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  • Sociolingustica

    Florianpolis - 2010

    Edair Maria GrskiIzete Lehmkuhl CoelhoChristiane Maria Nunes de SouzaGuilherme Henrique May

    5Perodo

  • Governo FederalPresidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao: Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-Reitora de Ensino de Graduao: Yara Maria Rauh MllerPr-Reitora de Pesquisa e Extenso: Dbora Peres MenezesPr-Reitor de Ps-Graduao: Maria Lcia de Barros CamargoPr-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPr-Reitor de Infra-Estrutura: Joo Batista FurtuosoPr-Reitor de Assuntos Estudantis: Cludio Jos AmanteCentro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretora Unidade de Ensino: Felcio Wessling MarguttiChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenao Pedaggica: LANTEC/CEDCoordenao de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

    Comisso EditorialTnia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Laboratrio de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenao Geral: Andrea LapaCoordenao Pedaggica: Roseli Zen Cerny

    Produo Grfica e HipermdiaDesign Grfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiResponsvel: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptao do Projeto Grfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramao: Karina SilveiraFiguras: Bruno Nucci, Maiara Ario, Joo Machado, Amanda WoehlTratamento de Imagem: Amanda Woehl, Joo MachadoReviso gramatical: x

    Design InstrucionalResponsvel: Vanessa Gonzaga NunesDesigner Instrucional: Tecia Estefana Vailati

    Copyright 2010, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina.

    Ficha Catalogrfica

    C672s Coelho, Izete Sociolingustica / Izete Coelho. Florianpolis : LLV/CCE/

    UFSC, 2010.172 p. : 28 cm

    ISBN 978-85-61482-25-1

    1.Sociolingustica. 2.Lingustica. 3.Educao. 4.Dialetos. I.Ttulo. CDU: 801

  • Sumrio

    Apresentao ...................................................................................... 7

    Unidade A - Introduo ao estudo da linguagemno contexto social ..................................................11

    Breve histrico da Sociolingustica1 ........................................................13

    A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas2 ......19

    2.1 A proposta de William Labov ........................................................................19

    2.2 Conceitos fundamentais ................................................................................23

    2.3 Significado social das formas variantes ....................................................30

    2.4 As noes de comunidade de fala e de redes sociais ..........................37

    Fechando a Unidade A ..................................................................43

    Unidade B - As dimenses interna e externada variao lingustica ..........................................45

    A dimenso interna: nveis de variao lingustica3 ..........................47

    3.1 Contextualizando... ...........................................................................................48

    3.2 A variao interna ............................................................................................50

    A dimenso externa da variao lingustica4 .......................................71

    4.1 Breve retrospectiva ..........................................................................................71

    4.2 Tipos de variao ..............................................................................................76

    Fechando a Unidade B...................................................................87

    Unidade C - Variao e mudana lingustica ........................89Mudana lingustica e o tempo5 ..............................................................91

    5.1 Homogeneidade versus heterogeneidade .............................................91

    5.2 Problemas empricos para uma teoria da mudana lingustica .......95

    5.3 Princpios gerais para o estudo da mudana lingustica ..................106

    Fechando a Unidade C ............................................................... 108

  • Unidade D - Pressupostos metodolgicosda pesquisa sociolingustica ........................... 111

    Etapas da pesquisa sociolingustica 6 ..................................................113

    6.1 Seleo dos informantes ..............................................................................113

    6.2 Metodologia de coleta de dados .............................................................116

    6.3 Envelope de variao ....................................................................................129

    6.4 Levantamento de questes e hipteses.................................................132

    6.5 Codificao de dados e anlise estatstica .............................................135

    Estudo de um fenmeno lingustico varivel7 .................................137

    Fechando a Unidade D ............................................................... 144

    Unidade E - Sociolingustica e Ensino ................................... 147Contribuies da Sociolingustica para o ensino8

    de lngua portuguesa ..............................................................................149

    8.1 A proposta dos PCNs para o ensino de lngua portuguesa .............149

    8.2 Contribuies no nvel conceitual ...........................................................152

    8.3 Contribuies em torno da heterogeneidade da lngua portuguesa ...................................................................................154

    8.4 Contribuies quanto prtica do professor-pesquisador .............159

    Fechando a Unidade E ................................................................ 161

    Glossrio .......................................................................................... 163

    Referncias ...................................................................................... 167

  • Apresentao

    Caros alunos,

    Queremos introduzir a disciplina de Sociolingustica de forma leve e bem-humorada! Por isso, decidimos comear com a seguinte piada (j conhecida de voc):

    Domingo tarde, o poltico v um programa de TV. Um assessor passa por ele e pergunta: Firme?O poltico responde: No, Srvio Santos.(POSSENTI, S. Os humores da lngua. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1998, p. 34)

    Voc deve estar se perguntando: o que tem a ver essa piada com a Sociolingus-tica? Vejamos...

    Numa anlise rpida, notamos que a palavra firme que desencadeia o efeito humorstico, pois est funcionando com dois sentidos:

    a) firme = tudo bem?, um cumprimento informal;

    b) firme = filme, uma variante popular.

    O assessor cumprimenta o poltico perguntando se est tudo bem, mas este entende que o primeiro est querendo saber se ele est assistindo a um filme na TV. Essa segunda interpretao linguisticamente reforada pelo uso da pala-vra Srvio. Est claro que a figura do poltico est sendo representada como caipira, no escolarizado etc. Ele ouve a palavra firme e a entende como uma variante de filme.

    A troca de /l/ por /r/, nesse caso, representa um fenmeno que chamamos de variao lingustica. Trata-se, aqui, de uma variao fonolgica, ou seja, a troca de um fonema por outro sem alterao do significado referencial da pa-lavra. No caso exemplificado pela piada, a variante usada pelo poltico carrega um significado social, justamente aquele mencionado acima: o falante no tem domnio da variedade padro do portugus oral, sendo, provavelmente, de baixa escolaridade. A piada veicula um teor de crtica apresentando uma espcie de caricatura da classe dos polticos.

    A noo de significado referencial, aqui, equiva-le, de certa forma, de referncia ou denotao, j apresentada na disciplina de Semntica.

  • O que estamos querendo mostrar, a partir desse exemplo, que existe uma relao estreita entre as formas da lngua, os diferentes grupos sociais que as utilizam e a imagem que projetamos nestes atravs daquela. dessa relao que se ocupa a Sociolingustica.

    Para voc ter uma viso geral do que vai ser abordado neste livro-texto, apre-sentamos a ementa da disciplina de Sociolingustica, que faz parte do projeto pedaggico do Curso de Letras a distncia:

    Lngua como sistema heterogneo. Significado social das formas variantes. Dimenses externa e interna da variao lingustica. Pressupostos metodolgicos da pesquisa sociolingustica. Prtica pedaggica: variao lingustica e ensino. Reflexes sobre a pr-tica pedaggica no ensino fundamental e mdio.

    O termo-chave variao lingustica. sobre essa propriedade das lnguas a de que, afinal, no falamos todos da mesma forma que se voltam os estu-dos sociolingusticos, e que nos voltaremos ns ao longo desta disciplina. Para alguns, pode parecer bvio que a variao (bem como a mudana nas lnguas) conste no programa de investigaes da lingustica. Contudo, como veremos, os paradigmas de maior projeo no ltimo sculo no consideravam neces-srio nem possvel o estudo da variao e da mudana para a compreen-so de como as lnguas funcionam. O surgimento de uma proposta de anlise sistemtica desses fenmenos representa, portanto, um importante marco no desenvolvimento da cincia lingustica, e j nos trouxe valiosas informaes acerca de como se comporta a variabilidade nas lnguas. Essas informaes, por sua vez, so de grande valor em questes como a do preconceito lingus-tico e a do ensino de lngua materna. J no temos a motivos suficientes para conhecermos um pouco mais essa rea?

    Dividimos nosso caminho pela Sociolingustica em quatro unidades. Na pri-meira, apresentamos essa interessante proposta de estudos e a situamos no contexto mais amplo dos estudos lingusticos do ltimo sculo. Na segunda unidade, abordamos as dimenses interna e externa da variao, discutindo os modos como ela se manifesta no sistema lingustico e na vida social de uma comunidade. Na terceira parte, veremos como se d o estudo da mudana nas formas da lngua, um processo intimamente ligado ao fenmeno da variao. Na quarta etapa de nosso percurso, aprenderemos como pr a mo na massa em uma pesquisa sociolingustica, examinando suas etapas principais. Inclu-mos tambm no livro-texto reflexes e sugestes de como o conhecimento

  • advindo da pesquisa em Sociolingustica pode (e deve) contribuir com nossa prtica pedaggica em lngua materna, a fim de que atinjamos um ensino cada vez mais efetivo e menos segregador.

    Desejamos a voc um semestre de muito estudo, muitos questionamentos e muitas reflexes!

    Vamos l?

    Os autores

  • Unidade AIntroduo ao estudo da lin-guagem no contexto social

  • Objetivos desta Unidade:

    Descrever um panorama dos estudos da lngua como um fato social;

    Identificar alguns pressupostos bsicos da Teoria da Variao e Mudana lingustica;

    Refletir sobre a questo do preconceito lingustico.

    Nesta primeira Unidade, apresentamos a voc o quadro geral de pressupostos tericos da Sociolingustica Variacionista. No primeiro ca-ptulo, veremos quais eram as ideias dominantes quanto ao estudo da variao e da mudana, bem como de que forma outros tericos, antes de William Labov (o principal nome da Sociolingustica Variacionista), buscaram integrar aos estudos lingusticos possveis influncias sociais. No segundo captulo, somos apresentados a alguns postulados de Labov e aos principais conceitos tericos que os fundamentam, passando inclu-sive pela discusso um pouco mais avanada dos problemas de definio de alguns desses conceitos e pela questo do preconceito lingustico.

  • Captulo 01Breve histrico da Sociolingustica

    13

    1

    Livro clssico publicado em 1916, como obra pstuma de Saussure, organizado por seus dis-cpulos Bally e Sechehaye, a partir de apontamentos de aulas.

    Ao longo da histria h inmeros registros do in-teresse dos homens pelas lnguas, especialmente de filsofos, conforme foi visto na disciplina de Histria dos Estudos Lingusticos. No sculo XIX predominaram os estudos histrico-comparativos. Mas a partir de Saussure que os estudos lingusti-cos passam a adquirir um carter mais sistemtico e abstrato, e a lngua estudada sincronicamen-te, desvinculada de sua histria.

    Langue e paroleEssa dicotomia pode ser traduzida como ln-gua e fala. Entretanto, preferimos manter os termos originais para assegurar a concepo saussureana sempre que nos referirmos a ela.

