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LOGAREZZI, A. Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem. In: CINQUETTI,
H.C.S. & LOGAREZZI, A. (orgs.). Consumo e resíduo: fundamentos para o trabalho
educativo. São Carlos: EdUFSCar, 2006. pp. 119-145.
Capítulo divulgado no site do ConsumoSol:
http://geocities.yahoo.com.br/consumosol
com a concessão da EdUFSCar:
http://www.editora.ufscar.br
Ao fi nal, estão apensados capa, sumário, apresentação e autores do referido livro.
CAPÍTULO 5
Educação ambiental em resíduo:
o foco da abordagem
Amadeu Logarezzi
A História é um anjo que está sendo soprado de volta para o futuro. A História é
uma pilha de destroços. E o anjo quer voltar [ao presente] e consertar as coisas que
têm sido danifi cadas.
Mas há uma tempestade soprando desde o Paraíso. E a tempestade continua a so-
prar o anjo de volta para o futuro. E essa tempestade, essa tempestade, chama-se
Progresso.
Laurie Anderson, 19891
Os problemas decorrentes da geração de resíduo pelas atividades humanas do mundo
atual são muitos, complexos e permanecem desafi ando as sociedades em geral, espe-
cialmente no contexto urbano. Eles não serão descritos aqui por serem bastante difun-
didos, além de, em certa medida, fazerem parte do dia-a-dia da(o) cidadã/o2 comum, o
que também faz da questão dos resíduos sólidos domiciliares uma importante temática
educativa, em qualquer nível escolar e em qualquer outro âmbito da educação.
Como em tantas outras questões importantes, as soluções para esses problemas
tendem a ser buscadas com base na racionalidade de um mundo marcado por valores
1 Traduzido da canção Th e dream before (dedicada a Walter Benjamin), do álbum Strange Angels,de Laurie Anderson, pela WEA-BMG (Ariola, em 1989).2 Para evitar sexismo, a questão de gênero será denotada neste capítulo sempre que seu uso não difi cultar signifi cativamente a leitura da frase. Os parênteses, “...(...)”, indicam validade substitutiva, e a barra, “.../...”, validade aditiva.
120 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
técnico-científi cos e econômicos, os quais estruturam nossa vida diária e exigem de nós
muita atenção para que não passem a estruturar também nossos sonhos. A solução mais
difundida é conhecida como coleta comum e associa o descarte comum dos resíduos
sólidos domiciliares (convertidos, nesse ato, em lixo) à sua destinação para confi na-
mento em aterro ou segregação em lixão, a céu aberto. Essa solução também pode ser
denotada como rota do lixo, de acordo com a Figura 5.1 (o esquema da fi gura envolve
ainda resíduos de outras naturezas, os quais não serão analisados aqui). As principais
limitações desse tipo de procedimento são: o desperdício de matéria-prima, energia e
outros insumos incorporados aos resíduos e passíveis de reaproveitamento; os impactos
ambientais negativos das células de deposição (lixões) ou de acondicionamento (ater-
ros), poluindo o solo, as águas subterrâneas e o ar, além do alto custo estrutural e opera-
cional e da difi culdade de serem encontrados locais apropriados para essa destinação.
A alternativa da coleta seletiva associa o descarte seletivo dos resíduos recicláveis
secos (preservados, nesse ato, como resíduo) a seu encaminhamento para a reciclagem,
passando pela triagem e pelo acondicionamento, na rota dos resíduos descrita na Figura
5.1. Nesse caso, há reaproveitamento de insumos incorporados e diminuição dos im-
pactos ambientais negativos da coleta comum, na medida em que o resíduo da coleta
seletiva deixa de compor o lixo da coleta comum, diminuindo o volume que chega aos
aterros ou lixões e, assim, seus problemas, custos etc. Além disso, essa rota também
gera oportunidade de trabalho e renda para populações excluídas do mercado de
trabalho, o que é bastante signifi cativo, especialmente em um país com um quadro
social como o do Brasil, que, entre outras coisas, costuma ser campeão mundial em
desigualdade social. Incluem-se aqui as coletas seletivas formal e informal.
Uma análise mais detida, no entanto, revela que, assim como as contribuições so-
ciais da coleta seletiva, as quais, embora positivas, são irrisórias diante da demanda que
se apresenta, as contribuições ambientais dessa rota, por sua vez, mostram-se em geral
insufi cientes para os desafi os do momento. Na próxima seção será discutido como essas
limitações estão associadas à reduzida participação da(o) cidadã/o comum no encami-
nhamento das soluções e a uma inadequação de foco no tratamento da questão, uma
vez que o foco da abordagem recai tradicionalmente nos contextos em que os resíduos
já foram gerados (descarte, coleta, destinação) e não naqueles que antecedem sua gera-
ção (consumo: aquisição e uso), como indica a Figura 5.1.
A associação da mudança de foco aqui proposta com os princípios e conceitos
apresentados no Capítulo 4 implica repensar nosso olhar sobre as relações entre socie-
dade e natureza, em um exercício de trocar as “lentes” que nos permitem ver e inteligir o
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 121
mundo, substituindo as que tradicionalmente temos usado por “lentes” alternativas, de
modo a focar a realidade por uma perspectiva socioambiental, como descreve Carvalho
(2004, p. 37). Esse exercício vai exigir, entre outras demandas, uma análise mais detida
da complexa questão do consumo em nossa sociedade de massa, o que passará, então, a
ser feito na Seção 5.2, em que, após descrições da emergência e da natureza da sociedade
de consumo, serão apresentadas algumas alternativas ao modelo vigente, com vistas a
construir possibilidades de promoção da responsabilidade e da participação política
cidadãs.
5.1 A(o) cidadã/o e a geração de resíduo
Seja do ponto de vista da educação, em que, como mostra a Figura 5.1, a questão dos
resíduos é rica na geração de eixos temáticos associados com o cotidiano dos alunos,
seja do ponto de vista da gestão, as abordagens devem sempre considerar que no epi-
centro de toda essa complexa teia de relações está a(o) cidadã/o. O consumo de cada
produto ou serviço demanda uma cadeia produtiva à qual estão associados determina-
dos impactos social e ambiental. Nesse contexto, localizam-se os momentos em que
a(o) cidadã/o pode exercer os 3R: primeiro: a redução do consumo e do desperdício de
produtos e serviços e a redução da geração de resíduo no uso desses produtos e serviços;
segundo: a reutilização dos resíduos gerados; e, terceiro: o descarte seletivo dos resíduos
não reutilizados, encaminhando-os para a reciclagem.
O problema que se pretende destacar aqui vem do fato de que o exercício desses
R não tem ocorrido na ordem descrita, como preconiza a pedagogia dos 3R há mais
de década, mas justamente na ordem inversa, ou seja, as pessoas procuram exercer o
terceiro R – do descarte seletivo para a reciclagem – e, com isso, sentem-se autorizadas,
ou ao menos aliviadas, para um consumo que não refl ete a responsabilidade social e
ambiental que cada um deve ter como cidadã/o de sua região, de seu país e do mundo.
Nesse contexto, muitas empresas têm estimulado o descarte seletivo para a reciclagem,
difundindo essa atitude como uma solução ambientalmente correta, enquanto os níveis
de consumo de produtos e serviços seguem atendendo, sob a infl uência decisiva da
publicidade, as expectativas dos produtores em geral, ou seja, seguem crescendo para
níveis cada vez mais elevados – a taxas superiores à do crescimento populacional –,
independentemente dos impactos sociais e ambientais daí decorrentes. Entre outros
aspectos, essa estratégia omite o fato de que mesmo os produtos ou as embalagens in-
dustrializadas a partir de material reciclado pós-uso implicam processos em geral com
122 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
algum impacto ambiental negativo, demandando insumos de disponibilidade crítica e
emitindo poluentes, sem falar nos impactos do próprio processo de reciclagem, que, an-
teriormente, transforma os resíduos recicláveis em material reciclado. Tais aspectos têm
fi cado à sombra da supervalorização do fato de que há economias de matéria-prima,
energia, água, terra etc., além da criação de postos de trabalho.
rota dos resíduos
cidadã/oproduto
em uso
prod
uto
produto
materialrecicladoresíduo
reciclável
resí
duo
reci
cláv
el
resíduo
materia
lvir
gem
resíduoclasse I
resíduo
matéria-primabruta
energia água
NATUREZA
tratamento primário
poluentesgasosos
metanochorume
interações impactantes
incentivosfiscais
pré-tratamentos
empregos
trabalhoe renda
catadores
aterroe lixões
FOCOTRADICIONAL
FOCOSOCIOAMBIENTAL
3o Rseparação
2o Rreutilização
1o Rredução
lixo
lixo
coletacomum
descartecomum
cultura
publicidade
resíduo daindústria
resíduo docomércio
aterrosindustriais
rota
dolix
o
resíduoretornávelindustrialização
comercialização
consumo
reciclagem
triagem eacondicionamento
coletaseletiva
geração
resídu
o
descarteseletivo
resíduo
reciclável
seco
Figura 5.1 Na cadeia dos resíduos sólidos domiciliares, apresentam-se: a rota dos resíduos e a do lixo,
problemas e soluções, agentes e insumos, intercorrências diretas e indiretas e outras relações, com
destaque para o foco da abordagem tradicional e um foco socioambiental. Não foram representadas as
emissões de “resíduo da indústria” da etapa aqui denominada “reciclagem”.
O mais problemático é que, apesar de tudo, assim como as empresas garantem
sua imagem positiva, as pessoas também se sentem fazendo sua parte ao exercer o des-
carte seletivo, e a equação continua sem solução real. Esse problema pode ser ilustrado
considerando-se os dados apresentados na Tabela 5.1, sobre resíduos de garrafas de
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 123
poli(tereftalato de etileno) (PET) e de latas de alumínio. A evolução da reciclagem é
divulgada como conquista em favor da causa ambiental, mas, analisando as evoluções
da produção a partir do principal recurso natural demandado (não renováveis, nesses
casos, petróleo e bauxita), percebem-se limitações importantes. Apesar de ter sido am-
pliado o percentual de reciclagem de garrafas de PET, a agressão ao planeta continua
em franca aceleração (a demanda pelo recurso mais do que triplicou), o que deveria
causar preocupação em vez de alívio!
