LIVRO o que é a arte - jorge coli

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  • O Que Arte

    Jorge Coli

    Coleo Primeiros Passos N 46

    COLI, Jorge. O que Arte. 15 ed., Editora Brasiliense, So Paulo SP, 1995 ISBN 85-11-01046-7

    Em memria de meu irmo Vicente e para meu afilhado Lcio.

  • INTRODUO Dizer o que seja a arte coisa difcil. Um sem-nmero de tratados de esttica debruou-se sobre o problema, procurando situ-lo, procurando definir o conceito. Mas, se buscamos uma resposta clara e definitiva, decepcionamo-nos: elas so divergentes, contraditrias, alm de frequentemente se pretenderem exclusivas, propondo-se como soluo nica. Desse ponto de vista, a empresa desencorajadora: o esteta francs tienne Gilson, num livro notvel, Introduo s Artes do Belo, diz que "no se pode ler uma histria das filosofias da arte sem se sentir um desejo irresistvel de ir fazer outra coisa", tantas e to diferentes so as concepes sobre a natureza da arte. Entretanto, se pedirmos a qualquer pessoa que possua um mnimo contacto com a cultura para nos citar alguns exemplos de obras de arte

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  • ou de artistas, ficaremos certamente satisfeitos. Todos sabemos que a Mona Lisa, que a Nona Sinfonia de Beethoven, que a Divina Comdia, que Guernica de Picasso ou o Davi de Michelangelo so, indiscutivelmente, obras de arte. Assim, mesmo sem possuirmos uma definio clara e lgica do conceito, somos capazes de identificar algumas produes da cultura em que vivemos como sendo "arte" (a palavra cultura empregada no no sentido de um aprimoramento individual do esprito, mas do "conjunto complexo dos padres de comportamento, das crenas, instituies e outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e caractersticos de uma sociedade", para darmos a palavra ao Novo Aurlio). Alm disso, a nossa atitude diante da idia "arte" de admirao: sabemos que Leonardo ou Dante so gnios e, de antemo, diante deles, predispomo-nos a tirar o chapu. possvel dizer, ento, que arte, so certas manifestaes da atividade humana diante das quais nosso sentimento admirativo, isto : nossa cultura possui uma noo que denomina solidamente algumas de suas atividades e as privilegia. Portanto, podemos ficar tranquilos: se no conseguimos saber o que a arte , pelo menos sabemos quais coisas correspondem a essa idia e como devemos nos comportar diante delas. Infelizmente, esta tranquilidade no dura se quisermos escapar ao

    8 superficial e escavar um pouco mais o problema. O Davi de Michelangelo arte, e no se discute. Entretanto, eu abro um livro consagrado a um artista clebre do nosso sculo, Marcel Duchamp, e vejo entre suas obras, conservado em museu, um aparelho sanitrio de loua, absolutamente idntico aos que existem em todos os mictrios masculinos do mundo inteiro. Ora, esse objeto no corresponde exata-mente ideia que eu fao da arte.

  • Para me distrair um pouco, discretamente tomo emprestada do meu irmozinho uma revista em quadrinhos de terror. Mais tarde, visito um amigo intelectual que possui magnfica biblioteca, e nela encontro uma suntuosa edio italiana consagrada a Stan Lee, reproduzindo a mesma histria em quadrinhos que eu havia lido h pouco num gibizinho barato. Meu amigo me ensina que Stan Lee um grande artista e, por sinal, a introduo, elaborada por um professor da Universidade de Milo, confirma seus dizeres. Eu nem imaginava que uma histria em quadrinhos pudesse ter autor, quanto mais que esse autor pudesse ser chamado artista e sua produo, obra de arte. Coisa parecida acontece com um cartaz publicitrio observado na rua, cujo desenho original descubro em exposio temporria de um museu. Em certa mostra de arte popular, deparo com uma colherona de pau, tal e qual minha av h muito tempo usava para fazer sabo de cinza numa fazenda do interior. Um amigo meu, professor

    9 de literatura francesa, entusiasma-se pelas memrias de Charles de Gaulle, e me garante que o clebre estadista tambm um grande escritor. A arqueologia, que desenterrou tantas obras de arte extraordinrias, trouxe igualmente luz inmeros objetos que so testemunhos histricos: dentre eles, quais so, quais no so obras de arte? Estas situaes mostram-nos assim que, se a arte noo slida e privilegiada, ela possui tambm limites imprecisos. E a questo que h pouco propusemos como saber o que ou no obra de arte de novo se impe. J vimos que responder com uma definio que parta da "natureza" da arte tarefa v. Mas, se no podemos encontrar critrios a partir do

  • interior mesmo da noo de obra de arte, talvez possamos descobri-los fora dela. No existiriam em nossa cultura foras que determinem a atribuio do qualificativo arte a um objeto? E a, tudo se ilumina: como sei que Stan Lee um artista? Porque o professor da Universidade de Milo o afirma. Como sei que a colher de pau de minha av um objeto de arte? Porque a encontrei num museu. Para decidir o que ou no arte, nossa cultura possui instrumentos especficos. Um deles, essencial, o discurso sobre o objeto artstico, ao qual reconhecemos competncia e autoridade. Esse discurso o que proferem o crtico, o historiador da arte, o perito, o conservador de

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    museu. So eles que conferem o estatuto de arte a um objeto. Nossa cultura tambm prev locais especficos onde a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que tambm do estatuto de arte a um objeto. Num museu, numa galeria, sei de antemo que encontrarei obras de arte; num cinema "de arte", filmes que escapam "banalidade" dos circuitos normais; numa sala de concerto, msica "erudita", etc. Esses locais garantem-me assim o rtulo "arte" s coisas que apresentam, enobrecendo-as. No caso da arquitetura, como evidentemente impossvel transportar uma casa ou uma igreja para um museu, possumos instituies legais que protegem as construes "artsticas". Quando deparamos com um edifcio tombado pelo Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional podemos respirar aliviados: no h sombra de dvida, estamos diante de uma obra de arte. Desse modo, para gudio meu, posso despreocupar-me, pois nossa cultura prev instrumentos que determinaro, por mim, o que ou no arte. Para evitar iluses, devo prevenir que, como veremos adiante, a situao no assim to rsea. Mas, por ora, o importante termos em

  • mente que o estatuto da arte no parte de uma definio abstrata, lgica ou terica, do conceito, mas de atribuies feitas por instrumentos de nossa cultura, dignificando os objetos sobre os quais ela recai.

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    A INSTAURAO DA ARTE E OS MODOS DO DISCURSO

    A hierarquia dos objetos A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o dicurso, o local, as atitudes de admirao, etc. Veremos mais adiante como esses instrumentos e a prpria noo de arte so especficos de nossa cultura. Por ora, limitemo-nos a constatar que eles permitem a manifestao do objeto artstico ou, mais ainda, do ao objeto o estatuto de arte: a galeria permite que o pintor exponha seus quadros (isto , que "manifeste" sua arte) e, alm disso, determina,

  • escolhendo um tipo de objeto dentre os inmeros que nos rodeiam, que ele seja "artstico".

    12 Mas esses instrumentos no se limitam a traar uma linha divisria separando os objetos artsticos e os no artsticos; no se contentam em criar uma "reserva" de arte. Eles intervm, por assim dizer, na disposio relativa dos objetos artsticos; pretendem ensinar-nos que tal obra tem mais interesse que outra, que tal livro ou filme melhor que outro, que tal sinfonia mais admirvel que outra: isto , criam uma hierarquia dos objetos artsticos. No preciso muito conhecimento para sabermos que Dante "maior" ou "superior" a Casimiro de Abreu, que Benedito Calixto "inferior" a Leonardo, que Bach o maior de todos os msicos, que o Partenon a mais perfeita obra arquitetural, pois trata-se de julgamentos correntes, que parecem bvios ou tcitos. Isto no quer dizer que tais objetos sejam mais "arte" que outros. Certo crtico poder afirmar que Benedito Calixto no produziu obras de arte, mas estar empregando apenas uma hiprbole. Sabemos que Calixto foi pintor, que produziu quadros e painis, que exerceu uma atividade artstica. Portanto, quando o crtico nega o carter artstico de sua produo, est dizendo que, segundo seus critrios de julgamento, a qualidade da obra de Calixto no atinge um nvel suficientemente elevado para que possa consider-la como uma obra de arte. Mas, tomando duas obras tidas como artsticas, o crtico pode afirmar que, segundo certos critrios (que podem ser explcitos ou no), tal obra

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  • mais bem realizada, ou mais rica, ou mais profunda que outra. A crtica, portanto, tem o poder no s de atribuir o estatuto de arte a um objeto, mas de o classificar numa ordem de excelncias, segundo critrios prprios. Existe mesmo uma noo em nossa cultura, que designa a posio mxima de uma obra de arte nessa ordem: o conceito de obra-prima. Esta noo antiga, e ela no possua exatamente o sentido que assumiu com o tempo. Os dicionrios nos diro que obra-prima a obra perfeita, a obra capital, a produo mais alta de um autor. Se consideramos que Os Lusadas so uma obra perfeita, que a Ilada uma obra capital, que o Ateneu a melhor obra de Pompia, diremos que nos trs casos estamos diante de obras-primas da literatura. Por razes ligeiramente diferentes: Os Lusadas podem no ser essenciais, por exemplo, para a cultura de um americano, na Ilada talvez encontremos irregularidades de construo, dizemos que O Ateneu a obra-prima de um autor, Pompia; mas nos trs casos estamos diante de obras de qualidade que julgamos excepcional em relao a outras. No passado, entretanto, a obra-prima era aquela que coroava o aprendizado de um ofcio, que testemunhava a competncia de seu autor. No se tratava de uma realizao forosamente inovadora, original, e era com frequncia um produto utilitrio, sado das mos de um carpinteiro,

    14 ourives, tecelo. Os ofcios, exercidos em atelis (isto acontece aproximadamente a partir do sculo XIV), constituam um sistema no apenas de produo e de distribuio de objetos, mas tambm de ensino. O ateli tinha um mestre, dono o mais das vezes da matria-prima e dos instrumentos de fabricao, que ensinava aos aprendizes. Estes comeavam crianas e adquiriam todas as tcnicas necessrias ao ofcio.

