Livro Repressao Contexto Al

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Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro

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  • Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-Brasileiro

  • Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-BrasileiroEstudos sobre Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal

    REALIZAO

  • GOVERNO FEDERALMINISTRIO DA JUSTIACOMISSO DE ANISTIA

    Presidente da Repblica LUIZ INCIO LULA DA SILVA

    Ministro da JustiaLUIZ PAULO BARRETO

    Secretrio-ExecutivoRAFAEL THOMAZ FAVETTI

    Presidente da Comisso de AnistiaPAULO ABRO

    Vice-presidentes da Comissso de AnistiaEGMAR JOS DE OLIVEIRA SUELI APARECIDA BELLATO

    Secretria-Executiva da Comisso de AnistiaROBERTA VIEIRA ALVARENGA

    Coordenador de Cooperao Internacional da Comisso de AnistiaMARCELO D. TORELLY

    REPRESSO E MEMRIA POLTICA NO CONTEXTO IBERO-BRASILEIROEstudos sobre Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal

    Realizao:COMISSO DE ANISTIA DO MINISTRIO DA JUSTIACENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRAPROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO

    Organizadores:BOAVENTURA DE SOUSA SANTOSPAULO ABROCECLIA MACDOWELL DOS SANTOSMARCELO D. TORELLY

    R425rm

    Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-Brasileiro : estudos sobre Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal. -- Braslia : Ministrio da Justia, Comisso de Anistia ; Portugal : Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. 284 p.

    ISBN 978-85-85820-04-6

    1. Anistia, anlise comparativa. 2.Justia. 3. Autoritarismo, aspectos polticos. 4. Autoritarismo, aspectos psicolgicos. 5. Direitos humanos. I. Brasil. Ministrio da Justia (MJ). II. Ttulo. CDD 341.5462

    Ficha catalogr ca elaborada pela Biblioteca do Ministrio da Justia

    Os textos contidos nesta obra so produtos do Seminrio Internacional Represso e Memria Poltica no Contexto Luso-Brasileiro, realizado nos dias 20 e 21 de abril de 2009 no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal), no bojo do programa de cooperao internacional da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia da Repblica Federativa do Brasil com o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Os autores atualizaram seus textos com novas informaes e dados antes da edio nal da obra, em maio de 2010. As opinies, dados e informaes contidos nos textos desta publicao so de responsabilidade de seus autores, no caracterizando posies o ciais do Ministrio da Justia, salvo quando expresso em contrrio.

    Projeto Gr coRIBAMAR FONSECA

    CapaLUISA VIEIRA

    RevisoKELEN MEREGALI MODEL FERREIRAMARCELO D. TORELLY

  • OrganizadoresBOAVENTURA DE SOUSA SANTOSPAULO ABROCECLIA MACDOWELL SANTOSMARCELO D. TORELLY

    AutoresCECLIA MACDOWELL SANTOS DANIELA FRANTZFLVIA CARLETJOS CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHOKELEN MEREGALI MODEL FERREIRAMARCELO D. TORELLYMARIA NATRCIA COIMBRAMARIA PAULA MENESESPAULO ABRO ROBERTA CAMINEIRO BAGGIOSLVIA RODRIGUEZ MAESOTARSO GENROTATIANA TANNUS GRAMAVANDA DAVI FERNANDES DE OLIVEIRA

  • Sumrio

    ApresentaoLUIZ PAULO BARRETO Ministro de Estado da Justia 10

    Prefcio: Os caminhos das democracias e as memrias polticasBOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, PAULO ABRO, CECLIA MACDOWELL SANTOS E MARCELO D. TORELLY 12

    Memria Histrica, Justia de Transio e Democracia sem FimTARSO GENRO, PAULO ABRO 16

    Justia de Transio no Brasil: a dimenso da reparaoPAULO ABRO, MARCELO D. TORELLY 26

    Educao e Anistia Poltica: idias e prticas emancipatrias para a construo da memria, da reparao e da verdade no BrasilPAULO ABRO, FLVIA CARLET, DANIELA FRANTZ, KELEN MEREGALI MODEL FERREIRA, VANDA DAVI FERNANDES DE OLIVEIRA 60

    O dever de no esquecer como dever de preservar o legado histricoMARIA NATRCIA COIMBRA 88

  • Justia Transicional, Memria Social e Senso Comum Democrtico:notas conceituais e contextualizao do caso brasileiroMARCELO D. TORELLY 104

    Questes de Justia de Transio: a mobilizao dos direitos humanos e a memria da ditadura no BrasilCECLIA MACDOWELL SANTOS 124

    O Passado no Morre: a permanncia dos espritos na histria de MoambiqueMARIA PAULA MENESES 152

    Dever de Memria e a Construo da Histria Viva: a atuao da Comisso de Anistia do Brasil na concretizao do direito memria e verdadeJOS CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO 186

    Poltica del testimonio y reconocimiento en las comisiones de la verdad guatemalteca y peruanaSILVIA RODRGUEZ MAESO 228

    Justia de Transio como Reconhecimento: limites e possibilidades do processo brasileiroROBERTA CAMINEIRO BAGGIO 260

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    ApresentaoLUIZ PAULO BARRETOMinistro de Estado da Justia

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    A presente obra, um dos produtos do termo de cooperao estabelecido entre o Minist-

    rio da Justia do Brasil e a Universidade de Coimbra (Portugal) em 21 de abril de 2009,

    insere-se na poltica de ampliao dos parceiros internacionais da Comisso de Anistia,

    em gesto conjunta com a Agncia Brasileira de Cooperao do Ministrio das Relaes

    Exteriores do Brasil e o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento.

    A Comisso de Anistia do Ministrio da Justia vm empreendendo importantes iniciati-

    vas para o cumprimento do dever constitucional de reparao aos perseguidos polticos

    brasileiros e desenvolveu, nos ltimos trs anos, polticas educativas inovadoras como as

    Caravanas da Anistia e diversas publicaes visando difuso do conhecimento em ma-

    tria de anistia poltica, bem como polticas pblicas de memria, tais como o projeto do

    Memorial da Anistia Poltica e as Audincias Pblicas de homenagens individuais e cole-

    tivas e de debates sobre temas relevantes para a justia de transio no Brasil.

    Esta publicao constitui-se, portanto, em mais um passo para a internacionalizao dos

    debates sobre justia, reparao e memria, que vm permitindo tanto um significativo

    incremento de qualidade nas polticas empreendidas pelo Ministrio da Justia brasileiro,

    quanto das possibilidades do Brasil em cooperar para o desenvolvimento de polticas

    orientadas para a consolidao da democracia em outros pases do mundo. Com a inicia-

    tiva da publicao desta obra, avana-se nesta construo coletiva em mbito interna-

    cional.

    Braslia, maio de 2010.

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    Prefcio

    Os caminhos das democracias e as memrias polticasBOAVENTURA DE SOUSA SANTOSPAULO ABROCECLIA MACDOWELL SANTOSMARCELO D. TORELLY

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    Nos dias 20 e 21 de abril de 2009, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,

    em parceria com a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia da Repblica Federativa do

    Brasil e com o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, realizou o Seminrio

    Internacional Represso e Memria Poltica no Contexto Luso-Brasileiro, com o objeti-

    vo de intercambiar conhecimentos e experincias que vinham-se acumulando no Brasil e

    em Portugal sobre a temtica. Na mesma oportunidade, o Magnfico Reitor da Universida-

    de de Coimbra e o Excelentssimo Ministro de Estado da Justia do Brasil firmaram um

    acordo de cooperao, para permitir a continuidade da parceria entre as duas instituies,

    numa ao integrada que busca valorizar prticas e reflexes, fundindo-as em conheci-

    mentos aplicveis, da qual esta publicao apresenta-se como um primeiro resultado.

    Os dois dias de seminrio permitiram a realizao de diversas mesas temticas, que

    debateram estudos e iniciativas sociais e governamentais sobre represso e memria

    poltica no Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal. O intercmbio de experi-

    ncias resta agora relatado nesta obra coletiva, que traduz parte da riqueza das discus-

    ses tidas em Coimbra, permitindo a um pblico mais ampliado delas apropriar-se e

    comparar as diferentes perspectivas de anlise sobre variados contextos polticos e

    sociais. Nos doze textos aqui contidos encontram-se aproximaes teorticas e emp-

    ricas, partindo de diversos locais de fala que se cruzam em uma problemtica comum

    a todos os pases que viveram experincias autoritrias e/ou coloniais: como lidar com

    o passado e, mais que tudo, como realizar um trabalho pedaggico de memrias-

    justias sobre um passado traumtico, tendo como base a construo e o fortale-

    cimento da democracia presente.

  • 14

    Os estudos que integram esta obra assentam na ideia de que a democracia e a memria

    poltica no so resultado de um processo histrico linear, singular e acabado, com incio,

    meio e fim, mas sim uma construo social e poltica sem fim, a ser constantemente

    aprimorada, que envolve mltiplos atores polticos e sociais. Nesta perspectiva, falamos

    em democracias e memrias polticas, no plural, para destacar os diversos sujeitos

    sociais e polticos de memria e justia, as diferentes histrias de cada pas ou comuni-

    dade, os mltiplos caminhos e mecanismos possveis para a superao dos legados auto-

    ritrios e coloniais. A vivncia comum da no-democracia , portanto, apenas o pontap

    inicial que conecta as experincias que so objeto de reflexo e que permitem-nos ver

    como cada povo soube, de modo mais ou menos completo, trabalhar o seu passado.

    A presente obra ganha especial relevo em um momento em que tanto a Amrica Lati-

    na quanto a pennsula Ibrica vem ressurgir, do seio da sociedade representada em

    instituies e movimentos civis organizados, lutas por justia histrica, memria e contra

    o esquecimento, com o claro objetivo de no permitir que o olvido apague do espao

    pblico as marcas da represso, de modo a usar a memria como sinal de alerta perma-

    nente sobre os horrores do autoritarismo e do colonialismo. Num perodo histrico m-

    par, onde o Brasil, entre outros pases, discute a criao de uma Comisso da Verdade, e

    onde Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Espanha, dentre outros, trabalham para a

    ampliao da memria social, em longos processos de identificao e abertura de arqui-

    vos, retirada de smbolos autoritrios dos espaos pblicos e promoo das memrias de

    luta contra ditaduras, esta obra visa contribuir para permitir o dilogo entre as experin-

    cias e a verificao dos caminhos possveis, objetivando sempre ampliar o espao de

    acesso e atuao da sociedade, fortalecendo iniciativas e garantindo o constante apri-

    moramento de iniciativas para a no repetio.