O caso das latas de alumínio revela que, mesmo se aproximando do limite de
100%, num crescimento da taxa de reciclagem de quase 10 vezes, esta se revela uma
estratégia pouco efi caz, já que a redução da extração de bauxita não chegou sequer à
metade, considera-se, ainda, que a lata de alumínio é um caso único entre os resíduos
em geral, pois o índice de reciclagem de resíduos sólidos urbanos no Brasil, em 2004,
segundo a mesma fonte (Cempre), foi de apenas 10%. Para uma análise mais criteriosa,
veja Layrargues (2002).
É relevante dizer que todo o esforço da sociedade em ampliar as margens de reci-
clagem, via ampliação e aprimoramento da solução da coleta seletiva – muito embora,
infelizmente, boa parte desse resultado advenha do agravamento do quadro social do
país –, tem sido anulado e ultrapassado pela escalada do consumo. Por isso, o foco do
tratamento da questão, quer na gestão, quer na educação, não pode continuar centrado
naqueles contextos em que os resíduos já foram gerados (na Figura 5.1: foco tradi-
cional), uma vez que, a partir daí, as soluções têm alcance limitado, por estarem longe
das raízes do problema. Há de se reconhecer, de um lado, a extensão e a complexidade
do problema e, de outro, a importância de que aqueles que participam da geração dos
resíduos também participem dos processos de solução. Fala-se da(o) cidadã/o em geral,
uma vez que toda e qualquer geração de resíduo, bem como toda e qualquer exploração
de recursos naturais, é feita para atender direta ou indiretamente demandas de seu dia-
a-dia.
Nesse sentido, o foco deve se deslocar para os contextos que antecedem à geração
de resíduo (na Figura 5.1: foco socioambiental), ou seja, para os momentos de aquisição
e uso de produtos e serviços; numa palavra, para o consumo, em que se fi ncam as raízes
mais profundas e incômodas da questão dos resíduos. Nesse novo foco, adotando uma
visão socioambiental, a(o) cidadã/o é protagonista não somente dos problemas, mas
também das alternativas de solução, as quais passam a considerar a complexidade e a
abrangência da questão. No bojo de toda crise socioambiental moderna da segunda
metade do século XX, agravada ainda mais com as transformações que marcam a atual
124 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
trajetória em direção a uma sociedade pós-industrial, mais evidentes nas últimas déca-
das, a ação da publicidade como estimuladora da cultura do consumismo assume papel
cada vez mais relevante, aspecto que deve ser considerado com destaque na abordagem
educativa aqui proposta.
Tabela 5.1 Evoluções da produção anual no Brasil de garrafas de PET (de 1994 a 2004)
e de latas de alumínio (de 1989 a 2004).3
L a t a s d e a l u m í n i o
ANOProdução anual total
(milhões)
Reciclagem anual
(milhões)
Produção anual3 de latas novas
(milhões)
1989 780 78 (10%) 700
2003 9.3OO9.000 (95,7%) 4002004 9.4OO
G a r r a f a s d e P E T
ANOProdução anual total
(Kton)
Reciclagem anual
(Kton)
Produção anual3 para garrafas
novas4 (Kton)
1994 70 13 (19%) 57
2003 330173 (48%) 1872004 360
Fontes: Abipet (Associação brasileira das indústrias de PET) . Disponível em: <www.abipet.org.
br/2004/reciclagem.asp>.
Cempre (Compromisso Empresarial para a Reciclagem). Disponível em: <www.cempre.org.br/2005-
0708_inter.php>.
3 Esses são valores mínimos – correspondentes a uma situação (irreal) em que a produção anual total se manteve estável ao longo dos anos. Somente nesse regime estacionário do consumo e da produção é que o número de latas novas – feitas a partir da bauxita – seria igual ao número de latas desperdiçadas. Assim, como em 2003 a produção total foi de 9.300 milhões de latas de alumínio, a produção de latas novas em 2004 deve incluir os 400 milhões de latas desperdiçadas mais os 100 milhões de latas de acréscimo de con-sumo em relação a 2003, totalizando 500 milhões.4 No caso das garrafas, adiciona-se ainda o fato de que o PET reciclado das garrafas descartadas seletiva-mente não é usado para a fabricação de novas garrafas de PET – ao menos não das que embalam alimento diretamente –, porque são perdidas propriedades no reprocessamento do plástico e porque há proibição legal no Brasil de tal uso. Assim, a exploração de recursos naturais é atenuada pela fabricação de outros itens, principalmente de aplicação têxtil.
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 125
Não se trata de desprezar as etapas de descarte, coleta, encaminhamento para a
reciclagem etc. A rota dos resíduos é insufi ciente, mas é positiva – em contraposição
à rota do lixo –, e, por isso, esforços devem continuar sendo empreendidos na direção
da ampliação dos índices de reciclagem, que em geral ainda são muito baixos, parti-
cularmente no Brasil (cerca de 10% em média). É preciso lembrar que, em nosso país,
em geral, persiste um défi cit de saneamento básico (abastecimento de água, esgota-
mento sanitário, drenagem de águas pluviais e manejo de resíduo – limpeza urbana,
coleta comum e destinação) cuja importância espera, há várias décadas, a prioridade
de investimento de recursos públicos. Não obstante, educadoras(es) devem continuar
a contribuir para o descarte adequado de resíduo, com abordagens sobre separação
entre resíduo reciclável e resíduo inservível – lixo. Organizações governamentais e não-
governamentais devem apoiar cada vez mais os empreendimentos de coleta seletiva,
triagem/acondicionamento e comercialização de resíduos recicláveis. Legisladores e
governantes devem promover as atividades relacionadas à reciclagem de resíduos, com
incentivos fi scais e apoios diversos, além de discutir, criar, aprovar e implementar polí-
ticas que tragam avanços para a área de resíduos em geral, tarefa que tem encontrado
grandes difi culdades por causa do jogo de interesses em questão. Por sua vez, pesquisa-
dores devem prosseguir no desenvolvimento de tecnologias que favoreçam a atividade
de reciclagem em geral, principalmente inovando nas etapas de descarte, coleta, desti-
nação, triagem/acondicionamento, comercialização e reprocessamento, e de tecnologias
envolvendo projetos que incorporem cada vez mais materiais reciclados e recicláveis ao
produto ou que impliquem facilidade de sua desmontagem pós-uso e, articuladamente,
materiais que resultem em maiores possibilidades de uso comercial após reciclagem do
resíduo em questão.
Trata-se de ir além dessas ações e pretensões. As(os) educadoras(es) devem passar
a incluir a etapa do consumo como central para entender a questão e para revisar va-
lores que apontem caminhos individuais e coletivos mais mobilizadores e que de fato
representem soluções consistentes, isto é, muito mais que positivas, transformadoras.
ONGs e governos devem passar a incluir com ênfase as responsabilidades sociais5 dos
diferentes atores da cadeia, tanto no campo da produção e comercialização como no
5 A responsabilidade social aqui referida não pode ser ilustrada, por exemplo, por campanhas como a da rede de lanchonetes McDonald’s, que incitam as pessoas a comer um lanche em certo dia (e a usar camisetas, bonés etc. da marca), pois a renda estaria sendo doada a instituições de tratamento de câncer. Responsabilidade social seria essa empresa não induzir hábitos alimentares prejudiciais à saúde das pessoas, ajudando a construir um outro mundo, fundamentado na prevenção (mais saudável) e não na remediação (mais lucrativa).
126 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
do consumo. Os pesquisadores, por um lado, devem procurar reduzir a obsolescência
em geral, eliminar a obsolescência programada e atender às demandas de necessidades
sociais relevantes no contexto regional, em detrimento principalmente do atendimento
de demandas que seguem interesses economicistas das tendências de mercado, e, por
outro lado, especialmente os pesquisadores de educação ambiental, devem procurar se
pautar em referenciais teórico-metodológicos coerentes com uma perspectiva trans-
formadora das condições que atualmente estruturam a realidade social e ambiental,
buscando autonomização e emancipação dos sujeitos sociais capazes de fazer com que
se sintam com poder para um embate transformador, referenciado pelas necessidades
de revisão de valores e de participação política com centralidade na complexidade do
consumo contemporâneo. Um trabalho dessa natureza deve unifi car pesquisa e ação,
com base na participação de todos os atores envolvidos, com atribuições que dissolvam
as hierarquias convencionais, operando mudanças signifi cativas na própria aprendi-
zagem, que, nessa concepção, confunde-se com ensino, que se confunde com geração
de conhecimento, que se compromete com aspiração por um mundo melhor, que se
benefi cia da apropriação do processo como ferramenta transformadora do mundo em
que vivemos como sujeitos históricos.
Nessa proposição, fi ca claro que o foco socioambiental está muito mais próximo
da(o) cidadã/o comum, sobretudo ampliando seu papel e sua importância, do que na
abordagem convencional, que exclui o consumo como centralidade dos enfoques para a
identifi cação de problemas (e suas causas e alcances) e para a proposição de soluções (e
suas possibilidades e limitações). Esse movimento faz a abordagem ganhar abrangência
e profundidade temáticas, o que exige análises mais detidas, como a que será descrita
na seção seguinte.
5.2 Consumo: foco da abordagem
A cada década que se passa, desde a revolução industrial, mais marcantemente a partir
da Segunda Grande Guerra e especialmente neste fi nal/início de século, a noção de
progresso, fundada pela ótica racionalista e iluminista, está cada vez mais associada ao
ato de consumir. Consumir mais, para ter mais e ostentar mais, tem sido um valor cada
vez mais preponderante. A busca pelo aprimoramento da sociedade parece passar pela
elevação constante do nível de consumo de seus indivíduos. Entenda-se por nível de
consumo não apenas as quantidades dos itens consumidos, mas também sua diversida-
de, atualidade e descartabilidade, conceitos sintonizados com a noção de progresso, a
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 127
qual determina a sensação de inserção no processo civilizatório contemporâneo e, por
isso mesmo, tem pautado as ações das pessoas e instituições em geral. Na objetivação
dessa atividade, não se prioriza necessariamente a satisfação de necessidades básicas,
tendo os contextos individual e coletivo como referências, mas busca-se, muitas vezes,
satisfazer necessidades criadas artifi cialmente, tendo o desejo individual e a ostentação
no coletivo como referências.