  • Os atelis agrupavam-se em corporaes que os protegiam e estabeleciam regras precisas: por exemplo, que o proprietrio de um ateli fosse obrigatoriamente um mestre. E, para que o aprendiz se tornasse mestre, devia apresentar em concurso, a outros mestres da corporao, uma obra inteiramente de sua autoria, que pudesse ser considerada perfeita, demonstrando assim um domnio de todas as tcnicas necessrias: era a obra prima. Dessa origem, que se liga a condies de produo especficas, a expresso se generaliza no sentido de denominar a melhor obra, o produto mais perfeito no campo das artes. So muitas as diferenas, que no podemos abordar agora, entre o emprego originrio e o atual. Ressaltemos uma, que nos interessa: a obra prima, no passado, era julgada a partir de critrios precisos de fabricao, por artesos que dominavam perfeitamente as tcnicas necessrias. Hoje, os profissionais

    15 do discurso sobre a arte possuem critrios mais diversos e menos precisos em seus julgamentos, critrios que no so apenas o do saber fazer. Os caminhos do discurso Se um carpinteiro aprecia a qualidade de um mvel, ele o faz a partir de um saber concreto, digamos, quase indiscutvel. Verificar a qualidade da madeira empregada, a sua adequao forma que se exige dela, ver se os elementos que constituem os ps, os braos, o encosto de uma cadeira foram bem talhados e ajustados. Admirar uma proeza

  • qualquer de feitura por exemplo, a solidez da cadeira repousando sobre pernas delgadas , a fineza do entalhe e a delicadeza dos ornamentos. No fazer que ele conhece, encontra os critrios para julgar o fazer de outrem. O crtico, entretanto, no tem recurso objetividade do puro domnio tcnico. Sabemos que a pintura de Leonardo, de Watteau ou Prud'hon so "mal feitas", que o material e as tcnicas empregadas, por desleixo ou vontade experimental, no so adequados, que certos pigmentos no poderiam ter entrado em contacto entre si, que a execuo foi apressada e no esperou a camada inferior secar para dispor, sobre ela, a camada seguinte, que se abusou do betume nas sombras. E, finalmente, que o produto uma vez

    16 acabado envelheceu mal, escurecendo ou transformando as tonalidades originais, destruindo o desenho primitivo. Mas no so esses os fatores que interessam ao juzo do crtico. A Santa Ceia, quase em runa, o So Joo Batista invadido pelas sombras no fazem de Leonardo um mau pintor. O bom conhecimento da perspectiva, da anatomia, da aplicao de luz e sombra so tcnicas de um mesmo nvel que o manuseio das tintas, pois so aprendidas segundo regras e podem ser julgadas com um forte grau de objetividade. Mas elas so um meio entre outros para a construo de um quadro e no so, nem podem ser, uma exigncia absoluta. Ningum pensaria em condenar Ingres pelo seu desdm pela anatomia, nem Uccello por sua perspectiva pouco ortodoxa, nem Botticelli pela ausncia de modelado em suas obras. Podemos dizer que certo pintor conhece perfeitamente a anatomia, mas com isso estamos elogiando apenas um aspecto tcnico parcial de sua obra.

  • Os discursos que determinam o estatuto da arte e o valor de um objeto artstico so de outra natureza, mais complexa, mais arbitrria que o julgamento puramente tcnico. So tantos os fatores em jogo e to diversos, que cada discurso pode tomar seu caminho. Questo de afinidade entre a cultura do crtico e a do artista, de coincidncias (ou no) com os problemas tratados, de conhecimento mais ou menos profundo da questo e mil outros elementos que podem

    17 entrar em cena para determinar tal ou qual preferncia. Dir um que Wagner compositor desmedido ou de prolixidade vazia, outro invocar seu gnio harmnico a servio de uma dramaticidade filosfica, etc. A situao algo embaraosa: vimos os fatores exteriores instaurando a arte em nossa cultura, vimos que eles determinam a hierarquia dos objetos artsticos, e nos deparamos com divergncias de critrios que nos deixam confusos. Poderamos tentar uma sada para o impasse buscando uma soluo estatstica: se no h unanimidade, talvez haja maioria. E, com efeito, pelo menos em certos casos mais notveis, essa maioria parece manifestar-se com alguma solidez: raro encontrarmos textos que desqualifiquem Czanne, por exemplo, Eisenstein, Shakespeare ou Mozart. Eles existem, sem dvida, mas um consenso geral valoriza extremamente a obra desses artistas. Temos que nos desenganar, no entanto. No somente porque, quando se trata de obras mais polmicas, que no conquistaram a institucionalidade do consenso, as disputas mantm-se acerbas (qual o interesse de Gounod ou Massenet? Grande, dizem os anglo-saxes; nenhum, respondem os franceses; Le Brun pode ser um artista admirvel ou apenas gerar tdio; Blake um doido ou um iluminado genial), mas tambm porque esse consenso no estvel, ele evolu na histria.

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  • Sem dvida, Czanne tido hoje em dia como um dos maiores nomes da pintura de todos os tempos. Porm, no podemos esquecer que o reconhecimento do seu valor foi tardio: enquanto viveu, o consenso geral recusou-se a julg-lo positivamente, e esse tambm foi o caso de Van Gogh, de Gauguin e dos impressionistas pintores de uma poca em que havia justamente um conflito entre os critrios estabelecidos e a obra que eles produziam. Poderamos pensar que somos hoje mais aptos a perceber o valor deles, que nossa sensibilidade mais aberta a Van Gogh e a Czanne que a do pblico de seu tempo, e teramos razo. Seria entretanto abusivo acreditar que o nosso juzo de hoje determina o reconhecimento definitivo de Czanne e Van Gogh. A crtica, amanh, poder nos mostrar que estvamos enganados, e que o interesse dessa pintura, afinal de contas, no era assim to grande. Absurdo? Rafael e Fdias so dois pilares da histria da arte. Inmeras geraes de artistas se referiram a eles como mestres. No obstante, no comeo de nosso sculo foram assimilados a uma arte convencional, a modelos de escola, a patronos do "academicismo" e viram sua estabilidade de grandes gnios abalada; ao "convencionalismo" que representavam preferiu-se uma arte mais conforme ao esprito de inovao do tempo, um "primitivismo" mais espontneo: exalta-se, por exemplo, Uccello e a escultura arcaica. Foi preciso esperar algum tempo

    19 para que, novamente, eles se reerguessem como faris, embora certamente menos incontestados do que antes. Os casos de Guido Reni e do Corrgio so mais radicais. Foram pintores de celebridade imensa, indiscutvel, de influncia decisiva

  • durante sculos, to admirados quanto Michelangelo, Rafael, Leonardo, e no se pode dizer deles que tenham conhecido apenas fama passageira. No entanto, hoje sofrem um eclipse brutal. Nossa poca parece interessar-se to pouco pela ternura do sublime mestre de Parma ou pelo rigor de Guido, que quantos somos capazes de lembrar sequer um de seus quadros? Melhor, a quantos esses nomes dizem alguma coisa? Poderamos multiplicar os exemplos: sabemos que o passado que foi to severo com os impressionistas mostrou-se profundamente generoso com pintores como Meissonier, Gervex, Puvis de Chavannes, Chaplin ou Alma Tademma. A morte de Meissonier, por exemplo, causou luto nacional na Frana. Com o tempo, no entanto, a avaliao crtica inverteu-se e esses pintores, que se opunham aos impressionistas como tcnica e assunto, deixaram de ser exaltados. A condenao da posteri-dade chegou a tal ponto que se tornou difcil ver um quadro deles em museus. Estes, quando possuam algum, escondiam-no envergonhados nas reservas. Durante muito tempo, essa pintura foi considerada como o prprio exemplo da no arte, como alguma coisa. artisticamente

    20 irrecupervel. Ora, h questo de dez ou quinze anos, comeou a sua reabilitao triunfal. Hoje descobrimos nela uma tcnica admirvel, um imaginrio surpreendentemente rico, por vezes um erotismo extravagante e desmedido. E inversamente, comeam a despontar anlises restritivas a Renoir, a Monet. Em certos casos, so setores inteiros da arte que passam por purgatrios do mesmo gnero. As catedrais gticas que tanto admiramos hoje, a escultura, os vitrais e a pintura da Idade Mdia, foram execradas pelos homens da Renascena e dos sculos seguintes, at que os romnticos e alguns tericos do sculo passado, como Viollet-le-Duc,

  • interessaram-se por eles e demonstraram seu valor. O barroco, o maneirismo, o art nouveau, o neoclassicismo, entre outros grandes movimentos da histria da arte, conheceram trajetrias de forte oscilao entre o interesse e o desprezo. So tantas as flutuaes no tempo dos vrios juzos sobre as artes, tantos os meandros traados pelo que os italianos chamam de fortuna critica, isto , pelos julgamentos da posteridade, que no sabemos mais a que nos ater. Por vezes, uma obra, um autor, parecem inabalveis, como Homero, e eis que um grande nome da cultura, como Valry ou Gide, traduzindo uma corrente de opinio, surge para afirmar que a Ilada insuportavelmente insuportavelmente entediante. Com estes exemplos, colhidos um pouco ao acaso, j podemos

    21 chegar a uma constatao deprimente: a autoridade institucional do discurso competente forte, mas inconstante e contraditria, e no nos permite segurana no interior do universo das artes.

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  • A BUSCA DO RIGOR A ideia de estilo Os discursos que determinam o estatuto e o objeto das artes no so unnimes nem constantes. Sua segurana enquanto critrio de julgamento j pode ser, num primeiro tempo, questionada: eles podem ser contraditrios tanto na atribuio do estatuto da arte quanto na determinao da hierarquia. O fato de que certas obras paream possuir uma "permanncia" no tempo no retira o carter institucional da autoridade do discurso: foi ele quem exaltou durante sculos Fdias e Rafael, foi ainda ele quem lhes promoveu a crtica. Alm disso, a prpria ideia de critrio aparece como um esquema que perturba nossa aproximao da arte. Sabedores de que Calixto menor do que Leonardo, predispomo-nos sumariamente a exaltar o

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  • segundo e a menosprezar o primeiro. Entretanto, a viso do litoral paulista que Calixto oferece insubstituvel; potica e serena, ela possui uma sensibilidade prpria, rica e enriquecedora. Entretanto, a afirmao de que a Gioconda uma obra-prima serve apenas para consagra-la, sem que a nossa apreenso da arte e do mundo melhore em alguma coisa. A histria da arte e a crtica no se contentam, porm, em determinar, com um veredicto sem justificaes, a qualidade do objeto artstico. Elas trazem, ligados a esse julgamento, o discorrer sobre o objeto, o suporte que leva ao julgamento. Ora, a situao de divergncias no satisfatria para o prprio discurso. Nada mais irritante para sua autoridade que a negao por um outro discurso. Surge ento o desejo de uma objetividade. Os discursos sobre as artes parecem, com freqncia, ter a nostalgia do rigor cientfico, a vontade de atingir uma objetividade de anlise que lhes garanta as concluses. E na histria do discurso, na histria da crtica, na histria da histria da arte, constantemente encontramos esforos para atingir algumas bases slidas sobre as quais se possa apoiar uma construo rigorosa. O instrumento primeiro e mais freqente desse desejo de rigor o das categorias de classificaes estilsticas. Se conseguirmos definir estilos, no interior dos quais encaixarmos a totalidade da produo artstica, comeamos a pisar terreno mais seguro. E a palavra sobre

    24 as artes tentar determinar essas classificaes gerais. A idia de estilo est ligada ideia de recorrncia, de constantes. Numa obra existe um certo nmero de construes, de expresses, sistemas plsticos, literrios, musicais, que so escolhidos (mas sem que