    Esta obra insere-se, portanto, na linhagem daquelas que querem olhar para o passado

    para construir um melhor futuro no presente.

    Braslia e Coimbra, maio de 2010.

  • 16

    Memria Histrica, Justia de Transio e Democracia sem FimTARSO GENROMinistro do Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social (2003-2004), da Educao (2004-2005), das Relaes Institucionais (2006-2007) e da Justia (2007-2010), Brasil

    PAULO ABROProfessor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Catlica de BrasliaPresidente da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, Brasil

    Conferncia de Abertura do Seminrio Luso-Brasileiro sobre Represso e Memria Poltica proferida pelo Ministro da Justia do Brasil em 20 de abril de 2009 no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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    Erich Auerbach, no seu Ensaios de Literatura Ocidental1, no captulo dedicado a Vico

    e o historicismo esttico, surpreende-se que um homem no comeo do sculo XVIII

    possa ter criado uma histria do mundo baseada no carter mgico da civilizao pri-

    mitiva, dizendo que h poucos exemplos semelhantes na histria do pensamento hu-

    mano de uma criao to isolada; devida a uma mente to peculiar. Ele combinava uma

    f quase mstica, prossegue Auerbach, na ordem eterna da histria humana com um

    tremendo poder de imaginao produtiva na interpretao do mito da poesia antiga e

    do direito.

    Para Vico os homens primitivos eram originalmente nmades solitrios, vivendo em

    promiscuidade desordenada em meio ao caos de uma natureza misteriosa e, por isso

    mesmo horrvel. Eram seres sem faculdade de raciocnio; tinham apenas sensaes in-

    tensas e um poder de imaginao to grande que os homens civilizados teriam dificul-

    dades em conceb-lo.

    1 AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura Ocidental. In: 2 Cidades. Ed. 34, 2004. p. 347-348.

  • 18

    Em Depois de Babel2, conta-nos Joaquim Herrera Flores, o grande mestre George Stei-

    ner afirmava o seguinte: em quase todas as lnguas e ciclos lendrios encontramos um

    mito do enfrentamento de rivais; duelo, luta corpo a corpo, confronto de enigmas, cujo

    prmio a vida do perdedor.

    Temos nmades solitrios, seres sem faculdade do raciocnio, diz Vico, e luta onde o

    prmio a vida do perdedor, diz George Steiner. Assim, o que separa a formulao de

    Vico da teoria do mestre Steiner o contrato. Na primeira hiptese, os nmades solit-

    rios somente sentem o caos de uma natureza misteriosa. Na segunda hiptese, a luta

    revela um premio, em um pacto onde o limite a eliminao consciente do outro.

    Se tomarmos os dois exemplos como lapidares de dois perodos histricos da humanidade,

    poderamos concluir que um mximo de conscincia e racionalidade, que separa qualitati-

    vamente o homem primitivo do homem moderno (em termos eminentemente antropol-

    gicos), o fato de que o segundo promoveu uma compensao para a sua separao da

    naturalidade, que foi precisamente aquela o que conscientizou da violncia. E depois orga-

    nizou-a, para pactuar sucessivos nveis de convvio que, em nenhuma poca da histria,

    suprimiram a compulso da morte do seu semelhante, reconhecendo-o, portanto, como

    indiferente a si mesmo ou diferente de si mesmo, por isso eliminvel.

    A sucesso de regimes repressivos e autoritrios, ditatoriais e/ou totalitrios que avassa-

    laram a Amrica Latina, entre meados dos anos 60 e 80, ainda no foi tratada de forma

    sistemtica por nenhum regime democrtico em processo de afirmao do continente.

    Isso se justifica, de uma parte porque todas as transies polticas para a democracia

    foram feitas sob compromisso. De outra porque a democracia expandiu-se mais como

    forma do que como substncia. Na verdade, nenhum dos regimes de fato foi derrota-

    do ou derrubado por movimentos revolucionrios de carter popular; logo, os valores

    que sustentaram as ditaduras ainda so aceitos como razoveis para a poca da guerra

    fria, e tambm face s barbries tambm cometidas pelos resistentes de esquerda.

    Ao lado destas condies histricas concretas, h todo um manto ideolgico promovido

    por uma parte da academia e tambm por intelectuais que tem acesso privilegiado aos

    grandes meios de comunicao que, sob certos aspectos, ao defender o caminho nico

    do neoliberalismo recentemente falido, ocupou-se tambm em promover um trabalho

    2 STEINER, George. Lecturas, obsesiones y otros ensayos. Madrid: Alianza, 1990. p. 543. apud HERRERA FLORES, Joaquim. A (re) inveno dos direitos humanos. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2009. p. 54.

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    persistente de desmoralizao dos ideais da esquerda, com a flagrante anulao inclusive

    do valor humano e poltico daqueles que resistiram e, por isso, foram perseguidos, mortos

    ou torturados.

    No Brasil, o tratamento dado recentemente ao caso de Cesare Battisti, um militante das

    brigadas vermelhas, que combateu na luta armada na Itlia e que hoje se encontra preso

    no Brasil aguardando a posio do Supremo Tribunal Federal exemplar. O questiona-

    mento da concesso de refgio poltico que o governo brasileiro lhe concedeu, emble-

    mtico: no estamos tratando de um militante esquerdista radical, que lutou contra um

    regime democrtico em crise, mas de um assassino, julgado corretamente por um Estado

    de Direito; mais: no se trata de um criminoso poltico, mas sim de um assassino co-

    mum; e, ainda, sua luta armada era a luta do mal, representado pelos proletarios arma-

    dos pelo comunismo contra o bem, representado pelo Estado de Direito que mal acolhe

    a todos. exatamente o mesmo mecanismo que operou no Brasil, na transio da dita-

    dura para a democracia poltica, quando o Congresso aprovou a anistia restrita, retirando

    dela os que cometeram crimes de sangue.

    Esta ideologizao direitista da memria, na verdade, impede um pacto de conciliao,

    porque o impe a partir dos valores que so aceitos exclusivamente pelos que eram

    beneficirios do autoritarismo e das ditaduras.

    Considerada a concepo de Giambatista Vico, os controladores das anistias e da histria

    evoluiram apenas de um Estado de seres sem faculdades de raciocnio para um estgio

    de uma racionalidade burocrtica perversa, de uma memria cristalizada nos valores da

    dominao autoritria do Estado de Exceo.

    Isso ocorre especialmente na medida em que se propala tambm uma narrativa especfica

    que propala uma justificativa do Golpe Militar de 1964, como simples reao ao um

    suposto estado de caos e desgoverno poltico vigente, ameaador da propriedade

    privada, das liberdades pblicas, dos valores da famlia, sintetizando tudo no combate a

    ameaa comunista em andamento.

    Nesses termos, a represso atroz e os crimes produzidos na ditadura foram atos no de-

    sejados mas necessrios, repartindo, assim, a culpa pelo regime autoritrio entre os dois

    lados combatentes: a represso e a resistncia. O centro do discurso est na idia de que

    esta histria no pode ser contada, seno exclusivamente desta maneira: a de que o re-

    gime ditatorial foi uma etapa de paz civil e avanos econmicos onde se localiza as bases

  • 20

    da ordem e da democracia atual. Em virtude disso, em nome da governabilidade, tenta

    fixar-se um pacto de silncio, onde no se deve olhar mais para o passado, sob pena de

    abrir-se as suas feridas. Nestes termos, contata-se um uso poltico da memria para

    coincidi-la com a hermenutica dos dominadores de ento, e isto em verdade, constitui-

    se em uma no-memria.

    A recuperao da memria no se faz, portanto, sem o confronto de valores. Trata-se,

    menos de punir os torturadores do que exp-los ao cenrio da histria, tal qual os

    perdedores, em regimes ditatoriais, foram expostos e, neste cenrio, contrapor os valores

    que nos guiaram e os valores que erigiram a fundao de regimes repressivos, que so-

    mente foram passveis de serem implementados pela violncia armada.

    No se trata, tambm, de constituir a falcia maniquesta de que linearmente de um lado

    estava o bem e de outro estava o mal. Ou seja, que era uma disputa de homens de

    bem contra homens do mal; mas, sim, de identificar nas entranhas do Estado o tipo de

    ordem jurdica e poltica capaz de instrumentalizar os homens para transform-los em

    mquinas de destruio dos seus semelhantes, fazendos-os retroceder ao estgio de uma

    sociedade sem contrato e de transformao de um legtimo monoplio do uso da fora

    pela Estado (conquista da modernidade democrtica) em um monoplio da destruio

    de direitos, de regulao burocrtica para a represso instrumental e para a dominao

    pela coero.

    O grande salto humanstico da modernidade no foi simplesmente a constituio de

    Estado Moderno nem a prpria idia de nao. Foi o Estado de Direito, vinculado aos

    fundamentos do princpio da igualdade jurdica e no principio da inviolabilidade dos

    direitos, inclusive quando a pretenso de violao vem do prprio Estado, como polti-

    ca estatal ou de agente pblico especfico investido de diferenciados poderes que a lei

    lhe confere.

    O processo de formulao de uma nova Constituio democrtica para a Repblica bra-

    sileira resultou-nos em texto consagrador desta frmula garantidora de direitos funda-

    mentais, como marcos fundantes da sociedade ps-autoritria. Apesar de no se tratar

    de nada original at porque o nosso pensamento poltico apenas refletia o que nos

    vinha de fora, numa espcie de fatalismo intelectual que subjuga as culturas nascentes

    mesmo assim, foi um grande estatuto poltico, uma lei fundamental que logrou absor-

    ver e superar as tenses entre o absolutismo e o liberalismo, marcantes no seu nascimen-

    to, para se constituir, afinal, no texto fundador da nacionalidade e no ponto de partida

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    para a nossa maioridade constitucional.3 Ou, como disse Paulo Bonavides, a carta de

    1988 valeu por este aspecto: um salvo-conduto para o Pas sair do arbtrio e caminhar

    rumo legitimidade do futuro.4

    Como se sabe e como bem define GARCIA AMADO, a eficcia de uma Constituio

    depende, sobretudo, da crena na sua legitimidade e na convico generalizada da

    justia dos seus contedos. A prpria luta poltica sobre a sua interpretao embora

    busque nela contedos contraditrios um elemento de convico na justia dos seus

    contedos e na legitimidade do consenso que ela revela. Por isso, na verdade, se converteu

    a histria no campo preferencial para as disputas sobre a legitimidade constitucional e,

    por isso mesmo, a pluralidade de sensibilidades nacionais leva a uma luta de histrias

    ou prpria fragmentao da histria em histrias diversas. 5

    Na verdade, mais do que uma luta ou conflito de memrias a sustentarem verses oficiais

    antagnicas e competitivas da histria, o que temos em um cenrio ps-autoritrio e

    traumtico para uma sociedade poltica a necessidade de exercitamos a memria.

