Livro Editado final 30 05 2014 · 2014. 6. 3. · Era uma vez… Era uma vez… Era uma vez…...

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  • Ficha Técnica

    Associação não te prives – Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais

    Coimbra, 2014

    Seleção do 1º Concurso de Contos Infantis – De Pequenin@ se Torce a Discriminação, edição de 2013. Contos para crianças dos 3 aos 12 anos de idade.

    Capa: Miguel Martins

    Ilustrações: Nuno Canha, Carlos Nolasco e Filipe Pinto

    INTRODUÇÃO

    A infância oferece-nos memórias, referências, símbolos e

    linguagens que marcam a construção das personalidades e as

    representações sobre o mundo à nossa volta. Apesar de todas as

    pessoas serem diferentes, a norma dominante remete a “diferença”

    para um universo desconhecido e silenciado, gerando preconceito,

    violência ou indiferença. Um imaginário infantil inclusivo, que

    reconheça e valorize a diversidade, será, certamente, um primeiro

    passo no sentido de uma sociedade mais justa e segura para todas

    as crianças e pessoas adultas.

    Assim, a partir de 2012, a Associação não te prives – Grupo de

    Defesa dos Direitos Sexuais integrou nas suas atividades anuais a

    realização de sessões de leituras de contos infantis inclusivos.

    Perante o sucesso das duas primeiras edições, realizadas em 2012,

    a não te prives lançou em 2013 o concurso de contos infantis “De

    pequenin@ se torce a discriminação”. O concurso teve por objetivo

    a promoção da escrita de histórias infantis originais nas quais se

  • valoriza a diferença, se desconstroem estereótipos e se combate de

    forma evidente qualquer forma de discriminação.

    A resposta foi imediata e muito significativa. Recebemos 20

    contos, de autores/as de todo o país e de todas as idades. Este livro

    coletivo é, portanto, o resultado de um processo difícil de seleção,

    visando um equilíbrio entre temas e faixas etárias, sem descuidar a

    qualidade e adequação literárias.

    Divididas em três secções (3-6 anos; 6-9 anos e 9-12 anos), as

    histórias que aqui compilámos abordam temas tão diversos quanto

    a diferença por motivos de deficiência, por motivos de orientação

    sexual ou identidade de género, por razões de cor de pele ou etnia,

    por questões de doença, ou simplesmente histórias que

    problematizam a própria noção de diferença. Acreditamos que

    mães e pais, professoras e professores, técnicas e técnicos de

    animação cultural, escolas, bibliotecas, associações, ATLs, entre

    outras pessoas e entidades, irão encontrar neste livro uma

    ferramenta para trabalhar temas que permanecem pouco visíveis

    nestas faixas etárias

    A não te prives agradece, sinceramente, a todos/as os/as

    candidatos/as que nos enviaram as suas histórias. Aos/Às

    autores/as selecionados/as, os nossos parabéns e agradecimentos

    pelo pronto voluntarismo com que responderam sempre às nossas

    solicitações na fase de edição da obra. Àqueles/as que não foram

    selecionados/as enviamos uma palavra de encorajamento, para que

    continuem a escrever e a desafiar imaginários pré-concebidos.

    Estamos também gratas/os a quem nos acompanhou nas

    leituras de contos infantis nas edições anteriores, incluindo aqui

    todas as pessoas leitoras e crianças. Foi essa a semente entusiasta e

    cheia de promessa que fez nascer este projeto editorial.

    Queremos também reconhecer o papel fundamental dos/as

    voluntários/as que colaboraram nesta publicação, em particular a

    equipa de ilustradores – Carlos Nolasco, Filipe Pinto, Miguel

    Martins, e Nuno Canha.

    A Alexia Bravo, um agradecimento reforçado pela

    disponibilidade em juntar-se à não te prives para a seleção dos

  • contos. A sua experiência e conhecimentos científicos na área da

    Literatura Infantil foram muito importantes nesta difícil tarefa.

    Estamos seguras/os de que este constitui o primeiro volume

    de próximos livros. Assim continuem a haver entusiastas

    escritores/as, mais ou menos anónimos/as, empenhados/as em

    confrontar connosco estereótipos e versões lineares da vida e das

    sociedades, convictos/as connosco de que é “De Pequenin@ que se

    Torce a Discriminação”.

    A não te prives

  • 5

    ÍNDICE

    INTRODUÇÃO .............................................................................................. 2

    3-6 anos.................................................................................................... 6 As Nuvens são Todas Iguais, Carlos Nolasco............................ 8 A Camisola Arco-Íris, Dora Gomes ............................................ 11 O Senhor Mocho e a Dona Toupeira: uma amizade improvável mas não impossível, Mónica Pimentel .................... 14 As Bolinhas da Galinha, Renata Hessel....................................... 18

    6-9 anos.................................................................................................. 23 O Menino mais Bonito do Mundo, Alexandra Carvalho ........... 25 Fogueira da Discriminação, Francisco Allen ............................. 28 Carolina e a Égua Branca, Rui Ivo Lopes................................... 34 Coração de Leão, Vanda Furtado Marques................................ 37

    9-12 anos ............................................................................................... 42 O Baile de Máscaras, Ana Raquel Matos e Salvador Borges 44 Viagem a Coimbra, Bruno Magina................................................. 48 Amor de Várias Cores, Cristiana Pereira de Carvalho e Criziany Machado Felix .................................................................... 55

    AS AUTORAS E OS AUTORES APRESENTAM-SE ....................................... 60

  • 6

    3-6 anos

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    As Nuvens são Todas Iguais, Carlos Nolasco

    Num céu de primavera, muito azulinho, havia uma vez duas

    nuvens. Uma era clara e fofinha, parecia uma bolinha de algodão

    doce. A outra era uma nuvem escura, grande e ameaçadora.

    Enquanto a nuvem clarinha, ao sabor do vento, ia imitando figuras

    de cavalos, carros e até de pessoas, a nuvem escura arrastava-se

    com dificuldade, tapava o sol, e às vezes fazia uns barulhos

    estranhos.

    As pessoas, quando olhavam para o céu e viam a nuvem

    branquinha, sorriam.

    – Olha que nuvem tão engraçada! – diziam elas.

    A nuvem clarinha ficava feliz. Mas quando as pessoas viam a

    nuvem cinzenta, assustavam-se.

    – Olha que nuvem tão feia.

    A nuvem escura ficava então triste e chorava. Quando

    chorava, caíam-lhe grossos pingos de água que molhavam as

    pessoas, que tinham que fugir e procurar abrigo. A nuvem ficava

    então muito triste, e por isso continuava a chorar todo o dia.

    A nuvem clarinha irritava-se com a situação. Certo dia,

    disse à nuvem cinzenta:

    – Assim não pode ser! Tu assustas as pessoas, molha-las!

    Porque não vais para um céu onde não há pessoas, e deixas-nos

    em paz?

    A nuvem escura assim fez, arrastou-se dali para fora e foi

    para um céu sobre uma terra muito seca, onde não havia pessoas,

    nem animais, nem flores, nem nada. O tempo foi passando, e a

    nuvem branquinha continuava a alegrar as pessoas, e a cinzenta a

    chorar sobre a terra.

    Um dia começaram a acontecer coisas estranhas. A nuvem

    clarinha começou a ficar escura e pesada, e as pessoas deixaram

    de se alegrar com ela. Em contrapartida, a nuvem escura estava

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    menos cinzenta e mais leve, e a terra que antes era seca estava a

    ficar verde e com algumas flores. Por isso, a nuvem escura

    deixara de chorar, mas em contrapartida a nuvem clarinha

    estava aborrecida e por vezes deixava escapar uma lágrima. A

    cada dia que passava a nuvem branquinha estava cada vez mais

    escura, e a nuvem cinzenta cada vez mais clara; a nuvem

    branquinha chorava cada vez mais e a nuvem cinzenta estava

    mais satisfeita.

    Porque as pessoas começaram a olhar com desconfiança

    para a nuvem branquinha que agora era escura, esta decidiu sair

    dali e ir procurar a nuvem escura que agora era clarinha. Quando

    se encontraram quase que nem se reconheceram.

    - És tu? Dantes eras escura e grande, e agora estás tão

    diferente! O que te aconteceu?

    A nuvem que antes era cinzenta respondeu:

    – De tanto chorar, perdi a minha água que caiu sobre a

    terra e fez nascer erva e flores. Agora estou mais leve e com

    outra cor. E o que se passa contigo que nem te reconheci?

    A nuvem que antes era clara lá respondeu:

    – Olha, comecei a absorver água, cresci muito, fiquei

    grande e cinzenta e as pessoas deixaram de se alegrar comigo.

    As nuvens ficaram ali o dia todo a conversar sobre as suas

    vidas, até que repararam que lá em baixo, no chão que antes era

    seco e agora era verdinho, havia um grande rebanho de animais

    que pastava tranquilamente enquanto o pastor olhava satisfeito

    para as nuvens. Também havia uma família a fazer um piquenique,

    com uma grande toalha aos quadrados vermelhos. E havia ainda

    uma excursão de meninos da escola que tinham vindo conhecer o

    campo.

    – Que estranho, parecem tão felizes apesar da minha

    presença ameaçadora, disse a nuvem que antes era branquinha.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    – Não é nada estranho! Aqui as pessoas gostam das nuvens

    assim, carregadinhas de água para regar os campos e fazer

    crescer as plantas – disse a nuvem que antes era escura.

    – Pois, na cidade é ao contrário. As pessoas gostam mais

    das nuvens claras, que não molham ninguém – retorquiu a nuvem

    anteriormente branquinha.

    No dia seguinte, a nuvem que agora era escura disse à

    outra:

    – Olha, sabes o que podíamos fazer? Eu ficava nesta terra a

    regar os campos, porque isso torna felizes as pessoas daqui, e tu

    podias ir para a cidade porque lá as pessoas gostam das nuvens

    como tu estás agora.

    A nuvem que agora era branquinha disse à outra:

    – Já me tinha lembrado disso, e é isso que vou fazer.

    E pronto, as nuvens arrastadas pelo vento lá seguiram o seu

    destino, cada uma para seu lado, contentes porque nenhuma era

    definitivamente cinzenta nem definitivamente branca. Ambas

    eram iguais, distinguiam-se apenas pela água que tinham dentro

    de si.