Contudo, as noções de progresso, identidade, felicidade, liberdade e do próprio
consumo são bastante complexas e parecem estar profundamente emaranhadas na
contemporaneidade. Nesse contexto, em que o liberalismo é um marco cada vez mais
signifi cativo,6 diversos agentes e instituições surgem para impulsionar seus interesses
particulares. Acontece que nem sempre essa disputa é pautada pela ética, incorrendo
geralmente em impactos ambientais negativos, que vêm se acumulando alarmante-
mente, e em manipulação de comportamentos das(os) cidadãs(ãos) na direção de uma
sociedade de massa que parece destinada a consumir-se (a si mesma) (Quessada, 2003,
p. 17), fazendo do ato de consumir um fi m em si próprio e não um meio para buscar
um estado que se pretende, o qual, muitas vezes, é chamado felicidade. As ações sociais
de busca pela emancipação do ser humano deveriam incorporar aspectos individuais e
coletivos, “num compromisso com a vida em toda sua diversidade e, por meio de uma
democracia radical – que incluísse todas as pessoas –, refutar todas as formas de totali-
tarismo (o ambientalista entre eles) – incluindo o outro e o diferente”.7
6 Consideremos a medida adotada pela prefeitura de São Paulo que, acompanhando as correntes libera-lizantes, vai, a partir de 2006, aprofundar essa lógica, repassando parte do custo da educação pública para empresas, as quais investirão nos uniformes (os quais não serão doados, como se quer fazer crer à opinião pública) das crianças da rede pública de ensino daquela cidade, os quais passarão a incorporar gravações publicitárias dessas empresas. Repassar à iniciativa privada custos da educação pública já é em si uma con-cessão no mínimo perigosa. Pior que isso é envolver as crianças nesse processo, tornado-as agentes mirins de publicidade, fazendo o jogo do estímulo ao consumismo, pela impregnação simbólica de sua lógica. A prefeitura deveria se referenciar, por exemplo, na medida sancionada em setembro de 2004 pelo governo da Suécia, em que fi cou naquele país proibida qualquer veiculação de publicidade televisiva no horário infantil e, em qualquer horário, publicidade televisiva que faça alusão ao universo infantil (a não ser que o roteiro se dirija exclusivamente aos pais), além de publicidade televisiva com participação de atores mirins ou ainda de atores adultos em referência ao universo infantil (como Xuxa, Angélica etc.).Infelizmente, a inspiração da medida do governo paulistano parece ser outra. Parece passar longe da preo-cupação com a condição de vulnerabilidade das crianças, a qual motivou os suecos a tomar medida regu-ladora, geralmente vista, em nosso país, como medida de censura das liberdades, aqui confundidas com liberalidades.7 Princípios do órgão gestor da Política Nacional de educação ambiental, de acordo com Marcos Sorrentino, na palestra Políticas públicas em educação ambiental, proferida no I Encontro de educação am-biental de Botucatu: da teoria à prática cidadã, em setembro de 2005.
128 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
Nesse sentido, cada vez mais o estado reduz seu papel como equilibrador entre
o impulso de emancipação do ser humano e a necessidade da regulação das relações
sociais, abrindo terreno para que o mercado, com sua lógica da competição, continue
promovendo a escalada de exclusão social e degradação ambiental em favor de poucos.
Enquanto isso, por sua vez, a comunidade tenta se organizar para fazer frente a esse
processo, com vistas à construção de um outro mundo, um mundo em que se compati-
bilizem, de um lado – da regulação –, justiça, solidariedade e igualdade e, de outro – da
emancipação –, liberdade, autonomia e subjetividade, de acordo com conceitos (grifados
neste parágrafo) desenvolvidos por Santos (2005).
Portanto, numa visão socioambiental, o consumo como foco da abordagem, ante-
riormente justifi cado, é uma questão de muita complexidade, a qual se procura eviden-
ciar em seguida.
5.2a A sociedade de consumo
Procura-se identifi car aqui principalmente elementos do fenômeno do consumo que
possam ser úteis para compreender melhor os problemas decorrentes dessa prática co-
tidiana, como base para uma abordagem pedagógica consistente sobre esse amplo tema.
Nesse sentido, é importante observar que, como acontece com quaisquer outros temas
transversais,8 o consumo pode ser analisado em cruzamento com cada um deles: con-
sumo e classes sociais, consumo e gêneros, consumo e raças, consumo e etapas da vida,
consumo e grupos culturais etc.
Aqui, são destacadas as principais vertentes e os principais autores que Fátima
Portilho analisa em uma ampla revisão que faz ao longo de um capítulo de seu livro
(Portilho, 2005), com o intuito de descrever a sociedade atual em que vivemos. A
autora a denomina como sociedade de consumo, sem ser essencialista (ou seja, esse nome
não implica que o consumo seja a essência da sociedade atual, mas que nele está a ên-
fase/prioridade das ações e a centralidade dos discursos).
Muito embora o consumo seja uma atividade humana ontológica, verifi ca-se que
o consumo nos dias atuais pode ser descrito a partir da segunda metade do século
XVIII, quando, pouco antes da revolução francesa – um dos marcos do capitalismo real,
industrial –, houve uma emergência da propensão para o consumo. Desde então, segun-
do Portilho, essa propensão tem avançado territorial e conceitualmente, impulsionada
por fatores como moda moderna (de mudança acelerada), técnicas de produção, dis-
8 Sobre consumo como tema transversal no currículo escolar, consultar obra de Cainzos (2000).
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 129
tribuição e promoção de mercadorias (no contexto da revolução industrial), mudança
nos valores morais e éticos que estimulou a substituição do ascetismo – que valoriza
as virtudes e a pureza, em detrimento dos aspectos sensíveis/corpóreos do ser humano
– pelo hedonismo – que valoriza a busca individual pelo prazer imediato, como prin-
cípio e fi m da vida – (revolução cultural que começa na Inglaterra também no século
XVIII), valorização do indivíduo (auxiliada pelo movimento do romantismo) como
centro de tomada de decisão importante – o que moralmente legitima o individualismo
–, entre outros.
As décadas de 1760 e 1770 são descritas por alguns historiadores como o momen-
to em que emergiu o fenômeno chamado “orgia da aquisição”, inicialmente na aristo-
cracia, mas em seguida emulado pelas classes subalternas. O clima da época pode ser
ilustrado por frase de Rousseau de 1761 sobre o cotidiano francês naquele momento.9
Desde então, a evolução das características do consumo moderno e seu espalha-
mento pelo planeta coincidem com os duzentos e tantos anos de evolução e expansão
do capitalismo, desembocando nesse início de século, quando se verifi ca um acirra-
mento, tanto do capitalismo como do consumismo, o que explicita a importância da
articulação produção−consumo.
É relevante demarcar que os efeitos dessa sociedade de massa contemporânea
(capitalista-consumista) têm, no mínimo, contribuído decisivamente para a crise so-
cioambiental que atualmente nos desafi a, ajudados ainda pela característica “de massa”,
desenvolvida pela modelagem advinda da propaganda e, especialmente, da publicidade,
estratégias que também não são recentes, mas que “coincidentemente” também se acir-
ram nessa virada de século.
Nesse contexto, a autora descreve diferentes correntes teóricas sobre a sociedade
de consumo, as quais se agrupam em três perspectivas distintas, chamadas aqui estrutu-
ralista, individualista e culturalista.10
Entre as correntes que compõem a perspectiva estruturalista, destacam-se a teoria
marxista e a teoria crítica da escola de Frankfurt. Segundo Portilho, Marx apontou
a dupla alienação que acontece nos processos de produção e consumo capitalistas: o
trabalhador atua na produção de mercadorias que não são para si e o faz em troca de
salário (ou lucro, no caso dos proprietários dos meios de produção), e, por sua vez, o
consumidor não participa e não tem noção abrangente do processo de produção dos
9 Citada por Fabíola Zerbini, na epígrafe que abre o Capítulo 2.10 Consultar os verbetes sobre “sociedade de consumo estruturalista”, “sociedade de consumo individualis-ta” e “sociedade de consumo culturalista” no Capítulo 4.
130 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
bens que adquire para si e os compra com o dinheiro que obteve em atividade em geral
distinta e distante. Essa condição alienada associa uma espécie de “milagre” à mercado-
ria comercializada, em vez do reconhecimento do trabalho produtivo presente em cada
produto adquirido, o que acaba por promover uma fetichização das mercadorias.
Por sua vez, Adorno, Horkheimer e Marcuse identifi cam, segundo a autora, a
mercantilização da cultura e o desenvolvimento de estratégias de marketing e propa-
ganda, no surgimento da indústria cultural (cinema, TV e rádio, mas também a indús-
tria do lazer e os consumos de artes e esportes), como ambiente social que transforma
os cidadãos em meros consumidores profundamente passivos e insensatos. Aqui o con-
sumo, especialmente na sociedade de massa, é visto como uma forma de propaganda
e manutenção ideológica da sociedade capitalista. Na correlação produção−consumo
prepondera a produção, que submete os consumidores, em seu campo, a movimentos
orquestrados objetivamente pelos que detêm os meios de produção, valendo-se princi-
palmente das estratégias de marketing e da publicidade.
Na perspectiva individualista, os economistas neoclássicos postulam, segundo a
autora (sem citar nominalmente esses autores), que o consumidor escolhe soberana-
mente entre várias opções, para maximizar sua satisfação ou sua função de utilidade,
numa visão ortodoxa do consumo, a qual será rebatida, segundo Portilho, por diversos
autores, tais como Veblen, Marx, Baudrillard e Bourdieu. Nessa compreensão, a prin-
cipal fonte de poder nos sistemas econômicos capitalistas é o consumidor, que se vale
da racionalidade para agir e reagir conscientemente. Dessa forma, a esfera do consumo
prepondera sobre a da produção.
Demarcando a perspectiva culturalista, Baudrillard apresenta, segundo a autora, a
concepção de valor-signo, um valor simbólico que é transferido para dentro das merca-
dorias por aqueles aos quais Featherstone chama “intermediários culturais” (profi ssio-
nais de propaganda, de pesquisas motivacionais, promoções etc.), numa manipulação
desse código da mercadoria (valor-signo) de acordo com as condições do mercado,
fazendo do consumo um processo tanto cultural quanto econômico. Baudrillard, se-
gundo a autora, vê o consumidor como mero assimilador desse código, sem condições
de reação objetiva, num sistema caracteristicamente totalitário.