    A histria que se apresenta como vencedora, j dizia Walter Benjamin6, fecha-se em uma

    lgica linear que pisoteia as vtimas, que as ignora sob o cortejo triunfante do progresso.

    Trata-se de romper esse continuum e abrir a brecha da qual nascer a ao poltica, e na

    qual poder emergir a dor e as injustias esquecidas. A experincia traumtica s se su-

    pera a partir de um exerccio do luto, que como lembra Paul Ricoeur7, o mesmo exerc-

    cio da memria: paciente, afetivo, destemido e perigoso, pois revela que nossa sociedade

    hoje se estrutura sobre os cadveres das vtimas esquecidas.

    s no trabalho de rememorao que podemos construir uma identidade que tenha

    lugar na histria e no que possa ser fabricada por qualquer instante ou ser escolhida a

    esmo a partir de impulsos superficiais. Trata-se, de fato, de um dever de memria, um

    3 COELHO, Inocncio Mrtires. A experincia constitucional brasileira: da corte imperial de 1924 Constitui-o Democrtica de 1988, Arquivos do Ministrio da Justia, Braslia, ano 51, n. 190, jul-dez, 2006, pp. 69/70.

    4 BONAVIDES, Paulo & ANDRADE, Paes de. Historia constitucional do Brasil. Braslia: OAB editora, 2004, 5.ed. p. 493.

    5 Cf. GARCIA AMADO, Juan Antonio. Usos de la historia y legitimidad constitucional. In: MARTIN PALLIN, Jose Antonio & ESCUDERO ALDAY, Rafael. Derecho y memoria historica. Madrid: Trotta, 2008. p. 52.

    6 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da histria. In: Magia e tcnica, arte e poltica ensaios sobre literatura e histria da cultura Obras escolhidas I. 7.ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    7 RICOEUR, Paul. Histria, memria e esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008.

  • 22

    dever que exige disposio e vontade: uma vontade poltica. O exerccio deste dever

    condio imprescindvel para que haja verdadeiramente o apaziguamento social, caso

    contrrio a sociedade repetir obsessivamente o uso arbitrrio da violncia, pois ela no

    ser reconhecida como tal. A memria aqui no importante s para que no se repita

    jamais, mas tambm por uma questo de justia s vtimas que caram pelo caminho8.

    A recuperao da memria, porm, o Estado somente a far, alterando a sua lgica ori-

    ginria de reproduo burocrtica do prprio poder e se a sociedade exigir, pois, confor-

    me elucida Bobbio9, todas as grandes correntes polticas do sculo passado inverteram

    a rota, contrapondo a sociedade ao Estado, descobrindo na sociedade, e no no Estado,

    as foras que se movem em direo libertao e ao progresso histrico. Eis que aqui,

    mais uma vez, o papel da sociedade civil e dos movimento sociais democrticos, deter-

    minante para a disputa das leituras produzidas e construdas sobre a histria, afinal,

    deve-se compreender fundamentalmente que, em primeiro lugar, a histria um dos

    elementos de legitimao constitucional (para uma efetiva justia de seus contedos) e,

    em segundo lugar, deve-se convencer de que na interpretao do passado joga-se o fu-

    turo dos Estados democrticos. Disso extramos a idia de legitimidade da nossa Consti-

    tuio como pacto que nos obriga, hoje e sempre, a uma disputa dos fundamentos de

    legitimao da mesma Constituio.

    Em sntese, a partir destas reflexes que se pode afirmar que a relevncia e os objetivos

    do resgate e da promoo da Memria Histrica, passam pelo menos por 3 eixos funda-

    mentais:

    a) pelo campo de uma reconciliao nacional onde se trava o processo de legitimao

    constitucional voltada para um autntico objetivo poltico humanista;

    b) um processo de afirmao de valores contra a pulso da eliminao consciente do

    outro (Steiner) e;

    c) na criao e identificao da nao, pois, no caso brasileiro, temos uma promoo

    incompleta da identidade nacional, pois a modernidade tardia brasileira excluiu os mo-

    vimentos de resistncia e seus valores como forjadores das bases da democracia atual.

    8 MATE, Reyes. Memrias de Auschwitz atualidade e poltica. So Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.

    9 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Poltica a Filoso a Poltica e as lies dos clssicos. In: BOVERO, Michelangelo (org.). Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 225.

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    Para o atingimento destes objetivos, um instrumento privilegiado que tem sido utilizado

    por diversas naes so as polticas denominadas de Justia de Transio.

    Justia transicional uma resposta concreta s violaes sistemticas ou generalizadas

    aos direitos humanos. Seu objetivo o reconhecimento das vtimas e a promoo de

    possibilidades de reconciliao e consolidao democrtica. A justia transicional no

    uma forma especial de justia, mas uma justia de carter restaurativo, na qual as socie-

    dades transformam a si mesmas depois de um perodo de violao generalizada dos di-

    reitos humanos.

    Os governos, em especial na America Latina e na Europa Oriental, adotaram muitos en-

    foques distintos para a justia transicional. Entre elas figuram as seguintes iniciativas:

    a) aplicao do sistema de justia na apurao dos crimes ocorridos nas ditaduras, em

    especial, aqueles considerados como crimes de lesa-humanidade;

    b) criao de Comisses de Verdade e Reparao, que so os principias instrumentos de

    investigao e informao sobre os abusos chave de periodos do passado recente;

    c) programas de reparao com iniciativas patrocinadas pelo Estado que ajudam na re-

    parao material e moral dos danos causados por abusos do passado. Em geral envolvem

    no somente indenizaes econmicas mas tambm gestos simblicos s vitimas como

    pedidos de desculpas oficiais;

    d) reformas dos sistemas de segurana com esforos que buscam transformar as foras

    armadas, a polcia, o poder judicirio e as relacionadas com outras instituies estatais

    de represso e corrupo em instrumentos de servio pblico e integridade;

    e) polticas de memria vinculadas a uma interveno educativa voltada desde e para

    os direitos humanos, bem como prticas institucionais que implementem memoriais e

    outros espaos pblicos capazes de ressignificar a histria do pas e aumentar a cons-

    cincia moral sobre o abuso do passado, com o fim de construir e invocar a idia da

    no-repetio.

    Entendemos que a democracia, como institucionalizao da liberdade e regime poltico

    da maioria associados aos direitos das minorias, no se constitui em valor natural ou um

    imperativo categrico metafsico do fenmeno da Poltica. Trata-se de um fenmeno

  • 24

    social, histrico, temporal e mutante. Da que a disseminao dos valores democrticos

    tarefa que deve transcender e constar nas polticas pblicas de todos os governos.

    Se certo que o processo de Reforma do Estado brasileiro, tem permitido melhor e maior

    apoderamento social dos espaos e bens pblicos (e isto tem consumido a pauta poltica

    desde a redemocratizao); por outro lado, uma pauta essencialmente voltada para a

    importncia da democracia como um valor por si, a ser permanentemente semeado e

    disseminado nas relaes scio-polticas cotidianas, no pode ser secundarizada na

    agenda da nao, como se a questo democrtica no exigisse olhares permanentemen-

    te atentos diante de qualquer sinal de retrocesso.

    preciso promover e aceitar a luta cotidiana para aperfeioar e radicalizar a democracia

    realmente existente. Uma luta conscientemente orientada para, primeiro, a construo

    de uma nova hegemonia experimentada e legitimada no ritual democrtico republicano;

    segundo, para a expanso de um novo contrato social e terceiro, para promover uma

    nova esfera pblica democrtica e novas relaes entre Estado e sociedade.10

    O que se est a considerar, em ltima anlise, que todas estas questes conectam-se

    quilo que o professor Boaventura de Sousa Santos tem inspiradamente denominado de

    democracia sem fim. Como Boaventura ensina, o horizonte continua sendo a democra-

    cia e o socialismo, mas um socialismo novo; e seu novo nome democracia sem fim.11

    Segundo o professor, para alarmos uma democracia de alta densidade, no possvel

    mudar o mundo sem tomar o poder, mas tambm no se pode mudar algo com o poder

    que existe hoje. Por isso devemos mudar as lgicas do poder e, para isso, as lutas demo-

    crticas so cruciais e so radicais, por estarem fora das lgicas tradicionais da democra-

    cia. Diante disso, deve-se aprofundar a democracia em todas as dimenses da vida.

    Para termos fora para impor esta renovada razo, difundida pelo professor Boaventura,

    no se pode ter dvidas de que as polticas de resgate da memria histrica e os dife-

    rentes mecanismos e dimenses da Justia de Transio, constituem-se em estratgias

    elementares, fundamentais e privilegiadas para a expanso humanista da Democracia

    sem fim.

    10 Sobre estas questes vide GENRO, Tarso. possvel combinar democracia e socialismo? In: GENRO, Tarso et alli. O mundo real: socialismo na era ps-neoliberal. Porto Alegre: LP&M, 2008.

    11 SANTOS, Boaventura de Sousa. Contra-ofensiva neoliberal. 27 de Julho de 2009.

  • 26

    Justia de Transio no Brasil: a dimenso da reparaoPAULO ABROProfessor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Catlica de BrasliaPresidente da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, Brasil

    MARCELO D. TORELLYCoordenador de Cooperao Internacional da Comisso de Anistia do Ministrio da JustiaMestrando em Direito pela Universidade de Braslia, Brasil

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    Neste texto, promove-se uma contextualizao sobre as polticas de reparao no Brasil,

    buscando explicitar suas dimenses materiais e morais dentro do conjunto de medidas

    empreendidas pelo Estado brasileiro para a superao do legado do autoritarismo, com

    especial nfase aos resultados do trabalho da Comisso de Anistia do Ministrio da Jus-

    tia na efetivao do direito constitucional reparao. Para tanto, dialoga-se com as

    quatro grandes dimenses polticas da Justia de Transio: promoo da reparao s

    vtimas; fornecimento da verdade e construo da memria; regularizao das funes

    da justia e re-estabelecimento da igualdade perante lei e, por fim; reforma das insti-

    tuies perpetradoras de violaes contra os direitos humanos; de modo a verificar como

    tais dimenses constituem-se em verdadeiras obrigaes jurdicas no sistema de direitos

    ptrio.