    E eu, que estou a contar esta história, sei destas coisas

    porque passo a vida com a “cabeça nas nuvens”, e gosto de todas

    elas.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    A Camisola Arco-Íris, Dora Gomes

    Olá, o meu nome é Tomé. Gostava de vos contar uma

    história! Esta é uma história sobre o dia em que descobri que

    tinha uma camisola arco-íris.

    Vou começar a minha história, tomem atenção: era uma

    vez….

    Era uma vez…

    Era uma vez…

    Era uma vez…

    Todos começam assim as histórias… mas não há só uma

    maneira de começar… Bom, vou contar a minha história, como eu

    sei.

    A minha avó Madalena fez-me uma camisola quando eu era

    pequenino, tinha cinco anos. A história que eu vou contar é sobre

    o primeiro dia em que vesti essa camisola. Nunca mais me esqueci

    deste dia, porque nesse dia fiquei muito contente, triste e outra

    vez contente. Nessa altura, aprendi que no mesmo dia podemos

    sentir muitos sentimentos diferentes.

    Bom, agora é que vou começar a história.

    No início do dia em que vesti pela primeira vez a minha

    camisola arco-íris, estava muito feliz.

    A minha mãe chama-se Matilde e nesse dia foi-me levar à

    escola. Entrei na escola, sem a minha mãe e os meus amigos

    olharam para mim a rir, a rir sem parar…

    – O Tomé tem uma camisola de menina! Parece uma menina,

    é menina… – disseram quase todos os meninos e meninas.

    Apontavam com o dedo para mim e riam. Eu não sabia o que

    dizer, nem o que fazer e a minha mãe já se tinha ido embora.

    Entrei na escola e fiquei triste, muito triste e chorei… Era a

    camisola que a minha avó Madalena me fez. Eu vi como é que a

    camisola cresceu, a minha avó fez com duas agulhas e um novelo

    e lã que tinha muitas, muitas cores.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    Quando comecei a chorar, sentei-me num canto da sala

    sozinho. Entretanto, lá fora no céu, apareceu um arco-íris, mas

    eu não o vi.

    Nessa altura, a minha professora Rita disse para todos os

    meninos e meninas:

    – Vamos jogar um jogo novo. Juntem-se aqui perto da

    janela.

    – Que jogo? – perguntaram alguns dos meus amigos da sala.

    – É o jogo das cores do arco-íris, não conhecem? É muito

    fácil e divertido. Vamos todos olhar para a janela, conseguem ver

    o arco-íris? – disse a Rita.

    – Sim, está no céu e é bonito, muito bonito! – disse o Xavier.

    Eu fiquei sentado, porque estava a chorar…

    – Vou ensinar-vos o jogo, é muito fácil. Vamos encontrar

    todas as cores do arco-íris na nossa sala! Quem sabe as cores do

    arco-íris? – perguntou a professora Rita junto à janela.

    – É azul, amarelo. – disse a Mafalda a olhar para o céu.

    – E mais? – perguntou a professora outra vez.

    – O arco-íris também tem vermelho. – disse a Laura.

    – Muito bem! O arco-íris tem muitas cores: azul, amarelo,

    vermelho e também verde, laranja e violeta. Quem as encontrar

    primeiro ganha! – disse a Rita.

    Quando a professora Rita disse as cores, levantei-me do

    chão e também fui ver o arco-íris perto da janela.

    – Preparados para jogar? Vamos então encontrar as cores

    do arco-íris! Na sala, onde podemos encontrar o vermelho? –

    disse contente a Rita.

    – Na camisola do Tomé. – disse o João.

    – E o laranja? – perguntou a Rita.

    – Na camisola do Tomé! – disse a Sofia.

    – Boa, Sofia! E o amarelo? – gritou a Rita.

    – No Tomé… – disse o Xavier.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    – E o verde? – perguntou novamente a professora Rita.

    – Na camisola do Tomé também. – disse o Tomás.

    – O azul? – perguntou a Rita a piscar o olho na direção do

    Tomé.

    – Na camisola do Tomé e nas paredes da nossa sala. – disse

    o Manuel.

    – E por último, o violeta – disse por fim a professora.

    – Rita, violeta é parecido com roxo? – perguntou a Maria.

    – É parecido sim, Maria! – confirmou a professora Rita.

    – A camisola do Tomé, afinal é um arco-íris, também tem a

    cor violeta. – disse o Xavier com um ar envergonhado.

    – A minha avó fez-me uma camisola arco-íris? Eu tenho uma

    camisola arco-íris, professora Rita? – perguntou o Tomé muito

    contente.

    – Sim, Tomé, tens uma camisola arco-íris, e isso é muito

    bom! Sabes, essa camisola é muito especial: tem todas as cores

    do arco-íris e não há nenhum menino, nem menina que possa

    comprar uma igual, porque não há nas lojas. Foi feita pela tua

    avó! Sabem que não há cores de meninos e cores de meninas!

    Isso não existe! O arco-íris está no céu e as cores são de todos

    e de todas! – disse a Rita.

    Nesse dia não chorei mais, e quando a professora Rita

    acabou o jogo e explicou que o arco-íris é para todos, voltei a

    ficar feliz! Depois da escola, quando cheguei a casa, contei à

    minha mãe, que a camisola da avó se chamava arco-íris, e que era

    muito especial!

    Hoje tenho dez anos, mas nunca esqueci deste dia e apesar

    de já não me servir, ainda tenho a minha camisola arco-íris…

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    O Senhor Mocho e a Dona Toupeira: uma

    amizade improvável mas não impossível, Mónica

    Pimentel

    Era uma vez, uma floresta muito verde, com árvores muito

    grandes, repleta de flores e cheia de límpidos e ruidosos regatos

    de água bem fresca, onde os seus habitantes se deliciavam a

    tomar grandes banhocas.

    Nessa magnífica floresta, viviam felizes muitas famílias de

    animais, como por exemplo, Os “Patinhas Sortudas”, uma família

    de coelhos pardos, composta pelo papá coelho, pela mamã coelho

    e a sua prole de 12 coelhinhos, bem traquinas! Vivia também a

    família “Dentolas”, um grupo de castores muito trabalhador, que

    fazia grandes e fortes diques nos riachos que abundavam por ali.

    E ainda a família das formigas, “As Rabinas”, que, por serem

    tantas, não se sabe ao certo quantas!… A família das Rabinas era,

    sem dúvida, a maior família de toda a floresta!

    Neste sítio todos os animais eram felizes, havia água e

    comida em abundância e divertiam-se o dia todo em grandes e

    animadas brincadeiras.

    Todos, menos dois!

    Havia dois animais muito infelizes: o Senhor Mocho

    Sabichão e a Dona Toupeira Lunetas.

    Como vocês todos sabem, os mochos são animais noturnos,

    que vivem nas árvores, são muito espertos (sabem sempre tudo!)

    e veem MUITO BEM! Alimentam-se dos pequeninos animais, que

    apanham no chão quando fazem grandes voos a pique na sua

    direção!

    Mas o Mocho Sabichão não tinha grande habilidade para

    fazer voos rápidos e picados sobre as suas presas, porque tinha

    uma asinha mais pequenina do que a outra, e sempre que via

    algum animal voava para ele para se alimentar, mas quando lá

    chegava já este estava bem longe!!!

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    E era assim desde que nasceu! O Mocho Sabichão era muito

    esperto, mas não tinha jeito nenhum para caçar como os mochos

    costumam ter! E com aquele seu problema na asa…

    Ele era diferente de todos os outros mochos da

    floresta!!

    E o Senhor Mocho lá passava a sua vida à espera, à espera,

    à espera que mais um animal se aproximasse para o poder

    apanhar, mas não tinha grande sorte! E passava muita fomeca!

    Como vivia sozinho no buraco de um grande pinheiro bravo,

    não tinha quem o ajudasse a resolver este problema!

    Outro animal que também vivia em grandes dificuldades era

    a Dona Toupeira Lunetas. Quase cega, como são todas as

    toupeiras, guiava-se apenas pelo olfato. Era feroz e mal

    humorada e por isso mesmo não tinha amigos!!

    A Dona Toupeira adorava um dia poder aprender a ler!

    Gostava de poder saber coisas sobre o mundo, sobre os países,

    sobre a vida dos homens e das mulheres e de como vivem os

    outros animais, mas não pode, porque não vê nada à frente do seu

    nariz!

    Mesmo com as grandes lunetas, que usa na ponta do

    pontiagudo focinho, vê a pouco mais de um palmo!

    É que as toupeiras são quase cegas! E a Toupeira Lunetas

    tinha um grande desgosto de não ser como os outros bichos! De

    não poder ler e conhecer o mundo todo através dos livros! Sim,

    porque os livros ensinam-nos muitas coisas!

    Um dia, quando estava a dirigir-se ao Ribeiro de Prata para

    beber um pouco de água, e como não via quase nada, esbarrou

    contra o Senhor Mocho que tinha acabado de se estatelar no

    chão, atrás de uma minhoquita cor-de-rosa, que mais uma vez lá

    se lhe escapou por entre as garras!

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    – Ó minha senhora, veja lá por onde anda! Quase que me

    partia uma asa! E se já assim é difícil comer, então com uma asa

    partida!...

    – O senhor desculpe, mas estava com pressa para ir ao

    riacho e não o vi!

    – É natural, a senhora é cega que nem uma toupeira!

    – Olhem só o engraçadinho! Isso foi uma piada!? É que a

    mim o senhor parece-me desajeitado como um… como um… como

    um coiote velho e carunchoso! (“Espera aí, eu nunca vi um coiote!

    E muito menos velho e carunchoso!...” - pensou para si a toupeira)

    Enfim, como uma coisa qualquer que seja assim desajeitada!

    – Ah! Ah! Ah! Eu bem tinha razão, a Senhora Toupeira não

    vê um palmo à frente do nariz!

    – E então, o senhor para mocho parece-me cá ter pouca

    habilidade para apanhar a sua comida! Está com “fominha”, é?!

    Tem um ratito na barriga?! Ah! Ah! Ah!

    – Bem, por acaso até já ia uma minhoquita ou outra coisa

    qualquer… Já vai para três dias que não como!!

    – Ai não come?! Ora vejam lá o pobrezinho que é tão

    inteligente, sabe tudo, e não consegue apanhar a sua própria

    comida. Que raio de mocho é o senhor?!

    – E então, qual é o problema? Os mochos têm de ser todos

    iguais, é? Nunca viu um mocho que não saiba caçar e que tenha

    uma asita diferente da outra?! Espera lá! Pois, nunca viu não: é

    cega que nem uma toupeira!!!! Ah! Ah! Ah!