De acordo com Portilho, outros autores importantes dessa concepção mais re-
cente são os antropólogos Douglas e Isherwood, com sua teoria cultural, segundo a
qual os bens são manifestação concreta de práticas e rituais sociais de seus usuários
em qualquer cultura, com vistas a tornar concretos e perenes os signifi cados culturais,
ou seja, no exercício desse consumo conspícuo, escolhemos artefatos para demonstrar/
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 131
comunicar nossa escolha básica/cultural e o tipo de sociedade em que queremos viver
(valores éticos, escolhas políticas, visões sobre a natureza, profi ssão, casamento, fi lhos
ou não, bairro etc.). Nessa concepção, a cultura é o árbitro do consumo. Seguimos uma
infalível lealdade cultural que padroniza nossas escolhas e, também e principalmente,
nossas rejeições, o que signifi ca que consumir também pode ser visto como uma forma
de protesto, em que uma cultura acusa a outra o tempo todo, inspiradas contínua e
penetrantemente por uma hostilidade cultural.
Também nessa linha, Bourdieu propõe, segundo a autora, a tese da produção do
consumo. Com base em seus quatro tipos de capital – social, simbólico, cultural e eco-
nômico (os quais, apropriados combinadamente por indivíduos e grupos, defi nem-nos
enquanto classe social) – e em seus conceitos de habitus, campo e classe, parte da tensão
entre o campo da produção e o do consumo, para focar a variação dos hábitos de consu-
mo em diferentes classes sociais e suas frações. Ele ataca a concepção de gosto puro ou
inato, afi rmando que, enquanto o campo da produção produz bens, o do consumo pro-
duz gostos, em processos de aprendizagem associados com a classe social ou fração de
classe a que o indivíduo ou o grupo que o pertence. Além disso, o consumo representa
múltiplas oportunidades para os grupos exercitarem e demonstrarem o capital cultural
(habilidades, competências e conhecimentos culturais) que possuem, em relação a um
campo específi co. Em suma, “para Bourdieu o consumo é o lugar das lutas de classe
conduzidas através da cultura” (Portilho, 2005, p. 96), num palco dominado por duas
lógicas relativamente independentes: o desenvolvimento de produtos e serviços (no
campo da produção) e a determinação dos gostos e das preferências (no campo do
consumo).
Com base em Bourdieu, Featherstone destaca, segundo a autora, que “os indivídu-
os não são consumidores passivos, como sugerido pelos teóricos da escola de Frankfurt,
mas ativamente engajados nas práticas de consumo” e que “tais formas de ativismo
podem ser vistas como relacionadas a estratégias e habitus de classe e, nesse sentido,
os consumidores não são meramente parte de uma ‘massa indiferenciada’” (Portilho,
2005, p. 97).
De acordo com a autora, De Certeau vai avançar em relação às concepções de
Baudrillard, em que, nas forças dialéticas da produção e do consumo, a produção (o
capital) é inquestionavelmente dominante, enquanto o consumo (as pessoas) é subor-
dinado, propondo a metáfora da guerra ou das guerrilhas. Assim, “o previamente pa-
cífi co e obediente campo do consumo é visto como podendo ser liberado do domínio
132 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
totalizante da ideologia, tornando-se subversivo e criativo, empoderando a atividade
cultural” (Portilho, 2005, p. 100).
Em suas considerações fi nais, a autora concorda com as observações de Miller e
Edwards de que é muito difícil uma única teoria descrever satisfatoriamente um fenô-
meno tão complexo como o consumo, que apresenta múltiplas e controversas variações
e intercorrências, advindas de outros aspectos constitutivos da sociedade em que se
dão os processos de produção e consumo, como os temas transversais, por exemplo, as
etapas da vida (infância, juventude e idade adulta) e as diversidades de classe, cultural,
racial, de gênero etc.
Portilho identifi ca a ênfase de cada perspectiva como a principal distinção entre
elas: estruturalista: ênfase no desenvolvimento histórico e econômico e nas estruturas
sociais; individualista: ênfase nos consumidores em si mesmo; e culturalista: ênfase nas
práticas contemporâneas de estilo e estética.11
Quanto à diversidade de discursos sobre o consumidor, com base nas diferentes
visões, a autora refl ete que,
Se, de um lado, o consumidor é defi nido através de noções como vítima, exploração,
manipulação, falta de poder e de direitos, perda de privacidade etc., de outro, esse
mesmo consumidor é defi nido através de noções contrastantes como escolha, ativis-
mo, rebelião, decisão, poder, cidadania, direitos etc. (Portilho, 2005, p. 105).
Quanto à pluralidade de concepções de consumo, a autora questiona o papel e a
função do consumo, se exploração e manipulação ou se manifestação de poder e expres-
são de identidades. Apontando a complexidade das respostas, conclui que “o campo do
consumo, e da sociedade de consumo, é multifacetado, contraditório e ambíguo. Trata-
se de um fenômeno, ao mesmo tempo, econômico e cultural, que pode empoderar e
explorar os consumidores simultaneamente” (Portilho, 2005, p. 105).
Por fi m, considera que
a expansão da sociedade de consumo é interpretada, ou como um fortalecimento dos
mecanismos de desintegração social e política, ou como uma possibilidade agrega-
dora e emancipatória. Em outras palavras, a expansão da sociedade de consumo tem
sido vista, ou como sinal de dissolução, morte e declínio da política, ou ao contrário,
11 As expressões estruturalista, individualista e culturalista são denominações não empregadas pela autora no texto citado.
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 133
como emergência de novas formas de ação política. A atividade de consumo e o pró-
prio papel do consumidor podem oferecer importantes possibilidades de constituição
de sujeitos sociais ativos e de retorno do cidadão (Portilho, 2005, p. 105).
Nesse contexto, é importante notar, no entanto, que as limitações estruturais, os
poderes individuais e as apropriações culturais que marcam as possibilidades de ação ci-
dadã no campo de consumo incidem de modo muito diferente em diferentes situações,
para diferentes pessoas. Por isso, se há pessoas que percebem mais ganho por poder de
ação contra o sistema do que perda por exploração deste, certamente há muito mais
pessoas, na sociedade contemporânea, para as quais a exploração do sistema (em geral
difusa e intangível) é quase só o que lhes resta perceber, quando o conseguem. Ou seja, a
frase de Canclini (2005, p. 72) “alguns consumidores querem ser cidadãos” não se aplica
signifi cativamente, por exemplo, nas periferias urbanas da América Latina, onde talvez
seja mais apropriado dizer que muitas pessoas querem antes ser consumidoras!
Assim, focar o consumo exige muita atenção para não cair em armadilhas, por cau-
sa da complexidade da questão, que inclui muitos fatores controversos e possibilidades
ambíguas. Dada a hegemonia do modelo vigente de produção e consumo, característico
da nossa sociedade de consumo (que tem a idade, a expansividade e a profundidade do
capitalismo industrial), é preciso desenvolver um modelo que se contraponha a este,
que possa lhe ser uma referência alternativa, para não fi carmos apenas na retórica ou
para não fi carmos apenas contemplando a referida ambigüidade sem que, nesse con-
texto, tomemos posição – posição de educador/a, posição de cidadã/o − comprometida
com a construção de um mundo muito diferente deste que vem sendo construído he-
gemonicamente, que se refere a uma outra concepção de ser humano, de acordo com a
base teórica apresentada na Seção 4.1.
Em busca dessa construção, algumas alternativas à sociedade de consumo prepon-
derante têm sido desenvolvidas em diferentes contextos e momentos, no Brasil e no
mundo, o que passará a ser analisado em seguida.
5.2b A busca por modelos alternativos de produção e consumo
De acordo com Portilho (2005), a partir da década de 1960, iniciou-se um processo
que podemos chamar ambientalização da sociedade (na verdade, de setores seus), mar-
cado por dois deslocamentos do discurso internacional sobre as causas dos problemas
ambientais. O primeiro aconteceu em torno dos anos 1970, em que os discursos dei-
xaram de focar a explosão populacional para responsabilizar o impacto dos processos
134 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
produtivos da atividade industrial em grande escala. Mais tarde, após a verifi cação de
que aprimoramentos técnicos de atenuação do impacto ambiental da produção não se
constituíram como solução para a questão ambiental como um todo, no início dos anos
1990, a centralidade da discussão passou então a recair sobre o impacto da atividade
de consumo.
Esse discurso pode ser ilustrado pelo “Tratado sobre consumo e estilo de vida”, do
Fórum Global de 1992, ao reconhecer que:
Os mais sérios problemas globais de desenvolvimento e meio ambiente que o mundo
enfrenta decorrem de uma ordem econômica mundial caracterizada pela produção e
consumo sempre crescentes, o que esgota e contamina nossos recursos naturais, além
de criar e perpetuar desigualdades gritantes entre as nações, bem como dentro delas.
Não mais podemos tolerar tal situação, que nos levou além dos limites da capacidade
de sustento da Terra, e na qual vinte por cento das pessoas consomem oitenta por
cento dos recursos mundiais. Devemos atuar para equilibrar a sustentabilidade ecoló-
gica eqüitativamente, entre os países e dentro dos mesmos. Será necessário desenvolver
novos valores culturais e éticos, transformar estruturas econômicas e reorientar nossos estilos
de vida (Fórum Global, 1992, grifos colocados).
e ao defi nir seis princípios básicos para o desafi o proposto, sendo eles: revalorizar, rees-
truturar, redistribuir, reduzir, reutilizar e reciclar, dos quais destaca-se:
Revalorizar – Devemos novamente despertar para o fato de que a qualidade de vida
está baseada no desenvolvimento das relações humanas, criatividades, expressão artística
e cultural, espiritualidade, respeito ao mundo natural e celebração da vida, não depen-
dendo do crescente consumo de bens materiais supérfl uos (Fórum Global, 1992,
grifos colocados).
Por sua vez, a Agenda 21, documento da Conferência das Nações Unidas so-
bre Meio Ambiente e Desenvolvimento (evento ofi cial das Nações Unidas que ocor-
reu simultaneamente ao Fórum Global no Rio de Janeiro), propõe, em seu capítulo 4
– “Mudança dos padrões de consumo” –, o “desenvolvimento de políticas e estratégias
nacionais de estímulo a mudanças nos padrões insustentáveis de consumo” (Cnumad, 1992,
grifos colocados).