    Metodologicamente, ser promovido um panorama sobre a justia de transio no Brasil

    na tentativa de atualizar e promover um diagnstico que enfrente as incongruncias de

    anlises de senso comum desconectadas do cenrio concreto, ou defasadas no tempo

    histrico e poltico, seja por basearem-se em leituras equivocadas ou a conceitos acad-

    micos estanques, desconectados da realidade histrica e poltica nacional, seja por serem

    produto da ao poltica de setores conservadores que no aceitam a anistia e a repara-

  • 28

    o como institutos legtimos, por ainda viverem sob marcada influncia do contexto da

    Guerra Fria.

    Em seguida, ser apresentada uma leitura do diagnstico promovido pela Comisso de

    Anistia do Ministrio da Justia para promover o planejar suas aes para o perodo

    2007-2010, baseando-se tanto em um resgate histrico do conceito brasileiro de anistia

    (que resultado de reivindicaes sociais, diferentemente de outros processos de anistia

    latino americanos), quanto numa extensa leitura sobre o contexto poltico onde medidas

    transicionais so adotadas e as limitaes que tal contexto impe.

    As partes finais do texto apresentam as novas aes empreendidas, classificando-as

    como reparaes individuais com efeitos coletivos e reparaes coletivas com efeitos

    individuais, apontando para a importncia da memria e da justia enquanto mecanis-

    mos ltimos de reparao de danos rumo no repetio, numa viso que integra as

    dimenses polticas e obrigaes jurdicas que balizam a justia de transio no Brasil em

    um todo harmnico, e que sustentam a necessidade de avanar naquilo que permanece

    inconcluso: a criao de uma Comisso da Verdade e a apurao dos crimes de Estado.

    1. UM PANORAMA SOBRE A JUSTIA DE TRANSIO E AS POLTICAS

    DE REPARAO NO BRASIL

    A relevncia da promoo de processos de justia que garantam a retomada do Imprio

    do Direito e, ainda, a confiana da populao no sistema jurdico, encontra acento na

    diretiva da Organizao das Naes Unidas, que ao avaliar sua experincia em mais de

    cem processos de democratizao ao redor de todo o mundo, assevera que:

    Nossas experincia na ltima dcada demonstram claramente que a consolidao

    da paz no perodo ps-conflito, assim como a manuteno da paz no longo prazo,

    no pode ser atingida a menos que a populao esteja confiante que a reparao

    das injustias pode ser obtida atravs de legtimas estruturas para a soluo pac-

    fica de disputas e a correta administrao da justia.1

    O processo de redemocratizao aps experincias autoritrias compe-se de pelo me-

    nos quatro dimenses fundamentais: (i) a reparao, (ii) o fornecimento da verdade e

    1 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Conselho de Segurana. O Estado de Direito e a justia de transio em sociedades em con ito ou ps-con ito. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio, no1, Braslia: Ministrio da Justia, jan/jun 2009, p.323.

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    construo da memria, (iii) a regularizao da justia e re-estabelecimento da igualda-

    de perante lei e (iv) a reforma das instituies perpetradoras de violaes contra os

    direitos humanos2.

    A ausncia de estudos tericos e empricos aprofundados sobre a justia de transio no

    Brasil faz prevalecerem anlises primrias que apenas repercutem um senso comum ba-

    seado em dois diagnsticos: o primeiro, de que o processo de acerto de contas (accoun-

    tability) do estado brasileiro com o passado priorizou apenas o dever de reparar, valen-

    do-se de um parmetro reparatrio baseado em critrios de eminente natureza

    trabalhista que seria impertinente e, um segundo, de que a idia de anistia que, em

    sentido etimolgico significa esquecimento, deturparia as medidas justransicionais do

    Estado brasileiro pois em ltima anlise faria o pas viver um processo transicional que

    procura esquecer o passado, e no super-lo.

    No sentido de superar essas leituras superficiais, entendemos que a complexidade dos

    processos transicionais, que mobilizam tanto esforos jurdicos quanto polticos, torna as

    divises disciplinares tpicas dos arqutipos acadmicos pouco hbeis para lidar com fa-

    tores que, em situaes usuais, seriam tratveis de modo isolado. Numa das mais slidas

    teorizaes j empreendidas sobre Justia Transicional, Jon Elster classificou a existncia

    de pelo menos trs tipos de justia num processo dessa natureza: a justia legal, a justia

    poltica e a justia administrativa, cada uma delas podendo ser aplicada de modo indivi-

    dual ou combinado, com melhores ou piores resultados para a efetivao da democracia

    e do estado de direito3. A prpria natureza da separao de poderes no Brasil remete-nos,

    quase que de pronto, a uma visualizao de que seria mais tpico ao Judicirio a promo-

    o da justia legal, mais notadamente a responsabilizao de agentes criminosos do

    regime, dentro dos limites de um Estado de Direito; ao Legislativo a promoo da justia

    poltica, com a criao de leis que retirassem empecilhos a feitura de justia como leis

    de auto-anistia e a instituio de diplomas especficos para a reparao de vtimas; e

    ao Executivo a aplicao das leis e a implementao de polticas pblicas. Cada uma

    dessas dimenses da justia transicional s possvel de ser plenamente desenvolvida se

    o ambiente poltico a elas for favorvel.

    2 CF.: BICKFORD, Louis. Transitional Justice. In: The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity. Nova Iorque: MacMillan, pp.1045-1047. TEITEL, Ruti. Transitional Justice. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 2000; bem como GENRO, Tarso. Teoria da Democracia e Justia de Transio. Belo Horizonte: EdUFMG, 2009.

    3 ELSTER, Jon. Rendicin de Cuentas la justicia transicional em perspectiva histrica. Buenos Aires: Katz, 2006.

  • 30

    absolutamente evidente que a implementao de qualquer das quatro dimenses da

    Justia Transicional depende, necessariamente, da incluso das mesmas em um conceito

    mais abrangente de justia. desta maneira que, para fundamentar a idia de reparao

    aos perseguidos polticos, necessria a soma de pelo menos dois fatores no cenrio

    jurdico-poltico de um pas: (i) o reconhecimento de que os fatos ocorridos foram injus-

    tificadamente danosos e de responsabilidade estatal e (ii) o reconhecimento da obriga-

    o do Estado de indenizar danos injustos por ele causados. A mesma lgica se aplica a

    qualquer das demais dimenses, uma vez que apenas com (i) o reconhecimento de que

    ocorreram crimes (e no, por exemplo, combate ao terrorismo) que se pode chegar ao

    reconhecimento da (ii) obrigao de responsabilizar juridicamente aos agentes que co-

    meteram tais crimes.

    Desta feita, no dinmico cenrio de uma transio, as quatro dimenses polticas da

    Justia Transicional adquirem status de obrigaes jurdicas ao passarem a compor o

    acordo poltico constitucional que d integridade a um sistema de direitos fundado nos

    valores da democracia e dos direitos humanos4, articulando, inclusive, o direito interno e

    o direito internacional5.

    Essa distino torna-se importante para que se possam diferenciar argumentos jurdico-

    polticos utilizados nos debates em planos nacionais e internacionais, de modo a refinar

    a anlise e torn-la mais coerente com a realidade, permitindo diagnsticos mais eficien-

    tes na orientao da ao funo primeira da reflexo, seja em nvel acadmico, seja

    em nvel governamental. Assim, se numa eventual condenao pela Corte Interamerica-

    na de Direitos Humanos, por descumprimento de obrigaes referentes justia transi-

    cional assumidas internacionalmente pelo Brasil, fato que se condena o Estado, por

    sua vez, ao discutir a gesto das polticas pblicas no plano interno deve-se fazer a dis-

    4 A respeito da integridade, Ronald Dworkin basilar: Insistimos na integridade porque acreditamos que as conciliaes internas negariam o que freqentemente chamado de igualdade perante a lei e, s vezes, de igualda-de formal. [...] Os processos judiciais nos quais se discutiu a igual proteo mostram a importncia de que se reveste a igualdade formal quando se compreende que ela exige a integridade, bem como uma coerncia lgica elementar, quando requer delidade no apenas s regras, mas s teorias de equidade e justia que essas regras pressupem como forma de justi cativa. DWORKIN, Ronald. O Imprio do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2007, p.255.

    5 Por desta forma entender que a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia promoveu a Audincia Pblica Limites e Possibilidades para a Responsabilizao Jurdica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceo no Brasil ocorrida em 31 de julho de 2008 com uma exposio inicial composta por dois juristas com vises contraditrias sobre o assunto, seguida das manifestaes de amplos setores da sociedade civil. Tratou-se da primeira atividade o cial do Estado brasileiro sobre o tema aps quase 30 anos da lei de anistia. A Comisso de Anistia tem sustentado a responsabilizao dos agentes que praticaram crimes de tortura sistemtica em nome do regime: o sistema de direitos do Brasil, para que seja ntegro e coerente, necessita condenar de modo peremptrio o uso de tortura em qualquer circunstncia.

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    secao da natureza das obrigaes polticas dos mltiplos agentes envolvidos na conso-

    lidao democrtica (seguindo com a argumentao acima posta, exemplificativamente,

    os trs poderes em suas atribuies singulares), sob pena de criar-se uma cegueira epis-

    tmica que impede aos estudiosos do tema de perceber que, no Brasil, em funo da

    baixa amplitude das demandas por justia transicional por muitos anos, boa parte das

    iniciativas atualmente existentes partiram do poder executivo, sendo a participao do

    legislativo hoje, geralmente, a reboque desde poder, e a do judicirio historicamente

    quase nula (so parcas as iniciativas judiciais das prprias vtimas) no fosse a prota-

    gonista atuao do Ministrio Pblico Federal instituio independente do Poder

    Judicirio, com autonomia funcional e administrativa6.