  • esta noo tenha um sentido forosamente consciente) e empregados pelo artista com certa freqncia. A idia de estilo repousa sobre o princpio de uma inter-relao de constantes formais no interior da obra de arte. Tomemos um filme de Hitchcock, Psicose, por exemplo. Constatamos nele a valorizao dos personagens, sempre presentes, sempre tratados de maneira individualizada; so mais freqentemente um, dois, trs, do que grupos numerosos. O cineasta filmou-os de perto, mostrando sobretudo os rostos, a parte superior dos corpos. Verificamos tambm que as paisagens so raras e, quando existem, esto dramatizadas e intimamente ligadas ao: uma casa inquietante, um pntano que ir tragar um carro. Percebemos que no h momentos de contemplao, mas que todas as imagens dependem de uma vontade preponderante de narrar. Estes elementos j so suficientes para detectarmos um estilo prprio ao filme, subordinado narrao, sublinhando o comportamento dos personagens. Mas podemos aprofundar mais a anlise, verificando que certos movimentos de cmera, certos tipos de

    25 montagem, certos efeitos musicais reaparecem com insistncia e delineiam com preciso crescente o estilo de Psicose. Depois de Psicose vamos ver Suspeita. Descobrimos que nele tambm existem paisagens dramatizadas, personagens vistos de perto, em tomadas prximas, movimentos de cmera que evocam Psicose. E, na medida em que nos pomos em contacto com outros filmes de Hitchcock, percebemos que certos elementos de construo tendem a ser reempregados, por exemplo um determinado travelling que comea distncia e se aproxima lentamente de uma janela, penetrando numa casa;

  • um certo modo de localizar um personagem, dominado por um imenso elemento de arquitetura, de fotograf-lo como que aprisionado na teia das sombras projetadas num interior, ou no cruzamento dos caminhos entre os tmulos de um cemitrio, e assim por diante. Prestando ateno nos elementos que reaparecem, descobrimos o estilo de Hitchcock. Do mesmo modo que podemos descobrir uma coerncia estilstica diferente em Eisenstein, Jean Renoir ou Humberto Mauro. Isto verdadeiro em todas as artes: h o estilo de Zola, de Jos Lins do Rego, de Villa-Lobos e de Mozart, de Portinari ou Pedro Amrico. Por vezes, o artista, como acontece com Ingres, mantm um mesmo estilo imutvel da primeira ltima obra; na maioria dos casos, porm, ele transforma, modifica suas constantes estilsticas com o

    26 correr do tempo: ao ouvir a Sagrao da Primavera e Petrushka de Stravinsky, sentimos que as duas obras tm muita coisa em comum, mas que esto bem distantes da Sinfonia em d ou do Rquiem do mesmo compositor. Assim, um mesmo criador pode desenvolver em sua produo tendncias estilsticas diferentes que, se se sucedem no tempo, constituem as "fases" distintas do artista. Estas constantes transcendem as obras. Quando conhecemos suficientemente o estilo de um autor, reconhecemos com facilidade sua produo. No preciso termos ouvido e memorizado todas as composies de Chopin para sabermos que dele a pea desconhecida que escutamos no rdio; no precisamos, num museu, ler a etiqueta para descobrirmos que tal obra foi pintada por Matisse ou Rembrandt, desde que estejamos familiarizados com o estilo desses artistas. O estilo pode at levar constatao da existncia de autores sobre os quais ignoramos tudo: so os "mestres". Se um grupo de obras annimas apresenta muitas

  • afinidades estilsticas, os especialistas criam a hiptese de um autor comum. Freqentemente, um quadro mais importante que agrupa, sua volta, outras obras e que d nome ao autor: assim o mestre da Anunciao de Aix, o mestre de Flora. Outras vezes, o mestre autor de um ciclo: assim, o mestre dos "cassoni Campana", ou o mestre da Capela Velha, que Mrio de Andrade descobriu em Itu, distinguindo-o do Padre

    27 Jesuno do Monte Carmelo. Ou, ainda, o artista possua uma caracte-rstica muito precisa em sua obra, como o "mestre da candeia". Assim, as constantes estilsticas permitem mesmo a constituio de autores unicamente a partir das obras. Alargando ainda mais o campo do conceito, descobrimos que as diversas pocas constroem uma espcie de pano de fundo estilstico comum s obras, por diferentes que sejam. No existem artistas mais dessemelhantes que Rossini e Beethoven, que David e Goya; h neles, entretanto, alguns elementos comuns que, embora difusos, so prprios sua poca e os renem. Eles "pertencem" mesma poca, e no podemos imagina-los fora dela: quando vemos uma pintura de Goya e David, mesmo sem conhecer seus autores, sabemos que elas no poderiam ter sido feitas nem no comeo do sculo XVIII, nem no fim do sculo XIX. Mas tambm certo que, dentro das mesmas pocas, segundo afinidades entre produes de diferentes criadores, possvel reagrup-las sob denominadores particulares: David e Canova so neoclssicos, Boucher e Fragonard so rococ. Neste esquema simplificado, a ideia sedutora. Mas o problema, bem mais complexo, impede na realidade que as articulaes sejam assim to fceis. Porque a obra de arte no se reduz ao estilo, e porque as classificaes estilsticas no tm, muitas vezes, a pureza formal que

  • evocamos acima. E tambm porque, no discurso sobre a arte, no raro

    28 Encontrarem-se referncias ideia de estilo como se fosse suficiente e formal, o que vem ainda mais complicar as coisas. Tentaremos ver as limitaes, a utilidade e os empregos abusivos dessa noo, misrias e grandezas da noo de estilo. Os estilos Falando de arte, referimo-nos a impressionismo, surrealismo, romantismo, rococ, a um estilo cretense, helenstico ou egpcio. Na maior parte das vezes, atribumos a essas palavras um poder excessivo: o de encarnarem uma espcie de essncia qual a obra se refere. De que estilo tal pintor? Enquanto no colamos uma etiqueta em cima, no sossegamos: hiper-realista, abstracionista, impressionista, surrealista. Isso nos tranquiliza, pois supomos conhecer o essencial sobre a obra; supomos saber o que significam as classificaes, e que a obra corresponde a uma delas. Essa atitude pode ser pacificadora, mas no satisfatria. Pois as obras so complexas, e de sua natureza escapar s classificaes; pois as classificaes so complexas e nunca se reduzem a uma definio formal e lgica; pois a relao entre as obras e os conceitos classificatrios ,

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  • sobretudo, complexa. Dissemos que as denominaes estilsticas extravasam o domnio da definio formal, que, inicialmente, parecia constituir seu ncleo de base. Elas no so lgicas, so histricas, viveram no tempo e tiveram caminhos e funes diferentes. Elas evoluram, e no so forosamente as mesmas segundo as pocas que as empregam. Algumas foram criadas por homens que se reconheciam nelas: Breton e Dali diziam-se surrealistas, Alberti e Masaccio sabiam-se homens da Renascena, Courbet colocou na entrada de uma das suas exposies uma tabuleta: "Pavilho do Realismo". Em outros casos, a atribuio de um epteto a um grupo de artistas exterior a ele: os "impressionistas", os fauve, foram assim chamados de maneira pejorativa, por jornalistas do tempo, embora em seguida tenham assumido, por pirraa ou paixo, as denominaes. E, ainda, h conceitos inventados a posteriori para localizar, na histria, tal ou qual grupo de artistas que, evidentemente, no suspeitavam da classificao: Bernini no sabia que era "barroco", nem Simone Martini que era "gtico". Ainda: a relao entre os denominadores e as obras nunca se d da mesma maneira. A idia de romantismo refere-se a uma renovao das tcnicas artsticas, na medida em que compreende uma ruptura e uma oposio com um passado "clssico", mas nos encaminha o que

    30 mais importante a uma viso global do mundo, da sensibilidade, a uma atitude diante da sociedade, enfim, a todo um conjunto de elementos que ultrapassa o lado puramente formal, a especificidade do fazer artstico. Por vezes, essa especificidade reduzida a um mnimo: Andr Breton, cujo pensamento constitui um dos eixos capitais do que se chamou movimento surrealista, reconhecia que certas tcnicas, certos

  • procedimentos, como a escrita automtica, que alinha palavras ou expresses tais como aparecem espontaneamente, em associaes, sem controle consciente, ao esprito do artista, ou o frottage (do verbo francs frotter, esfregar), que consistia em tomar a marca em relevo de uma superfcie rugosa (a madeira de um velho assoalho, por exemplo) e com ela organizar um desenho ou um quadro, ou como a colagem de objetos diferentes (recortes de jornais, coisas do uso quotidiano ou recuperadas no lixo, etc.), podiam permitir a manifestao da profundidade inconsciente do artista. Para o surrealismo, a liberao desse "eu profun-do" era a meta essencial da arte. Mas Breton reconhecia tambm que estas tcnicas, embora propcias, no eram suficientes para a realizao de uma obra surrealista. Elas poderiam ser utilizadas sem sinceridade, visando apenas um efeito sedutor, moda, tendo como resultado um produto inautntico, pseudo-surrealista. Por outro lado, esses no eram os nicos meios que o artista podia dispor para obter tambm a

    31 desejada liberao inconsciente. Uma obra surrealista no depende, portanto, de uma definio estilstica. Num texto intitulado Situao Surrealista do Objeto, Breton, analisando o problema, lembra a sugesto de Man Ray (que trabalhava sobretudo com experincias fotogrficas): do mesmo modo que, no cinema, costuma-se projetar, antes da pelcula, "Este um filme Paramount", devia se descobrir, "incorporado de alguma maneira ao poema, ao livro, ao desenho, tela, escultura, construo nova que se tem sob os olhos, uma marca, feita de modo inimitvel e indelvel, alguma coisa como: 'Este um objeto surrealista'. A anedota mostra bem que para Breton, alm do estilo, existem outros fatores decisivos para definir o objeto surrealista. E eles se fundamentam numa sinceridade

  • profunda, num impulso de libertao do inconsciente, numa espcie de moral surrealista que escapa ao simples exame exterior dos objetos. Nesse sentido, talvez o gesto surrealista mais legtimo - e trgico - tenha sido o suicdio de Ren Crevel. Como o romantismo, ou melhor que ele, o surrealismo implica uma viso, uma atitude diante do homem e da sociedade. Se examinamos entretanto a pintura impressionista, descobrimos poucas preocupaes desse tipo. Os impressionistas, en quanto artistas, tiveram uma atitude corajosa e conseqente, opondo-se arte dominante de seu tempo. Mas

    32 suas obras no repousam sobre uma determinada posio terica, poltica ou sentimental diante da vida. A palavra impressionismo tem hoje uma extenso menor que a adquirida em 1874, ocasio da primeira exposio do grupo, muito dspar, alias. Impressionismo, depois do artigo irnico e maldoso de Louis Leroi no Charivari, ficou denominando toda arte pouco ortodoxa ou maldita. Tanto Gauguin quanto Van Gogh, nitidamente distintos em sua pintura de um Renoir ou Monet, recebiam a denominao. Mas logo se evidenciou a coerncia formal de um ncleo mais reduzido. Caillebotte, Monet, Pissarro, Sisley uma boa parte da produo de Renoir recusam o desenho que estrutura, privilegiam o gesto espontneo e preferem pintar ao ar livre, diante do motivo, tomando como preocupao central os efeitos produzidos pelos fenmenos puramente luminosos (reflexos, transparncias, fumaas, brumas) sobre os volumes. O assunto do quadro tinha pouca importncia: o organizador do catlogo da exposio de 1874 desconsola-se ao receber a lista dos ttulos de Monet: eram Entrada de aldeia, Sada de aldeia, Tarde na aldeia, Manh na aldeia, Marinha, a no mais