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 135
A partir daquele momento surgiu então a proposta do consumo verde, que, se-
gundo Portilho (2005), foi mais desenvolvida nos países centrais e se valia da lógica da
perspectiva individualista sobre a sociedade de consumo, segundo a qual o consumidor
tem soberania para agir no campo do consumo, impondo pressões sobre o campo da
produção e também reagindo às pressões de lá advindas. Entre as estratégias dessa pro-
posta estão a ampliação das informações ao consumidor (na crença de que a informação
disponível redundaria em preocupação ética e mudança de estilo de vida das pessoas ou
de seus padrões de consumo) e o aumento da especialização dos produtos (atendendo
aqueles indivíduos – por exemplo, com produtos orgânicos – que decidiram mudar seus
hábitos de consumo e que podem pagar por isso). Com o passar do tempo, a ação do
consumidor verde foi se revelando inócua e elitista, e as armadilhas dessa alternativa
para se alcançar a sustentabilidade, privilegiando ações individuais despolitizadas, tam-
bém fi caram evidentes. “As propostas que enfatizam uma simples mudança nos valores
e comportamentos individuais começaram a ser vistas com ceticismo, já que não repre-
sentavam uma estratégia de mudança adequada” (Portilho, 2005, p. 131).
Em decorrência do malogro da alternativa do consumo verde – em que o con-
sumo ambientalmente correto não era para todos –, diversas outras concepções vêm
sendo propostas e desenvolvidas por setores da sociedade preocupados com a questão.
Há diferentes nomes para se referir aos diferentes tipos de consumo alternativo que
vêm sendo construídos mais recentemente, todos guardando semelhanças importan-
tes. Destacam-se, entre eles, “consumo sustentável”, “consumo consciente” e “consumo
responsável”.12
A opção, aqui, por este último refl ete algumas ênfases associadas ao adjetivo “res-
ponsável”, principalmente em relação a aspectos educativos (conhecimento processual
e crítico da realidade e identifi cação de papéis individuais e coletivos na vida em socie-
dade) e políticos (comprometimento das(os) cidadãs(ãos) em participar da concepção e
da construção de ações individuais e coletivas em direção à transformação da realidade).
Os adjetivos “sustentável” e “consciente” são, por sua vez, absolutamente adequados e
necessários para uma saída alternativa ao problema em discussão. De um lado, susten-
tabilidade social e ambiental deve ser referência na defi nição de objetivos e caminhos
de qualquer proposta e, de outro, nada poderá ser realmente transformado sem a cons-
cientização das pessoas envolvidas nos problemas que as cercam, na necessidade de so-
luções, no papel de cada um e de tantos outros aspectos que condicionam a realidade.
12 Consultar os verbetes sobre esses termos no Capítulo 4.
136 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
No entanto, considera-se que a noção de “responsabilidade”, tida como uma nova
ética de cidadania, não só inclui ambos os outros conceitos (sustentabilidade e cons-
ciência), como acrescenta a necessidade de uma participação ativa da(o) cidadã/o no
âmbito individual e no coletivo, num claro compromisso social de transformação: “Não
posso querer construir mudanças sem mudar meu comportamento pessoal; no entanto,
essa mudança por si tampouco mudará o mundo, e minha responsabilidade de cidadã/o
deve buscar coerentemente dar conta desse desafi o. Antes de ser consumidor/a, perce-
bo-me cidadã/o e procuro desenvolver minhas atitudes nessa perspectiva”.
Além disso, com o tempo, os vocábulos vão adquirindo valores semânticos cada
vez mais associados ao uso que deles é feito. Nesse sentido, torna-se muito comum a
associação de consumo sustentável ao conceito de desenvolvimento sustentável, cuja
construção de mais de década tem deixado claro suas limitações como modelo de trans-
formação que aponte de fato para uma solução dos problemas socioambientais.
Uma das muitas considerações a que a atitude do consumo responsável se com-
promete é a geração responsável de resíduo, como parte do compromisso geral de re-
duzir, direta ou indiretamente, os impactos negativos, como descreve o ConsumoSol.13
Esses impactos estão presentes ao longo de toda a cadeia de atividades associada a cada
item de consumo, quer em suas etapas anteriores ao momento do consumo/aquisição
(obtenção e fornecimento de insumos, produção e distribuição de produtos e serviços,
incluindo a exposição constante à publicidade sobre eles), quer em suas etapas con-
comitantes ou posteriores ao ato de consumir/usar (demanda por utilidades – água,
energia, conexão etc. –, geração de resíduo, sua eventual reutilização, seu descarte e sua
destinação).
A perspectiva da vida em sociedades sustentáveis com ênfase na economia solidá-
ria (que aparece na mesma descrição do ConsumoSol) deve contemplar, ainda, como
prioridades, de um lado, a diversidade sociocultural presente no mundo e a valorização
da riqueza que dela decorre e, de outro, a busca urgente pelo atendimento das demandas
por justiça social e por sustentabilidade ambiental que marca a crise contemporânea.
Nesse contexto, a economia solidária surge como alternativa à economia capitalista, na
busca de um novo modelo de produção de serviços e produtos que contribuam de fato
e de forma ética para a melhoria de vida de cada um, da sociedade e do ambiente, como
aparece na descrição do Kairós.14 Nesse sentido, o consumo conspícuo – que se vale da
dimensão cultural incorporada nos produtos e serviços para a identifi cação de grupos
13 No verbete sobre “consumo responsável (2)”, no Capítulo 4.14 No verbete sobre “consumo responsável (1)”, no Capítulo 4.
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 137
socioculturais – torna ainda mais complexa a discussão em torno do que venha a ser
uma necessidade básica em determinado contexto.
Assim, um consumo responsável não deve procurar apenas o desenvolvimento de
novos comportamentos individuais e coletivos quanto ao ato de consumir, moldando
novos hábitos de acordo com as premissas apresentadas. Um consumo responsável deve
envolver também refl exões individuais e intersubjetivas sobre a realidade e a construção
participativa de processos que apontem para uma revisão profunda dos valores que
regem a vida em sociedade.
Nesse contexto, alguns valores devem ser despotencializados: a novidade pela no-
vidade, a obsolescência como modernidade, a ostentação como positividade, a com-
petição como princípio, a autonomia individual como conquista sufi ciente, o dinheiro
como poder, as coisas materiais como busca de identidade, a demarcação de grupos
sociais como reafi rmação de identidade; enfi m, o(a) consumidor/a como cidadã/o.
Conseqüentemente, outros valores devem ser potencializados: a novidade pela evolu-
ção necessária, a obsolescência como incapacidade, a minimização como positividade,
a cooperação como princípio, a colaboração em equipe como pretensão, o dinheiro
como moeda de troca, o imaterial como busca de identidade, a interação respeitosa e
valorizadora de grupos sociais como evolução de identidade; enfi m, o(a) consumidor/a
responsável como cidadã/o. Esse debate de valores emerge da busca de defi nição, em
cada contexto sociocultural e em cada momento, do que vem a ser uma necessidade
básica, que deva ser atendida por um determinado item de consumo, na promoção da
qualidade de vida e na busca por felicidade, segundo critérios do contexto e do mo-
mento em particular.
Um consumo responsável, em suma, não visa apenas à felicidade do(a) consumi-
dor/a, mas refl ete um engajamento de horizontes ampliados pela ética e pela solidarie-
dade. Cada cidadã/o, cada família ou cada grupo social é apenas parte constituinte da
sociedade. Por outro lado, é também parte constitutiva e, nessa prerrogativa, deve buscar
contribuir, responsável e participativamente, para a construção da vida em sociedades
sustentáveis, condição plural para a vida em sociedades felizes, cujas regionalidades e
temporalidades se harmonizem em torno do planeta (incluindo norte e sul, centro e
periferia) e em torno do presente (incluindo passado e futuro).
138 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
5.3 Responsabilidade e participação política
Como discutido anteriormente, a questão dos resíduos sólidos domiciliares permanece
sem solução adequada, o que indica a necessidade de que tanto gestores(as) quanto
educadores(as) revejam suas atuações nesse contexto. É preciso evoluir do tratamento
que tem sido tradicionalmente adotado (coleta seletiva) como alternativa de solução
em relação ao tratamento convencional (coleta comum). É preciso evoluir da noção do
descarte seletivo para a de geração responsável de resíduo. E essa noção inclui o R da
redução com a devida prioridade e requer que passemos a focar a etapa do consumo
como espaço central das causas dos problemas e das possibilidades de solução. No en-
tanto, quando se focaliza essa etapa, temos de reconhecer a complexidade da questão
e, ao analisarmos algumas características da sociedade de consumo, somos incitados a
considerar a tarefa que se apresenta no contexto das responsabilidades humanas, em
suas três dimensões: “assumir as conseqüências diretas e indiretas de nossos atos; unir-
se para sair da impotência; reconhecer que nossa responsabilidade é proporcional ao
saber e ao poder de cada um” (Palma, [s/d]). Essa noção de responsabilidade propõe
novamente a associação entre ética e dever, numa era – este fi nal/início de século – des-
crita por Lipovetsky (1994, apud Portilho, 2005, p. 118) como do “pós-dever” ou da
“pós-moralidade”.15
Geração responsável de resíduo é uma nova atitude/referência (para além do des-
carte seletivo de resíduos), mas que deve ser abordada como uma decorrência da noção
de consumo responsável, noção esta mais abrangente, que inclui consumos conspícuos
e inconspícuos de itens que gerem ou não resíduos em sua aquisição e em seu uso, ou
seja, a geração responsável de resíduo tem sua importância concreta em si, mas deve
servir de mote para a ampliação da atuação responsável da(o) cidadã/o, numa perspec-
tiva mais geral, que, de um lado, considere toda a cadeia de atividades da Figura 5.1,
especialmente o consumo, e, de outro, que inclua a participação política, estas condutas
que devem se pautar pelos mesmos princípios éticos que podem ser resumidas sob a
denominação ética da responsabilidade. Uma responsabilidade de cidadã/o envolve seus
âmbitos de indivíduo e de coletividade, num comprometimento com a atribuição de
cuidar da sociedade e do ambiente, de modo a contribuir de fato para a construção de
15 Segundo Lipovetsky, “a sociedade moderna tem renunciado aos deveres supremos do homem e do cidadão, enquanto estimula os desejos imediatos, o ego, a felicidade intimista e materialista. Neste sentido, a sociedade repudia a retórica do dever austero e integral e, paralelamente, coroa os direitos individuais à autonomia, ao desejo e à felicidade” (Portilho, 2005, p. 118)
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 139
um mundo em que a paz, a sustentabilidade socioambiental, a liberdade e a solidarie-
dade estejam mais presentes.