    A Dona Toupeira, pensativa: “Eh lá, sou cega mas não sou

    burra! E se eu fizesse um acordo com o Mocho!?”

    – Pois muito bem, Senhor Mocho, lembrei-me agora de uma

    coisa que pode resolver o seu e o meu problema.

    – E que coisa é essa?

    – O Senhor passa a ler-me os livros da biblioteca da

    floresta e a contar-me tudo o que sabe do mundo. Lê-me o Diário

    da Floresta, com as notícias fresquinhas dos nossos habitantes

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    e, em contrapartida, eu arranjo-lhe comida fresquinha todos os

    dias. Terá, a partir de agora, belas minhoquinhas cor-de-rosa

    para o pequeno-almoço e grandes manjares ao almoço e ao jantar!

    O que me diz?

    Claro que o Mocho Sabichão nem esperou por mais nada

    para entusiasticamente aceitar a proposta da Toupeira Lunetas.

    Desde aquele dia, os dois tornaram-se inseparáveis e as

    suas vidas completaram-se: o mocho passou a ter grandes

    repastos preparados pela amiga e a toupeira experimentou a

    magia do conhecimento e viajou pelo mundo todo através da sua

    imaginação.

    Meninos e meninas, ouçam bem com atenção!

    Esta história prova que o que nos separa uns dos outros,

    pode também ser o que nos une! E mais cedo ou mais tarde todos

    precisaremos uns dos outros!

    Vitória! Vitória! Acabou a Nossa História!

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    As Bolinhas da Galinha, Renata Hessel

    Gertrudes nasceu uma galinha muito bonitinha. Era

    carinhosa como a mãe, e chorona como o pai. Todas as

    galinhas do galinheiro onde Gertrudes morava tinham

    bolinhas azuis pelo seu corpo, e os galos possuíam bolinhas

    amarelas. Porém, Gertrudes nasceu sem nenhuma cor. Suas

    bolinhas eram brancas, da cor das suas penas. Pareciam que

    ainda não tinham sido coloridas, ou que precisavam de ser

    coloridas mais tarde.

    Todos os pintinhos que nasciam logo começavam a se

    destacar pelas suas bolinhas amarelas ou azuis. Isso nunca

    tinha sido um problema no galinheiro. Todos sempre tinham

    concordado que os machos nasciam com as bolinnhas de uma

    cor e as galinhas fêmeas de outra. Mas ela nasceu

    diferente. Era a única sem bolinhas.

    Gertrudes era muito curiosa. Queria saber o porquê

    de tudo. Deixava muitas vezes o pai doido com tantas

    perguntas.

    Um belo dia, Gertrudes começou a perceber a

    diferença entre as cores das bolinhas das galinhas e muito

    curiosa e perguntou:

    - Pai, porque tu tens bolinhas amarelas e a mãe tem

    azuis?

    - Para nos diferenciarmos. - Respondeu o pai.

    - Mas porque não é ao contrário, pai: as fêmeas com

    bolinhas amarelas e vocês com bolinhas azuis? - Retrucou

    Gertrudes.

    - Porque não. Sempre foi assim. - Respondeu o pai.

    - Mas sempre foi assim porquê?

    - Porque sim! - Respondeu o pai num tom bravo.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    - E porque eu não tenho cor nenhuma?

    Já impaciente, o pai não lhe deu mais ouvidos,

    deixando Gertrudes cheia de dúvidas.

    Mas Gertrudes não se contentou e continuou curiosa. E

    fez as mesmas perguntas à mãe: precisava saber porque ela

    não tinha bolinhas coloridas. Para sua tristeza, teve as

    mesmas respostas.

    No galinheiro de Gertrudes havia uma lenda muito

    antiga. Diziam que havia uma galinha muito velha que

    morava do outro lado do lago. Que esta galinha era uma

    sábia e que tinha todas as respostas do mundo, mas que

    nunca ninguém a tinha visto, pois morava muito longe e

    nunca aparecia para ninguém.

    Diziam que foi vista somente uma vez. Falavam que era

    uma galinha muito poderosa, que podia até se tornar

    invisível se assim quisesse.

    Foi aí que Gertrudes teve uma idéia. Queria encontrar

    a velha galinha. Não sabia por onde ir, mas sabia aonde

    queria chegar.

    Assim saiu Gertrudes pelo mundo afora. Andou por

    muitos lugares, sentiu muitos medos, dormiu no frio, na rua.

    Passou fome. Até que um dia, chorando em frente a um

    riacho, sentiu que alguém lhe tocou as costas. Se assustou!

    Olhou para o lado e viu uma galinha muito diferente. Era

    uma galinha pequena, larga e com bolinhas de todas as

    cores que lhe perguntou:

    - Porque está chorando?

    - Estou longe de casa, não sei onde estou. Estou

    perdida.

    - Mas sabe aonde quer ir?

    - Isso eu sei. Eu sei aonde quero ir, mas não sei por

    onde ir.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    - Aonde quer chegar?

    - Quero encontrar a galinha sábia. Preciso muito que

    ela me ajude a encontrar respostas para as minhas dúvidas.

    - Você acredita que exista a galinha sábia? - Disse a

    galinha colorida.

    - Lógico, porque você não acredita?

    - Vou te contar um segredo... Há muitos anos, quando

    eu era jovem como você, eu tinha muitas dúvidas também.

    Não encontrava resposta para algumas perguntas e ninguém

    no meu galinheiro sabia me responder. Um dia, resolvi sair à

    procura de respostas. Também tinha ouvido sobre a

    existência da tal galinha sábia e parti à procura dela. E

    quer saber o final? Eu não precisei encontrá-la.

    - Como assim? - perguntou Gertrudes.

    - Simples. Eu andei tanto à procura da galinha sábia,

    que quando estava muito próxima de a encontrar, percebi

    que já havia descoberto as respostas que eu estava

    procurando. - E continuou - Talvez a galinha sábia more

    muito longe por isso mesmo. Todos os que vão à sua procura

    têm que andar tanto, pensar tanto, que ao longo do caminho

    encontram as suas próprias verdades, as suas respostas, e

    já não precisam mais de ir até ela.

    - Sério?! Mas mesmo assim, gostaria de encontrá-la,

    pois já andei muito e não tenho nem sinal para as minhas

    respostas. - Respondeu Gertrudes.

    - Então continue minha jovem. Vá até o encontro da

    sábia. Vou lhe ensinar o caminho. - Disse a galinha colorida,

    fazendo um desenho muito complicado num papel.

    Gertrudes olhou para o mapa e ficou tonta. Era muita

    informação, tantos caminhos que pareciam nunca ter fim.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

    21

    Mas ela estava determinada. Colocou sua mochila nas costas

    e começou a seguir as indicações do papel.

    O primeiro ponto de partida a levava pelo meio de uma

    mata muito fechada, escura. Gertrudes teve medo, mas

    continuou caminhando. Conheceu muitos outros animais, fez

    amizade. Passou por vários galinheiros. Subiu uma

    montanha, desceu. Subiu outra. Começou a ficar com raiva.

    Chorou. Parou. Resolveu pensar.

    Sentou-se em cima de uma pedra e pensou. Lembrou-

    se do dia em que nasceu, de tudo que tinha feito,

    aprendido, da sua casa, da sua mãe e do seu pai. Do dia em

    que resolveu sair em busca da galinha sábia e de quando

    encontrou a galinha colorida.

    Com um susto grande, começou a compreender algo

    muito importante. Que aquele tempo todo ela estava

    tentando entender quem ela era e não por que é que ela não

    tinha as bolinhas como as outras galinhas. Ficou mais

    aliviada. Entendeu que com ou sem bolinhas ela era feliz,

    sentia-se bem, e igual a todos os outros do seu galinheiro.

    Apenas tinha uma diferença: não tinha bolinhas.

    Resolveu andar mais um pouco. Parou novamente e

    falou.

    - É isso!!! Se eu não tenho bolinhas significa que eu

    posso escolher de que cor eu quero pintá-las!!! É isso... é

    isso!!!!

    E muito feliz Gertrudes começou a rir e a pular!! Tinha

    encontrado a resposta para aquilo que mais tinha dúvidas.

    Quando deu por si, olhou à sua volta e viu que o mapa

    que a galinha colorida tinha desenhado a tinha feito andar

    em círculos, por muitos dias e que o final do mapa a deixava

    muito próxima da sua casa!

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

    22

    - Minha nossa!! Exclamou Gertrudes!! Aquela galinha

    colorida é muito sábia... Oops eu disse sábia??

    Foi aí que Gertrudes se deu conta que havia

    encontrado muito antes do que ela imaginava a sábia

    galinha, que a tinha feito entender que o que ela estava

    procurando não poderia ser dito ou explicado por niguém,

    mas sim por ela mesma. E a tinha feito andar sem parar

    para que tivesse tempo para pensar, entender e encontrar-

    se a si mesma.

    Gertrudes retornou a sua casa muito feliz onde, num

    abraço muito grande, disse aos pais que finalmente sabia o

    porquê de não ter bolinhas. Os pais que também não sabiam

    a resposta, concordaram com a filha, que decidiu a partir

    daquele momento ter as suas bolinhas todas coloridas,

    diferentes, e iguais às da sábia!!

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos

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    6-9 anos

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    O Menino mais Bonito do Mundo, Alexandra

    Carvalho

    – Meninos, está na hora de irem para a cama.

    João e Bruno, os meus dois filhos de 6 e 4 anos, brincavam

    juntos fingindo não me ouvirem.

    – Vamos lá – insistia – eu conto-vos uma história.

    Palavra mágica! De repente os dois pequenos reguilas

    correm para o sofá onde eu estava sentado.

    – Papá, papá – grita João – conta a historinha do menino

    mais bonito do mundo.

    – Ok – respondi eu – mas nas vossas camas.

    Olhei para os meus filhotes, João e Bruno, já deitados e de

    olhos esbugalhados à espera da historinha e sem sinais de sono…

    “Era uma vez…” e assim comecei a contar a história do

    menino mais bonito do mundo, como qualquer outro conto de

    fadas.

    ******

    – És o menino mais bonito do mundo – dizia a mãe para o seu

    filho pela milionésima vez. Ele enchia o peito de orgulho e

    respirava felicidade. Tinha apenas seis anos, filho único e era

    uma criança feliz e saudável. Faltavam poucos dias para o seu

    primeiro dia na escola primária. Andava tão excitado por ir para

    uma escolinha nova! A mãe dizia-lhe que ia aprender a ler e a

    escrever e que ia ter amiguinhos novos.