    Breve histrico da Sociolingustica

    Para entender melhor os pressupostos tericos da Sociolingusti-ca, vamos inicialmente contextualizar, em termos gerais, os estudos da linguagem no sculo XX. Comeamos falando do linguista suo Ferdi-nand de Saussure e do linguista americano Noam Chomsky.

    A atribuio de estatuto cientfico lingustica costuma ser cre-ditada a Saussure, no incio do sculo XX. De fato, com seu Curso de lingustica geral, Saussure inaugura a lingustica moderna, delimitando e definindo seu objeto de estudo, estabelecendo seus princpios gerais e seu mtodo de abordagem. Saussure um marco da corrente lingustica denominada estruturalismo, segundo a qual a lngua (i) tomada em si mesma, separada de fatores externos; (ii) vista como uma estrutura autnoma, valendo pelas relaes de natureza essencialmente lingus-tica que se estabelecem entre seus elementos. Ou seja, para Saussure, a lingustica tem por nico e verdadeiro objeto a lngua considerada em si mesma e por si mesma.

    Saussure postula algumas dicotomias e vai isolando o que, segundo ele, seria de interesse da cincia lingustica. Vamos apresentar, dessas dicotomias, as que so mais importantes para esta disciplina.

    Langue e parolea) a langue homognea e social, um sistema de signos, um tesouro depositado, pela prtica da fala, no c-rebro dos falantes; essencial; j a parole um ato individual de vontade, heterognea, manifestao concreta da primeira; acessria e acidental. O objeto da lingustica, para Saussure, a langue.

    Sincronia e diacroniab) correspondem a dois eixos ou pers-pectivas pelas quais se pode estudar a lngua: na sincronia, se faz um recorte da lngua em um momento histrico (presente ou passado), como se fosse um registro fotogrfico que capta as relaes entre os elementos do sistema, tomando-se a lngua como um estado do qual se exclui a interveno do tempo; na diacronia, a lngua analisada como um produto de uma srie

  • Sociolingustica

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    de evolues que ocorrem ao longo do tempo, portanto como algo mutvel, dinmico. a perspectiva sincrnica, segundo Saussure, que permite o estudo cientfico da lngua.

    Saussure estabelece a seguinte relao entre essas dicotomias: (i) os fenmenos variveis no so visveis na langue (que social), mas na parole (que individual); (ii) a evoluo/mudana se d em alguns elementos e isso suficiente para que se reflita em todo o sistema; (iii) o falante no tem conscincia das mudanas que ocorrem entre os estados (os recortes sincrnicos) da lngua.

    Vale observar que, embora delimite dessa maneira o objeto de es-tudo da lingustica, Saussure admite que a lngua seja um fenmeno social, produto de uma conveno estabelecida entre os membros de determinado grupo; porm, os fatores externos ao sistema so deixados de lado por ele voltaremos a esse ponto mais adiante.

    Nos Estados Unidos, a viso formal da lngua ganha destaque, a partir da dcada de 60, com Noam Chomsky e a corrente denominada gerativismo, segundo a qual a lngua (i) concebida como um sistema de princpios universais; (ii) vista como o conhecimento mental que um falante tem de sua lngua a partir do estado inicial da faculdade da linguagem, ou seja, a competncia. O que interessa ao gerativista o sistema abstrato de regras de formao de sentenas gramaticais.

    A abordagem gerativista ao estudo da lngua foi trabalhada na discipli-

    na de Sintaxe. Retome os contedos dessa disciplina para mais exem-

    plos de como a teoria gerativista lida com a analise lingustica.

    Como vimos, tanto a abordagem estruturalista como a gerativista consideram a lngua como uma realidade abstrata, desvinculada de fa-tores histricos e sociais. como uma reao a essas duas correntes que a Sociolingustica desponta nos Estados Unidos na dcada de 60, tendo como um de seus maiores expoentes William Labov.

    Saussure estabelece uma analogia entre a lngua e

    o jogo de xadrez: assim como as peas vo ad-quirindo novos valores

    a cada lance no jogo em decorrncia das posies

    que vo assumindo frente s demais, tambm na

    lngua, cada mudana tem reflexos sobre todo o sis-tema lingustico. O tabu-

    leiro com as peas usado como metfora para a

    lngua como sistema de signos.

    A faculdade da linguagem corresponde, para Chos-

    mky, a um mdulo lingus-tico em nossa mente, que inato na espcie huma-na. s regras que formam a faculdade da linguagem

    chama-se gramtica uni-versal. Reveja esse concei-to em GRSKI, Edair Maria;

    ROST, Claudia Andrea. Introduo aos Estudos

    Gramaticais. Florianpolis: LLV/CCE/UFSC, 2008.

  • Captulo 01Breve histrico da Sociolingustica

    15

    Sociolingustica labo-vianaTambm chamada de Teoria da Variao e Mudana ou de Socio-lingustica Quantitati-va, pois trabalha com resultados estatsticos.

    Wiliam Labov.

    Antes, contudo, de nos determos na Sociolingustica laboviana, que o foco principal de nosso livro, importante retroceder no tempo para resgatar alguns autores do incio do sculo XX que, diferentemente da proposta terica de Saussure, postulavam uma concepo social da lngua. Vamos falar um pouco do linguista francs Meillet (1866-1936) e dos linguistas russos Marr (1865-1934) e Bakhtin (1895-1975). Antoine Meillet enfatizava, em seus textos, o carter social e evolutivo da lngua. Segundo ele: Por ser a lngua um fato social resulta que a lingustica uma cincia social, e o nico elemento varivel ao qual se pode recorrer para dar conta da variao lingustica a mudana social (MEILLET, 1921 apud CALVET, 2002, p. 16). Como se pode notar nessa citao, do ponto de vista de Meillet, toda e qualquer variao na lngua motivada estritamente por fatores sociais.

    Comparando brevemente as ideias de Meillet e de Saussure, pode-mos dizer que (i) Saussure ope lingustica interna (aquela que se ocupa estritamente da lngua) e lingustica externa (aquela que se ocupa das relaes entre a lngua e fatores extralingusticos), e Meillet as associa; (ii) Saussure distingue abordagem sincrnica (estrutural) de abordagem diacrnica (histrica), e Meillet as une. Em suma, enquanto Saussure elabora um modelo abstrato da langue (sistema de signos), Meillet bus-ca explicar a estrutura lingustica por meio de fatores histricos e so-ciais. Essas ideias de Meillet, como vamos ver adiante, sero retomadas por Labov dcadas depois.

    Meillet foi discpulo de Saussure, mas, inspirado no socilogo Durkheim, definia a lngua como um fato social, enfatizando o carter evolutivo da lngua, diferentemente de Saussure, para quem a sincronia prevalece sobre a diacronia.

  • Sociolingustica

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    J na perspectiva da lingustica sovitica, encontramos, tambm no incio do sculo XX, posies marxistas acerca da lngua. Inicialmente, o linguista Nicholas Marr propunha que (i) todas as lnguas do mun-do tm uma mesma origem; (ii) as lnguas so instrumento de poder e refletem a luta de classes sociais; (iii) as lnguas so parte de uma supe-restrutura, passando por estgios de desenvolvimento de acordo com a base econmica de diferentes sociedades, ou seja, os estgios das lnguas corresponderiam aos estgios da sociedade. A doutrina de Marr (cha-mada marrismo) foi tida como oficial na Unio Sovitica no perodo de 1920-1950, at ser severamente atacada pela interveno poltica de Stalin, que negava o carter de classe e de superestrutura da lngua.

    Ainda na lingustica sovitica, Bakhtin (e o chamado Crculo de Bakhtin) critica a perspectiva estruturalista abstrata que a perspecti-va saussureana , defendendo um enfoque da lngua na interao verbal historicamente contextualizada (seja num contexto imediato, seja num contexto social mais amplo). Nesse sentido, a mudana lingustica his-toricamente motivada pelos diferentes contextos de uso da lngua, que acabam conferindo diferentes sentidos mesma palavra. Assim, na viso de Bakhtin, as palavras no so neutras nem imutveis: no con-texto real de uso da lngua que determinada forma possui valor para o falante, sendo, nesse caso, um signo varivel e flexvel. bastante eluci-dativa a seguinte afirmao de Bakhtin (1988 [1929], p. 147): conforme a lngua, conforme a poca ou os grupos sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo especfico, v-se dominar ora uma forma, ora outra, ora uma variante, ora outra.

    Em sntese: foi no incio do sculo XX que comearam a germinar as sementes que viriam posteriormente depois de cerca de meio sculo de domnio de correntes estruturalistas a florescer e dar frutos no terreno fecundo da rea de estudos da linguagem que veio a ser conhecida como Sociolingustica. Assim que a partir da dcada de 60, como herana de Meillet, volta a ganhar fora a noo de lngua como fato social din-mico, cuja variao explicada pela mudana social, por foras externas, portanto. E como herana de Bakhtin se renova a perspectiva de que a lngua um fenmeno social cuja natureza ideolgica. Como j acen-tuamos anteriormente, o foco deste livro a Sociolingustica laboviana, abordagem que se ancora, historicamente, nas ideias de Meillet.

    Na disciplina de Lin-gustica Textual voc viu

    algumas contribuies de Bakhtin no campo dos

    gneros do discurso.

  • Captulo 01Breve histrico da Sociolingustica

    17

    Vamos nos situar, portanto, a partir de agora, no contexto da So-ciolingustica norte-americana. Esse campo do conhecimento tem uma estreita relao com a antropologia, com a sociologia e com a geografia lingustica.

    A associao com a antropologia chamada de etnolingusti-ca ou antropologia lingustica deve-se ao fato de a Sociolin-

    gustica estender a descrio e anlise da lngua para incluir as-

    pectos da cultura em que usada. Nesse mbito se insere, mais

    recentemente, a corrente denominada Sociolingustica Intera-

    cional, que considera a relao entre os interlocutores, o assunto

    etc. na anlise da conversao;

    A proximidade com a sociologia resulta na chamada sociologia da linguagem rea que investiga a interao entre esses dois

    aspectos do comportamento humano: o uso da lngua e a orga-

    nizao social do comportamento, ou seja, a organizao social

    do comportamento lingustico, seja em termos de usos, seja em

    termos de atitudes em relao lngua e aos usurios;

    A aproximao com a geografia lingustica, ou dialetologia, ou ainda geolingustica, deve-se ao interesse pela elaborao

    de atlas lingusticos; No Brasil, est sendo organizado o Atlas

    Lingustico do Brasil (ALIB), cujo objetivo descrever a realidade

    lingustica com vistas a traar a diviso dialetal do pas, tornando

    evidentes as diferenas regionais. - que, atravs de pesquisas de

    campo, mapeiam dados de diferentes regies, identificando e

    delimitando traos dialetais.