Nesse sentido, é especialmente signifi cativo, por exemplo, o contexto da geração
de resíduo e de sua destinação como lixo no Brasil, em que o drama social (de catadores
em lixões, aterros e ruas) e a degradação ambiental (dos conhecidos impactos no solo,
na água e no ar) devem ser compreendidos como implicações indiretas de nossos atos
em sociedade, o que nos torna responsáveis por aqueles problemas e, na medida de
nossa noção de cidadania, também pelas soluções que devem ser construídas em ações
individuais e coletivas, ou seja, segundo a concepção freireana (Freire, 2005), estar no
mundo e com o mundo implica tomada de consciência de nossa responsabilidade de
cidadã/o do mundo e decorrente necessidade de, na esteira da coerência, procurar nos
inserir cada vez mais criticamente no processo histórico.
Por isso, é relevante destacar os princípios para guiar o exercício das responsabili-
dades humanas, relatados no referido documento e transcritos no Quadro 5.1, de cuja
leitura emana a essência do que aqui se está propondo. Trata-se de manter todo esse es-
pírito abrangente desde as pequenas ações, ligadas mesmo ao descarte de resíduo, à sua
geração ou ao consumo de produtos e serviços e suas implicações, enquanto cidadã/o
comum. No papel de educador/a, valem as mesmas referências, na busca do exercício de
uma prática educativa cada vez mais crítica, emancipatória e transformadora, de acordo
com a concepção abordada na Seção 4.1. Uma prática refl exiva que compreenda sua
responsabilidade de se contrapor às tendências convencionais desse momento histórico,
como, por exemplo o desenvolvimento sustentável atualmente difundido, em que não é
a sustentabilidade socioambiental que referencia e limita o desenvolvimento econômi-
co, mas a necessidade de crescimento permanente do sistema econômico que continua
a condicionar e a pautar o mundo da vida (no sentido habermasiano), desprezando a
complexidade do sistema em que se inserem o ser humano e todos os outros seres vivos
e o ambiente físico.
Esse crescimento permanente está associado à contradição capital–trabalho, in-
trínseca ao capitalismo. Sua expansão pelo planeta e sua consolidação hegemônica fez
emergir mais recentemente a contradição capital–ambiente, aparentemente também
inarredável, uma vez que cresce aceleradamente a escala de produção a partir de uma
base de insumos fi nita. A pergunta parece ser: Como pode a sociedade continuar cons-
truindo esse caminho tão problemático? Qual o grau de percepção e o de refl exão sobre
esse desafi o? E quais as perspectivas que se apresentam no momento à humanidade?
140 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
Quadro 5.1 Princípios para guiar o exercício das responsabilidades humanas. Extraídos da
Carta das Responsabilidades Humanas (Palma, [s/d]).
Temos a responsabilidade de dar vida aos Direitos Humanos em nossos modos de pensar e em nossas ações.
Para responder aos desafi os atuais e futuros, é tão importante unir-se na ação quanto valorizar a diversidade cultural.
A dignidade de cada pessoa implica que ela contribua para a liberdade e para a dignidade dos outros.
Uma paz durável não pode se estabelecer sem uma justiça que respeite a dignidade e os direitos humanos.
Para assegurar o desenvolvimento do ser humano, deve-se responder às suas aspirações imateriais tanto quanto às suas necessidades materiais.
O exercício do poder só é legítimo quando serve ao bem comum e quando é controlado por aqueles sobre os quais esse poder é exercido.
O consumo dos recursos naturais para responder às necessidades humanas deve estar integrado em procedimentos mais amplos de proteção ativa e de gestão prudente do meio ambiente.
A busca da prosperidade não pode ser desvinculada de uma partilha justa das riquezas.
A liberdade da pesquisa científi ca implica aceitar a limitação de critérios éticos.
Os saberes e as práticas só fazem sentido quando compartilhados e usados em prol da solidarieda-de, da justiça e da cultura da paz.
Nas decisões sobre prioridades a curto prazo, é necessário tomar a precaução de avaliar as conse-qüências, os riscos e as incertezas a longo prazo.
Tomando como base a discussão da Seção 5.2a, as respostas a essas questões não
estão dadas. Certamente, um fenômeno que tem contribuído decisivamente nesse con-
texto é a ação da publicidade16 – particularmente aquela veiculada pela mídia tele-
visiva – sobre os desejos e os estilos de vida das pessoas, “ensinando gostos”, como
dizia Bourdieu, ou “orquestrando tendências”, como diziam Adorno e seus colegas de
Frankfurt, a partir dos laboratórios de “valor-signo”, como dizia Baudrillard. Uma dis-
cussão sobre esse aspecto e sobre o papel da escola como contraponto à cultura do
consumismo17 é extensa e não cabe ser abordada aqui, mas certamente a escola, por sua
vez, deve se valer, por exemplo, da conspicuidade do consumo presente no dia-a-dia
16 Para uma síntese, consultar o verbete sobre “publicidade” no Capítulo 4. Para abordagens mais amplas e particulares, consultar Kehl (2004, 2005a e 2005b), Rocha (1995), Brasil (2002), Idec (2002), Logarezzi (2004), Badue (2005), Quessada (2003) e Carvalho (2003).17 Consultar Logarezzi (2004).
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 141
das(os) educandas(os) para explicitar a “relação entre nossas escolhas (e rejeições) no
consumo e os valores que norteiam o tipo de sociedade em que queremos viver”, como
diziam Douglas e Isherwood, com vistas a uma revisão referenciada na ética da respon-
sabilidade. Tudo isso, certamente, sem qualquer prescrição, em processo participativo
que, na construção coletiva do conhecimento, delega, por princípio, a cada partícipe a
escolha de suas condutas – pessoais e de participação política –, de acordo com seu grau
de responsabilidade pessoal, percebido em decorrência do saber e do poder de cada um,
em um dado contexto, em um dado momento.
O detalhamento do foco socioambiental esboçado na Figura 5.2 dá uma idéia da
natureza dessa discussão, que tem se tornado cada vez mais relevante, com o avanço
de ações publicitárias para dentro do espaço escolar. Exemplos são cada vez mais co-
muns, como o caso do patrocínio da Monsanto em material didático desenvolvido pela
Horizonte Geográfi co, o da divulgação em agendas escolares de campanhas promocio-
nais, como o caso do McDonald’s, e o da publicidade nos uniformes das crianças das
redes públicas de ensino da cidade de São Paulo e de alguns outros municípios.
Nos dias atuais, portanto, é preciso reforçar que a escola não pode se permitir
receptiva às estratégias do consumismo, cujos efeitos, como vimos, contribuem muito
para a crise socioambiental que nos afeta e nos ameaça. Ao contrário, o papel da escola
é fazer uma leitura crítica da realidade e propiciar que as crianças se desenvolvam na
perspectiva de construir aos poucos capacidade de compreensão crítica e autônoma do
mundo. Nesse sentido, e considerando que as crianças assistem televisão – e muito!
– em suas residências, essa busca só poderá ser bem sucedida se escola e família, crian-
ças, professoras(es) e pais ultrapassarem algumas barreiras que atualmente caracterizam
a relação entre eles, de acordo com Reali & Tancredi (2005). A comunidade de apren-
dizagem com base na aprendizagem dialógica apresenta-se como uma metodologia
muito favorável para a superação dessas barreiras, ao lado dos demais conceitos teóricos
e princípios metodológicos descritos na Seção 4.1.
Cidadãs(ãos) comuns e educadoras/es, ao adotarem a ética da responsabilidade
no exercício de seus papéis sociais, terão certamente muito a se dedicar sobre essas
complexas questões, na perspectiva de um desenvolvimento humano em que o fator
econômico seja apenas uma de suas dimensões, um desenvolvimento em que a geração
responsável de resíduo seja apenas um dos aspectos da conduta humana a ser revisto,
um desenvolvimento em que o consumo seja apenas uma atividade em meio ao nosso
convívio social, atividade que deve ser exercida à luz da complexidade da realidade atual
142 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
e com responsabilidade cidadã. Um desenvolvimento, enfi m, que valorize os aspectos
socioambientais na leitura da contemporaneidade e nas ações decorrentes.
cidadã/o
industrialização
produto ou
serviço em uso
prod
uto
ouse
rviç
o
produto
resíduo
resíduo
FOCOSOCIOAMBIENTAL
1o Rredução
cultura
publicidadena mídia
empresáriosda indústria edo comércio
veículos
agências depublicidade
$competitividadeindividualismocoisificação da vidafragilidades psicológicasconspicuidadesuperfluidadesuperficialidadebanalização da violênciabanalização do sexo
consumismo ilusões
atitude
conseqüências ambientaisbase natural da produçãoalterações climáticasredução da biodiversidaderadiação solar danosaampliação dos cânceresredução da fertilidade
conseqüências sociais
frustração por não poder comprar
delinqüência criminalidade
frustração por não comprar poder
professoras(es) alunas(os)
escola
famíliapais
filhas(os)
ed
uc
a
ç ã o
geração
consumo
comercialização
Figura 5.2 O papel da escola diante da publicidade e suas estratégias e relações no contexto da cadeia
dos resíduos sólidos domiciliares, recortada da Figura 5.1 para detalhamento da etapa do consumo e
seus principais aspectos intercorrentes, dos quais o esquema destaca apenas alguns mais importantes
para o foco socioambiental.
Na tarefa de seleção desses aspectos socioambientais e de preparação para sua
abordagem em contextos educativos, as(os) educadoras(es) devem buscar promover
cuidadosa refl exão teórica sobre cada aspecto à luz da realidade das(os) educandas(os);
refl exão que pode, em certos momentos, sugerir a cômoda conclusão de que não há
como se opor objetivamente ao modelo hegemônico de produção e consumo, tamanhas
são as forças estruturais e a complexidade do mundo contemporâneo. É importante
destacar que os modelos alternativos brevemente apresentados na Seção 5.2b, embora
não representem solução para o problema em pauta (ou por equívoco de concepção:
caso do consumo verde; ou por abrangência limitada: caso do consumo responsável
– também chamado de consumo sustentável e consumo consciente), são referências
fundamentais para a abordagem educativa em questão, por constituírem experiências
CAP. 5 Educação ambiental em resíduo: o foco da abordagem 143
acumuladas na direção da superação das injustiças sociais e dos problemas ambientais
que marcam o mundo atual. As atividades educativas devem proporcionar que os su-
jeitos aprendentes se apropriem dessas experiências e, por meio de um questionamento
criterioso, elaborem e reelaborem continuamente suas compreensões subjetivas e cons-
truam e reconstruam suas discussões intersubjetivas, processos que lhes permitirão o
desenvolvimento cada vez mais apurado de ações individuais e coletivas coerentes com
suas compreensões e com suas discussões, evitando cada vez mais o comportamento
irrefl etido que apenas segue a cultura de massa que marca nosso dia-a-dia.
