alguma luz, através da Sagrada Escritura e, por fim, a dos cristãos que, para além da luz da natureza e do Criador, conhecem a grande luz de Cristo".7 Defendendo tais doutrinas teológicas, os homens de letras germânicos recorrem ao Antigo Testamento em busca de exemplos claros e elucidativos da aurora da cristandade. Este livro sagrado, revelador da lei original, ensinar-lhes-ia as vias a trilhar na esteira de Cristo. Mostrando, lado a lado, fé e descrença, o Antigo Testamento daria a conhecer o Bem e o Mal. Enquanto, no evangelho de Moisés, Deus revelava aos homens os seus mandamentos, nos livros dos profetas plasmavam as manifestações de idolatria e actos pecaminosos. Uma leitura atenta e cuidada deste primeiro Livro conduziria, sem dúvida, à origem da revelação divina. E neste exercício de análise e reflexão, os cristãos seriam levados a questionar-se sobre o que os distinguia dos cristãos das primeiras horas, em que ainda buscavam Deus. A resposta encontrá-la-iam no Novo Testamento. Cristo feito homem viera ao mundo trazer a salvação; esta a Boa Nova que os Apóstolos levariam a todo o mundo. A definição de pagão, um importante aspecto no debate sobre o verdadeiro credo, não está, no entanto, apenas relacionada com o passado cristão. Com efeito, o conceito de paganismo inclue ainda todos os indíviduos que

6. "Es ist kein Zweiffel/ dz alle vernünftige Menschen selbs wol verstehen/ auch bekennen vnnd sagen müssen/ daß es hoch nötig sey/ Historien aller vnd jeder Zeit flüssig zu erforschen/ vnd eigentlich/ so viel müglich ist/ zu wissen/ Fürnemlich aber die Kirchen Historien/ vnd nachmals auch/ wie die höchste vnd gewaltige Weltreich im Menschlichen ge-schlecht ordentlich auff einander erfolget seyen" Newe Volkommene Chronica Philipp Melanchtonis, Frankfurt, 1569, p. 1562. Sobre o conceito de história, veja-se o próximo capítulo. 7. "[...] die Heyden hatten kein ander Liecht von Gott/ dann nur das jenig so von der Natur vnnd vollkommenheit der Geschopffen vnnd Wercken Gottes [...] Die Juden hatten ein schön Liecht von Gott/ welches auß der Schrifft [...] Christen aber haben neben dem Liecht der Natur/ vnd Geschöpffen Gottes/ das groß helle Liecht von Gott durch Christum". J. Jacob Grasser, Ecclesia Orientalis et Meridionalis, Eigentliche Beschreibung der Religions artickeln/ darauff die Christen in Asia vnd Africa/ vnten dem Türcken ...halten, Estrasburgo, 1613, prólogo sem numeração de páginas.

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não conhecem Deus e que, deste modo, seguem a lei da natureza. Estes seriam, aliás, os futuros cristãos. Estas duas facetas do paganismo sofreriam, com a descoberta de novas gentes em África, Ásia e América, profundas alterações. Na verdade, a entrada, na história da humanidade, de homens a quem ainda não fora dado a conhecer o Evangelho iria desencadear uma profusa reflexão nos quadros da teologia tradicional. Urgia, pois, antes de mais aferir qual o seu lugar nas concepções teológicas dominantes. No caso concreto do continente africano, o avanço ao longo da costa ocidental africana revelara desde já muitas novidades sobre os íncolas destas novas regiões e o seu modo de viver. Mas, no que respeita ao credo e às práticas religiosas, os autores têm dificuldade em as definir. Assim, em relação aos primeiros reinos africanos descobertos, mormente, no Senegal8 e no Budomel, fala-se inicialmente de uma evidente influência maometana. Neste último reino, Luís de Cadamosto teve oportunidade, durante a sua visita, de falar com o rei sobre o modo de orar. Sendo-lhe permitido entrar na mesquita quando o rei fazia a sua oração com os padres, que lhe ensinam a lei de Mafoma, Cadamosto conta que o rei, de pé, dizia algumas palavras ao mesmo tempo que, atirando-se ao chão, beijava a terra, acto que repetiria dez ou doze vezes juntamente com os seus súbditos, que o acompanhavam nestas cerimónias. No final, o rei perguntar-lhe-ia, qual a sua opinião sobre o que pudera apreciar, pedindo-lhe que o informasse sobre a religião europeia.9 Com o decorrer dos tempos saber-se-ia não só relatar de influências maometanas, mas também de povos bárbaros que não conheceriam nem leis nem costumes. Para os nautas portugueses estes autóctones da costa africana significariam o encontro com promissores seguidores da palavra de Deus.10 É, pois, com entusiasmo que se relata que o rei de Caramansa ouvira, com grande atenção, o que os portugueses lhe contaram sobre um deus cristão senhor de toda a terra.11 A salvação das almas reconhecida como a verdadeira crença fazia parte do acordo realizado entre portugueses e guineenses. O contacto estabelecido com os reis da costa ocidental africana marcaria o início de uma era de príncipes cristãos em África. Neste contexto, o reino do Congo constituiria um marco fundamental na propagação da palavra de Deus. "Que maior louvor se

8. Luís de Cadamosto, in: Newe unbekandte Landte, Nuremberga, 1508, cap. xvj. 9. Idem, cap. xxv/44 10. João de Barros, Ásia, Lisboa, 1552, ed. Hernani Cidade e Manuel Múrias, 4 vols, Lisboa, 1945, 1. Década, p. 71. 11. Idem, p. 77-81.

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poderia fazer a Deus e à sua Igreja do que a semear num local tão distante em que as suas gentes desconheciam o nome de Cristo, pois aqui não chegara a pregação dos Apóstolos. Neste continente tão longínquo e até há pouco desconhecido existia agora mais um altar oferecido a este Deus, em nome de seu filho." Cristo seria agora adorado por um rei "bárbaro per sangue e católico per fé" que assim criara, no seu reino, os fundamentos para uma comunidade cristã. Eis como João de Barros exalta calorosamente os frutos missionários da nação portuguesa sob a égide de D. João II.12 A revelação de sociedades que desconheciam a palavra de Deus constituiria uma surpresa para a comunidade cristã que, desde logo, determinaria a propagação e implantação da fé como a condição sine qua non na colonização dos novos territórios. Aos portugueses, escolhidos por Deus como representantes do povo cristão, caberia levar a mensagem da Boa Nova além-mar. A conversão ao cristianismo no reino do Congo representaria o primeiro sucesso da obra missionária portuguesa em terras africanas. A descoberta de sociedades, que pareciam viver sem leis nem credo, introduzia ainda a necessidade de distinguir entre os diferentes povos então descobertos e os já conhecidos. No continente africano ter-se-ia primamente apenas contactos com povos de influência muçulmana, os denominados infieis, mas com a passagem da linha equatorial a sua presença deixar-se-ia de fazer sentir. É difícil precisar quando é que a consciência europeia se apercebeu da diferença entre a condição espiritual do negro africano e a do infiel. Se para este existiam concepções definidas de uma recusa clara perante o cristianismo, visto que acredita e defende claramente uma outra doutrina, em relação ao negro africano apenas se sabia que vive sem lei e credo, regulamentando a sua vida pelo costume e pela força da natureza. Os protagonistas da empresa marítima vêm-se, assim, chamados à responsabilidade e, coagidos nos seus deveres apostólicos, crêm possível libertar os africanos das garras da idolatria. O facto de estes povos ainda não conhecerem o Evangelho seria, aos olhos dos coevos, dramático pelo que exigiam uma intervenção urgente por parte dos cristãos portugueses, intermediários e mensageiros da palavra de Cristo. A chegada dos mareantes portugueses a África oferecia às populações locais o momento da salvação, garantindo-lhes a possibilidade de ouvirem a palavra divina, a qual, pelos vistos, ainda não tinham tido a oportunidade de escutar. Enquanto os mouros viveriam no pecado, os

12. Idem, p. 126.

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pagãos gozariam de um estado excepcional: inocentes e sem máculas, os africanos da costa ocidental poderiam libertar-se do pecado e salvar a alma. Assim, desde o primeiro momento os portugueses procuram fazer deste homem neutro, não cristão, um cristão.13 Para muitos letrados lusitanos do século XVI, os Descobrimentos seriam a tomada de consciência dos deveres religiosos não cumpridos, ou mal cumpridos, e acima de tudo os deveres do apostolado cristão.14 Só mais tarde é que se iria questionar qual o significado atribuído à descoberta de um mundo novo, em que o comportamento moral e religioso dos seus habitantes era determinado pelos costumes. Os portugueses voltados para a missão evangelizadora pouco se tinham interrogado sobre os usos e costumes locais. Mas, com o passar dos anos, adquirir-se-iam informações mais precisas e detalhadas sobre o carácter hierático destes povos. Surpreendentemente, entre as várias sociedades africanas, existiriam poucos indícios de uma doutrina monoteísta. Levantada a questão se adorariam a vários deuses, urgia saber quem seriam e quais os ritos religiosos que lhes ofereciam. Estaria assim comprovado que aqui viveriam muitos gentios. Mas, seria a realidade vivida por estes gentios semelhante aos exemplos já conhecidos da Bíblia ou de outras fontes? Para alguns autores dos relatos de viagens, o paganismo significa - como vimos - um estádio anterior ao cristianismo, ou seja, eles consideram estes gentios pura e simplesmente como futuros cristãos,15 a quem seria dada, desta forma, a possibilidade de alcançar a salvação das almas. Mas já no século XVII, surgem outras vozes cépticas, que distinguem entre os pagãos dos tempos passados e os agora recentemente descobertos. Vejamos alguns exemplos. Um dos mais importantes argumentos destes autores seria que - já que não conhecem o verdadeiro Deus - estes povos adoram um outro ou outros deuses, pois, como se afirma repetidamente, não haveria maior 13. Recordemos as palavras de Gomes E. de Zurara, Crónica dos Feitos de Guiné, (1453), ed. A. Dias Dinis, Lisboa, 1949. 14. Sobre a tomada de consciência dos deveres apostólicos dos portugueses, veja-se José Sebastião da Silva Dias, Os Descobrimentos e a problemática cultural do século XVI, Coimbra, 1973, pp. 55-59, 81-93 e Hernâni Cidade, A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina. As Ideias - Os factos - As formas de arte, vol. I, (sécs. XV e XVI), Lisboa, 1963, pp. 37-65. 15. Esta posição não se encontra somente em João de Barros (ver acima), mas também se observa em outros autores como, Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e conquista da Índia, Lisboa, 1551-1561, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, 1979; Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel I, Lisboa, 1566, ed. Lisboa, 1909; Jerónimo Osório, De Rebus Emmanuelis gestis, Lisboa 1571, Colónia, 1574.

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barbaridade do que o total desconhecimento de um ser supremo. Uma vez que nem sempre seria fácil precisar se um povo respeita ou adora um ser divino, os observadores europeus partem em busca de comportamentos ou ritos que, frutos de uma vivência religiosa, possam fornecer indícios sobre a religiosidade dos povos ultramarinos. Assim, testemunha-se que "não tem livro, nada sabem acerca de ler e escrever, nem de Deus e da sua palavra sagrada. Aqui não há uma igreja, nem baptismo, nem missa, nem padres ou absolvição, não há lei nem evangelho, pelo que são as gentes mais miseráveis debaixo do sol".16 Nestas apreciações feitas pela negação verifica-se como os autores procuram comportamentos e aspectos que, lhe sendo familiares e conhecidos, os possam informar sobre algumas práticas religiosas, seguindo, naturalmente, a doutrina que conhecem da Europa: a procura de um ser divino significa fé, significa o seguimento dos seus mandamentos, o evangelho que significa ainda a existência de uma comunidade reunida com os seus sacerdotes num lugar sagrado. A constatação de que os aspectos considerados elementares na prática da verdadeira religião seriam inexistentes leva a que procurem manifestações e cerimónias equivalentes. Assim, quando os habitantes do sul de África saiem para a rua em dias de lua cheia e dançam a noite toda, poder-se-á certamente interpretar como uma prática religiosa.17 Ou o facto de elevarem as mãos para o céu quando dançam poderá ser um indício de um rito religioso: "Não podemos saber qual é a sua religião: mas de manhã, quando nasce o dia, eles reunem-se, e de mãos dadas dançam e gritam na sua língua, em direcção ao céu, o que deixa presumir que tenham de ter alguma ciência de Deus; bem como quando se lhes pergunta sobre o seu credo, eles dizem que acreditam naquele que criou o céu, a terra, o mar e tudo o que encontra ao cimo da terra".18

16. "Sie haben kein Buch, wissen nichts von lesen und schreiben, nichts von Gott und seinen heiligen Wort: Hier ist keine Kirch, keine Tauff noch Nachtmahl, kein Priester noch Absolution, kein Gesetz noch Evangelium, sind also die elendesten Leute unter der Sonnen...". Johan Schreyer, Neue Ost-Indianische Reisz- Beschreibung..., Leipzig, 1681, ed. S.P. L' Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1931, vol. 7, p. 20. 17. Johan Christian Hoffmann, Ost-Indianische Voyage..., Kassel, 1680, ed. S.P. L'Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1931, vol. 7, p. 30. 18. "Man kan nicht wissen, was Ihre Religion sey: aber frühe, wann es Tag will werden, so kommen Sie zusamm, und halten einander bey den Händen, und tantzen, und schreyen auf Ihrer Sprach gegen den Himmel hinauf, daraus zu praesumiren, daß Sie doch von Gott einige Wissenschaft haben müssen, wie Sie dann einsmahls Selbst gesagt, als man nach Ihren Glauben fragte: Sie glauben an den, der alles erschaffen habe, Himmel, Erden, Meer, und

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Mas outros povos não respondem desta maneira. O padre Wilhelm Johann Müller conta que, no Fetu, os habitantes gozam com as leituras que os padres lhes fazem do Antigo Testamento, perguntando há quanto anos é que esses milagres se deram, como que se quissesem dizer como é que se pode realmente saber essas coisas se já foi há tanto tempo.19 Se não existe um ser divino, então presume-se que os povos ultramarinos pratiquem cerimónias ao diabo, a fim de se lhes reconhecer, alguma - ainda que falsa - religiosidade. Por isso, os íncolas africanos adoram um ser diabólico, pedindo-lhe conselhos e oráculos; na veneração aos mortos, feita nos dias de Lua Nova, cantam, dançam e tocam em honra do demónio - tocam um instrumento parecido com um tambor, com três pés de altura, cortado e escavado de uma palmeira e depois coberto com uma pele; e batem nele com um pau e na outra mão seguram uma campainha de vaca [...] até que o cansaço os deita por terra".20 Assim trazem ao pescoço muitas "peças do diabo", como sejam: dentes, garras, palhas, cabeças de serpente e diferentes coisas diabólicas, a fim de evitar as fúrias do "trovão".21 No reino de Loanga tem, nas suas casas, toda a espécie de "obras do diabo" a quem adoram e fazem sacríficios, deitando vinho no chão em frente destas imagens. E muitas vezes tem "casas do diabo", isto é, oratórios, onde o demónio poderá vir quantas vezes quiser. E de tal modo acreditam nele que realizam sacríficios humanos em seu nome. Assim, chegam a sacrificar homens "[...] quando um está doente, promete oferecer ao diabo um escravo, o que assim cumprem, caso melhore. Assim, depois de lamentavelmente o matarem, colocam-no na casa do diabo

alles, was auf Erden sey". Johan Jacob Saar, Ost- Indianische funfzehenjährige Kriegs-Dienst..., Nuremberga, 1662, ed. S.P. L'Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1931, vol. 6, p. 179 . 19. Wilhelm Johann Müller, Die Africanische auf der guineischen Gold-Cust gelegene Landschafft Fetu, Hamburgo, 1673, ed. Graz, 1968, pp. 90-91. 20. "Den teufel beten sie an/ welchen sie als ain Oraculum umb Raht fragen/ ingleichen verehren sie die Todten/ begehen alle neue Monden dem Teuffel feyerlich/ singen und springen/ spielende auf einem Instrument, so wie eine Trommel/ drey Fuß hoch/ aus einem Palm-Baum gehauen und ausgehölet/ nachmahls mit einer Haut überzogen; Darauff schlagen sie mit einem Knüppel/ in der andern Hand haltende eine Küh-Glocke/ auf den Armen Eiserne Ringe [...] biß sie von Müdigkeit auf die Erde fallen". Otto Friedrich von der Gröben, Guinesische Reise= Beschreibung, Marienwerder, 1694, ed. Leipzig, 1907, p. 34. 21. "[...] Zähne/ Klauen/ Stroh/ Schlagen-Köpffe/ und unterschiedliche abscheuliche Zauber-Dinge mehr". Idem, p. 41.

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"Maggasethi", até que o sátan o venha buscar. E assim o que lhe prometem, assim o cumprem rigorosamente".22 No reino de Benim num só dia ofereceram ao diabo, que consideram o seu deus, sete cães, três bois, doze cabras e mais de cem galinhas.23 Além disso, fala-se que também têm locais sagrados. Assim, a sua igreja poderá ser: "uma vedação com estacas; antes de [ali] entrarem, colocam tudo o que têm [no chão], até faca, e só depois é que entram na casa de adoração, onde caiem de joelhos; com as mãos esticadas e colocadas na cabeça, curvam-se, com a cara para a terra, e rezam ao diabo, o que tem necessidade".24 Ao longo da costa ocidental africana encontram-se, por conseguinte, povos que não conhecem a obra de Deus que criou o mundo, e que em vez de o adorarem como "Criador todo poderoso", adoram o diabo: o pastor Müller, ao serviço da Companhia Dinamarquesa, encontra, na região do Fetu, o diabo na figura de um horrível mouro negro que traz consigo uma lança de caçador, um arco e que anda com um cão enorme negro, o que o faz concluir, que se trata do "caçador infernal" conhecido da Sagrada Escritura.25 O facto de acreditarem neste ser satânico, quer então dizer, que levam uma vida idolatra. Deixando-se reger por ídolos, o dia-a-dia destes pagãos é assim definido pelos "feitiços". Além disso, fazem muitas festas de carácter religioso em honra dos ídolos que adoram. Estas cerimónias rituais seriam atentamente descritas pelos visitantes, em especial, as manifestações relacionadas com o nascimento, (baptismo) casamento e morte, etapas fundamentais da vida humana e símbolos da religiosidade local.

22. "Sie opfferen auch Menschen/ der gestalten: wann einer kranck wirdt/ so verspricht er dem Teufel einen seiner Sclaven zu verhren/ welches sie auch halten. Dann sie dieselbigen erstlich jämmerlich vmbbringen/ alßdann legen sie dieselbigen in das Maggasethi (T-häußlich)/ biß sie der Satan hinweg nimmt. Und was sie sonst dem Satan versprechen/ das halten sie ihme ganß getrewlich". Samuel Brun (Braun), Schiffarten..., Basileia, 1624, ed. Walter Hirscherg, Graz, 1969, p. 22. 23. Andreas Josua Ultzheimer, Warhaffte Beschreibung ettlicher Reisen in Europa, Africa, Asien und America 1596-1610, Tübingen, 1616, ed. Tübingen, 1971, p. 126. 24. "[...] ein Zaun von Pfälen wie Stacheten gemacht/ so von oben offen. Ehe sie hinein treten/ legen sie alles von sich/ biß auffs Messer/ alsdann gehen sie ins Beth=Hauß/ fallen auf ihre Knie/ strecken die Hände von sich/ und schlagen sie über das Haupt zusammen/ neigen das Antliß zur Erde/ und bitten vom Teuffel/ was sie nöhtig haben". Otto Friedrich von der Gröben, op. cit., p. 20. 25. "[...] in Gestalt eines langen abscheuliche schwarzen Mohren/ mit sich führend einen Jäger=Spieß/ Bogen/ kocher/ imgleichen schwartze grosse Hunde/ erscheinet". W.J. Müller, op. cit., pp. 45-46; "höllische Jäger"

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O médico Samuel Braun relata que quando os grandes senhores morrem, os amigos e serviçais fazem um grande banquete à sua maneira e comem juntos pela última vez. Em determinado momento, o feiticeiro, a que chamam "Manna Magüschy", dá de beber a quatro ou cinco amigos, a dez ou doze dos escravos e, por fim, também aos "padres" e mulheres do falecido que assim irão morrer com uma bebida feita de raízes.26 Por exemplo, no Loango usam "[...] desenterrar o corpo do morto (como é seu costume) espetam a cabeça num pau e dançam com ela; e o corpo oferecem-no ao diabo".27 Estes e muitos outros exemplos revelam, aos olhos dos visitantes, um estranho, sim até desumano, comportamento. Mas mais se poderia anotar sobre os funerais em África. Assim, lê-se que, por vezes, o morto seria enterrado com ouro e instrumentos, porque os habitantes consideram que só assim teria mais autoridade para além da morte. De facto, "[...]rezam com grande aplicação e isto por quatro razões 1. para que tenham o suficente de comer e beber todos os dias, nomeadamente, vinhos espanhóis e aguardente. 2. porque acreditam que a natureza é a maior de todas as forças. 3. porque acreditam receber tudo de um grande monarca que governa a outra natureza. 4. e porque acreditam num outro mundo regido só por um monarca, pedem que, depois da sua morte, ele os receba e que de boas graças com ele lhes sejam transmitidas outras riquezas".28 Geralmente, e com base nos elementos recolhidos, os autores estavam convictos que estes homens não-europeus viveriam na idolatria, isto é, no erro. Uns adoravam elementos da natureza, outros animais e quase todos o diabo, deixando que este lhes controlasse o dia-a-dia. Isto levá-los-ia a acreditar que vivendo estes num estádio natural, isso significaria que os gentios ainda não se tinham libertado do seu estádio selvagem. Daí que se comportassem como cegos que ainda não tinham visto a verdadeira luz. E, por isso, não estariam ainda em condições de levar uma vida digna de um ser humano. Estas considerações reflectir-se-iam nos seus escritos, em

26. Samuel Brun (Braun), op. cit., p. 21. 27. "[...] den todten Leichnamb wieder ausgraben (wie dero Gebrauch) den Kopff auf eine Stange stecken/ damit tanzen/ und den Leichnamb dem Teuffel opffern". Otto Friedrich von der Gröben, op. cit., p. 38. 28. "Sie beten sehr fleißig/und solches 4. Ursachen halber/ 1. damit sie täglich gut zu essen und trincken haben möchten/ als Spanische Weine/ und Brandtwein. 2. Weil sie glauben/ daß eine Natur aller Naturen ist/ so von grösserer Kraft/ als ihre sey. 3. Weil sie västiglich glauben/ alles von dem grossen Monarchen/ der die andere Natur regieret/ zu erhalten. 4. Weil sie noch andere Welt glauben/ so bloß von einem Monarchen regieret wird/ bitten sie/ daß/ wann sie nach ihrem Absterben zu ihm kommen werden/ bey denselben in Gnaden seyn mögen/ und vor andern Reichthumb überkommen". Idem, p. 23.

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expressões como "gente selvagem e bestial",29 "gente bestial quase irracio-nal"30 que levam uma vida mais parecida com as dos animais do que humana,31 chamando-lhes, por vezes, até monstros.32 Como os povos africanos fogem ao padrão conhecido, os europeus, perante uma incompreendida diversidade, reagem com intolerância. Partindo do prin-cípio de que os povos gentios teriam chegado a este estádio, não por desorientação, mas sim porque não utilizaram as suas capacidades de ser racional, a postura comum dos autores é de incompreensão. O facto de não se terem empenhado no seu desenvolvimento não seria aceite pelos europeus que assim lhes apontam esta falta, aliás, falha. É com grande pesar que os europeus testemunham que em terras de além-mar vivam homens sem qualquer conhecimento do "pai Adão"; e que vivam, a seu ver, um dia-a-dia deplorável, uma vez que não conhecem a Deus e que na sua maneira de viver se reconheça tão pouca humanidade que mais se poderiam contar entre os animais do que entre as gentes racionais.33 Esta é a opinião do padre alemão Johann Christian Hoffmann que é, de certo modo, característica da reacção à maneira estranha e incompreensível de viver dos povos ultramarinos. Como se poderiam ter deixado chegar a este estádio de perfeita animalidade, vivendo "mais entre os animais estúpidos" do que entre gente racional. Tendo descorado a razão e a Deus, estes descendentes de Adão desprezaram decididamente viver segundo a ética cristã. Numa outra passagem, Hofmann acentua este aspecto, afirmando que tudo lhe parecera estranho, mas a maneira de viver deste povo selvagem que, inicialmente tomara por monstruosos macacos e não por integros homens, era incrível. E isto porque, a seu ver, em nada se

29. "Wilde bestilische Menschen". Volquart Iversens, Ost=Indische Reise=Beschreibung, in: Adam Olearius (Ed.), Orientalische Reise-Beschreibung, Schleswig, 1669, p. 73. 30. "Wilde viehisch kaum vernünftiger Menschen". Jürgen Andersen, Orientalische Reise-Beschreibung, In: Adam Olearius (Ed.), Orientalische Reise-Beschreibung, Schleswig, 1669, p. 4. 31. Johann Albrecht von Mandelslo, Des hoch edelgebornen Johann Albrechts von Mandelslo Morgenländische Reybeschreibung, in: Adam Olearius (Ed.), Orientalische Reise-Beschreibung, Schleswig, 1658, p. 113. 32. Johan Jacob Saar, op. cit., p. 178. 33. "Zu betrauen ists, daß unter dem menschlichen Geschlecht solche Leuthe, wie anitzo angewiesen, zu finden seyn, alß an welchen, ungeachtet sie von dem ersten Vatter Adam abkünfftig, nichts wenigers gleichwohl alß Menschligkeit gespühret wird, warumb sie in Wahrheit mehr unter das dumme Vieh alß in die Zahl der vernünftigen Menschen können gerechnet werden, sintemahl sie in dieser Welt ohne Gott seyn, und daher ein sehr erbärmliches Leben in dieser Zeitligkeit leben". Johan Christian Hoffmann, op. cit., p. 31.

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parecem aos homens, pelo que em verdade e, em face da sua barbaridade, são as gentes mais miseráveis que alguma vez viu.34 O gentio seria assim aquele que vive sem conhecer a Deus, sem racionalidade e que segue uma vida de selvagem, longe do que se considera ser própria de um ser humano, por isso cheia de vícios e defeitos. Assim, a observação de certos hábitos da vida pagã ia de encontro a esta opinião: que viviam juntos como "os animais", andavam nus sem vergonha, casamentos selvagens, alguns até seriam canibais, em suma, uma grande lista de deformidades e defeitos que, aos olhos dos visitantes, davam a conhecer a devassidão da tão reprovável vida pagã. O paganismo deturpara, sem dúvida, a vida humana ao deixar que a natureza dominasse a conduta humana. Numa situação como esta o homem não conseguiria distinguir entre o Bem e o Mal. Este conceito está muito relacionado com a definição de paganismo partilhada pela igreja protestante. Enquanto, a igreja católica defendia os gentios como futuros cristãos, a quem era necessário transmitir a luz da verdade e da civilização, os protestantes consideravam que a natureza já lhes destruíra a inocência; ao esquecerem-se da sua descendência teriam pecado, pelo que já seria tarde demais para os salvar. Estas duas interpretações da Sagrada Escritura reflectiam-se nos textos publicados. Para alguns viajantes o encontro com os gentios no continente africano significava a possibilidade de propagar a palavra de Deus por estas paragens, ou seja, os africanos teriam agora a oportunidade de conhecer a luz da verdade, acreditando, por isso, que através da missionação seria possível torná-los civilizados e cristãos. Outros autores, como os seus relatos de viagens o testemunham, acham que cada um dos povos recentemente descobertos já decidiu o caminho civilizacional ou religioso que pretende trilhar. A igreja protestante defendia, deste modo, uma atitude mais reservada no que respeita à evangelização, como se pode ver nos seus escritos teológicos. A grande linha argumentativa deixa-se descrever da seguinte

34. "Alles kam mir allhier seltzam vor, am seltzamsten aber die wilde Lands-Arth dieser Völcker, die Ich anfänglich mehr vor ungeheure Affen, alß vor rechtschaffene Menschen ansahe, und gewißlich! wegen ihrer Unmenschligkeit haben sie fast nichts an sich daß einem Menschen ähnlich ist, und daher seyn sie in Wahrheit die allerelendesten Menschen, die Ich jemahl gesehen". Idem, p. 26. A comparação dos hotentotes aos macacos, um símbolo do mal e do pecado, atribui-lhes-ia os seus poderes maléficos. Veja-se Hannelore Sachs, Ernst Badstübner, Helga Neumann (Ed.), Erklärendes Wörterbuch zur christlichen Kunst, Hanau s. D., p. 21.