  • acabar. E quando ele pinta sua srie de Freixos, de Montes de feno, ou a catedral de Ruo ao meio-dia ou no crepsculo, mostra bem que seu interesse reside no na representao das rvores, do feno ou da catedral,

    33 mas nas variaes de efeitos luminosos sobre esses volumes, que funcionam essencialmente como suportes. E, assim, chega-se a um conjunto de prticas artsticas que podem ser usadas como elementos definidores; por elas afirmaremos definitivamente que Gaughin e Van Gogh no pertencem ao grupo, nem sequer Czanne, Toulouse-Lautrec ou Degas, que constituiriam, quando muito, o setor das "divergncias e variaes" do impressionismo, como diz Jean Cassou. Percebemos, a partir desses exemplos, que as classificaes no so instrumentos cientficos, que elas no so exatas, que no partem de definies, e que agrupam obras ou artistas por razes muito diferentes, entre as quais se pode encontrar a idia de estilo, mas no forosamente, e sempre parcialmente. O que nos leva a considerar que seu emprego deve ser muito cuidadoso. Um dos perigos o de sua utilizao como universais. banal encontrarmos a palavra surrealismo empregada como sinnimo de inslito, de estranho, de desabitual e mesmo de absurdo; como banal ouvirmos dizer que determinado objeto barroco porque parece extravagante ou muito ornamentado fala-se mesmo em uma natureza barroca; ou que tal moa romntica porque possui uma personalidade sentimental, ou que tal artista impressionista unicamente porque pinta de maneira mais ou menos livre. Esse emprego descontrado e sem

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  • compromisso evidentemente abusivo, apenas apropriado a conversas de salo ou de bar. Entretanto, o mesmo princpio de universalidade costuma ocorrer com freqncia num discurso que se pretende mais elaborado: Bosch passa a ser surrealista, Debussy impressionista (fala-se mesmo numa "crtica impressionista"!), Virglio romntico, ou pior, tenta-se a todo preo rubricar os artistas com tal ou qual etiqueta. Fra Anglico, por exemplo, gtico ou renascentista? Podemos perguntar se h necessidade de escolher um rtulo qualquer para designar o pintor do convento de So Marcos. Pois o importante no assimilar seu estilo ao que supomos seja o gtico ou a pintura de Renascena, mas descobrir o que o artista revela como preocupaes, como viso, qual a sua especificidade entre as artes de seu tempo. Lanar mo do metro "estilo gtico" para medir Fra Anglico e descobrir se ele se encaixa, empobrecer lamentavelmente a nossa percepo de sua obra. suficiente nos debruarmos sobre o objeto artstico em si mesmo para percebermos a inanidade das classificaes, pois sua riqueza foge sempre a qualquer determinao. D. Casmurro muito mais que um romance realista, A Besta Humana no se reduz aos preceitos do naturalismo: as obras, em sua fecundidade concreta, so sempre mais do que nos dizem as pretensas definies. E, no entanto, elas possuem uma singular seduo. Estamos diante

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    de produtos que nos escapam, que se desenvolvem de modo to inesperado, to pouco previsvel que, para os dominar, no resistimos tentao fcil de os classificar. E essas classificaes passam a ser mais

  • importantes do que as obras. Crtica, histria da arte, categorias e sistemas O princpio das classificaes baseadas na idia de estilo deu, em particular histria da arte, a esperana de um instrumento objetivo e eficaz. E aqui preciso distinguir a funo do crtico da do historiador, distino formal porque, na maior parte das vezes, essas atividades se juntam. O Crtico analisa as obras, e sua funo eminentemente seletiva. De certo modo, o juiz que valoriza ou desvaloriza o objeto artstico. claro que o conhecimento da histria das diferentes produes artsticas serve-lhe para a elaborao de seus critrios. Um crtico de cinema freqentemente conhece os filmes do passado, o que lhe permite um jogo de comparaes, intuitivas ou explcitas, capaz de o levar a condenar este ou aquele filme. Mas isso, alm de no ser absolutamente necessrio, no se confunde com a construo da histria dos objetos artsticos no tempo.

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    Assim, o historiador da arte procura em princpio evitar os julgamentos de valor. Taine, no fim do sculo passado, lanando as bases de uma abordagem rigorosa desses fenmenos, dir que necessrio colocar-se entre parnteses o julgamento, para se chegar compreenso objetiva.

  • Entretanto, o historiador da arte no consegue evitar inteiramente os critrios seletivos, pois o conjunto de objetos que estuda supe uma escolha. Privilegiar um autor que parea a seus olhos e aos de seus contemporneos mais importante, consagrando-lhe um maior nmero de pginas, aprofundando mais a anlise. Uma histria da literatura brasileira dedicar forosamente vrias pginas a Machado, um nmero bem menor a Gonalves de Magalhes, e poder excluir Teixeira e Souza. A seleo feita ou assumida pelo historiador nunca o fim procurado pois, como j dissemos, ele busca a compreenso dos fenmenos artsticos. Mas, se ele trabalha a partir de um corpus (um conjunto delimitado de elementos que serviro de objeto de estudo) necessariamente selecionado, o que pretende, antes de tudo, articul-lo num conjunto coerente e o compreender. A compreenso, a suspenso do julgamento denotam o desejo de rigor, prximo da cincia. Ser til examinarmos alguns esforos feitos na histria da arte para se conseguir um rigor maior atravs da idia de estilo.

    37 O primeiro momento d-se com Heinrich Wlfflin (1864-1945), na virada do sculo. Wlfflin, terico e historiador nascido na Sua, tenta construir uma metodologia rigorosa no interior da histria da arte. Antes dele, Taine preocupara-se com as ligaes entre as obras e o contexto cultural que as produziu. No isso que interessa a Wlfflin: ele busca um mtodo que focalize a obra de arte exclusivamente na sua especificidade e prope assim, por primeiro, as bases de uma anlise formal precisa, fundamento de uma histria autnoma das artes.

  • Em 1888, Wlfflin escreve Renascena e Barroco. Neste texto aparecem duas novidades essenciais. A primeira a revalorizao do barroco, que desde o fim do sculo XVIII era considerado, pejorativamente, como uma evoluo aberrante e decadente da arte da Renascena, um derivado estril que tentava compensar pela extravagncia a ausncia de seiva criadora. Wlfflin decide-se por outra interpretao: o barroco uma produo artstica nova e total, com seus prprios critrios, formas e intenes. A arte dos sculos XVII e XVIII diferente da arte da Renascena, e deve ser compreendida em si mesma. A segunda novidade, no menos importante, que, para Wlfflin, o que determina a autonomia do barroco e sua oposio ao classicismo da Renascena, uma anlise minuciosa das constantes formais. Pela primeira vez, dois perodos distintos da histria da arte aparecem

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    claramente caracterizados a partir, unicamente, de um inventrio estilstico. Bem mais tarde, em 1915, Wlfflin escrever outro tratado: os Princpios Fundamentais da Histria da Arte, que representa o amadureci-mento das reflexes desenvolvidas na obra anterior, e a tentativa de as teorizar. Nele encontramos cinco categorias duplas, em oposio, que permitiriam caracterizar o classicismo e o barroco. So as seguintes: 1) o classicismo linear, o barroco, pictural; 2) o classicismo utiliza planos, o barroco, a profundidade; 3) o classicismo possui uma forma fechada, o barroco, aberta; 4) o classicismo plural, o barroco, unitrio; 5) o classicismo possui uma luz absoluta, o barroco, relativa.

  • Compreenderemos melhor o que Wlfflin quer dizer com cada uma dessas oposies, a partir de alguns exemplos facilmente acessveis. Para ilustrar a primeira categoria, tomemos o chamado tondo Doni (figura 1 tondo, em italiano, quer dizer circular, redondo, e aplicado aos quadros que possuem essa forma: a clebre Madona da Cadeira de Rafael, que se encontra na Galeria Palatina do Palcio Pitti, em Florena, um tondo, a Virgem com o Menino e So Joo Batista, de Botticelli, que se encontra no Museu de Arte de So Paulo, tambm.Doni o sobrenome do florentino

    39 que encomendou o quadro), representando a Sagrada Famlia com So Joo Batista, pintado por Michelangelo na primeira dcada do sculo XVI e que se encontra no Museu dos Ofcios de Florena. O quadro um pouco inslito: o grupo da Sagrada Famlia est perto do espectador, ocupando o centro da tela; atrs, isolados por uma espcie de murinho, esto So Joo menino e cinco nus masculinos de adolescentes. A estranheza pede uma explicao simblica, e as imagens podem ser tomadas como uma articulao entre a antiguidade clssica (os nus) e a religio crist (a Sagrada Famlia), ou o paganismo redimido pelo batismo, atravs da figura intermediria de So Joo, ou ainda como outra coisa qualquer. Mas isso, por ora, importa pouco. O que nos interessa a linha, instrumento construtor por excelncia, que define com nitidez os objetos, conduz o olhar e limita os volumes. Por seu intermdio, Michelangelo apreende os corpos no que eles tm de palpvel, de ttil, isto , os contornos e as superfcies. Estamos diante de uma viso plstica que isola os objetos fisicamente, corporalmente, pelo contorno. Os braos da Virgem, musculosos, fortes, sobre os quais Wlfflin deixou um texto de

  • profundo lirismo e admirao, so perfeitamente recortados, e o modelado (em pintura, o modelado a aplicao de luz e sombra sobre um objeto de modo a se obter o efeito de volume) tem uma preciso

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    metlica. As dobras do manto so tambm definidas pelas linhas, com rigor, e pelo relevo ntido e vigoroso. Opondo-se ao linear, est o pictural. H um quadro no museu Richartz, de Colnia, pintado em 1630 e portanto mais de cem anos depois do de Michelangelo, que nos servir de perfeita anttese: ele representa tambm uma Sagrada Famlia ( qual foi acrescentada Sant'Ana - figura 2) e seu autor Rubens. Sentimos imediatamente entre os dois diferenas considerveis e uma delas que esse aspecto plstico, ttil, que no quadro de Michelangelo atraa nossas mos, diminuiu muito: ao carter palpvel dos volumes substituiu-se sua aparncia puramente visual. Os limites lineares deixaram de ser precisos, as carnes e os tecidos no refletem mais a luz e passaram a ser o suporte de uma vibrao luminosa introduzindo um modelado muito menos definido. Os objetos no se encontram mais isolados entre si, mas se ligam, atravs de passagens suaves, uns aos outros. Num caso, diz Wlfflin, temos "objetos corpreos distintos", no outro, "uma viso na sua totalidade, uma aparncia flutuante". A segunda oposio, em planos ou profundidade, decorre da primeira. Tomemos dois outros exemplos: A Escola de Atenas de Rafael (figura 3), de 1510, certamente o afresco mais clebre da srie que lhe foi encomendada por Jlio II para decorar aposentos no palcio do Vaticano; e o Rapto das Sabinas, um Rubens dos anos 1630 (Figura 4), que

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  • Fig. 1 - Michelangelo Buonarroti - A Sagrada Famlia (tondo Doni). Cerca de 1504/5. Galeria dos Ofcios,

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  • Fig. 2 - Pieter Paul Rubens - A Sagrada Famlia.