    6 No mbito da atuao social no Brasil, diante do um nmero relativamente menor de vtimas fatais em comparao aos regimes vizinhos, a luta pelos direitos das vtimas e pela memria acabou se reduzindo a crculos restritos, no obstante sua atuao intensa. A difuso dos fatos repressivos focalizados nas vtimas fatais pode ter inviabilizado a formao de novos grandes movimentos sociais em torno da temtica, diferentemente do que ocorreu em outros pases, como Argentina e Chile, e, ainda, permitiu a criao de classi caes infelizes, como a dictablanda de Guilhermo ODonnell e Philippe Schmitter, originalmente cunhada para de nir autocracias liberais e, posteriormente, apropriada de forma equivoca em veculos de comunicao brasileiros, como a Folha de S. Paulo que, para minimizar o horror de uma ditadura como a brasileira e posicionar contrariamente ao debate acerca da abrangn-cia da lei de anistia, denominou-a ditabranda em editorial no dia 17.02.2009. (Sobre as diferenas entre os regimes, consulte-se: PEREIRA, Anthony. Political (In)Justice Authoritarianism and the Rule of Law in Brazil, Chile, and Argentina. Pittsburgh: Pittsburgh University Press, 2005. Sobre os primeiros usos de ditabranda, con ra-se o uxograma da pgina 13 de: ODONNELL, Guilhermo; SCHMITTER, Philippe. Transitions from authoritarian rule tentative conclusions about uncertain democracies. Baltimore & Londres: John Hopkins, 1986). O acerto de contas com o passado restou, por muito tempo, circunscrito ao tema da reparao aos familiares de mortos e desa-parecidos e na localizao dos restos mortais e o esclarecimento das circunstncias dos assassinados nos termos da lei n. 9.140/95. De tal forma que, em um primeiro momento, se perdesse de vista uma ampla conscientizao social sobre os efeitos danosos das formas persecutrias mais amplas empreendidas pela ditadura: nos ambientes de trabalho, nas universidades, nas comunidades religiosas, nos exlios, na clandestinidade, nas regies no-centrais do pas e em seu interior, gerando uma falsa avaliao de que a ditadura brasileira no abrangeu amplos setores sociais, e sim apenas o restrito grupo daqueles mais cruelmente prejudicados: as famlias dos mortos e desaparecidos. Este cenrio de baixa amplitude de demandas por justia transicional comea a se alterar somente aps 2001, com a aprovao da Lei n. 10.559/2002 prevendo a responsabilidade do Estado por todos os demais atos de exceo, na plena abrangncia do termo. A partir da, para alm da atuao intensa e histrica do movimento de familiares mortos e desaparecidos e dos Grupos Tortura Nunca Mais, especialmente do Rio de Janeiro e de So Paulo, e do Movimento de Justia e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (em especial nos fatos do Cone Sul e Operao Condor), emergem da sociedade novas frentes de mobilizao segundo pautas mais ampliadas da Justia de Transio. neste perodo, por exemplo, que surgem novos movimentos que passam a atuar em torno do exerccio do direito reparao, podendo-se exempli ca-tivamente referir: a Associao 64/68 do Estado do Cear, Associaes dos Anistiados do Estado de Gois, Paraba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, o Frum dos Ex-presos Polticos do Estado de So Paulo, a ABAP (Associao Brasileira de Anistiados Polticos), a ADNAM (Associao Democrtica Nacionalista de Militares), a CONAP (Coordenao Na-cional de Anistiados Polticos) e dezenas de outras entidades vinculadas aos sindicatos de trabalhadores perseguidos politicamente. Progressivamente foram sendo constitudos socialmente pautas como a defesa da responsabilizao dos agentes torturadores, a defesa da instituio de uma Comisso da Verdade para apurar os crimes da represso, a defesa da preservao do direito memria e do direito reparao integral, com a participao de agentes polticos renovados, como os Grupos Tortura Nunca Mais da Bahia, Paran e Gois, e de novas organizaes e grupos sociais, tais como os Amigos de 68, os Inquietos, o Comit Contra a Anistia dos Torturadores ou a Associao dos Tortura-dos na Guerrilha do Araguaia e de movimentos culturais como o Tempo de Resistncia. Ainda, neste ltimo perodo, em que se amplia o debate sobre a Justia de Transio no Brasil e que ganham grande destaque os trabalhos de grupos que buscam levar a histria da ditadura, da represso e da resistncia aos jovens, como o Ncleo de Memria Poltica do Frum dos Ex-Presos Polticos de So Paulo, que vem desenvolvendo muitas iniciativas no o ciais de preservao da memria e de busca da verdade como seminrios, exposies, publicaes, homenagens pblicas, atividades cultu-rais e reunies de mobilizao em torno da justia de transio.

  • 32

    O contexto histrico e as caractersticas prprias da redemocratizao devem ser detida-

    mente apreendidos pelo diagnstico a ser levado a cabo para anlise aprofundada das

    polticas justransicionais no Brasil para a superao das anlises primrias de senso co-

    mum referidas anteriormente.

    Dois aspectos merecem ateno

    O primeiro relaciona-se com a questo da anistia percebida como uma reivindicao

    popular. Novamente exemplificando: enquanto em pases como a Argentina e Chile a

    anistia foi uma imposio do regime contra a sociedade, ou seja, uma explcita auto-

    anistia do regime; no Brasil a anistia foi amplamente reivindicada socialmente, pois se

    referia originalmente aos presos polticos, tendo sido objeto de manifestaes histricas

    que at hoje so lembradas7. preciso ressaltar que a deturpao da lei de anistia de

    1979 para abranger a tortura perpetrada pelos agentes de Estado jamais fez parte dos

    horizontes de possibilidades da sociedade civil atuante poca, at mesmo porque a

    tortura no era uma prtica reconhecida oficialmente e seu cometimento no era visvel

    publicamente em razo da censura aos meios de comunicao. Porm, o que importa

    ressaltar aqui que a luta pela anistia foi tamanha que, mesmo sem a aprovao do

    projeto demandado pela sociedade civil, por uma anistia ampla, geral e irrestrita para os

    perseguidos polticos8, a cidadania brasileira reivindica legitimamente essa conquista

    para si e, at a atualidade, reverbera a memria de seu vitorioso processo de conquista

    da anistia nas ruas, aps amplos e infatigveis trabalhos realizados pelos Comits Brasi-

    leiros pela Anistia, fortemente apoiados por setores da comunidade internacional9.

    A segunda questo envolve o papel da classe trabalhadora na resistncia ao regime mi-

    litar. certo que o papel da organizao dos trabalhadores nas reivindicaes corporati-

    vas, em plena vigncia da lei anti-greve, imprimiu nuances significativas resistncia ao

    regime militar. Na campanha pela anistia a resistncia tradicional uniu-se ao movimento

    dos operrios que passou a incorporar em sua pauta reivindicatria bandeiras de enfren-

    tamento ao regime poltico militar que originalmente no lhe eram caras. Ainda antes de

    7 Cf.: BRASIL. 30 anos de luta pela anistia no Brasil: greve de fome de 1979. Braslia: Comisso de Anistia/MJ, 2010.

    8 Em 22 de agosto de 1979, o Congresso Nacional, ainda sob a gide do regime militar e composto parcial-mente por senadores binicos (um tero), rejeitou o projeto de lei de anistia que propunha uma anistia ampla, geral e irrestrita aos perseguidos polticos e aprovou uma anistia restrita que excluiu de seus benefcios aqueles perseguidos polticos presos acusados de crimes de sangue.

    9 Sobre a mobilizao internacional nos Estados Unidos, cf.: GREEN, James. Apesar de vocs. So Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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    1979 e, mais especialmente aps a aprovao da lei de anistia, as greves dos trabalhado-

    res intensificaram-se, inclusive dentro dos domnios de reas consideradas como reas

    de segurana nacional. Estas greves foram reprimidas com a truculncia das polcias ci-

    vis, militares e at mesmo com a participao das Foras Armadas, criando-se um am-

    biente de perseguies aos lderes sindicais (alguns foram presos e enquadrados na Lei de

    Segurana Nacional) e de demisses em massa aos trabalhadores grevistas pertencentes

    aos quadros de empresas estatais e privadas.10 Da que, obviamente, ao se elaborar a le-

    gislao para contemplar o dever do Estado de reparar, um dos parmetros de fixao de

    indenizaes foi necessariamente vinculado aos critrios de indenizao trabalhistas em

    razo das demisses arbitrrias, reestabelecendo direitos laborais e previdencirios lesa-

    dos ao longo do tempo. nesse sentido que a lei previu a fixao de um direito uma

    prestao mensal, permanente e continuada em valor correspondente ou ao padro re-

    muneratrio que a pessoa ocuparia, se na ativa estivesse, ou a outro valor arbitrado

    compatvel, com base em pesquisa de mercado, gerando um critrio assimtrico mas

    coerente com sua prpria gnese e que deve ser contextualizado historicamente11.

    10 Foram milhares as demisses arbitrrias de trabalhadores em diferentes regies do Brasil e em dife-rentes categorias e setores, os quais podem-se citar algumas: comunicaes (Correios), siderurgia (Belgo-mineira, CSN Companhia Siderrgica Nacional, Usiminas, Cosipa, Aominas), metalurgia (regio de Osasco e ABC Paulista, GM, Volkswagen), energia (Eletrobrs, Petrobrs, Petromisa, Plo Petroqumico de Camaari/BA), trabalhadores do mar (Lloyd, estaleiros), setores militares (Arsenal de Marinha), bancrios (Banco do Brasil, Banespa), areo (aeronautas e aerovirios da VARIG, VASP e trabalhadores da Embraer) e professores (escolas e universidades).