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forma:35 os autores protestantes consideram que o Evangelho já teria sido propagado por todos os países. A partir deste irremediável veredicto, os teólogos luteranos e calvinistas entendem que não haveria necessidade de o repetir, pois quem não ouvira a voz de Deus escolhera certamente a idolatria. O reformador Martinho Lutero, grande defensor desta tese, determinaria, deste modo, as posições e perspectivas da igreja protestante. Na sua interpretação da Sagrada Escritura, Lutero designa e especifica os princípios orientadores e característicos da evangelização. Assim, baseando-se numa passagem do Evangelho de São Marcos, em que se diz: "Apareceu, finalmente, aos próprios onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e a obstinação em não acreditarem naqueles que O tinham visto ressuscitado. Depois, disse-lhes: 'Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado'",36 o teólogo alemão argumenta que a mensagem do Evangelho já fora ouvida em todo o mundo, pelo que já tinha sido dada, a todos os pagãos, a oportunidade de libertar o seu coração da idolatria. Embora se reconheça que a mensagem fora dada a conhecer em diferentes momentos históricos, para Lutero e os teólogos protestantes, a sua divulgação já fora feita. Além disso, segundo Lutero, e este aspecto é de grande importância neste contexto, não há necessidade de que todos os povos sejam cristãos. Nem todos podem ser recebidos no rebanho dos cristãos, aliás, até porque, como frisa, o diabo não o permitiria. Isto explicaria a existência de vários credos e religiões no mundo. A mensagem já se fizera ouvir no Egipto, na Grécia, na Itália, na Espanha, na França e ecoaria, momentâneamente, na Alemanha, sem que se pudesse prognosticar por quanto tempo. Em África já se tinham instaurado de novo a mentira e a guerra. Lutero não vê, aliás, a propagação do cristianismo como uma tarefa humana. Tudo dependeria muito mais da força da palavra de Deus. Mais do que uma igreja do sermão, Lutero crê numa igreja que se distingue pela cruz e pelo sofrimento. Elogiando o povo judeu, cujo íntegro e exemplar comportamento teria convertido muitos pagãos, Lutero considera, no entanto, ser o próprio Deus quem escolhe o povo para a salvação. Deus é que tem o poder de, consoante a conduta de um povo, de lhe dar ou tirar o

35. Vgl. u.a. P. Drews, Die Anschauungen der reformatorischen Theologen über die Heidenmission, in: Zeitschrift für praktische Theologie, 1897, pp. 1-27 e Urs Faes, Heidentum und Aberglaube der Schwarzafrikaner in der Beurteilung durch deutsche Reisende des 17. Jahrhunderts, Zurique, 1981, pp. 16-33. 36. Evangelho segundo São Marcos 16, 14-16.

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Evangelho. Daí que Lutero, e com ele muitos outros teólogos, não veja necessidade de uma conversão dos pagãos.37 Ainda, em 1661, a Faculdade de Teologia da Universidade de Wittenberga, com base na doutrina luterana, considera o paganismo uma justa repreensão e admoestação de Deus ao desprezo pela verdade eterna. Nas terras, onde a palavra de Deus não fora atentamente escutada, ficariam apenas "idolatria, pecado e condenação";38 este era, sem dúvida, o caso do continente africano. Um dos teólogos mais importantes do século XVII, o Superintendente de Regensburgo, Heinrich Ursinus, aponta três particularidades na designação de pagão: 1. são selvagens que nada possuiem de humano; 2. são cruéis e tiranos; 3. vivem em pecado, repudiadores da religião cristã que os antepassados teriam recusado horrível e desagradecidamente. Não tiveram em atenção as graças de Deus, e, por isso, se tornaram cada vez mais selvagens. Mas eles, e só eles, seriam os culpados desta situação, não tendo assim qualquer direito ao perdão. Neste sentido, Ursinus considera que não se deveriam enviar missionários: "A cães e porcos desta laia não se deve arremessar as pérolas e a santidade de Deus", só no caso de se afastarem da crueldade.39 Embora com as viagens dos Descobrimentos chegassem outras novas acerca dos povos e das religiões de além-mar, a igreja protestante, apesar de reconhecer tal facto, mantem firme a sua opinião de que se podem encontrar reminiscências, entre estes povos, de um contacto com o cristianismo em tempos já remotos. O facto da maioria dos povos africanos fazerem uso da circuncisão - guardado, naturalmente, dos primeiros tempos - ou casos como o reino do Preste João seriam provas mais que evidentes da velha presença do cristianismo, em África. Esta a posição defendida, entre outros, por Johan Gerhardt, que se insurge contra o proselitismo católico.40 O pastor de Hamburgo, Müller, vai mais longe e acusa a igreja católica de descuidar a orientação dos crentes na Europa para pregar além-mar, o que, a seu ver, seria antagónico ao cristianismo. Tal como Lutero, Müller considera que os Apóstolos já pregaram a mensagem divina (Mt 24, 14) 37. Lutero citado por P. Drews, Die Anschauungen der reformatorischer Theologen über die Heidenmission, in: Zeitschrift für pratische Theologie, 1897, p. 1. 38. "[...] gräuliche Abgotterei, Sünde und Verdammung". Citado por Urs Faes, op. cit., p. 17. 39. "Solche Hunde und Säuen soll man Gottes Perlen und Heiligtum nicht vorwerfen". Idem. 40. Johann Gerhardt, Locis Theologicis, citado por R. Bückmann, Die Stellung der lutherischen Kirche des 16. und 17. Jahrhunderts zur Heidenmission und die gemeinsamen Bestrebungen von Leibniz und A. H. Francke zu ihrer Belebung, in: Zeitschrift für kirchliche Wissenschaft und kirchliches Leben, 1881, pp. 362-389.

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em todos os locais (Mc 24, 14) e até ao fim do mundo (Act 1, 8). A comunidade cristã existente, essa sim seria de maior importância, uma vez que o dever de evangelizar (Mc 16, 15) já fora cumprido pelos Apóstolos. Müller critica ainda a maneira como os missionários católicos procuram, a todo o custo, auferir mais cristãos: "Não há necessidade de fazer uso do papado para converter, divulgar o sagrado sacramento e catequizar estes homens, obrigando-os a horrendos martírios e tiranias, a não ser por meio da palavra (Mc. 16, 16). Sobre a invasão feita a estes povos com fogo e espada, pilhando e saqueando as suas terras e cidades e prendendo-os para os obrigar a aceitar o credo cristão, não teve o papado até agora qualquer prova de que [essas acções] sejam justas e apostólicas".41 Neste contexto, convém ainda referenciar um outro escrito de excepcional valor e interesse para esta discussão: o Hausbuch.42 Com efeito, da autoria de Heinrich Bullinger, esta colecção de sermões é de grande significado para este assunto, uma vez que, como sabemos, este livro seria lido diariamente a bordo dos navios da Companhia Holandesa das Índias (VOC). Bullinger, um seguidor de Zwingli, considera que não se poderá afirmar que a Bíblia condene definitivamente os pagãos, antes pelo contrário, os seus textos e escritos alertam para uma possível salvação. No segundo sermão desta colecção, também este teólogo acentua que a palavra de Deus teria sido pregada em todo o mundo. Embora nem todos a tenham reconhecido, o certo é que todos tiveram a oportunidade de a seguir, quer pela lei da natureza, quer pela lei da razão. E, mesmo quando alguns deles se deixaram vencer pelo pecado, a lei da natureza foi-lhes ditada por Deus no seu coração, lei esta que - tal como a de Deus - lhes permite distinguir entre o Bem e o Mal e encontrar o caminho para a salvação. Bullinger vê assim a possibilidade de os pagãos reconhecerem Deus e se tornarem cristãos,43 ou seja, ao contrário de Lutero, Bullinger não os vê de todo condenados. Daí que se possam observar vários estádios religiosos, isto é, se reconhecem ou não um ser supremo, quais os ritos

41. "Man muß auch die Päpstische Art nicht gebrauchen/ solche Leute zubekehren/ und mit schrecklicher Maarter und Tyranney nötigen und zwingen/ sondern die jenige Mittel gebrauchen/ welche seyn die Predigt des Worts (Mc 16, 16) und Außtheilung der Heil. Sa-kramenten. Daß man aber solche Völker mit Feuer und Schwert solle überfallen/ ihre Länder und Städte plündern und einnehmen und sie also zwingen zum Christlichen Glauben/ davon haben sie Päpstler bißher keinen Beweiß bringen können/ daß es recht und Apostolisch sey". Johannes Müller, Widerlegung der papistischen Einwürfe, no anexo publicado por in: Wolfgang Gröszel, Die Mission und die evangelische Kirche im 17. Jahrhundert, Gotha, 1897, pp. 127-133, aqui p. 130. 42. Heinrich Bullinger, Haußbuch, Berna, 1558. 43. Idem, Sermão nº 7.

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religiosos, bem como quais os usos e cerimónias que lhe oferecem, até qual o comportamento em relação à família, ao casamento e à morte. Mas se não viverem segundo a lei da natureza, ou se a tiverem corrompido, então já não há perdão: caiem no pecado, na idolatria. Além disso, todos aqueles que não tiverem uma relação com o verdadeiro Deus, serão inevitavelmente vítimas do diabo, que os seduziu e perverteu a práticas religiosas falsas.44 Nos finais do século XVII, esta vasta e larga disputa doutrinal ainda se torna mais viva no discurso teológico coevo. Os cristãos católicos interrogam-se principalmente sobre a ressonância das acções missionárias no mundo. Esta preocupação reflectir-se-ia assim em muitos dos escritos contemporâneos, pois para aqueles que haviam acreditado na missionação convinha traçar um quadro informativo do apostolado, mais con-cretamente, urgia debuxar a expansão da igreja cristã no orbe terráqueo. No ano de 1678 vem a lume, em Viena, uma obra intitulada Kirchen=Geschichte [História da Igreja].45 O seu autor, o jesuíta Cornelius Hazart, exemplifica e esclarece, em doze livros, os diversos aspectos de que se revestiu a divulgação do credo cristão em algumas das regiões do mundo por onde se espalhou o cristianismo, entre elas Japão, Terra dos Mouros, Peru, Paraguai, Brasil, Florida, Canadá, México, Mongor e Bisnaga. No capítulo dedicado à Terra dos Mouros, Cornelius Hazart descreve este processo em terras da Abissínia, Guiné, Monomotapa, Fez e Marrocos.46 Todos os capítulos seguem a mesma estrutura narrativa, como no caso da Guiné e do Congo. O autor explana primamente as diversas etapas das viagens de descobrimento, com vista a descrever os primeiros passos da cristianização nestas regiões africanas - os baptismos de reis, a primeira igreja em África - até ao relato das perseguições levadas a cabo durante o século XVII. Aqui como nos capítulos reservados ao Monomotapa, a Fez e a Marrocos, Cornelius Hazart expõe veemente as acções levadas a cabo

44. Idem, Sermão nº 35. 45. Cornelius Hazart, Kirchen=Geschichte/ Das ist: Catholische Christenthum durch die gantze Welt ausgebreitet, Viena, 1678. 46. Aqui poder-se-á testemunhar que entre as fontes a que o autor recorre para traçar um esboço adequado dos conhecimentos actuais, Hazart refere as obras ibéricas, aparecendo ao longo do seu texto nomes como Balthasar Teles, Manuel de Almeida e Pero Pais. O facto de as relações dos padres jesuítas portugueses fornecerem informações pormenorizadas e precisas acerca das missões religiosas além-mar, torna compreensível que os autores alemães procurem e recorram a estes mesmos textos quando pretendem tratar temas religiosos. Para além dos autores jesuítas, Cornelius Hazart, igualmente jesuíta, refere ainda Damião de Góis e Francisco Álvares.

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pelos missionários europeus nestes reinos ultramarinos, bem como as perseguições de que foram vítimas, como Gonçalo da Silveira, um mártir da missionação no Monomotapa. Um outro exemplo bem elucidativo do debate doutrinal em terras alemãs é a criação do Collegium Orientale Theologicum em Halle. Nascido do desejo de formar missionários que, através de uma adequada formação, pudessem pregar dignamente a palavra de Deus, o colégio prova que o tema missão ainda não estava completamente encerrado nos meios intelectuais protestantes. O pastor August Hermann Francke e o escritor e cientista Gottfried Wilhelm Leibniz, ambos luteranos, defendem a ideia de criar uma rede missionária capaz de desenvolver um programa cultural e político além-mar. Leibniz dedicar-se-ia entusiasticamente à defesa desta ideia, procurando recolher, entre os príncipes e nobres da Europa, auxílio para este seu projecto universal. Não obstante o seu país de opção fosse a China, o letrado desenvolveria uma concepção geral de como e qual deve-ria ser a formação dos novos e promissores missionários; entendidos como verdadeiros eruditos, os pregadores da fé deveriam formar-se em academias a fim de aprenderem línguas, doutrina teológica, filosofia, matemática e ainda a geografia dos países que posteriormente viriam a visitar. Este projecto que Leibniz expôs na Societät der Wissenschaften (Academia das Ciências), em Berlim, apostava na constituição e desenvolvimento das ciências sociais e humanas como garante de honra na glorificação de Deus. Entre os múltiplos contactos estabelecidos com conceituados e poderosos eruditos, Leibniz dispõe do enorme apoio de August Hermann Francke, que com ele partilha estes objectivos.47 Em 1702, o colégio abre assim as suas portas aos primeiros discípulos. No estatuto regulamenta-se que os noviços devem estudar a Sagrada Escritura, Matemática, Física e Línguas. Neste campo aconselha-se a que uns se apliquem ao estudo de línguas como a caldaica, síria, arábe, talmude, etíope, arménia, chinês, enquanto outros deveriam estudar polaco, eslavo, russo, francês, inglês e italiano. Recomenda-se ainda o estudo da filosofia rabina, a fim de ajudar na, ainda actual, conversão dos judeus. Assim preparados os missionários levariam a ciência e a mensagem divina além-mar, contribuindo incansavelmente, com o seu trabalho, para a expansão da fé cristã no mundo.48 No diálogo com o Outro reacende-se, como já tivemos oportunidade de frisar, um desafio teologal que visava o esclarecimento e a rectificação do 47. Veja-se R. Bückmann, op. cit., p. 379. 48. Hiob Ludolf, amigo de Francke, recebe os estatutos e ao ver que o instituto se dirigia para o Oriente, menciona a Abissínia como um dos países a missionar. Ver próximo 3.4. cap.

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significado e importância do sentimento religioso na vida humana. As primeiras tentativas de aproximação resultavam, sem dúvida, do desejo de tornar o cristianismo a religião universal, propagando determinantemente a palavra de Deus a todos que a não conheciam. As diferentes reli-giosidades, o próprio facto da diversidade ser possível, o conceito de um ser supremo, da existência de outros deuses que não o cristão seriam um tema de actualidade e ponderação nos textos do século XVII. Por ora ainda não se dramatizariam as diferenças religiosas na procura do Outro, certamente futuro cristão, pois ainda se acreditava na universalidade da verdadeira religião. As sombras e dúvidas que a pouco e pouco se faziam sentir não conseguiam esmorecer, por enquanto, o interesse e o entusiasmo face a outras realidades e a outras vivências religiosas.

3.3.2 Cristãos, Muçulmanos, Judeus e Pagãos em África Qual o lugar do continente africano no debate teologal tão aceso ao longo destes dois séculos ? Quais os credos representados nesta parte do mundo e que exemplos e impulsos de hieratismo se poderiam receber de África? Se, por exemplo, no norte de África era clara a influência dos mouros, como seria no interior e no sul? Os mais curiosos inquiriam ainda sobre a vida religiosa dos cristãos residentes no Egipto ou se seria correcto dizer que o rei da Etiópia fosse o tão procurado Preste João? O confronto cristãos-mulçumanos já se arrastava desde há muito e as relações entre estes dois povos tinham ultrapassado o estádio de mútuo interesse. Para os cristãos os que professavam a religião muçulmana eram os inimigos do povo de Deus e o profeta Maomé, seria a "besta diabólica", tal como o define Salomon Schweigger; a seu ver, Maomé comportara-se como o profeta das mentiras, pois adulterara a palavra de Deus para dela tirar partido. Os maometanos desmenteriam a Santíssima Trindade, e, embora considerassem Moisés, Cristo e Maomé os seus profetas, negam que Cristo seja filho de Deus. Conhecem o Antigo e Novo Testamento, mas o livro dos partidários da religião de Mafoma, é o Corão.49 Tinha-se acreditado durante muito tempo que a sua área de influência se

49. A confrontação resultante do avanço dos Turcos, gerava uma discussão em torno do credo maometano. Veja-se, por exemplo, Auß Rathschlage Herrn Erasmi von Roterdam/ die Türcken zubekriegen/ Der vrsprung vnnd alle geschichten der selbigen gegen Römische Keyser vnnd gemeyne Christenheyt..., Augsburgo, 1530. Sobre as publicações referentes a esta questão, veja-se Carl Göllner, Turcica, Die europäischen Türkendrucke des XVI. Jahrhunderts, 3 vols., Bucareste / Berlim/ Baden-Baden, 1961-1978.

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circunscrevia apenas ao norte de África, mas, com grande surpresa, as viagens dos Descobrimentos iriam revelar que, na costa oriental africana, os maometanos exerciam também grande soberania.50 De novo se encontrariam os inimigos da fé, cujos objectivos eram idênticos aos dos cristãos. As viagens marítimas tinham dado a conhecer, como já acima referimos, muitos povos que, não professando qualquer religião, desconheciam, por completo, a existência de Deus e a palavra de salvação trazida por Cristo. Este é o caso dos autóctones da costa ocidental africana, ou dos que vivem junto ao Cabo da Boa Esperança, íncolas que, pela disparidade de usos e costumes, chamam incisivamente a atenção dos teólogos e eruditos. Perante a alteridade, os homens de letras lançam-se numa tarefa: a de reflectir a identidade religiosa de cada nação ou sociedade, intentando re-colher o máximo de dados esclarecedores sobre o gentilismo agora descoberto. Se para atingir este propósito se bebia nas descrições bíblicas de tempos antigos e se utilizavam a Bíblia como a "lei sagrada" para ordenar e definir o paganismo, o certo é que as novas facetas não se deixavam testemunhar na Sagrada Escritura nem na história do cristianismo.51 No continente africano, onde Cham, "o mais pobre" dos três filhos de Noé,52 se estabelecera, encontrar-se-iam indícios dos primeiros tempos do Antigo Testamento; assim bastaria recordar a presença de José no Egipto ou a libertação do povo de Deus do jugo do faraó pelo seu profeta Moisés. E, como se sabia do Pentateuco, a fúria de Jeová recaira sobre esta terra, pois o seu povo não o reconhecera. Assim, "O Egipto será o humilde de todos os reinos e não se elevará mais acima das nações. Reduzirei a sua população, a fim de que ela não domine mais sobre as outras nações. Para Israel não será mais objecto de confiança; pois que recordará a culpa que

50. Veja-se, por exemplo, o diário da viagem de Vasco da Gama escrito por Álvaro Velho. Ver Cap. 2.4. 51. Bernhardi Vareni, Kurßer Bericht von Mancherley Religionen der Völcker, Verdeutscht durch E. F. (Erasmus Francisci), Heidelberg, 1665, salienta quatro tipos de paganismo: 1. que não conhecem um ente surpremo e são canibais 2. que adoram os astros, 3. que respeitam muitos deuses, 4. que adoram a um só deus, mas que conhecem muitos outros e que não se-guem a Sagrada Escritura. Os povos da Guiné e do Monomotapa pertenceriam ao quarto tipo mencionado e os habitantes do Cabo da Boa Esperança ao primeiro deste grupo. 52. Santo Jerónimo assim o defeniu. África seria condenada pelos pais da igreja. Veja-se Ale-xander Perring, Erdrandsiedler oder die schrecklichen Nachkommen Chams, Aspekte der mittelalterlichen Völkerkunde, In: Thomas Koebner, Gerhart Pickerodt (Ed.), Die andere Welt, Studien zum Exotismus, Frankfurt/M. 1987, pp. 31-87, aqui p. 47.

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Israel cometeu, voltando-se para ele. Assim saberão que Eu sou o Senhor Deus".53 Esta tradição histórica e bíblica era o aspecto mais relevante para os letrados coetâneos, visto que esclareceria a inserção deste continente na história da humanidade e poderia ajudar a explicar a existência de usos de origem judaica em África - usos estes que não se encontravam apenas no norte, mas que estariam muito mais espalhados do que se supusera. Até entre os guineenses ou hotentotes se poderiam observar afinidades com as leis judaicas; esta a reacção quando se toma conhecimento de que muitas populações fazem uso da circuncisão ou que guardavam resguardo à carne de porco ou a outros alimentos proibidos pela Sagrada Escritura.54 Mas, e o que se sabia em relação ao cristianismo? Cristãos viviam desde há muito em Alexandria55 e - nos meados do século XVI - existia uma comunidade cristã no Congo. Mas também na Guiné e no Monomotapa aumentava o número de conversões.56 Isto sem esquecer os cristãos etíopes. Com efeito, as notícias dos nautas portugueses sobre o tão procurado rei cristão residente algures entre África e Ásia provocariam grande interesse e furor nos meios culturais europeus. Para além do vasto e largo debate sobre se, de facto, este seria o tão procurado Preste João, visava-se esclarecer a sua existência no interior do continente africano e aprofundar se este reino correspondia ao que se desde sempre se dissera sobre o lendário Preste João. A curiosa cristandade europeia aspirava, pois, conhecer as cerimónias e ritos deste povo que se dizia cristão das primeiras horas e saber se permanecia vivo esse espírito? E mais como decorriam os contactos com o cristianismo europeu? 53. Ezequiel 29, 15-16. 54. Importa aqui salientar pelo menos dois importantes escritos sobre o judaísmo em África: Abraham Rogerius, Offne Thür zu dem verborgene heydenthum..., Nuremberga, 1663 e Georg Friedrich Behaim von Schwarzbach, Asiatische und africanische denckwürdigkeiten dieser zeit, das ist beschreibung der Königreiche, herrschafften und Länder dess grossen mogols [...] neben dem africanischen Judenthum, Nuremberga, 1676. 55. Com o renascimento das obras clássicas, nos finais do século XV, princípios do século XVI desenvolver-se-iam inúmeras pesquisas sobre a língua e cultura gregas. Neste contexto, surgem estudos sobre a Bíblia escrita em grego, como os de Erasmo, Melanchthon e do erudito de Tübingen, Martin Crusius. Salomon Schweigger, um dos alunos deste iniciador dos estudos de cultura grega, aflora alguns temas relacionados com a igreja ortodoxa e o patriarcado em Alexandria na sua Newen Reyßbeschreibung auß Teutschland nach Constantinopel und Jerusalem, Nuremberga, 1608, ed. Graz, 1964, pp. 253-254. Veja-se sobre esta temática Graecogermania. Griechischstudien deutscher Humanisten. Die Editi-onstätigkeit der Griechen in der italienischen Renaissance (1469-1523), ed. Dieter Harl-finger, Wolfenbüttel, 1989. 56. Veja-se, principalmente, Cornelius Hazart, op. cit.,

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No esclarecimento destas prementes questões alude-se mais uma vez ao facto de os Apóstolos terem pregado por todo o mundo a Boa Nova. Salienta-se que o Apóstolo S. Pedro erguera Antioquia a diocese episcopal, similar a Roma e Alexandria. Antioquia tornar-se-ia, pois, por suas mãos a cidade do cristianismo, visto que: "Foi em Antioquia que, pela primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de 'cristãos'".57 Ficando, deste modo, todas as novas comunidades cristãs subjugadas a esta cidade, era aqui que elas deveriam procurar ajuda e conselho. No ano de 637, Antioquia viria, no entanto, a cair nas mãos do sultão do Egipto e, consequentemente, no poder dos maometanos. A diocese episcopal seria então transferida para a Arménia, cujo chefe espiritual e político se chamava Preste João, nome que ele legaria a todos os seus descendentes. Esta também a razão porque as antigas cosmografias o localizavam na Ásia. Com o avanço dos Tártaros, nomeadamente do rei Cenchis, exterminar-se-ia a dinastia do Preste João. Não obstante fosse contra a idolatria gentia, Cenchis ordenou um rei, Georgius, para os cristãos da Arménia, o qual preservaria o cristianismo nesta região. Existiam, no entanto, algumas diferenças na comunidade cristã, uns eram cristãos nestorianos, defendendo o sistema cristológico de que Cristo só teria duas pessoas, uma no céu e outra na terra; outros os jacobitas tinham também um patriarca.58 Passados alguns anos após a dinastia do Preste João, é natural que se instaurassem confusões e daí que os peregrinos ao ouvirem falar do rei da Etiópia, em Jerusalém, o continuassem a chamar de Preste João e que situassem as suas terras em África - esta é, por exemplo, a explicação dada pelo tradutor da obra do padre franciscano Francisco Álvares para a origem do nome do Preste João.59 Com a chegada de informações sobre os usos e costumes da corte do Preste João, largamente divulgadas por homens como Damião de Góis e Francisco Álvares, a cristandade europeia preocupa-se com a deturpada prática religiosa cristã nestas terras africanas. O facto de os cristãos etíopes terem preservado costumes judaicos, como o baptismo anual e a circuncisão ou ainda o sabatismo, gera pouco a pouco algumas objecções e dúvidas. O padre franciscano Francisco Álvares relata na sua Verdadeira Informação das Terras do Preste João60 que é costume baptizarem-se 57. Veja-se Act. 11, 26. 58. A igreja jacobita resultou de uma oposição no Concílio de Chalcedon, no ano de 451, onde se afirmaria monofisista. O nome vem do fundador Jakob Baradäus e o seu chefe é o patriarca de Antioquia. 59. De facto, ao longo de muitos anos haviam-se formulado diversas lendas à volta desse rei cristão. Veja-se cap. 2.6. 60. Lisboa, 1540; Eisleben, 1566.

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todos no Dia dos Reis, por esse ser o dia em que Cristo se baptizou. Ele, que assistiu a esta cerimónia durante a sua estada no reino etíope, conta que perto da meia-noite, o Preste, seguido de Abuná, seu patriarca, e da rainha se dirigem para um tanque construído propositadamente para o efeito. Terminado este rito, será a vez dos crentes se aproximarem do tanque, onde seriam aguardados, por um padre que os emerge três vezes na água. Álvares refere que tanto o padre como os fiéis nada teriam vestido, estando assim estariam completamente nus na realização deste acto. Quanto ao primeiro baptismo, este dever-se-ia realizar quarenta dias depois do nascimento, no caso de um rapaz, e de sessenta dias se for uma rapariga; ambos seriam, todavia, circuncisados.61 Francisco Álvares observa ainda certas diferenças na forma de festejar, por exemplo, a Quaresma. Na terra do Preste João inicia-se o jejum já dez dias antes do Entrudo, isto é, usam uma quaresma de cinquenta dias em vez de quarenta, sendo o jejuar mais rigoroso e de grande abstinência, dado que só comem pão e água. Também no que respeita ao sacramento da comunhão existiriam diferenças: todos podem comungar sem que para isso se tenham submetido a uma confissão.62 Em relação aos clérigos, Álvares observa que estes, em contraposição com os de Europa, poderiam ser casados. Para isso baseiam-se no concílio de Nicaia que permite aos padres contrairem matrimónio.63 Os seus livros assim o referem, pois já São Paulo o teria autorizado. Numa das conversas entre Francisco Álvares e o Preste João ressaltam algumas discrepâncias, nomeadamente, no que tange a doutrina da igreja romana. Para o padre franciscano só existe uma: a de Roma. Embora, considere que em tempos Antioquia tenha desempenhado um papel fulcral na reunião da igreja e reconheça que São Pedro fora seu bispo, durante cinco anos, Álvares defende que o Apóstolo se mudara para Roma, onde exercera este cargo durante vinte e cinco anos. De acordo com as palavras de Cristo - continua Álvares -, Pedro fundaria a verdadeira igreja e, por isso, o seu sucessor será, em Roma, a cabeça da cristandade.64 Estes alguns dos aspectos que levantariam certas dúvidas quanto às práticas religiosas na Etiópia. Inicialmente procura-se atenuar as divergências. O certo é que seriam descendentes de David e Salomão, que

61. Idem, p. 116-118. 62. Idem, p. 336-343. 63. Idem, p. 124. 64. Idem, p. 260-264.

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teriam sido convertidos por São Filipe65 e até o Apóstolo São Mateus os teria visitado. E em relação à circuncisão recorda-se, numa postura de aproximação, que São Paulo a teria praticado. Mas com os estreitos e assíduos contactos aumentam também as dúvidas, se entre os etíopes se professa realmente a verdadeira fé em Cristo. A autenticidade da igreja cristã na Etiópia uma questão frequentemente colocada e debatida nos vários escritos do século XVI.66 Um dos letrados que mais se interessou pela religião etíope e que mais a procurou estudar foi Hiob Ludolf. No contexto dos seus trabalhos sobre a Etiópia, a questão religiosa assumiu um lugar de destaque. É o que poderemos constatar já na sua Historia Aethiopica,67 bem como no manuscrito a que deu o título Theologia Aethiopica.68 Este último fornece-nos importantes achegas sobre o método utilizado pelo investigador da história religiosa etíope. Nas obras de Francisco Álvares, Damião de Góis e Mattheus Dresser, Ludolf pôde informar-se detalhada e pormenorizadamente acerca das práticas religiosas na Etiópia. Quando, por fim, teve oportunidade de contactar com o etíope residente na Europa, Gregorius, Ludolf pôde então questioná-lo sobre a vida religiosa do seu país natal. Entre os temas focados surgiam questões relacionadas com os escritos que os etíopes consideram sagrados, como a sua posição frente à sagrada Trindade, quais os ritos ou sacramentos - como baptismo, casamento, circuncisão e enterro - que professam, bem como a possibilidade de os sacerdotes contrairem matrimónio. Neste rol de

65. Este teria convertido e baptizado o eunuco da rainha Candace Act. 8, 26-40. Álvares, pp. 157-161. 66. Veja-se, a este propósito, Mattheus Dresser, Oration von dem Jetzigen Zustand der christlichen Kirchen vnd Religion in Morenland vnter Priester Johan, Leipzig, 1583, p. 253: "Ist derwegen dieses der fürnembsten vnnd höchsten Weltthaten/ oder viel mehr der wunderwerck Gottes eines/ dardurch er seine Liebe/ Gnade/ vnd gütigkeit gegen der christlichen Kirchen/ zu dieser letzen Zeit der Welt bezeugt hat: Daß er diese so weit von einander gelegene Christliche Kirchen/ durch eine newe/ zuuor vnerhörte Schiffart gleich zusammen gefüget hat/ oder hat ja die Christen vnsere Mitbrüder/ so fern gegen Mittag in Africa wohnende/ und gezeiget/ damit wenn wir dieselben anschawen/ wir vber dem Zustande vnserer Christlichen Kirchen desto mehr vns freuen sollen/ so viel ein heller Liecht vnd durch die Gnade Gottes angezündet ist." Veja-se ainda David Chytraeu, Was zu dieser Zeit in Griechenland; Asien Africa vnter des Türcken vnd Priester Jiahnns Herrschafften..., Rostock, 1581, (s. L., 1584; edições em latim: Rostock, Frankfurt, Wittenberga, 1580, Wit-tenberga, 1581, Frankfurt, 1583) und J. Jacob Grasser, Ecclesia Orientalis et Meriodinalis. Eigentliche Beschreibung der Religions artickeln/ darauff die Christen in Asia vnd Africa/ vnten dem Türcken/ Tartar/ Moscowiten/ Persianer/ Priester Johan/ vnnd andern frembden Monarchien gesessen halten, Estrasburgo, 1613. 67. Frankfurt/M., 1691. 68. Veja-se Siegbert Uhlig, Hiob Ludolfs "Theologia Aethiopica", 2 vols, Wiesbaden, 1983.