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  • Fig. 3 - Rafael Sanzio - A Escola de Atenas. 1509/10. Palcio do Vaticano, Cmara da Assinatura, Roma. 44 45

  • Fig. 4 Pieter Paul Rubens O Rapto das Sabinas 1635 - National Gallery, Londres 46 47

  • Fig.5 Jean Louis David As Sabinas. 1794/99. Museu do Louvre, Paris 48 49

  • se encontra na National Gallery de Londres. claro que o contraste rnais agudo entre essas duas obras, que salta aos olhos numa evidncia gritante, a total serenidade de um, meditativa, calma, e a frentica violncia do outro. Mas, alm disso, no primeiro caso, existe uma construo em planos sucessivos num espao organizado geo-metricamente, com o auxilio de um desenho rigoroso. O primeiro, segundo e terceiro planos, claros e paralelos, so reforados pela prpria representao do solo: no primeirssimo plano os motivos quadrados do piso em mrmore, em seguida os degraus e enfim o plano superior. Sobre eles, ordenadamente, dispem-se os personagens. Como, entretanto, distinguir planos no quadro de Rubens? No conseguimos mais fazer caminhar nosso olhar por etapas; ele circula sem repouso, pois tudo est ligado, e passamos do primeiro plano ao ltimo sem transies. A terceira oposio, forma fechada e forma aberta, ou tectnica e atectnica, como Wlfflin tambm diz, referindo-se a uma estrutura simtrica e slida, repousa sobre a idia de que os quadros clssicos possuem eixos de construo estveis e claros, verticais e horizontais, e que os quadros barrocos preferem o dinamismo das diagonais. Mas, alm disso, a forma fechada pressupe uma suficincia da composio, a aberta um extravasamento dos limites fsicos da tela: isto , num caso

    50 a imagem foi feita para ser vista na sua totalidade e, no outro, como um fragmento. No tondo Doni, na Escola de Atenas, temos no somente essa axialidade equilibrada, como tambm a ideia da suficincia da representao, enquanto em Rubens prevalece a impresso de surpreender, por um acaso maravilhoso, um fragmento do mundo visvel. Os limites fsicos do quadro, sua margem, sua moldura, no contm mais a cena, que transborda para o exterior. Num caso, a

  • construo pictural suficiente, no outro, ela pressupe o espao do espectador. E, nesta categoria, Wlfflin introduz tambm a ideia de que o classicismo mostra os objetos numa permanncia atemporal, enquanto o barroco procura o instante que passa. Na quarta oposio temos multiplicidade e unidade, ou, como prope o autor, unidade mltipla e unidade indivisvel. Num caso, cada elemento do quadro existe por si e se articula de acordo com a organizao clara do todo: cada personagem da Escola de Atenas tratado individualmente dentro de subgrupos dispostos simetricamente, inscritos num todo perfeitamente estruturado. No Rapto das Sabinas essa vida autnoma dos elementos inexiste: "as formas, guardando sua funo diretriz, emergem de um fluxo nico; para o olho, no significam nada que possa ser considerado parte, que possa ser destacado do resto". A vida de cada uma das partes s existe se subordinada ao conjunto. Finalmente, a luz absoluta e relativa ope obras como os exemplos

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    que demos de Michelangelo e Rafael, s de Rubens, pelo fato de que, nos primeiros casos, ela homognea em todo o quadro e ilumina da mesma maneira todos os detalhes. Na pintura de Rubens, entretanto, ela seleciona, privilegiando certas regies, obscurecendo outras: luz abstrata e atemporal do classicismo ope-se a dramatizao circunstancial do claro-escuro. Caravaggio foi o grande inventor desses efeitos no comeo do sculo XVII e seus herdeiros so os grandes luministas como La Tour, Rembrandt, Zurbarn. Desse modo, por meios exclusivamente formais e ignorando os temas das obras (pouco importa a simbologia obscura do tondo Doni ou o episdio do Rapto das Sabinas), Wlfflin organiza dois grupos estilsticos opostos. No entanto, ele , antes de tudo, um historiador da arte que,

  • pelo seu grande contacto com o objeto artstico, sabe que este se acomoda mal em esquemas e em simplificaes. Suas precaues no utilizar as categorias so exemplares. Em primeiro lugar, elas no prece-dem as obras mas so deduzidas de um corpus concreto; em segundo, ele no perde de vista a histria, pois, longe de serem universais, suas categorias aplicam-se exclusivamente a dois perodos precisos, o da Renascena e o do Barroco. Em terceiro, elas no so nem absolutamente necessrias, nem absolutamente suficientes: tal quadro de Rafael - a Madonna dellImpanata, do palcio Pitti, por exemplo, ou a Sagrada Famlia da Prola, do museu do Prado, em Madri utiliza uma luz

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    no homognea, mas seletiva e dramatizada; no h em Giorgione, pintor da Renascena veneziana, morto em 1510, o contorno que recorta, a superfcie metalina dos volumes; para no se falar do dinamismo "barroco" dos quadros do Tintoretto. Por outro lado, as categorias clssicas poderiam ser aplicadas a David, ao seu Rapto das Sabinas de 1799 (figura 5), por exemplo, mas seria impossvel confundir esse quadro com a produo da Renascena: o tipo de gesticulao empregada, trabalhada em si mesma, como poses de ateli, a sua recomposio no conjunto que d uma impresso de desorganizao astuciosa, teatralmente organizada , a vontade de citao arqueolgica, so fatores essenciais que o distinguem indubitavelmente do classicismo da Renascena. Wlfflin sempre se mostrou um historiador das formas e considerava suas categorias como espcies de plos (que, ele mesmo o diz, certamente no so os nicos), em volta dos quais se situavam, mais ou menos prximos, os quadros analisados (ou os edifcios e as esttuas, pois elas se referiam tambm escultura e arquitetura). Os exemplos

  • escolhidos por ele se encontravam sempre numa faixa de tempo estreita, e seu classicismo e barroco no se dessolidarizam da poca que os engendrou. Classificaramos Velasquez, Rembrandt, o silencioso, o calmo, o estvel Vermeer nessa ideia imprecisa que em nosso quotidiano, em nossos bate-papos, chamamos de "barroco"? Pois

    53 Wlfflin, em anlises magistrais, as toma como exemplos privilegiados em oposio ao classicismo. Alis, significativa a impresso de tanta riqueza em suas anlises, finas, completas, luminosas, ultrapassando de longe os andaimes esquelticos das cinco oposies. Em Wlfflin o discurso cuidadoso, e parte sempre de um exame do concreto. Sua tentativa de rigor eficaz, porque baseada num instrumento "pobre", que no pretende dar conta da multiplicidade da produo artstica examinada para isso, a flexibilidade da anlise dos objetos mais apta , mas que serve de ponto de apoio. As precaues de Wlfflin, entretanto, foram reiteradamente abandonadas, e com freqncia encontramos um formalismo categrico que se pretende absoluta chave explicadora. Passaremos agora a constatar dois casos de evoluo - entre os maiores e menores, inmeros que derivam, de uma certa forma, da atitude wolffliniana.

  • D'Ors e a categoria do barroco universal Classicismo e classicismo francs Em Wlfflin, como vimos, as obras secretam as constantes que permitem a ele situ-las em campos opostos. Mas, em muitas outras

    54 abordagens, o molde fabricado de antemo, o metro uma abstraao, e se impe exteriormente s obras. Eugnio d'Ors, brilhante pensador catalo, foi, podemos dizer, um herdeiro perverso de Wlfflin. Em 1928 escreve O Barroco, texto clebre, no qual sua erudio imensa e sua inteligncia propem a aproximao do conceito independentemente da histria, querendo-o de uma natureza cientfica, classificatria e universal, como Lineu havia feito com a zoologia e a botnica: o barroco seria um "gnero" que agruparia fenmenos culturais temporalmente distantes, mas possuindo constantes determinadoras comuns. Do mesmo modo que felix recobre um gnero zoolgico, barroco recobre um gnero cultural e artstico. Mas se esses fenmenos possuem constantes, eles possuem tambm especificidades que - sempre como nas classificaes zoolgicas e botnicas: felix leo, o leo; felix catus, o gato; felix tigris, o tigre definiro as "espcies" do barroco. E d'Ors determina um quadro classificatrio que comea na pr-histria (o barocchus pristinus) e prossegue, passando pelo barocchus buddhicus, pelo barocchus gothicus, pelo barocchus romanticus, entre outros. So vinte e duas categorias ao todo, que chegam mesmo a um barocchus finisecularis, correspondendo s

  • expresses artsticas do fim do sculo passado (d'Ors enumera Wagner, Rodin, Rimbaud, Beardsley, Bergson, W.James, Lautramont, Huysmans,

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    o art nouveau, e a um barocchus postabellicus (do ps-guerra, referindo-se de 1914-18), contemporneo de seu livro, que no se v associado a exemplo nenhum, mas a respeito do qual seramos tentados de evocar Proust, o art dco e . . . o prprio Eugnio d'Ors. O livro de d'Ors, pelo seu brilho, pela facilidade com que manipula os mais diversos objetos artsticos, aproximando-os entre si ou os iluminando de maneira inesperada, de extrema fecundidade. Sua leitura permite entrar em contacto com um grande esprito, que ao mesmo tempo um grande escritor. Mas suficiente pensarmos na atitude que consiste em colocar no mesmo saco Lascaux, a janela de Tomar, os afrescos cretenses, Bergson, El Greco e Proust para percebermos que, se tais aproximaes podem engendrar ideias apaixonantes, elas s podem ser obra do sujeito que encontra as afinidades, e sua pretenso ao instru-mento objetivo um engano. Wlfflin, historiador das formas, concebe duas categorias historicamente situadas em sucesso; d'Ors toma uma delas e universaliza-a brilhantemente, sacrificando o rigor. A outra categoria, o classicismo, embora sem um terico da mesma envergadura que d'Ors, ser tambm universalizada. At pelo menos o sculo XVIII ela estava ligada a uma idia de modelo, os clssicos por excelncia sendo os antigos, isto , os gregos e os romanos justamente a chamada antiguidade

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  • clssica. Dessa ideia de modelo-mestre, ela passa a significar equilbrio, rigor, tranqilidade, racionalidade. Pouco a pouco, durante os sculos XIX e XX, esse sentido afirma-se cada vez mais e tem repercusses profundas. A Frana, por exemplo, constri uma imagem "clssica" de si mesma, de seu gnio o mais legtimo, presente em todos os momentos da histria do esprito francs. Essa viso sobretudo cimentada no comeo da Terceira Repblica (a partir de 1870), momento em que a ideologia do poder leiga, positiva, clara, cientfica: Descartes fica sendo ento um filsofo "clssico", Le Brun, Girardon, Mansart, Racine, artistas "clssicos". Foi preciso esperar Tapis com seu admirvel livro Classicismo e Barroco, confirmado no recente e genial ensaio de Philippe Beaussant intitulado Versalhes, Opera, para se descobrir que o classicismo francs do sculo XVII apenas uma manifestao local e especfica de um movimento internacional de arte e civilizao que habituamo-nos a chamar barroco . . . Focillon e o evolucionismo autnomo das formas Para um esprito rigoroso, essas universalizaes so insatisfatrias. E sentindo as dificuldades das categorias, um esteta e historiador da arte