    O Miguel acordou feliz. Saltou da cama e preparou-se para

    o seu primeiro dia de aulas na nova escola.

    Horas depois, na viagem de regresso a casa, a mãe

    pergunta-lhe como correu o primeiro dia.

    – Mamã, eu preciso de ir ao senhor doutor.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    26

    – Então porquê? – Perguntou a mãe com alguma

    preocupação.

    – Tenho uma doença – responde Miguel sem perceber o que

    significa.

    – O quê? Quem te disse isso Miguelinho?

    – Os meus novos amigos disseram-me que tenho uma doença

    e que vou morrer.

    – Eles estão enganados. Não te preocupes!

    A mãe de Miguel ficou apreensiva mas convenceu-se de que

    era apenas o primeiro dia; tudo iria correr bem.

    Miguelinho, uma criança feliz até então, andava triste,

    isolava-se e chorava quando tinha de ir para a escola.

    Dia após dia, Miguel vinha sempre com a mesma conversa de

    que precisava de ir ao médico, porque tinha uma cabeça

    demasiado grande, porque era um fracote, um lingrinhas… e

    outras coisas mais sérias que levaram a sua mãe a ir à escola ver

    o que se passava.

    ******

    Ouço um choramingo e interrompo a história.

    – Então Bruno, não chores. Isto é apenas uma história.

    – Não estou a chorar, é da cebola papá – respondeu Bruno

    ainda a fungar.

    Evitei o riso e prossegui.

    ******

    Na escola de Miguel, a mãe fala com a professora:

    – São crianças, exclama a professora! Elas imitam os seus

    coleguinhas e irmãos mais velhos sem perceberem o que estão a

    dizer.

    – Compreendo – diz a mãe de Miguel – mas não é esta a

    melhor altura para começar a mudar as coisas? Ajudá-las a

    compreender e a pensar por elas?

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    O silêncio da professora disse tudo.

    Era altura de começar a agir pelo seu filho e pelos filhos de

    outros. Durante semanas contactou a escola e os pais, insistiu e

    finalmente conseguiu que alguns destes se juntassem a si. De

    uma mãe persistente nasceu o “Dia da Igualdade da Diferença”, o

    primeiro dia em que as crianças das novas gerações aprenderam,

    além de ler e escrever, a pensar por elas mesmas, a deixar de

    julgar os outros; antes pelo contrário, a aceitar as diferenças.

    ******

    – Papá, tenho sono.

    – Eu também – diz Bruno no meio de um bocejo.

    – Ok meus marotos, toca a nanar.

    Beijinhos de boa noite, apago as luzes e pronto a sair, ouço

    a voz de João:

    – Papá, és o meu herói!

    Sorrio e encho o peito de orgulho e respiro felicidade. Não

    lhes contei o resto da história. Nos dias seguintes nada mudou

    para o menino mais bonito do mundo. Anos depois, alguns dos

    amigos da sua escola primária são os seus melhores amigos.

    Quanto a mim, tenho 30 anos, dois filhos e uma mulher

    fantástica, velhos amigos da minha infância, sou anão e chamo-

    me Miguel. Sou um homem feliz.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    Fogueira da Discriminação1, Francisco Allen

    Almerindo acordou sobressaltado. O despertador tocava

    energicamente a sua música favorita. Não se lembrava porque

    tinha posto o despertador para tão cedo e então pensou… e

    pensou… e pensou:

    – Já sei! – disse ele finalmente. – Hoje é o meu primeiro dia

    de aulas! Olé!

    E ao dizer isto levantou-se muito rápido, mas como já era

    hábito, fê-lo tão desastradamente que deitou o candeeiro da

    mesinha de cabeceira abaixo. Foi apanhá-lo mas tropeçou numa

    bola e bateu com o queixo no chão.

    – Ah! Ah! Ah! – Riu às gargalhadas a sua irmã gémea

    Samaritana. – És mesmo desastrado!

    De repente apareceu a mãe com cara de preocupada.

    1 Conto publicado em livro pela Editora Chiado, 2014.

    – Que barulho foi este? – perguntou a mãe.

    – É o Almerindo que é mais desastrado que a pessoa mais

    desastrada do mundo. – disse a irmã.

    – Bem me parece que ainda não te habituaste à nova casa! –

    disse a mãe com ar de troça. – Agora deixem-me ir preparar o

    pequeno-almoço.

    – Eu também me vou preparar – disse Samaritana. E

    dizendo isto saiu do quarto do irmão.

    Almerindo ficou a olhar para a janela. Ali a vista era muito

    melhor, mas as saudades da sua antiga casa permaneciam. Ele era

    cigano e tinha recentemente mudado para um bairro. Antes disso

    morava num acampamento. Lá tudo era melhor aos seus olhos.

    Brincava na rua até de noite e comia muitas vezes na casa da tia.

    Tinha muitos tios e primos a morarem no mesmo acampamento e

    isso fazia-o sentir-se seguro. Era bom cantar e dançar junto da

    fogueira que se fazia todas as noites. Neste bairro sabe-se que

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    29

    o tio João também faz uma fogueira nas noites de outono, mas

    não deve ser a mesma coisa.

    A mãe e o pai explicaram-lhe que tinham sido realojados,

    mas isso para ele nada significava. Realojados?! O que seria isso?

    Bem, o melhor era ele despachar-se para ir para a escola

    aprender sobre tudo isso.

    De repente uma voz despertou-o dos seus pensamentos:

    – Venham tomar o pequeno-almoço.

    Almerindo vestiu-se à pressa e sentou-se na mesa. Depois

    de uns cereais saborosos entrou para o carro, ansioso pelo

    primeiro dia.

    Quando chegou à escola notou que ela era bem grande, mas

    as paredes podres e sujas estragavam toda a sua beleza.

    Almerindo viu a sua irmã sair do carro e seguiu-lhe o exemplo

    saindo também, e depois de muitas despedidas lá entraram eles

    para a escola. Foram para a sala seis onde ambos ficaram

    colocados e, enquanto aguardavam que a porta se abrisse, um

    bando de rapazes aproximou-se e perguntou-lhe:

    – São vocês o Almerindo e a Samaritana?

    Eles assentiram com a cabeça, na esperança de fazerem

    novos amigos.

    – Ah, ah, ah! – disseram eles à gargalhada e a gritar. – Aqui

    estão os esquisitóides Almerindo e Samaritana!

    Naquele momento toda a escola se ria deles.

    Almerindo, não suportando a vergonha, entrou na sala a

    chorar, juntamente com a sua irmã. Estava tão triste que nem

    reparou que se encontrava alguém na sala:

    – Que se passa com os dois? – perguntou o desconhecido.

    Almerindo olhou, era um homem e era adulto,

    provavelmente um professor. Almerindo respondeu:

    – Os outros meninos chamaram-nos esquisitóides e gozaram

    com os nossos nomes. Eu acho que é por sermos ciganos.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    – Ah! Vocês são ciganos. Agora já percebi – disse o

    professor.

    – Percebeu o quê? – perguntou Samaritana que ainda estava

    a limpar as lágrimas.

    – Isso que vocês relatam chama-se discriminação e eu não

    vou deixar que vocês se sintam mal nesta escola por serem

    ciganos. Prometo ajudar-vos.

    – Muito obrigado, professor, mas o que é a discriminação? –

    perguntou Almerindo.

    – Venham, explico-vos na sala dos professores.

    Enquanto seguiam o professor, Almerindo e Samaritana

    sentiam que se iam perder naquela imensidão de salas e

    corredores. Tudo para eles era novo. Não tinham frequentado

    jardim de infância. Os pais saíam quase todos os dias para a

    feira e eles acompanhavam-nos. Era fantástico percorrer os

    corredores das feiras. Brincavam todo o dia e ajudavam a mãe a

    vender as roupas. Almerindo gostava de ajudar o pai a montar a

    banca. Sentia-se grande e forte enquanto segurava nas cordas

    para que o pai as esticasse. Podiam não conhecer as regras de

    uma sala de aulas, mas certamente sabiam fazer contas como

    ninguém. Nunca se enganavam nos trocos que tinham de dar aos

    senhores.

    Mal tinham chegado à sala dos professores, e já

    Samaritana era elogiada por uma professora pelos seus lindos

    cabelos compridos. Samaritana agradeceu mas a professora

    percebeu que os seus olhos estavam ainda cheios de lágrimas e

    perguntou:

    – O que aconteceu?

    Samaritana começou a explicar:

    – Uns pajos gozaram comigo e com o meu irmão.

    A professora admirada exclamou:

    – Uns quê, querida?

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    Almerindo começou a rir e explicou que os ciganos têm uma

    linguagem própria e que nessa linguagem aos não ciganos se

    chama de pajos. Todos riram com a naturalidade de Samaritana e

    a maturidade de Almerindo. Ao ouvir o toque da escola o

    professor afirmou:

    – Já vi que este ano sou eu que vou ter muito que aprender!

    Vamos para a sala e lá falaremos do que aconteceu com os outros

    “paxos”. Com este erro do professor, os meninos riram à

    gargalhada e seguiram-no para a sala de aulas.

    Dia após dia, Almerindo e Samaritana foram ensinando

    algumas das suas tradições aos seus novos amigos. A atitude do

    professor Ricardo contribuiu muito para que esta turma

    crescesse e aprendesse a respeitar as diferenças de cada um.

    Já estavam a meio do segundo trimestre de aulas quando

    Almerindo e a sua família foram convidados para um casamento.

    Depois de faltarem três dias à escola, retornaram e o professor

    perguntou:

    – Porque faltaram às aulas três dias?

    Samaritana respondeu-lhe:

    – Fomos ao casamento de uma prima!

    – Ah! – disse o professor. – Mas durante três dias?!

    Almerindo respondeu:

    – Sim, quando os ciganos casam fazemos uma festa de dois

    ou mais dias!

    – Fixe! – disse um dos alunos. – Eu já sabia que vocês eram

    diferentes, mas tanto não. Assim podem faltar muitos dias às

    aulas!

    Almerindo explicou então aos colegas as razões de algumas

    tradições da etnia cigana. Também lhes falou da importância do

    luto e do respeito pelas pessoas mais velhas.