    Em suma, a Sociolingustica se ocupa de questes como: variao e mudana lingustica, bilinguismo, contato lingustico, lnguas mino-ritrias, poltica e planejamento lingustico, entre outras.

    A partir desse breve panorama histrico, passamos a tratar especi-ficamente de uma das vertentes da Sociolingustica: a Teoria da Varia-o e Mudana Lingustica.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    19

    2 A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicasLinguagem e sociedade esto ligadas entre si de modo inquestionvel.

    Mais do que isso, podemos afirmar que essa relao a base da constituio do ser humano (ALKMIN, 2001, p. 21).

    No captulo anterior, vimos que h diversas propostas no mbito da lingustica contempornea que rejeitam a abordagem associal dos estudos estruturalistas e gerativistas. De agora em diante, vamos dis-cutir com mais vagar sobre uma dessas propostas: a da Sociolingustica Variacionista, fundada principalmente sobre as pesquisas do linguista estadunidense William Labov (que, por sua vez, como vimos, se inspi-rou em certas ideias de Meillet). Neste captulo, apresentamos alguns dos principais conceitos tericos da proposta laboviana, que nos ajuda-ro a compreender qual exatamente o olhar sobre a lngua(gem) que ela assume bem como sobre a complexa relao entre lngua(gem) e sociedade , de que formas ela se ope a certas concepes (at hoje) vi-gentes em lingustica, e como ela se concretiza em uma anlise emprica de dados lingusticos.

    2.1 A proposta de William Labov

    Como j vimos, as duas abordagens tericas de maior projeo na lingustica, pelo menos at a dcada de 60, foram o estruturalismo e o gerativismo. De fato, a concepo estruturalista de lngua de Ferdinand de Saussure fez muito no sentido de elevar a lingustica posio de campo cientfico pleno, com objeto e mtodo definidos. Chomsky so-fisticou ainda mais os objetivos dessa cincia ao propor que a faculdade da linguagem um componente universal e inato da espcie humana, cujas regras poderiam ser descritas a partir da anlise das construes gramaticais (aceitveis) de lnguas diversas. No entanto, tanto estrutu-ralistas quanto gerativistas deixam de lado as possveis influncias ex-ternas (histricas, sociais, ideolgicas etc.) sobre a estrutura lingustica, assumindo uma perspectiva pela qual as regras e relaes internas dos

  • Sociolingustica

    20

    componentes da gramtica so suficientes para uma descrio adequa-da do objeto. Ademais, de acordo com essas propostas, o sistema a ser descrito pela lingustica era um construto homogneo, ou seja, no eram consideradas eventuais variaes ou influncias tpicas da fala sobre os elementos da lngua. Desse modo, a variabilidade (o fato de que pode haver mais que uma forma expressando o mesmo significado), o valor social das formas lingusticas e o estudo emprico das mudanas na ln-gua ficavam excludos da agenda.

    Padres Sociolingusticos (Sociolinguistic patterns), 1972, de William Labov.

    a partir desse contexto que se posiciona, desde a dcada de 60, o linguista William Labov, questionando e propondo um novo olhar sobre a estrutura das lnguas, e especialmente sobre os fenmenos da variao e da mudana lingusticas. Em seu livro Padres sociolingsti-cos (Sociolinguistic patterns, 1972), Labov apresenta os principais postu-lados tericos e a metodologia de trabalho emprico com a linguagem dessa nova proposta. Conforme j adiantamos inicialmente, a proposta terico-metodolgica de Labov surge como uma reao aos modelos saussureano e chomskiano.

    Labov critica os seguintes aspectos em Saussure:

    Como todos os falantes possuem um conhecimento da langue (que a parte social da linguagem), possvel estudar o aspec-to social da linguagem pela observao de um nico indiv-duo. No entanto, o estudo da parole (que a parte individual da linguagem) s pode ser feito pela observao dos indivdu-os interagindo linguisticamente, ou seja, pela observao da

    O social para Saussure corresponde simplesmen-te a multi-individual, sem

    nenhuma implicao de interao social.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    21

    linguagem em seu contexto social. A isso se chama paradoxo saussureano;

    Os fatos lingusticos so explicados atravs de outros fatos lin- gusticos. Trata-se do princpio da imanncia. Em outras pa-lavras, tudo o que acontece na lngua motivado e explicado por meio da prpria estrutura da lngua, pela atuao de foras internas, sem influncia de nenhuma fora externa;

    A fala s opera sobre um estado de lngua e as mudanas que ocorrem entre os estados no tm nesses nenhum lugar. O pri-meiro aspecto (estado de lngua) constitui a realidade verdadei-ra e nica. Os fatos evolutivos (diacrnicos) no so percebidos pela massa falante e no fazem parte do sistema da lngua, que esttico. Portanto, h um emparelhamento: de um lado, sin-cronia e fato esttico e, de outro, diacronia e fato evolutivo; am-bos os lados so mutuamente incompatveis.

    Viso de Labov:

    Labov critica a separao estabelecida por Saussure entre langue e

    parole e entre sincronia e diacronia, e tambm o fato de Saussure des-

    considerar os fatores externos lngua ao defini-la como um sistema

    de signos que estabelecem relaes entre si. Em ltima instncia, La-

    bov posiciona-se contra a primazia dos estudos imanentes da lngua.

    Em Chomsky, Labov critica, entre outros, os seguintes aspectos:

    O objeto da lingustica uma comunidade de fala abstrata, ho- mognea, composta por um falante-ouvinte ideal;

    Os dados lingusticos analisados correspondem s prprias in- tuies do linguista e/ou dos falantes sobre a linguagem. So eles que fazem julgamentos acerca da (a)gramaticalidade das sentenas, e esses dados intuitivos so usados na construo de teorias.

  • Sociolingustica

    22

    Viso de Labov:

    No existe uma comunidade de fala homognea, nem um falante-

    ouvinte ideal. Pelo contrrio, a existncia de variao e de estrutu-

    ras heterogneas nas comunidades de fala um fato comprovado.

    Existe variao inerente dentro da comunidade de fala no h dois

    falantes que se expressam do mesmo modo, nem mesmo um falan-

    te que se expresse da mesma maneira em diferentes situaes de

    comunicao.

    A busca por julgamentos intuitivos homogneos falha. Os linguis-

    tas no podem continuar a produzir teoria e dados ao mesmo tem-

    po. Para lidar com a lngua, preciso olhar para os dados de fala do

    dia-a-dia e relacion-los s teorias gramaticais o mais criteriosamen-

    te possvel, ajustando a teoria de modo que ela d conta do objeto.

    Qual , ento, a proposta da Teoria da Variao e Mudana Lingustica?

    O ponto fundamental na abordagem proposta por Labov a pre-sena do componente social na anlise lingustica. Com efeito, a So-ciolingustica se ocupa da relao entre lngua e sociedade, e do estudo da estrutura e da evoluo da linguagem dentro do contexto social da comunidade de fala. Veja que, ao eleger como objeto de estudo a estru-tura e a evoluo lingustica, Labov rompe com a relao estabelecida por Saussure entre estrutura e sincronia de um lado e histria evolutiva e diacronia de outro, aproximando igualmente a sincronia e a diacronia s noes de estrutura e funcionamento da lngua.

    Duas obras foram fundamentais para a proposio e consolidao desse novo programa de estudos: o texto Fundamentos empricos para uma teoria da mudana lingustica (Empirical foundations for a theory of language change), publicado em 1968 por Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (ou ainda WLH, 2006 [1968]), e o j mencio-nado Padres Sociolingusticos (Sociolinguistic Patterns), publicado por Labov em 1972. A partir de ento, Labov desenvolveu inmeros traba-lhos voltados para o estudo da lngua em seu contexto social, focalizan-

    Variao inerentePor variao inerente

    entende-se que, como o sistema lingustico

    heterogneo, (i) a variao uma pro-priedade regular do sistema; (ii) o falante

    tem competncia lin-gustica para lidar com

    regras variveis.

    Falaremos de comunidade de fala na seo 2.4.

    EvoluoNo mbito da Socio-

    lingustica, o termo evoluo equivale a

    mudana. No existe nenhum tipo de valo-rao associado: no

    est em jogo nenhuma avaliao positiva ou negativa as lnguas

    simplesmente mudam (nem para melhor, nem

    para pior). Aprofun-daremos a questo da

    mudana na Unidade C.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    23

    do especialmente a variao fonolgica na lngua inglesa. Seu grupo de pesquisa, sediado na Universidade da Pensilvnia/USA, tornou-se o centro irradiador dessa nova e instigante abordagem da lngua.

    Fundamentos empricos para uma teoria da mudana lingustica (Empirical foundations for a

    theory of language change).

    No Brasil, as pesquisas na rea da Sociolingustica laboviana tive-ram incio na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na dcada de 70, sob a orientao do professor Anthony Naro. Desde ento, as linhas de pesquisa que se ocupam da descrio de fenmenos variveis no portu-gus do Brasil (PB) se multiplicaram, espalhando-se pelas diferentes re-gies do pas. Na Universidade Federal de Santa Catarina, por exemplo, temos o Projeto VARSUL (Variao Lingustica Urbana na Regio Sul do Brasil), que conta com um banco de dados de fala de informantes da Regio Sul (Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) do pas, para o desenvolvimento de pesquisas sociolingusticas.

    2.2 Conceitos fundamentais

    2.2.1 Concepo de lngua como sistema heterogneo

    Na abordagem laboviana, vale lembrar que o fato de a variao ser inerente s lnguas est ligado diretamente noo de heterogeneidade as lnguas so sistemas heterogneos (e no homogneos conforme pos-tulam Saussure e Chomsky). Como, contudo, ainda se est falando em sistema, somos levados a assumir que a variao pode ser sistematizada. No se trata, portanto, de um caos lingustico. Uma evidncia de que a he-terogeneidade organizada ou sistematizada o fato de os indivduos de

    Variao o processo pelo qual duas formas podem ocorrer no mesmo con-texto lingustico com o mesmo valor referen-cial, ou com o mesmo valor de verdade, i.e., com o mesmo signifi-cado. Dois requisitos devem, pois, ser cum-pridos para que ocorra variao: as formas envolvidas precisam (i) ser intercambiveis no mesmo contexto e (ii) manter o mesmo significado.

    Falaremos mais sobre esse Projeto na Unidade D.

  • Sociolingustica

    24

    uma comunidade se entenderem, se comunicarem, apesar das variaes ou diversidades lingusticas. A partir desse postulado terico, a Teoria da Variao e Mudana fornece um instrumental metodolgico que permite analisar e sistematizar os diferentes tipos de variao lingustica.