Nesse sentido, a educação ambiental de que falamos é aquela cujo processo favo-
rece o desenvolvimento da capacidade crítica e conduz a uma busca de emancipação
decorrente da aliança pessoal entre ações individuais e coletivas. Um processo perma-
nente que, como prática social, se pauta na responsabilidade da(o) cidadã/o e na busca
pela coerência do ser humano para a formação de sujeitos políticos, capazes de cons-
truir suas histórias pessoais e de participar crítica e conscientemente da construção da
História. A História idealizada por esse ato político em sentido amplo, que é o processo
educativo, é marcada por uma concepção de ser humano e uma concepção de sociedade
defi nidas – e que perpassam o texto deste capítulo –, ambas muito distintas daquelas
que predominam atualmente.
5.4 Referências bibliográfi cas
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Sumário
Prefácio ...................................................................................................
Apresentação ........................................................................................
Capítulo .............................................................................................
A temática ambiental e o processo educativo:
dimensões e abordagens
Luiz Marcelo de Carvalho
Capítulo .............................................................................................
Modernidade e crise socioambiental
Fabíola Marono Zerbini
Capítulo .............................................................................................
Dimensões culturais do consumo:
reflexões para pensar sobre o consumo sustentável
Ariadne Chloë Furnival
Capítulo .............................................................................................
Educação ambiental em resíduo:
uma proposta de terminologia
Amadeu Logarezzi
Capítulo ...........................................................................................
Educação ambiental em resíduo:
o foco da abordagem
Amadeu Logarezzi
Capítulo ...........................................................................................
Mitos populares pró-lixo
Patrícia Blauth, Patrícia Cristina Silva Leme e Daniela Sudan
Capítulo ...........................................................................................
O lixo diário e os modos de (con)viver com ele
Alexandra Marselha Siqueira Pitolli
Capítulo ...........................................................................................
As professoras e os conhecimentos sobre resíduos sólidos
Heloisa Chalmers Sisla Cinquetti e Luiz Marcelo de Carvalho
Capítulo ...........................................................................................
(Re)Conhecendo as percepções, os valores e as difi culdades
de uma comunidade na coleta seletiva de lixo
Rachel Zacarias e Vicente Paulo dos Santos Pinto
Sobre os autores ................................................................................
Apresentação
O consumo e a geração de resíduo estão presentes no dia-a-dia de educandas(os) e
educadoras(es) de qualquer contexto educativo; escolar ou não. São, portanto, temas
muito apropriados para serem incluídos no ensino escolar ou em interações em espaços
extra-escolares. Nesse sentido, este livro traz um conjunto de artigos que aponta para
uma imprescindível articulação entre eles, a qual pode ampliar o grau de percepção so-
bre as atividades de consumir e de gerar resíduo, incluindo os inúmeros e importantes
impactos socioambientais que, associados a uma extensa cadeia de atividades humanas,
decorrem desses nossos atos cotidianos e, por isso, torna-nos responsáveis por aqueles
impactos.
Alguns impactos socioambientais estão presentes de modo mais ou menos eviden-
te no dia-a-dia das(os) consumidoras(es) e cidadãs(ãos), como o aquecimento global e
seus efeitos ou a mobilidade urbana e seus problemas (nas grandes cidades), tornando-
se exemplos vivos para serem apropriados pelo trabalho educativo. Outros já não estão
presentes diretamente no cotidiano de educandas(os) e educadoras(es), como a extra-
ção implacável de recursos naturais, a redução da biodiversidade ou a exploração desu-
mana do trabalho (desde condições precárias até trabalho escravo e trabalho infantil),
que têm redundado na elevada exclusão social que já se tornou marca dos dias atuais.
No caso destes últimos impactos, por não estarem evidentes no dia-a-dia, é preciso que
os(as) educadores(as) tomem mais que a decisão de incluí-los em suas abordagens de
consumo e resíduo; é preciso que proporcionem conhecimentos específi cos sobre os
diferentes fenômenos e efeitos envolvidos.
14 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
No entanto, uma abordagem das temáticas consumo e resíduo que trate tanto
dos impactos mais evidentes no dia-a-dia quanto daqueles mais escondidos, vai exigir
das(os) educadoras(es) sobretudo conhecimentos metodológicos de como selecionar
os aspectos para a abordagem e de como tratá-los integradamente, entre eles próprios
e entre eles e os demais temas do planejamento educativo. Nesse sentido, é importante
uma base teórico-metodológica consistente em educação ambiental, coerente com uma
educação crítica, emancipatória e transformadora, integrando os temas ambientais com
os demais aspectos da formação humana. Assim, além de abordagens sistêmicas in-
tegradoras das complexidades temáticas que caracterizam a vida contemporânea, não
só responsabilizando os(as) cidadãos(ãs) pelos problemas, mas comprometendo-os(as)
com suas soluções, os(as) educadores(as) deverão trabalhar tanto com os conhecimen-
tos envolvidos nos temas específi cos como com a crise de valores por que passa a huma-
nidade nesse momento histórico de transição paradigmática e, ainda, com a decorrente
necessidade de participação política com vistas à construção de um mundo diferente
daquele que vimos construindo.
Nesse contexto, o projeto deste livro foi pensado a partir de nossa parceria, ao
trabalharmos juntos, na Universidade Federal de São Carlos, numa disciplina que tem
por tema a educação ambiental voltada para a questão dos resíduos. Nosso esforço aqui
é oferecer a educadores(as) e pesquisadores(as) que compartilham de nosso interesse
textos que ajudem tanto a orientar e fundamentar melhor suas práticas quanto a elabo-
rar melhor as teorizações em suas investigações.
Partimos em busca de outras pessoas que estivessem pesquisando sobre o tema e
cuja participação pudesse contribuir para as demandas resumidas nesta Apresentação.
O Capítulo 1, de Luiz Marcelo de Carvalho, é um ensaio que se volta para as bases da
educação ambiental. Nele, o autor apresenta sua formulação original, de que a pesquisa
e a ação em educação ambiental se pautem por três dimensões: a dos conhecimentos,
a dos valores éticos e estéticos e a da participação política. Esperamos, apresentando
este trabalho, que esta proposta possa ser objeto de mais discussões, para que possamos
decifrar melhor cada uma dessas dimensões e, assim, tornar menos frágeis os trabalhos
de educação ambiental.
Introduzindo a temática mais específi ca deste livro, o Capítulo 2, de Fabíola
Marono Zerbini, explorando enfaticamente as dimensões axiológica e política, traz
uma discussão sobre aspectos da construção da modernidade e a relação deles com a
crise socioambiental contemporânea, evidenciando as conseqüências das nossas esco-
Apresentação 15
lhas de consumo de bens e serviços, associadas, por sua vez, ao nosso padrão de geração
de resíduo. Com um olho na evolução da crise para níveis ameaçadores e outro na res-
ponsabilidade das(os) cidadãs(ãos) em relação ao destino da humanidade, é proposto
um eixo de construção de uma consciência política emancipada e comprometida com a
vida, apontando caminhos objetivos a serem buscados, sempre com consistente amparo
teórico.
Nesse contexto da complexidade da modernidade e, especialmente, da nova so-
ciedade ora em gestação, o Capítulo 3, de Ariadne Chloë Furnival, detém-se parti-
cularmente no tema do consumo. Tal temática foi tomando importância em nosso
trabalho à medida que ensinávamos sobre a questão dos resíduos e refl etíamos sobre
os conteúdos a serem ensinados. Percebemos que nossa prática não correspondia como
deveria a nossa percepção de que a questão da redução do consumo e do desperdício
deveria ser central nas discussões sobre a questão dos resíduos. Assim, fomos bus-
cando maior fundamentação e diálogo com autores(as) que estavam escrevendo sobre
consumo. Apresentamos o trabalho de Chloë diante desta perspectiva: contribuir para
fundamentar o trabalho educativo sobre o consumo e a busca por atitudes alternativas
em relação a essa prática diária consistente com a sustentabilidade socioambiental. A
autora analisa as dimensões culturais do consumo, desvelando diferenças fundamentais
entre desejo e necessidade e indicando aspectos relativos ao conceito de consumo im-
portantes para entender tal fenômeno.
Dando seqüência, os Capítulos 4 e 5, de Amadeu Logarezzi, procuram, de certa
forma, iniciar a passagem do tema consumo para o tema resíduo, sobre o qual versarão
mais especifi camente os capítulos fi nais do livro. Num primeiro momento, é proposta
uma série de conceituações – em forma de verbetes – sobre termos importantes para
o trabalho educativo sobre consumo e resíduo. A conceituação de termos é crucial
para qualquer trabalho, e temos visto que difi cilmente os conceitos (especialmente em
materiais didáticos ou de apoio ao trabalho educativo) incorporam perspectivas mais
elaboradas, multidisciplinares e atualizadas. Em seguida, sempre em busca de funda-
mentação do trabalho educativo com esses temas, limitações importantes são verifi ca-
das em relação ao foco tradicional de abordagem, justifi cando a proposição de um novo
foco, identifi cado como socioambiental, cuja concepção, entre outras rupturas com a
abordagem tradicional, enquadra os resíduos como apenas um dos tantos impactos
socioambientais negativos decorrentes do consumo. Nesse sentido, analisa detidamente
a sociedade de consumo com suas contradições e ambigüidades, discutindo, por fi m, a
16 Consumo e resíduo – Fundamentos para o trabalho educativo
busca por alternativas ao modelo hegemônico de produção e consumo, na perspectiva
de construção de uma nova cidadania, com base na ética da responsabilidade e em uma
ampla revisão de valores.
O trio Patrícia Blauth, Patrícia Cristina Silva Leme e Daniela Sudan contribui
com uma bem-humorada e original reunião dos assim chamados mitos pró-lixo, a que
as pessoas recorrem para escapar de refl exões e ações que modifi quem suas relações
com o lixo. As autoras desvelam, no Capítulo 6, os argumentos usualmente oferecidos
pelos(as) educandos(as) e discutem suas justifi cativas e alternativas. A intenção das au-
toras é colaborar para um trabalho educativo sobre resíduos mais efetivo, à medida que
os mitos sejam desvelados e discutidos. Nesse caminho, consistentemente, as discussões
referem-se a aspectos determinantes dos nossos hábitos de consumo, constatando, a
cada mito, a estreita associação entre consumo e resíduo.