    57 dos mais importantes do sculo XX tentou elaborar um sistema dinmico da evoluo das artes. Para Wlfflin e d'Ors, os conceitos so

  • estticos, eles agrupam, e nada mais. Wlfflin liga-se evoluo no tempo, porque em tal momento as formas tomam tais constantes e, no seguinte, outras tantas. Mas, para ele, o barroco no uma conseqncia do classicismo: h uma idia de sucesso, e no de causalidade. Focillon, em seu livro que se intitula significativamente A Vida das Formas (1934), tenta o seguinte processo evolutivo: o classicismo pleni-tude e apogeu, momento de maturidade onde as formas encontram um equilbrio perfeito, embora fugitivo e passageiro. Mas no se trata do classicismo de Wlfflin, isto , correspondente Renascena: o conceito aplicvel a todas as pocas artsticas, pelo menos como pressuposto possvel. Este classicismo, que podemos encontrar na arte grega, romana, gtica, romnica, etc., no aparece, entretanto, sem mais nem menos. Ele se insere em uma evoluo. H primeiro uma etapa de elaborao, que Focillon chama de "estado primitivo", onde as formas, na sua relao com as matrias empregadas, com as tcnicas usadas, ou no seu prprio ensaio, tateiam, buscam e descobrem pouco a pouco as solues mais eficazes, o emprego mais pleno e perfeito de seus meios. o estado primitivo que prepara e permite a maturidade do classicismo. Depois

    58 desta etapa, o artista no tem mais o que buscar e, retomando os meios formais j perfeitamente dominados, s pode acrescentar, complicar, reelaborar: o esplendor luxuriante das formas, o desequilbrio, o excesso. o barroco. Etapa primitiva, clssica, barroca: todos os perodos artsticos, segundo Focillon, passam - pelo menos virtualmente - por elas. Assim, a arte da Grcia arcaica at Miron representaria a elaborao primitiva, Fdias seria a plenitude clssica; a produo do perodo helenstico, o

  • barroco. Focillon estabelece subevolues, entroncamentos genealgicos que tornam complexa a universalidade do processo evolutivo, mas essa universalidade a base essencial de seu pensamento. Uma das caractersticas de sua concepo que tenta instaurar uma histria das formas independente da histria. Nada de sociologia, de psicologia, de relao entre arte e histria. As formas possuem suas leis prprias de transformao no tempo, que s podem ser encontradas na busca da prpria forma. O tempo da histria da arte assim autnomo, e possui leis especficas. Reconhecemos aqui a marca wolffliniana: a especificidade das artes encontra-se nas formas, so elas que permitem um sistema classificatrio esttico ou evolutivo. O princpio de uma histria formal das artes marcou profundamente o sculo XX. De um modo ou de outro, at muito recentemente, os historiadores da arte, mesmo espritos notveis

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    como Pierre Francastel, que reivindicava uma sociologia das artes, lhe foram devedores. Isso conduziu a uma desvalorizao das signifi-caes do objeto artstico, de seu aspecto semntico. Foram raros os historiadores das artes que se preocuparam com o problema do sentido, da significao do objeto - eles se reduzem a um grande nome (ou a dois, para no esquecermos o trabalho, menos conhecido mas no menos importante, de mile Mle): o de Panofsky, que estuda a "iconologia", isto , a cincia da significao das imagens. Mas Panofsky, por assim dizer, assume a separao entre os campos formais e os signifcativos e no se preocupa com formas ou estilos - s se interessa pelas significaes. Simplificando se retomarmos o exemplo do tondo Doni, a Wlfflin e aos formalistas caberia a preocupao com linhas, cores, volumes,

  • composio, com o "estilo"; enquanto Panofsky e os iconologistas tratariam do "sentido" das imagens: o murinho significando, por exemplo, a separao entre as duas idades, a antiga e a crist. So Joo Batista servindo de intermedirio na medida em que traz o meio o batismo para salvar os pagos, etc. O rigor das categorias forosamente simples e simplificador. A prpria idia de "estilo", definida como um sistema de constantes formais, parece insuficiente para cobrir a complexidade dos objetos: o surrealismo mais que um estilo surrealista, a bem dizer inexistente. A

    60 reduo a esquemas formais, estticos e precisos como em Wlfflin, universais como em d'Ors, dinmicos como em Focillon, deixa a descoberto, como Panofsky testemunha, um setor importante do objeto artstico: o seu aspecto semntico. Mais grave ainda, elas excluem a problemtica da relao arte-cultura, a compreenso do objeto artstico passando pela compreenso da cultura que o produziu. Estas tentativas importantes, entre outras, em nosso sculo, de dar um rigor formal anlise das estruturas prprias da obra de arte - por mais rico, rigoroso e complexo que seja o pensamento, como o caso de Focillon - so insuficientes. A riqueza do objeto artstico escapa sempre aos moldes que se querem lgicos. Tais moldes so perigosos porque induzem a acreditar que a aproximao da obra de arte passa unicamente por eles e que, nesse processo, eles so suficientes. Como se formassem uma grade transparente, e como se a riqueza dos objetos artsticos pudesse acomodar-se no sistema de ordens que eles propem, sistema que s pode partir de uma seleo redutora dos elementos constituintes do objeto artstico.

  • Dizer que um filme expressionista ou que uma sinfonia romntica pode ter o sentido de uma definio absoluta do objeto - como, voltando a d'Ors, fazem as classificaes da zoologia. Entretanto, se quisermos utilizar esses termos com

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    fecundidade, devemos limit-los, precis-los, examinando cada caso do emprego, tornando-os mais modestos, lembrando que as classificaes so, antes de mais nada, denominaes cmodas e no definies cientficas.

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  • ARTE PARA NS O museu imaginrio Histria da arte, crtica, museu, teatro, cinema de arte, salas de concerto, revistas especializadas: instrumentos da instaurao da arte em nosso mundo. Eles selecionam o objeto artstico, apresentam-no ou tentam compreend-lo atravs deles a arte existe. So, como tambm a arte, especficos e indissociveis de nossa cultura. s vezes, lemos ou ouvimos referncia a uma obra de arte universal, que transcende o tempo e o espao; a objetos que tiveram, continuam tendo e sempre tero valor artstico. Transcendentes, exteriores s culturas e ao tempo, as obras possuiriam como que uma "essncia" artstica, um valor "em si", intrnseco e imanente, que lhes garantiria o "ser" obra de arte, ser perene, uma das manifestaes superiores da

    63 natureza humana. Ora, importante ter em mente que a ideia de arte no prpria a todas

  • as culturas e que a nossa possui uma maneira muito especfica de conceb-la. Quando nos referimos arte africana, quando dizemos arte Ekoi, Batshioko ou Wob, remetemos a esculturas, mscaras realizadas por tribos africanas da Nigria, Angola ou da Costa do Marfim: isto , selecionamos algumas manifestaes materiais dessas tribos e damos a elas uma denominao desconhecida dos homens que as produziram. Esses objetos, culturais no so para os Ekoi, Batshioko, Wob, objetos de arte. Para eles, no teria sentido conserv-los em museu, rastrear constantes estilsticas ou compor anlises formais, como ns fazemos, porque sao instrumentos de culto, de rituais, de magia, de encantaco. Para elas no so arte. Para ns, sim. A noo de arte que hoje possumos - leiga, enciclopdica - no teria sentido para o arteso-artista que esculpia os portais romnicos ou fabricava os vitrais gticos. Nem para o escultor que realizava Apolo no mrmore ou Poseidon no bronze. Nem para o pintor que decorava as grutas de Altamira ou Lascaux. Desse modo, o "em si" da obra de arte, ao qual nos referimos, no uma imanncia, uma projeo. Somos ns que enunciamos o "em si" da arte, aquilo que nos objetos , para ns, arte.

    64 Andr Malraux, pensador francs contemporneo que muito se preocupou com os problemas artsticos, construiu suas reflexes nas fronteiras desse "em si" e desse "para ns". Ele concebeu a idia de um "museu imaginrio", que seria a reunio de obras cujas afinidades no procedem da histria, mas de uma subjetividade: um museu da subjetividade analgica. Nesse sentido, Malraux ilustra o ponto extremo a que chegou a ideia de arte "para ns": trata-se de uma seleo, intuitiva, de obras que no possuem relaes evidentes entre si, que se encontram

  • separadas no tempo e no espao. Entretanto, Malraux no se perde no arbitrrio porque segundo ele sua subjetividade tem o poder de descobrir a fora artstica que est nos objetos. Imanente. Em si. "A questo delas (de algumas esculturas enumeradas) projetava-se sobre toda a histria; elas sugeriam que muitas obras-primas, ao contrrio do que afirmam as histrias de arte, esto longe de se ligarem assim to estreitamente produo das civilizaes onde nasceram. Inteiramente estrangeiras sua poca, essas figuras retiravam de meios especficos uma presena, rebelde iluso e obscuramente aparentada ao fantstico (...) Presena que designamos como a da obra de arte, e que somos os primeiros a assim fazer" Malraux, Le muse imaginaire de la sculpture mondiale. NRF, 1952). De acordo com este raciocnio, os objetos artsticos ultrapassam

    65 a histria, as sociedades que os engendraram, porque possuem alguma coisa (uma presena) que ns, em nossa cultura, sabemos, pela primeira vez, detectar e nomear. Mas Malraux justamente um pensador de nossa cultura, e sua atitude s possvel porque ela lhe fornece os meios. Na realidade, projeo e reconhecimento so indissociveis, e o "museu ima-ginrio" secretado por nossa maneira de pensar, que vai pescar, em todas as civilizaes, objetos que chamamos "artsticos". A idia de transcendncia cultural e histrica da arte nossa; sem ns, ela no existe. Criamos a perenidade, a eternidade, o "em si" da arte, que so apenas instrumentos com os quais dispomos, para ns mesmos, uma configurao de objetos. O absoluto da arte relativo nossa cultura.