    Ento, mesmo que a princpio se possa pensar que heterogeneidade implica ausncia de regras, a lngua dotada de heterogeneidade estru-turada, portanto h regras, sim. S que, enquanto a lngua concebida como sistema homogneo contm somente regras categricas, ou obri-gatrias, ou invariantes (i.e., que sempre se aplicam da mesma maneira por todos) a lngua concebida como um sistema heterogneo comporta, ao lado de regras categricas, tambm regras variveis.

    Um exemplo de regra que (at que se prove o contrrio) categri-ca no portugus a da colocao do artigo em relao ao nome que ele determina o artigo sempre aparece antes do nome; assim, dizemos a casa, mas nunca *casa a. O aspecto cujo comportamento a Sociolingus-tica busca desvendar quanto s regras variveis da lngua: as regras que permitem que, em certos momentos, em certos contextos lingusticos e sociais, falemos de uma forma, e, em outros contextos, de outra for-ma. O aparato terico e metodolgico da Sociolingustica surgiu, e at hoje vem sendo construdo para que, com cada vez mais preciso, essa realidade at ento posta de lado nos estudos lingusticos seja compre-endida, levando-se em conta a influncia no s dos elementos inter-nos da lngua, mas dos elementos externos a ela (o componente social mencionado acima).

    2.2.2 Variedade, variao, varivel, variante

    Mas que tal agora abordarmos alguns exemplos reais de variao no portugus brasileiro e vermos como esses princpios se aplicam a uma anlise concreta de dados? Aproveitaremos o ensejo para introduzir a voc mais alguns conceitos bsicos relacionados pesquisa sociolingustica.

    Um fenmeno varivel bastante perceptvel em nosso dia-a-dia de falantes do portugus o da alternncia entre os pronomes pessoais tu e voc para a expresso da segunda pessoa do singular. Muitos de vocs j se deram conta de que, dependendo da origem de uma pessoa, ou, por

    Os aspectos metodol-gicos da Sociolingustica

    sero abordados na Unidade D.

    A noo de regra varivel implica que no existe

    variao livre (como se v numa abordagem estrutu-ralista). Uma regra varivel

    relaciona duas ou mais formas lingusticas de

    modo que, quando a regra se aplica, ocorre uma das

    formas e, quando no se aplica, ocorre(m) a(s) outra(s) forma(s). A apli-cao ou no das regras

    variveis condicionada por fatores do contexto

    social e/ou lingustico.

    O mesmo voc que muitos ainda insistem em chamar de pronome de tratamen-

    to, listando-o no mesmo rol de vossa excelncia e

    vossa santidade...

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    25

    vezes, do grau de formalidade com o qual ela nos trata, podemos ouvi-la se referindo a ns tanto por tu quanto por voc. Se ainda no percebeu, preste ateno quando algum de outra regio do pas entrevistado na TV, ou mesmo quando voc (tu) conversa online com os tutores de uma disciplina ou com seus colegas de curso. As formas so diferentes, mas no h dvida de que ambas esto sendo usadas com o mesmo propsi-to: o de referir segunda pessoa do singular.

    O que ocorre a nada mais do que o fenmeno que vimos discu-tindo at agora: a variao lingustica. Para um sociolinguista, o fato de em uma comunidade, ou mesmo na fala de um indivduo, convive-rem tanto a forma tu quanto voc no pode ser considerado marginal, acidental ou irrelevante em termos de pesquisa e de avano de conhe-cimento. Como j vimos, a variao inerente s lnguas, e no compro-mete o bom funcionamento do sistema lingustico nem a possibilidade de comunicao entre falantes. De fato, palavras ou construes em va-riao, em vez de comprometerem o mtuo entendimento, so ricas em significado social, e tm o poder de comunicar a nossos interlocutores mais do que o significado representacional pelo qual disputam. As di-ferentes formas que empregamos ao falar e ao escrever dizem, de certa forma, quem somos: do pistas a quem nos ouve ou l (i) sobre o local de onde viemos, (ii) o quanto estamos inseridos na cultura letrada do-minante de nossa sociedade, (iii) quando nascemos, (iv) com que grupo nos identificamos, entre vrias outras informaes.

    essa realidade, acima descrita, que o sociolinguista tenta captar, sem qualquer tipo de ideia pr-concebida, tanto como linguista (acredi-tando, por exemplo, que a variao mero acidente na lngua, que no pode ser estudada com rigor e que o sistema a ser descrito est num plano mais abstrato que o da fala) quanto como cidado (acreditando, por exemplo, que um falante que diz ns vai tem menos capacidade de pensar e de se expressar do que o falante que diz ns vamos).

    Trata-se do que chama-mos de variao diatpi-ca ou regional e variao estilstica, conceitos que sero trabalhados na Unidade B.

    E essa postura aberta pesquisa e isenta de pre-conceitos, como veremos, uma das maiores contri-buies que a Sociolin-gustica tem a nos trazer quando trabalhamos com o ensino de lngua mater-na ou quando tentamos compreender (e comba-ter) o preconceito lingus-tico em nossa sociedade.

  • Sociolingustica

    26

    Esse o olhar sobre a lngua e sobre o fenmeno da variao que um

    sociolinguista adota ao trabalhar com dados reais (produzidos por fa-

    lantes reais, em uma comunidade real). Seu objetivo descobrir quais

    os mecanismos que regulam a variao; como ela interage com os ou-

    tros elementos do sistema lingustico e tambm da matriz social em

    que ocorre; e como que ela pode levar mudana na lngua. Nas pala-

    vras da sociolinguista brasileira Maria Cecilia Mollica (2008, p. 11),

    Cabe Sociolingustica investigar o grau de estabilidade ou de

    mutabilidade da variao, diagnosticar as variveis que tm efei-

    to positivo ou negativo sobre a emergncia dos usos lingusticos

    alternativos e prever seu comportamento regular e sistemtico.

    E quais so os meios pelos quais chegamos a esses objetivos? Bem, a pesquisa sociolingustica envolve etapas metodolgicas bastante refina-das, com o fim de melhor colherem-se os dados que serviro como fonte das anlises e de melhor trat-los para que cheguemos a resultados e con-cluses confiveis. A Unidade D deste livro-texto ser dedicada exclusiva-mente a isso, motivo por que suspenderemos, por ora, essa discusso.

    Retomemos nosso exemplo de variao para estabelecermos uma distino importante no que concerne terminologia empregada nos estudos de variao: a distino entre varivel e variantes. No exemplo acima, em que mencionamos a variao entre os pronomes tu e voc, comumente chamamos de varivel o lugar na gramtica em que locali-zamos variao, de forma mais abstrata; no caso, a varivel com a qual estamos lidando a da expresso pronominal da segunda pessoa do sin-gular. Chamamos de variantes dessa varivel as formas individuais que disputam pela expresso da varivel no caso, os pronomes tu e voc.

    Outro exemplo de varivel no sistema pronominal do PB a ex-presso da primeira pessoa do plural, cujas variantes so os pronomes ns e a gente.

    Lembre-se: varivel corresponde a um aspecto ou categoria da lngua

    se encontra em variao; variantes so as formas individuais que con-

    correm em uma varivel

    Existe ainda o conceito de variedade, que no deve ser confundido com o de varivel ou o de variante:

    variedade representa a fala de uma comuni-

    dade de modo global, considerando-se todas

    as suas particularidades, tanto categricas quanto variveis; o mesmo que

    dialeto ou falar.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    27

    Em um caso de variao, as formas variantes costumam receber valores distintos pela comunidade. Trabalharemos com o significado social das variantes logo mais, mas por enquanto vale estabelecermos a diferena entre as variantes padro e no-padro. As variantes pa-dro so, grosso modo, as que condizem com as prescries dos manuais de norma padro; j as variantes no-padro se afastam desse modelo. Mesmo que no seja a variante mais usada por uma comunidade, a va-riante padro , em geral, a variante de prestgio, enquanto a no-pa-dro muitas vezes estigmatizada por essa comunidade pode haver comentrios negativos forma ou aos falantes que a empregam. Ade-mais, as variantes padro tendem a ser conservadoras, fazendo parte do repertrio lingustico da comunidade h mais tempo, ao passo que as variantes no-padro tendem a ser inovadoras na comunidade.

    Mais um aspecto importante relacionado variao o fato de que esse fenmeno no est limitado a um dos nveis da gramtica: encon-tramos variao no nvel fonolgico, bem como no morfolgico, no sin-ttico, no lexical e no discursivo.

    No nvel fonolgico, note que podemos realizar certos ditongos tan-to de maneira plena quanto reduzida, como em caixa/caxa e em outro/otro; no morfolgico, encontramos variao, por exemplo, na marcao do infinitivo dos verbos (andar/and, beber/beb etc.); na sintaxe, encon-tramos variao na realizao das oraes relativas (Esse o livro de que eu gosto Esse o livro que eu gosto Esse o livro que eu gosto dele); no discursivo, um estudo com dados de Florianpolis (VALLE, 2001) mostra o uso alternado dos marcadores discursivos sabe?, no tem? e entende? na varivel requisito de apoio discursivo; no nvel do lxico, vem logo mente o exemplo do aipim-mandioca-macaxeira, com distintos traos regionais, como h vrios outros. Em suma, como vimos constatando, a variao lingustica no s um fenmeno inerente s lnguas naturais, mas tambm se manifesta em qualquer nvel de anlise que se tome.

    Agora que j tratamos dos conceitos de varivel e de variantes, e que vimos como estas se encontram em todos os nveis da gramtica, passemos ao exame das armas de que se equipam as formas varian-tes de uma varivel na disputa pela expresso de um significado: os condicionadores lingusticos e sociais.

    Ocorrem, ainda, variveis no que podemos chamar de interfaces de nveis, como o nvel morfossint-tico e o morfofonolgico. Mais sobre isso ser discu-tido na Unidade B.

    Apresentamos aqui ape-nas alguns exemplos, j que a Unidade B trabalha-r com essa dimenso da variao lingustica.

  • Sociolingustica

    28

    No, eles no so produtos para o cabelo. Os condicionadores em um caso de variao so os fatores que regulam, que condicionam nossa escolha entre uma ou outra variante. o controle rigoroso desses fatores que permite ao linguista sugerir em que tipo de ambiente, tanto lingus-tico quanto extralingustico, uma variante tem maior probabilidade de ser escolhida em detrimento de sua(s) rival(is).