Os três textos que fi nalizam o livro apresentam pesquisas envolvendo particu-
larmente a educação ambiental e os resíduos sólidos. Sentimos, no Capítulo 7, de
Alexandra Marselha Siqueira Pitolli, um relato vivo de sua premiada pesquisa de ini-
ciação científi ca com uma comunidade caiçara e suas percepções sobre o lixo, permeado
pelos pensamentos – seus e de outras(os) autoras(es), da área acadêmica ou das artes
– que a autora vai trazendo para a refl exão.
Prosseguimos com outro de nossos (Heloisa, em parceria com Luiz Marcelo) tra-
balhos, em que relatamos, no Capítulo 8, uma pesquisa que identifi cou algumas ênfases
e abordagens das professoras, quanto à dimensão dos conhecimentos sobre os resíduos
sólidos. Tal identifi cação pode auxiliar educadores(as) a orientar as refl exões propostas
em suas práticas pedagógicas, com vistas a superar as perspectivas mais ingênuas e pro-
por níveis mais avançados de refl exão sobre a temática ambiental e os resíduos sólidos.
Por fi m, o trabalho de Rachel Zacharias e Vicente Paulo dos Santos Pinto des-
creve, no Capítulo 9, uma experiência que reúne pesquisa e extensão. Ao discutir as
percepções das pessoas envolvidas num programa de coleta seletiva na pequena Maripá,
em Minas Gerais, o trabalho aborda desafi os de diferentes ordens que se colocam para
programas desse tipo, focalizando especialmente a análise das percepções e atitudes das
pessoas. O relato também pode inspirar outras experiências de avaliação em educação
ambiental, pelos diferentes procedimentos metodológicos empregados.
É importante destacar que organizamos as contribuições resumidas aqui de modo
a preservar a diversidade de estilos dos autores. Como parte dessa multilinguagem, evi-
dencia-se o uso diferenciado de termos atinentes aos temas abordados, assunto tratado
no Capítulo 4, em que se propõe uma terminologia consistente; proposta que, à espera
Apresentação 17
de contribuições dos mais diversos interlocutores, pretende trazer luzes para o trata-
mento pedagógico sobre consumo e resíduo. O diferenciado tratamento lingüístico da
questão de gênero ao longo dos capítulos é outro aspecto do livro.
Como se pode ver nas apresentações dos(as) autores(as) deste livro, somos pesquisa-
do res(as) de diferentes formações, atuando em variadas instituições, de diferentes in-
serções sociais (governamentais e não governamentais). Nossa parceria (organizador e
organizadora) inicial, incomum, pois voltada para o ensino universitário e por ser entre
um engenheiro e uma pedagoga, propiciou a realização deste projeto e deu visibilidade
a outros trabalhos de parceria entre os(as) autores(as) dos trabalhos. Que bons frutos
venham a ser colhidos a partir dessa integração e que novas parcerias sejam inspiradas
a partir dela.
Heloisa e Amadeu
São Carlos, verão de 2006.
Sobre os autores 1
Luiz Marcelo de Carvalho
Graduado em Ciências Biológicas, mestre em Ecologia e doutor em Educação. É pro-
fessor assistente no Departamento de Educação e no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Unesp, em Rio Claro, e professor do Programa de Pós-Graduação em
Educação Escolar da Unesp, em Araraquara. Sua docência e pesquisa têm se voltado
para as áreas de Ensino de Ciências e educação ambiental. Seu principal interesse em
pesquisa está relacionado com as concepções e práticas em educação ambiental, espe-
cialmente os aspectos relacionados à natureza da ciência e às questões controversas. É
um dos articuladores dos Encontros de Pesquisa em educação ambiental (Epeas).
Fabíola Marono Zerbini
Especialista em educação ambiental pela Esalq/USP e doutoranda em Ciência
Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP (Procam),
tendo como tema central de seus estudos o potencial emancipatório de práticas e in-
tervenções em educação ambiental. É co-autora do livro Manual pedagógico entender
para intervir – Por uma educação para o consumo responsável e comércio justo, editado pelo
Instituto Kairós (2005). Atualmente, é docente do curso de Especialização em edu-
cação ambiental da Faculdade Senac e pesquisadora do Laboratório de Psicologia
Socioambiental e Intervenção do Instituto de Psicologia da USP (Lapsi) e diretora
presidente do Instituto Kairós.
Ariadne Chloë Furnival
Professora adjunta do Departamento de Ciência da Informação da UFSCar. Doutora
em Políticas Científi cas e Tecnológicas pela Unicamp. Mestre em Computação pela
Universidade de Manchester, Inglaterra. Mestre em Literatura Comparativa pela Uni-
versidade de Warwick, Inglaterra. Meta de vida: reduzir até o máximo o apego aos
(poucos) bens materiais e tentar, num futuro não muito distante, viver sem carro!
1 Na ordem de aparecimento no texto.
Amadeu Logarezzi
Graduado em Engenharia de Materiais pela UFSCar, mestre em Ciência e Tecnologia
de Polímeros pela UFRJ e doutor em Ciências Físico-Químicas pela USP, vem deslo-
cando sua área de atuação, na última década, das Ciências Exatas e das Tecnologias para
a Educação, particularmente a educação ambiental, no que se refere às atividades de
ensino, pesquisa e extensão, na graduação, na pós-graduação e na administração. É pro-
fessor do Departamento de Engenharia de Materiais e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFSCar, coordenador do grupo ConsumoSol – Articulação Ética
e Solidária para um Consumo Responsável – de São Carlos, coordenador do grupo
Publicidade, Consumo e Educação da UFSCar, membro do Grupo de Estudos e
Pesquisa em educação ambiental de São Carlos, membro do Núcleo de Investigação e
Ação Social e Educativa do Departamento de Metodologia de Ensino da UFSCar e do
Coletivo Educador de São Carlos, Araraquara e Região do Programa de Formação de
Educadoras(es) Ambientais da DEA/MMA e coordenador do Programa de educação
ambiental da Cema/UFSCar.
Patrícia Blauth
Formada em Ciências Biológicas (USP), é “lixóloga” desde 1989. Foi coordenadora
do programa municipal de coleta seletiva de São Sebastião, SP, e consultora na área
de gestão compartilhada de resíduos do Instituto Polis/Unicef pelo Programa
Nacional Lixo e Cidadania, da Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho do
Estado de São Paulo, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), da Secretaria
de Meio do Estado de São Paulo, e ofi cineira da Secretaria de Educação do mu-
nicípio de São Paulo. Diretora da Menos Lixo – projetos e educação em resíduos
sólidos −, oferece assessoria na implantação de programas de minimização de re-
síduos em prefeituras, escolas, condomínios, instituições e empresas. Autora (com
E. Grimberg) do livro Coleta seletiva – reciclando materiais, reciclando valores (Inst.
Pólis, 1998) e do Guia para implantação: cooperativa de catadores de materiais reciclá-
veis, coordenado por R. Lajolo, publicação IPT e Sebrae-SP.
Patrícia Cristina Silva Leme
Bióloga formada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mestre
em Educação pela UFSCar e doutoranda em Educação pela UFSCar (área de
Metodologia de Ensino), pesquisa os processos de ensino-aprendizagem da te-
mática lixo e a formação de educadores ambientais. Desde 1997 é educadora da
Universidade de São Paulo (USP), atuando na Coordenadoria de Cooperação Uni-
versitária e de Atividades Especiais (Cecae), no planejamento, na execução e ava-
liação do Programa USP Recicla. É participante do Fórum Comunitário do Lixo
de São Carlos, desde a sua fundação (1999), e do grupo ConsumoSol – Articulação
Ética e Solidária para um Consumo Responsável – de São Carlos, desde a sua fun-
dação (2004).
Daniela Sudan
Natal de São Carlos, SP, despertou-se para as questões ambientais com a ONG
ambientalista Associação para a Proteção Ambiental de São Carlos (Apasc).
Participou do processo de criação do Fórum Comunitário do Lixo (1999) e do lan-
çamento da I Feira da Sucata e da Barganha (1999) também na cidade. Fez a gra-
duação em Biologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Lecionou
Biologia durante seis anos em escolas estaduais. Desenvolveu mestrado até 2005
no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. Atua como educa-
dora ambiental na Coordenadoria de Cooperação Universitária e de Atividades
Especiais (Cecae)/SP, no Programa de Educação e Gestão de Resíduos Sólidos/
USP Recicla.
Alexandra Marselha Siqueira Pitolli
Professora, bióloga, especialista em educação ambiental e mestre em educação
(área de concentração: ensino, avaliação e formação de professores). A relação com
o tema lixo é antiga, desde antes da escola e da paixão pela educação. Desenvolveu
diversos trabalhos relacionados ao tema. Atualmente trabalha como educadora
ambiental do Programa de Qualidade de Vida do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá, em Tefé/AM, onde desenvolve material didático de edu-
cação ambiental relacionado ao manejo de recursos naturais.
Heloisa Chalmers Sisla Cinquetti
Graduada em Pedagogia (USP), mestre em Educação em Museus (Bank Street
College of Education, New York) e doutora em Educação (Unesp). É professo-
ra do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFSCar, no campus de
Sorocaba. Incorporou ao trabalho acadêmico, a partir da pesquisa de doutora-
do, sua preocupação com as questões ambientais. Tem participado do movimento
ambientalista, atualmente por meio da Associação para Proteção Ambiental de
São Carlos e das redes de educação ambiental (são-carlense: REA-SC; paulista:
Repea; e brasileira: Rebea).
Rachel Zacarias
Mineira de Juiz de Fora, é pedagoga e mestre em Educação pela PUC−Rio. Atua na
área de educação ambiental e resíduos desde o início da década de 1990. Atualmente
é professora e coordenadora do curso de Gestão Ambiental das Faculdades Vianna
Júnior, em Juiz de Fora, e pesquisadora associada ao Grupo de educação ambiental
da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou o livro: Consumo lixo e educação
ambiental: uma abordagem crítica.
Vicente Paulo dos Santos Pinto
Nascido em Juiz de Fora (MG), atuou como professor de Geografi a nos ensi-
nos fundamental e médio. Doutor em Geografi a pela UFRJ, é professor adjunto
do Departamento de Geociências (ICHL) e professor colaborador no Curso de
Mestrado da Faculdade de Educação da UFJF, desenvolvendo orientações rela-
cionadas à educação ambiental e ao ensino de Geografi a. Coordena o Grupo de
educação ambiental (GEA) e o Curso de Especialização em educação ambiental
da mesma universidade. Participou da organização do livro educação ambiental em
perspectiva.
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