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perguntas reconhecemos desde já que o esclarecimento sobre a cris-tandade na Etiópia é, para além de uma forte vontade de satisfazer uma imensa curiosidade, uma deliberada recolha de exemplos sobre um país cristão longínquo bem capaz de assegurar o debate religioso da ciência teológica coeva. Ludolf estava muito empenhado num intensivo e estreito diálogo com os cristãos etíopes, desejando assim calorosamente um intercâmbio a nível científico.69 Daí que, em 1663, envie para a Eiópia com o apoio do duque Ernst von Sachsen-Gotha-Altenburg um aluno, de nome Johann Michael Wansleben, no intuito de promover um estreito relacionamento entre os dois países. Mas, Wansleben apenas se deslocaria até ao Egipto, onde viria a desistir do contrato feito. Um segundo motivo no empenhamento de Hiob Ludolf em relação aos cristãos da Etiópia diz respeito a uma possível aliança que ambicionava estabelecer com este país na esperança de pôr cobro ao perigo turco que de novo se fizera sentir, em 1683, aquando do cerco a Viena. Por esta razão Ludolf escreve uma carta ao povo etíope formulando um acordo histórico entre os dois povos. Mas também a sua iniciativa, apesar de apoio imperial, não seria granjeada pelo êxito.70 Cristãos, judeus, muçulmanos e gentios, estes os quatro grupos religiosos que, a pouco e pouco, se distribuiam pelo novo espaço descoberto em África. A par e passo traça-se um quadro religioso de cada uma das regiões africanas, a fim de ordenar estes territórios ultramarinos na história religiosa mundial.71 Etiópia, Marrocos, Guiné, Alexandria, Monomotapa, Cabo da Boa Esperança, Angola, Congo e Moçambique faziam também agora parte do aceso discurso hierático europeu.72 Se, no início, é a vontade de conhecer as religiões desconhecidas que determina a busca permanente de novas informações, a partir da década de 60 do século XVII, os teólogos sentem uma enorme necessidade de efectuar uma classificação, ou melhor, uma comparação dos elementos recolhidos. Tal como já tinhamos testemunhado em relação aos usos e costumes de cada povo, também na doutrina teologal se declara urgente 69. Veja-se August Beck, Ernst der Fromme, Herzog zu Sachsen-Gotha und Altenburg, Ein Beitrag zur Geschichte des 17. Jahrhunderts, Weimar, 1865, p. 569-571. 70. Veja-se Uhlig, op. cit., pp. 285-290. 71. Veja-se, por exemplo, Bernhardi Vareni, op. cit. 72. Cf. Kirchen Historia..., 3 vols., Jena, 1566; Aubertus Miraeus, De statu religionis Christianae per Europam, Asiam, Africam et orbem Novum, Colónia, 1619; Hugo Grotius, Von der Warheit der christlichen Religion, Breslau, 1631; Georg Horn, Erzehlung der Kir-chengeschichten..., Schaffhausen, 1667.

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conhecer em paralelo as vivências religiosas espalhadas pelo mundo. Só conhecendo todas as formas possíveis de crer, de viver em acordo com o ser supremo eleito, reservando-lhe um lugar no dia-a-dia, nas cerimónias mortuárias, nos ritos religiosos, se poderá talvez ter uma opinião crítica face ao que se entende como a "verdadeira" religião. Após a recolha factual, realizar-se-á um estudo atento e cuidado; ao colocar, lado a lado, as práticas religiosas da Guiné, da China, da Itália ou da Índia, os doutrinadores procuram, através deste cotejo, encontrar os limites e fronteiras representativas de um comportamento dito religioso. Efectua-se aquilo que poderemos denominar de uma colecção monumental sobre a identidade religiosa, colecção esta em que o continente africano possui uma decisiva participação. Para se construir uma história da religião é preciso reunir as várias formas de religiosidade espalhadas pelo mundo, pois, ao esboçar as similaridades e as divergências, formula-se indubitavelmente a linha evolutiva e impulsionadora do ser humano; o intuito é claro: elaborar um panorama da história das religiões no mundo.73 Um dos exemplos mais representativos neste esforço de debuxar uma geografia religiosa encontra-se na obra de Alexander Ross Religions=Spiegel. Intitulado Der Welt unterschiedlicher Gottes Dienst/ oder Beschreibung aller Religionen vnd Ketzereyen in Asia, Africa, Ame-rica vnd Europa..., este compêndio, apresenta os credos, as religiosidades e os serviços religiosos de todo o orbe terráqueo desde o início do mundo até ao momento da publicação. O seu autor, partindo do princípio de que nenhum povo será tão selvagem ou barbáro que não acredite vivamente na existência de um ente supremo, considera fundamental e imperioso distinguir as diferentes opiniões em torno do conceito divino, bem como as diversas maneiras encontradas para o servir. Segundo Ross, a luz inerente à palavra de Deus ainda não iluminou todos os homens, e mesmo aqueles que a viram nem sempre a reconhecem no seu dia-a-dia. O seu Re-ligions=Spiegel propõe-se, por isso, ajudar nesta questão, informando sobre a verdade divina. Não obstante esteja consciente de que muitos prefeririam não ter conhecimento da pluralidade e diversidade de religiões, o autor acha que é necessário conhecê-la, pois, como afirma no prólogo: "A Sagrada Escritura refere muitos pecados, ídolos, ou deuses falsos; deverá, por este íncomodo ser castigada" e continua afirmando que se poderá aprender muito com as "ideias hereges", pois "[...] como poderíamos reconhecer a magnificência da claridade se não 73. Recordemos as obras de E.W. Happel e Erasmus Francisci, onde os autores debuxam autênticos inventários culturais de todo o globo, sendo a religião um dos tópicos a aflorar.

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conhecessemos a escuridão [...] o caminho para o céu estaria cheio de ladrões e assassinos, mas isso não significa que os sigamos e nos modi-fiquemos. Como os poderemos evitar se não os conhecemos, e como conhecê-los, se eles nos ficam ocultos".74 O propósito deste seu livro é revelar ao leitor os diversos seres divinos, mesmo os mais cruéis, uma vez que a religiosidade, mais do que a razão, é um predicado humano. No seu entender, ajudando a reconhecer o erro, o conhecimento dos diferentes serviços religiosos mostra o verdadeiro caminho para a salvação. Como num manual geográfico, Alexander Ross percorre as várias regiões do globo e apresenta-as, não nas suas características físicas, mas nas suas vivências religiosas. Inicia o seu debuxo com a Ásia, onde destaca os primeiros passos do culto. Seguindo os testemunhos do Antigo Testamento fala do primeiro sacríficio oferecido por Moisés, do templo de Salomão, da construção da primeira catedral e dos profetas, isto é, práticas ilustrativas do nascimento de uma religião. Num pequeno excerto analisa os judeus de "hoje", que considera, severamente, tratar-se de um povo cego e teimoso que, como o Apóstolo diz, se revoltou contra o Espírito Santo.75 Ross que ainda não abdicou de acreditar que alguns se venham a converter, entende que se deverá aceitar judeus numa comunidade cristã na esperança da sua conversão. Depois de percorrer a Ásia, desde a antiga Babilónia até ao Japão, passa ao continente africano e ao americano no mesmo intento de salientar as diferentes zonas de influência do judaísmo, paganismo, maometanismo e cristianismo. Por fim, retem-se na Europa para traçar o seu percurso hierático desde a simples adoração do sol até ao momento presente. Neste contexto, informa-nos detalhadamente sobre a segunda religião europeia: a maometana. Este Religions=Spiegel, entendido como uma obra de consulta, traça o espírito religioso nas suas diferentes variantes e vertentes. Recolhendo as diferentes facetas de manifestações de fé, este espelho não visa apenas localizar e classificar cada uma delas segundo a sua adesão às principais

74. "Die Schrift nennt viel Sünden/ Götzen/ vnd falsche Götter/ soll darumb dieselbe einiger Ungelegenheit halben bestrafft werden? e mais "[...] wie würden wir die Herrlichkeit des Liechts kennen/ wan keine Finsternüsse wäre [...] Der Weg zum Himmel ist beseßt mit allzu viel dieben vnd mördern/ darumb müssen wir auff demselben nicht wandeln. Wie wollen wir aber dieselbe meiden/ wan wir sie nicht kennen/ vnd wie sollen wir sie kennen/ wan sie verborgen werden?". Alexander Ross, Die Welt unterschiedlicher Gottes Dienst/ oder Beschreibung aller Religionen vnd Ketzereyen in Asia, Africa, America vnd Europa, von Anbeginn der Welt/ biß auff gegenwertige Zeit, Heidelberga, 1665, prólogo. 75. "[...] was haben wir dan/ belangend die heutige Juden zu mercken" e responde "[...] daß sie ein blindes/ hartneckoges, halsstarriges Volck seind/ welche wie der Apostel sagt/ dem H. Geist allezeit widerstanden, und in einem verkehrten Sinn übergehen seind". Idem, p. 71.

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formas de culto, mas intenta, com este mapa religioso, lançar os fundamentos para um debate sobre a essência de devoção. No final deste Religions=Spiegel disserta ainda reflexivamente sobre o papel da religião na vida de um povo. Alexander Ross considera que a crença, fundamento de um governo, será a base consolidadora de todas as repúblicas, bem como de todas as sociedades humanas,76 pelo que, no seu entender, os dirigentes políticos dever-se-iam preocupar com a vida religiosa dos seus cidadãos, tendo em atenção que mais do que um culto religioso num mesmo território poderá pôr em dúvida a segurança nacional. Segundo Ross a "polícia", pedra viva do grande edifício político, fundamentar-se-ia na harmonia, na unidade e na concórdia ditada pela religiosidade.77 Fundamento vital de ligação entre os homens, o espírito devoto é a mola articuladora e essencial de uma sociedade. Estimulados por uma sagaz curiosidade em conhecer outras crenças, os homens de letras chegariam, após um longo processo de classificação, a um novo estádio de reflexão. Aspirando a verdadeira religião, os eruditos europeus iniciam uma auto-reflexão sobre a sua condição de cristão. O facto de tal implicar um debate sobre credos alheios, capazes de reclamar certa atenção, lança algumas objecções e incertezas, originando o que se iria chamar de crise de consciência europeia. Como se poderia justificar ser o Deus cristão o verdadeiro;78 como explicar que muitos outros povos que não o conhecem seriam tão cristãos como os maiores crentes; qual a resposta da Sagrada Escritura à crescente autonomia individual? A abertura do horizonte conhecido, trouxe uma série de novidades, entre elas, de que as fronteiras de relacionamento com o divino não seriam tão claras e explícitas como se tinham julgado, pelo que cada vez seria mais difícil reconhecer "le dieu caché".79

76. Recordemos obras como as de Giovanni Botero; veja-se cap. 3.1.3. 77. "Das Wesen und Leben einer Republick besteht in der Liebe/ Einigkeit und Einträchtigkeit; diese aber werden durch die Religion, dan es ist kein Band so eng und so daurhafftig/ als das von der Religion, wodurchalle die lebendige Steine des grossen Gebäws der Königreichen und stände aneinander gemauret..". Alexander Ross, op. cit., p. 951. 78. Como, por exemplo, Spinoza reflecte no seu Tractatus Theologico-politicus (1600). Veja-se Paul Hazard, Die Krise des europäischen Geistes 1680-1715, Hamburgo, 1939, p. 172-181. 79. O Deus de Israel e de Jacob pode ser substituído por um deus abstracto, o regente da Ordem do Universo. Este é, contudo, incapaz de milagres. Quanto à tradição parece mentir e a lei de Moisés já não é a palavra que Deus ditou no Monte Sinai, mas sim uma lei humana que traz os vestígios dos Hebreus e dos Egípcios. A Bíblia é um livro similar a muitos outros, cheio de alterações e talvez de arrependimentos, onde se contam histórias e lendas, tal como os livros sagrados de outros povos. Veja-se Paul Hazard, op. cit., pp. 182-183, em especial, a análise do "dieu caché" de Pascal. Veja-se sobre esta temática, Lucien Goldmann, Der

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Ao descobrir outras vivências religiosas, o cristão procura certificar-se da verdade de Cristo e acredita que esta é verdadeira fé que se deve dar a conhecer ao mundo. O diálogo com os credos alheios interroga, contudo, a sua indelével doutrina, ao descobrir outras religiosidades e comportamentos. Alexander Ross a esta nova questão doutrinal, ainda responde inequivocamente: "[...] melhor uma religião falsa do que nenhuma; melhor uma religião idólatra do que ateísta".80

verborgene Gott, Studien über die tragische Weltanschauung in den "Pensées" Pascals und im Theater Racines, Frankfurt, 1985. 80. "[...] lieber eine falsche Religion als keine; lieber eine abergläubige Religion als die Atheisterey". Alexander Ross, op. cit., p. 876 critica ferozmente os ateístas que não aceitam a religião como fundamento da realidade humana e da polícia. No fim do seu depoimento, Ross define claramente dois grupos, de um lado os que acreditam que a realidade humana se baseia no divino e na salvação da alma, onde inclui os cristãos da igreja ocidental e oriental, os judeus, os maometanos, os gentios e, do outro lado, os ateístas e libertinos.

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3.4 Dimensões Históricas

3.4.1 África na História da Humanidade Os historiadores alemães do século XVI não ficariam indiferentes aos acontecimentos que se passavam além-fronteiras conscientes da sua capital importância para a motricidade histórica. Na verdade, os factos ocorridos desde os finais do século XV despertavam a atenção de todos os interessados pelas "coisas da humanidade" (Damião de Góis). A abertura do horizonte operada com as viagens dos Descobrimentos seria, desde logo, interpretada como a estonteante novidade do tempo presente, que urgia anotar nas suas diferentes dimensões e vertentes. O conhecimento da empresa marítima, o avanço ao longo do Oceano Atlântico, a passagem para o Oceano Índico e a chegada às Índias - Orientais e Ocidentais - constituariam um sinal de mudança: uma nova época. A descoberta de um mundo novo, embora não espontaneamente apreendida, seria paulatinamente tema dos discursos coevos. Já nos finais do século XV se declara a importância e a necessidade de integrar os factos das actividades marítimas na história actual. Hartmann Schedel refere, na sua crónica (1493) as navegações dos portugueses, nomeadamente, as viagens de Diogo Cão ao longo da costa africana, bem como a descoberta e colonização das ilhas atlânticas.1 Este o primeiro passo no registo das novas informações, o qual se iria tornar, dado o enorme afluxo de notícias, uma prática corrente no esquisso desejado para a construção da história da humanidade. Assim, no seguimento da crónica de Hartmann Schedel, as informações das viagens dos Descobrimentos adquiriam um lugar de relevo no discurso histórico então produzido. Se inicialmente se trata apenas de pequenas notícias, estas não deixam de ser inseridas na historiografia alemã, mesmo em obras, cujo principal propósito seria elaborar uma reflexão sobre a história nacional. É o caso da do humanista Willibald Pirckheimer Sermones convivales Cõradi peutingeri: de mirandis Germanie antiquita-tibus (1506);2 entre vários factos e acontecimentos particulares do meio geográfico germânico, Pirckheimer faz alusões às novas regiões no Oriente e na Índia Ocidental. E se esta referência e inclusão se faz, muitas vezes, apenas para demonstrar que as regiões recém-descobertas já seriam 1. Hartmann Schedel, Weltchronik, Nuremberga, 1493, Folha CCLXXXV. 2. Veja-se dazu Paul Joachimsen, Geschichtsauffasssung und Geschichtsschreibung in Deuschland unter dem Einfluß des Humanismus, Leipzig, Berlim 1910, pp. 155-195.

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conhecidas, tratando-se apenas de um avivar simbólico de dados caídos no esquecimento - visto que muitas informações dos antigos autores se tinham perdido -, a anotação actual é, contudo, sintomática da vontade de dar continuidade aos acontecimentos históricos e de lhes reservar um lugar, ainda que incerto, na descrição do mundo. Tendo em linha de conta que à ciência histórica competeria, em primeiro lugar, guardar os factos como fonte de informação e de instrução - assim estavam convencidos os eruditos do século XVI e XVII -, dever-se-ia pois recolher todos os dados históricos, por assim dizer, indelével matéria prima; isto porque o único fim da história é: auferir a chamada lição pe-dagógica. Cabendo à narratio apresentar os exemplos particulares, é dever do historiador reunir e ordenar os dados no adequado e condigno posicionamento cronológico e geográfico, pois, só por esta via se poderá explicitar o desenrolar dos acontecimentos. Ao historiador cumpre assim apresentar e esclarecer de uma forma clara e concisa as causas originárias de um acontecimento. Neste trabalho de pesquisa e verificação, ele deverá ser determinantemente submisso a uma das principais leis históricas: o zelo pelo postulado da verdade. Sendo o historiador quem determina um caso histórico, ao sentenciar os factos, deverá manter a devida distância, sem esquecer, ao mesmo tempo, a visão de conjunto dos acontecimentos. Daí que um cronista que se preze, deva cultivar a erudição tanto no que esta implica de sabedoria como de formação. As investigações históricas deveriam, assim, fixar o seu objecto de estudo em acções decorridas em determinado espaço e tempo históricos. Neste intercalar de comportamentos individuais ou colectivos caberia à pesquisa histórica decifrar o impulso accionador, aguardando-se do historiador a descrição precisa e detalhada dos factos inevitavelmente esclarecedora da motricidade histórica. Esta índole utilitária da ciência histórica estaria em perfeita harmonia com a obrigação de apresentar correcta e ordenadamente as fontes documentais sobre as factos e os acontecimentos do passado. A Historia magistra vitae, tal como a definira Cícero, é a concepção que deslumbramos na historiografia dos séculos XVI e XVII. A sua grande missão está assim na orientação prática e experimental que deve legar à vida diária.3

3. Sobre a historiografia humanista, veja-se Paul Joachimsohn, Die humanitische Geschichtschreibung in Deutschland, Bona, 1895; Eduard Fueter, Geschichte der neueren Historiographie, Munique/Berlim, 1936 (Repr. 1968); Rüdiger Landfester, Historia magistra vitae. Untersuchungen zur humanistischen Geschichtstheorie des 14. bis 16. Jahrhunderts, Genève, 1972; Eckhard Keßler, Die Ausbildung der Theorie der Geschichtsschreibung im Humanismus und in der Renaissance unter dem Einfluss der wiederentdecken Antike, in:

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Através da leitura das obras históricas adquirir-se-ia, no ver dos letrados coectâneos, uma lição moral e pedagógica sobre o mundo e os seus habitantes. O leitor das crónicas seria assim elucidado e aprenderia a his-tória da sua região, do seu país ou mesmo de outras nações. O que importava era que ao ler as obras históricas, ele pudesse aprender assuntos e questões que lhe eram desconhecidos, e que o ajudassem no seu dia-a-dia. Ao conhecer casos e aspectos ignotos, a historiografia ganhava um valioso significado no enriquecimento cultural, pois "Cada um recorda melhor os exemplos próprios; exemplos estrangeiros encontram-se nas histórias".4 "Exemplos estrangeiros", alheios e diferentes que os autores germânicos poderiam inseriar nas suas obras, quer de carácter regional quer de âmbito nacional, não faltavam nesta época de profundas alterações. Entre estes exemplos encontravam-se as notícias referentes às viagens dos Descobrimentos. Por exemplo, a Chronica/ Beschreibung vnd gemeine anzeyge/ von aller Wellt herkommen/ Fürnamen Lannden/ Stande/ Eygenschafften/ Historien/ wesen/ manier/ sitten/ an vnd abgang5 ao actualizar o seu conteúdo informativo, em meados do século XVI, introduz no texto então publicado algumas novas referentes à empresa ultramarina. Nas edições anteriores, esta crónica em apego à tradição medieval limitara-se a informar sobre o império romano-germânico.6 Mas, na terceira década do século XVI, denotar-se-ia uma evidente reformulação e acrescento de informações, a que a edição de 1535 se queria ajustar. Na descrição territorial, de harmonia com os princípios geográficos tradicionais, o mundo habitado dividir-se-ia em três partes: África, Europa e Ásia. Como se anota, a quarta parte, situada quase fora do mundo, ficaria por descrever; recentemente descoberta e povoada com gentes ignotas, esta região representaria algo de extraordinário e maravilhoso sobre o qual muito haveria para ler pois todos os dias se descobriria terra nova e gentes desconhecidas, parecendo um mundo sem

August Buck und Klaus Heitmann (Ed.), Die Antike- Rezeption in der wissenschaften während der Renaissance, Weinheim, 1983. 4. "Von vnsern eigenen Exempeln kan ein jeder sich selbsten am besten erinnern/ Von frembden Exempeln findet man in den Historien". Caspar Peucer na sua edição da Chronica Carionis von Philipp Melanchton, Wittenberg, 1588, p. 28. 5. Chronica/ Beschreibung vnd gemeine anzeyge/ von aller Wellt herkommen/ Fürnamen Lannden/ Stande/ Eygenschafften/ Historien/ wesen/ manier/ sitten/ an vnd abgang publicada por Christian Egenollff, em Frankfurt, no ano de 1535. 6. Não se menciona o nome do autor das crónicas publicadas por Christian Egelnoff. Segundo Henry Harrise, Biblioteca Americana, Nova Yorque, 1967, p. 346 trata-se de uma edição tardia da crónica de Heinrich Steinhowels (1531).

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fim e a obra do Criador ilimitada -7 esta é, todavia, a única referência à quarta parte do mundo; pelos vistos o autor já teve conhecimento da existência de novos mundos, mas, por enquanto, pouco sabe sobre o seu lugar geográfico no mapa-mundi actual. Nesta pequena apresentação África, tal como se descrevia em publicações coevas, surge repleta de criaturas fabulosas e monstruosas - apenas as notas referenciais à cidade do Cairo conseguem ter uma dimensão real e actual. No capítulo reservado à Ásia, pelo contrário, fazem-se muitas e detalhadas referências à viagem marítima, mas o tema a que é dada maior atenção é ao confronto entre cristãos e pagãos. Vejamos um exemplo. Nos conflitos armados com o rei de Calecute, os portugueses, graças à interferência de Deus, teriam alcançado uma gloriosa vitória frente a este inimigo da fé. O autor relata ainda que muitos dos gentios teriam logo concluido que o Deus dos portugueses seria um Deus bom e poderoso e o seu chefe um rei cristão, senhor de um mundo que não conheciam.8 As navegações marítimas fariam parte de um plano divino, em que os portugueses dignos cruzados ajudados por Cristo venceriam a idolatria.9 Tal como nas edições anteriores, esta crónica, escrita em nome do Criador, deverá traçar a via para chegar até Ele.10 Importa salientar que esta crónica, publicada por Egenolff, se encontra naturalmente na tradição das crónica-mundi da Idade Média, ou seja, ela deverá apresentar os factos históricos na sua ordem cronológica. Esta ordem baseia-se numa determinada concepção de seleccionar os acontecimentos. Por detrás desta concepção, formula-se o conhecimento de que os acontecimentos e, naturalmente, o devir histórico dependem de uma ordem eleita por Deus.

7. Chronica, op. cit., p. II recto. 8. "Hernach den vierten theyl der welt auch setzen/ so gefunden mit menschen bewonet/ dauon wunderbarlich vnd lustig zulesen ist/ auch täglich noch heut new land/ Insel vnd leut gefunden werden/ das schier die meynung für war möcht angesehen werden/ es seind vil vnzalbar welt/ vnd das die welt on end sey/ dann täglich findt sich etwas newes/ in den wercken des wunderbarlichen Gottes/ der nit auß zulernen ist". Idem, p. XXXI recto. 9. "[...] den wunderwirdigen sig gab Gott dem kriegsvolck des königs von Portugal wider die hund vnd feind des glaubens/ den ich darumb gesetzt hab/ das wir sehen/ wo Gott mit ist/ kan nichts wider sein/ also erlag das kriegs volck des Königs von Calicut/ Got geb uns seinen frid/ Amen. Vil auß den Heyden sagten/ der Gott der Portugaleser/ ist ein starcker vnd gütter Gott/ sighafft/ etliche sprachen sie hetten den Teufel. [...] das ist der Christen Gott/ alleyn ein Herr der welt/ so sprachen sie: es ist war/ wir kennen jn aber nit". Idem, p. XXXI-XXXII. 10. Veja-se Anna Dorothee von den Brincken, Studien zur lateinischen Weltchronistik bis in das Zeitalter Ottos von Freising, Düsseldorf, 1957; Martin Haeusler, Das Ende der Ge-schichte in der mittelalterlichen Weltchronistik, Colónia, Viena, 1980; W. Kaegi, Chronica mundi, Grundformen der Geschichtsschreibung seit dem Mittelalter, Einsiedeln, 1954; F. Landsberg, Das Bild der alten Geschichte in mittelalterlichen Weltchroniken, Basileia, 1934.

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Assim como criou o mundo, Deus também determina o percurso histórico: linear e delimitado. Tudo começa com a criação do mundo e terá o seu fim com o Juízo Final. A função do cronista é, assim, ordenar os acon-tecimentos profanos nesta periodização divina. Às crónicas cabe, pois, apresentar a obra de Deus e acompanhar o plano divino. Daí que o editor, Christian Egenolff refira que: "As histórias serão lidas com proveito não simplesmente pela admiração da história em si, mas pelo reconhecimento da obra de Deus que aí se reflecte".11 Na verdade, seguindo os preceitos de uma crónica-mundi medieval, esta obra deveria focar o trajecto histórico desde os inícios do mundo até ao Juízo Final. Visando apresentar todas as aetates do mundo, a estrutura narrativa de uma crónica assinala as etapas da história da humanidade desde as origens, passando pela formação da igreja romana até ao império germânico. Com efeito, "Quem quiser ler histórias com utilidade deve organizar todas as épocas desde os inícios do mundo numa ordem correcta, daí que muitos tenham dividido o mundo em sete aetates."12 Em apego à teoria das quatro monarquias, esta crónica enumera os principais monarcas e quando chega ao Imperador Maximiliano I introduz surpreendentemente, depois de uma informação relativa ao ano de 1495, um capítulo intitulado "Da America, quarta parte do mundo descoberta Anno M.cccc. xcvij".13 Neste capítulo refere-se à viagem de Américo Vespúcio e à descoberta de uma fantástica "ilha" povoada de gentes cruéis e brutais, animais estranhos e desconhecidos, pedras preciosas e aves de encanto. Prossegue-se então com o "Novo Mundo que sob Portugal se descobriu no Anno M.cccc.lv"14 e é a vez de se relatar sobre as viagens de Luís de Cadamosto, Pedro Álvares Cabral, Cristovão Colombo, Américo Vespúcio e Fernando Cortês. Este facto leva-nos a concluir que aqui, tal como já tinhamos presenceado no capítulo dedicado à América de Sebastian Franck,15 o mundo novo se apresenta ainda como um bloco associado ao continente americano, recorrendo-se precisamente às mesmas fontes.16 Mas como na realização de uma obra histórica também se visa estar a par das novas informações, intenta-se, desde já, integrar os factos

11. "Dann werden aber Historien mit frucht gelesen/ so mann nit alleyne die geschicht ansihet vnd verwundert/ sonder gotes Werck darinn acht nimpt... ". Chronica, op. cit., prólogo. 12. "Wer Historien nützlich lesen wil/ soll alle zeit von anfang der welt/ in ein richtige ordnung fassen/ darumb haben etlich die Welt geteilet/ in siben Aetates". Idem, p. XXXII. 13. "Von America dem vierdten theyl der Welt/ Anno M.cccc. xcvij. erfunden". 14. "Newe Welt so mann gefunden hat/ Anno M.cccc.lv vnderhalb Portugal". 15. Sebastian Franck, Weltbuch, Tübingen, 1534. Veja-se cap. 3.1.1 16. Idem; trata-se da antologia Paesi novamente retrovati, publicada em alemão no ano de 1508.