    Apesar da sua tenra idade, todas as crianças ficaram mais

    de uma hora a ouvi-lo discursar e o professor Ricardo sentiu-se

    um privilegiado pela diversidade que coloria a sua turma. Naquele

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    32

    momento percebeu que seria sua obrigação apoiar este pequeno

    ativista, que ainda não tinha descoberto que o era, levando a que

    toda a comunidade escolar ficasse mais informada sobre a

    cultura e as raízes ciganas. Só desta forma iria conseguir

    mostrar a todos que é comum ouvirmos discursos sobre os outros

    e sobre as suas diferenças, mas também é comum entendermos

    que, quando conhecemos esses outros, percebemos que o que foi

    dito não passa de mentiras e outros mitos.

    Muito embora na sala de aula todos se relacionassem

    adequadamente com Almerindo e Samaritana, o professor

    Ricardo tinha sido várias vezes abordado por encarregados de

    educação que atribuíam todos os desastres da turma à presença

    destes dois irmãos. E Ricardo sabe bem que apenas o fazem pelo

    facto de eles serem ciganos. Cabia-lhe a ele a mais difícil tarefa,

    a de provocar alterações nos pais e nas mães, nos funcionários e

    restantes professores, ou seja, nos adultos.

    Hoje era o último dia de aulas e Almerindo e Samaritana

    não sabiam que ia ser o melhor da vida deles. Quando chegaram à

    escola viram-na deserta e Almerindo disse:

    – Devemos ser os primeiros a chegar.

    Samaritana assentiu com a cabeça.

    Mas quando ambos entraram na escola surgiram miúdos que

    gritaram:

    – Surpresa!

    Não imaginam a alegria que estas duas crianças sentiram

    quando perceberam que toda a escola se tinha organizado em

    segredo para que a festa de final de ano fosse uma festa cigana.

    Com a chegada das famílias a festa continuou com danças e

    cantares ciganos e até fizeram uma fogueira no recreio da

    escola.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    33

    No final deste dia Almerindo pensou para com os seus

    botões: “Nunca vou deixar de acreditar que a discriminação irá

    um dia ter fim!”

    ******

    Nota do autor

    Sou pequeno em tamanho e em idade mas confundo muitas vezes os adultos com o que penso e digo. Acredito que o mundo visto aos olhos das crianças é normal. Normal com tudo o que a normalidade traz: todas as diferenças se esbatem e somos todos idênticos.

    Quero muito ser adulto, mas sonho poder continuar a pensar como a criança que hoje sou. Quero olhar para os outros e ver apenas meninos e meninas, homens e mulheres. Não me importa a cor, o cheiro, a “raça”, a etnia, a orientação sexual e todas as outras coisas que os adultos valorizam.

    Uma vez, com enorme perplexidade, perguntei à minha mãe porque é que dois adultos tinham sido autorizados a casar. Estávamos a falar sobre casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. E a minha mãe, que sempre me ensinou que tudo tinha que ver com o que sentimos, respondeu-me que nem sempre aquilo que sentimos é suficiente para unir duas pessoas que se

    gostam. Sinceramente não compreendi e felizmente hoje já todos podem casar.

    Escolhi o tema dos ciganos porque acho que poucas pessoas se irão debruçar sobre ele e a mim interessa-me muito. Porque a minha mãe trabalha com ciganos e eu tenho a sorte de poder ter amigos ciganos e ouvir muitas histórias e perceber muitos sentimentos de injustiça e discriminação. Mas também perceber sentimentos tão bons de união e alegria.

    No final da minha história o protagonista deixa a ideia de que a discriminação deixará de existir. Ora bem, eu acho que ela apenas passará a tornar-se mais ténue quando os adultos começarem a olhar para os outros como se tivessem olhos de criança.

    Agradeço a toda a minha família pelo apoio e carinho, mas principalmente à minha mãe por me educar em igualdade, por me explicar o que é a discriminação e por me dar informações sobre os ciganos, bem como à Associação não te prives por me darem esta oportunidade. Agradeço ainda à Professora Rosa Maria que me ensinou a ler e escrever, fomentou e alimentou o meu gosto pela leitura e escrita e ainda hoje acredita em mim.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    Carolina e a Égua Branca, Rui Ivo Lopes

    Ouve-se, primeiro, o silvo que indica que a cana está a subir

    bem alto. Segundos depois uma explosão violenta quase rebenta

    os ouvidos…

    − Meu Deus! Bem sei que é tradição mas deviam acabar com

    os foguetes. Ainda por cima os incêndios andam aí a espreitar a

    aldeia. E olha a menina…

    O pai baixa-se para ver a filha. Sentada na sua cadeira de

    rodas, Carolina agita energicamente a cabeça como se quisesse

    libertar aquele imenso estrondo que lhe invadiu primeiro os

    tímpanos, depois o cérebro.

    − Calma, Carolina! Já passou… E estamos quase a chegar a

    casa da avó! E vamos ver os tios e os primos todos. Aqueles de

    quem tu gostas muito… E pode ser que alguém tenha feito aquela

    sobremesa…

    Carolina continua a contorcer-se… como se quisesse

    libertar-se do que lhe tinha invadido o corpo.

    De seguida, é a mãe que faz um novo esforço para a

    acalmar…

    − Olha! Olha ali! Já viste aquelas bandeirinhas que estão

    penduradas na varanda da avó? Olha bem!! Sabes-me dizer que

    desenhos são aqueles e quem os fez?

    Finalmente, um sorriso acalma a menina quando, olhando

    aqueles enfeites de festa, reconhece o desenho e tenta

    vocalizar a palavra cavalo.

    Carolina é, já se sabe, uma menina diferente. E com sorte.

    No dia seguinte à festa, ainda conserva os totós que a mãe lhe

    fizera. Por ser a última a entrar na carrinha que vai buscar os

    meninos, fica sempre com o lugar da janela. Gosta de se ver

    refletida no vidro. Naquele dia, essa imagem tem cor, por causa

    dos elásticos que tem nos seus cabelos ruivos. E é uma imagem

    colorida a que surge quando, ao passar pela Quinta de Sto.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    Adrião, vê os cavalos do Senhor Joaquim, soltos, uns a beber

    água junto do ribeiro que atravessa o prado, outros a correr por

    aquele imenso verde.

    − Então meninos! Gostaram da festa? − pergunta, cheia de

    boa disposição a Dona Conceição, monitora daquela classe de

    meninos muitos especiais… E continua:

    − Aí em cima da mesa já têm as vossas novas atividades.

    Esta semana vamos fazer fada-do-lar.

    A semana vai correndo com trabalhos de recortes,

    bordados, costura, pinturas… À Carolina calha sempre o mesmo

    molde. São cavalos e mais cavalos que a menina constrói naqueles

    materiais, como se uma manada de equídeos selvagens lhe tivesse

    invadido os pensamentos e ela os quisesse libertar.

    Chega o último dia da semana, que começa invariavelmente

    com a aula de natação. A mãe de Carolina também participa.

    Naquele dia, agarra num canudo de esponja comprido e passa-o

    por debaixo das suas pernas e das pernas de Carolina.

    Troteando, de um lado para o outro da piscina, vai exclamando:

    − Vê Carolina! Imagina que isto é um cavalo…

    E vão troteando e troteando em brincadeiras inocentes.

    Até que a dada altura, todos se libertam e, sob o olhar atento da

    mãe, Carolina mergulha deixando-se envolver por uma mágica

    sensação de liberdade que lhe transmite toda aquela água.

    E na tarde desse dia, um passeio à Quinta de Sto. Adrião!

    Uns meninos conseguem já montar sozinhos os cavalos, outros

    fazem-no com os pais. Outros ainda, como a Carolina, observam

    apenas… Naquele dia solarengo, os instrutores decidem fazer as

    atividades no prado ao ar livre. Desde que começaram aquelas

    atividades de Equitação Terapêutica, uma estranha ligação se

    desenvolveu entre os cavalos do Senhor Joaquim e aqueles

    meninos especiais.

    De vez em quando, uma égua branca, que participa nos

    exercícios, fixa atentamente Carolina, sentada na sua cadeira de

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    36

    rodas… Até que, num dado momento se liberta do seu instrutor e

    corre depressa para a pequena aproximando a cabeça do seu

    regaço. Carolina reage levando as mãos às bochechas, num

    comovente abraço. Ouve-se um silêncio profundo mesmo antes da

    petiz dizer:

    − CA-VA-LO!

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    Coração de Leão, Vanda Furtado Marques

    Estava a amanhecer... No Vale Encantado, a azáfama era

    grande: os coelhos limpavam as tocas, os passaritos lavavam as

    caras no orvalho matinal, as raposas ajeitavam as suas caudas

    farfalhudas e os esquilos armazenavam as nozes nos buraquinhos

    das árvores.

    Lá em cima, nas nuvens, aterrava uma cegonha muito, muito

    cansada.

    – Ufa! Finalmente encontrei a morada certa para deixar a

    encomenda. Ora deixa-me ler bem: Vale Encantado – Rua das

    Cenouras, nº 6.

    A cegonha abriu as suas longas asas e desceu a grande

    velocidade para o vale. Olhou com atenção e procurou a morada

    que vinha na encomenda.

    Não havia nome nas ruas, mas também não foi preciso,

    porque assim que avistou um grande campo de cenouras, a

    cegonha riu de satisfação.

    Pousou lentamente, baixando as asas. Procurou a casa com o

    número seis e ia pensando “mais uma missão cumprida”.

    Bateu à porta…TOC, TOC, TOC, pousou o cesto e voou para

    o céu.

    Dentro da casa ouviram-se uns guinchos fininhos e

    histéricos:

    – Mãeee! Chegaram os novos manos, nós vimos a cegonha

    pela janela.

    A Mãe Coelha abriu a porta e recolheu o cesto, como

    sempre fazia.

    Levantou o cobertor, espreitou, arregalou os olhos de

    espanto e disse para os filhos:

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

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    – Desta vez a Senhora Cegonha trouxe um mano bem

    diferente!

    – Diferente? Como? – Perguntaram os coelhinhos

    atrapalhados!

    – Venham ver com os vossos próprios olhos.

    Entretanto, por debaixo do cobertor, já se viam umas

    patinhas.

    – Mãe, um dos bebés não tem patinha de coelho!

    Depois, entre as orelhas compridas de coelhos, saltavam à

    vista umas orelhas redondas:

    – Mãe, o bebé não tem orelhitas de coelho!

    E depois o narizito.

    – Mãe, o bebé não tem narizito de coelho; tem um nariz

    enorme!