  • O "para ns" e a modificao da obra Vimos, na introduo, como difcil delimitar a linha que separa os objetos artsticos dos no artsticos: isso vem em parte do fato de que essa vocao enciclopdica do "para ns" onvora. O modelo da arte ocidental - e portanto tambm seus limites - foi, durante muito tempo, desde a Renascena pelo menos, o da antiguidade clssica: quanto mais prximo se estivesse do antigo, mais a "essncia" artstica

    66 penetrava no objeto. do fim do sculo XVIII para c que a nossa concepo de arte alarga-se, conquistando, cada vez mais, terrenos novos: descobrese a arte oriental, a egpcia, a popular, a "ingnua", a africana, a ocenica, a arte industrial, os graffiti, etc. Dispor os objetos artsticos "para ns" significa faz-los vir de outras culturas e outros tempos. essa atitude que permite recuperar "artisticamente" a colher de pau utilitria, a mquina de costura do comeo do sculo, a cadeira em metal desenhada por um ateli dinamarqus ou italiano. no questionamento dessa atitude que se encontra o gesto de Marcel Duchamp: incluir, numa exposio, um mictrio. No caso de Duchamp no se trata, claro, de valorizar o design do mictrio, estetizando-o - como fazem hoje certos decoradores, ao colocar em cima da mesa, transformado em vaso de flores, o urinol de porcelana inglesa de nossas avs. Muito ao contrrio, a atitude de Duchamp era, por voltas de 1915, baseada no princpio da provocao. O que chamava ready-made (objetos fabricados em srie, mas desviados das funes primitivas pela sua instalao numa galeria, num museu), os mictrios, porta garrafas, rodas de bicicleta que ele impe ao pblico culto, obrigam esse mesmo pblico

  • a reconhecer que um objeto s artstico porque foi aceito como tal

    67 pelas diversas "competncias": pelo museu, pelo crtico, pelo historiador. Compreendemos ento o interesse da atitude de Duchamp dentro do domnio da arte: crtica atitude solenemente "culta" que nossa civili-zao confere ao contacto com o objeto artstico; denncia do aspecto convencional da atribuio do estatuto de arte pelos instrumentos da cultura; criao de uma antiarte. Mas, supremo poder desses instrumentos culturais, os objetos de Duchamp, que deveriam ser apenas testemunhos de um gesto de questionamento, conservados em museu adquirem efetivamente o estatuto de arte. O mictrio que, pela sua funo receptora de excremento, evoca o lada animal, orgnico e portanto menos "nobre" do homem, est nos antpodas da concepo de arte como instrumento de elevao do esprito: antiarte por excelncia. Convertido em pea de museu, assume o papel de objeto de contemplao, passa a provocar "sentimentos" no espectador. Alis, esta funo "artstica" da antiarte no escapa ao pensamento de Duchamp - ele prprio diz: "so os 'olhadores' que fazem um quadro". Qualquer objeto aceito como arte, torna-se artstico. Mais ainda, a prpria atitude da negao da arte, a prpria crtica radical sero recuperadas como "meios" de produo artstica. As vanguardas provocadoras sucederam-se em nosso sculo e se alimentaram do desafio e do escndalo.

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  • Os sucessores de Duchamp se multiplicam ainda hoje pelo mundo afora. o caso de um Ben, na Frana, que vive do papel de herdeiro de Duchamp: sua produo pequenos quadros negros nos quais escreve frases do gnero: Ben um gnio, tudo arte, faa voc mesmo, etc. encontra-se em museus de arte moderna e, cmulo de contradio irnica, esse antiartista professor numa escola de Belas-Artes. A negao da arte, sua irriso, recuperadas pelas instituies competentes, tornam-se arte. Duchamp mostra muito bem uma das conseqncias importantes do "para ps" em arte: originrios de outras pocas e de culturas distantes, mas agora disponveis e ao alcance de nossa percepo, os objetos artsticos mudaram ou modificaram seus estatutos, funes, sentidos. A mscara africana deixou de ser, para ns, instrumento mgico, arte; o cartaz publicitrio j no instrumento de venda, arte; a imagem do santo perdeu a sua funo religiosa, arte. Assim, se o "para ns" recupera um nmero sem fim de objetos, introduz ao mesmo tempo uma distncia entre ns e a obra, pois perdemos sua destinao primeira, seu papel de origem. Mas podemos ir ainda mais longe, pois verificamos perturbaes semelhantes mesmo em obras que sempre existiram como arte e cuja razo de ser foi sempre determinada pelo estatuto "artstico".

    69 Um soneto de Petrarca, uma paisagem de Ruysdael nunca foram outra coisa seno peas literria ou pictrica. Apenas foram criadas em tempos distantes do nosso (Petrarca, poeta italiano, viveu no sculo XIV; Ruysdael, pintor holands, no sculo XVII), por artistas e para um pblico possuidores de uma cultura muito diferente da nossa. Um quadro como a Gioconda implicou uma reflexo sobre o espao, sobre o

  • tempo, sobre a natureza do sensvel que hoje percebemos com dificuldade. Um trio de Haydn, destinado a divertir uma noite o prncipe Esterhazy e ouvido hoje numa enorme sala de concerto moderna, com o recolhimento e a conscincia de estarmos diante de uma "grande" obra, no apreendido nos dois casos da mesma forma. O mesmo se poderia dizer da cantata que Bach compunha para um servio religioso e que em seguida ficava esquecida, do tango ou chorinho de Chiquinha Gonzaga ou Ernesto Nazar que atualmente so executados por intrpretes ilustres. As emoes causadas por um filme mudo, no pblico ao qual era destinado no podem ser as mesmas que o mesmo filme suscita agora em ns. O mictrio de Duchamp, que provocava escndalo na poca hoje em dia pacfico objeto de cultura. O quadro que estava na igreja ou na galeria de um palcio, a esttua que ornava o jardim de um prncipe, encontram-se agora lado a lado, num espao recente, que no tem mais de duzentos anos: o museu. Desviando, modificando as

    70 destinaes iniciais, as funes e sensibilidades originrias, o "para ns" determina dificuldades na aproximao da obra. A arte pode estender indefinidamente seu campo, mas, quando colamos num objeto a etiqueta "artstico", estamos transformando-o irremediavelmente. Umberto Eco, pensador italiano contemporneo, criou o conceito de "rudo", de interferncia exterior, que perturba o nosso contacto com o objeto. A obra um emissor, ela envia sinais que ns recebemos. O tempo, as distncias culturais so grandes causadores de rudos, que interferem nos sinais enviados. A obra tinha, por exemplo, uma funo religiosa que ignoramos ou conhecemos mal, baseava-se em convenes que no so mais as nossas: medida que esquecemos essas significaes originais, fomos atribuindo a ela as significaes de nossa cultura. Assim,

  • na idia de arte "para ns" preciso contar com perturbaes que podem ser diminudas pelo esforo do conhecimento, mas nunca eliminadas. A sobrevivncia do objeto artstico As perturbaes interpostas entre ns e as obras no so unicamente de natureza imaterial. Muito ao contrrio, os objetos que vamos buscar

    71 por vezes muito longe no tempo e no espao, e que passam a incorporar nosso corpus artstico, tm uma existncia muito concreta. Se quisermos que estejam dispostos "para ns", ao nosso alcance em museus, cinematecas, bibliotecas, essa existncia concreta evidentemente essencial. Existiram, e ainda existem, algumas manifestaes artsticas irremediavelmente efmeras. So assim as decoraes, ligadas s grandes festas barrocas ou do Renascimento: arcos de triunfo, monumentos realizados em material perecvel, feitos para servirem uma vez s e depois destrudos. Ou tambm as improvisaes musicais: os intrpretes do passado exerciam-se em compor diante do pblico como fazia o pequeno Mozart. Tais peas, que nunca foram escritas, desapareceram para sempre. No passado, era impossvel registrar a arte de um intrprete, o gnio de um cantor, instrumentista ou ator. Podemos ter uma idia do que seria o talento de Joo Caetano, o mais clebre ator brasileiro do sculo XIX, podemos imaginar o que devia ser a interpretao da Malibran,

  • cantora de voz mtica, morta com 24 anos em 1832, mas o essencial perdeu-se: o timbre, a entonao, os efeitos materiais do dizer e do cantar. No entanto, com a inveno dos meios de fixar o som e a imagem, conseguimos reter e transmitir essas manifestaes artsticas que h cem anos atrs se perdiam inexoravelmente. Mesmo sem nunca

    72 termos visto ou ouvido pessoalmente Cacilda Becker, Maria Callas, Bidu Sayo ou Grard Philippe, podemos nos encantar ainda hoje com sua arte. Entre as manifestaes artsticas contemporneas, algumas so voluntariamente inconservveis o caso mais conhecido o dos "happenings" (do verbo ingls to happen, acontecer), organizados pela primeira vez nos anos sessenta, por Allan Kaprow, em galerias de pintura de Nova Iorque. A definio lapidar do happening foi dada por Salvador Dali: "realizar um happening criar uma situao que no pode se repetir". Com outras palavras, , num lugar determinado, a reunio de pessoas que fazem acontecer coisas atravs do gesto, da voz, de atitudes diversas tudo baseado no impulso instintivo, irracional, inconsciente, com a utilizao eventual de drogas do tipo LSD, desenvolvendo uma nova forma de percepo, novos modos de relao com outrem e com as coisas. Mas o happening uma forma extrema de antiarte, da vontade de transgredir as convenes da cultura. E tais manifestaes efmeras representam uma parcela minscula, nfima, no conjunto imenso dos objetos artsticos. Que so materiais, possuindo uma vida, uma existncia no tempo, sujeitos evoluo, modificao, destruio. Jean Renoir, filho do grande pintor Auguste Renoir, cineasta francs,

  • autor de A Besta Humana, A Regra do Jogo, A Grande Iluso, deixou um

    73 texto muito bonito sobre o destino concreto da obra de arte: "Cheguei mesmo a me perguntar se toda obra humana no provisria mesmo um quadro, mesmo uma esttua, mesmo uma obra arquitetural, mesmo o Partenon. Seja qual for a solidez do Partenon, o que resta dele muito pouco e no temos nenhuma idia do que era quando acabara de ser construdo. Mesmo o que resta vai desaparecer. Talvez se consiga, a custa de tanto colocar cimento nas colunas, mant-lo por cem anos, duzentos anos, digamos quinhentos anos, digamos mil anos. Mas, enfim, chegar um dia em que o Partenon no existir mais. Pergunto-me se no seria mais honesto abordar a obra de arte sabendo que ela provi-sria e ir desaparecer, e que, na verdade, relativizando, no h diferena entre uma obra arquitetural feita em mrmore macio e um artigo de jornal, impresso em papel e jogado fora no dia seguinte" (Jean Renoir, entrevista dada ao Cahiers du Cinma, n 8, nov. 1958). A constatao de Jean Renoir mostra que a arte no "em si" sequer do ponto de vista material, que, sem os cuidados dos homens e a ateno exigida pelo "para ns", ela tende ao desaparecimento. O texto leva aos limites extremos a idia do perecer dos objetos, e sugere um outro problema, o do contnuo e imenso esforo que necessrio dispender para manter a sobrevivncia material dos objetos artsticos.