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recentemente documentados na cosmovisão do mundo, embora de modo impreciso e fortuito. Como vimos, as crónicas devem dar a conhecer factos históricos. Os diversos planos da realidade humana, que não só são paralelos como se entrecruzam e se determinam reciprocamente, reunem-se numa obra histórica, que, na opinião do letrado Sebastian Franck, deverá dar a conhecer os exemplos que a Sagrada Escritura ensinou e a história vive.17 Sebastian Franck pretende que os leitores, qualquer que seja o seu interesse, encontrem nesta obra o que desejam saber. Assim, quem muito quiser saber sobre o como, quando e qual a razão e origem de todas as coisas, seja sobre o papado, o império, as ordens, as realezas, as moedas, as artes e as idolatrias poderá questionar esta crónica e verá satisfeita a sua curiosidade.18 Ao apresentarem a história desde os inícios da humanidade, as crónicas dão a conhecer a história viva, a que vê e ouve a Deus desde Adão até à vinda do anti-Cristo, fornecendo como num espelho os usos e costumes, enfim, a polícia.19 Ao destacar as diferentes fases e vertentes do percurso civilizacional, a crónica reflecte os princípios determinantes e impulsionadores da história humana. A ciência histórica no seu carácter didáctico de "mestre da vida",20 fornece os fundamentos da aprendizagem cultural. Assim, "[...] é certo que ao cimo da terra não existe livro mais útil do que as histórias, compreendidas como uma doutrina elevada de recordações e exemplos magníficos", escreve M. Eusebius Menium no prólogo da Chronica de Philip Melanchthon. Já o escritor e historiador Políbio teria dito, continua, que a História seria a maior segurança de todos os governos mundiais e a única mestra na aquisição da felicidade.21

17. "Daraumb beüt dise Chronick/ wie ich verhoff/ der Bibel gleich die hand vnd was die Schrift gebüt/ leret oder verbeüt/ das lebt die historia vnd Chronik vnd stellt dises nit unartig exempel für die augen". Sebastian Franck, Chronica Zeit=Buch..., Ulm, 1536, p. V. 18. "Wer vil erfahren will/ wie/ wan/ wa/ durch wen all ding sein vrsprung haben/ mess/ heiligen ehr/ bilder/ papst/ Keiserthumb/ alle örden/ herrschaft/ adel/ zoll/ zehendauffrür/ Truckerey/ müntz/ das geschütz/ alle Kunst/ Ketzerei/ aberglauben/ vnd alles damit die welt vmbgeet/ die frag dise Chronik/ er wirdt doch etwas zufriden gestelt". Idem, prólogo. 19. "Wiltu denn haben ein Spiegel güter burgerlicher pollicey/ vnd ist dir nach mancherley sitten/ Ordnungen/ regimenten/ vnd weltweißheit/ gach. So findstu hie geweret allerley pollicey/ vnd regiment/ der Juden/ Heyden/ Christen/ Türcken auch jr glück/ beystand vnd niderfall". Idem, prólogo. 20. Sebastian Franck, Weltbuch, p. ij. 21. "[...] ist gewiß das auff Erden kein nüßlichere Bücher seyn/ in welchen hoher Lehre nötiger erinnerung/ vnd herrliche Exempel begriffen werden/ als Historien [...] Historien wissen/ sey die aller gewisseste anleytung vnd zubereytung zu aller weltlicher Regierung/ vnnd sey der beste Schulmeister/ der allerley verenderung des glücks recht traget lehret". Philip Melanchton, Newe volkommene Chronica, Franckfurt, 1569.

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Mas, se nas obras históricas se devem reunir cuidadosamente as fontes documentais, à selecção, interpretação e crítica das mesmas não se deverá dar menor atenção. Isto sem esquecer a escolha do tema a abordar. Com efeito, a ciência histórica poder-se-ia dedicar, por exemplo, à história pagã, caso pretendesse aprofundar as primeiras manifestações historiográficas reveladoras de um sentimento de identidade ou solidariedade entre os povos. Daí o interesse em estudar a genealogia bíblica, partindo do exemplo de reis e representantes das primeiras monarquias ou a continuidade histórica da igreja no intuito de pesquisar a história da cristandade. Ao salientar a sua dinâmica moral ou didáctica,22 ao estudar as complexidades humanas e as consequentes transformações no mundo - quantas vezes seriam a sorte ou o azar a influenciar o decorrer dos acontecimentos do poder político ou ecleseástico,23 a historiografia adquiria a qualidade de um espelho onde se poderiam reconhecer as virtudes e os vícios.24 Além disso, esta ciência não deverá ser só uma descrição dos acontecimentos, mas também uma descrição geográfica do espaço territorial25 e social, quando, por exemplo, se visa formular a história de uma instituição.26 Em suma, qualquer que seja o tema escolhido, a narrativa histórica tem como propósito delinear a riqueza cultural.27 Isto é: "Pois o que são as histórias mais do que a reunião de um tesouro do passado, uma imagem ou um espelho das coisas futuras, um esboço ou uma pintura da vida humana, uma prova das nossas acções, uma iniciação e, ao mesmo tempo, um instrumento da nossa honra, um documento do tempo, uma mensagem ou anunciação da história antiga que nos anima a abraçar as virtudes e a evitar a depravação".28 22. Vide, entre outros, Johan Ludwig Gottfried, Historische Chronica oder Beschreibung der fürnembsten Geschichten ..., Franckfurt, 1630-1634, 4 vols. Também aqui se encontra a teoria das quatro monarquias imperiais. 23. Jacobi A. Tuani, Historische Beschreibung deren namhafftigsten/ geistlichen vnd weltlichen Geschichten..., Frankfurt, 1621. 24. "[...] als in einem Spiegel ersehen und erkennen kan/ was in der Welt gutes oder böses geschehen". Georg Horns, Erzehlung der Kirchengeschichte/ so von Anfang..., Schaffhausen, 1667. 25. Veja-se, Giovanni Botero, Allgemeine Weltbeschreibung, Munique, 1596. 26. Veja-se sobre a Companhia de Jesus, J. P. Maffei, Kurtze Verzeichniß und Historische Beschreibung/ so von der Societet Iesu in Orient..., Ingolstadt, 1586. 27. Sobre as diferentes conotações do conceito 'história' na Idade Moderna, veja-se Joachim Knape, Historie im Mittelalter und früher Neuzeit. Begriffs-und Gattungsgeschichtliche Untersuchungen im interdisziplinären Kontext, Baden-Baden, 1984. 28. "Dann was seind die Historien anderst/ als ein versambleter Schaß der vergangnen/ ein Ebenbild oder Spiegel der zukünftigen Ding/ ein Abriß oder Gemäld deß Menschliches Lebens/ ein Prob unserer Thaten/ ein Anführung vnd gleichsamb ein Werckzeug unserer Ehr/ ein Zeuschafft der Zeit/ ein Bottschaft oder Verkündigung der alten Geschicht/ die uns zu

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Na intenção de compreender a realidade humana, entendida num plano universal, a historiografia coeva debruça-se sobre o estudo de outros povos, outras culturas aceites como uma obra divina até agora desconhe-cida. O conhecimento de "exemplos" além-mar iria tornar-se uma meta e uma prática das obras históricas dos séculos XVI e XVII.29 É o caso do já, várias vezes, referenciado Weltbuch de Sebastian Franck, ou dos escritos de Paulo Jóvio30 ou de Laurentius Surius,31 testemunhos inestimáveis do desejo de narrar as histórias actuais e compilar os dados e documentos contemporâneos - entre eles, os factos divulgados pelas viagens dos Descobrimentos - numa busca da verdade histórica. Se, de facto, não faltam temas de suma importância para a escrita narrativa, convém inquirir, no entanto, como é que os autores recolhem o seu material, qual o método utilizado na inventariação documental, bem como na selecção de fontes. Uma observação atenta das obras historiográficas publicadas na Alemanha ao longo do século XVI permite-nos constatar que estas são, na sua maioria, uma compilação de escritos na tradição das enciclopédias medievais; recorrendo a este processo, os autores ver-se-iam à altura de abordar um vasto espectro de acontecimentos relacionados com as empresas marítimas.32 Alusões a textos coevos ou referências nas listas de autores editados revelam que as relações de viagens seriam, também para os historiadores, a fonte por excelência. Mas quais as razões que levam os autores alemães a recorrer à Literatura de Viagens? Tal como já tivemos oportunidade de testemunhar em annemmung der Tugenden vnd meidung der Lastern auffmuntern?". Aegidium Albertinus, Allgemeine Historische Weltbeschreibung, Munique, 1611, prólogo. 29. Existem obras que apresentam, desde já, os principais acontecimentos históricos e factos em tabelas cronológicas. É o caso de Matthaeo Dresser, Cronica, von Anfang der Welt/ biß auffs Jahr..., Leipzig, 1596. Outras abordam só um determinado período, como por exemplo, Chronica, oder Zeitregister vnd warhaffte Beschreibung/ Fürnemmster vnd Gedenckwürdiger Sachen Händel/ So sich von dem 1600. Jahr an/ Nach Christi Geburt/ biß auff das An. 28. Jahr hernach/ nit allein im H. Römischen Reich/ Sondern auch in gantzem Europa, Asia, vnd África, begeben vnd zugetragen..., Augsburgo, 1628. 30. Wahrhafftige Beschreibung aller chronickwirdiger namhafftiger Historien vnd Geschichten..., Franckfurt a/M., 1570. Jovio critica tão severamente a política económica portuguesa, que Damião de Góis se sente impelido a dar-lhe uma resposta. Ver Amadeu Torres, As cartas latinas de Damião de Góis, Paris, 1982, pp. 319-20. 31. Kurtze Chronik ober Beschreibung der vornembsten händeln vnd geschichten/ so sich beide in Religions vnd weltlichen Sachen..., Colónia, 1568. 32. "Auß glaubwirdigsten Historien [...] nach historischer Wahrheit beschrieben" escreve C. Egelnoff no título da sua crónica (1535). Também Herman Fabronus Mosemanus Newe summarische Welt=historia, Schmalkalden, 1614, prólogo, p. 6, reconhece que compilou as suas informações de vários autores.

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capítulos anteriores, estas obras constituíam uma importante recolha de observações precisas e detalhadas sobre regiões e assuntos até então desconhecidos, surgindo como uma preciosa ajuda no preenchimento das manchas em branco dos mapas-mundi. Tendo em consideração que a ciência histórica vive do relato vivencial, da Autopsia,33 a historiografia é, também, um registo pessoal, um caso particular e ainda um testemunho verídico. Sendo-lhes reconhecida grande veracidade, as relações de viagens seriam, como qualquer outro registo documental, uma narrativa histórica. Assim equiparadas também elas forneciam exemplos e factos capazes de construir a história de uma região34 de um reino e do seu povo,35 de uma batalha36 ou ainda o desenrolar de acontecimentos histó-ricos, como a descoberta do caminho marítimo para a Índia.37 Elas são ainda para os historiadores dos séculos XVI e XVII pilares de verdade histórica. Ao apresentarem dados constituintes e vitais da formação do mundo, ao instruirem e informarem sobre partes do mundo pouco conhecidas, estas obras assumem declaradamente um carácter de "lectionem Historiarum".38 O teólogo Salomon Schweigger salienta que teve este aspecto em consideração ao escrever a sua Ein newe Reisebeschreibung..., pois está consciente de que as histórias com os seus exemplos constituiem "um bonito espelho da vida humana".39 33. Esta imagem que já vem de Políbio salienta o imensurável valor da história vivencial. Cf. Rüdiger Landfester, op. cit, pp. 102-108. 34. Giovanni Cavazzi, Historische Beschreibung der in dem untern Occidentalischen Moh-renland ligenden drei Königreichen Congo, Matamba und Angola..., Munique, 1684. 35. Francisco Álvares, Wahrhaftiger Bericht von den Landen/ auch geistlichen und weltlichen Regiment des mechtigen Königs in Ethiopien, Eisleben, 1566. 36. Damião de Góis, Glaubhafftige Zeytung und Bericht des Krieges so zwischen dem Künig auß Portugal/ und dem Türckischen Kaiser...verlauffen, Augsburgo, 1541. 37. Fernão Lopes de Castanheda, Wahrhafftige vnd vollkomene Historia/ von Erfindung Calecut vnd anderer Königreichen/ landen vnd Inseln/ in Indien/ vnd dem indianischer Meer gelegen..., S.L., 1565. 38. Não esquecer a vertente educacional salientada em quase todas as relações de viagens; os autores viajam pelo esmero que dedicam à sua própria formação intelectual. Veja-se, neste sentido, Ludovico di Vartema, Hodeporicon Indiae Orientalies..., Leipzig, 1610; no prólogo desta edição, Hieronymus Megiser anuncia que muitos teriam, através das viagens, adquirido "[...] mais experiência, ciência e sabedoria" [mehrere Erfahrenheit/ Wissenschaft vnd Verstand dardurch zuerlangen"]. 39. "Ein schönen Spiegel des Menschlichen Lebens/ welchen Spiegel auch alle Verstendige Löbliche Regenten jeder Zeit vor Augen gehabt/ vnnd in allen vorfllenden wichtigen Händeln denselben/ ald Regulám Lesbiam, in acht genommen/ sich darnach im Regiment/ gleich wie die Schiffleut auff dem hohen Meer nach den Compaß richten/ inmassen dann der vorgedachte Author [Tucidides] die nußbarkeit der Historien mit solchen Worten rühmbt [...] Das ist/ die Historien dienen darzu/ daß ein jeder/ er sey im Regiment oder Privatstand/ nit allein von allen vorfallenden wichtigen Sachen mit grund vnnd mit Verstand wiß zu reden/

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Mas não só os próprios autores das relações estão cientes da importância documental do seu apontamento. Como já tivemos oportunidade de frisar, é por considerarem estas obras fontes vitais para o conhecimento da his-tória do mundo, que os editores e homens de letras germânicos empreendem um largo número de traduções. Entre os autores de obras estrangeiras, onde se descrevem fabulosas viagens pelo mundo, encontram-se, como podemos apreciar, holandeses, franceses, ingleses, italianos, espanhóis e portugueses. Nos prólogos, a comprovar a sua admiração, os editores reafirmam a imensurável importância da Literatura de Viagens: estas obras, verdadeiras histórias, são as verídicas fontes do momento presente; daí que se empenhem quer na tradução quer numa cuidadosa leitura e análise40 destes escritos. Embora se tratem de obras de vertentes e carácteres distintos - entre a Literatura de Viagens encontramos textos de diferentes genéros e estilos -desde o mero relato de viagem, ao diário de bordo, ao roteiro até à grande compilação escrita pela pena de um historiador, o certo é que a todos é dedicada a mesma atenção e cuidado. Se à partida se tratam de obras de diferentes índoles e características, nascidas de diferentes motivos e escritores, elas espelham indubitavelmente experiências diversas e criam um amplo e vasto conteúdo informativo. Se um escritor expõe o seu relato pessoal, apresentando o caso concreto e particular, interpretado e anotado segundo a sua perspectiva de observador, outro, em contrapartida, visa descrever o processo geral de que resultariam as viagens dos Descobrimentos, conduzindo a sua pesquisa a um outro tipo de análise e apontamento, a verdade é que ambos se propuseram narrar e apontar o momento histórico presente, utilizando para tal os diferentes métodos à disposição da ciência histórica. Tanto o relato vivencial como o documento verídico constroem a realidade histórica, tornando-a "monumento escrito". Esta sua função de memória de uma época da humanidade, não passaria despercebida aos autores alemães, que assim utilizavam as relações de viagens como verdadeiras e insubstituíveis fontes de conhecimento. Muitos dos escritores dos séculos XVI e XVII liam e compilavam a Literatura de Viagens, ao mesmo tempo que descobriam e analisavam wann er nemlich das jenig/ was ihm in der Histori löblichs fürkompt/ thut/ ins Werck richtet/ vnnd practicirt/ wie hinwider das jenig meidet/ was ihm vnnd andern zu Nachtheil vnd Schaden gereichen möcht". Salomon Schweigger, Ein Reyß auß Teutschland nach Constantinopel und Jerusalem, Nuremberga, 1608, prólogo, p. cij. (ed. Graz, 1964). 40. Sigmund Feyerabend, General Croniken, Frankfurt, 1576 é um típico exemplo do veemente entusiasmo e profunda admiração dos literatos europeus frente aos dados propagados pelos nautas ibéricos.

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exaustivamente as obras dos autores clássicos. Quer se trate de uma edição de um autor clássico, quer de um contemporâneo poderemos ler, nos prológos, que é a sua importância documental, por um lado do momento presente, por outro da Antiguidade ocidental, isto é, do passado europeu ou da cultura germânica, que justificam a publicação da obra em ques-tão.41 Se havia interesse em conhecer obras do passado,42 também urgia saber o que se passava actualmente pelo mundo fora. Se muitas vezes é a estonteante novidade que determina a edição das obras de viagens, a sua importância e veracidade como documento não seria posta em causa.43 As obras das viagens dos Descobrimentos consideradas verdadeiras histórias seriam autênticas fontes documentais. O editor Johan Kruger ressalta, no prólogo da edição de Fernão Guerreiro, e seguindo Cícero, o vasto significado que se deveria atribuir às obras históricas dadas as suas características de testemunho do tempo, luz da verdade, de memória e de doutrina para a vida.44 De harmonia com o historiador romano, que cita, Kruger define as verdadeiras narrativas históricas e opina que as categorias assim declaradas estariam presentes na Literatura dos Descobrimentos. Assim, a seu ver, a leitura das relações de viagens contribuiria igualmente para um conhecimento do acontecido, do quando, como e aonde. Isto é: estas obras poderiam ser o retrato do diálogo civilizacional. Exige ainda que o estudo destas obras não fique pelo mero conhecimento pontual e quantitativo das informações e acontecimentos. Em contrapartida, dever-se-á realizar uma análise comparativa. A observação e o conhecimento de diferentes modelos ontológicos e gno-seológicos provocaria uma saudável e inaudita reflexão, uma frutuosa confrontação do Mesmo com a sua própria realidade. Mais uma vez se faz

41. Na edição e tradução de Heródoto da autoria por Hieronymum Boner (Augsburgo, 1535) apontam-se os mesmos motivos editoriais referencidos para as relações de viagem: a história como luz da verdade, uma lição a aprender e um espelho repleto de exemplos formativos. E também assim se argumenta no prólogo de Fernão Mendes Pinto, Wunderliche und merk-würdige Reisen..., Amsterdão, 1671. 42. Veja-se, entre outros, Bernard Schöfferlin, Römische Historie vß Tito Livio gezogen, Mainz, 1505 e Johann Herold, Heydenwelt vnd irer Götter anfänglicher vrsprung..., Basileia, 1559. 43. Cf. Ein Neuwe/ Kurße/ doch Warhafftige Beschreibung deß gar Großmächtigen weitbegriffenen/ bißhero vnbekandten Königsreichs China..., Frankfurt/M., 1589, obra publicada por Sigmund Feyerabend. Trata-se da versão alemã da relação de Juan Gonzalez de Mendoza (Roma, 1585). 44. Fernão Guerreiro, Indianischer Newe Relation, Augsburgo, 1614, Dedicatio de Johan Kruger.

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o cotejo com um "espelho",45 onde se poderiam reflectir as duas realidades - a outra e a própria - simultâneamente. Neste sentido, considera-se fundamental adquirir cada vez mais material ilustrativo e representativo do encontro com a novidade além-mar. Só a tradução destas histórias poderia reunir material informativo suficiente para prosseguir o diálogo já iniciado. Muitos autores acham que estas obras seriam tão importantes como a Sagrada Escritura, pois embora esta tivesse a primazia na difusão da verdade, tal não impediria que os novos registos históricos não dispusessem de um estatuto similar. Este era o caso de obras como a do padre Fernão Guerreiro que, ao narrar os primeiros passos dados pelos povos africanos e orientais no seu relacionamento com o cristianismo, iniciaria a documentação para uma nova história.46 Seguindo as directrizes dos autores da Antiguidade Clássica, os homens de letras germânicos empreendiam uma profunda e inquieta reflexão sobre o homem e o mundo. Ambos os estádios de saber, a que a investigação histórica denomina antigo e moderno, constituíam aquilo que os humanistas alemães compreendiam como a suma de conhecimento. Só em posse dos dois relatos lhes seria possível alcançar o verdadeiro saber sobre a ordem das coisas. O estudo textual não seria um mero exercício linguístico, mas, pelo contrário, um árduo trabalho analítico e hermenêutico. Entre as iniciativas de debuxar a história da Alemanha ou da Europa nascia a vontade de o fazer nos quadros de uma história universal. Daí que as primeiras tentativas passem pela integração dos novos conhecimentos na história alemã, como tivemos ensejo de constatar na crónica publicada em 1535 ou nas cosmografias, obras estas em que se pretende traçar seguramente a geografia histórica de cada país numa perspectiva universal. Este também o propósito de Christoph Cellari que, com a sua Kurße Fragen aus der Historia Vniversali von Anfang weltli-cher Monarchien bis auf ietzige Zeiten ...,47 gostaria de dar aos seus leitores uma orientação universal da história. Estas diligências em agrupar as informações, quer do mundo antigo quer da sua imagem actual, é a expressão ansiosa de alcançar a suma do conhecimento. O facto de se tratarem de duas vias de saber bem diferentes 45. A imagem ou metáfora do "espelho", já muito usada pelos antigos, encontra-se assaz divulgada nos escritos dos séculos XVI e XVII. Veja-se o já referenciado Erasmus Francisci Neupoliter Geschicht-Kunst-und Sitten Spiegel, ou ainda Georg Philipp Harsdörffer, Geschichtsspiegel. Vorweisend Hundert Denckwürdige Begebenheiten/ mit Seltenen Sinnbil-dern/ nutzlichen Lehren/ zierlichen Gleichnissen/ und Nachsinnigen Fragen aus der Sitten-Lehre und der Naturverkündigung..., Nuremberga, 1654. 46. Fernão Guerreiro, Indianischer Newe Relation, Augsburgo, 1614, Dedicatio. 47. Jena, 1709.

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com testemunhos díspares, não constitue, por enquanto, qualquer preocupação. Pelo contrário, é necessário reunir tudo que já foi dito. Que se irá formular um outro nível heurístico, ao introduzir as novas infor-mações, não será corporalizado pelos autores; de momento trata-se de reunir os dados do mundo, sem que haja transição dos princípios prevalecentes. Em busca do discurso histórico europeu, revelam-se diferentes conotações e planos da realidade humana e o entrecruzamento das diferentes realidades e informações é, por enquanto, o mais aliciante e produtivo. Convém ainda sublinhar que os autores, que traduzem e publicam as obras da Antiguidade Clássica, são muitas vezes os mesmos que encontramos empenhados na divulgação das relações de viagens; a procura dos limites do mundo e da humanidade desencadeia a busca instrutiva e científica.48 A tarefa de conhecer e escrever sobre a realidade recentemente descrita inclui necessariamente uma análise da maneira de viver e ser nas sociedades de além-mar. Nesta pesquisa interpretativa afere-se não só como se organizam os povos até então desconhecidos, quais as suas instituições e tradições, mas também se indaga o seu devir histórico; intenta-se não só tomar conhecimento com outras sociedades e populações, mas também esboçar uma reajustação das sociedades ultrama-rinas no tempo histórico conhecido. Quando e como se teria processado o trajecto cultural e histórico destes povos até há pouco desconhecidos? Será que se poderia falar de um único trajecto de etapas similares ou a caminhada cultural não seria idêntica; quais então os factores determinantes no evoluir de uma sociedade? Estas algumas das questões centrais que preocupam os autores alemães. Se o encontro com outros povos revelara a existência de outras formas de viver e de agir, os eruditos germânicos consideravam necessário reflectir sobre a exemplar variedade de casos testemunhados no sentido de recontornar conceitos em vigor. A vontade de reescrever a história da humanidade, desde há muito perscutida por estes intelectuais, acelerava o vivo interesse pelo devir histórico de outros povos e seus diferentes casos de motricidade histórica.49 Era o anseio de escrever uma história da realidade humana que incutia ao conhecimento dos comportamentos e 48. Aqui deveremos mencionar o exemplo de Michael Herr. Este amante das letras não só traduziu os escritos de Senéca (1535), mas também o relato de L. Varthema e a antologia Novus Orbis de Simon Grynaeus. Nesta sua última obra cita autores como "Pitagoras, De-mostenes e Cicero" - autores que, como afirma, lhe seriam conhecidos dos seus estudos humanísticos -, ao mesmo tempo que exalta o significado glorioso dos descobrimentos. 49. Wilhem Vosskamp, Untersuchungen zur Zeit-und Geschichtsauffassung im 17. Jahrhundert bei Gryphius und Lohenstein, Bona, 1967.

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usos e costumes não-europeus. Neste sentido, cabia precisamente à ciência histórica investigar a realidade de além-mar, ou seja, indagar como é que cada povo se adaptara ao meio físico, bem como quais as capacidades desenvolvidas na sua transformação. O desejo de perscrutir as manifestações concretas da polícia alastrava nos meandros culturais europeus curiosos em saber em que medida as qualidades humanas eram inatas ou adquiridas. Mais uma vez os exemplos históricos coevos, capazes de contribuir para a criação de modelos basilares, constituíam uma insubstituível prova documental. A história também aqui é o "espelho" reflector da experiência humana; um espelho que poder-se-á utilizar como ponto de referência, como medida de comparação para os comportamentos individuais e pessoais ou como modelo para a vida diária. A concepção didáctica da história, a renomeada "mestra da vida", continuará presente e válida, numa constante e incessante função pedagógica, ao salientar o bom e o mau, as qualidades e os vícios.50 A sua influência não se ficaria por aqui, pois também na vida política, a história poderia assumir assaz importância; o seu contributo seria, sem dúvida, inegualável no traçar das potências geo-políticas mundiais.51 Já na obra de Sebastian Münster atestámos a preocupação de apresentar o mundo na sua globalidade - também em termos da natureza (isto é biológicos) - sem desprezar as diferentes facetas do meio geográfico, a fim de visibilizar o ritmo particular de cada cultura, de cada povo ou sociedade. Segundo uma grelha informativa perfeitamente idêntica, o texto munsteriano apresenta as diferentes regiões do orbe terráqueo - entre as questões afloradas encontrámos aspectos alusivos ao modo de viver em cada uma destas regiões, os fenómenos naturais, sem esquecer de formular algumas achegas sobre os usos e costumes dos habitantes. Sebastian Münster traça um pertinente retrato das quatro partes da terra num esboço de uníssonos acordos, entre a natureza e o homem, no evoluir das 50. Nas palavras de Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht- Kunst und Sitten-Spiegel ausländischer Völker, Nuremberga, 1670, prólogo, 1. Parte: "weil nun die meisten Geschichte/ in der Welt/ durch die Sitten und Verhaltung der Menschen/ sich veranlassen: hab ich in gegenwärtigen Spiegel der Sitten und Künste/ den allersten Theil/ und gleichsam das vorderste Eck/ den Geschichten zugeordnet: eingedenck/ daß die Lesung fremder Geschicht=Fügnissen/ den menschlichen Sitten/ nicht allein zur Besserung/ und Erbauung/ sondern uns auch offt zu einem solchen Spiegel diene/ daraus manche Volkern Weise und Gebraüche gleichfalls etlicher massen zu erkennen sind. Wie denn die Geschicht=Schreiber dieses sonderlich in acht zu nehmen pflegen/ daß sie die Gewohnheit der Völcker/ an gelegener Stelle/ nicht unberührt lassen: voraus/ in den vollkommenen universal= oder Particular= Historien einer gewissen Nation.", p. o. 51. Veja-se a argumentação metodológica das cosmografias, que seguem a concepção das obras de Giovanni Botero. Veja-se cap. 3.1.