    11 Os outros critrios xados para as demais formas de perseguies para aqueles que no perderam seus vnculos laborais o da indenizao em prestao nica em at 30 salrios mnimos por ano de perseguio poltica reconhecida com um teto legal de R$ 100.000 (segundo a lei 10559/2002), e o de uma prestao nica que atingiu um mximo de R$ 152.000,00 para os familiares de mortos e desaparecidos (segundo a lei 9.140/1995). Resultou da que pessoas submetidas tortura ou desaparecimento ou morte e que no tiveram em sua histria de represso a perda de vnculos laborais acabarem sendo indenizadas em valores menores que as pessoas que tiveram em seu histrico a perda de um emprego. Uma concluso super cial daria a entender que o direito ao projeto de vida interrompido foi mais valorizado que o direito a integridade fsica, o direito liberdade ou o direito vida. Esta concluso deve ser relativizada pelo dado objetivo de que a legislao prev que os familiares dos mortos e desaparecidos podem pleitear um dupla indenizao (na Comisso de Anistia e na Comisso de Mortos e Desaparecidos) no que se refere a perda de vnculos laborais ocorridos previamente s suas mortes e desaparecimentos (no caso da prestao mensal) ou a anos de perseguies em vida (no caso da prestao nica). Alm disso, a maioria dos presos e torturados que sobreviveram concomitantemente tambm perderam seus empregos ou foram compelidos ao afastamento de suas atividades pro ssionais formais (de forma imediata ou no) em virtude das prises ou de terem que se entregar ao exlio ou clandestinidade. Estes casos de duplicidade de situaes persecutrias so a maioria na Comisso de Anistia e, para eles, no cabe sustentar tese de subvalorizao dos direitos da pessoa humana frente aos direitos trabalhistas em termos de efetivos. Em outro campo, a situao agrantemente injusta para um rol espec co de perseguidos polticos: aqueles que no chegaram a sequer inserir-se no mercado de trabalho em razo das perseguies, como o caso clssico de estudantes expulsos que tiveram que se exilar ou entrar na clandestinidade e o das crianas que foram presas e torturadas com os pais o familiares. Para estes casos, a legislao efetivamente no oferece uma alternativa reparatria razovela despeito dos esforos da Comisso de Anistia. Para re exes espec cas sobre as assimetrias das reparaes econmicas no Brasil e o critrio indenizatrio especial, destacado da clssica diviso entre dano material e dano moral do cdigo civil brasileiro, con ra-se: ABRO, Paulo et alli. Justia de Transio no Brasil: o papel da Co-misso de Anistia do Ministrio da Justia. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. Braslia: Ministrio da Justia, n. 01, jan/jun 2009, pp. 12-21.

  • 34

    Qualquer leitura do acerto de contas brasileiro que ignore estes dois aspectos histrico-

    jurdicos fundamentais no mais far que repercutir um senso comum equivocado e

    particularmente defasado. evidente que j de muito foi superada a idia de que anis-

    tia significa esquecimento, tanto na sociedade civil, que consigna no movimento de

    luta pela anistia o incio do processo de redemocratizao brasileira, quanto nos debates

    legislativos e aes do Executivo, que passaram a tratar a anistia brasileira ou como ato

    de reconciliao (legislativo)12 ou de pedido de desculpas oficiais do Estado pelos erros

    que cometeu (executivo)13. A anistia como esquecimento resta afirmada apenas no poder

    judicirio que, por natureza, o poder mais conservador da Repblica, e por setores da

    academia com dificuldades em dialogar com a realidade concreta, fixando-se a conceitos

    estanques e, claro, finalmente, por aqueles setores mais reacionrios da sociedade politi-

    zada, que simplesmente no aceitam a anistia enquanto conquista democrtica e ideo-

    logicamente no admitem o dever de reparao aos perseguidos polticos ou o conside-

    ram indevido, por ainda dialogarem com uma idia pouco democrtica de espao

    pblico que confunde resistncia com terrorismo.

    A leitura equivocada do processo transicional e seus limites seja causa do equvoco

    do mal-entendido semntico daqueles que se fixam a percepo estanque dos concei-

    tos em detrimento da realidade ou que ignoram aspectos histricos e/ou jurdicos, seja

    causa da m-f daqueles que querem desconstruir o processo da anistia precisou ser

    afastada para permitir a virada hermenutica tomada pela Comisso de Anistia para

    ressignificar o processo transicional brasileiro nas tarefas que lhe cabem, afinal, a fuso

    de leituras equivocadas, acadmicas e polticas, vinham servindo para criticar de modo

    genrico o processo de reparao no Brasil tanto quanto promovido pela CEMP, quan-

    to pela Comisso de Anistia provocando, intencionalmente ou no, um enfraqueci-

    mento da capacidade de mobilizao de recursos polticos para a sustentao da conti-

    nuidade do prprio processo transicional.

    Na avaliao empreendida pela Comisso de Anistia para reorganizar suas aes estrat-

    gicas para o perodo 2007-2010, foram considerados, portanto, os seguintes elementos:

    (i) a sociedade civil brasileira mais ampla desarticulou-se do tema da anistia, que passou

    a ser desenvolvido por setores isolados uns dos outros, com grande sobreposio de es-

    12 A referncia ao princpio da reconciliao nacional est literalmente inserta no art. 2 da lei 9.140 de 1995 que instituiu a CEMP. Artigo 2 - A aplicao das disposies desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-o pelo prin-cpio de reconciliao e de paci cao nacional, expresso na Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979 Lei de Anistia.

    13 Vide item 2 deste texto.

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    foros e desperdcio de energias, devendo o eixo prioritrio de ao ser a promoo de

    atividades de rearticulao de uma causa esparsa, mas nunca esquecida; (ii) entre os

    poderes de Estado, o Executivo , desde sempre, o principal artfice das medidas transi-

    cionais no Brasil, sendo ou seu executor direto, ou o promotor do debate pblico que

    pressiona aos demais poderes14, (iii) o processo de justia transicional brasileiro no se

    resume s aes das duas comisses de reparao, e tal diagnstico nocivo, pois soma-

    do ao ataque reacionrio contra o processo de reparao, obstaculiza o avano da con-

    solidao democrtica brasileira.

    certo que o senso comum, como primeira suposta compreenso do mundo e fruto da

    espontaneidade de aes relacionadas aos limites do conhecimento em dado contexto,

    contribui para se estabelecer as condies para super-lo15. Por isso prope-se um apro-

    fundamento do diagnstico visando a uma investigao detalhada de cada um dos ele-

    mentos que compem justia de transio no Brasil, tomando-se os conjuntos de me-

    didas atinentes a cada uma das dimenses de modo mais detido para que seja

    visualizvel, de forma panormica, o contexto de medidas transicionais como um todo e

    em suas inter-relaes sem desconsiderar a proeminncia do processo reparatrio que,

    por ser o objeto central desde estudo, ser abordadas aps a introduo das demais di-

    menses.

    Quanto dimenso das reformas institucionais, mister afirmar que tem sido uma tare-

    fa constante o aperfeioamento das instituies no Brasil, promovido por meio de diver-

    sos conjuntos de reformas, algumas delas realizadas ainda antes da existncia do sistema

    de reparao aos perseguidos polticos, implantadas, portanto, em mais de 25 anos de

    governos democrticos: a extino do SNI (Servio Nacional de Informaes); a criao

    do Ministrio da Defesa submetendo os comandos militares ao poder civil; a criao do

    14 Veja-se como exemplo a proposio das leis de reparao (1995 e 2002), ambas com gnese no poder executivo mesmo no caso da lei n. 10.559/2002 que regulamente o artigo 8 da Constituio, onde uma Medida Pro-visria foi usada para pressionar o Congresso Nacional a movimentar-se e aprovar matria de sua competncia mais direta: regulamentar a constituio. Tal situao segue sendo atual, com o Executivo e a Sociedade Civil chamando a criao de uma Comisso da Verdade, atacada por setores conservadores.

    15 Para contribuir na superao do senso comum mister enraizar nas instituies acadmicas brasileiras estudos multi/transdisciplinares sobre justia transicional. Da que a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia inicialmente criou a Revista Anistia Poltica e Justia de Transio, o primeiro peridico em lngua portuguesa dedicado ao tema, para difundir conhecimentos e pesquisas nacionais e estrangeiras e tambm assinou um termo de coopera-o com o Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo para criar o IDEJUST Grupo de Estudos sobre a Internacionalizao do Direito e a Justia de Transio. O Grupo j rene uma rede aberta de pesquisadores e acadmicos, de diferentes campos do conhecimento, incluindo membros de instituies tais como a USP, UFMG, UFSC, UnB, UFGRS, UFU, UFRJ, UFPR, PUCRS, PUCMG, PUC-Rio, PUCPR, UNISINOS, CESUSC e UCB, que esto debatendo e iniciando produes cient cas no tema em ampla articulao com atores da sociedade civil e instituies de ensino e pesquisa de diversos pases.

  • 36

    Ministrio Pblico com misso constitucional que envolve a proteo do regime demo-

    crtico, da ordem jurdica e dos interesses sociais e individuais indisponveis (como o

    prprio direito verdade); a criao da Defensoria Pblica da Unio; a criao de progra-

    mas de educao em direitos humanos para as corporaes de polcia promovidos pelo

    Ministrio da Educao; a extino dos DOI-CODI e DOPS; a revogao da lei de impren-

    sa criada na ditadura; a extino dos DSI (Divises de Segurana Institucional), ligados

    aos rgos da administrao pblica direta e indireta; a criao da Secretaria Especial de

    Direitos Humanos; as mais variadas e amplas reformas no arcabouo legislativo advindo

    do regime ditatorial; a criao dos tribunais eleitorais independentes com autonomia

    funcional e administrativa.

    Enfim, neste seara, verifica-se um processo ininterrupto de adequao e aperfeioamen-

    to das instituies do Estado de Direito visando a no repetio. Todas essas medidas,

    concentradas em apenas uma das dimenses essenciais da justia de transio, j de si

    desmontam a tese de que o Brasil priorizou apenas o dever da reparao econmica.

    Quanto dimenso da regularizao da justia e restabelecimento da igualdade perante

    a lei, que se constitui na obrigao de investigar, processar e punir os crimes do regime,

    mais especialmente aqueles cujas obrigaes assumidas pelo Brasil em compromissos

    internacionais e as diretrizes constitucionais revestem de especial proteo (leses aos

    direitos humanos), tem-se atualmente um quadro de intensa mobilizao social.