    Os condicionadores ajudam o analista a delimitar quais exatamente so os contextos mais propcios para a ocorrncia das variantes em es-tudo. Eles so divididos em dois grandes grupos, em funo de serem mais ligados a aspectos internos ao sistema lingustico ou externos a ele. No primeiro caso, so tambm chamados de condicionadores lingusti-cos; exemplos so a ordem dos constituintes, a categoria das palavras ou construes envolvidas, aspectos semnticos etc. No segundo caso, so tambm chamados de condicionadores extralingusticos ou sociais; e, entre eles, os mais comuns so o sexo/gnero, o grau de escolaridade e a faixa etria do informante.

    Com o controle refinado da frequncia de ocorrncia de formas variantes, e em funo dos condicionadores lingusticos e sociais sele-cionados para nossa anlise, podemos traar um quadro respaldado por resultados quantitativos precisos de quais condicionadores favorecem ou desfavorecem a ocorrncia das formas em considerao.

    Para que vejamos isso de modo mais claro, retomemos nosso exem-plo da variao entre tu e voc. Que aspectos do prprio sistema lingus-tico e/ou da sociedade que o emprega poderiam influenciar na escolha de uma das duas formas?

    Como j adiantamos, a regio de origem do falante parece ser deci-siva nesse caso: h diversas regies do pas cujos falantes nativos falam apenas voc, outras em que o tu predominante, e outras em que as duas formas convivem, havendo uma diferenciao no uso por outros fatores o grau de intimidade entre os interlocutores, por exemplo. Temos a dois condicionadores externos ao sistema lingustico, os quais, como j deve ter ficado claro, de modo algum so rejeitados em uma pesquisa sociolingustica; pelo contrrio, eles so mais possibilidades disponveis ao analista para que este desvende os mecanismos da variao.

    Condicionadores lin-gusticos e sociais

    Os condicionares lin-gusticos e sociais so tambm tratados por

    variveis indepen-dentes (ou grupos de

    fatores), enquanto a varivel propriamente dita tambm pode ser

    tratada por varivel dependente.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    29

    Bem, e quanto aos fatores intrnsecos ao sistema lingustico? Que condicionadores internos poderamos controlar em um estudo dessa varivel? Um dos diversos estudos sobre a variao entre tu e voc no portugus do Brasil, o de Lucca (2005), controlou como fatores inter-nos, por exemplo, o tempo e o modo do verbo a que o pronome se refere e o tipo semntico do pronome, se genrico ou especfico.

    Pesquise!

    a) Pense um pouco em como voc percebe esse caso de variao (tu/

    voc) e sugira outros condicionadores lingusticos e sociais para o

    emprego de cada forma.

    b) Pense tambm em outras variveis e sugira condicionadores rele-

    vantes para a escolha de cada variante.

    c) Compartilhe suas reflexes com os colegas!

    essa, em suma, a postura investigativa que se adota no trabalho com a Sociolingustica. Com ela, identifica-se uma varivel no uso cor-rente da lngua de uma comunidade; identificam-se, a seguir, as variantes dessa varivel; a partir das hipteses que elaboramos quanto aos fatores que possam estar em jogo no favorecimento ou desfavorecimento das variantes, prossegue-se coleta e, posteriormente, anlise de dados, para a confirmao ou refutao de nossas hipteses iniciais. Mas essa somente a sntese. Como voc j deve estar percebendo, uma pesquisa sociolingustica deve ir muito alm disso se quiser efetivamente escla-recer um pouco mais sobre a complexa relao que h entre lngua e sociedade atravs do estudo da variao e da mudana lingustica.

    A Sociolingustica assume, portanto, que existe uma forte corre-lao entre os mecanismos internos da lngua e fatores externos a ela, tanto de uma ordem micro, envolvendo nosso grau de contato e de identificao com os grupos com os quais interagimos no dia-a-dia, quanto de uma ordem macro, relacionada a uma estratificao social mais ampla.

  • Sociolingustica

    30

    Sntese da seo:

    necessrio aprender a ver a linguagem tanto de um ponto de vis-

    ta diacrnico como de um ponto de vista sincrnico como um ob-

    jeto possuidor de heterogeneidade sistemtica. Isso significa que:

    a lngua um sistema heterogneo, dotado de variao;

    sendo um sistema, a lngua constituda por um conjunto estru- turado de regras;

    alm de regras categricas, existem regras variveis, que so inerentes ao sistema;

    as regras variveis podem ser mais ou menos aplicadas, depen- dendo do ambiente lingustico e/ou social;

    explicaes para as escolhas dos falantes por uma ou outra va- riante lingustica so buscadas pelo controle de fatores condi-

    cionadores (variveis independentes);

    a natureza do sistema probabilstica, o que pressupe o em- prego de tcnicas quantitativas para a observao das regulari-

    dades que o regem.

    Nas sees a seguir, continuaremos tratando de alguns conceitos bsicos da Sociolingustica Variacionista. Entram em jogo, a partir de agora, o significado social das formas variantes, os diferentes tipos de variveis que podemos ter a partir desse significado, a (um tanto po-lmica) definio de comunidade de fala e o modo como todo o arca-bouo terico que vimos apresentando se presta a uma questo bastante pertinente, que escapa s fronteiras da pesquisa acadmica e lana luz sobre um problema social: a do preconceito lingustico.

    2.3 Significado social das formas variantes

    Prosseguimos nosso contato inicial com a Sociolingustica reto-mando uma questo que j foi apresentada a voc h alguns semestres, na disciplina de Estudos Gramaticais. Trata-se do valor (ou significado)

    Releia as pginas 51-53 de GRSKI, Edair Maria; ROST,

    Claudia Andrea. Introdu-o aos Estudos Grama-

    ticais. Florianpolis: LLV/CCE/UFSC, 2008.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    31

    social das formas variantes. Repetimos aqui o mesmo exemplo daquela disciplina, a fim de que tenhamos um ponto de partida conhecido para nossas reflexes. Considere as sentenas:

    Tu vai sair?

    A gente vamos sair.

    Ns vai sair.

    O que difere as trs quanto ocorrncia de um fenmeno varivel? A princpio, nada, pois em todas h manifestaes do mesmo fenme-no: o da concordncia varivel entre verbo e sujeito. No entanto, algo parece nos dizer que elas no so totalmente idnticas na manifestao desse fenmeno: para muitos pelo menos para muitos oriundos da Regio Sul do pas , as duas ltimas sentenas so menos aceitveis que a primeira, soam mais erradas. Isso reflete uma face da variao pela qual a Sociolingustica tambm se interessa: a do significado social das variantes. A concordncia tu vai, apesar de tambm no fazer parte da variedade padro do portugus, em certas regies j se encontra am-plamente difundida por diversas camadas socioeconmicas. J a gente vamos e ns vai ainda se encontram fortemente associadas a grupos de falantes especficos em nossa sociedade nomeadamente, os perten-centes a camadas com baixa renda e pouca escolaridade. Ou seja, no h nada intrnseco ao fenmeno de variao observvel nos trs exemplos acima que faa com que um seja melhor que o outro. O que distingue as sentenas o valor atribudo a um extrato da sociedade que usa (ou que imaginamos que usa) certas construes e no outras.

    Essa confuso entre fazer julgamento lngua e julgamento ao falante

    um dos fatores que permitem a existncia e a perpetuao do pre-

    conceito lingustico em nossa sociedade. Com o falso argumento de

    que uma construo , em si, errada, abre-se espao para que taxemos

    de ignorantes (entre outros adjetivos) os falantes que fazem uso dessa

    construo. Uma das contribuies da Sociolingustica justamente a

    de desmascarar esse argumento: incontveis pesquisas j confirma-

    ram que no h nada nas formas variveis de uma lngua que permita

    afirmar que umas so melhores ou mais corretas do que as outras.

  • Sociolingustica

    32

    Segue da, portanto, que o julgamento (ou, em termos mais claros, o

    preconceito) social, e geralmente parte de cima para baixo, ou seja,

    das camadas dominantes econmica e culturalmente para as cama-

    das dominadas. Dizer que tal pessoa ou tal grupo ignorante por-

    que fala de uma forma e no de outra apenas mais um mecanismo

    de afirmao e de perpetuao desse preconceito, que se manifesta

    como preconceito lingustico, mas que nunca deixou de ser social.

    Felizmente, no apenas para a manuteno do preconceito lin-gustico que se prestam os significados sociais da variao. Vimos ante-riormente que as formas da lngua no veiculam apenas seu significado denotacional; elas denunciam em grande medida quem somos: a regio de onde viemos, nossa idade, nossa insero na cultura dominante (atra-vs do grau em que dominamos a variedade padro), nossas atitudes em relao a determinados grupos... E nada mais adequado (e interessante!) que incorporar o valor do significado social de formas ao programa de estudos da Sociolingustica.

    Como veremos melhor mais adiante, o prestgio ou o estigma que uma comunidade associa a uma determinada variante tem o poder de acelerar ou de barrar uma mudana na lngua. Essa no uma afirma-o banal. Esperamos que ainda lhe esteja fresca na memria a breve histria dos estudos lingusticos que traamos no captulo 1. At poucas dcadas atrs, afirmava-se que a mudana no era passvel de estudo rigoroso, que no era perceptvel; e muito menos se considerava impor-tante buscar fora do sistema possveis explicaes para esse processo. Na abordagem sociolingustica, como podemos acompanhar, o quadro justamente o oposto.

    2.3.1 Esteretipos, marcadores e indicadores.

    Vamos adiante com nossas reflexes. Labov reconhece que h jul-gamentos sociais conscientes e inconscientes sobre a lngua. Com base no nvel de conscincia que o falante tem sobre determinada varivel, o autor distingue trs tipos de elementos:

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    33

    Os esteretipos so traos socialmente marcados de forma consciente. Alguns esteretipos podem ser estigmatizados so-cialmente, o que pode conduzir mudana lingustica rpida e extino da forma estigmatizada. Outros esteretipos podem ter um prestgio que varia de grupo para grupo, podendo ser positivo para alguns e negativo para outros;

    Exemplos de esteretipos

    /e/ tono final pronunciado como [e] (e no como []), como em leite quente forma encontrada na variedade paranaense e de parte do oeste catarinense e gacho;

    Consoantes /d/ e /t/ pronunciadas como [d] e [t] (e no como []diante de [], como em bom dia, titia! formas tpicas de variedades nordestinas;

    O fonema /l/ de encontros consonantais pronunciado como /r/, como em craro, Crudia forma associada a varieda-des rurais e/ou pouco escolarizadas e, portanto, socialmen-te estigmatizada, como vimos no texto de apresentao da disciplina.

    Os esteretipos so comumente explorados, com certo exagero, na composio de personagens de programas humorsticos, em piadas, e mesmo em novelas e em filmes.