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sociedades. A construção da paisagem natural e humana, o primoroso objecto de análise que Münster intenta, rigorosamente, compreender. Com efeito, este geógrafo-teólogo defende ao longo da sua obra uma teoria naturalista e determinante da paisagem natural e cultural mundial. É a latente curiosidade de humanista que o lança na árdua e espinhosa tarefa de compilar uma obra desta envergadura. Na cosmografia Sebastian Münster afirma que tentou não só "[...] reunir toda a imagem da Anti-guidade Clássica, como se pode apreciar pelo menos em documentos, mas também os costumes que os povos tinham outrora, quais os ritos, as religiões, a ordem militar, estatal e doméstica, quais os princípios das cidades, como é que cresceram, se desenvolveram, bem como decorreu a ascensão e a queda das monarquias e reinos, quais as reviravoltas que se efectuaram nos reinos" e continua "[...] não! com o mesmo empenho esta nossa obra apresenta os acontecimentos recentes e refere-os sempre que possível e tendo em atenção o pequeno tamanho da obra".52 E prossegue inquirindo: "E porque não apresenta tudo isto numa só obra. A localização do céu e da terra é a mesma; ficam os rios, os lagos, e as demais águas, para muitas [regiões] ainda subsistem os antigos nomes, na generalidade ocorreu uma grande modificação na vida humana e continua a verificar-se, pelo que uma comparação com os tempos antigos revela um completo novo século ao cimo da terra: as obras humanas revelam a sua mudança e instabilidade. Na minha opinião não há qualquer relato mais útil e desejável do que aquele que mostra como a antiguidade se pode alterar na história da humanidade". Baseado na permanente instabilidade e constante mudança das coisas, Münster considera poder "[...] julgar como é inseguro tudo o que os homens admiram como eterno e permanente".53 Na sua

52. "In diesem unsern Werk bemühen wir uns nicht nur, das ganze Bild des Altertums, wie es uns heute wenigstens aus den Denkmälern entgegentritt, darzustellen, welche Sitten einst die Völker hatten, welche Ritten, welche Religionen, welche militärische, staatliche und häusliche Ordnung, darzustellen, welche Anfänge die Städte genommen haben und wie sie gewachsen sind, wie sie aussahen, wie die ersten Anfänge, Fortschritt, Aufgang und Niedergang der Monarchien und Königreiche gewesen sind, welche Umwälzungen bei den Völkern und in den Königreichen eingetreten sind; nein! mit dem gleichen Fleiß stellt dieses unser Werck auch alle neueren Ereignisse dar oder erwähnt sie wenigstens irgendeiner Weise, soweit es im Hinblick auf unser kurzgefaßtes Werk nötig war". 53. "Warum sollte man denn nicht alles in einem Band zusammenfassen? Die Lage des Himmels und der Erde ist unveränderlich, es bleiben die Flüsse, Seen und sonstigen Gewässer, bei vielen sind sogar die alten Namen bis heute unverdorben erhalten geblieben, aber in den Gewohnheiten und im ganzen Leben des Menschen ist eine so große Wandlung geschehen und geschieht fortwährend, daß heute bei einem Vergleich mit der alten Zeit ein gänzlich neues Jahrhundert auf Erden sich zeigt: so veränderlich und unbeständig ist der Menschen in allen seinen Wercken. Meiner Meinung nach ist also kein Bericht nützlicher

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opinião urge assim conhecer o passado e o presente na história de cada povo ou região, pois só assim se poderá compreender o evoluir da humanidade. Obras como a cosmografia deveriam, a seu ver, reunir todos os elementos capazes de dar a conhecer a natureza humana na sua permanente transformação. "[...] com que religião, com que usos, formas de governos, com que leis e instituições os povos da terra regeram a sua vida ou ainda hoje regem; que produções tem este ou aquele país; qual o destino que levou uma cidade a crescer, outra a retorceder; quão variável é a duração das coisas que, nos últimos séculos, surgiram novos usos e costumes e mais coisas novas, enquanto as antigas envelheceram; o que antigamente tinha valor, desvalorizou-se; que vacilante mudança reside em todas as coisas humanas cuja grandeza até se patenteia em governos de reinos ou países pequenos".54 O interesse do famoso geógrafo é: conhecer a "a vacilante mudança de todas as coisas humanas". E isso só seria possível com o aturado e pertinaz apoio da ciência histórica; só esta o poderia informar detalhada e concisamente sobre as manifestações e transformações da marcha cultural. Partindo do princípio de que para definir a marcha da humanidade se deveria informar sobre o processo evolutivo em geral, Münster compila, na sua obra, um valioso manancial documental; Antigos e Modernos, lado a lado, descrevem os quatro continentes. Como era antigamente, e como é no presente surgem numa mesma imagem representativa do verdadeiro conhecimento,55 pois, no seu ver de humanista, só por esta via traditiva e und erwünschter als jener, der zeigt, wie sich das Altertum in der menschlichen Geschichte wandeln konnte. Aus dieser Unbeständigkeit der Dinge kann man auch beurteilen, wie unsicher alles ist, was die Menschen auf Erden unter den Menschen als ewig und immerwährend bewundern". Sebastian Münster a Sigismund August, König von Sarmatien und Polen. Basel März 1550. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, Frankfurt/M., pp 169-171. 54. "[...] mit welcher Religion, welchen Sitten, welcher Herrschaftsform, welchen Gesetzen und Einrichtungen andere Völker des Erdkreises ihr Leben geführt haben und heute noch führen, an welchen Dingen dieses oder jenes Land ergiebig, durch welches Schicksal die eine Stadt gewachsen, eine andere kleiner geworden, wie unbeständig der langlebig die Dauer der Dinge ist, daß mit den neuen Jahrhunderten neue Sitten und immer wieder neue Dinge gefallen, während die früheren veraltet sind, das was früher im Wert stand, wertlos wird, welch schwankende Wandelbarkeit in allen menschlichen Dingen liegt, daß aber doch die größte sich offenbart in den Regierungen der Königreiche und kleineren Länder". Sebastian Münster a König Ferdinand von Deustchland, Ungarn, Böhmen, Dalmatien, Kroatien, Basel Februar 1550. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, pp. 164-166. 55. Ambas as obras seriam consideradas fontes de conhecimento, pelo que as obras clássicas podem ser "aperfeiçoadas" pelos novos conhecimentos; e o mesmo se poderá fazer vice-versa. Sebastian Münster assim o entende como escreve numa carta a Ägidius Tschudi: "Os

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compiladora, se poderá reconstruir "o verdadeiro decorrer dos acon-tecimentos históricos". Vejamos o que nos diz: "Reuni novo com antigo e antigo com novo, a fim de ao antigo transmitir novos conceitos e ao novo reputação, ao usado esplendor, à escuridão luz, ao desprezado graça, ao duvidoso, se possível, certeza".56 Nesta compilação, Sebastian Münster encontra a forma ideal para caracterizar o mundo nas suas diversas etapas de crescimento. No seguimento de Sebastian Münster, muitos outros autores do século XVI iriam indagar sobre os factores determinantes e orientadores no desenvolvimento das particularidades naturais e humanas, recolhendo tanto material clássico como actual, a fim de debuxar uma suma da história universal. As obras históricas dos séculos XVI e XVII não ficariam, como vimos, indiferentes ao vasto e largo debate sobre os acontecimentos coevos. Os autores alemães procurariam, assim, a par e passo integrar os novos dados relativos às empresas marítimas, confe-rindo-lhes um lugar representativo e significativo nas suas obras, símbolo da importância que lhes dispensavam. Quer o seu objectivo fosse escrever história nacional quer mundial, os autores alemães iriam integrar estas informações no seu horizonte cultural. Atribuindo-lhes o estatuto de fontes documentais, estas obras fariam parte integrante do monumento escrito, pois para escrever sobre estes novos factos urgia ter à mão fontes capazes de fornecer material documental, como as relações de viagens. A história vivida, depois de audazmente anotada, instituiria a realidade histórica e dos seus múltiplos cruzamentos nasceria: a história da humanidade.

3.4.2 A História de África Um século mais tarde é este o mesmo propósito que leva o médico holandês Olfert Dapper a escrever as suas obras. A Umbständliche und frutos da minha pesquisa (sobre Hegau, as fontes do Danúbio e parte da Floresta Negra) compilá-los-ei na edição de Solino, junto com alguns pequenos mapas da Inglaterra, da Suíça, da Grécia, da Itália, etc." [Die Ergebnisse meiner Forschung (sobre Hegau, Donauquellen und Teil Schwarzwaldes) werde ich in der Ausgabe des Solin anfügen, zusammen mit anderen kleinen Karten, so von England, der Schweiz, Griechenland, Italien usw]. E acrescenta: "Desta forma o autor tornar-se-á mais compreensível" [Auf diese Weise wird dieser Autor verständlicher werden]. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, op. cit., p. 29. 56. "Neues habe ich mit Altem verbunden und Altes mit Neuem, um so dem Alten neuen Wert, dem Neuen Ansehen, dem Abgenutzten Glanz, dem dunklen Licht, dem Verschmähten Anmut, dem Zweifelhaften, soweit es möglich war, Gewißheit zu verleihen". Sebastian Mün-ster a Herrn Gustav, König der Schweden, Goten und Wandalen, Basel Januar 1550. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, op. cit., p. 159.

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Eigentliche Beschreibung von Africa57 é assim a apresentação e descrição deste continente nas suas particularidades geográficas e humanas. Preparada como uma compilação de material, esta obra reune as fontes dos autores da Antiguidade Clássica ao lado dos autores contemporanêos. O legado cultural de Plínio, Ptolomeu, Pompónio Mela continua válido, pois foram eles que ditaram os princípios das ciências e, no que respeita ao continente africano, foram eles que transmitiram as primeiras notas informativas sobre a sua natureza, sobre as suas gentes, bem como sobre a sua história. Atribuindo-lhes um lugar privilegiado na descrição deste continente, Dapper anseia, contudo, não desprezar qualquer momento histórico. Tal como informa no prólogo, foi sua intenção elaborar "[...] uma descrição geral e perfeita".58 Tendo em conta as muitas relações de viagens dos holandeses, bem como as de portugueses, espanhóis, franceses ou ingleses, Dapper verifica que, até ao momento, ninguém teria empreendido uma descrição global deste continente. A inexistência de uma monografia leva-o, por conseguinte, a lançar-se nessa ardilosa empresa; seguindo, como diz, o material em línguas estrangeiras, o excelente manualista pretende seguir as passadas desses autores e recolher o que, nesses escritos, se relata sobre África, compilando uma prestimosa colectânea que viria então à luz da imprensa.59 Dapper recolherá, sem cansaço, material sobre cada uma das regiões africanas. Já no prólogo destaca alguns dos autores que mais utilizou para a sua descrição do Egipto, Barbaria, Terra dos Negros e Terra dos Mouros - para usar a sua nomenclatura. No entanto, muitas são as obras ou os textos que referencia, não sendo sempre fácil localizar qual a fonte a que

57. Edição holandesa Amsterdão, 1688, 1 ed. alemã Amsterdão, 1670, seguindo-se 1670-71 em Nuremberga. A tradução alemã é da autoria do escritor Philipp von Zesen. Veja-se Herbert Blueme, Eine unbekannt gebliebene Übersetzungsarbeit Zesens. In: Ferdinand Van Ingen (Ed.), Philipp von Zesen 1619-1969. Beiträge zu seinem Leben und Werck, Wiesbaden, 1972, pp. 182-192. 58. "[...] eine algemeine vnd volkommene Beschreibung". O. Dapper elabora igualmente uma obra sobre Ásia: Gedenkwürdige Verichtung der niederländischen Ost-Indischen Gesellschaft in dem Kaiserreich Taising oder Sina ..., Amsterdão, 1674. 59. "[...] in erwegung/ daß fremde Sprachen der unsrigen in diesem fal weit worgehen/ auf dero Fußstafen zu treten/ und das jenige/ was hin und wieder von Afrika/ bey den Authoribus zu finden/ oder was ich aus geschriebenen/ vnd noch nicht in Druck gekommenen Verzeichnungen zusammen getragen/ vnserer Nation zum besten an der Tag gegeben". Olfert Dapper, Umbständliche und Eigentliche Beschreibung von Africa..., Amsterdão, 1671, prólogo, p. iij.

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recorreu.60 Olfert Dapper, na tradição das descrições do mundo, apresenta as regiões africanas segundo um preciso e rigoroso questionário que, previamente estipulado, lhe permitirá descrever a natureza e os habitantes de África. O retrato visa definir a paisagem natural, as cidades, a fauna e a flora, bem como as gentes e os seus usos e costumes. Aqui Dapper descreve as manifestações humanas, desde o vestuário, as casas, a língua, ao comércio, passando pelas cerimónias matrimoniais até aos ritos fúnebres. África, assim descrita na sua paisagem natural e humana, adquire um perfil mais completo e detalhado; e sem que tivesse tido oportunidade de ver África com os seus próprios olhos, Dapper faria da sua obra uma importante fonte de referência. Para isso teve uma grande influência o facto de ter uma concepção científica similar a qualquer outro erudita, cronista ou historiador: numa intensiva recolha de factos sabe-os reunir e agrupar consoante a sua importância e relevância. A estrutura narrativa adquire a sua veracidade na autencidade das fontes. Verdadeiramente empenhado no objecto da sua pesquisa, Dapper não se limita a dar uma informação geral, muito, pelo contrário, ele formula um acurado e zeloso retrato de cada área regional. Além disso, Dapper não se deixa influenciar pela especificidade de cada caso pelo que não tece qualquer comentário pessoal. De facto, o seu retrato não apresenta qualquer vestígios de fascínio ou exotismo. Na sua função de historiador,61 Dapper esconde-se atrás das fontes e mostra-se imparcial. Tecendo muito raramente uma interferência, o autor evita expressar uma opinião ou utilizar conceitos que espelhem a sua posição de homem euro-peu.62 Em suma, como historiador que se preza ser, empreende um certo distanciamento do objecto em análise; também ele poderia fazer suas as palavras do cronista português Fernão Lopes, quando diz que lhe interessa mais a verdade nua e a certidão das histórias do que a formosura e a novidade das palavras ou acontecimentos.

60. Dapper teve ainda certamente a possibilidade de utilizar manuscritos existentes nos arquivos holandeses. Sobre algumas das fontes utilizadas por O. Dapper ao longo da sua obra, veja-se Adam Jones, Olfert Dapper et sa description de l' Afrique. In: Objectis Interdits. (Ed.) Fondation Dapper, Paris, 1989, pp. 72-81, do mesmo, Decompiling Dapper, in: History in Africa, Nr. 17 (1990), pp. 171-209. 61. A sua competência como historiador advir-lhe-ia de trabalhos como a tradução para o holandês das obras de Heródoto e de Homero. 62. Adam Jones chama a atenção para o facto de Dapper ser um dos primeiros autores a ter em consideração nas suas obras à visão histórica dos povos africanos. Veja-se Adam Jones, Olfert Dapper et sa description de l' Afrique. In: Objects Interdits. (Ed.) Fondation Dapper, Paris, 1989, pp 79-80.

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Dedicando-se, durante três anos, ao estudo das fontes, Dapper não iria coleccionar por coleccionar. Ao seu projecto de escrever uma monografia para cada um dos quatro continentes, o diligente historiador anseava definir qual o lugar destinado a cada um deles na construção do mundo. Num estudo esmerado e rigoroso, Dapper ordenava os eventos clara e concisamente para escrever um retrato o mais autêntico possível; e assim, com a ajuda da documentação vigente, fazia história. Ao longo da segunda década do século XVII viriam ainda a lume mais algumas pesquisas históricas, cujo objecto de estudo era o continente africano. Inseridas no amplo desejo de escrever história universal, estas obras visavam chamar a atenção para a terceira parte do mundo. E é principalmente sobre a Etiópia, país que desde há muito ocupa um lugar relevante nos meios culturais europeus, que se edita maior número de estudos. Assim, em 1628 formula-se uma primeira resenha de uma história da Etiópia. No seu trabalho Methodus doctrinae civilis seu abissini,63 R. P. Adamo Contzen esboça um quadro da realidade histórica etíope até ao momento da publicação; e, em 1634, M. Crusius apresentaria uma nova proposta com a sua obra Aethiopicae Heliodori Historiae Epitome.64 O maior contributo para a história deste país prestaria, todavia, Hiob Ludolf, autor que, desde há uns anos investigava sobre o reino da Etiópia,65 dando ao prelo, no ano de 1681, a sua Historia Aethiopia.66 Esta obra, inicialmente em latim, viria a lume um ano mais tarde, em inglês e, posteriormente, em francês e holandês.67 Dez anos mais tarde Hiob Ludolf acrescentar-lhe-ia os Commentarius ad suam Historiam Aethiopicam.68

63. R. P. Adamo Contzen, Methodus doctrinae civilis seu Abissini regis historia, Colónia, 1628. 64. M. Crusius, Aethiopicae Heliodori Historiae Epitome, Frankfurt, 1634. É ainda de referenciar a obra de Dieterius Lüders, De historia imperii Abissini quod subpresbytero Johanne-Germanice Prister Joahann, Wittenberga, 1672. 65. Sobre Hiob Ludolf seria já publicada em 1710 uma Vita Jobi Ludolfi da autoria de Christian Juncker. Veja-se ainda Johann Heinrich Zedler, Grosses Vollständiges Universal-Lexicon, 1738, vol. 18, pp. 991-995. 66. Hiob Ludolf, Historia Aetiopica, Frankfurt, 1681. 67. A edição inglesa corresponde precisamente ao texto da edição latina, embora numa versão mais resumida, pelo que não aparecem as citações em língua etíope e as notas de rodapé. A versão latina é, pois, de maior erudição, na medida em que apresenta correctamente as referências bibliográficas e as necessárias informações para a contextualização dos assuntos. A edição francesa viria a lume em 1684 e a holandesa, em 1687. 68. Hiob Ludolf, Commentarium ad suam Historiam Aethiopicam, Frankfurt, 1691.

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Hiob Ludolf, o iniciador dos estudos etíopes,69 realizou um importante trabalho na recolha e sistematização dos conhecimentos então existentes sobre este país; dedicando-se a um estudo atento e cuidado das fontes escritas - entre elas, os textos de portugueses -, Ludolf empenhar-se-ia ainda num assíduo e estreito relacionamento com etíopes seus contemporâneos. Terminado o curso de direito, Hiob Ludolf empreenderia algumas viagens que lhe avivariam o seu gosto pelas línguas orientais.70 Durante os estudos tivera já oportunidade de se dedicar ao hebraico, caldeu, samaritano, sírio, árabe e arménio,71 pelo que e, no que se refere ao dialectos semíticos, só lhe faltava o etiópe, que iria iniciar através de obras como os salmos da autoria de Johannes Potken.72 Numa das primeiras viagens deslocar-se-ia a Leiden, a fim de cuidar de aprofundar as línguas semíticas.73 Mais tarde e, depois de viajar pela Inglaterra e Suécia, seria convidado, em Paris, para preceptor do filho do diplomata sueco, Barão von Rosenhahn; este fazer-lhe-ia ainda um pedido: o de reunir toda a documentação possível sobre o bispo de Upsala, Johannes Magnus - nome que nos é familiar dados os intensivos contactos que estabeleceu com o humanista Damião de Góis, que a seu pedido viria a escrever sobre a religião na Etiópia. O facto de grande parte do material se encontrar em Roma,74 leva a que Hiob Ludolf 69. Veja-se Eike Haberland, Hiob Ludolf. Father of Ehiopian Studies in Europa. In: Proceedings of the Third International Conference of Ethiopian Studies. Addis Ababa 1969, I, pp. 131- 136; Ernst Hammerschmidt, A brief History of Germany Contributions to the Study of Ethiopia. In: Journal of Ethiopian Studies 1963, I, pp. 30-48; Richard Pankhurst, Einleitung de Job Ludolphus, A New History of Ethiopia, s. L., 1982. 70. J. Flemming, Hiob Ludolf. Ein Beitrag zur Geschichte der orientalischen Philologie. In: Beiträge zur Assyriologie und vergleichenden semitischen Sprachwissenschaft, Leipzig, 1890 vol. I, pp. 537-582; 1894, vol. II, pp. 63-110. 71. Hiob Ludolf dominava mais de vinte línguas, entre elas, grego, francês, italiano, espanhol, holandês, português, hotentote, etíope, hebreu, caldaico, sírio e árabe. 72. Nos inícios do século XVI, Johannes Potken, oriundo de Colónia, interessar-se-ia pela língua etíope, que aprendera em Roma com ecleseásticos da nacionalidade. Em 1513 viria a publicar em etíope, nesta cidade, os salmos de David e Salomão, que mais tarde, em 1518, viriam a ser reeditados em Colónia. Veja-se entre outros Richard Pankhurst, Peter Heyling, Abba Gregorius and the Foundation of Ethiopian Studies in Germany. In: Äthiopien. Zeitschrift für Kulturaustausch (Sonderausgabe 1973), pp. 144-46. 73. Para este seu estudo do etíope, ser-lhe-ia de grande utilidade o espólio de Joseph Justus Scaliger, bem como o dicionário do carmelita de Antuérpia Jacob Wemmers publicado em Roma no ano de 1638. Sobre o significado de Joseph Justus Scaliger no discurso linguístico, veja-se Gerhard F. Strasser, Lingua Universalis. Kryptologie und Theorie der Universal-sprachen im 16. und 17. Jahrhundert, Wiesbaden, 1988, pp. 80-81. 74. Johannes Magnus, que debatera detalhada e pormenorizadamente com Damião Góis a religião etíope, entusiasmaria o cronista português a publicar uma obra sobre a Etiópia. Veja-se cap. 1.1.

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para aí se dirija no ano de 1649. Nesta cidade italiana viria a encontrar o abíssinio Abba Gregorius,75 que aqui residia, com um português de nome António de Andrade e mais dois etíopes, no Collegium Aethiopicum, instituição que fora criada para acolher padres e monges etíopes que, convertidos ao cristianismo, se deslocavam a Roma em peregrinação. Informando-o do seu interesse pela língua etíope, Hiob Ludolf expressa o desejo de conversar com ele. Assim, passam a encontrar-se todos os dias; se ao princípio o português nascido na Abíssinia, António de Andrade, serviria de tradutor, uma vez que Gregorius não sabia nem latim nem ita-liano,76 pouco a pouco passariam a falar em etíope - também de certo modo uma novidade para Gregorius, uma vez que ele só utilizava esta língua para escrever, sendo a sua língua oral o amárico, idioma falado em alguns lugares da Abissínia. Entre Gregorius, que na sua terra natal se aliara aos jesuítas, o que o obrigaria a ter de deixar o seu país, e o amigo da Etiópia, viriam a crescer fortes laços de amizade, tendo Ludolf convidado Gregorius a visitar a Alemanha. De facto, no ano de 1652, contando com o apoio do duque Ernst da Saxónia, Gregorius seria recebido no Palácio Friedenstein, em Gotha. Na sua primeira audiência, a 10 Junho de 1652, o duque salientou a assaz satisfação em conhecer um representante cristão de um país tão longínquo e declara estar muito interessado e curioso em saber de viva voz qual a situação do reino do Preste João, bem como qual o papel do cristianismo no seu país natal. O duque tinha incubido Ludolf de preparar uma antologia de textos relativos à Etiópia - entre eles, sabemos encontrarem-se extractos da obra de Francisco Álvares e Damião de Góis -, textos estes que deveriam lançar os fundamentos para uma amigável e cordial conversa entre os letrados. A estada de Greogorius em Gotha contribuiria significativamente para a investigação e reflexão de Ludolf que acrescido de enormes conhecimentos, quer linguísticos, quer sobre a cultura e a história etíopes, viria a publicar a Historia Aethiopia e os Commentarius, obras em que constatamos amiudamente a enorme ressonância das conversas tidas com Gregorius. No seguimento das obras de Francisco Álvares, Pero Pais, Balthasar Teles77 e Manuel de Almeida, Hiob Ludolf propõe-se inquirir sobre o

75. Veja-se Richard Pankhurst, Gregorius and Ludolf. In: Ethiopia Observer 1969, XII, pp. 287-290. 76. Hiob Ludolf, Comentarius, op. cit., p. 30. 77. Hiob Ludolf tece, no prólogo da Historia Aethiopica, um caloroso e vigoroso elogio à obra de Balthasar Teles. Embora não tenha sido traduzido para o alemão, o livro de Teles será frequentemente citado por autores germânicos.

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papel do povo etíope na marcha cultural, bem como sobre as condicionantes impulsionadoras no crescimento de um povo que pretenda atingir a civilização. Hiob Ludolf apresenta, ao longo de quatro livros, a história natural, política, ecleseástica e cultural do povo etíope. Assim, fala da natureza, da população, das instituições, da economia, do ensino, da história e, por fim, das questões religiosas, onde refere entusiasticamente o papel dos Jesuítas na missionação deste país - estes alguns dos temas em torno dos quais Ludolf descreve o reino etíope, ao longo dos tempos, no seu espaço geográfico e nas suas formas de organização e de polícia. A velha tradição histórica do reino da Etiópia é então salientada como uma pedra basilar na formação deste país. Ao descrever, por exemplo, a cidade real de Axuma, Ludolf frisa terminantemente tratar-se de uma cidade muito antiga repleta de gloriosos obeliscos e vestígios de monu-mentos grandiosos, magníficos símbolos da antiguidade e tradição etíopes. Este relato, que nos faz lembrar as descrições de Alexandria e Cairo, onde de igual modo se buscam continuamente os monumentais vestígios de um passado grandioso, testemunho dos primeiros anos da humanidade, visa realçar que também a Etiópia, tal como o Egipto, constituie um marco exemplar na história do continente africano, senão mesmo de toda a humanidade, dado que aí o género humano dera os seus primeiros passos. Hiob Ludolf viria ainda a publicar mais duas obras os Appendix ad Hi-storiam Aethiopicam e a Relation Nova de Moderno Habessiniae Statu,78 ambas elaboradas, tal como os próprios títulos indicam, como acrescento de informações sobre a história etíope. As publicações de Hiob Ludolf ilustram sobremaneira o grande interesse suscitado pelo reino etíope, in-teresse este que, na opinião de Ludolf, se centrava nas extraordinárias particularidades deste país africano. Isto é: a Etiópia para além de um reino poderoso de antigas tradições e longa história possuia ainda a ad-mirável característica de ser cristão. Estes atributos faziam, a seu ver, deste país um dos mais civilizados do continente africano. Um dos momentos decisivos no processo histórico etíope fora, na sua opinião, o período, em que a Etiópia estabelecera contactos com Portugal e com os cristãos ocidentais; esta uma época áurea e de enorme significado no percurso da civilização etíope, dado que a Etiópia tivera a oportunidade de muito aprender e se desenvolver. Este caminho, que lhe fora aberto pelo cristianismo não era, todavia, uma exclusividade sua, pelo contrário,

78. Hiob Ludolf, Appendix ad Historiam Aethiopicam, Frankfurt, 1693; Hiob Ludolf, Relatio Nova de Moderno Habessiniae Statu, Frankfurt, 1694.

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estava nas mãos de qualquer povo da costa oriental partilhar deste processo cultural e à Etiópia cabia auxiliar nesse acto de iniciação. Intensificando a aprendizagem das artes e ofícios, do comércio e das formas de vida em geral, a Etiópia alcançara a possibilidade de se libertar de uma existência pobre e de se afastar da barbárie. Hiob Ludof salienta entusiasticamente o papel de aprendiz e destaca a útil lição que tanto ajudara os etíopes a tornarem-se o povo mais engenhoso de África. Também ele partilha a opinião de que não existiria nenhum povo que, por mais selvagem que fosse, não pudesse tornar-se civilizado. Este depoimento enuncia conceptualmente a civilização como um processo de aprendizagem, em que os europeus, dada a sua situação mais avançada, forneceriam o modelo formativo. Ludolf acredita nas possibilidades e meios que os europeus têm ao seu dispor para auxiliar os africanos no seu desenvolvimento económico e cultural. Ao reunir o corpus documental, Hiob Ludof procura classificá-lo e integrá-lo no processo histórico conhecido, tarefa esta a que as suas perspectivas de europeu não deixaram de influenciar a ordem finalmente estabelecida. É, sem dúvida, o exemplo de um europeu empenhado em escrever a história de um povo que vê a caminho da civilização. Os historiadores viam nesta África Nova, fragmento inseparável do novo mundo descoberto, um campo temático original e de enorme significado, cuja reflexão criava indubitavelmente um repensar quase obrigatório dos deveres e objectivos da ciência histórica. A história de África seria assim narrada pelos cientistas dos séculos XVI e XVII segundo duas perspectivas, de certo modo, complementares. Por um lado, ao participar na abertura do mundo ultramarino, a África participa da explosão e do alargamento do novo mundo, oferecendo uma crassa multiplicidade tanto de dados naturais como culturais. Daí a razão porque seja alvo - assim como outras regiões do globo - de um interesse especial, como podemos constatar na extraordinária monografia de Dapper. Por outro lado, África é uma prestimosa parcela informativa no debate sobre o devir civilizacional, bem como na discussão em torno das possibilidades da humanidade em geral. Nesta análise as áreas africanas constituem fundamentais e ímpares objectos de investigação, pois, não obstante gozem de uma familiaridade com a tradição ocidental, estas regiões desenvolveram-se em destacada diferença face às origens. Etiópia é, por assim dizer, o caso modelo, uma vez que as suas capacidades de desenvolvimento tanto se verificaram no passado como se auspiciam para o futuro. A ciência histórica, encarada como história universal, descobrira subitamente novas matérias.

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3.5 África: Um Tema na Ciência e na Literatura O interesse e a sagaz curiosidade pelas terras ultramarinas não ficaria pelo conhecimento das suas gentes, das suas práticas religiosas e da sua história. Com efeito, novos pontos de interesse surgem espalhados pelas mais diversas áreas do saber. Assim, os homens de letras alemães intentam aprofundar questões relacionadas com a matéria linguística ou com o contributo das novas partes do globo para a definição do mundo animal e vegetal; e alguns deles descobrem que os novos territórios até poderiam ser um tema literário interessante, educativo, curioso e exótico.

3.5.1 Línguas Exóticas: Reorganização da Nova Babilónia Cada povo tem a sua língua. Considerando o idioma como um elemento descritivo essencial e próprio a cada cultura, a pesquisa do sistema linguístico assume-se como um importante dado informativo e interpretativo. Já nas relações de viagens os autores se preocupam em compreender e registar as língua indígenas que encontram pelas várias partes do orbe terráqueo. Frente à constatação de muitas e variadas formas de expressão, entraves do diálogo inicial, os viajantes intentam encontrar meios para ultrapassar este obstáculo de comunicação. Pouco a pouco vão encontrando correspondentes na língua nativa, vão reunindo palavras, significados que viriam a constituir básicos e importantes léxicos. A reunião preambular de vocabulário supõe, na maioria dos casos, uma adequada integração no discurso falado. O processo que se gera de adopção de novos termos na língua mãe decorre, na generalidade, espontaneamente, isto é, o objecto, a coisa que se desconhece e que necessita ser denominada, adquire automaticamente o vocábulo das regiões de que é originária. Na apreensão da realidade, os viajantes buscam necessariamente equivalentes ao sistema conhecido. Na costa do Marfim, Michael Hemmersam relata que os habitantes se aproximam do barco e gritam "Qua qua", o que ele interpreta como um grito de boas vindas,1 uma expressão de saudação e agradecimento. No

1. Michael Hemmersam, West=Indianische Raißbeschreibung, Nürnberg 1663, ed. S.P. L'Honoré Naber, Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst

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dia-a-dia da viagem existe uma grande quantidade de designações de coisas usuais, cujos sinónimos é necessário saber. Assim, os marinheiros e viajantes aprendem o vocábulo utilizado, por exemplo, de objectos do quotidiano, animais, árvores, plantas, determinadas funções, a fim de que o sistema comunicativo se estabeleça confiante e familiarmente. Assim, são inúmeros os exemplos de termos e expressões indígenas nos seus registos; dada a novidade perfilha-se a palavra corrente que rapidamente passa a fazer parte do vocabulário familiar.2 Na apreciação da realidade que se observa, os viajantes intentam esclarecer as estruturas sociais, por exemplo, os cargos oficiais e os respectivos títulos. Assim, Barnagais, escreve Francisco Álvares, é o termo para o rei numa das regiões da Etiópia "[...] porque nagais quere dizer rei e bar quere dizer mar e assim Barnagais quere dizer Rei do Mar".3 Uma vez dada a explicação utiliza-se o conceito, aquisição oral e definitiva da estrutura apreendida. O mesmo acontece, por exemplo, com "cabeata", um dos principais cargos na hierarquia etíope.4 Assim, de capítulo em capítulo, Álvares introduz novos vocábulos que se tornam parte integrante da sua vivência. No caso de Francisco Álvares a sua atenção recai ainda naturalmente sobre os vocábulos relacionados com as cerimónias religiosas. Numa procissão, a que o franciscano português assiste, os penitentes diziam "Zio marenos", afirmação que, a seu ver, corresponderia a "Senhor Jesus Christo amerceia-te de nós".5 Assim, quando o embaixador do Preste se lhe dirige, dizendo "Aba baraca" que pensa quer dizer, padre dá-me a benção, Francisco Álvares ter-lhe-ia respondido "Izi banaca" que se traduz por Deus te benza.6 Nos relatos de viajantes deparamos, pois, com uma

der Niederländischen West-und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, Haag, 1930, vol. 1, p. 26. 2. Francisco Álvares, A Verdadeira Informação das Terras do Preste João, Lisboa, 1540, transmite no seu texto expressões que recolhe durante a viagem. No encontro com um etíope relata que este lhe diria: "Atefra, atefra", que quer dizer: "não hajas mêdo, não hajas mêdo". (p. 151). Ao ser apresentado ao Preste João, os mensageiros gritavam "Hunca hiale hucis Abeton que quer dizer o que me mandastes aqui o trago" (p. 191); "Cafacinha quer dizer andai para dentro" (p. 191) ou "abeto abeto" que significa "o senhor, o senhor" (p. 269). Cf. as mesmas designações na edição alemã de Francisco Álvares, Wahrhafftiger Bericht von den Landen [...] des mechtigen Königs in Ethiopien, Eisleben, 1566, pp. 220, 253 e 313. 3. Francisco Álvares, op. cit., p. 60; ed. alemã, p. 120. 4. Francisco Álvares, op. cit., p. 214; ed. alemã, p. 115. 5. Francisco Álvares, op. cit., p. 77; ed. alemã, p. 146. 6. Francisco Álvares, op. cit., p. 336; ed. alemã, p. 369.