    Até que, uma cara e um corpo muito peludo saíram do

    cestinho.

    – Mãe!.. Que giro que ele é! Mas é um bocadinho diferente

    de nós!

    – Vamos mostrar ao papá! Ele vai adorar.

    Caminharam até à cozinha, onde o pai preparava uma

    cheirosa sopa de cenoura.

    – Paiiiiiiiii! Anda ver um dos novos manos! Olha bem como ele

    é especial!

    O pai olhou, voltou a olhar, arregalou os olhos e disse:

    – Este nosso filho é mesmo diferente, mas é tão giro!...

    Nessa noite, a família coelhinha foi cumprir o ritual lá do

    vale: apresentar os bebés à Rainha Coruja.

    A Rainha Coruja já os esperava, no seu tronco real.

    – Apresentem-me lá os vossos bebés, para eu os abençoar.

    A Mãe Coelha, atrapalhada, tratou de avisar que um dos

    bebés era especial e levantou o cobertor. A Rainha Coruja olhou,

    voltou a olhar e arregalou os olhos:

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    39

    – Que bebé especial! Mas ele não é um coelhinho!

    – Nós sabemos, mas ele é nosso filho na mesma, e é tão

    bonito!

    – Só há um pequenito problema: é que este bebé vai ficar

    grande, enorme! – disse a coruja.

    – Enorme? Como?

    A coruja, cheia de sabedoria, disse:

    – Vai ficar do tamanho de seis raposas.

    – Como!? Mas quem é este bebé?

    A coruja ajeitou os óculos e disse:

    – Este bebé chama-se Leão. Ele é tão grandioso, que é

    chamado o Rei da Selva.

    Os coelhinhos olharam uns para os outros aflitos e

    perguntaram à coruja:

    – Como iremos tomar conta dele? E como o iremos

    alimentar? Onde o iremos deitar?

    – Calma, vocês vão tratar dele como se fosse um coelho.

    Vão-lhe dar cenouras e ervinhas e por enquanto deitem-no no

    berço dos coelhos. Daqui a um mês voltaremos a conversar para

    ver como está tudo a correr.

    Um mês depois… O Leãozinho estava enorme! A família

    coelha já não conseguia passar despercebida na rua e todos os

    animais do vale queriam saber quem era aquele animal estranho.

    A Rainha Coruja teve de fazer uma reunião com todos os

    animais e explicar-lhes quem era este novo animal. Os bichos já

    andavam a criar histórias mirabolantes e de terror sobre o

    pequeno animal.

    – Animais do bosque: este filhote chama-se Leão e

    habitualmente mora na selva. Mas a Senhora Cegonha trocou a

    encomenda, por isso a partir de hoje ele será um dos nossos.

    – Mas ele é perigoso? – perguntaram os castores.

    Os animais começaram a agitar-se, e algumas vozes já

    gritavam que ele ia destruir o bosque:

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    40

    – E se ele nos fizer mal e assustar os nossos filhos?

    – Nós não queremos cá este estranho… Ele vai trazer-nos

    problemas – disseram as raposas.

    – Vamos expulsá-lo! Não merece estar aqui – gritaram em

    coro os veados.

    A Rainha percebeu que tinha de encontrar uma solução e

    falou com um ar doutoral e com muita calma:

    – Para a segurança de todos, o Leão irá ficar na prisão do

    vale. Daqui a uma semana, iremos reunir o conselho dos animais

    para tomar nova decisão.

    A família coelha chorava, o Leão tinha o coração

    despedaçado e pequenino, mas os animais do vale achavam que

    tinham tomado a decisão mais justa e certa para a sua

    segurança.

    Comentava-se pelo bosque que agora sim: com o animal

    perigoso e diferente na prisão, tudo iria voltar ao normal.

    Até ao dia em que uma alcateia de lobos uivava: Auu… Auuu,

    correndo pelo vale e assustando tudo e todos.

    Os animais, aflitos, corriam em todas as direções, fugindo

    da fúria dos lobos.

    O Leão assistia a todo este desespero, por detrás das

    grades de madeira da prisão.

    – Isto não pode continuar – pensou o Leão. Por isso, abriu a

    sua enorme boca e soltou um rugido, tão forte e tão assustador

    que os lobos se encolheram de susto.

    Depois soltou mais um rugido, e outro Grauuu…

    Grauuuuuuuuuuuuu… Grauuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu…

    Os animais do bosque também ficaram perplexos com este

    rugido tão forte que vinha lá dos lados da prisão. Assim que os

    lobos se puseram em fuga, os animais correram para a prisão,

    rodearam o Leãozinho, deram as mãos e em coro pediram

    desculpa por terem sido tão injustos.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos

    41

    – Desculpa, desculpa! Nós não pensamos com o coração, e

    fomos levados a agir por sentimentos menos nobres… Ser

    diferente, especial é uma enorme riqueza – disseram em coro

    todos os animais do bosque.

    De lobos nunca mais se ouviu falar no vale encantado… e

    tudo graças a um leão que sabia ouvir a voz do coração.

    Podem achar que esta história não é verdadeira, mas se

    forem falar com os leões da selva, não há um único que não

    conheça esta história: ela faz parte do Maravilhoso Livro das

    Histórias dos Leões.

  • 42

    9-12 anos

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

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  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

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    O Baile de Máscaras, Ana Raquel Matos e Salvador

    Borges

    A Maria acabou de receber a notícia de que vai poder

    finalmente regressar à escola depois de um longo período

    ausente. Assim que o médico autorizou o seu regresso, um

    silêncio tranquilo tomou conta do consultório. Quase se podia

    ouvir o som da lágrima teimosa que foi rolando pela cara da

    Maria. Era uma lágrima diferente das últimas que chorara. Esta

    era quente, feita de alegria, da mesma alegria que agora morava

    nos olhos dos seus pais e nas palavras do seu médico.

    Aos poucos todos se recompuseram das boas emoções

    provocadas pela notícia e retomaram uma conversa pautada por

    palavras bonitas aos ouvidos da Maria, como “escola”, “amigas”,

    “brincadeira”, “passear”. Maria fazia um esforço para ouvir tudo

    atentamente enquanto puxava ligeiramente o elástico da máscara

    para deixar passar a mão e limpar a lágrima que ainda descia

    devagar junto à sua boca.

    – Maria, não te esqueças de usar a máscara por mais uns

    tempos, por precaução – disse o médico.

    A Maria tivera uma doença com um nome muito, muito feio

    (quase impronunciável!). Nem toda a gente sabe, mas as pessoas

    que trabalham com doenças como essa respeitam uma regra

    muito importante. Sempre que descobrem uma doença má dão-

    lhe um nome horrível. Uma espécie de castigo enquanto não

    descobrem a sua cura. Afinal, quem gostaria de se chamar

    “leucemia mieloide”, “hepatoblastoma” ou, pior ainda,

    “rabdomiossarcoma”? Sim, nada disto acontece por acaso, nomes

    como estes são pensados ao pormenor, letra por letra!

    Assim que acabou a consulta, a mãe da Maria desdobrou-se

    em telefonemas felizes. O último foi para a escola, avisando que

    ela estava de regresso. Voltar à escola era um sonho que se ia

    realizar. E se até ali o tempo teimou em passar devagar, quase

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    45

    parado, o tempo da Maria estava, agora, prestes a regressar ao

    ritmo normal que acontece quando não estamos doentes.

    A Maria desejava, mais do que nunca, apressar o tempo,

    fazê-lo voar:

    – Nunca mais é amanhã! – pensava enquanto sorria por

    dentro e por fora. Até que o tempo lhe fez a vontade.

    Nessa manhã, estava tudo diferente na rotina que Maria

    conhecera. O trânsito agitado representava agora um festival de

    vida e de cor. As paragens forçadas nas longas filas eram

    oportunidades para trocar ideias sobre coisas, sobre qualquer

    coisa! E o barulho de fundo no caminho até à escola já não era

    feito de notícias sobre economia e política, mas do som da chuva

    a cair no vidro do carro e da admiração conjunta da família da

    Maria em relação ao espetáculo proporcionado pelo limpa para-

    brisas, enérgico, quase cómico, na sua missão quase inglória

    contra as gotas que se formavam nas suas costas. “Não é preciso

    um belo dia de sol para ser feliz”, pensava a Maria.

    Os pais atrapalharam-se em recomendações, ansiedades e

    cuidados na chegada à escola. Maria não ouviu quase nada. Ela

    procurava os amigos e as amigas com os olhos, ao longe.

    À porta da sala, o som do coração da Maria sobrepôs-se ao

    alarido próprio de um início de aula no primeiro horário da manhã.

    Entrou, e atrás dela entrou um silêncio e um espanto

    generalizado. Ela estava diferente e para além disso tinha uma

    máscara.

    Ouviram-se, de um e de outro canto da sala, alguns “olá”,

    tímidos, distantes e estranhos, sobretudo estranhos. Não

    aconteceram os abraços que a Maria tinha imaginado, nem

    chegou a sentir o calor da mão da melhor amiga na sua mão.

    Maria tinha apenas 11 anos, idade suficiente para perceber

    que a máscara que estava a usar tinha uns longos braços que

    afastavam coisas más, mas que também mantinham muitas

    pessoas à distância.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    46

    Deixou-se cair devagar numa cadeira, ao fundo da sala,

    sozinha. Todos os alunos e alunas olhavam para o quadro verde,

    em silêncio, àquela hora da manhã. Pela cabeça da Maria

    passaram muitas coisas, como a ideia muito forte de sair dali, ir

    embora.

    A professora de língua portuguesa, porém, em instantes,

    decifrou cada um dos pensamentos dos seus alunos e alunas e

    apressou-se em direção à Maria. Parou à sua frente, abriu um

    sorriso à largura dos seus braços e deu-lhe um abraço demorado.

    – Bem-vinda, Maria. Senti muito a tua falta. – Disse-lhe,

    consciente de que em momentos como este devemos falar só por

    nós. “Afinal, é a melhor maneira de fazer os outros refletir”,

    pensou ela.

    O resto desse dia da vida da Maria continuou recheado de

    solidão, uma solidão diferente, daquelas que existem no meio do

    bulício. O dia dos colegas, esse, foi feito de medos infundados,

    de distâncias medidas e de uma culpa que não sabiam explicar e

    que nem sequer sabiam se fazia algum sentido, mas que mesmo

    assim os deixava tristes.