    O principal obstculo consecuo da regularizao das funes da justia ps-autori-

    tarismo produto da persistncia histrica de uma interpretao dada pela prpria dita-

    dura lei de anistia de 1979, pretensamente vista como uma anistia bilateral que ca-

    mufla uma auto-anistia, e pela omisso judicial em promover sua adequada, ntegra e

    coerente interpretao, sob a luz dos princpios constitucionais democrticos e dos tra-

    tados e convenes internacionais em matria de direitos humanos. Nesse sentido veio a

    realizao da Audincia Pblica Os limites e possibilidades para a responsabilizao

    jurdica de agentes pblicos que cometeram crimes contra a humanidade durante

    perodos de exceo promovida pela Comisso de Anistia do Ministrio da Justia em

    31 de julho de 2008, que exps oficialmente a controvrsia jurdica relevante acerca

    desta auto-anistia aos atos cometidos pelos agentes de Estado envolvidos na prtica

    sistemtica de tortura e desaparecimento forado como meios de investigao e repres-

    so. Essa audincia pblica gerou um movimento para a construo de uma nova cultu-

    ra poltico-jurdica no pas. Logo aps, o seu pice foi a propositura da Argio de

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    Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) 16 pela Ordem dos Advogados

    Brasil (OAB) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de interpretar a lei

    brasileira de anistia de modo compatvel com a Carta Magna e o direito internacional.

    Pela primeira vez, o Governo brasileiro tratou formal e oficialmente do tema.

    A audincia pblica promovida pelo Poder Executivo teve o condo de unir foras que se

    manifestavam de modo disperso, articulando as iniciativas da Ordem dos Advogados do

    Brasil, do Ministrio Pblico Federal de So Paulo, das diversas entidades civis, como a

    Associao dos Juzes para a Democracia (AJD), a Associao Brasileira de Anistiados

    Polticos (ABAP), a Associao Democrtica Nacionalista de Militares (ADNAM) e o Cen-

    tro pela Justia e o Direito Internacional (CEJIL)17, e, ainda, fomentando a re-articulao

    de iniciativas nacionais pr-anistia. Ressalte-se que a controvrsia jurdica debatida pelo

    Ministrio da Justia e levada ao STF pela OAB advinha, inclusive, do trabalho exemplar

    do Ministrio Pblico Federal de So Paulo ao ajuizar aes civis pblicas em favor da

    responsabilizao jurdica dos agentes torturadores do DOI-CODI, alm das iniciativas

    judiciais interpostas por familiares de mortos e desaparecidos, a exemplo do pioneirismo

    da famlia do jornalista Vladimir Herzog que, ainda em 1978, saiu vitoriosa de uma ao

    judicial que declarou a responsabilidade do Estado por sua morte18. A propsito, certo

    que a Audincia Pblica e a ADPF 153 no reabriram o debate jurdico sobre o alcance

    da lei de anistia aos agentes torturadores ou aos crimes de qualquer natureza, pois ele

    sempre esteve presente19, mas o retiraram de um local de excluso perante opinio

    pblica e o debate nacional.

    16 Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) a denominao dada no Direito brasileiro uma ao de controle de constitucionalidade visando evitar ou reparar leso a preceito fundamental resultante de ato do Poder Pblico (Unio, estados, Distrito Federal e municpios), includos atos anteriores promulgao da Consti-tuio. No Brasil, a ADPF foi instituda em 1998 pelo pargrafo 1 do artigo 102 da Constituio Federal, posteriormen-te regulamentado pela lei n 9.882/99. Julgada nos dias 24 e 25 de abril de 2010, a ADPF foi declarada improcedente pelo STF que validou a interpretao de que a lei de anistia brasileira bilateral e declarou perdoados os crimes de tortura e lesa-humanidade cometidos pela represso brasileira.

    17 A Associao dos Juzes para a Democracia (AJD), a Associao Brasileira de Anistiados Polticos (ABAP), a Associao Democrtica Nacionalista de Militares (ADNAM) e o Centro pela Justia e o Direito Internacional (CEJIL) ingressaram com Amicus Curie na ADPF 153.

    18 Para maiores informaes sobre o caso, con ra: FVERO, Eugnia Augusta Gonzaga. Crimes da Ditadura: iniciativas do Ministrio Pblico Federal em So Paulo. In: SOARES, Ins Virgnia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada. Memria e Verdade A Justia de Transio no Estado Democrtico Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Frum, 2009, pp. 213-234 e tambm WEICHERT, Marlon Alberto. Responsabilidade internacional do Estado brasileiro na promoo da justia transicional. In: SOARES, Ins Virgnia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada. Memria e Verdade A Justia de Transio no Estado Democrtico Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Frum, 2009, pp. 153-168.

    19 A esse respeito, con ra-se: DALLARI, Dalmo de Abreu. Crimes sem anistia. Folha de S. Paulo, 18 de dezembro de 1992. p. 3. BICUDO, Helio. Lei de Anistia e crimes conexos. Folha de S. Paulo. 6 de dezembro de 1995. p. 3. JARDIM, Tarciso Dal Maso. O Crime do Desaparecimento Forado de Pessoas. Braslia: Braslia Jurdica, 1999.

  • 38

    A dimenso do fornecimento da verdade e construo da memria tambm encontrou

    avanos. Alm do livro Direito Verdade e a Memria, a Secretaria Especial de Direitos

    Humanos da Presidncia da Repblica mantm uma exposio fotogrfica denominada

    Direito memria e verdade a ditadura no Brasil 1964-1985 e recentemente lan-

    ou duas novas publicaes, dedicadas as infncias e as mulheres violadas pela ditadura:

    Histria de Meninas e Meninos Marcados pela Ditadura e Lutas pelo Feminino.

    O Centro de Referncia das Lutas Polticas no Brasil (1964-1985) - Memrias Reveladas20

    foi criado em 13 de maio de 2009 e coordenado pelo Arquivo Nacional, da Casa Civil

    da Presidncia da Repblica. Tem por objetivo tornar-se um espao de convergncia,

    difuso de documentos e produo de estudos e pesquisas sobre o regime poltico que

    vigorou entre 1 de abril de 1964 e 15 de maro de 1985. Congrega instituies pblicas

    e privadas, e pessoas fsicas que possuam documentos relativos histria poltica do

    Brasil durante os governos militares. O Centro um plo catalisador de informaes

    existentes nos acervos documentais dessas Instituies e pessoas. Parte da verdade da

    represso que permite uma parte do acesso verdade est registrada em documen-

    tos oficiais do regime militar j disponveis no Memrias Reveladas, documentos estes

    eivados de uma linguagem ideolgica e, por evidncia, de registros que desconstroem os

    fatos e simulam verses justificadoras dos atos de violaes generalizadas aos direitos

    humanos.

    Vale destacar tambm que, atualmente, alguns dos mais ricos acervos de arquivos da

    represso encontram-se sob posse das comisses de reparao, que tem colaborado para

    a construo da verdade histrica pelo ponto de vista dos perseguidos polticos. A pro-

    psito, no fosse o trabalho das Comisses de Reparao criadas no governo Fernando

    Henrique Cardoso, no se teriam muitas das informaes j disponveis sobre a histria

    da represso.

    No pode restar dvidas de que a iniciativa do governo Luiz Incio Lula da Silva em ins-

    tituir uma Comisso Nacional da Verdade constitui-se em uma nova e imprescindvel

    etapa do processo de revelao e conhecimento da histria recente do pas em favor de

    20 No Banco de Dados Memrias Reveladas encontra-se a descrio do acervo documental custodiado pelas instituies participantes. Em alguns casos, possvel visualizar documentos textuais, cartogr cos e iconogr cos, entre outros. No portal do Centro - http://www.memoriasreveladas.gov.br, tambm podem ser consultadas publicaes em meio eletrnico, exposies virtuais, vdeos e entrevistas.

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    uma efetiva memria que colabore para a construo da nossa identidade coletiva21.

    Talvez, atravs da Comisso da Verdade seja possvel a efetivao do direito pleno ver-

    dade histrica, com a apurao, localizao e abertura dos arquivos especficos dos cen-

    tros de investigao e represso ligados diretamente aos centros da estrutura dos coman-

    dos militares: o CISA (Centro de Informaes de Segurana da Aeronutica); o CIE (Centro

    de Informaes do Exrcito) e; o CENIMAR (Centro de Informaes da Marinha). Para que,

    assim, sejam identificadas e tornadas pblicas as estruturas utilizadas para a prtica de

    violaes aos direitos humanos, suas ramificaes nos diversos aparelhos de Estado e em

    outras instncias da sociedade, e sejam discriminadas as prticas de tortura, morte e desa-

    parecimento, para encaminhamento das informaes aos rgos competentes.

    Findo este breve balano sobre o contexto das aes nacionais, e antes de adentrar-se

    um panorama sobre as medidas implementadas na dimenso reparatria no Brasil, deve-

    se inserir no debate mais um argumento: as experincias internacionais tm demonstra-

    do que no possvel formular um escalonamento de benefcios estabelecendo uma

    ordem sobre quais aes justransicionais devem ser adotadas primeiramente, ou sobre

    que modelos, a priori, atendem a realidade de cada pas, existindo variadas experincias

    de combinaes exitosas22. Assim que, em processos de justia transicional no podemos

    adotar conceitos abstratos que definam, a priori, a metodologia dos trabalhos a serem

    tidos e das aes a serem implementadas.

    Portanto, para pensar as polticas de justia transicional e, especialmente, as polticas de

    reparao no Brasil, deve-se verificar anteriormente as vantagens advindas, por exemplo,

    do fato de nosso processo justransicional ter se iniciado pela dimenso da reparao, e

    no por outras, de modo a maximizar as vantagens j obtidas e envidar esforos de me-

    nor monta na soluo dos dficits ainda existentes. Com tal metodologia evita-se o

    academicismo de negar a realidade poltica e social enquanto dado concreto e objetivo

    nas transies, que distorce a viso do pesquisador e a torna intil ao operador das pol-

    ticas pblicas, que no dispe de meios para sustar os efeitos da realidade e aplicar uma

    hiptese em abstrato (como a de que seria melhor termos iniciado nosso processo por

    medidas de verdade ou medidas de justia).

    21 Cf.: BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III). Braslia: Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, 2009. Decreto n. 7037, de 21 de dezembro de 2009 alterado pelo decreto de 13 de janeiro de 2010 que cria o Grupo de Trabalho para elaborar projeto de lei da Comisso Nacional da verdade. O Grupo de Trabalho foi nomeado pela Portaria da Casa Civil n. 54 de 26 de janeiro de 2010.

    22 Cf.: CIURLIZZA, Javier. Para um panorama global sobre a justia de transio: Javier Ciurlizza responde Marcelo Torelly. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. Braslia: Ministrio da Justia, n. 01, jan/jun 2009, pp. 22-29.

