locupletamento ilícito

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Sílvio de Salvo Venosa O Código Civil de 2002 reduziu sensivelmente os prazos extintivos, de prescrição e decadência. Assim, o prazo geral de prescrição passou a ser de dez anos, conforme o artigo 205, enquanto no sistema anterior era de 20 anos para as ações pessoais. É de três o prazo exíguo, por exemplo, para a pretensão relativa a aluguéis de prédios e para a de reparação civil, como estabelece o artigo 206, parágrafo 3º do código. Nessa premissa, são muitos os créditos, mormente de pessoas jurídicas, que, por inúmeras razões, deixam de ser cobrados dentro dos prazos assinalados. Há, contudo, no próprio estatuto de 2002, um instituto que pode socorrer tais situações, remediando o prejuízo sofrido pelo credor. Trata-se do enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 884 a884 do novo Código Civil . É freqüente que uma parte se enriqueça, isto é, obtenha vantagem patrimonial em detrimento de outra. Aliás, é isso que ocorre nos contratos unilaterais e gratuitos, como a doação. Porém, há situações que esse desequilíbrio ocorre sem fundamento, sem causa jurídica. A função primordial do direito é justamente a de manter o equilíbrio social como fenômeno de adequação social. O enriquecimento sem causa, definido no artigo 884 do código, é uma das fontes das obrigações e mesmo perante a ausência de texto no sistema civil anterior, aplicava-se como uma categoria geral, desde as origens do fenômeno em ações específicas do direito romano. Existe enriquecimento sem causa - enriquecimento injusto, enriquecimento ilícito ou locupletamento indevido - sempre que houver uma vantagem de cunho econômico, sem justa causa, em detrimento de outrem. A ação de enriquecimento sem causa ("in rem verso") tem por objeto tão-só reequilibrar dois patrimônios, desequilibrados sem fundamento jurídico. Não se confunde com uma ação por perdas e danos ou derivada de um contrato. Deve ser entendido como sem causa o ato ou negócio jurídico desprovido de razão albergada pela ordem jurídica. A causa poderá existir, mas sendo injusta, estará configurado o locupletamento. Em matéria cambial, existe referência expressa no direito positivo à essa ação, no artigo 48 da Lei nº 2.044 , de 1908. Por esse dispositivo permite-se uma ação de rito ordinário contra o sacador ou aceitante de um título de crédito que se tenha enriquecido indevidamente. Trata-se de uma ação subsidiária e tem como requisitos a existência prévia de um título de crédito (nota promissória, cheque etc.), a desoneração da responsabilidade cambial por qualquer razão (falta de protesto, de aceite ou prescrição, por exemplo) e que o prejuízo sofrido pelo portador do título corresponda a um efetivo enriquecimento por parte do aceitante ou sacador. Trata-se de uma situação típica de enriquecimento sem causa, a qual, como se vê, abrange também a prescrição do título. É importante salientar que a ação de enriquecimento sem causa será sempre subsidiária, tanto nessa ação derivada de títulos de créditos, como nos casos de enriquecimento em geral, tal como está no artigo 886 do Código Civil , que estabelece que "não caberá a restituição por enriquecimento, se