    No último tempo de aula desse dia, o professor de ciências

    da natureza vinha preparado para dar uma aula diferente. Uma

    aula sobre doenças como a da Maria. Falaram da importância do

    sistema imunitário (que nos defende das doenças) e da

    necessidade, em certos casos, do uso da máscara para nos

    proteger quando estamos mais frágeis.

    Aos poucos todos perceberam que a máscara da Maria,

    afinal, não servia para proteger a turma. A doença já não existia

    e quando existiu nem sequer era contagiosa. A máscara era uma

    proteção útil à Maria contra os perigos que a rodeavam, porque

    ainda estava debilitada.

    Este esclarecimento fez crescer na turma a certeza de que

    também era urgente proteger o sistema dos afetos da Maria,

    pois sabiam que o tinham fragilizado.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    47

    As atitudes que tinham tido ao longo de todo o dia, afinal,

    também tinham nomes feios, não tão feios como o das doenças

    más, mas nomes que ninguém quer ter associados a si próprio.

    No dia seguinte, quando a Maria chegou, já toda a turma

    estava na sala. Entrou e por trás da máscara percebeu-se a sua

    boca a abrir-se de espanto, tal como se viam os seus olhos a

    brilhar de surpresa.

    Naquele dia todos tinham uma máscara colocada. Cada

    colega pintara uma com motivos divertidos, feitos à medida do

    seu jeito para o desenho: corações, bolas de futebol, bonecos,

    ursinhos, flores e estrelas.

    – Maria – disse uma amiga – desculpa o dia de ontem e a

    forma como te recebemos.

    Maria já tinha desculpado. Ela sabia melhor do que ninguém

    que aos 11 anos nem sempre é fácil perceber e aceitar certas

    coisas, como a sua doença, a sua máscara, os nossos medos.

    Afinal, nenhuma cura deveria esconder sorrisos!

    Aquele “baile de máscaras” tomou conta da sala de aula

    naquela manhã e marcou, definitivamente, o regresso da Maria à

    escola, um regresso que nem ela teria conseguido imaginar.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    48

    Viagem a Coimbra, Bruno Magina

    Intervalo da aula de português

    Este é o meu lugar preferido da escola… desde hoje. Aqui

    ninguém me vê, por isso posso estar tranquila. Sim, afinal é bom

    estar sozinha. Desde a visita de estudo de sexta-feira à Quinta

    das Lágrimas, em Coimbra, que venho para aqui assim que toca

    para o intervalo.

    Em Coimbra, as “lágrimas” eram as de Inês de Castro mas

    podiam muito bem ter sido as minhas. Afinal, tenho 11 anos, ainda

    posso chorar. Sempre ouvi dizer que os homens não choram, por

    isso as raparigas como eu devem estar autorizadas. Haverá

    algum limite de idade para chorar?

    Estava tão contente por ir a Coimbra. Passei as férias da

    Páscoa a falar com os meus pais sobre a viagem e a planear tudo

    ao pormenor. Nas aulas, lemos muitos textos sobre D. Pedro e

    Inês. Até vimos um DVD e fizemos pesquisas na internet. Eu e as

    minhas amigas estávamos ansiosas por ver ao vivo a fonte e o

    jardim.

    No final, nada foi como eu tinha imaginado. A fonte lá

    estava, com a mancha vermelha que consta ser o sangue de Inês

    de Castro, tal como o jardim e tudo o resto. Eu é que não

    “estava” lá.

    Foi na aula de português que tive a ideia de escrever esta

    espécie de diário, para que um dia alguém possa ler e perceber o

    que estou a sentir.

    Já está a tocar. Assim que puder volto para aqui.

    Inês

    ******

    Intervalo da aula de ciências

    Na aula de ciências, chorei. Chorei porque me tiraram a

    mochila, durante a própria aula. Quando olhei para o lado, no

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    49

    chão, ela já não estava lá. Olhei para trás e vi a mochila mais ou

    menos a meio da sala. Alguém da turma agarrou nela, sem eu dar

    por nada, e foi passando aos colegas de trás, até chegar ao

    fundo da sala.

    É óbvio que os meus colegas só fizeram isso para gozar

    comigo. Por isso não aguentei e chorei. Chorei muito, mesmo ali,

    sentada à mesa, quase em frente ao quadro. Poucos segundos

    depois, como seria de esperar, a mochila já estava de volta. Mas

    que importava isso? O que me magoou não foi a mochila estar ali

    ou não estar ali. O que me magoou foi a atitude dos meus colegas

    para comigo.

    Assim que a aula acabou, vim a correr para aqui. A

    professora não me disse nada. Nem sei se ela se apercebeu de

    alguma coisa, mas o meu lugar é na segunda fila da frente, não

    era difícil reparar. Por que é que não me perguntou o que é que

    se passava para eu estar a chorar? Ao menos assim eu podia ter

    contado tudo de uma vez por todas. E se fosse ali, em frente à

    turma, melhor ainda.

    Não sei mais o que fazer. Não me apetece sair daqui. Não

    quero ir para as aulas. Mas está quase a tocar outra vez…

    Inês

    ******

    Intervalo da aula de história

    Vou finalmente tentar escrever tudo o que aconteceu na

    visita de estudo a Coimbra.

    É fácil contar. Nem é preciso resumir.

    Como íamos passar quase todo o dia fora, a camioneta ia

    partir de manhã bem cedo. Os meus pais preferiram levar-me de

    carro para a escola, em vez de eu ir a pé, como quase sempre

    faço. E assim foi. Os meus colegas viram pela primeira vez os

    meus pais. Eu tenho dois pais: um pai e um pai.

    As minhas amigas já sabiam disso. Elas costumam ir lá a

    casa lanchar ou fazer os trabalhos. Ao princípio, elas acharam

    estranho e fizeram muitas perguntas. Eu disse-lhes sempre que

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    50

    eu não sei o que é ter uma mãe, porque nunca conheci a minha,

    mas que vivo bem com os meus pais e não me falta nada. Sou feliz

    com eles.

    Para mim, ter dois pais é normal, mas as minhas amigas

    achavam que os colegas da nossa turma, sobretudo os rapazes,

    não iam perceber e até podiam rir-se de mim por causa disso.

    Então, nunca contei, tal como não conto muitas outras coisas.

    Na camioneta, a caminho de Coimbra, não havia mais como

    esconder ou negar. Já toda a turma sabia a verdade.

    Inês

    ******

    Hora de almoço

    Felizmente, moro perto da escola e posso vir aqui almoçar.

    A empregada dos meus pais, a Dona Delfina, cozinha muito bem.

    Ela perguntou-me se eu estava triste. Como não gosto de mentir,

    desviei o olhar e disse que não. Ela pareceu não acreditar mas

    não insistiu.

    Durante a viagem a Coimbra, dentro da camioneta, os meus

    colegas cochicharam entre si e escreveram-me um papelinho a

    perguntar se “aqueles” é que eram os meus pais. Como não

    respondi, começaram a enviar mais e mais papelinhos. “Qual deles

    é a tua mãe?”, “Tens duas ‘bichas’ de estimação e nunca nos

    contaste?”, “Também vais ser como eles quando cresceres?”,

    foram algumas das mensagens que recebi.

    Incapaz de dizer ou fazer alguma coisa, apenas machucava

    os papelinhos, atirava-os para dentro da mochila e chorava cada

    vez mais.

    A Sara, que estava sentada ao meu lado, tentava consolar-

    me e chamava os meus colegas de “parvos”. A viagem parecia não

    chegar ao fim… e faltava ainda regressarmos a Lisboa…

    Esse foi de certeza o pior dia da minha vida.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    51

    Na Quinta das Lágrimas, tentei imaginar o que sentiu a

    “outra” Inês antes de ser morta com tanta crueldade.

    Sinto que naquele dia também mataram um pouquinho de

    mim.

    Inês

    ******

    Intervalo da aula de educação física

    No fim de semana, os meus pais fizeram-me imensas

    perguntas sobre o passeio. Eu não queria contar-lhes o que tinha

    acontecido. Estava com medo e vergonha. Mas os meus pais

    conhecem-me muito bem (tal como os pais das minhas amigas as

    conhecem, imagino eu) e lá desabafei.

    Os pais disseram-me que aquilo que os meus colegas

    fizeram não estava correto, mas que já imaginavam que um dia

    isso poderia acontecer.

    Eles combinaram vir hoje, depois de almoço, falar com a

    minha diretora de turma. Não sei se terá sido boa ideia…

    A aula de educação física foi ainda pior do que a de

    ciências. O professor pediu para fazermos equipas de quatro

    jogadores. As equipas tinham de ser mistas. Eu fiquei com a

    Sara, mas nenhum rapaz quis formar equipa connosco, ou melhor,

    comigo. Estivemos as duas para ali a atirar a bola uma à outra.

    Pergunto-me se daqui em diante será sempre assim.

    Pergunto-me se este pesadelo irá algum dia ter fim. Gostava

    tanto de acordar e ver que tudo não passou de um sonho mau.

    Ainda bem que está quase na hora de ir para casa.

    A seguir temos educação visual e tecnológica. Qual será a

    melhor cor para pintar a tristeza?

    Inês

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    52

    ******

    Antes de dormir

    No caminho para casa, cruzei-me com a Dona Delfina, que

    me abriu a porta. Quando entrei, pareceu-me ouvir os pais a

    discutir. Os meus pais raramente discutem, sobretudo à minha

    frente, por isso assim que me viram calaram-se e mudaram de

    assunto.

    Durante o jantar, os pais contaram-me como foi a conversa

    com a diretora de turma. Ela já sabia que eu tinha dois pais, pois

    eles vão sempre às reuniões da escola. Umas vezes vai o meu pai

    Artur, outras vezes vai o meu pai André.

    A diretora de turma disse que esta é uma situação delicada

    e até nova para ela e para a própria escola. Mesmo assim, ela

    disse que vai reunir-se com os outros professores e tentar ter

    ideias para resolver o problema. Eu perguntei se os meus colegas

    irão ficar de castigo, mas acho que não vai ser preciso. Ainda

    bem…

    Os meus pais também sugeriram ir eles próprios à escola

    falar pessoalmente com os meus colegas no início ou no final de

    uma aula. Eu adorava que isso acontecesse, pois assim os meus

    colegas iam perceber que os meus pais gostam muito de mim e

    que não são “anormais” ou “aberrações” como já os ouvi dizer.

    Agora tenho a certeza de que tudo se vai resolver.