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permanente procura de equivalentes no léxico familiar numa contínua e viva comparação entre o dado encontrado e o significado conhecido; os textos, espelho atento da apreensão das realidades descodificadas em palavras até então desconhecidas e dos seus possíveis referentes. As relações de viagens transmitem fielmente a merecida recolha de designações e termos dos mais variados sectores de conhecimento; são nomes de regiões geográficas, plantas, frutos, animais, etc. que se infil-tram nas páginas destes escritos. No reino Quoja, um tigre denomina-se "Quellyqua",7 enquanto, entre os hotentotes, um leão tem por nome "Chamma".8 Entre as maravilhosas descrições encontramos, por vezes, longas listagens de denominações, desde o nome dado pelos indígenas ao termo correspondente atribuído pelos europeus. É, sem dúvida, a dificuldade de descrever e denominar a coisa em questão que se reflecte na escrita. Michael Hemmersam refere-se, assim, a um animal que vive na costa ocidental africana a que "os mouros chamam kankan, os portugueses Kato Dagalia; na costa do Ouro denominam-o Castory, sendo Agaly o que se lhes retira".9 Com efeito, a novidade seria então reconhecida pelo primeiro conceito, neste caso, e, muitas vezes, atribuído pelos portugueses; daí que as relações holandesas e alemãs estejam replenas de múltiplos vocábulos portugueses.10 Os textos enchem-se de novas expressões, símbolo do diálogo estabelecido e testemunho de alterações na própria linguagem. Os vocábulos recentemente adquiridos passam a ser tão naturais na boca dos viajantes como a sua própria língua.11 Ao deparar com uma nova reali-dade, o viajante apropia-se dos termos existentes, que o ajudam a integrar 7. Dapper, Umbständliche und Eigentliche Beschreibung von Africa, Amsterdão, 1670/1, p. 393. 8. Peter Kolb, Caput Bonae Spei hodierum, Das ist Vollständige Beschreibung des africanischen Vorgebürges der Guten Hoffnung, Nuremberga, 1719, p. 32. 9. "Die mohren nennens kankan, die Portugisen Kato Dagalia, an diesem Goldgestaden werden sie Castory genennt, den Agaly, so sie ihnen abnehemn." Michael Hemmersam, op. cit, p. 35. 10. Michael Hemmersam, op. cit, que utiliza designações portuguesas como seja "cassen" (p. 60) para casas, "preto" (p. 50) e "Feitisso" (p. 64) para feiticeiro ou curandeiro. Sobre o uso de conceitos portugueses em relações de viagens alemãs, veja-se Hans J. Vermeer, Über einige Typen sprachlicher Interferenz in der deutschen Reisefachliteratur des 16. Jahrhun-derts, in: Herbert Kolb (Ed.), Sprachliche Interferenz, Tübingen, 1977, pp. 246-266. 11. Veja-se o debate de usos de termos exóticos na língua portuguesa; por exemplo, João de Barros, Diálogo em Louvor da nóssa linguágem, (1540), ed., Lisboa, 1971, p. 401 refere que estes já seriam articulados de modo tão facil como os da própria linguagem.

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aquilo que agora conheceu e para o qual ele próprio não tem um outro vocábulo ou porque surge num outro contexto não correspondente ao conhecido. Mas as palavras dos idiomas africanos, orientais ou americanos não só seriam reflexo de estreitas vivências e profundos testemunhos de um conhecimento, como ainda serviriam de digno objecto de estudo.12 É o caso da obra Vocabula oder Wenn=Wörter. Welcher sich die Fetuischen in ihrer Sprache gebrauchen/ denjenigen/ welche in Guinea handeln zur Nachricht auffgesetzt und zusammen getragen,13 onde se organizam longas listas de vocábulos com a respectiva tradução. Esta obra da autoria de Wilhem Johann Müller seria publicada no ano de 1673, em Hamburgo, e, em 1675, na cidade de Nuremberga. São ao todo 400 as palavras que o autor ordena segundos diversos campos pragmáticos desde o tempo, a família, Deus, ídolos, animais, aves, peixes, designações de profissões, pesos e medidas, até palavras relacionadas com a actividade comercial. Uma vez que a recolha tem subjacente uma necessidade prática de comunicação no dia-a-dia com os falantes deste idioma, a maior preocu-pação é recolher um número significativo de palavras chaves da língua fetu. É, pois, a ordem prática que impõe as regras do diálogo. Os índices de palavras anexos às relações de viagens tornam-se, com o decorrer dos tempos, cada vez mais sistemáticos e perfeitos. O desbravar de um novo código será um estímulo para a aprendizagem do desconhecido e, ao mesmo tempo, a abertura de um outro horizonte mental. Ao registar e fixar imagens e realidades até então ignoradas, inaugura-se um esmerado discurso linguístico, expressão da passagem do registo à actividade reflectiva. Na verdade, o encontro de uma multiplicidade de línguas totalmente desconhecidas e, por vezes, indecifráveis levanta uma série de questões para os homens dos séculos XVI e XVII. O conhecimento de idiomas tão díspares, alguns apoiados em sistemas de escrita, outros apenas circunscritos à oralidade, impõe um largo debate sobre o fenómeno linguístico. Face a esta nova Babel, os vocábulos e as frases de além-mar serão inquiridos segundo o modelo prevalecente. Em analogia ao que se tinha efectuado para as línguas vulgares, a gramática das línguas exóticas seria 12. Veja-se, por exemplo, Álvaro Velho na sua Relação da primeira viagem à India... (1499), ed. José Manuel Garcia, Viagens dos Descobrimentos portugueses, Lisboa, 1983, pp. 159-224 apresenta um anexo com a linguagem de Calecute (idem, pp. 221-224). 13. Este dicionário seria publicado juntamente com a relação de viagem de W. J. Müller, Die Africanische auf der Guinesischen Gold-Cust gelegene Landschaft Fetu.

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construída em apego à gramática latina. Esta fornecia as estruturas basilares, funcionando como uma grelha no estudo dos idiomas estrangeiros. Nesta operação científica crê-se profundamente no modelo universal. Utilizado primamente para as línguas vulgares, aplicar-se-ia agora às línguas exóticas.14 É então que compete aos gramáticos reorganizar as listas de vocábulos anexas às relações de viagens. É o que se propõe fazer Hieronimus Megiser.15 Na obra que dedica à ilha de Madagáscar, Megiser inclui nem mais do que um Dictionarum der Madagascarischen Sprach. Weche bey den Einwohnern der grossen Africanischen Insul S. Laurenti, Vorzeitten Madagascar genandt/ ge-brauchlich: Nach Ordnung des Alphabets zusammen gebracht/ verdeutschet/ und den Liebhabern frembder Sprachen zu gefallen in Druck verfertiget.16 Eis o exemplo de um gramático europeu que, através dos textos que tem à sua disposição, nomeadamente das relações de viagens, se lança ardilosamente a desbravar o campo idiomático alheio, recolhendo vocábulos e fraseologia característicos duma língua africana no intuito de intervir construtivamente no estudo desse idioma. Sem terem um contacto directo com a região escolhida, sem conhecerem os seus habitantes, os gramáticos germânicos tratam doutamente o seu objecto de estudo: a língua além-mar. Atribuindo-lhe os estrados e andaimes - já experimentados - eles visam contribuir cientemente para a formação de uma estrutura orgânica familiar. Por vezes, este trabalho é ainda acompanhado por uma lista de léxicos equivalentes em latim. O viajante e cientista Peter Kolb ao abordar, na sua monografia sobre os hotentotes, a língua destes povos fornece uma lista vocabular em latim, hotentote e alemão; junto do vocábulo hotentote aparece o termo equivalente nas línguas latina e alemã. Uma vez que se trata de uma língua sem escrita, exige do cientista um maior esforço e empenho. Tal como ele refere, os hotentotes não conhecem letras, pelo que ele se vê obrigado a reproduzir o que ouve para um sinal escrito, neste 14. Sobre este conceito e sobre a reacção dos gramáticos portugueses face à descoberta de outras línguas, veja-se Maria Leonor Carvalhão Buescu, O estudo das línguas exóticas no século XVI, Lisboa, 1983. 15. Hieronymus Megiserus (?1554-1616) já tinha publicado o seu Thesaurus polyglottus seu Dictionarium multilingue, Frankfurt/M., 1603, onde apresenta algumas teorias sobre o fenómeno linguístico, teorias estas discutidas por Leibniz e Ludolf. Ver John T. Waterman (ed.), Leibniz and Ludolf on Things linguistic: Excerpts from their Correspondence (1688-1703), Berkeley/ Los Angeles/ Londres, 1978, pp. 28-30. 16. Altenburg, 1609, publicado na obra de Hieronymus Megiserus, que ele dedica à descrição da ilha de Madagáscar.

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caso, para o sistema alfabético latino. Sem dúvida, um empreendimento audaz e arrojado. O estudo duma língua exótica na sua inventarização vocabular, nas suas regras gramaticais, na sua caligrafia e lexicografia constitui surpreendentemente tema de trabalho de muitos eruditos europeus. Para além de um interesse geral pelo fenómeno linguístico, surgem ainda pesquisas pontuais sobre o continente africano. Dada a multiplicidade de idiomas existentes neste continente, vem a lume vários trabalhos sobre as línguas africanas, entre eles, alguns estudos dedicados exclusivamente à língua etíope. Nesta área de investigação distingue-se mais uma vez o já conhecido Hiob Ludolf que, no ano de 1661, publica, em Londres, uma Grammatica Aethiopica e ainda um Lexicon Aethiopico-Latinum, obras estas que viriam a lume mais tarde na cidade de Frankfurt.17 O seu interesse pela questão linguística já se tinha evidenciado na sua Historia Aethiopica e nos Commentarius e seria, sem dúvida, a sua paixão pela língua etíope que originara o relacionamento com Gregorius, que muito o ajudaria nesta delicada tarefa. Convém, no entanto, acrescentar que a linguística seria uma das questões predilectas de Ludolf que conhecia nada menos do que vinte e seis idiomas. Ao iniciar um debate em torno da linguística, Hiob Ludolf pretende principalmente investigar o mecanismo evolutivo de uma cultura. Na sua opinião é, ao reflectir sobre as origens da língua, que se pode compreender a evolução e o desenvolvimento da humanidade e, neste contexto, o continente africano revela-se-lhe extremamente criativo e significativo dada a multiplicidade de línguas e dialectos aí presentes. Esta preocupação em reflectir concretamente sobre o papel da linguagem como forma de reconhecer o processo histórico de um país está bem visível na correspondência que estabeleceu com o filósofo e erudito Gottfried Wilhelm Leibniz. Tanto Hiob Ludolf como Gottfried Wilhelm Leibniz buscam as origens da linguagem. Defendendo a existência de uma língua original, da qual se teriam desenvolvido outras línguas ou dialectos, os dois intelectuais, de exemplo em exemplo, intentam delinear o trajecto empreendido desde o primeiro código oral. Numa das cartas a Leibniz,18 Ludolf esquissa a opinião de que o primeiro homem teria vivido no Orien- 17. As primeiras edições seriam publicadas por um aluno de Hiob Ludolf, Johann Michael Wansleben, tendo o próprio Ludolf feito algumas correcções nas versões posteriores. 18. Ludolf a Leibniz, Frankfurt, 14 Junho, 1692 in: John T. Waterman (ed.), Leibniz and Ludolf on Things linguistic: Excerpts from their Correspondence (1688-1703), Berkeley, Los Angeles, Londres, 1978, pp. 26-28.

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te, mais propriamente, na Mesopotâmia ou regiões circunvizinhas, e daqui teria partido em diversas migrações para o resto do mundo. Assim, também a língua alemã teria vindo do Oriente através da Ásia Menor. Leibniz que concorda com esta teoria,19 apenas estabelece um outro trajecto desde o mundo oriental até à Alemanha. Segundo Leibniz as migrações teriam vindo sempre por terra, enquanto Hiob Ludolf põe a hipótese de terem atravessado o Mar Negro e o Mediterranêo. A fim de comprovarem as suas teorias, os autores estabelecem relações entre os idiomas das regiões em questão, isto é, buscam afinidades linguísticas explicativas, fazendo um cotejo dos idiomas regionais. Assim, poder-se-ia, a seu ver, descrever as palavras desde a sua raiz, nomeadamente, através dos vestígios linguísticos. Seguindo este processo, os dois intelectuais intentavam debuxar a pré-história humana, pois, tal como Leibniz afirma: "les langues sont les plus anciens monuments du genre humain, et qui servent le mieux à connoistre l'origine des peuples".20 A língua, um dos mais antigos vestígios de civilização, seria uma inconstestável e capital marca histórica. Não existem, todavia, só estas duas opiniões sobre a língua-raiz. Com efeito, muitas seriam as teorias construídas acerca das origens da linguagem. Hiob Ludolf critica duramente, por exemplo, a tese formulada pelo padre jesuíta Athanasius Kircher,21 que é da opinião que a língua universal não poderia ter sido outra que o hebreu, do qual teriam assim divergido todas as línguas existentes ao cimo da terra. Um dos aspectos que mais o preocupou foi o flagrante paralelismo entre a língua chinesa e a egípcia. Segundo Kircher, o terceiro filho de Noé, Cham, seguira do Egipto para a Pérsia, vindo a estabelecer-se provavelmente no reino do Mogor; daqui teriam seguido os hieróglifos para a China, explicando-se a

19. Leibniz a Ludolf, Hannover, 25 Julho, 1692, Publicada in: Waterman, op. cit, p. 29. 20. Leibniz a Bignon, 16. 1. 1694. Publicada in: Waterman, op. cit., p. 78. 21. A. Kircher (1601-1680), um dos mais criticados eruditos da época, procura mover para a ciência moderna, mas com muitos fundamentos tradicionais e, por isso, ultrapassados. Em 1618 entra para a ordem dos jesuítas e, em 1628, seria padre. Quatro anos mais tarde tem de deixar a Alemanha, por causa da invasão dos suecos e vai para Lion. A partir de 1634 até a sua morte vive em Roma, onde trabalha como professor de matemática, física, e línguas orientais. Funda o Museum Kircherianum e dedica-se a várias investigações nos mais diversos ramos da ciência, que divulga nas suas obras. Sobre A. Kircher e as suas obras, veja-se, Universale Bildung im Barock: Der Gelehrte Athanasius Kircher, Rastatt, 1981. Veja-se ainda Enrichetta Leospo, Athanasius Kircher und das Museo Kircheriano, in: Gereon Sievernich, Henrik Budde (Ed.), Europa und der Orient 800-1900, Munique, 1989, pp. 58-71.

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vísivel e redondante semelhança entre os primeiros signos chineses e egípcios.22 No objectivo de criar um sistema de filologia,23 Athanasius Kircher iniciara as suas pesquisas no Egipto, tendo-se necessariamente debruçado sobre a língua egípcia. Embora o Egipto e, mais concretamente, os hieróglifos não fizessem parte do objectivo da sua investigação, Kircher, que intenta ir de encontro à tradição filosófica ancestral, consi-dera o reino egípcio como a primeira grande etapa do percurso da humani-dade, onde, naturalmente, se poderiam aferir as raízes da cultura e ciência europeias. Nestas pesquisas sobre outros países, outras realidades, muitos homens de letras europeus deparam com civilizações igualmente descendentes de uma longa e rica cultura em valores filosóficos e científicos: é o caso das sociedades do Oriente. Este facto gera incertezas e dúvidas quanto à originalidade e antiguidade da cultura europeia; Athanasius Kircher é um dos eruditos que em face das novas descobertas se propõe desbravar as origens da cultura católica.24 Para o inquietante trajecto cultural, Kircher reune todo o material que encontra à sua disposição e inicia uma viagem fantástica pela realidade extra-europeia. Como vimos, debruça-se primeiramente sobre os hierógli-fos e, de analogia em analogia, ele encontra, no Egipto, os primeiros indícios do cristianismo. Em forma de símbolos, estes testemunham já a existência de um ser supremo, criador do mundo. Segundo Kircher, esta prática religiosa ter-se-ia expandido, o que explicaria, a seu ver, o mistério da antiga Pérsia de Zoroastro, e as religiões no Oriente. Kircher na sua viagem pela natureza e pela história não se comporta como um cientista moderno, baseando o seu trabalho em rigor filológico, pelo contrário, Kircher cria o seu modelo universal como um esquema puramente imaginário construído de associação em associação, método que iria levantar severas críticas entre os seus contemporâneos. Hiob Ludof, por exemplo, considera a sua tese referente às semelhanças entre o Egipto e a China uma mera especulação25 e sem qualquer rigor 22. Athanasius Kircher, Prodomus Coptus sive Aegyptiacus, Roma, 1636. 23. Esta tese desenvolve-a na obra Oedipus aegyptiacus, hoc est universalis hieroglypicae..., Roma, 1652-1654. 24. Sobre a ressonâncias do Oriente na cultura europeia e, em especial, na obra de A. Kircher, veja-se Valerio Rivosecchi, Esotismo in Roma barocca. Studi sul Padre Kircher, Roma, 1982. 25. Numa das suas cartas ao padre Bonjour, um grande estudioso da língua copta, Ludolf pede-lhe que se afaste dos trabalhos de Kircher pois não conhecendo a gramática copta, ele apenas estabeleceria meras semelhanças. Ludof a Bonjour Frankfurt, April 1700. Publicada in: Waterman, op. cit., pp. 53-55.

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científico; esta teoria contaria, todavia, com adeptos como, por exemplo, o sinólogo francês Joseph de Guignes, que ainda, em 1760, bem mais tarde, defendia ser a China uma colónia egípcia.26 Desde a descoberta, em 1419, do manuscrito Hieroglyphica que o decifrar do respectivo código constitui um tema central da filologia coeva. A língua original, compreendida como uma unidade entre a ciência e a fé, representaria o símbolo da sabedoria, pela que a interpretação do conteúdo deste documento surge como um objectivo fundamental nos meios culturais humanistas. A forma original inerente aos hieróglifos propagar-se-ia aos filósofos gregos e, consequentemente, aos seus discípulos romanos. Na língua grega encontrar-se-iam referentes similares às imagens dos hieróglifos, o que significaria uma reconciliação entre os dois sistemas numa nova síntese gráfica. Esta preambular fusão anima os humanistas na procura de uma língua ideal e da sabedoria original.27 A antiga tradição latina e grega, bem como a hebraica e a cristã, testemunhos de valor incalculável porque bem próximos da origem, reflectiam a necessidade de conhecer as vias de difusão cultural. Antes da Grécia e antes de Roma, remonta ao Egipto o berço da humanidade; aqui nascera Moisés, a figura central da proliferação da prática religiosa ocidental. Não faltavam textos gregos, redescobertos pelos amantes da Antiguidade, a certificar a fulcral importância do Egipto na evolução do espírito hierático. As relações do homem com o divino, presentes na dimensão misteriosa e enigmática dos hieróglifos28 levam estudiosos, como Athanasius Kircher,

26. Joseph de Guignes, Memoire dans lequel on preuve, que les chinois sont une colonie egyptienne...", Paris, 1670. Sobre Guignes e a sua obra, veja-se David E. Mungello, Aus den Anfängen der Chinakunde in Europa 1687-1770, In: Hartmut Walravens (Ed.), China illustrata. Das europäische Chinaverständnis im Spiegel des 16. bis 18. Jahrhunderts, Weinheim 1987, pp. 74-78. 27. Veja-se Karl Giehlow, Die Hieroglyphenkunde des Humanismus in der Allegorie der Renaissance, besonders der Ehrenpforte Kaisers Maximilian I., in: Jahrbuch der Kunsthistorischen Sammlungen des allerhöchsten Kaiserhauses, Viena/ Leipzig, 1915, vol. XXXII, Caderno 1, pp. 1-232. 28. Este aspecto misterioso e enigmático será reencontrado por muitos autores nas parábolas da Sagrada Escritura. Os profetas também adivinham o futuro por símbolos e imagens. Sobre os hieróglifos e a sua sabedoria misteriosa, veja-se Marc Fumaroli, Hiéropglyphes et Lettres: La "Sagesse mystérieuse des anciens" au XVIIe siécle, in: XVIIe Siècle (Hiéroglyphes, Languages Chiffrés, sens mystérieux au XVIIe siècle), Paris, 1988, No 158, pp. 7-19.

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a prosseguir a tradição humanista29 numa contínua procura da perfeita harmonia do universo físico e espiritual. Da comprovação da multiplicidade de línguas faladas pelo mundo chega-se à criação de teorias do fenómeno linguístico, teorias estas que com os seus modelos explicativos prestam um prestimoso contributo na desco-dificação e esclarecimento das origens da humanidade. O continente africano estaria assim sempre presente nos vastos e largos debates proferidos pelos homens de letras do século XVII. Quer no debate sobre as origens da humanidade ou na reflexão sobre a diversidade patente na língua, quer noutros sectores da cultura e da natureza, os intelectuais descobriram aí um valioso legado. Em todas as áreas de saber, África daria a sua contribuição para a discussão científica.

3.5.2 Ciências da Natureza: Registo e Classificação Se urge ponderar sobre as origens da humanidade e a sua história e cultura, então importa não negligenciar o papel das ciências da natureza na construção de uma nova ordem de saber. Na verdade, a necessidade de recapitular os inúmeros dados observados por este mundo ilimitado é urgente e também nesta área do conhecimento se impõe a aplicação de um sistema estrutural capaz de discernir e organizar o novo mundo animal e vegetal. Observar, comparar e classificar a natureza adquire cada vez mais o estatuto de ciência autónoma. Se nas primeiras relações de viagens, se recorria frequentemente à comparação com outros elementos já conhecidos, a fim de se traçar uma imagem dos diversos animais ou plantas em observação, ao longo do século XVII, é a procura de características comuns segundo as quais se possa ordenar e classificar o objecto em questão que determina a descrição e consequente conhecimento; assim já não é uma função ou um aspecto semelhante, mas sim uma qualidade que caracteriza uma determinada classe vegetal ou animal. O século XVI efectuara um longo e exaustivo trabalho de observação e registo de qualidades e características zoológicas e botânicas, criando

29. Veja-se Gerhard F. Strasser, La contribution d'Athanase Kircher a la tradition humaniste hiéroglyphique, in: XVIIe Siècle (Hiéroglyphes, Languages Chiffrés, sens mystérieux au XVIIe siècle), Paris, 1988, No 158, pp. 79-92.

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consequentemente as bases fundamentais para um conhecimento mais profundo do mundo animal e vegetal. Vejamos por um lado as iniciativas dos eruditos humanistas em erigir valiosas e voluminosas enciclopédias capazes de fornecer uma leitura do livro chamado mundo. Por outro lado, a abertura do orbe terráqueo traz consigo um aumento substancial no conhecimento de novas espécies que chamam a atenção de homens curiosos. Estas duas vias, erudição e experiência, iriam desaguar num único desejo: o de ler e reconstruir o mundo. O material trazido para a Europa dos mais diversos pontos do globo ilustrava a diversidade existente na natureza; também a novidade da paisagem natural instava uma classificação.30 Enquanto os autores das relações de viagens observavam, comparavam e descreviam as plantas, os frutos, os animais, as aves e os peixes, os letrados preocupavam-se em editar e conhecer as obras de homens que se tinham empenhado em descrever o mundo animal e vegetal, como Plínio, Dioscorídes, Galeno, Hipocrates, entre outros.31 Os homens de letras não ficariam, contudo, indiferentes ao enorme manancial de informações vindas de além-mar e, a par e passo, as descrições dos nautas constituiriam também um importante instrumento de trabalho na mesa destes eruditos. Assim, enquanto o médico Michael Herr32 escreve um livro sobre os quadrúpedes,33 quase exclusivamente segundo as informações recolhidas nas obras de Aristóteles, Plínio e Solino, as informações sobre novas espécies animais aumentam substancialmente. Enciclopedistas como Conrad Gesner reagem ao renascimento das obras clássicas reunindo, anotando, comparando os textos numa esperança de completa exactidão temática e daí que, por vezes, incluam já alguns dados recentemente

30. Veja-se Emile Callot, La Renaissance des Sciences de la Vie au XVIe Siècle, Paris, 1951. 31. As obras destes autores constituiam matéria obrigatória na formação humanista. Já Hartamnn Schedel se ocuparia, nos seus estudos medicinais, das obras de Hipócrates, Galeno e Plínio, obras que se encontram na sua biblioteca, respectivamente na área de medicina. Veja-se Richard Stauber, Die Schedelsche Bibliothek, Ein Beitrag zur Geschichte der Ausbreitung der italienischen Renaissance, des deutschen Humanismus und der medizischen Literatur, ed. Otto Hartig, Freiburg, 1908 e ainda Béatrice Hernad, Die Graphiksammlung des Humanisten Hartmann Schedel, Munique, 1990, pp. 79-80. 32. Veja-se cap. 1.2.; aí já referenciado pelas suas traduções de L. Varthema e do Novus Orbis. 33. Michael Herr, Gründlicher vnterricht/ warhaffte vnd eygentliche Beschreibung/ wunderbarliche seltzamer art/ natur/krafft/vnd eygenschaft aller vierfüssigen Thier..., Estrasburgo, 1546.

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divulgados.34 O legado das autoridades constituiria, no entanto, um fundamento difícil de superar ou criticar. As informações testemunham validade, na medida em que constituem depoimentos de autoridades.35 Estas obras, em que se aposta na erudição, o método de conhecimento usado maioritariamente pelos letrados é o de compilar tudo o que já fora escrito. Assim, uma citação pode ser tão importante como o próprio facto e pode mesmo fornecer a prova ou justificação. Mas pouco a pouco instaura-se a dúvida gerada pela experiência.36 Observação e empiria, os garantes de correcção, sobrepõem-se no registo. Embora a herança clássica continue a fornecer as estruturas mentais consideradas válidas para o conhecimento, nasce um espírito novo: dialogar com a antiguidade, com o saber vigente para ir mais longe.37 Neste contexto, as viagens marítimas oferecem um enorme manancial de informações, capaz de saciar esta sede de saber e de, ao mesmo tempo, reforçar os métodos experimentais. Alguns esforços são já visíveis nos textos de viagens quando abordam, por exemplo, em capítulos especiais as diversas classes e espécies de animais, plantas ou outros elementos naturais, consoante as suas características orgânicas.38 Também neste

34. A sua Historia animalum (Frankfurt, 1551-1587) está dividida em cinco livros: os 2 primeiros dedicados aos quadrúpedes, o terceiro aos passáros, o quarto aos peixes e o quinto, por fim, às serpentes e aos insectos. Em apego à classificação do mundo animal de Aristóteles, Gesner apresenta, no entanto, a temática alfabeticamente sem comparações. Um trabalho descritivo sob o seguinte esquema: nome, país, habitat, aspecto, doenças, costumes, utilidade, alimentação, medicina, curiosidades filológias, históricas ou literárias. 35. Neste contexto, não é estranhar que C. Gesner publique gravuras de seres que denomina "Wunder des Meeres", criaturas metade humana, metade peixe, que teriam aparecido ao longo das costas europeias. Historiam Animalum, 3° Livro. Frankfurt, 1585, pp. 175-76. 36. Na sua abordagem dos quadrúpedes, Michael Herr apoia-se maioritariamente nas autoridades, embora já seleccione as informações que apresenta na sua obra. Assim, refere, por exemplo, que não menciona certas notícias sobre a salamandra, tal como Plínio as tinha dado, porque as considera falsas. Veja-se Michael Herr, op. cit., prólogo. 37. Veja-se Rudolf Schmitz und Fritz Krafft (Ed.), Humanismus und Naturwissenschaften, Boppard, 1980; em particular, o artigo de R. Hooykaas, Von der "Physica" zur Physik, pp. 9-38. 38. É o caso, por exemplo, de Peter Kolb, Caput Bonae Spei Hodiernvm Das Ist: Vollständige Beschreibung des Africanischen Vorgebürges der Guten Hoffnung, Nuremberga, 1719. O autor apresenta, por ordem alfabética, os dados da zoologia e da flora do Cabo da Boa Esperança. Outros exemplos: Wilhelm Johann Müller, Die Africanische auf der Guinesischen Gold-Cust gelegene Landschafft Fetu, Hamburgo, 1673, ed. Jürgen Zwernemann, Graz, 1968; Leonhardt Rauwolf, Aigentliche Beschreibung der Raiß [...] inn die Morgenländer, Laugingen, 1583 (quarta parte; as primeiras vieram a lume em 1581 e 1582).