    Os marcadores correlacionam-se s estratificaes sociais e estilsticas e podem ser diagnosticados em testes subjetivos. So traos lingusticos social e estilisticamente estratificados, que podem ser diagnosticados em certos testes de reao sub-jetiva embora o julgamento social seja inconsciente. Os resul-tados de alguns testes tm mostrado que, apesar de os falantes diagnosticarem certos usos como uma forma feia ou errada, isso no significa que no fazem uso dela. Muitas vezes, este uso se d inconscientemente.

    Na Unidade D sero apre-sentados a voc alguns testes de reao subjetiva.

  • Sociolingustica

    34

    Exemplos de marcadores

    O uso alternado dos pronomes tu e voc, verificado em certas regies

    do Brasil, apresenta variao estilstica e social: enquanto tu costuma

    ser usado para referir um interlocutor ntimo, familiar, voc usado

    como pronome de segunda pessoa quando o interlocutor um des-

    conhecido, ou uma pessoa mais velha; ou ainda, tu usado em regis-

    tros mais informais e voc em registros mais formais. O uso desses

    pronomes, em geral, no estigmatizado, mas est correlacionado

    a variveis estilsticas (grau de intimidade, por exemplo) e sociais

    (como a faixa etria dos falantes). Trata-se, pois, de marcadores.

    Os indicadores so elementos lingusticos sobre os quais ha-veria pouca fora de avaliao, podendo haver diferenciao social de uso dessas formas correlacionada idade, regio ou ao grupo social, mas no quanto a motivaes estilsticas. Em outras palavras, indicadores so traos socialmente estratifica-dos, mas no sujeitos variao estilstica, sem fora avaliativa, com julgamentos sociais inconscientes.

    Exemplos de indicadores

    Entre os indicadores podemos inserir, por exemplo, a monotonga-

    o dos ditongos /ey/ e /ow/ no portugus falado atual, em palavras

    como peixe/pexe, feijo/fejo, couve/cove, couro/coro isenta de

    valor social e estilstico.

    Reflita!

    A depender da regio, uma variante pode ser interpretada tanto como

    marcador quanto como esteretipo. Exemplos disso so as formas tu foi

    e vou ir. No Rio Grande do Sul, trata-se de marcadores e no de estere-

    tipos, pois no so estigmatizadas e marcam identidade local. Contudo,

    essa certamente no a situao em outras localidades. Como essas

    formas so avaliadas em sua regio?

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    35

    A classificao de variveis em esteretipos, marcadores e indica-dores uma ferramenta relevante para a Sociolingustica, pois nos auxi-lia a compreender, por exemplo, o processo da mudana lingustica e da escorregadia definio de uma comunidade de fala esta ser tratada na seo 2.4 e aquela, na Unidade C.

    2.3.2 A questo do preconceito lingustico

    Vimos at agora como a Sociolingustica surgiu em oposio a cer-tos princpios dos modelos hegemnicos da lingustica do sculo XX; como, atravs principalmente da figura de William Labov, a regulari-dade da variao e da mudana lingustica pde ser comprovada, e que o estudo dessa regularidade s teria a ganhar se passassem a ser consi-derados fatores no s internos, mas externos lngua. Assim, a partir da insero da Sociolingustica no quadro mais amplo de interesses da lingustica, fica atestada a ntima relao que existe entre lngua e socie-dade. E por causa dessa constatao a de que o estudo da lngua no pode prescindir, at certo ponto, do da sociedade que o acmulo em teoria e em pesquisas da Sociolingustica pode nos ajudar a compreen-der melhor um fenmeno social: o preconceito lingustico.

    Trata-se do que j adiantamos acima: dar vida ao preconceito lin-gustico julgar falantes ou grupos inteiros em uma comunidade pelas formas lingusticas que empregam (e essas formas geralmente so as que se afastam do padro). O argumento que h, em uma lngua, cons-trues corretas e incorretas, melhores e piores, e que os falantes que erram em suas escolhas ao falar e ao escrever, so, consequentemente, tambm imperfeitos, pessoas que ou desprezam ou que tm dificuldade em atingir o nvel em que s se empregam as construes aceitveis/corretas. A aceitao dessa ideia, e da noo de erro no uso lingustico que est por trs dela, autoriza a excluso social gerada pelo preconceito lingustico, uma excluso que, em muitos casos, bastante dura.

    Entre os mitos que compem o discurso do preconceito lingustico est o de que o portugus uma lngua muito difcil, mesmo para seus falantes nativos; o de que seu domnio uma tarefa rdua, atingida ape-nas por poucos intelectuais, professores e escritores; o de que, por essa razo, a maioria de ns, brasileiros, no sabe portugus, ou o sabe de

  • Sociolingustica

    36

    modo parcial, incompleto e incorreto. Ora, nenhum de ns precisa ir muito longe para falsear todos esses mitos que alimentam o preconceito (e o bolso de muitos autores de obras do tipo no erre mais).

    Com tudo que j foi trabalhado nesta disciplina e ao longo do cur-so, temos base suficiente para defender que o portugus no pode ser uma lngua difcil para seus falantes nativos, simplesmente porque essa a lngua materna deles, e a eles deve ser creditado todo o conhecimen-to das regras que compem a lngua. O que se defende como lngua, a, a norma padro do portugus, aquele ideal de lngua prescrito nas gramticas e nos livros didticos, adotado pelo ensino tradicional de lngua materna e por diversos espaos na mdia. Esquecem-se esses es-paos, infelizmente, da realidade heterognea da lngua, de como ela plural o suficiente para dar conta dos mais diversos matizes semnticos, pragmticos e sociais de nossa realidade.

    Lembrando-nos do conceito de significado social dos itens da ln-gua, podemos imaginar que, em uma sociedade estratificada em classes como a nossa, mesmo que o preconceito no fosse amparado e difundido pelo ensino e pela mdia, ainda assim, talvez houvesse algum tipo de va-lorao social estigmatizadora sobre as formas empregadas pelas classes mais baixas, ou por quem no teve acesso escolarizao plena. Contu-do, o preconceito lingustico vigora firme e sem ser percebido como tal em nossa sociedade, e muitos passam suas vidas acreditando que, de fato, no so capazes de se expressar, que falam uma lngua toda errada, e que nunca tero acesso a alguns de seus direitos mais bsicos como cidados, como o direito justia, incluso e livre defesa de suas posies.

    E, nesse quadro, em que lugar somos colocados ns, especialistas no estudo da linguagem? Estamos em um lugar que nos permite saber o que acontece atravs da disseminao do preconceito lingustico e quais os mecanismos pelos quais ele se manifesta. Agora, o que podemos fazer com esse conhecimento?

    Este no um livro-texto de poltica; no podemos nem queremos que esta introduo sociolingustica se destine a qualquer tipo de mili-tncia. Entretanto, fazemos a voc um convite reflexo, principalmen-te neste momento em que lidamos com esta subrea dos estudos lingus-ticos que se detm na complexa relao entre lngua e sociedade.

    Releia sobre o conceito de norma e sobre seu papel

    como contedo do ensino de lngua portuguesa em

    GRSKI, Edair Maria; ROST, Claudia Andrea. Introdu-

    o aos Estudos Grama-ticais. Florianpolis: LLV/

    CCE/UFSC, 2008.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    37

    Para refletir!

    O conhecimento que temos acumulado sobre a sistematicidade da va-

    riao nas lnguas e sobre os danos ao indivduo e a camadas inteiras

    de uma comunidade por conta da valorao social que recai sobre for-

    mas variantes no nos torna equipados para uma postura, como pro-

    fessores e como cidados, mais aberta heterogeneidade da lngua, e,

    em ltimo grau, da sociedade? De que modo isso poderia se efetivar?

    2.4 As noes de comunidade de fala e de redes sociais

    A Teoria da Variao e Mudana trata da estrutura e evoluo da lngua dentro do contexto social da comunidade de fala, ou seja, nes-se espao que se d a interao entre lngua e sociedade. Logo, a co-munidade de fala, e no o indivduo que interessa mais ao pesquisador sociolinguista. De acordo com Labov, na comunidade de fala que a variao e a mudana tomam lugar. Cumpre, ento, tentarmos definir esse termo. Ocorre que, na busca por uma conceituao, se percebe que, por um lado, no h um consenso entre os estudiosos da rea acerca do assunto; e, por outro, no se trata de uma noo fcil de ser caracteriza-da. Vamos nos ater, aqui, a definies de dois autores: Labov e Guy.

    Segundo Labov, uma comunidade de fala no pode ser concebida como um grupo de falantes que usam todos as mesmas formas; ela mais bem definida como um grupo que compartilha as mesmas normas a respeito da lngua (2008 [1972], p. 188). Ainda de acordo com o autor, os membros de uma comunidade de fala compartilham um conjunto comum de padres normativos, mesmo quando encontramos variao altamente estratificada na fala real (LABOV, 2008 [1972], p. 225).

    Das afirmaes acima, depreendemos que o principal critrio labo-viano para definir comunidade de fala no o uso lingustico compar-tilhado pelos falantes, mas suas atitudes semelhantes diante dos fatos lingusticos. Nesse caso, preciso considerar que a uniformidade das normas compartilhadas pelo grupo ocorre quando a varivel lingustica

  • Sociolingustica

    38

    possui marcas sociais evidentes aos falantes. Isso significa que eles de-vem ter conscincia desses usos e ser capazes de emitir juzos de valor sobre as formas lingusticas variveis. Normalmente, ao grupo de pres-tgio, cuja fala dominante na escola, no trabalho, na mdia etc., so atribudos valores positivos (ex.: a fala bonita, correta etc.); ao grupo socialmente desprestigiado, em contrapartida, costumam ser vincula-dos valores negativos (ex.: a fala feia, errada etc.).

    Essa atribuio consciente de um valor social s formas da lngua define algo que vimos h pouco: os esteretipos. Por isso, a essas alturas, voc j deve estar se perguntando o seguinte: as normas em relao lngua que so compartilhadas pelos falantes s dizem respeito aos es-teretipos? Uma comunidade de fala delimitada com base em estere-tipos? E quanto s variveis que no so necessariamente reconhecidas pelos falantes? Essas indagaes so bastante pertinentes, pois tocam num ponto relativamente frgil da noo laboviana de comunidade de fala.Bem, vimos na seo 2.3.1 que, apesar de os esteretipos serem mar-cados com uma valorao social consciente, os marcadores tambm so, de certa forma, avaliados na matriz social. Assim, podemos inferir que as normas compartilhadas pelos falantes se associam aos esteretipos e aos marcadores, os quais podem ser percebidos pelos falantes e identifi-cados por meio de tcnicas que testam a avaliao subjetiva da lngua.