    Inês

    ******

    Depois de almoço

    É a última vez que venho para aqui, pelo menos sozinha e

    para escrever. Não vou mais fugir de tudo. Não vou mais

    esconder-me de todos.

    Ontem, na aula de inglês, a professora leu um livro sobre

    um menino que, tal como os meus pais, é homossexual. Claro que

    os meus colegas passaram todo o tempo a rir baixinho, sobretudo

    no início, mas a professora não deu importância ou fingiu não

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    53

    ouvir. Ela disse uma coisa muito importante e muito sábia, algo

    em que eu nunca tinha pensado antes. Disse que o rapaz da

    história não escolheu ser homossexual, tal como não escolheu o

    país em que nasceu, a cor do cabelo e dos olhos ou a própria

    família. A professora disse que há coisas que não podemos

    escolher, apenas aceitar.

    Hoje de manhã, veio à escola uma senhora de uma

    associação que defende as pessoas como os meus pais e o rapaz

    da história. A senhora (que se chama Sara, tal como a minha

    amiga) contou que ela é casada com uma mulher. Quando ela

    disse isso, os meus colegas ficaram muito sérios e admirados.

    Provavelmente, na cabeça deles, ela nunca teria coragem para

    dizer aquilo à nossa frente.

    A Sara pediu para irmos dizendo em voz alta uma lista de

    palavras que normalmente se usam para ofender pessoas

    homossexuais. Os meus colegas – e eu! – ficaram surpreendidos.

    “Dizer palavras destas numa sala de aula?”, pensei eu na altura.

    Mas acabaram por dizer “Gay”, “Maricas”, “Virado” e outras que

    nem me atrevo a escrever!

    A Sara é mesmo fixe. Depois disso tudo, ela própria sugeriu

    mais palavras e escreveu-as no quadro. E disse que aquelas

    palavras não a afetam porque, de facto, ela é homossexual.

    Acho que a força e a confiança que a Sara demonstrou

    ajudaram muito a transmitir a mensagem que ela queria. E acho

    também que a visita da Sara, para mim, veio no momento certo.

    A Sara “salvou” a minha vida – tal como a professora de

    inglês.

    Tudo isto deve ter sido ideia da minha diretora de turma.

    O que importa é que parece que os meus colegas

    aprenderam alguma coisa, pois hoje não se meteram mais comigo

    nem fizeram comentários sobre os meus pais ou sobre outra

    coisa qualquer.

    Acho que tudo vai voltar a ser como era dantes. Claro que

    só terei a certeza disso quando for de novo para as aulas, hoje à

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    54

    tarde. Mas a boa notícia é que, pela primeira vez em muito

    tempo, não estou com medo nem com vergonha de ir para a

    escola!

    Inês

    PS: Ao arrumar a mochila, encontrei dois papelinhos bem

    dobradinhos. Deviam estar ali desde a viagem a Coimbra! Um

    dizia “Eu também sou gay” e o outro “Não fiques triste, eu gosto

    de ti”. De quem serão?

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    55

    Amor de Várias Cores, Cristiana Pereira de Carvalho e

    Criziany Machado Felix

    Parecia uma aula como outra qualquer.

    Enquanto o Professor Duarte explicava o aparelho

    reprodutor feminino, as dúvidas começavam a invadir a mente

    dos alunos. Escutavam-se os risos envergonhados e sussurros

    tímidos. Queriam fazer perguntas, mas não tinham coragem. Até

    que… Paulo coloca o dedo no ar. O Professor Duarte dá-lhe a

    palavra.

    – Professor, o meu pai tem um amigo que tem um

    namorado… – Explicava Paulo, quando foi interrompido por Maria.

    – Um namorado? Não! Uma namorada! – Corrigiu Maria.

    – Não sejas totó, Paulo. É lógico que os homens têm

    namoradas e não namorados! – Enfatiza Rui.

    Tranquilamente, Paulo responde:

    – O António, amigo do meu pai, tem um namorado, o Afonso

    Henriques.

    – Uhhhh! Que nojo! – Ouve-se ao fundo da sala.

    Rapidamente o Professor Duarte percebera que aquela

    seria uma aula diferente.

    – Turma, vamos respeitar o colega e deixar o Paulo acabar.

    – Intervém o Professor Duarte.

    – Eu só queria perguntar como eles poderão ter um filho ou

    uma filha, já que nenhum deles tem aparelho reprodutor

    feminino. – Pergunta Paulo, com ar de preocupação com os amigos

    do pai, pois ele já os ouvira várias vezes mencionar o quanto

    gostavam de ter uma criança.

    – Que parvoíce! A minha mãe disse-me que todos temos que

    ter um pai e uma mãe… – Afirma Luís de forma irritada.

    – Isso não é verdade! Quem sempre cuidou de mim foram os

    meus avós. – Volta a intervir Maria.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

    56

    – ‘Tá bem! Mas tens um pai e uma mãe. – Contraria Luís.

    O assunto era polémico e suscitava grande debate. O

    Professor Duarte, querendo aproveitar a oportunidade para

    esclarecer os seus alunos e alunas sobre pontos importantes da

    educação sexual, interveio:

    – Todas as vossas questões são muito importantes. Mas

    temos que ter cuidado para não confundir o que cada uma

    envolve.

    – Oh Professor, mas algum dia um homem pode gostar de

    outro homem? – Pergunta Rui ansiosamente.

    – Era exatamente por aí que eu ia começar. – Destaca o

    Professor Duarte e prossegue:

    – Um homem pode gostar de outro homem, pode gostar de

    uma mulher ou pode gostar de ambos. E uma mulher também.

    – Eu nunca vou gostar de outra rapariga! – Afirma

    rapidamente Raquel.

    – Raquel, não escolhemos de quem gostar. Amor sente-se,

    não se escolhe!

    – Mas Professor, eu sei que nunca vou escolher gostar de

    uma rapariga! – Insiste Raquel.

    – Raquel, e tu vais escolher qual o rapaz de quem vais

    gostar?

    – Oh Professor, claro que não! Eu vou me apaixonar e

    pronto! – Diz Raquel.

    – Exatamente! Primeiro vocês vão sentir-se física e

    emocionalmente atraídos e só depois irão perceber por quem.

    Pode ser por um rapaz ou por uma rapariga, dependendo da

    orientação sexual de cada um.

    – Ah! Então podemos andar sempre a mudar. – Afirma Rui.

    – Claro que não! Isso é uma doença, só no dia que

    descobrirem a cura... – Diz Luís.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

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    – Então isso é contagioso? Eu quero ser sempre rapariga! -

    Manifesta Raquel a sua inquietação.

    A confusão estava instalada! A timidez inicial tinha dado

    espaço às dúvidas, às muitas dúvidas... E o Professor Duarte

    ouvia cada uma com muita atenção.

    – Calma, turma! Vocês estão a fazer uma grande confusão.

    Não podemos baralhar o sexo biológico com a orientação sexual.

    A orientação sexual, como eu já expliquei, define por que género

    (masculino ou feminino) nos sentimos atraídos. O sexo biológico

    indica-nos se somos mulher, homem ou inter-sexo. - Explicou o

    Professor.

    – Inter-sexo? O que é isso? – Interrompeu o Luís, com um

    olhar intrigado.

    – Muito bem questionado! Então, a mulher possui, como

    estávamos a ver, no início da aula, vagina, ovários e cromossomas

    XX. O homem possui pénis, testículos e cromossomas XY. Uma

    pessoa inter-sexo é uma combinação dos dois, mulher e homem.

    – Ah, então... o amigo do pai do Paulo é assim? Por isso ele

    gosta de homem? – Interrompeu novamente o Luís com o seu ar

    questionador.

    – Não! O professor já explicou que ele é homem. Os inter-

    sexos são como o cabeleireiro da minha mãe, cheio de tiques de

    mulheres. – Afirma entusiasticamente Raquel, acreditando que

    tinha compreendido tudo.

    – Ahhhhh, eu conheço homens que querem ser mulheres. E

    mais, mulheres que parecem homens, vestem-se e andam como

    homens, queriam ser como nós Professor. – Destaca Luís.

    – Isso não é verdade! – Interrompe Paulo. A minha mãe já

    me explicou que o amigo do meu pai não quer ser mulher e nem as

    lésbicas querem ser homens. São apenas pessoas que gostam de

    pessoas do mesmo sexo.

    – Pois, inter-sexo!!! – Afirma Luís já um pouco zangado.

    – Oh pá, calem-se! Deixem o Professor explicar. – Ouve-se

    ao fundo da sala.

  • De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos

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    O Professor Duarte, esboçando um leve sorriso, continua:

    – Uma pessoa inter-sexo não pode ser confundida com gays

    ou lésbicas, nem mesmo com pessoas transexuais. A pessoa

    inter-sexo possui características biológicas de ambos os sexos, e

    a sua orientação sexual não tem nada a ver com isso. Os gays e

    lésbicas não! O gay é aquele homem que gosta de outro homem e

    a lésbica é aquela mulher que gosta de outra mulher. Não

    assumem necessariamente as características biológicas ou de

    identidade de outro género, e por isso, não podemos afirmar que

    uma pessoa por ser gay tem tiques de mulher, ou por ser lésbica

    é masculina. Mas, prestem atenção, se o gay tiver tiques de

    mulher e a lésbica for masculina isso está bem, pois cada pessoa

    tem a sua forma de ser.

    – Ahhhhhhhhhhh! – Exclama Rui.

    – Espera um bocadinho Rui – interrompe o Professor Duarte

    que continua a explicar:

    – Ainda não vos esclareci sobre as pessoas transexuais.

    Essas pessoas possuem uma identidade de género diferente da

    biológica, ou seja, podem ter nascido homens ou mulheres mas

    sentem-se como sendo do outro género.

    – Então o amigo do pai do Paulo é um homem que se sente

    mulher e por isso gosta de outro homem? – Questiona Rui.

    - Não, Rui! Não faças confusão. O amigo do pai do Paulo é

    um homem, que se sente homem e gosta de outro homem. Por

    isso eles são gays. – Explica Maria.

    – Sim, isso mesmo! – Confirma o Professor. São gays porque

    têm uma orientação homossexual. Quando uma pessoa gosta de

    outra de sexo diferente tem uma orientação heterossexual.

    – E quando muda de orientação? Ou gosta dos dois? Já que

    não se escolhe, pode-se gostar de mais de um sexo, não pode? –

    Interroga Raquel.

    – Sim. Pode gostar dos dois sexos e