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campo as relações de viagens constituem um banco documental prioritário, a partir do qual se pode desenvolver e alicerçar uma frutuosa discussão científica. Nestas obras encerra-se um valioso corpus documental necessário à formação de uma ciência positiva.39 As informações anotadas nas relações de viagens viriam ainda a ser com-plementarizadas, uma vez que muitos dos exemplos recolhidos seriam trazidos para a Europa; as cidades europeias encher-se-iam de exemplares de maravilhosas aves exóticas ou mesmo elefantes, que fariam as delícias de muitos. Além disso, as plantas seriam também objecto de grande atenção, sendo com assaz curiosidade e interesse que se descrevem as variadas espécies.40 Fruto deste espírito atento e observador, o vivo empenho em criar os inventários. O seu lema é: observar, comparar e descrever. Os primeiros escritos científicos não se fariam então esperar. Garcia de Orta que, em 1534 acompanhara uma frota portuguesa até Goa, escreve os seus Colóquios dos Simples e Drogas da Índia,41 enquanto Cristovão da Costa edita um Tratado de Las Drogas y Medicinas de las Índias Orientales42, dois preciosos exemplos de recolha e registo da ciência médico-botânica do Oriente. Tanto o Tratado de Cristovão Costa, como os Colóquios de Garcia de Orta, uma das mais famosas obras de ciência do Renascimento, viriam a ser conhecidas na Europa através da tradução latina de Charles de L' Ecluse (Carolus Clusius 1526-1609). No seu Aromatum, et Simplicium Aliquot Medicamentorum Apud Indos Nascentium Historia,43 Clusius apresenta os Colóquios embora numa

39. Sobre as viagens portuguesas e a suas repercussões nas ciências empíricas, veja-se Luís de Albuquerque, Sobre o empirismo científico em Portugal no século XVI, Coimbra, 1982. 40. Muitos destes animais e plantas seriam coleccionados como qualquer outro objecto. Os gabinetes de história natural, os jardins botânicos e as reservas para animais são vivos testemunhos destas colecções. Veja-se E. Callot, op. cit, pp. 43-55 e Monika Kopplin, "Was frembd und seltsam ist", Exotica in Kunst und Wunderkammern, in: Exotische Welten, Eu-ropäische Phantasien, Estutgarda, 1987, pp. 296-317. 41. Goa, 1563, ed. Conde de Ficalho, Lisboa ,1891, 1987. Sobre Garcia de Orta veja-se Conde de Ficalho, Garcia de Orta e o seu tempo, Lisboa, 1886; Luís Filipe Barreto, Descobrimentos e Renascimento. Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI, Lisboa, 1983, pp. 255-295. 42. Burgos, 1578. Sobre o contributo da obra de Cristovão Costa para a temática médica renascentista, veja-se Luís Filipe Barreto, Caminhos do Saber no Renascimento Português. Estudos de história e teoria da cultura, Lisboa, 1986, pp. 111-201. 43. Antuérpia, 1567. (ed. M. de Jong e A. Wittop Koning, Amsterdão, 1963). Sobre as obras de Carolus Clusius, veja-se Feschrift anläßlich der 400jährigen Widerkehr der

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versão reduzida. Não obstante edite todas as informações necessárias ao conhecimento da botânica oriental, Clusius altera a estrutura da obra; construída em diálogo entre Orta, um defensor do experientalismo e Ruano, uma figura fictícia representante do humanismo ortodoxo, os Colóquios propunham-se apresentar a controvérsia metodológica coeva. Clusius despreza, por assim dizer, o "diálogo metodológico e cultural" para destacar somente o aparelho factológico oriental.44 Recolhas como as de Garcia de Orta e Cristovão Costa abriam novas perspectivas à botânica e à zoologia, bem como à medicina. As repercussões dos novos conhecimentos fizerem-se logo sentir nas publicações coevas, que assim intentam profetar a abertura do mundo. Obras como, por exemplo, Horti Malabari45 ou Horti Medici46 dão a conhecer as plantas de África, do Oriente e da América, descrevendo ao longo de muitas e muitas páginas as diversas espécies regionais, muitas vezes, acompanhadas da respectiva iconografia. Sem esquecer ainda de fazer referências ao uso medicinal das referidas plantas.47 Michael Bernard Valentini, um médico residente na cidade alemã de Giessen, de harmonia com o método das colecções de minérios, pedras ou curiosidades, os denominados KunstKammer, redige o seu Museum Museorum, oder vollständige Schau=bühne aller Materialen und Spece-reyen nebst deren natürlichen Beschreibung/ election, Nußen und Gebrauch...48 Com base nas relações de viagens sobre o Oriente e a

wissenschaftlichen Tätigkeit von Carolus Clusius, Eisenstadt, 1973. Outras edições de Aromatum: 1567, 1574, 1579, 1593. Costa: 1582, 1593, 1605. 44. A publicação de Garcia de Orta por Clusius é um exemplo sintomático das diferentes posturas durante o Renascimento. A divulgação da obra de Garcia de Orta seria, contudo, grande, pois poderemos encontrá-la inúmeras vezes referenciada. Poder-se-á mencionar por exemplo, a obra de G. Pison (médico em Amsterdão) que na sua De India utriusquere naturale medica (Amsterdão 1658) cita amiudamente Garcia de Orta, utilizando até, em muitos casos a nomenclatura portuguesa. 45. Henricum van Rhede e Theodor Janson, Horti Malabari..., Amsterdão, 1686. 46. Caspar Commelino, Horti Medeci ..., Amsterdão 1701. 47. Os conhecimentos poderiam ainda ser utilizados no quotidiano, como seja em receitas culinárias: Paul Jacob Marperger, Vollständiger Küch= und Keller= Dictionarium in welchem allerhand Speisen und Geträncke...." Hamburgo, 1716. Aqui podem-se encontrar alfabeticamente comidas africanas ("bárbaros", "mouros guineenses" ou de hotentotes). O autor empreende este trabalho porque considera não só útil conhecer as novidades culinárias de países estrangeiros, mas também porque a alimentação teria muito a ver com a constituição das pessoas e a sua maneira de viver e ser dos homens e dos povos em geral. Interessante ainda é o facto de Marperger citar, ao lado de obras coevas, exemplos referencidos por Plínio. 48. Frankfurt/M., 1704.

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América, Valentini elabora uma fascinante compilação de plantas, especiarias e produtos orientais - um nunca acabar de novidades. Recheada de ilustrações, esta obra constitui um fabuloso léxico dos produtos vindos além-mar. Uma obra similar é a de Peter Pomet Der auf-richtige Materialist und Specerey= Händler oder Haupt= und allgemeine Beschreibung derer Specereyen und Materialen.49 Estes alguns dos inúmeros exemplos das ressonâncias da descoberta de novos mundos nos meandros das ciências naturais. A lista de dados aumenta de dia para dia e o inventário está quase completo. Após o decisivo diálogo com a ciência clássica, os homens de letras vão-se sentindo cada vez mais capazes de a criticar e, porque não, de elaborar novos sistemas explicativos. Em cima dos ombros dos Antigos, os autores renascentistas ousam ver mais longe. Isto porque começam a acreditar no que vêm. Em presença dos relatos de viagens dos Descobrimentos seria possível iniciar a construção dos alicerces de novas concepções acerca do mundo e da humanidade. Cheios de informações a descodificar, os textos de viagens abriam novas perspectivas. Compreender o mundo nas suas verdadeiras dimensões naturais e humanas significava formularem-se novos métodos de análise, aprofundarem-se os limites prevalecentes e inaugurarem-se novas áreas do saber. Algumas publicações isoladas empreendiam, desde já, esta tarefa de classificação e de reconhecimento documental, iniciando um processo de teorização que se iria assumir de uma forma mais clara e global por todo o século XVIII.50

3.5.3 Literatura: Heróis em África As viagens dos Descobrimentos iriam, de facto, contribuir substancialmente para uma outra forma de estar no mundo. Não só os espaços geográficos adquirem outras dimensões, a humanidade vê também

49. Leipzig, 1717. 50. Sobre este processo, veja-se Geoffroy Atkinson, Les Relations de Voyages du XVIIe Siècle et l'Evolution des Idées, Contribution a l'Etude de la Formation de l'Esprit du XVIIIe Siècle, Nova Yorque, 1971 (1924); Urs Bitterli, Die Entdeckung des Schwarzen Afrikaners, Versuch einer Geistesgeschichte der europäisch-afrikanischen Beziehungen an der Guineaküste im 17. und 18. Jahrhundert, Zurique, Freiburgo, 1980 e do mesmo, Die "Wilden" und die "Zivilisierten", Grundzüge einer Geistes- und Kulturgeschichte der europäisch-überseeischen Begegnung, Munique, 1976, 1982.

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aumentada a sua esfera, pondo, assim, em causa a tradicional concepção. A superfície terrestre cresceu tão fantasticamente que se pode falar, sem exagero, de um Mundo Novo. A tomada de consciência deste evento leva os homens de meados do século XVI a ver este acontecimento como um resultado do esforço e empenho humanos. É, pois, com regozijo que se encaram os feitos alcançados e que se testemunha um imensurável optimismo na conduta humana; o homem renascentista empreendera novos percursos e, graças ao seu labor, conseguira dar uma nova imagem ao mundo. Ele, que partira à procura de outras terras e gentes, no final da viagem, acabara por se conhecer a si próprio: os seus hábitos, os seus ritos, os seus conceitos, a sua linguagem. O encontro com outros mundos aparecia então como um novo tema, um novo assunto que muitos letrados visavam aprofundar; e muitas seriam as vias de abordagem. Os autores poderiam zarpar em naus europeias e ancorar em terras distantes e longínquas, em portos maravilhosos onde tomariam contacto com novas maneiras de viver ou em ilhas desertas repletas de árvores extraordinárias com frutos e animais maravilhosos. Ao longo das viagens nasceriam histórias e mais histórias, que ansiavam ser contadas. As suas personagens poderiam ser os viajantes ou os reis e veneráveis príncipes dessas terras distantes, cujos costumes e hábitos se tinham tornado parte da cultura material europeia. As suas formas de go-verno, a sua história ou as suas remotas origens poderiam perfeitamente constituir o tema de uma história. Os contadores destas novas histórias baseiam-se em material histórico, em fontes, mas não as pretendem reconstituir total e autenticamente. Eles reunem os factos, não exaustivamente, pois o contador de histórias coordena-os como melhor lhe parece. Visto que não ambiciona narrar toda a verdade, ele permite-se ordenar os episódios consoante acha mais proveitoso para o leitor e pode mesmo ignorar determinados aspectos considerados desnecessários na abordagem das novas realidades. Se se trata também de uma compilação de saber, visto que o principal objectivo é reunir o conhecimento geográfico, político, religioso sobre um determinado assunto, o certo é que a função do contador de histórias é, antes demais, informar e deliciar o leitor.

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Mas quem são estes contadores de histórias? Muitos deles constam entre a classe de historiadores.51 Assim, se algumas destas obras baseadas em fontes documentais se podem classificar como perfeitos escritos de nature-za histórica, muitas outras são verdadeiros romances. Eberhard Werner Happel é um destes autores. Conhecemo-lo de obras geográficas, como Mundus mirabilis, o Thesaurus exoticorum, em que traçou o debuxo de uma história de costumes de todos os povos da terra, ou ainda das Relationes curiosas52 que, como o próprio título indica, é um apontamento sobre matérias curiosas ocorridas nos séculos passados. Mas, E. W. Happel escreve também romances,53 como o Afrikanischer Tarno-last,54 o Asiatischer Onogambo,55 o Europäischer Toroan56 e o Insulanischer Mandorel.57 Nestes textos literários, Happel dedica-se mais uma vez a temas já abordados, só que agora ele poderá criar os seus próprios heróis e a trama das suas histórias. A intriga poderá ocorrer no continente africano, como em Afrikanischer Tarnolast, caso vise informar sobre a geografia e os usos e costumes desta parte do mundo. Ao romance compete ajudar o leitor a conhecer outros países e outros costumes de uma forma descontraída e com prazer; aqui o leitor aguarda uma história fabulosa e dramatizada, um relato romanceado de uma história de amor. Num ensaio sobre o aparecimento do género de romance58 faz-se a seguinte distinsão: "Histórias são na generalidade verdade, mas em parte mentira. Os romances em contraposição são em parte verdade e na totalidade ou no género mentira. Estes misturam verdade com erro e os outros são erros com mistos de verdade. Por fim, retiro todas as fábulas de entre os romances, pois estes são coisas retocadas, que não são impossíveis, mas poderiam ter acontecido, embora 51. Sobre a distinsão entre historiador e contador de histórias, veja-se Elida Maria Szarota, Lohensteins Arminius als Zeitroman. Sichtweisen des Spätbarock, Berna/ Munique, 1970, pp. 159-174. 52. Veja-se cáp. 3.1 e 3.2. 53. Sobre E. W. Happel, veja-se Theo Schuwirth, Eberhard Werner Happel (1647-1690). Ein Beitrag zur deutschen literaturgeschichte des siebzehnten Jahrhunderts, Marburgo, 1908 e Gerhard Lock, Der höfisch-galante Roman des 17. Jahrhunderts bei Eberhard Werner Hap-pel, Würzburgo, s. d. 54. Ulm, 1689. 55. Hamburgo, 1673. 56. Hamburgo, 1676. 57. Frankfurt/M. 1682. 58. Trata-se do Traité de l'origine des Romans do francês Pierre Daniel Huet (1670). Veja-se Eberhard Lämmert u.a. (Ed.), Romantheorie 1620-1880, Dokumentation ihrer Geschichte in Deutschland, Frankfurt/M., 1988, pp. 29-33.

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de facto não tenham acontecido, enquanto que as fábulas são ornamentos das coisas que não se passaram, nem podem vir a acontecer".59 O historiador apresenta os factos, o contador conta uma história. Este reune o material que utiliza nos seus romances para criar uma história que poderia ter sido verdadeira. O conceito de história é subjacente aos começos do género do romance.60 Ambas as obras procuram transmitir uma sequência aliciante de factos vitais e exemplares para o seu leitor. Isto porque "A história é uma obra de tanta utilidade que, nós, sem ela, seríamos como que cegos a tactear no escuro".61 Qualquer que seja o seu tema, a história visa ser uma lição; e este carácter pedagógico poderá ser transmitido tanto por uma história verdadeira, como por uma história eventualmente possível. Quer as histórias, quer as histórias romanceadas pretendem transmitir uma mensagem e alumiar o caminho ao leitor. Em suma, este o grande mérito da literatura. Eberhard Werner Happel aceita, assim, o desafio de escrever histórias romanceadas.62 A primeira obra, que dedica ao continente africano, e escrita entre 1666 e 1670 só viria a público em 1689, após Asiatischer Onongambo. Na Africanischer Tarnolast. Das ist: Eine anmuthige Liebes und Helden-Geschichte/ von einem mauritanischen Printzen und einer Portugallischen Printzessin... conta a história do príncipe Tarnolast, filho do rei da Mauritânia que, preso por árabes, viria a ser vendido como escravo em Adém. Com a ajuda da filha do dono consegue-se libertar e, mais tarde, converter-se ao cristianismo. A caminho de Madagáscar, o navio onde viaja naufraga, tendo sido salvo por franceses que o trazem

59. "Historien sind in Genere wahr, aber in gewissen Stücken falsch. Die Romane hingegen sind in gewissen Theilen wahr, und im gantzen oder in Genere falsch. Diese sind Wahrheit mit Falschheit vermenget, und jene sind Falschheit mit Wahrheit vermischt. Endlich schließe ich auch alle Fabeln aus der Zahl der Romanen, den die Romanen sind ausgezierete Sachen, welche nicht unmöglich gewesen, sondern sich wohl hetten zutragen können, dennoch nicht also geschehen sind, die Fabeln hergegen sind Verzierungen der Dinge, die nicht gewesen sind, noch haben sein können." Citado segundo G. Lock, op. cit., p. 31. 60. História e romance estão ainda nos séculos XVI e XVII profundamente interrelacionados. Sobre a evolução do conceito literário de história entre os séculos XV e XVII, veja-se Joachim Knape, "Historie" in Mittelalter unf früher Neuzeit. Begriffs- und gattungsgeschichtliche Untersuchungen im interdiszisplinären Kontext, Baden-Baden, 1984, pp. 369-400. 61. "Die Historie ist ein solch nützlich Werk/ dass wir ohne dieselbe/ wie blinde Leute/ gleichsam im Finstern tappen würden..." Assim Happel no seu romance Spanischer Quintana, Ulm, 1686/87; citado segundo Schuwirth, op. cit., p. 128. 62. É interessante verificar que é um primeiros autores a fazer a distinsão entre história e romance, conceito este que já surge no título de muitas das suas obras.

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para Orléans; aqui nesta cidade francesa adopta o nome de Vallach. Cavaleiro do conde de Florença, o nosso personagem dirige-se a Portugal numa missão diplomática, que o leva até ao rei D. Manuel. Em Portugal, participa num torneio e logo ganha o amor da filha do rei, Clara. Tarnolast juntamente com Oran, o irmão de Clara, dirigem-se para Espanha, a fim de lutarem contra os mouros. Vassalos do pai ao verem-no, passam-se para o lado espanhol, e as cidades de Granada e Córdova, serão conquistadas. Ao regressar a Lisboa, a irmã Ulissiaga, participa-lhe o noivado com o irmão de Clara, que pouco depois seria raptada, pelo que mais uma vez parte em seu auxílio. Juntamente com um inglês de nome Eduard, Tarnolast inicia uma série de aventuras que o levam por toda a África. Passa por Tombucto, Benim, Angola, Bamba, Etiópia, Melinde, Monomotapa até chegar à ilha de Madagáscar, onde finalmente encontra a irmã. Regressa então passando pela Etiópia, pelo Egipto e atravessando o Mediterranêo chega de novo a Lisboa, depois de lhe acontecerem inúmeras peripécias. Em Lisboa a noiva, Clara, espera-o para festejarem o casamento, bem como o da irmã com Oran, o de Rosamunde, uma irmã de Oran e de Clara que casa com o príncipe Eduard. Tecendo este ardiloso argumento, Happel tem a oportunidade de descrever os diferentes reinos de África; ao longo de mil e duzentas páginas, o escritor formula um retrato do continente africano, intentando espelhar a situação política. No Monomotapa, por exemplo, Tarnolast será ajudado por tropas portuguesas aí estacionadas, em especial, por um senhor chamado Alvarez. Será que os portugueses, viajantes e repórteres destes reinos, já se tornaram personagens nas "histórias de amor e de heróis"? Este esquema utilizado para o continente africano aplicá-lo-á também a outras regiões. As obras de E. W. Happel distribuem-se, na verdade, pelas quatro partes do mundo. Interessando-se pela história de um país ou de um povo, E. W. Happel escreve uma obra atrás da outra, traçando uma verdadeira história universal; com este seu panorama histórico que abarca todas as épocas e se alarga a todos os continentes, Happel redige uma romanceada história mundial. Quanto às fontes utilizadas para escrever as suas obras, facilmente poderemos adivinhar quais os nomes referenciados. Nas notas menciona-se Olfert Dapper, Sebastian Franck, Herport, Schilberger Tavernier, Leon-hard Rauwolff, Neuhoff, Pietro della Valle, Athanasius Kircher, bem como Estrabão, Plínio, Diodoro Sículo, entre outros. Os romances de Happel tão repletos de informações históricas, notas geográficas e cu-

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riosidades, tornam-se "excêntricas enciclopédias reais" - esta a opinião, um pouco depreciativa, do poeta alemão Eichendorff.63 E. Werner Happel não é o único autor a escrever simultaneamente obras históricas e romances; muitos outros escritores, como Andreas Gryphius, Philipp Hardörfer, Philipp Zezen, Daniel Caspar Lohenstein e Anton Ulrich compilam igualmente histórias pelo mundo. Um curioso exemplo é o de Philipp Zezen (1619-89),64 um nome associado a muitas publicações, visto que trabalha como historiador65 e contador de histórias. Além disso, Philipp Zezen seria um conceituado tradutor, pelo que não só verteu para o alemão romances66 como ainda outras obras, entre elas, relações de viagens. Neste contexto, interessa-nos sobremaneira o seu trabalho, uma vez que Zezen traduziu do holandês para o alemão, entre outras, as obras de O. Dapper que, como sabemos, escreveu uma célebre monografia sobre o continente africano. Assim, Zezen conhecia este continente, não porque alguma vez o tivesse visitado, mas porque foi o autor da tradução de Olfert Dapper Umbstandliche und eigentliche Beschreibung Afrikas (1670).67 Mas interessantemente ao escrever um romance sobre este continente, Zezen escolhe um tema do antigo Testamento. Intitulado Assenat, Josephs heilige Stahs= Lieb= und Lebens- geschicht,68 este seu romance é uma história baseada em fontes sagradas sobre a figura de José do Egipto.69 Pretendendo escrever a pura verdade destes acontecimentos bíblicos, Zezen recorre a inúmeras fontes

63. "[...] tollgewordenen Realencyclopädien" (Eichendorff) citado segundo Herbert Singer, Der galante Roman, Estugarda, 1966, p. 19. 64. Sobre P. Zezen, Ferdinand van Ingen, Philipp von Zezen, Estugarda, 1970. 65. Sobre a intensiva actividade de Zezen como historiador, veja-se Karl F. Otto Jr., Zezens historische Schriften: ein sondierungsversuch. In: Ferdinand van Ingen (Ed.), Philipp von Zezen 1619-1969. Beiträge zu seinem Leben und Werk, Wiesbaden, 1972, pp. 221-230. 66. Zezen traduziu Lysander und Kaliste , 1644 (Audiguier), Ibrahim, 1645 (Madame Scudéry) e Sofonisbe, 1647 (Gerzan). Veja-se Hans Körnchen, Zezens Romane. Ein Beitrag zur Geschichte des Romans im 17. Jahrhundert, Berlim, 1912 (Palaestra, 115). 67. Sobre este trabalho, veja-se Hebert Blume, Eine unbekannt gebliebene Übersetzungsarbeit Zezens, in: Ferdinand van Ingen (Ed.), Philipp von Zezen 1619-1969. Beiträge zu seinem Leben und Werk, Wiesbaden, 1972, pp. 182-192. 68. Assenat, Amsterdam 1670. (Ed.) Ferdinand van Ingen, Sämtliche Werke, vol. 7, Berlim, Nova Yorque, 1990. 69. "Sobre os romances biblícos de Zezen, veja-se Volker Meid, Heilige und weltiliche Geschichten: Zezens biblische Romane. In: Ferdinand van Ingen (Ed.), Philipp von Zezen 1619-1969. Beiträge zu seinem Leben und Werk, Wiesbaden, 1972, pp. 26-46; Willi Beyers-dorf, Sudien zu Philipp von Zezens biblischen Romanen "Assenat" und "Simon", Leipzig 1928.

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documentais, como podemos testemunhar, quando manuseamos o enorme aparato de notas de rodapé - num texto de trezentas e sessenta e cinco páginas, mais de duzentas são notas. A sua história não seria "fantasiada", pedindo ao leitor que leia primeiro as notas, a fim de compreender o processo narrativo. Manter fidelidade às fontes, o princípio que rege o seu Assenat. Já no prólogo refere algumas das obras utilizadas, nomeada-mente, escritos de árabes e hebreus, escritos do "mundialmente conhecido Atanasius Kircher" e ainda de autores judeus, textos estes que teria utilizado quando a Sagrada Escritura lhe dava poucas informações. Mais uma obra nascida do veemente furor do saber lexical. Ao ecrever o seu romance, Zezen apesar de o fazer de uma forma pessoal, atento às discussões políticas do seu tempo sobre um governante cristão, privilegia sobremaneira o tratamento tradicional deste tema que, desde o teatro dos Jesuítas,70 ou com o romance Keusche Joseph (1667) de Grimmelshausen,71 ganhara assaz significado nos meios culturais europeus. Zezen apresenta neste seu romance uma descrição de acontecimentos históricos bem à maneira de uma obra histórica. O seu contributo para a história do continente africano baseia-se numa actualizada e exacta reconstrução do passado consoante lhe permitiam as fontes existentes. No que respeita ao teatro jesuíta, embora não pretendamos aprofundar esta temática,72 apenas gostaríamos de referenciar que também nas actividades literárias ou teatrais desta ordem religiosa se encontram claras ressonâncias das viagens marítimas. Com efeito, os autores jesuítas souberam introduzir, nas suas representações e textos, novos temas, novos heróis e até novas vítimas. É o caso da peça Alphonsus Rex Congi in Aethiopia de mundo Victor. König Alphonsi wider die Welt erobert Sig in Mohren=land representada no liceu jesuíta de Landsberg, no ano de 1670. Conta-se o caso verídico passado com o rei congolês Afonso, que, por se ter convertido ao cristianismo, seria vítima de intrigas e guerrilhas, por parte do seu irmão. Após a morte do pai, o irmão trava uma mortífera

70. Ruprecht Wimmer, Jesuitentheater. Didaktik und Fest. Das Exemplum des ägyptischen Joseph auf den deutschen Bühnen der Gesellschaft Jesu, Frankfurt/M., 1982. 71. Veja-se Clara Stucki, Grimmelshausens und Zezens Josephsromane. Ein vergleich zweier Barockdichter, Zurique, Leipzig, 1933. 72. Sobre o teatro jesuíta, veja-se, entre outros, Willi Flemming, Geschichte des Jesuitentheaters in den Landen deutscher Zunge, Berlim, 1923; Jean-Marie Valentin, Le Theatre des Jesuites dans le pays de langue allemande (1554-1680), 3 vols, Berna/ Frank-furt/M./ Las Vegas, 1978.

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guerra contra Afonso e os seus prosélitos, que só graças à protecção de Deus conseguiria vencer.73 O tema aqui abordado, a missionação, muito do gosto dos jesuítas, poderia ainda ser apresentado segundo uma outra perspectiva. Tematiza-se publicamente as dificuldades do dever apostolado em muitos reinos ultramarinos, onde a população resistia à administração estrangeira e à introdução de uma nova religião. Este é, por exemplo, o argumento da peça Congias Tragoedia. Das ist: Kläglicher Undergang/ Deß in dem Christenthumb kaum auffgehenden Königreichs Congo, representada em Landshut, no ano de 1694.74 Encontraremos ainda, entre os temas das representações teatrais jesuítas, vítimas cristãs, como seja o Infante D. Fernando, filho de D. Duarte que, preso pelos mouros aquando da conquista de Tânger, se tornaria um mártir da igreja católica.75 Também as grandes acções e prédicas de Ignácio Loyola ou de Francisco Xavier, o Apóstolo das Índias,76 seriam levadas aos palcos jesuítas. A história, em particular a antiga e sagrada, constitui um dos temas favoritos da literatura do século XVII. Vejamos por exemplo, os Africanischer Trauerspiele de Daniel Caspar Lohenstein, romance em que se tematiza o período histórico de Cleópatra (1661) ou da rainha Sophoniba da Numídia (1669).77 Estas são obras sobre o "drama político da humanidade"78 em momentos de crise e de profundas alterações dinásticas. O enorme contributo de Roma para as origens europeias surgia

73. Publicado por Elida Maria Szarota, Das Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet. Eine Periochen -Edition. Texte und Kommentare, Munique, 1980, 1 vol., 2 parte, pp. 1531-1538; Duarte Lopes, por exemplo, relatou estes factos; veja-se cap. 2.3. 74. Publicado por Elida Maria Szarota, Das Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet, op. cit, 3 vol., 1 parte, pp. 349-358. 75. Baseados na obra de João Álvares, Chronica do Sancto e virtuoso Ifante dom Fernando, Lisboa, 1527 os Jesuítas escreveriam, por exemplo, Beatus Ferdinandus, Insbruck, 1720; B. Ferdinandus Regia pro Fide et Patria Victima, Landshut, 1720. Veja-se Elida Maria Szarota, Das Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet, op. cit. 2 vol., 1 parte, pp. 139-154. 76. Como seja, por exemplo, Gloria Sacerdotum S. Franciscus Xaverius Soc. Iesu Indiarum Apostolus, Straubing, 1664; Comoedie unnd Triumph/ von den Heyligen Ignatio de Loyola Stiffter deß Ordens der Societet Iesu; Francisco Xaverio bemelt Societet Priester der Indianer/ und Japonen Apostel, Ingolstadt, 1622. Veja-se Elida Maria Szarota, Das Jesuitendrama im deutschen Sprachgebiet, op. cit., Munique, 1980, 3 vol., 2 parte, pp. 1273-1282; pp. 1229-1272. 77. Daniel Casper von Lohenstein, Afrikanische Trauerspiele, Cleopatra, Sophonisbe, ed. Klaus Günther Just, Estutgarda, 1957. 78. Elida Maria Szarota, Geschichte, Politik und Gesellschaft im Drama des 17. Jahrhunderts, Berna/Munique, 1976, p. 142.