    74 No uma tarefa simples, e est ligada idia de rudo. A obra quadro, esttua, edifcio vive, sofre acidentes, envelhece. Para lhe

  • devolver o estado primitivo existem as tcnicas de restaurao. Ora, essas tcnicas tm que se basear no pressuposto de que podem recuperar o estado de origem, a feio inicial da obra, o que ao mesmo tempo um dado hipottico e um problema. Alm disso, elas intervm, concretamente, na obra e na sua evoluo. Suponhamos: um quadro foi pintado no comeo do sculo XIX. Ele no sofreu acidentes de monta, com o tempo, entretanto perdeu um pouco a intensidade do colorido. Para reavivar os tons, o conservador espalha de vez em quando uma camada de verniz sobre a tela. Mas os vernizes envelhecem e acabam difundindo por toda a pintura uma tonalidade mbar, que passa a fazer parte do quadro. Vem um novo conservador, mais jovem, mais a par das novidades tcnicas e manda retirar as camadas de verniz: o quadro surge ento com cores muito mais vibrantes. A metamorfose poderia nos fazer pensar que agora temos diante dos olhos o quadro original. No entanto, no teriam sido removidos com os vernizes alguns glacis? (O glacis uma camada muito fina, delicada e transparente de tinta, com freqncia colorida, que se coloca sobre camadas j secas, permitindo nuanas transparentes e um

    75 brilho especial. A pintura do sculo XVIII Watteau, Fragonard, Hogarth, etc. - empregou muito esse processo.) Queria o pintor realmente a violncia cromtica que recuperamos, ou fora ela atenuada desde o incio pelos vernizes que o prprio artista havia aplicado? E este um caso simples. Muitas vezes as cores sofrem reaes muito fortes, alteram-se e do um trabalho enorme aos restauradores. Pode acontecer tambm que certas tcnicas de restaurao, aparentemente eficazes no momento de sua aplicao, acabem, com o passar do tempo, transformando catastroficamente a obra.

  • Em todas as artes, o restaurador se encontra continuamente diante de escolhas que deve efetuar em funo de seu conhecimento tcnico, de sua cultura, da concepo que possui da obra que restaura. Essas escolhas, assim como prolongam a vida da obra, determinam modificaes concretas, que tanto podem ser felizes como comprometedoras. Sabe-se de uma escola alem de restaurao da primeira metade do sculo, cujos critrios radicais de "cientificidade" acabaram desfigurando para sempre muito Drer e muito Altdorfer. Mais recentemente, depois da Segunda Guerra, uma escola inglesa caracterizou-se por to violentas "raspagens" do verniz, to brutais eliminaes de glacis, que deixou irreconhecveis muito Goya, Rembrandt, Watteau de grandes colees (como a da Wallace Gallery,

    76 de Londres). As grandes exposies retrospectivas da obra de um pintor, reunindo quadros procedentes de museus do mundo inteiro, mostram, amide, diferenas importantes de aspecto de um quadro para outro, devidas s escolas e tcnicas diversas de restaurao que os trataram. Por vezes, a recuperao impossvel, e obras essenciais da histria da arte so contempladas, "vividas", por ns sob uma aparncia muito diversa da primitiva. A arquitetura e a estaturia grega, apogeu da criao humana, que rememoramos sempre na sua lmpida brancura de mrmore, eram originalmente pintadas policromia que mal podemos imaginar. Estes exemplos, suficientemente significativos, levam-nos a concluir desde j que a obra no um absoluto cultural, nem tampouco um absoluto material, pois vive e se modifica. Embora o aspecto material da conservao seja mais evidente nas artes plsticas, o processo tambm ocorre na literatura, no cinema.

  • A ele devemos atribuir, por exemplo, a necessidade do "estabelecimento de texto" das edies crticas, nas quais o especialista, confrontando diferentes originais, edies sucessivas, acaba optando por um texto que declara "definitivo" e que deve, a partir de ento, servir de norma para as edies futuras. Os filmes tambm se modificam: as cores podem alterar-se, as cpias

    77 deteriorarem-se e sofrerem cortes; na projeo pode haver, com a evoluo dos aparelhos, mudana de formato, de velocidade. E todos esses fatores, bem diversos, atuam profundamente na percepo da obra. E restam as manifestaes artfsticas, bem menos dependentes do suporte material, como o teatro, a msica e a dana, que devem sua sobrevivncia a uma cadeia de aprendizado, a uma corrente de tradies recolhidas por uma instituio muito justamente chamada conservatrio. No caso da msica, a partitura uma garantia de estabilidade a notao minuciosa oferece uma ancoragem bastante slida s peas musicais. Mas nem sempre foi assim: pouco sabemos da msica anterior ao sculo XI, isto , anterior a um sistema eficaz de escrita musical. E mesmo, em relao s peas mais antigas, h vrias dificuldades de interpretao, pois as anotaes so precrias, faltam indicaes instrumentais, perderam-se as tradies, o canto e os instrumentos contemporneos no so adequados, de tal forma que, quando ouvimos uma pea de Machault (sculo XIV), Des Prs (fim do sculo XV, comeo do sculo XVI) ou mesmo de Lully (sculo XVII), estamos diante de reconstituies "arqueolgicas" que tentam, por hipteses freqentemente divergentes, reencontrar os sons de origem. Essa cadeia transmite o saber de outros tempos mas, ao mesmo tempo que o passa para frente - conservando assim seus elementos -,

  • 78 ela os modifica. Os homens so outros, as geraes sucederam-se, a maneira de conceber uma partitura mudou. Os prprios instrumentos transformaram-se. Nos seus oitenta anos de histria, o disco pde testemunhar inmeras mudanas. E podemos imaginar agora que possumos uma histria da msica sonoramente conservada, quem sabe mesmo essas modificaes, essa evoluo, possa desacelerar-se um pouco. Mais radical ainda, o caso do teatro. O texto uma base slida, mas tudo o que constitui o espetculo depende de indicaes muito menos precisas, que se apoiam apenas num saber por assim dizer "intuitivo" saber que se transmite, mas profundamente sensvel s alteraes. As tragdias de Racine, no sculo XVII, eram representadas de um modo especial, modulando-se as palavras e os ritmos, numa espcie de recitar cantando, cujo eco longnquo talvez ainda se encontre nas gravaes que Sarah Bernard deixou. Seu monlogo de Fedra, onde cada vogal trabalhada sinuosamente, longamente, forte, desvairado, fascinante, causando em ns um efeito de estranheza absoluta: hoje, nenhum ator ousaria representar assim. Sem contar o caso do teatro antigo, do qual s nos restam os textos: as tragdias de Esquilo, Sfocles, Eurpedes, alm de estarem intimamente ligadas msica que no chegou at ns -- eram representadas atravs de convenes inteiramente diversas das nossas.

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  • A dana ainda mais frgil. As indicaes do coregrafo s servem para ele mesmo e seus prximos; so sumrias, e sua releitura sempre de exatido duvidosa. No caso do ballet tradicional a tarefa um pouco mais simples, pois h um repertrio convencional de passos. Mas nas formas mais livres da dana, os movimentos do corpo, variados e inesperados, dificultam a reconstituio. No entanto, apesar desses problemas de conservao, conhecemos coreografias que se mantm no repertrio h mais de um sculo. claro que elas no so hoje idnticas ao que foram no momento da criao, mas guardam o ncleo central concebido pelo coregrafo. No nos enganemos. As artes no so imutveis. Lembremo-nos antes que elas se modificam incessantemente: o preo que pagamos por esse para ns, que as dispe sempre ao nosso alcance. Contudo, elas se vingam. O quadro, o concerto, o filme nos pregam peas, atravs de metamorfoses lentas, mas insidiosas e seguras. E no tudo. Elas vo mais longe, e nos provocam, nos desafiam, nos iludem.

    80 O falso Assim que a sombra invade os cus, o esplendor eclipsado dos tempos que se foram recompe-se em meu pensamento, inspirando-me cantos dignos de meus antepassados." Assim comea um poema pico que teve imensa influncia nos

  • homens do fim do sculo XVIII e incio do sculo XIX. Em 1760 so publicados, pela primeira vez, os Cantos de Ossian, bardo escocs que vivera no sculo III da nossa era. Imediatamente, esses poemas, melanclicos e ricos em imagens, cantando a guerra e o amor numa poca longnqua e num pas de brumas, fizeram furor. A civilizao mediterrnea tinha seu grande poeta: Homero; agora, com Ossian, as culturas do norte podiam reivindicar seu prprio vate. Herder e Heine o exaltam; Goethe nele se inspira; Madame de Stal rev a histria da literatura a partir de um sistema construdo sobre os poemas ossinicos; Napoleao leva sempre consigo um exemplar dos Cantos; Chateaubriand, Vigny, Musset sofrem profundamente sua influncia. Os grandes pintores - Ingres, Girodet, Grard - ilustram passagens do poema em enormes quadros. A Gruta de Fingal, uma das mais clebres composies de Mendelsohn, tem sua origem em Ossian. Como se v, esses Cantos foram fundamentais para o romantismo que despontava. Ora, sabe-se perfeitamente agora que eles foram escritos por James MacPherson, professor primrio escocs da segunda

    81 metade do sculo XVIII. McPherson escrevera, sob seu prprio nome, um primeiro poema O Escocs das Montanhas que fora um grande fracasso. O segundo, atribudo a um personagem fictcio, marcou profundamente a evoluo da literatura. Os Cantos correspondiam perfeitamente a uma sensibilidade que a poca pedia. A um tal ponto que, embora desde o inicio alguns cticos desconfiassem da malandragem (como o filsofo Hume), acreditou-se em Ossian porque o momento precisava dele. No fim do sculo passado, j estava esquecido, pois, embora o poema possua efetivamente algumas

  • qualidades reais, o tom de mistificao acabou afastando os leitores, que antes se deliciavam com as fantasmagorias do "Homero do Norte". Alm do mais, a sensibilidade havia mudado. Este, entre os casos mais espantosos de mistificao, perfeito. MacPherson no s conseguiu enganar os espritos mais brilhantes de vrias geraes, como, num certo sentido, essas mesmas geraes pediram para ser enganadas, desejaram acreditar no bardo escocs: apesar das querelas que logo se formaram, a confiana adquirida pelo poema garantiu sua autenticidade, at que provas irrecusveis impuseram-se. As falsificaes possuem um grande fascnio. A habilidade em enganar, o poder do ilusionismo, a percia na imitao, fazem do falsrio

    82 um personagem maroto, capaz de prodgios desabituais, capaz de rir nas barbas dos especialistas e que merece, de certo modo, nosso respeito cmplice. Clebres, os falsos bronzes da Renascena, de autoria de Dossena e Bastianini. Clebres, os quadros contemporneos de Elmyr de Hory que Orson Welles mostrou desenhando um "Matisse de 1936" em seu notvel filme F for Fake. Clebres, as histrias: durante a Segunda Guerra Mundial so vendidas na Alemanha telas desconhecidas de Vermeer. Este pintor, gnio holands do sculo XVII, fizera poucas obras, e as novas descobertas tinham uma significao capital para a histria da arte. A guerra terminada, processa-se o homem que encontrara e vendera os quadros para os alemes: tratava-se de alienao de bens da cultura nacional, de traio. Diante de to graves acusaes o ru, Van Meergeren, prefere confessar: os Vermeer tinham sido pintados por ele. No comeo, no se quis acreditar. Peritos, crticos, especialistas,

  • conservadores, todos eram unnimes em afirmar a autenticidade dos quadros, dizendo que Van Meergeren, premido pela situao, tentava uma sada menos comprometedora. Mas Van Meergeren, na priso, pede telas e tintas. E na priso produz um Vermeer espantosamente "autntico". Casos como estes nos deixam admirativos diante da falsificao e do

    83 falsri