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Slvio de Salvo Venosa O Cdigo Civil de 2002 reduziu sensivelmente os prazos extintivos, de prescrio e decadncia. Assim, o prazo geral de prescrio passou a ser de dez anos, conforme o artigo 205, enquanto no sistema anterior era de 20 anos para as aes pessoais. de trs o prazo exguo, por exemplo, para a pretenso relativa a aluguis de prdios e para a de reparao civil, como estabelece o artigo 206, pargrafo 3 do cdigo. Nessa premissa, so muitos os crditos, mormente de pessoas jurdicas, que, por inmeras razes, deixam de ser cobrados dentro dos prazos assinalados. H, contudo, no prprio estatuto de 2002, um instituto que pode socorrer tais situaes, remediando o prejuzo sofrido pelo credor. Trata-se do enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 884 a884 do novo Cdigo Civil . freqente que uma parte se enriquea, isto , obtenha vantagem patrimonial em detrimento de outra. Alis, isso que ocorre nos contratos unilaterais e gratuitos, como a doao. Porm, h situaes que esse desequilbrio ocorre sem fundamento, sem causa jurdica. A funo primordial do direito justamente a de manter o equilbrio social como fenmeno de adequao social. O enriquecimento sem causa, definido no artigo 884 do cdigo, uma das fontes das obrigaes e mesmo perante a ausncia de texto no sistema civil anterior, aplicava-se como uma categoria geral, desde as origens do fenmeno em aes especficas do direito romano. Existe enriquecimento sem causa - enriquecimento injusto, enriquecimento ilcito ou locupletamento indevido - sempre que houver uma vantagem de cunho econmico, sem justa causa, em detrimento de outrem. A ao de enriquecimento sem causa ("in rem verso") tem por objeto to-s reequilibrar dois patrimnios, desequilibrados sem fundamento jurdico. No se confunde com uma ao por perdas e danos ou derivada de um contrato. Deve ser entendido como sem causa o ato ou negcio jurdico desprovido de razo albergada pela ordem jurdica. A causa poder existir, mas sendo injusta, estar configurado o locupletamento. Em matria cambial, existe referncia expressa no direito positivo essa ao, no artigo 48 da Lei n 2.044 , de 1908. Por esse dispositivo permite-se uma ao de rito ordinrio contra o sacador ou aceitante de um ttulo de crdito que se tenha enriquecido indevidamente. Trata-se de uma ao subsidiria e tem como requisitos a existncia prvia de um ttulo de crdito (nota promissria, cheque etc.), a desonerao da responsabilidade cambial por qualquer razo (falta de protesto, de aceite ou prescrio, por exemplo) e que o prejuzo sofrido pelo portador do ttulo corresponda a um efetivo enriquecimento por parte do aceitante ou sacador. Trata-se de uma situao tpica de enriquecimento sem causa, a qual, como se v, abrange tambm a prescrio do ttulo. importante salientar que a ao de enriquecimento sem causa ser sempre subsidiria, tanto nessa ao derivada de ttulos de crditos, como nos casos de enriquecimento em geral, tal como est no artigo 886 do Cdigo Civil , que estabelece que "no caber a restituio por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuzo". Desse modo, no caber ao de locupletamento se for possvel mover de cobrana baseada em contrato ou indenizatria por responsabilidade civil em geral. Torna-se possvel com a prescrio dessas respectivas aes. A "actio in rem verso" no uma ao de cobrana ou de indenizao. A aplicao da teoria do enriquecimento injustificado pertence teoria geral do direito. A restituio que se almeja nessa ao deve ficar entre dois parmetros: de um lado no pode ultrapassar o enriquecimento efetivo recebido pelo agente em detrimento do devedor; de outro, no pode ultrapassar o empobrecimento do outro agente, isto , o montante em que o patrimnio sofreu diminuio. No se trata, portanto de efeitos que se assemelhem a uma ao de nulidade ou de resoluo de negcio jurdico. No se cuida de estabelecer uma indenizao, mas de uma reparao

na medida do enriquecimento, na medida do pagamento, por exemplo, que deveria ter sido efetuado e no o foi. Desse modo, possvel, em princpio, promover uma ao de enriquecimento sem causa em todas as situaes nas quais no mais possvel promover a ao especfica, por ter decorrido o prazo prescricional. Como enfatizado, a ao de locupletamento indevido subsidiria, isto , a ltima de que pode se valer o credor perante a inexistncia de qualquer outro meio jurdico. Os efeitos da ao de enriquecimento sero sempre menores do que os da ao derivada de um contrato ou da responsabilidade aquiliana. Na primeira, apenas a efetiva perda ou empobrecimento poder ser concedido; nas outras, pode-se falar em indenizao equivalente a prestaes no cumpridas, clusula penal e perdas e danos. No pode, evidente, a ao de enriquecimento converter-se em uma panacia jurdica. Contudo, trata-se de um instrumento importante para a recuperao de crditos que j se julgam perdidos por fora de uma prescrio. Note que, a exemplo da ao de enriquecimento relacionada com os ttulos de crdito, o prazo prescricional para a ao de enriquecimento sem causa de trs anos, conforme prev o artigo 206 ,pargrafo 3 , inciso IV do novo Cdigo Civil . Esse prazo, seguindo o princpio da "actio nata", comea a fluir a partir do momento em que as outras aes no podem mais ser propostas, como examinamos - a partir, portanto, do escoamento do prazo prescricional da ao derivada do contrato ou de outro ato ou negcio jurdico. Para colocar em operao uma ao "in rem verso", olvidada pela doutrina e jurisprudncia, fundamental que nossos operadores do direito voltem seus estudos para ela, um instituto to rico, profcuo, til e tradicional da teoria geral do direito e que pode recuperar crditos que j se tinham como perdidos. Slvio de Salvo Venosa autor de vrias obras de direito civil, consultor e parecerista nesta rea Este artigo reflete as opinies do autor, e no do jornal Valor Econmico. O jornal no se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informaes acima ou por prejuzos de qualquer natureza em decorrncia do uso dessas informaes Fonte: Valor Econmico em 03-11-2008.