    Considerando a uniformidade do comportamento dos falantes quanto a normas sociais em relao lngua, Labov busca uma certa homogeneidade na definio de comunidade de fala, j que ela no vai ser caracterizada pelas regras lingusticas presentes na fala dos indivdu-os as quais so altamente variveis , e sim pelas atitudes dos falantes em relao s regras e formas lingusticas que so mais uniformes.

    Figueroa (1994) faz uma crtica ao modelo laboviano, afirmando que a falta de uma vinculao clara entre indivduo e comunidade de fala torna difcil a observao dos dados lingusticos, pois embora eles sejam provenientes de falas individuais, o comportamento lingustico deve, na proposta de Labov, ser visto no grupo. De fato, na teoria laboviana, o in-divduo um ser estratificado, isto , um tipo social caracterizado por um conjunto de fatores: sexo, idade, escolaridade, profisso etc. Assim, inte-ressa menos ao pesquisador sociolinguista se o informante que fornece os

    Essa questo do valor social das formas lingusti-cas, j vista nesta Unidade, ser ainda retomada mais

    adiante, na Unidade C, quando for apresentado o

    princpio da avaliao.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    39

    dados Joo, Maria ou Jos; o que interessa mais identificar o tipo social: indivduo do sexo masculino, situado na faixa etria de 26 a 40 anos, com grau de escolaridade correspondente ao ensino mdio, nascido e residen-te na zona urbana da cidade tal; ou indivduo do sexo feminino, com ida-de entre 15 e 25 anos, com nvel de escolaridade fundamental, nascido e residente na zona rural da cidade tal. Em outras palavras, os indivduos so identificados por pertencerem a determinadas clulas sociais.

    Outras questes so suscitadas em relao ao modelo laboviano, como a seguinte: existe um nmero determinado de formas lingusticas variveis frente s quais os falantes teriam uma atitude uniforme que per-mite a identificao de uma comunidade de fala? Essa questo e aquelas anteriormente levantadas mostram a dificuldade que encontramos na ope-racionalizao da noo de comunidade de fala nos moldes labovianos.

    Percebendo as dificuldades ligadas a essa noo, o sociolinguista Gregory Guy parte da concepo laboviana de comunidade de fala e a amplia. Guy (2001) considera que a comunidade de fala se constitui a partir de trs critrios:

    Os falantes devem compartilhar traos lingusticos que sejam 1) diferentes de outros grupos;

    Devem ter uma frequncia de comunicao alta entre si;2)

    Devem ter as mesmas normas e atitudes em relao ao uso da 3) linguagem.

    Como se pode notar, apenas o terceiro critrio acima coincide com a proposta de Labov. Guy amplia os elementos caracterizadores de uma comunidade de fala ao considerar tambm o compartilhamento de tra-os lingusticos identificadores de um grupo social e a frequncia de comunicao entre os falantes.

    Em sntese: a noo de comunidade de fala recobre tanto aspec-

    tos sociais quanto lingusticos, pois envolve atitudes/normas sociais

    compartilhadas pelos falantes que, por sua vez, compartilham ca-

    ractersticas lingusticas que os diferem de outros grupos sociais.

    Essa propriedade do mo-delo laboviano central na composio de bancos de dados de fala e na metodologia da pesquisa sociolingustica. Trabalha-remos mais com a estrati-ficao da comunidade de fala na Unidade D.

  • Sociolingustica

    40

    No obstante os problemas apontados no que se refere a estabelecer as fronteiras de uma comunidade de fala, essa noo tem sido utiliza-da nas pesquisas sociolingusticas. Por exemplo, na cidade de Floria-npolis (SC), o Projeto VARSUL dispe de entrevistas realizadas com informantes nascidos e residentes na zona urbana de Florianpolis, e tambm com informantes nascidos e residentes no Ribeiro da Ilha e na Barra da Lagoa duas comunidades pesqueiras no urbanas com caractersticas scio-histricas e geogrficas diferenciadas. Nesse caso, dispomos de dados lingusticos de trs comunidades de fala em Floria-npolis. Por outro lado, se tomarmos amostras de fala de indivduos de Curitiba (PR), Florianpolis (SC) e Porto Alegre (RS), tambm estare-mos comparando trs comunidades de fala, s que dessa vez correspon-dentes s capitais da Regio Sul do Brasil. E assim por diante.

    A pesquisa de campo sobre a fala das comunidades traz importantes contribuies para a descrio do portugus brasileiro, pois podemos ir compondo o mosaico que representa os diferentes falares medida que novas pesquisas vo sendo feitas nas diferentes regies.

    Vimos acima que um dos critrios considerados por Guy a fre-quncia de comunicao (alta ou baixa) entre os falantes. Esse critrio remete ideia de redes sociais, noo que apresentamos a seguir, to-mando como referncia os trabalhos de Milroy.

    Redes sociais so redes de relacionamento dos indivduos estabele-cidas na vida cotidiana. Essas redes variam de um indivduo para outro e so constitudas por ligaes de diferentes tipos, envolvendo: graus de parentesco, amizade, ocupao (ambiente de trabalho) etc. Quanto maior o nmero de pessoas que se conhecem umas s outras numa certa rede, mais alta ser a densidade dessa rede; quanto menor o nmero de pessoas, mais baixa ser a densidade da rede. Os indivduos que se rela-cionam entre si em diversas situaes (ex.: parentes e vizinhos, parceiros no trabalho e no lazer) estabelecem redes multiplexas; j os indivduos que se relacionam de uma nica maneira estabelecem redes uniplexas.

    A noo de redes tem sua origem na rea da antropologia social, sendo dependente das estruturas social, econmica e poltica mais am-plas. Uma anlise sociolingustica baseada em redes sociais procura cap-tar a dinmica dos comportamentos interacionais dos falantes. Pesquisas

    Lesley Milroy uma socio-linguista americana que

    se interessa por aspectos dialetolgicos e ideolgi-

    cos de variedades urbanas e rurais, com nfase na noo de redes sociais.

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    41

    apontam que redes de alta densidade e multiplexas tendem a manter seu dialeto e a se mostrar resistentes influncia de valores externos, em ra-zo dos fortes laos de solidariedade existentes entre os indivduos e da identificao dos mesmos com os valores sociais do grupo. Assim as re-des sociais densas so vistas como fatores conservadores fortes, freando a mudana lingustica. O contrrio ocorre com as redes sociais frouxas.

    ideia de rede social se associam tambm os conceitos de localis-mo e mobilidade. O localismo tem a ver com o sentimento do indivduo em relao ao local em que vive: ele o valoriza socialmente, demons-trando um sentimento de pertencer quele lugar, reforando valores culturais e lingusticos da comunidade. J a mobilidade diz respeito ao grau de deslocamento dos indivduos a partir de seu local de origem. Quanto maior for a mobilidade, mais os indivduos estaro sujeitos a adotar valores de outros grupos.

    A utilizao de redes sociais possibilita o estudo de pequenos gru-pos sociais, como grupos tnicos minoritrios, migrantes, populaes rurais etc., favorecendo a identificao das dinmicas sociais que moti-vam a mudana lingustica.

    Labov tambm reconhece a importncia de se trabalhar com re-des sociais, salientando aspectos da metodologia utilizada: realizao de vrias entrevistas individuais, participao do pesquisador na esfera so-cial do grupo e perguntas individuais sobre as redes sociais de relaes desses falantes. Segundo o autor, estudos de pessoas inseridas em sua rede social nos permitem grav-las conversando com quem elas geral-mente falam amigos, famlia e colegas de trabalho (LABOV, 2001, p. 326). Esse tipo de pesquisa oferece resultados bastante relevantes para se identificar as causas e o mecanismo social da mudana lingustica, especialmente quanto ao papel dos lderes da mudana pessoas que ocupam o centro de suas respectivas redes sociais e que seriam o vecu-lo de expanso de caractersticas dessas redes para outros locais. Alm disso, permite a observao de dados lingusticos mais naturais do que aqueles obtidos numa interao entrevistador-entrevistado metodolo-gia que conheceremos na Unidade D.

    Tanto o trabalho com comunidades de fala como o trabalho com redes sociais apresentam algumas limitaes. O primeiro, por desconsi-

  • Sociolingustica

    42

    derar o indivduo priorizando o tipo social estratificado; o segundo, pela dificuldade em se levantar e sistematizar todos os grupos de interao em uma comunidade, alm de contemplar um nmero reduzido de in-divduos. O ideal, em termos de metodologia de pesquisa, seria unir as duas abordagens, considerando tanto as estratificaes vinculadas ori-gem e classe social (sexo, idade, escolaridade, etnia, profisso), como as redes sociais a que os indivduos escolhem pertencer, as quais operam como mecanismos normatizadores.

    Antes de concluirmos esta seo, convm mencionar ainda, breve-mente, a noo de comunidade de prticas: um conjunto de indivdu-os negociando e aprendendo prticas que contribuem para a satisfao de um objetivo comum (MEYERHOFF, 2004, p.530). Exemplificando: reunies de pais e professores, rotinas familiares e escolares, comunida-de de hackers, entrevistas mdicas, comunidade de pescadores etc. As comunidades de prtica dizem respeito a prticas sociais compartilha-das por indivduos que se renem regularmente em torno de uma meta comum, e envolvem desde crenas e valores compartilhados at formas de realizar certas atividades e de falar.

    Eckert (2000) prope o estudo da variao centrado nas comuni-dades de prtica, pois nelas as variantes lingusticas assumiriam signi-ficao social, havendo relao direta entre lngua e identidade. Nesse contexto, os estilos individuais, como marcas de identidades sociais, ocupariam um lugar central no estudo da variao lingustica. Esse en-foque se aproxima do de redes sociais (ambos de nvel micro e mais qualitativo) em oposio ao de comunidades de fala (de nvel macro e predominantemente quantitativo).

  • Captulo 02A Teoria da Variao e Mudana Lingustica: noes bsicas

    43

    Fechando a Unidade AComo fechamento de nossa primeira Unidade de estudos, nada

    melhor do que continuarmos a pensar sobre questes de linguagem e ensino de lngua portuguesa, considerando tudo o que estudamos at aqui. Deixamos a voc dois excertos para reflexo: o primeiro foi ex-trado dos Parmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Lngua Portuguesa (1997); o segundo, do livro Preconceito lingustico: o que , como se faz (2004), de Marcos Bagno.