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como um digníssimo exemplar histórico capaz de ilustrar o comportamento político.79 O recurso à história do Império romano poderia ainda oferecer muitas hipóteses de tratamento, nomeadamente quando se cotejava a sua expansão territorial com os limites imperiais do mundo do século XVII. É o caso de Arminius de Lohenstein, um romance enciclopédico que conta a história de Hermann, o chefe dos germanos, numa perspectiva actual e mundial - isto na tradição da obra Totengespräch de Ulrich Hutten datada de 1529. De modo similar, Anton Ulrich (1633-1714) redige a sua história de Roma Octavia (1677-1707), em que senhorios orientais jogam de algum significado já em épocas romano-germânicas. O renascimento da Antiguidade Clássica viera, por assim dizer, recordar inúmeras figuras exemplares e ideais de heróis do passado europeu, enquanto a descoberta de outros mundos permitiria a criação de outras histórias heróicas. No momento presente o mundo em reconhecimento oferecia-se, na sua manifesta diversidade, como preciosa fonte de estonteantes e extraordinárias histórias. A juntar-se à fascinação do mundo romano ou egípcio viria a sagaz curiosidade pelo Oriente. Neste contexto, poder-se-á referenciar o romance de Heinrich Anshelm von Zigler und Kliphausen Die Asiatische Banise oder Blutiges doch mutiges Pegu,80 editado pela primeira vez em 1689.81 Este texto que, entre 1689 e 1766, viria a lume dez vezes, intenta, como informa o seu autor no prólogo, descrever os "verdadeiros acontecimentos ocorridos, nos finais do século XV, durante as cruéis alterações no reino de Pegu e nos seus arredores".82 Zigler und Kliphausen refere que o esboço para o enredo, para o cenário, bem como para as personagens do seu romance, são o resultado de um aturado e esmerado trabalho de análise documental. Com obras como as de Erasmus Francisci, J. Saar, A. Rogerius e Alexandre Ross ser-lhe-ia possível conhecer os maravilhosos e

79. Sobre Cleópatra e Sophonisbe como figuras políticas, veja-se Elida Maria Szarota, Geschichte, Politik ud Gesellschaft im Drama des 17. Jahrhunderts, Berna, Munique, 1976. 80. Leipzig, 1689, ed. Felix Bobertag, Berlim/ Estutgarda, s. D. (1883). 81. Sobre esta obra, veja-se Wolfgang Pfeiffer-Belli, Die asiatische Banise. Studien zur Geschichte des höfisch-historischen Romans in Deutschland, Berlim, 1949, ed. Liechtenstein, 1969. 82. "[...] wahrhafftige[n] begebenheiten [...] "welche sich zu Ende des funfzehen=hunderten Seculi bey der grausamen Veränderung des Königreichs Pegu und dessen angretzndende Reichen zugetragen haben". Zigler, op. cit, p. 8

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bárbaros usos e costumes dos asiáticos no que respeita, por exemplo, aos seus casamentos, enterros ou coroações.83 Um relato dos acontecimentos históricos aqui referenciados sobre o reino do Pegu e seus circunvizinhos seria conhecido da pena de Fernão Mendes Pinto84 que, pela primeira vez, os tornaria conhecidos ao velho mundo. Na verdade, trata-se da história do reino de Pegu, que em meados do século XVI, estava dividido em vários outros estados. Também para esta obra literária, as relações de viagens foram ímpares instrumentos de trabalho, fornecendo valiosas e precisas informações para a sua trama. Este texto nasce indubitavelmente de um estreito interesse pela história actual85 e ainda pelo mundo oriental.86 Com efeito, a exposição sobre realidades orientais presta-se à discussão de postulados e doutrinas históricas - como a tolerância, as revoltas populares - ou de categorias intemporais como fortuna, virtude, fidelidade ou malvadez. A Asiatische Banise, um romance que prende a atenção pelo tema exótico e actual, constituie um perfeito gabinete de curiosidades sobre o Oriente, facto este que explica, de certo modo, o redondante êxito editorial. Uma tal fascinação não se testemunha, pelo contrário, nos romances dedicados ao continente africano - com excepção de o Afrikanischer Tarnolast e de alguns dramas de autores jesuítas. A África não é tema da literatura devido ao actual flair exótico, mas sim pelo seu significado no passado, nomeadamente, pelo prestimoso contributo nos inícios da cultura católica. Para os literatos do século XVII, o continente africano repre-senta, acima de tudo, as origens da humanidade. Na literatura do século XVII desaguam, pois, uma série de categorias explicativas sobre a cultura clássica e logo sobre a cultura europeia. Do

83. "Wobey zugleich ein wohlgesinnter Leser die wundersamen gewohnheiten und gebräuche der Barbarischen Asiater, bey heyrathen, begräbnissen und krönungen, welche ich, nebst der historischen warheit, mit fleiß aus denen gelehrten schriften des nie genug gepriesenen Francisci, Saares, Schultzes und Balby Reisebeschreibungen, Rogeri Heydenthum, Rosses Religionen und andern curieusen schrifften colligiert, verhoffentlich nicht sonder anmuth bemercken wird." Zigler, op. cit, p. 8. 84. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Lisboa, 1614; Amsterdão, 1671. 85. Um exemplo do estreito relacionamento entre a história e a actualidade é o tratamento literário da vida e destino da rainha da Georgia assassinada em 1624 pelo Xá da Pérsia. Andreas Gryphius (1616-64) levantar-lhe-ia um monumento, com o seu drama Catarina von Georgien estreado em Colónia no ano de 1651 - e publicado em 1647, 1657 e 1663. 86. Ver Franz Babinger, Orient und deutsche Literatur, in: Deutsche Philologie im Aufriss, 3 vol., pp. 565-89 e ainda Horst Hammitzsch, Ostasien und die deutsche Litertur. In: Deutsche Philologie im Aufriss, 3 vol., pp. 599-612.

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confronto com o percurso histórico e civilizacional nascem indubitavel-mente novos mitos e, por conseguinte, novos heróis. Heróis, cuja pátria é o mundo. Aqui importa aludir a Johann Jakob Christoph von Grimmelshausen e ao seu Der abenteurlich Simplicissimus Teutsch87 em especial, a Continuatio que publicada, pela primeira vez, em 1669, seria entendida como um acrescento ao primeiro livro.88 Acompanhar Simplicissimus no seu trajecto significa percorrer o mundo inteiro. Significa também redescobrir todos os topoi e temas que os homens do século XVII associaram à "África Nova". Vejamos Simplicissimus de Grimmelshausen um pouco mais de perto, esta fabulosa personagem literária onde se reflectem os topoi e os desejos de aventuras coevos. O autor Grimmelshausen aflora a temática do encontro com o estranho continente africano nas suas funções e características para formular uma crítica à teoria da civilização que, mais tarde, no século XVIII, dominará os debates intelectuais europeus. A sua verdadeira viagem pelo mundo será descrita no final dos cinco primeiros livros num pequeno e conciso episódio. Vindo de Moscovo, Simplicissimus, prisioneiro vezes sem conto, acaba por chegar à Coreia, onde será entregue ao rei local. Tendo-lhe este dado benemeritamente a liberdade, Simplicissimus atravessa o Japão até Macau, onde será entregue a portugueses que pouca importância lhe dão. De novo raptado, ele irá, desta vez, habitar durante um ano entre povos estranhos numa ilha oriental.89 Por fim, e apesar de incríveis circunstâncias, ele chega à sua terra natal. Grimelshausen retoma esta última viagem como tema na Continuatio e faz dela uma verdadeira história, em que o herói abandona a sua propriedade em terras alemãs e se despede do mundo "Adieu Welt". 87. Hans Jakob Christoffel von Grimmelshausen, Der abenteurliche Simplicissimus Teutsch, Nuremberga, 1669; edição utilizada: Berlim, 1984. 88. Continuatio des abenteurlichen Simplicissimi, Nuremberga, 1669. Incluída, como sexto livro, nas edições posteriores. Sobre J. C. Grimmelshausen e a sua obra, Cf. Günter Weydt (Ed.), Der Simplicissimusdichter und sein Werk, Darmstadt, 1969; do mesmo, Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen, Estutgarda, 1971; Curt Hohoff, Johann Jacob Christopf von Grimmelshausen in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten, Hamburgo, 1978; Simplicius Simplicissimus. Grimmelshausen und seine Zeit, Münster, 1976. 89. "[...] wohl ein ganzes Jahr auf dem Meer bei seltsamen fremden Völkern, so die ostindianische Insulen bewohnen", p. 448. Grimmelshausen utiliza diversas fontes, entre elas, Thomas Garzonus, Piazza Universale e o Wunderchronik de Conrad Lycosthenes sobre monstros antropóides traduzido por Johann Herold. Veja-se Ilse-Lore Konoptzki, Grimmelshausen Legendenvorlagen, Berlim, 1965, pp. 15-25 e Joseph B. Dallett, Grimmelshausen und die Neue Welt, in: Argenis, Internationale Zeitschrift für Mittlere Deut-sche Literatur 1 (1977), caderno 1-4, pp. 141-227.

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Mais uma vez Simplicissimus vai percorrer vários países até que decide organizar uma peregrinação a Jerusalém. Assim, parte da Itália para Alexandria, sobe o Nilo até ao Cairo, a fim de visitar, naturalmente, as pirâmides e daqui prossegue até ao Mar Vermelho. É então que Simplicissimus decide viajar até Santiago de Compostela, em vez da sua inicial ideia de peregrinação a Jerusalém, tendo em consideração o estado de guerra na Terra Santa. A caminho da Península Ibérica, já perto da ilha de Madagáscar, com o desejo de passar o Cabo da Boa Esperança, levanta-se uma tempestade e o navio naufraga; depois de grandes momentos de aflição, Simplicissimus avista uma ilha, a sua última salvação. À primeira vista parece tratar-se de uma terra fértil, com muitas árvores de fruto. Simplicissimus e o seu companheiro, curiosamente - e si-gnificativamente - um português, dão uma volta pela ilha, mas não encontram ninguém. Embora apreensivos, decidem que seria melhor assim do que terem encontrado canibais. Com os poucos instrumentos que possuem, constroem uma cabana "dado que a chuva indiana de África seria pouco saudável".90 Após algumas horas de descanso, descobrem peixes a saltar no ribeiro que logo decidem pescar. Quando os dois estão a pensar como é que os poderiam cozinhar, uma vez que não possuíam qualquer utensílio doméstico, surge, ao longe, no mar, uma figura feminina sobre uma arca. Eles recolhem-na e pensam que se trata de uma abissínia cristã. Procuram reanimá-la com cascas de limão até que, por fim, ela começa a falar português. O camarada de Simplicissimus informa-o que se trata de uma criada de uma portuguesa e que as tinha encontrado em Macau quando ambas pretendiam viajar para Amboíno. Na arca que a naufragante trouxe do mar encontravam-se vários instrumentos, armas, seda chinesa e até várias peças de porcelana, que um nobre pretendia enviar para Portugal. Ela oferece-se então para cozinhar e, aproveitando estarem sós procura convencer o português de que seria melhor desenven-celharem-se de Simplicissimus, pois só assim poderiam viver em paz. Mas na hora de comer, quando Simplicissius pega no Crucifixo para rezar, a abissínia desaparece surpreeendentemente com a arca, deixando um cheiro tão horrível, que o português desmaia - uma imagem metafórica das misteriosas e fantásticas experiências com o reino do lendário Preste João? O português pede perdão e ambos decidem que, no futuro, terão de ter mais cuidado com as manhas do Diabo. Uma vez que o português não se

90. "[...] weil der indianische Regen gegen Afrika sehr ungesund zu sein pflegt". Grimmelshausen, Simplicissimus, op. cit., p. 545.

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consolava, Simplicissimus aconselha-o - como era marceneiro - a fazer uma cruz em nome de Deus.91 A partir deste momento, os dois vivem como os primeiros homens na Idade do Ouro, uma vez que o céu abençoado fazia com que tudo crescesse na terra sem que fosse necessário trabalhar.92 Os meses passavam e embora tivessem algumas dificuldades, por exemplo, com o vestuário, pois não queriam viver como os animais, nus, mas sim como verdadeiros cristãos europeus,93 iam com alguns conhecimentos do português, que vivera vários anos na Índia superando alguns problemas. Mas como o seu companheiro era muito dado ao vinho de palma, Sim-plicissimus fica, em breve, sózinho na ilha. Resta-lhe, pois, observar o mundo como um grande livro e fazer desta pequena ilha o seu mundo. Com uma referência ao livro, a história contada por Simplicissimus acaba aqui, mas a obra continua com a Relation Joan Cornelissen von Harlem, eines holländischen Schiffkapitäns. O capitão de um navio holandês - mero acaso? - relata o encontro que teve com o eremita após um naufrágio; este o teria ajudado a tratar dos doentes e lhe teria oferecido um livro de memórias escrito com a tinta de plantas exóticas. Grimmelshausen apresenta com a Continuatio de Simplicissimus um tema que se vai tornar muito comum na literatura europeia: uma ilha fantástica e uma natureza maravilhosa que salva os heróis das suas turbulentas aventuras, oferecendo, aos que deliberadamente querem deixar o mundo, uma existência idílica longe dos tormentos da civilização. Simplicissimus um severo crítico da cultura e um dos primeiros heróis da Robinsonada94 -

91. "Gott dem Allmächtigen zu Ehren undem Feind des menschlichen Geschlechts zu Verdruß hat Simon Meron von Lissabon aus Portugal mit Rat und Hilfe seines getreuen Freunds Simplici Simplicissimi, eines Hochteutschen, dies Zeichen des Leidens unsers Erlösers aus chrislicher Wohlmeinung verfertiget und hierher aufgerichtet", "Aqui colocada e feita em honra de Deus o Omnipotente por Simon Meron de Lisboa em Portugal com o conselho e a ajuda do seu fiel amigo Simplicius Simplicissimus, um alemão, como sinal cristão bem intencionado do sofrimento do nosso Salvador e do desgosto e da inimizade face ao ser humano. Grimmelshausen, Simplicissimus, op. cit., p. 552. 92. "[...] die erste Menschen in der güldenen Zeit, da der gütige Himmel denselbigen ohne Arbeit alles Guts aus der Erde hervorwachsen lassen". Grimmelshausen, Simplicissimus, op. cit., p. 555. 93. Idem. 94. J. H. Scholte apresenta Simplicissimus como a Robinsonada de 1669, demonstrando que Grimmmelshausen teria utilizado uma das obras publicadas pela família Bry, na Orientalischen Indien, como fonte para a sua Relatio. Veja-se J. H. Scholte, Die deutsche Robinsonade aus dem Jahre 1669, in: Der Simplicissimus und sein Dichter, Tübingen, 1950, pp. 51-79.

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género literário, muito corrente, a partir do século XVIII, na literatura europeia, que conta as aventuras de um herói isolado num universo fechado, muitas vezes, em rejeição da cultura ocidental. Assim, quando o capitão o convida a regressar à pátria, Simplicissimus responde-lhe: "Meus Deus! o que é que me quer assinalar? Aqui há a paz. Lá há guerra; aqui nada sei de altivez, de avareza, de ira, inveja, fervor, falsidade, fraude, de todas as preocupações [...].95 E continua: "Quando ainda vivia na Europa tudo estava (ah, que lástima, que o tenha de testemunhar entre cristãos) repleto de guerra, incêndio, crime, roubo, saque, violações a mulheres e meninas [...]. E o que é pior ainda é saber que não há esperança de melhor" e depois de tecer uma crítica aos cristãos que pouco praticantes se consideram devotos, mesmo com os poucos actos piedosos que praticam, levanta a questão se deveria voltar e a sua resposta é "Não [...] Deus me livre".96 Simplicissimus prefere ficar no seu pequeno mundo insular, algures em África. Assumido bom selvagem, ele aguarda que os europeus o redescubram como um espelho ideal.

95. "Mein Gott! was wollt Ihr mich zeichen? Hier ist Fried? dort ist Krieg; hier weiß ich nichts von Hoffart, vom Geiz, vom Zorn, vom Neid, vom Eifer, von Falschheit, von Betrug, von allerhand Sorgen beides [...]." 96. "Als ich noch in Europa lebte, war alles (ach Jammer, daß ich solches von Christen zeugen soll!) mit Krieg, Brand, Mord, Raub, Plünderung, Frauen-und Jungfrauenschänden etc. erfüllt [...]. Und was das allerärgste, ist dieses, daß keine Besserung zu hoffen, indem je-der vermeinet, wann er nur zu acht Tagen, wann's wohl gerät, dem Gottesdienst beiwohne und sich etwan das Jahr einmal vermeintlich mit Gott versöhne, er habe es als ein frommer Christ nit allein alles wohl ausgerichtet, sondern Gott seie ihm noch darzu um solche laue Andacht viel schuldig. Sollte ich nun wieder zu solchem Volk verlangen? Müßte ich nicht besorgen, wann ich diese Insul, in welche mich der liebe Gott ganz wunderbarlicherweis versetzt, wiederum quittierte, es würde mir auf dem Meer wie dem Jonae ergehen? 'Nein, sagt er' [...] wolle mich Gott behüten!'. Grimmelshausen, Simplicissimus, op. cit., p. 576.

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Conclusão No presente estudo propusemo-nos traçar o processo referente à recolha, proliferação e tratamento das informações sobre África na sua vertente de mundo novo. O delinear deste trajecto, em concreto nos meios culturais alemães, testemunha, o que se convencionou designar de "Auto-descoberta da Europa". Quais as formas e as características que viriam a dar origem a este específico fenómeno cultural, bem como os longos e intrincados caminhos (e desvios) que o trariam até às esferas do ser e pensar europeus, foram algumas das questões que procurámos desbravar. Os navegadores portugueses, com as suas viagens, ao longo da então desconhecida orla costeira africana, foram os primeiros a testemunhar e a trilhar um mundo estranho e desconhecido, isto é, novo. As suas relações de viagens, crónicas e compêndios, os primeiros textos a trazer a público maravilhosas e insólitas notícias sobre regiões completamente ignoradas e povos nunca vistos. Não obstante existissem desde a Antiguidade Clássica concepções claras e defenidas sobre o continente africano, o certo é que, com as viagens marítimas, estes não seriam simplesmente complementarizados, mas, pelo contrário, postos em causa. Quanto mais os portugueses navegavam e avançavam ao longo da costa africana em direcção a sul, quanto mais se aferia o traçado de um continente perfeitamente desconhecido, cujos contornos deixavam antever um formato bem diferente do que se conhecia. Daí a crescente curiosidade em conhecer este novo mundo tal como ele se apresentava nas recentes viagens marítimas. Na Alemanha são também estas mesmas notícias vindas de além-mar que inauguram o diálogo com a novidade. Entre as cidades alemãs e os centros de informações na Península Ibérica estabelecem-se numerosos contactos: por um lado, vemos mercadores a criar várias redes de comunicação, por outro livreiros e eruditos profusamente empenhados na proliferação de informações. Os diversos interesses e motivos por detrás da sagaz sede de conhecer a novidade levam-nos a criar um amplo leque de iniciativas no intento de tornar este manancial documental conhecido em terras alemãs. Entre estas iniciativas poder-se-á salientar uma intensiva actividade tradutora. Depois de verterem pequenos textos, no dealbar do século XVI, os homens de letras germânicos lançam-se em empresas de maior envergadura, como seja a colecção de vários relatos sobre África, o Oriente e a América: a famosa antologia da novidade. Organizada no intuito de dar a conhecer aos seus leitores um mundo que ficara até então

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oculto, esta obra espelha a fascinação frente à variedade e qualidade da natureza revelada neste novo mundo. A riqueza informativa é de tal forma inovadora ou diferente dos padrões conhecidos que adquire um estatuto extraordinário, aliás, característico de uma realidade estranha e estonteante. A existência de numerosas novas ilhas, afinal, povoadas seria um dos dados de maior surpresa e admiração, porque representa a apoteose de uma sequência de êxitos sobre o desconhecido e o impossível. Este primeiro debuxo compilatório sobre a novidade tornar-se-ia, todavia, com o desfiar dos anos insuficiente para saciar a contínua curiosidade da Europa que, ansiosa, procurava material mais específico. Informações mais detalhadas e precisas, quer alusivas a determinados temas quer a determinadas regiões, seriam aguardadas com todo o interesse. Se até meados do século XVI fora de crassa utilidade uma visão geral sobre os acontecimentos das primeiras viagens de descobrimento, a partir daí vinha cada vez mais à tona a necessidade de conhecer mais e mais factos, mais e mais casos particulares da empresa descobridora. A consequente criação, com os descobrimentos, de um novo horizonte geográfico iria naturalmente ter profusas repercussões no debate cultural coevo. Ao permitir estes contactos além-mar, presenteando uma outra luz, a arte de navegar seria eleita a ciência da Idade Moderna. Com efeito, permitindo extravasar os confins do mundo conhecido num diálogo com um outro mundo, a navegação permitira uma diminuição das sombras do conheci-mento. Estas circunstâncias são assim um dos principais motivos para a tradução e a edição das descrições de viagens que, fundamentais reservatórios de informações, seriam capazes de tecer uma imagem precisa e clara das iniciativas marítimas. Assim, dá-se início a uma nova fase da actividade impressora que traria a lume um grande número de relatos em língua alemã. O espectacular significado atribuído a estas viagens vem claramente expresso nos prólogos dos tradutores ou editores. Surpresos declaram entusiasticamente que o mundo atingira uma dimensão geográfica e cultural anteriormente completamente impensável. Aos nautas e pilotos, verdadeiros heróis do presente, ficaria-se-ia a dever este inédito e estrondoso acontecimento pelo que lhes exprimem o seu sincero e reconhecido respeito. Indo além dos Cabos Nãos, estes homens teriam não só contribuido para o aumento geográfico do globo como ainda tinham reformulado a noção de humanidade: ao dar a conhecer a assaz variedade cultural que se poderia aferir entre os diferentes povos recém-descobertos.

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CONCLUSÃO 287

A tomada de contacto com as inéditas informações só seria, na maioria dos casos, possível graças aos escritos de alguns dos participantes destas andanças pelo mundo. A estes relatos reservar-se-ia um lugar relevante e privilegiado entre as obras coetâneas, pois nas suas páginas, tal como nas autênticas histórias, guardar-se-ia um indelével e verdadeiro documento. A leitura destas histórias permitia o conhecimento das realidades ultramarinas e, mais, dava ensejo, com a sua colorida e fascinante apresentação, a uma correlação íntima entre a novidade e realidade já conhecida. As viagens para África esboçavam muitas e variadas facetas de um continente. Enquanto a zona norte, em especial o reino do Egipto, em apego ao retrato delineado pelas peregrinatio, permaneceria como a região de maior valor histórico-cultural, a extensão para sul - principalmente a partir da linha equatorial-, pelo contrário, confrontava os nautas com soberbas e estonteantes novidades. O ignoto hemisfério sul seria então pouco a pouco reconhecido e o progressivo baptismo das regiões, das montanhas, dos rios e dos povos faria com que a zona austral se tornasse paulatinamente mais familiar. Mediante observações autênticas e designações precisas poder-se-ia iniciar a desenhar, mais correcta e pormenorizadamente, os contornos e limites geográficos deste vasto e desconhecido mundo, a descrever os seus povos e a distingui-los entre si. Na generalidade e, conforme as intrínsecas possibilidades, as relações de viagens destacam características de cada um dos países visitados, formulando algumas linhas esclarecedoras assim como grandes tónicas de interesses: o norte de África com o seu grande passado e um presente islâmico; a Guiné, o limiar para um outro mundo; o Congo e as primeiras grandes acções missionárias a sul do Equador; o sul de África com os seus insólitos e estranhos povos; o Monomotapa simplesmente o reino do ouro e, por fim, a Etiópia e a anciana lenda do Preste João. A descoberta de um outro, diverso e multíplice mundo levaria o seu tempo até se integrar adequadamente no quadro de saber prevalecente. Aliás, a relativamente rápida integração deste novo mundo nas obras coetâneas nem sempre significaria que as informações já tinham encontrado o respectivo lugar na cosmovisão planetária. As novas realidades surgem, primeiramente, no apêndice de um livro, ou chegam a servir, muitas vezes, como testemunho de factos já inseridos no sistema coevo. Este processo interpretativo ou melhor, de prévio desvio ou desarticulação, exemplifica, sobremaneira, o elevado peso da surpresa de um novo mundo, principalmente, de um mundo que se reconhecera extra-Ptolomeu.

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288 CONCLUSÃO

Com efeito, o valor da experiência, embora reconhecido pelos humanistas, não os fazia temer os seus príncipios e sentir a necessidade de repensar criticamente o sistema de ordem do mundo em que se apoiavam. Os nautas de interesses mais práticos rapidamente souberam expressar, nas suas relações de viagens, uma crítica ao saber das autoridades. Na verdade, para os humanistas germânicos a ciência greco-romana legada por homens como Plínio, Ptolomeu, Pompónio Mela, entre outros consti-tuiria, sem qualquer dúvida, o fundamento indelével para a descrição e compreensão do mundo. Isto é: eles não rompem com a cultura livresca. Sem que se gere qualquer confrontação entre o saber herdado e os conhe-cimentos modernamente divulgados, a intelligentia alemã intenta criar a sua suma de saber. O conhecimento de raiz erudita conviveria lado a lado com os novos dados da experiência e da observação sem que estes últimos pusessem em causa a verdade por ele defendida. Não obstante se adicionassem novos elementos e factos, isso não implicaria uma rectificação dos príncipios vigentes. E mesmo formulando um novo horizonte do saber, com a introdução de novos factos, estes põem em causa as autoridades clássicas. Só a união dos dois níveis de conheci-mento, saber livresco e experiência, permitiria um autêntico e profundo conhecimento do mundo. A suma de saber era, pois, o verdadeiro fim da sua tarefa, acreditando que, de ambas as fontes, seria possível tirar uma lição pedagógica, quer como memória ou advertência, quer como uma orientação prática para a vida. O mérito e valor das relações de viagens não se esgota, todavia, apenas quando urge coligir informações. Assim quando chega o momento de reflectir ou classificar as informações e, isso quer dizer ter em conta a sua natureza no propósito de as colocar no seu adequado contexto, os autores alemães bebem de novo, com avidez, nos escritos dos nautas, inesgotáveis fontes do saber. Feita a representação e o reconhecimento das novas propagadas pelas descobertas além-mar, o processo de assimilação dos novos conhecimentos ainda não tinha chegado ao fim. Se inicialmente se poderia falar de um enriquecimento cultural, a progressiva introdução de novos elementos iria abalar continuamente os rumos culturais europeus. Ainda no século XVII autores e eruditos alemães e de outras nacionalidades deitariam mãos às informações ultramarinas que, ao debuxarem um outro esboço da terra e da humanidade, inquiriam a coeva visão do mundo. Na fase de tratamento e valorização dos dados vindos de outros mundos inaugurava-se, num esforço colectivo de reorganização, um inquérito

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CONCLUSÃO 289

regional sob a realidade histórica, teológica, antropológica, linguística e de muitas outras questões afins. A partir de 1670 já não se trata de reunir e compilar o novo manancial informativo. Mais do que isso, nesta fase, urge reorganizar, ou seja, agrupar e classificar o material segundo os grandes temas coetâneos e segundo os contextos referenciais. Os autores do século XVII intentam reformular conceitos, como História, Língua, Religião, com os quais a humanidade ganharia inevitavelmente formas e dimensões mais claras e precisas. Com efeito, chegara a altura de conferir de uma vez por todas aos povos e regiões anteriormente ignorados o seu lugar junto das realidades já conhecidas. Já mais libertos do património cultural erudito, os homens de letras seiscentistas têm a percepção de que as informações da empresa ultramarina aceleraram o progresso das ciências, ao formularem novas concepções sobre o mundo e a humanidade e, particularmente, ao contribuirem para o conhecimento e compreensão da realidade europeia. Eis que surgem interesses particulares na apreciação dos novos continentes e dos seus povos. Poder-se-ia referenciar inúmeros exemplos de obras que, nos finais do século XVII, desenvolvem novas metodologias às notícias sobre África: estudos sobre as línguas dos povos africanos, a sua história ou sobre o seu lugar e papel na marcha para a civilização. Concluída a integração no contexto histórico e civilizacional, o mundo novo deixara de ser simplesmente um outro mundo. Alcançada e instituída uma nova suma de saber, que superara o herdado das autoridades clássi-cas, criam-se as condições para um novo esboço científico. Só após o contacto com a variedade e a diversidade de usos e costumes, de línguas e leis e de sociedades no mundo é que se ousa formular uma história global da humanidade, ou se intenta debuxar um modelo civilizacional. Neste sentido, as histórias adquirem um lugar de destaque no debate cultural, pois, como espelho de experiências autênticas ou esquisso de ficções literárias, elas erguem a sua voz de útil verdade. Nos finais do século XVII trilham-se os primeiros passos de uma ciência empírica e classificatória aberta tanto à tradição do passado como às influências do presente. A chegada a outros portos culturais fizera estremecer a inabalável auto-confiança europeia, lançando-a em crises invencíveis. Na verdade, a eventual segurança de um rumo certo, a clara ideia de um só caminho civilizacional ruiria frente à consciência de um mundo ilimitado. As dúvidas e a crise de identidade reclamam então uma profunda e radical reflexão. A pluralidade e variedade de realidades humanas em todo o mundo impunha desenvolver novas categorias,

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290 CONCLUSÃO

reformular critérios de ordem e refazer conceitos. O que até aqui nunca se tinha posto em dúvida, necessitava de uma justificação: a própria cultura tida como a verdadeira maneira de viver. A civilização ocidental e cristã eleita como elo de ligação de todas comunidades humanas seria confrontada com a multiplicidade cultural. E, curiosamente, entre as maneiras de estar e ser longínquas encontrar-se-iam muitas ideias e propostas capazes de competir e até de constituir uma alternativa sedutora na conduta da vida humana. Na consciência cultural europeia surgem som-bras, dúvidas e interrogações. Mas, nesta encruzilhada de ideias, tomam-se também decisões e assumem-se novas posturas. Os letrados do século XVII, ao problematizarem a identidade cultural europeia, deixavam o irremediável processo em aberto para os vindouros. As realidades humanas não-europeias foram, no entanto, o espelho dos europeus. Revendo-se no retrato dos Outros, os povos da Europa, em veemente autocrítica, reafirmam a sua experiência histórica, continuando a ser, por enquanto, aos olhos dos seus doutrinadores e eruditos: a proeminente cultura e o velho mundo.

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