  • 40

    Da que o diagnstico de que o processo justransicional brasileiro privilegiou em sua

    gnese a dimenso reparatria o que de si no muito preciso, pois, como vimos, al-

    gumas medidas relevantes de reformas institucionais visando a no repetio foram

    anteriores instituio do sistema reparatrio no deve ser lido como um demrito,

    mas sim como apenas um elemento caracterstico fundante do modelo brasileiro para a

    aplicao e realizao da justia transicional. Tentar transformar um fato oriundo de um

    contexto concreto em um caractere para uma crtica abstrata , em ltima anlise, tentar

    fazer a realidade se enquadar teoria, e no a teoria explicar a realidade.

    Empreendendo essa metodologia reversa que diverge do senso comum, podemos identifi-

    car pelo menos trs vantagens no processo transicional brasileiro: (i) temos como uma

    primeira vantagem o fato de que tanto o trabalho da CEMP quanto da Comisso de Anistia

    tem impactado positivamente a busca pela verdade, revelando histrias e aprofundando a

    conscincia da necessidade de que todas as violaes sejam conhecidas, promovendo e

    colaborando, portanto, com o direito verdade; (ii) ainda, os prprios atos oficiais de reco-

    nhecimento por parte do Estado de leses graves aos direitos humanos produzidos por

    essas Comisses, somados instruo probatria que os sustentam, tem servido de funda-

    mento ftico para as iniciativas judiciais cveis no plano interno do Ministrio Pblico Fe-

    deral, incentivando, portanto, o direito justia num contexto onde as evidncias da enor-

    me maioria dos crimes j foram destrudas; (iii) finalmente, temos que o processo de

    reparao est dando uma contribuio significativa na direo de um avano sustentado

    nas polticas de memria num pas que tem por tradio esquecer, seja pela edio de obras

    basilares, como o livro-relatrio Direito Memria e Verdade, que consolida oficialmente

    a assuno dos crimes de Estado, seja por aes como as Caravanas da Anistia e o Memorial

    da Anistia, que alm de funcionarem como polticas de reparao individual e coletiva,

    possuem uma bem definida dimenso de formao de memria.

    um dado que as medidas transicionais no Brasil so tardias em relao as adotadas em

    outros pases, como os vizinhos Argentina e Chile, ou mesmo pases distantes, como a

    Grcia e a Alemanha do ps-guerra, mas isso no depe contra a relevncia de adotar

    tais medidas, como nos ilustra o exemplo da Espanha, que em 2007 editou lei para lidar

    com os crimes da Guerra Civil e do regime franquista23. Inobstante ser uma incgnita se

    o Brasil vai ou no continuar aprofundando sua transio poltica, em especial no que

    23 Vide-se a Lei da Memria Histrica do Reino da Espanha, suja traduo para o portugus foi promovida pela Comisso de Anistia e encontra-se disponvel em: REINO DA ESPANHA. Lei 52/2007. Lei da Memria Histrica. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. Braslia: Ministrio da Justia, n. 2, jul/dez 2009, pp. 352-370.

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    toca a dimenso do direito justia aps a deciso do STF24, o fato que se devem apro-

    veitar todos os espaos j institudos para realizar medidas transicionais. O xito desta

    tentativa de justia de transio tardia depende, claro, da sociedade a encampar como

    uma demanda prpria, como tem ocorrido de forma crescente desde o ingresso da ADPF

    153 e a rearticulao de movimentos sociais de espectro mais amplo entorno do tema,

    especialmente num contexto onde a grande mdia manifestou-se de forma ativa contra-

    riamente ao acolhimento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF 153 que teria permiti-

    do a imediata abertura de processos judiciais de responsabilizao criminal dos agentes

    criminosos do regime militar. Hoje, como elemento de justia, est disponvel para a so-

    ciedade a abertura das aes declaratrias de responsabilidade civil, que no foram ob-

    jeto da lei de 1979.

    Finalmente, chegando a dimenso da reparao, temos que o sistema reparatrio para os

    atos dos regimes de exceo do Sculo XX no Brasil integrado por duas comisses de

    reparao: a Comisso Especial para Mortos e Desaparecidos Polticos (doravante CEMP)

    e a Comisso de Anistia.

    A CEMP, criada pela Lei n. 9.140/1995, alterada pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004, foi

    instalada no Ministrio da Justia e, em 2004, deslocada para a Secretaria Especial de

    Direitos Humanos. A legislao instituidora da Comisso j veio acompanhada de um

    anexo com um reconhecimento automtico de 136 casos relacionados que deveriam ser

    indenizados. O objeto de trabalho da Comisso Especial focou-se primeiro na apreciao

    das circunstncias das mortes, para examinar exclusivamente se as pessoas foram ou no

    mortas pelos agentes do Estado no perodo de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de

    1988 e como isso aconteceu, afastando-se da apreciao dos atos dos envolvidos na

    atividade de represso poltica. tambm responsabilidade da Comisso a localizao

    dos restos mortais dos desaparecidos. Em 2007, a CEMP publicou o mais importante

    documento oficial sobre o perodo ditatorial, o j refeirdo livro-relatrio denominado

    Direito Verdade e Memria que detalha pormenorizadamente a promoo de 357

    reparaes25. O prazo final para a entrada com requerimentos perante a CEMP foi pror-

    rogado duas vezes, tendo sido encerrado em 2004.

    24 Aguarda-se o pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Julia Gomes Lund x Brasil, sobre a Guerrilha do Araguaia onde se questiona, de modo incidental, a bilateralidade da lei de anistia no Brasil.

    25 BRASIL. Direito Memria e Verdade. Braslia: Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidn-cia da Repblica, 2007.

  • 42

    Atualmente, a CEMP prossegue desempenhando sua responsabilidade de Estado: busca

    concentrar esforos na localizao dos restos mortais dos desaparecidos e na sistemati-

    zao de um acervo de depoimentos de familiares e companheiros dos desaparecidos,

    bem como de agentes dos rgos de represso, autores de livros, jornalistas e pesquisa-

    dores que tenham informao a fornecer, para auxiliar na busca e na organizao de

    diligncias que forem necessrias para a localizao dos restos mortais26. Para tanto,

    constituiu um banco de DNA, gerando um legado de grande valia para a continuidade

    dos trabalhos de identificao por futuras geraes, uma vez que muitos dos familiares

    j ultrapassaram os 80 anos de idade.

    Por sua vez, a Comisso de Anistia instalada no Ministrio da Justia, foi criada em 2001

    por meio de Medida Provisria do Presidente da Repblica27 posteriormente convertida

    na lei n. 10.559/2002, em ateno necessidade de regulamentao do artigo 8 do Ato

    das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT) da Constituio da Repblica de

    1988. Sua abrangncia temporal compreende o perodo de 1946 a 1988 no qual o Brasil

    teve nada mais nada menos do que 20 presidentes da Repblica praticamente uma

    mdia de um para cada dois anos tendo apenas seis sido eleitos pelo voto direto, em

    razo de oscilaes institucionais de toda ordem. Seu escopo abrange todas as formas de

    perseguies polticas e atos de exceo na plena abrangncia do termo, em especial

    aquelas cometidas durante os 21 anos de ditadura militar: as prises arbitrrias, as tor-

    turas, os monitoramentos das vidas das pessoas, os exlios, as clandestinidades, as demis-

    ses arbitrrias de postos de trabalho, os expurgos estudantis e docentes nas universida-

    des e escolas, a censura, as cassaes de mandatos polticos, as transferncias arbitrrias

    de postos de trabalho, a interrupo de ascenses profissionais nos planos de carreira e

    punies disciplinares, punies aos militares dissidentes, compelimento ao exerccio

    gratuito de mandato eletivo de vereador, cassaes de aposentadoria ou aposentadorias

    compulsrias, impedimento de investidura em concursos pblicos, perseguio e demis-

    ses aos sindicalistas e aos trabalhadores grevistas (vigoravam no perodo leis proibindo

    greves), tanto do setor pblico quanto no setor privado.

    Os familiares dos mortos e desaparecidos tambm podem pleitear junto Comisso de

    Anistia pelas perseguies sofridas por seus entes em vida. At dezembro de 2009 a

    Comisso recepcionou aproximadamente 65 mil requerimentos, dos quais 58 mil j fo-

    26 Sobre a histria da CEMP, vide o captulo 3 do livro-relatrio supra citado.

    27 Segundo o artigo 62 da Constituio da Repblica brasileira, em caso de relevncia e urgncia, o Presiden-te da Repblica poder adotar medidas provisrias, com fora de lei, devendo submet-las de imediato ao Congresso Nacional.

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    ram apreciados, tendo indeferido integralmente um tero deles, e deferido os outros dois

    teros com ou sem cumulao de reparao econmica28. Como a legislao no fixa

    data limite para o protocolo de novos requerimentos perante a Comisso de Anistia, o

    protocolo do rgo segue permanentemente aberto.

    O acervo corrente da Comisso de Anistia composto de gravaes em udio de mais de

    700 sesses de julgamento realizadas ao longo de oito anos de atividade, onde encon-

    tram-se registrados milhares de depoimentos e testemunhos diretos e indiretos de vti-

    mas da ditadura. Ainda, constam mais de 300 relatos de moradores da regio do Ara-

    guaia, parte em udio, parte em vdeo, coletados pela Comisso em trs Audincias

    Pblicas in loco29; os arquivos de documentos, udio e vdeo de 15 outras Audincias

    pblicas temticas relativas aos trabalhadores envolvidos nas grandes greves do perodo

    militar e de mais 32 vdeos com as sesses pblicas de oitivas ocorridas nas edies das

    Caravanas da Anistia julgamentos pblicos itinerantes que j percorreram todas as

    regies do Brasil30. Tudo isso soma-se aos mais de 65 mil dossis individuais de anistia,

    onde cada perseguido poltico narra sua experincia com o regime autoritrio e, ainda,

    por ao da Comisso ou do prprio perseguido, rene documentao oficial mesmo a

    do extinto Servio Nacional de Inteligncia que hoje exista disponvel e tambm docu-

    mentos pessoais. Desta forma, o acervo da Comisso de Anistia , atualmente, uma das

    mais abrangentes fontes de pesquisa existentes sobre o autoritarismo no Brasil.

    Considerando este amplo e complexo cenrio acima descrito, este texto delimitar-se-

    doravante apenas aos trabalho