    O problema do preconceito disseminado na sociedade em relao s

    falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo

    educacional mais amplo de educao para o respeito diferena. Para

    isso, e tambm para poder ensinar Lngua Portuguesa, a escola precisa

    livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma nica forma certa de fa-

    lar a que se parece com a escrita e o de que a escrita o espelho

    da fala e, sendo assim, seria preciso consertar a fala do aluno para

    evitar que ele escreva errado. [...] A questo no falar certo ou errado,

    mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as caractersticas do

    contexto de comunicao, ou seja, saber adequar o registro s diferen-

    tes situaes comunicativas. saber coordenar satisfatoriamente o que

    falar e como faz-lo, considerando a quem e por que se diz determinada

    coisa. saber, portanto, quais variedades e registros da lngua oral so

    pertinentes em funo da inteno comunicativa, do contexto e dos

    interlocutores a quem o texto se dirige. A questo no de correo da

    forma, mas de sua adequao s circunstncias de uso, ou seja, de utili-

    zao eficaz da linguagem: falar bem falar adequadamente, produzir

    o efeito pretendido. (BRASIL, 1997, p. 26).

    [...] a primeira campanha a ser feita, por todos na sociedade, a favor da

    mudana de atitude. Cada um de ns, professor ou no, precisa elevar o

    grau da prpria auto-estima lingstica: recusar com veemncia os ve-

    lhos argumentos que visem menosprezar o saber lingustico individual

    de cada um de ns. Temos de nos impor como falantes competentes de

    nossa lngua materna. Parar de acreditar que brasileiro no sabe portu-

    gus, que portugus muito difcil, que os habitantes da zona rural ou

    das classes sociais mais baixas falam tudo errado. Acionar nosso senso

    crtico toda vez que nos depararmos com um comando paragramatical

    e saber filtrar as informaes realmente teis, deixando de lado (e de-

    nunciando, de preferncia) as informaes preconceituosas, autoritrias

    e intolerantes. (BAGNO, 2004, p. 115).

    Bagno entende por co-mandos paragramaticais todo esse arsenal de livros, manuais de redao de empresas jornalsticas, programas de rdio e de televiso, colunas de jor-nal e de revista, CD-ROMS, consultrios gramaticais por telefone e por a afora (BAGNO, 2004, p. 76) que perpetuam os mitos do preconceito lingustico.

  • Sociolingustica

    44

    Leia mais!BAGNO, Marcos. Preconceito lingstico: o que , como se faz. So Pau-lo: Edies Loyola, 2004.

    Marcos Bagno atualmente um dos autores de mais destaque no Brasil na discusso do preconceito lingustico. Neste livro, ele discute com uma pos-tura bastante crtica alguns dos mitos que povoam o senso comum quanto lngua em nosso pas, e sugere caminhos para que quebremos, seja como pesquisadores, professores ou cidados comuns, o crculo vicioso composto pelo ensino tradicional, pelas gramticas tradicionais e pelos livros didticos que ajuda a perpetuar esse tipo de discriminao.

  • Unidade BAs dimenses interna e externa da variao lingustica

  • Objetivos da Unidade:

    Identificar os diferentes nveis de variao lingustica em sua dimenso interna;

    Reconhecer diferentes tipos de variao lingustica motivados por fatores externos lngua;

    Identificar fenmenos em variao no PB, nas dimenses ex- terna e interna.

    Nesta Unidade, vamos abordar as dimenses interna e externa da variao lingustica em dois captulos. Em primeiro lugar, apresentamos os diferentes nveis lingusticos em variao, desde lexicais e fonolgi-cos at sintticos e discursivos. Apontamos tambm alguns trabalhos em variao e certos condicionadores internos (e externos) que inibem ou favorecem o uso de uma ou outra forma lingustica (ou variante). Em seguida, verticalizamos o foco para a dimenso externa, trazendo exemplos de condicionadores no lingusticos e sua correlao com os aspectos internos da lngua.

  • Captulo 03A dimenso interna: nveis de variao lingustica

    47

    3 A dimenso interna: nveis de variao lingustica

    Para falar sobre a dimenso interna da variao lingustica, retoma-mos, inicialmente, a discusso que voc j viu na Unidade A sobre vari-vel lingustica e variantes. Na varivel expresso da primeira pessoa do plural, temos no portugus do Brasil duas variantes: os pronomes ns e a gente. Essas variantes so alternativas de se dizer a mesma coisa, que ofe-recem a mesma informao referencial. S o uso que marca uma forma (ns) em contraste com a outra (a gente) diferenciado. As duas formas esto disponveis no sistema pronominal do portugus do Brasil e so lar-gamente usadas em nossa sociedade. Alguns falantes podem usar as duas, marcando-as estilisticamente; outros podem usar apenas a mais antiga (ns) por causa de alguma restrio social, como faixa etria, por exem-plo, mas todos os falantes tm a habilidade de interpretar as duas formas e entender o significado da escolha de uma forma em vez de outra.

    O carter heterogneo do sistema lingustico produto, portanto, de duas ou mais formas em variao duas ou mais variantes que se alternam de acordo com condicionadores internos (lingusticos) e ex-ternos (extralingusticos) que motivam ou restringem a variao. Como j dissemos anteriormente, no se trata de um caos lingustico. H re-gras que regem a variao.

    Neste captulo vamos tratar da variao nos seguintes nveis lin-gusticos:

    Variao lexical;

    Variao fonolgica;

    Variao morfofonolgica, morfolgica e morfossinttica;

    Variao sinttica;

    Variao e discurso.

    Antes de comearmos a discutir cada um dos nveis, bom lembrar que a variao lexical constitui o campo predileto de estudos geolingus-ticos e, a fonologia, o campo predileto da pesquisa sociolingustica.

    Sugerimos que voc reto-me GRSKI, Edair Maria; ROST, Claudia Andrea. Introduo aos Estudos Gramaticais. Florianpolis: LLV/CCE/UFSC, 2008, e reveja os diferentes nveis de descrio gramatical que j foram explorados l. Alm disso, reveja os contedos das disciplinas de Fonologia, Morfologia e Sintaxe, pois eles sero acionados neste captulo.

  • Sociolingustica

    48

    Vamos iniciar este captulo com uma breve retrospectiva sobre os es-tudos variacionistas clssicos, de variao fonolgica, que abriram caminho para que o campo de investigao se ampliasse para o estudo dos diferentes nveis gramaticais, indo da fonologia sintaxe e da sintaxe ao discurso.

    3.1 Contextualizando...

    Foi no campo da fontica/fonologia que os estudos variacionistas comearam na dcada de 60, com os trabalhos de Labov em Marthas Vi-neyard, no estado de Massachusetts, e em trs lojas de departamento de Nova Iorque. Os fenmenos investigados foram a pronncia da primeira vogal dos ditongos /ay/ e /aw/ e a realizao do /r/ ps-voclico, respecti-vamente. Os resultados do primeiro estudo apontam para uma tendncia dos moradores de Marthas a centralizar a primeira vogal dos ditongos investigados, diferentemente da pronncia padro de Nova Inglaterra (re-gio nordeste dos Estados Unidos, onde se localiza o estado de Massachu-setts). No segundo estudo, a tendncia encontrada vai na direo da fala de prestgio dos nova-iorquinos, uma tendncia pronncia retroflexa do /r/, diferentemente da forma conservadora da dcada de 30. Em ambos os estudos fatores extralingusticos que se revelaram significativos. A dife-rena de uso est relacionada ao significado social e/ou estilstico.

    Calvet (2002, p. 96) diz que a maioria dos estudos de variao inci-de sobre os sons da lngua porque as variaes nesse nvel so ao mesmo tempo mais evidentes e mais fceis de descrever. Afinal, os fonemas so unidades mnimas distintivas, no dotadas de significao. Logo, a vari-vel fonolgica no tem significado referencial.

    S a partir da dcada de 70 que alguns estudos de variao se voltam a campos diferentes da fonologia. E, junto deles, surgem mui-tos questionamentos e dvidas sobre a aplicabilidade da teoria da va-riao, e, mais amplamente, de tcnicas quantitativas para o estudo de fenmenos fora do campo da fonologia. A transferncia dos mtodos de anlise para alm do nvel fonolgico coloca problemas com relao ao requisito de mesmo significado. Lembre-se (cf. Unidade A) que h dois requisitos para que as formas lingusticas sejam consideradas variantes de uma mesma varivel: (i) devem ter o mesmo significado e (ii) devem ser intercambiveis no mesmo contexto.

    No captulo 4, faremos uma resenha dos dois tra-balhos de Labov, conside-

    rando, em especial, essa correlao.

  • Captulo 03A dimenso interna: nveis de variao lingustica

    49

    Sobre uma possvel ampliao dos nveis de anlise, merece desta-que a polmica discusso travada por Lavandera (1977) e Labov (1978). Vamos explicar essa polmica mais detalhadamente a voc.

    O primeiro trabalho de variao sinttica de que se tem notcia de Weiner e Labov (1983 [1977]). Os autores realizaram uma pesquisa quantitativa sobre as construes ativas e passivas do ingls, testando fa-tores externos (estilo, sexo, classe, etnia, idade) e fatores internos (status informacional, paralelismo estrutural). A varivel investigada era cons-tituda das seguintes variantes: construo passiva sem agente versus construo ativa com pronome sujeito genrico. Ao analisarem seus resultados, verificaram que a escolha de uma variante ou de outra no era socialmente motivada, e que as formas alternantes mostravam-se condicionadas sintaticamente. Isso significaria dizer que a explicao da variao e (possvel) mudana passa, nesse caso, a ser apenas de ordem interna, relativa ao funcionamento da gramtica.

    Voc pode imaginar o impacto causado por esses resultados no mbito das pesquisas sociolingusticas? Note que nos estudos sobre va-riveis fonolgicas, mencionados anteriormente, os fatores extralingus-ticos que se revelaram significativos aqueles trabalhos apontaram uma correlao sistemtica entre o uso varivel e a estratificao social, correlao essa que era justamente o que a proposta terica de Labov pretendia evidenciar. Pois bem, os questionamentos comearam...

    Lavandera (1977) pe em xeque o trabalho de Weiner e Labov, le-vantando argumentos desfavorveis ao fato (i) de se estender o estudo variacionista para alm do nvel fonolgico e (ii) de fatores sociais e estilsticos no se mostrarem relevantes. Para a autora, casos como o da ativa/passiva no deveriam ser caracterizados como variao sociolin-gustica, j que no se mostram socialmente condicionados.

    Quanto a (i), Lavandera (1977) argumenta que, para alm do nvel fonolgico, cada forma tem um significado. Logo, se cada construo tem seu prprio significado, como possvel, indaga a autora, que haja variao, se por variao entendemos duas (ou mais) maneiras de dizer a mesma coisa? A questo que se levanta polmica: o que seria ter o mesmo significado dada a inexistncia de sinonmia absoluta nas ln-guas humanas?

  • Sociolingustica

    50

    Em resposta ao duplo questionamento de Lavandera, Labov (1978):

    alarga a noo de varivel lingustica para dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas e que tm o mesmo va-

    lor de verdade (entende